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Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
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CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
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CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENLA_ADO_PELA_COWGIRL.jpg
CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENLA_ADO_PELA_COWGIRL.jpg
CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENLA_ADO_PELA_COWGIRL.jpg
CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENLA_ADO_PELA_COWGIRL.jpg
CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENLA_ADO_PELA_COWGIRL.jpg
CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENLA_ADO_PELA_COWGIRL.jpg
CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENLA_ADO_PELA_COWGIRL.jpg
CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENLA_ADO_PELA_COWGIRL.jpg
CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENLA_ADO_PELA_COWGIRL.jpg
CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENLA_ADO_PELA_COWGIRL.jpg
CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENLA_ADO_PELA_COWGIRL.jpg
CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENLA_ADO_PELA_COWGIRL.jpg
CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)
CONTINUA
Mulher insolente, tinha o poder de me irritar. Dandara dá as costas para mim e começa a desencilhar o imenso cavalo à nossa frente, fingindo-se de surda.
— Olhe para mim enquanto eu falo com você!
Puxo Dandara pelo braço para que vire e me encare. Ela me lança um olhar furioso.
— Você deixou bem claro sobre seus planos: vamos amansar a caipira e assim destruir tudo que ela construiu esses anos, enquanto você se senta em cima do seu enorme ego em sua sala, no alto de um prédio, criando seus hoteizinhos de luxo! Então, por que você não pega seu traseiro gordo e some daqui? Pelo menos me deixe ficar em paz nos últimos momentos que me restam no Haras!
— Você não passa de uma bronca!
Observo as olheiras em seus olhos, sinais da noite mal dormida, e a boca, que sempre achara particularmente atraente, estava apertada em linha estreita. Eu gostava do seu jeito ríspido e apreciava provocá-la quando ficava assim. — Não vê que poderia ganhar muito dinheiro vendendo o Haras para mim?
Ela cruza os braços, aprumando sua postura, dando uma gargalhada exagerada. Meus olhos me traem, dando uma espiada na linda curva que seus seios fazem pelo decote de sua blusa. Ao ter os braços os pressionando.
— Perdeu algo aqui embaixo?
Torço a boca, encarando seu sorrisinho sarcástico. — Nada que não tenha visto bem de perto nesses meses, principalmente com a minha boca e, pelo que me recordo, você gemeu muito quando isso aconteceu.
Dandara ergue a mão pronta para dar um tapa em meu rosto, mas consigo contê-la, puxando seu corpo para o meu. — Posso dizer que esse tempo que ficou no meio dos bichos te deixou insana, olha que eu poderia ter usado isso contra você!
O cavalo relincha alto empinando um pouco o corpo para trás.
— Calma, Trovoada, é só ignorar esse mosquitinho barulhento — ela diz dando a volta no cavalo, acariciando seu corpo.
— Potranca mal-educada!
Dandara me fuzila com o olhar.
Acontece tão rápido, ela dá um pequeno estralo de dedos, fazendo o cavalo vir para cima de mim, que por consequência, me faz andar para trás, escorregando naquele feno fétido.
Tentando escapar, para que a bunda do animal não encontrasse meu rosto, fazendo com que eu caía sentado em um carrinho de mão repleto de esterco.
Cerro os dentes, bufando de raiva.
Maldita caipira!
O cavalo relincha, parecendo se divertir com seu feito.
— Quer uma ajudinha? Pelo visto você odeia a natureza, mas adora se refestelar nela. — Dandara caçoa.
Cerro os dentes levantando do carrinho, tentando tirar a sujeira que colou em minha bunda e costas, enquanto Dandara me encara com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho frouxo de escárnio nos lábios.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/ENLA_ADO_PELA_COWGIRL.jpg
CAPÍTULO 1
Miguel
Grande herança essa, mato e esses bichos peçonhentos!
— Valeu, tio-avô! — Reclamo andando mais algumas passadas.
Olho para meus sapatos atolando no meio do barro, assim como minha calça tem marcas até o meio da canela e pequenos fiapos de grama, que ficaram grudados enquanto eu caminhava, mas também deveria dar parabéns para minha falta de senso, quis realizar uma aparição surpresa e tudo que consegui foi alguns quilometros de caminhada no meio do nada. Como iria prever que a porteira do Haras estaria tão distante do casarã?
Eu estou puto, cansado, com sede e com um calor dos infernos.
Com a mão sobre a testa, aperto os olhos tentando fazer sombra para enxergar melhor, enquanto com a outra tento tirar minha mala da poça da qual tinha se enfiado. Finalmente avisto o enorme casarão branco. Até que não está no estado que imaginei, não que me importe, já que colocarei tudo abaixo para construir mais um de meus hotéis.
Esse será uma inovação, um verdadeiro resort no meio do mato. O Oásis para quem quer um dia longe da vida da cidade grande, com direito a tudo que podem desejar e imaginar num resort cinco estrelas, sem tirar a aparência rústica.
Lembro-me vagamente de ter passado algumas férias aqui, mas nem mesmo estas pequenas lembranças me animaram ao pensar que teria que retornar para essa cidadezinha no meio do nada. Retiro por um pequeno instante do bolso da calça o celular, óbvio que o sinal ali seria uma merda. Mais um ponto negativo.
Mesmo que eu construa um resort cinco estrelas as pessoas não desgrudam dos seus aparelhos, hoje tecnologia está em tudo. As pessoas respiram tecnologia desde o despertar, compartilham seus momentos, suas chatiações e principalmente exibem suas viagens. E se eu quisesse que este resort aparecesse para o mundo teria que consertar esse problema. Pois, até mesmo na automatização dos serviços hoteleiros a tecnologia seria imprescindível.
Suspiro profundamente afundando meu celular de volta no bolso. — Graças a Deus, uma alma viva!
Aceno para a mulher que vem vindo num cavalo, logo que me avista, diminui o cavalgar do animal. Percebo que é jovem, talvez uns vinte e seis anos. Alta, corpo bem definido para uma caipira...e bonita, quem sabe eu não poderia curtir um pouco mais essa pequena estadia, não é?
Quando ela para ao meu lado, faço uma pequena careta, torcendo o nariz por causa do cheiro.
— Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Ela me encara de cima a baixo e dá um pequeno sorriso. O enorme chapéu que usava fazia sombra sobre seu rosto, impedindo que descobrisse a cor exata de seus olhos, mas pude perceber que eram desafiadores.
— Espero que tenham água encanada e quente — digo espanando o ar com a mão, mesmo que isso não estivesse aliviando em nada aquele fedor. — Pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens — acrescento.
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — ela morde os lábios segurando um sorriso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo... — bufo ainda mais irritado e então solto o tradicional: — Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda de cavalo!
Salto para trás, grunhindo baixinho todos os palavrões que vêm em minha mente, enquanto a mocinha atrevida dá meia volta com seu cavalo e sai cavalgand para longe, rindo e muito de minha cara!
— Filha de uma égua! Isso mesmo, ela é...
— Cuidado, rapaz!
— Puta que pariu! De onde você surgiu? — pergunto virando assustado, dando de cara com um senhor de idade vindo pela estrada, apoiando-se numa bengala velha.
— Eu sou o Bento, e vejo que você já começou o dia levando um coice de mula , se fosse você não mexeria com ela não.
— Coice de mula? Não, eu pisei na merda mesmo.
Ele sorri.
— Mas diga, quem é aquela?
— Eu ficaria bem longe dela e do seu chicote.
Volto a encará-la, mesmo de longe, seus cabelos golpiavam suas costas enquanto seu corpo sobia e descia em uma harmonia perfeita com o cavalo, levando meus pensamentos para outro tipo de montaria. — Existem mulheres que só tem a cara de ruim — comento, sabendo que o senhor ainda está parado ao meu lado.
— A menina é como mexer com fogo em noite de São João, de madrugada você mija no colchão. Escute o que estou lhe falando, rapaz.
Bento tem uma vasta cabeleira grisalha, o rosto queimado de sol e com marcas de uma vida de trabalho duro não deixam de mostrar sua gentileza ao me dar um sorriso bonsoso, com um singelo recado silencioso: Eu te avisei.
— Não tenho medo de mulher brava.
— É claro que não. — Suspira — Quem avisa amigo é.
Dandara
— Mostre-me seu melhor, Trovoada — digo forçando-o, saindo do trote leve para a galopada no meio da relva. Cavalgamos juntos pelo campo, passando por todos os lugares que descobri quando menina, lugares que me davam paz, deixo as rédeas soltas, permitindo que Trovoada aproveitasse o passeio assim como eu, que curtisse o vento passando pela crina, por suas patas. Odiava o fato de saber que existia tantos animais maltratados por aí.
Venero os cavalos desde pequena, são fortes, velozes, repletos de emoções e muito inteligentes. Arrisco dizer que eles têm mais humanidade que um bando de brucutus por aí. Meu pai costumava dizer que eu era uma excelente encantadora de cavalos desde de menina.
Encaro a paisagem que passa por mim, curtindo cada segundo que o vento passa rápido por mim, dando a volta pelo Haras, passando pelos pequenos circuitos de equitação. Sorrindo ao ver a turma novata de crianças fazendo carinho na crina dos cavalos.
— Dandara!
Interrompo o galope, dando meia volta.
— Bento, bom dia!
— Desculpe atrapalhar seu passeio, mas Estrela está parindo e, pelo visto, não vai deixar o veterinário chegar perto se a senhora não estiver por lá. Além de um grupo de cavalos estar vindo para o Haras, o dono foi específico que somente a senhora tocasse neles.
— Já mandei parar com esse negócio de senhora, não mandei?
Bento sorri, batendo na aba de seu chapéu.
— Vamos lá ver essa teimosa, — desço do Trovoada, amarrando sua rédea na cerca, entrando no estábulo. — Peça para Mathias preparar aquele manga-larga arredio para mim. Quem sabe não domo ele hoje.
— Pode deixar — confirma se afastando.
Como Bento disse, Estrela estava realmente se recusando a deixar o veteriario chegar perto.
— Hora de colocar esse potrinho para fora — digo agachando em sua frente, acariciando seu focinho. Quando essa égua chegou no Haras era apenas um filhote sobrevivente, Pedro — meu tio — não colocou muita fé que ela sobreviveria, mas eu tinha certeza que sim, e aqui estamos. — Calma, garota. — Acaricio tentando mantê-la quieta.
Santiago, o veterinário do Haras e seu auxiliar, trabalhavam na égua, ajudando no nascimento do potrinho.
— Aí está você! — Santiago murmura, tirando o pequeno cavalinho totalmente da mãe. — Filhote e mãe passam bem!
Passo as instruções que os funcionários devem seguir monto novamente em Trovoada, dando uma volta pelo Haras, conferindo se tudo estava bem antes de deixá-lo descansar de nosso passeio matinal e cuidar do manga-larga novato.
Trovoada foi um presente de meu pai, um Percheron dócil e companheiro, aprendi a montar com ele e, desde então, tem sido meu melhor amigo, uma extensão de mim. Um dos cavalos mais lindos que tive a chance de conhecer. Negro como a noite, sua crina é espessa e lisa, Trovoada é um cavalo imponente e brincalhão, além de ter um 1,72 cm de altura e quase uma tonelada.
Mesmo com o chapéu, o sol forte atrapalha a minha visão, deixo Trovoada trotar em direção ao redondel onde Bento deixaria o cavalo selvagem. Seguro o arreio, de olho no homem parado no meio do pasto, perto da entrada; a cena seria hilária se não fosse completamente surpreendente. O rapaz está parado no meio de uma poça de esterco e barro feito pela chuva da noite passada, atolando seus sapatos e sua mala, visivelmente caros.
Ele poderia estar perdido, mas foi só me aproximar mais um pouco para perceber que eu conhecia aquele homem. Não só pela foto no mural da família no escritório de Pedro, mas por ter aturado ele na infância.
Miguel Ramirez, sobrinho-neto de Pedro.
Ele não aparecia aqui durante um bom tempo, acho que a última vez eu tinha dez anos. Não que ele ficasse realmente longos periodos, os pais dele sempre gostaram do Haras e o arrastavam para viver alguns dias no meio do mato. Mas Miguel era tão insuportável naquela época que até mesmo os bichos se escondiam dele.
Quando meu pai viúvo faleceu, Pedro me adotou como filha, me criando, educando e ensinando tudo que sei, compartilhávamos nossa paixão pelos cavalos e os sonhos de fazer do Haras o que ele é hoje. Não existia um funcionário ou amigo que não sentiu quando Pedro se acamou e nos deixou. Mas é claro que Miguel surgiria agora, sabendo que Pedro havia deixado algo para ele em seu testamento.
E, maldição, ele estava completamente diferente daquele garoto gordinho, chato e reclamão da juventude!
Puxo a rédea fazendo Trovoada interromper o trote, parando bem perto dele, que me encara fazendo uma careta, torcendo o nariz. — Ainda bem que alguém decidiu aparecer nessa pocilga.
Observo-o de cima a baixo dando um sorriso; seria maldade não avisá-lo que ele está completamente enfiado na merda?
— Espero que tenham água encanada e quente. Mas pelo cheiro, por isso detesto animais selvagens... — diz espanando o ar com a mão.
Que filho da mãe! Ele acabou mesmo de me chamar de fedorenta?
— Aqui pode ser cidade do interior, mas não estamos na idade média. Para sua informação temos água encanada e energia elétrica — mordo a boca tentando controlar o riso — Mas de maneira alguma entrará na minha casa para isso.
— Como se atreve, eu vim para esse fim de mundo. Sabe com quem está falando?
— Sim, com um atrevido atolado na merda do cavalo!
Miguel salta para trás, grunhindo baixinho alguns palavrões, o que me faz soltar a risada que vinha segurando, enquanto dou meia volta com o Trovoada, saindo num galope ligeiro.
CAPÍTULO 2
Dandara
— Estou dizendo, ele veio para trazer problemas — resmungo novamente, enlaçando o pescoço do cavalo bravo.
Ele relincha, jogando a cabeça para trás em protesto.
— Por que será que ele deixou o Haras para vocês dois? Pedro sempre comentou que seu sobrinho não tinha gosto pela coisa. Só de ver como o homi chegou é de imaginar que ficar aqui por causa dos bichos é que não seria. — Mahias diz.
Respiro fundo — Não sei, mas vou descobrir, logo o advogado estará aqui, pelo que soube.
Estendo a mão, estabelencendo uma sensação de segurança com o cavalo, deixando que ele se aproxime quando estiver à vontade.
Ele vira a cara, balançando a crina grande ao relinchar. Querendo demonstrar que não vai ceder aos meus comandos. — Calma, rapaz! — ele me encara, posso ver medo e insegurança em seus olhos. — Está tudo bem, venha.
— Se você não conseguir domá-lo, ninguém mais irá conseguir. — Mathias contesta.
Passo a mão devagar pelo seu dorso, deixo que ele dê pequenas cabeçadas em meu queixo. Nunca fui a favor de uma doma bruta, agir com violência deixava apenas o animal mais arisco e selvagem, ele não iria aceitar que montassem nele. Ainda mais se tivesse um passado dificil com algum cavaleriço.
Ele me circula, cheira e acaba aceitando uns petiscos que Mathias lhe estende.
— Você tem um dom, nunca vi ninguém deixar um cavalo bruto tão manso como você faz, Dan.
— Cavalos também precisam de um tempo, muitas vezes deixá-los um pouco sozinhos para fazer o que quiserem é a solução. Bruto ama correr, mas detesta que o forcem a isso, o fato de selá-lo já traz insegurança e nervosismo para ele.
Sorrio vendo o cavalo sair correndo pelo redondel, rolando no pasto. Vou até ele, faço todos os movimentos com calma, deixando que ele note tudo que pretendo fazer. Passo a corda pelo pescoço, acariciando o dorso, agarro um punhado de sua crina deixando o cotovelo alto, pois há cavalos que mordem quando tentamos montá-los.
— Vamos lá, garotão!
Tento subir a primeira vez, mas como previsto ele tenta me afastar, faço um barulho de repreensão com a boca, tento novamente, dessa vez subindo em seu dorso, literalmente deitando. Por um momento ele aceita isso, mas logo relincha me jogando para fora, fazendo-me cair no chão.
— Dandara? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. Ele só quer mostrar seu limite. E quando isso não é respeitado ele reage. O antigo dono forçava ele a cumprir ordens, ou seja, não apenas castigava o animal quando não obedecia como quebrou qualquer elo de confiança que um dia eles tiveram.
Faço tudo de novo, deixando-o tranquilo e consigo montá-lo. Deixo que ele trote no lugar, aceitando e se acostumando comigo sobre ele. Deixando que meus movimentos entrem em sincronia com os dele, ao dar algumas voltas pelo redondel, ensinando novos comandos.
Vejo Bento se aproximar, acenando para mim, mudo a direção chegando perto do cerco.
— O advogado do Sr. Pedro chegou.
— Obrigada, Bento. — desço do cavalo entregando as rédeas a Mathias. — Viu, é por isso que amo os animais, eles não mentem, não enganam! Comporte-se, mocinho — digo dando tapinhas no dorso do cavalo. — Mathias, por favor, não deixe ninguém montá-lo, ele pode ter sido receptivo comigo, mas não duvido que jogará alguém longe caso quebre o espaço dele ou que dê umas mordidas.
— Pode deixar, Dan.
Quinta-feira sempre é um dia animado no Haras, eu amo ver a criançada correr por aí, ansiosas pelo momento de montarem nos cavalos. Há cinco anos criei o projeto de equoterapia, e nesses anos ele tem sido minha vida. Trabalhar com cavalos sempre encheu meu peito de amor e, quando pude unir isso e transformar esse projeto, tirá-lo do papel foi ainda mais gratificante.
A equoterapia era basiada no amor, nosso amor com as crianças que participavam, amor com os animais. Isso fazia com que as crianças portadoras de alguma sindrome ou mobilidade reduzida pudessem evoluir, pudessem ter uma qualidade melhor em suas vidas.
— Dandara — Fábio vem correndo com um enorme sorriso no rosto.
— E aí, campeão! — digo aceitando seu abraço apertado.
— Hoje é o meu dia!
Sorrio e cumprimento Josi — a fisioterapeuta —, Trovoada está totalmente cercado de crianças e como sempre, por ser tão dócil, não se incomodava de ter sua crina acarinhada por pequenas mãozinhas, mesmo que às vezes eles a puxem.
— Eu trouxe uma flor para você!
— Muito obrigada, Fábio! Ouvi dizer que irá tentar cavalgar sozinho hoje, é verdade?
Ele sorri animado, batendo palmas — Sim, estou tão ansioso.
— Vamos? Está na hora de começarmos a aula — Josi diz. Levando consigo uma criança empolgada pela mão.
Faz um ano que ele frequenta o Haras com sua família, e o trabalho que realizamos tem ajudado seu desenvolvimento e temperamento dentro de casa com sua família. Portador da Síndrome de Dow, Fábio rejeitava mudanças ou apresentações de algo novo, se tornando agressivo, foi então que seus pais se interessaram pelo projeto e por sua vez Fábio se apaixonou pelos cavalos. A conexão e o entendimento que os cavalos tinham, dava a segurança que Fábio precisava. Quando ele tinha alguma crise ou passava por algum tipo de fase mais turbulenta era no Haras que ele se recuperava, muitas vezes apenas de me ajudar a cuidar dos cavalos, penteando seus corpos ou suas crinas, fazia bem para ele. Isso acontecia com outras crianças que participavam do projeto.
Eu tinha idealizado esse projeto com Pedro por muito tempo, foi uma perda lastimável que ele não pudesse estar conosco para ver isso acontecer.
— Gosto de ver o Haras repleto de criançada. — Bento comenta.
— Nem me diga. — respondo toda boba com a cena em nossa frente. Liana — uma linda menininha de quatro anos — enfrentava desde que nasceu a paralisia cerebral. E foi aqui que sua mãe encontrou um caminho para ajudar mais sua filha. Foi por crianças como Liana e Fábio, assim como tantas outras, que eu não me importava com a questão de quanto dinheiro saia do Haras ou que as bolsas que disponibilizava não davam o retorno financeiro que era esperado. Olhar o crescimento, a evolução dessas crianças era mais importante que qualquer outra coisa.
— Vamos enfrentar aquele folgado, viu Miguel por aí?
— Maria disse que ele estava tomando café. — Bento diz.
Torço os lábios, caminhando em direção à casa principal.
Entro apressada em casa, abrindo a porta sem perceber que alguém estava saindo da sala de estar. Me chocando com um corpo, desabando no chão, percebendo que estou em cima de Miguel, levanto com um pulo. — Não olha por onde anda?
— Foi mal, esquentadinha — diz — Estávamos esperando sua boa vontade de aparecer.
— Algumas pessoas trabalham. — retruco.
Saio em direção à sala, deixando aquele idiota plantado na porta, Maria servia um café para o advogado, que nos aguardava.
— Desculpe a demora.
— Imagine, Dandara. Muito serviço?
Sorrio — O dia que um Haras não tiver trabalho duro pode ter certeza que choverá leite. — cito o ditado antigo que meu pai costumava dizer.
— Como sabe, Pedro só deixou que seu testamento fosse lido quando estivessem os dois presentes — diz, encarando algo além de mim.
— Por isso me enfiei aqui. — Miguel estende a mão para cumprimentar o advogado. — Miguel Ramirez.
— A porta da rua é serventia da casa — retruco.
— Essa casa também é minha, na verdade metade desse Haras é meu. Eu não vou embora, diga para ela, Doutor. — diz colocando os pés sob a mesa de madeira maciça. — Pelo menos até que cheguemos ao acordo que desejo.
— Então você veio para ficar, espero que tenha trazido alguma bota, além desses seus sapatos enviadados italianos. — Sento no sofá da frente, olhando diretamente para Miguel. — Espero que aprecie a culinária local.
— Primeira coisa educada que sai de sua boca, — alfineta — estou faminto e ansioso.
— Maria, prepare as galinhas, hoje teremos pé ao molho pardo! — grito segurando o riso ao ver a cara de nojo de Miguel.
— Dandara, por favor! — o advogado chama minha atenção. — Vamos levar à serio nossa reunião.
— Desculpe, pode prosseguir.
— Como sabem, o Sr. Ramirez deixou metade desse Haras para cada um de vocês. Os negócios do Haras Setti deverão continuar como sempre, aos comandos de Dandara, porém, existem algumas exigências.
— Não sei porque ele perdeu tempo deixando para você. — retruco, ainda encarando Miguel.
— Talvez porque seja da família, e você? Vai mesmo discutir com isso?
Encaro Miguel furiosa.
— Olha, eu sei que não me quer aqui, também não faço questão de ficar no meio do mato. Então, vamos chamar alguém para avaliar isso daqui, assim que tivermos o preço de quanto vale...
— Arre égua! — digo ficando de pé. — Você só pode ter cheirado bosta de cavalo demais, eu não vou deixar você vender o Haras como um pedaço de terra insignificante!
Miguel me acompanha, ficando de pé — Só quero o que é meu! Se está disposta a ficar com o Haras e não me deixar vendê-lo, compre minha parte então.
— Você já tem minha palavra sobre a venda do Haras, e não volto atrás!
— Por favor, deixem-me terminar! — o advogado implora.
Sustentamos o olhar um no outro, nenhum de nós queria desistir, enquanto escutávamos os suspiros cansados do advogado ainda no sofá.
— Pedro foi bem sucinto, ambos têm cinquenta por cento do Haras, mas para que isso ocorra da maneira correta, ele deixou claro que você, Dandara, teria que cobrir os gastos e fazer o Haras dar lucros, apenas seus serviços de doma e equitação, além dos aluguéis de cavalos, não serão possíveis para cobrir todas as dívidas. A equoterapia dá muitos gastos, são muitos profissionais envolvidos. E, também temos o fato que você não pode mais ficar resgatando cavalos por aí...— me odeio por um segundo só por ver o sorrisinho insolente que Miguel exibe. — Miguel, quanto a você, terá que pensar primeiramente em tudo que esse Haras foi na sua infância e para todos que o frequentam. O Haras Setti é uma grande família, temos profissionais que dependem dele, assim como os animais. — o advogado faz uma pequena pausa. — Se a venda for de comum acordo não vejo implicações, porém, Pedro deixou claro que Miguel Ramirez terá que viver cinco meses no Haras e caso tenha provas que Dandara não é boa administradora ou qualquer outro motivo para que o Haras não fique com ela terá que provar, assim levando o mesmo tempo para que você, Dandara, organize tudo. Ao final desse período eu retorno e voltamos a conversar.
— Que ótimo! — Miguel retruca.
— Se está pensando que ficará aqui atazanando meus dias, está muito enganado! — vocifero.
— Olha, é o seguinte, valentona. Você pensa que é fácil deixar meus amigos, minha vida, meus negócios durante cinco meses? Não é, mas não vou desistir do que é meu!
— Seu uma ova! — respondo já gritando. — Não venha cantar de galo onde não foi chamado frangote.
— Viva com isso, durante cinco meses ou até que eu te chute daqui.
Estreito os olhos, querendo voar no pescoço daquele filho duma égua.
— Eu levo o senhor até a porta — Bento toma a frente, notando que o advogado estava parado encarando toda a briga.
— Dandara, o veterinário disse que irá vir mais tarde para olhar os cavalos. — Bento diz ao se afastar acompanhando do advogado.
— Obrigada, Bento. Estou realmente preocupada com a pata do Bocudo, ele mal a coloca no chão.
Viro, olhando novamente para Miguel, coloco meu chapéu na cabeça. — Fique à vontade, mofete 1 . Afinal, a casa é sua.
— Obrigada pela gentileza, brucu... Dandara — diz sorrindo. — É por isso que estou aqui.
CAPÍTULO 3
Miguel
Mulherzinha ruim! Se ela pensa que irá atrapalhar meus planos está muito enganada. Onde já se viu? Acredita que só porque criou uns projetinhos pode tomar conta do que é meu? Nem pensar!
Aperto a discagem rápida no celular, esperando que meu assistente atenda.
— Paulo, quero que mande dois avalistas para o Haras, preciso de uma avaliação o quanto antes — disparo a falar.
— Pelo visto as coisas estão indo bem, não estão?
— Estão caminhando, será fácil colocar a Dandara no lugar dela e voltar para meus negócios. Por falar nisso, terá que cuidar de tudo por alguns meses, é a regra idiota que meu tio deliberou. E me lembre de dar um belo esporro em Diogo por não ter conseguido resolver isso. Detesto isso aqui, tem tanto mosquito que terei sorte se não voltar com malária!
Paulo gargalha do outro lado da linha.
— Avise-me quando tiver os avalistas.
— Tudo bem.
Dandara não perde por esperar, se tenho que ficar cinco meses nesse fim de mundo, eu ficarei, mas sairei com meus planos, esse Haras será todo meu.
Escuto chamarem meu nome avisando sobre o bendito almoço e sinto nojo só de imaginar. Pé de galinha! Filha de uma puta ! Ela me paga!
— Estou indo — digo ao abrir a porta.
Dandara
— Achei que não viria almoçar, menina.
Sento na cadeira de madeira, limpando o suor da testa.
— Você precisa pelo menos se lembrar de comer, menina.
— Eu sei, Maria.
— Você poderia delegar um pouco do trabalho duro, Dandara, não tem um dia que vejo você sentada, apenas correndo de lá pra cá com seu cavalo.
Levanto dando a volta na mesa, agarrando o corpo rechonchudo de Maria. — Enquanto tiver você aqui, com certeza não precisarei disso — digo dando um beijo estalado em sua bochecha.
Bento e Maria são o exemplo de casal unido e feliz, são mais que funcionários do Haras, são parte da minha família.
— Sei, sei, pare com isso, — esquivando de meus besliscos carinhosos — me deixe colocar a comida para você. — resmunga erguendo a Betinha — sua famosa colher de pau. Aí me perguntem, por que apelidamos a colher de pau da Maria? Por que ela se tornou praticamente o terceiro braço de Maria, ainda mais quando ela sai girando pelo ar atrás do lombo do Mathias.
Maria coloca o prato em minha frente sorrindo
— Soube que Matheus está de volta na cidade. Por que não sai um pouco, vai se divertir, soube que ele andou perguntando sobre você.
— Deus me livre! Só aturo esse metidinho por causa do pai dele, que afinal é cliente aqui do Haras, e Deus sabe que nesse momento precisamos de todos os clientes possíveis.
Maria cruza os braços diante do peito com olhar preocupado, — É verdade o que estão comentando? Sobre o sobrinho do Seu Pedro?
Pouso o garfo sobre o prato, empurrando-o para longe. — Infelizmente, mas vou mover terras e céus para que isso não aconteça. Não quero vocês preocupados, estamos entendidas?
— Eu sei, menina, eu sei.
Dou mais umas seis garfadas na comida, empurrando o prato novamente para longe. — Deixa eu cuidar da vida, o brucutu deu as caras? — questiono colocando o chapéu de volta na cabeça.
— Sim, mal tocou na comida. Isso foi artimanha sua, né?
Sorrio, dou um beijo em suas bochechas e corro para fora. Que ótimo que ele não apreciou nosso paladar.
— Dandara, tente ser amigável, pode obter resultados melhores, por que não vai conversar com o homi ?
— Ele vai dormir na minha casa, comer da minha comida e, torrar minha paciência, acho que está mais do que suficiente. Nem mesmo no funeral do tio ele teve capacidade de vir. E agora vem cantar de galinho frangote pra cima de mim, no meu Haras? Não interessa o que um pedaço de papel diz, quem esteve todos esses anos aqui fui eu. Só não fico chateada com Seu Pedro, por que ele foi dessa prá melhor.
— Menina. — Maria adverte.
— Arra! — Torço a boca, virando-me para ir embora.
Bato a corda no chão fazendo o cavalo ir para outra direção, obedecendo imediatamente meus comandos, mesmo o sol estando forte, a brisa que sopra pelo campo deixa mais agradável estar ao ar livre.
— Dandara!
Viro notando Rodrigo parado, encarando-me. — A que devo a honra? Soube que seu chefe chegou na cidade.
— As notícias voam por esses campos.
Dou de ombros, deixando o cavalo andar livre por enquanto. — As beatas sopram fofoca melhor que o vento no fim de tarde.
— Matheus chegou e como sabe, vem participando de competições Turfe, mas Ferroni não anda obedecendo. Está inquieto, mal se alimenta. Já mordeu e deu coice em três veterinários.
— Aconteceu algo na rotina dele para isso, alimentação e cuidados foram mudados?
— Não, estamos cuidando dele do mesmo modo, sempre na mesma rotina.
— Traga-o para mim, eu darei uma olhada nele.
— Matheus pediu que fosse até o rancho.
— Impossível, estou até as tampas com trabalho, diga ao seu chefe que mande o cavalo para mim amanhã e eu direi o que pode estar acontecendo. Ele pode ser um reizinho do Turfe lá na capital, mas se quer meus cuidados em seu cavalo, que venha até mim.
— Eu avisarei, você continua arredia como sempre.
Estreito os olhos encarando o sorrisinho de Rodrigo morrer aos poucos e rapidamente, ele voltar para o carro, pegando o caminho para fora do Haras.
Depois de deixar o cavalo descansar no estábulo, caminho pelo Haras vendo alguns montadores treinando ou as pessoas andando nos cavalos em torno da propriedade e isso me faz sorrir, mas o que atrai mesmo minha atenção é Mathias no redondel com Miguel.
Apoio no redondel, vendo o coitado do Mathias tentando acalmar o cavalo para que o metidinho do Miguel se mantivesse em cima. Mordo a maçã, que peguei na cantina no caminho, escondendo o sorriso, secretamente torcendo para que ele tomasse um tombo, quem sabe assim a crista dele abaixa.
— Está se divertindo? O que há de errado com esse bicho? — pergunta segurando firme o arreio enquanto o cavalo faz ele e Mathias girarem no lugar.
— Talvez ele não foi com sua cara — digo, mordendo mais um naco de minha maçã.
— Ele não tem que gostar, tem que me obedecer.
Quanta ignorância, quer que o bicho faça seus caprichos. — Cavalo não é seu cão, eles não precisam fazer nada se não sentem a mínima vontade, você é que precisa aprender a respeitá-los.
Miguel salta para longe do cavalo, se equilibrando para não cair de joelho no chão.
Dou uma volta ao seu redor, torcendo o nariz para o cheiro forte do seu perfume. — Talvez seja seu cheiro.
— Cheiro?
Dou um risinho. — Você fede.
— Estou usando um perfume importado, está maluca?
— Pode levar nosso garanhão, Mathias. O coitado deve estar com dor de cabeça por causa desse cheiro. — atiro, acariciando o corpo do animal.
— Pelo visto você é tão bronca quanto eles. Agora entendi porque vive no meio dos bichos!
— Seu Miguel...
— Deixe-me, Mathias, volto sozinho!
Ele mal terminou de falar e caiu de quatro no chão, levantando-se com uma cara de ódio mortal para nós, como se tivéssemos empurrado-o, e não o fato dele andar pelo mato com sapatos granfinos.
— Tente comprar botas na próxima vez. E que tal fazer algum serviço que preste e limpar os estábulos?
Ignoro o xingamento, batendo na aba do meu chapéu, sorrindo para ele.
— Dandara, Dandara, você é osso duro!
Viro sorrindo para Mathias. — Vamos, meu amigo, temos crianças novas chegando e ainda tenho que cuidar daquela égua doente. Miguel se meteu onde não deve, que volte para a cidade grande e toda sua “enviadez”.
— Menina, um dia encontrará alguém que vai te domar, assim como você faz com os cavalos.
Gargalho alto dessa ideia maluca. — Que assim seja, pois para o homem me colocar cabrestos tem que ser muito macho! — brinco.
CAPÍTULO 4
Dandara
— Não sei não Dandara, preciso analisar melhor os exames da Acheron, assim como o outro manga-larga tinha um prego enorme fincado no meio do casco, por isso estava sentindo tanta dor. Me admire que o montador não tenha sido jogado para longe.
Faço um carinho na crina do cavalo, distraindo-o para o fato de estarem mexendo na pata dele.
— As pessoas os tratam como se fossem um nada, mas é graças a eles que ganham seus benditos prêmios.
— Vamos deixá-lo em observação, se notarmos que algo continua não indo bem, afastamos ele de vez. Você poderá colocá-lo na equoterapia, manso e bondoso do jeito que é, as crianças ficarão felizes.
— Tudo bem, o melhor para nosso campeão — digo suspirando, quem não gostaria nada disso é Silvana, o tino competitivo daquela garota me irritava. Para Silvana tudo que importava eram os prêmios, mal olhava nos olhos do seu cavalos, que dirá cuidar dele como merece. — Cuide deles, principalmente da égua, Deus sabe que não estou no melhor momento de perder montadores para os outros Haras.
— Então é verdade o boato?
Reviro os olhos, — Como se não soubesse. Estou com a sombra do sobrinho de Pedro em minhas costas, está aí uma coisa que gostaria de entender, Pedro sempre soube que Miguel não tinha interesse em nada sobre o Haras, por que diacho foi deixar metade para ele?
— Nisso não posso te ajudar. Já tem algum plano em mente?
Suspiro incomodada. — Ainda não.
— Ficarei hoje pelo Haras para acompanhar como esses dois passam a noite.
— Tudo bem, Santiago, obrigada.
Tinha acabado de sair do banho e aquele maldito rosto me perseguia até quando estava simplesmente secando meu cabelo. Aquele brucutu chegou por aqui querendo mandar em tudo, mal sabe desviar de uma poça de esterco.
— Você deve ter tomado muito sol, Dandara, só pode! — digo para minha imagem no espelho. — Já vou! — grito irritada, fazia cinco minutos que alguém esmurrava a porta de meu quarto, ou o Haras estava em chamas ou então não sabia o que seria. No mesmo instante me sinto culpada, Santiago avisou que passaria a noite de vigia com os cavalos doentes, e se tivesse ocorrido alguma coisa, enquanto eu estava aqui remoendo meu ódio, sim, meu odio por Miguel. Ele estava aqui menos que um dia e eu já me sentia pronta para fazer Trovoada pisotear seu corpo inteiro. O cara pensava que era Deus, chegou no Haras mal se importando com tudo que eu e Pedro construímos nesses anos, nem mesmo com as vidas dos funcionários que trabalhavam aqui.
Jogo a toalha longe, vestindo o primeiro short e camisa que encontro, escancarando a porta.
— Achei que tinha morrido. — comenta escorrando-se em minha porta.
Minha vontade era de chutar a bunda dele, e garanto que respirei profundamente, contando até vinte mentalmente para não o fazer. — O que preciso dizer para que saia do meu caminho?
— Vou ficar no seu caminho durante a droga de cinco meses, trate de se acostumar. — Miguel diz esboçando um sorriso.
— Posso saber o que está acontecendo? — questiono.
— O que tenho que fazer para conseguir comida nesse lugar? Aquela “senhorazinha” não está mais por aí, todo lugar que peço pelo Ifood, é óbvio que não entrega nesse fim de mundo.
Argh ...estava para nascer um homem que fizesse meu sangue ferver como ele, absolutamente tudo naquele infeliz me irritava!
— Você já ouviu a expressão de quem caça encontra? Que eu saiba, a cozinha está no mesmo lugar que pela manhã — digo colocando um sorriso falso no rosto. — Espera! Não me diga que ficou esmurrando minha porta porque esperava sinceramente que eu fizesse comida para você?
— Na verdade, esperava que pelo menos você desejasse se redimir por me oferecer pé de galinha no almoço, quem sabe apenas mostrar onde ficam as coisas.
Miguel estende o braço apoiando do outro lado da porta, fazendo os músculos de seu peitoral nu se destacarem. — Eu não quero ficar aqui, não tenho o mínimo interesse em abandonar minha vida para viver no meio do mato.
— E? — indago, sustentando seu olhar, me amaldiçoando por qualquer tendência de encarar seu peitoral nu.
— Você pode comprar minha parte. Quer o Haras somente para você? Sem problemas, podemos também fazer o seguinte negócio. Você me vende sua parte e eu deixo um pedaço, bem longe, para criar seus bichinhos. Já marquei para alguns avalistas virem para cá, assim que derem o preço pelas terras podemos ajeitar tudo. Ninguém precisa ficar com ninguém — diz sorrindo, como se tivesse resolvido o problema do século.
— Não.
— Oi?
— Eu disse não, nada disso, negativo. Preciso dizer algo mais? — pergunto irritada.
Ele me fulmina com o olhar.
— Tenho direito.
— Então faça bom uso do tempo que terá aqui, no meio do mato. E se pensa que irá ficar na vida mansa, está muito enganado. Lembre-se que se tem uma cama confortável para dormir é graças a mim, posso montar uma cabana para você dormir ao relento.
Miguel fica parado, apoiado no batente de minha porta, seu olhar corria pelo meu corpo, secando minhas pernas.
— Gosta do que vê, brucutu? — perguntei, passando a língua pelos lábios. Seus olhos se arregalam por ser pego no ato, fazendo seu rosto enrubescer. O desgraçado corou!
Eu o encarei não desviando o olhar por um segundo, Miguel faz o mesmo. Ele se aproximou, ficando a centímetros de mim. Seu olhar pousou em minha boca. Miguel parecia concentrado em me observar e me senti tensa quando seus lábios se incrisparam um pouco, assim perto o suficiente para que eu notasse até mesmo a pequena pinta, quase imperceptivel no meio de sua bochecha esquerda.
Que merda é essa? Dou um passo para trás, entrando mais em meu quarto, criando uma distância dele. — Vire-se com sua janta! — digo batendo a porta contra seus dedos, rindo dos gritos que Miguel dá do outro lado, me xingando por tê-los prendido ao bater a porta.
Miguel
Estava claro que Dandara estava tentando me tirar do sério. Chupo as pontas dos meus dedos, sentindo-os latejar em minha boca. Maldita esquentadinha! Peste de mulher gostosa, os lábios cheios me faziam ter várias ideias envolvendo aquela boca, aquele corpo, sim ela era um pedaço bom dos infernos. E cheirosa, caralho de mulher cheirosa!
Além de estar com o estômago gritando de fome, tinha o calor, com toda a organização que esse Haras tinha, não poderia ter colocado um ar condicionado nos quartos? Bom, nada que eu não possa modificar quando tiver com todo o terreno em meu nome. As plantas do resort que estou planejando fazer aqui já estão em andamento na empresa.
Sigo para a cozinha, o piso de madeira range debaixo de meus pés descalços, acendo a luz, vendo tudo perfeitamente limpo, vou em direção a despensa agradecendo por achar ingredientes suficientes para que eu crie algo útil para saciar minha fome.
Como dizem, a fome é melhor cozinheira, devoro a engenhoca que criei, até que não está tão ruim, claro que não é nada como os fast foods que geralmente como, mas enfim. Se eu quiser bater de frente com aquela esquentadinha, eu preciso nesses cinco meses entrar em seu mundo. Lavo e guardo tudo, voltando para o quarto.
Dandara
O olhar luxurioso queima meu corpo, minhas mãos descem pela minha barriga, ele continuava me olhando desejoso, encorajando minhas mãos descerem por meu corpo, indo para dentro do short de pijama. Meus dedos passando pelo meu clitóris latejante.
Miguel sussurra algo vindo em minha direção.
Ele sorri.
O som do despertador foi alto o suficiente para me fazer pular na cama. Mas o que foi isso? Que diacho de sonho, ou melhor, pesadelo foi esse? Sento-me na cama, meu coração erra uma batida ao cogitar a hipótese de sequer gostar desse sonho.
Levanto indo até a janela, o dia ainda não tinha nascido, o Haras ainda estava adormecido. Caminho até o banheiro encarando meus olhos no espelho, jogando um punhado de água gelada no rosto para afastar de vez qualquer resquício do sonho.
Tiro o pijama, colocando a calça de montaria e as botas, assim como a camisa e o colete. Desço em silêncio e faço a mesma coisa ao atravessar o Haras até o estábulo, alguns cavalos relincham ao me ver entrando, faço um carinho em suas cabeças conforme vou passando, seguindo até a baia do Trovoada.
— Ei, garoto, vamos dar uma volta? — pergunto deixando-o que bata gentilmente a cabeça contra meu rosto, retribuo o gesto fazendo um carinho em sua testa. Prendo apenas a rédea no cabrestro, subindo em seu dorso, do jeito que gostamos, sem sela e sem freio.
Deixo que ele cavalgue à vontade nos primeiros metros, saindo do Haras, mas quando entro em campo aberto acelero para sentir o vento em meu rosto, eu já consigo ver os primeiros indícios das montanhas ao longe, assim como os primeiros toques de azul claro no céu. Galopo atravessando o riacho, indo mais longe, pegando a pequena trilhazinha para a cachoeira, margeando o riacho. Não me canso de admirar essa vista todos os dias, principalmente a vista do Haras ao longe.
Sorrio, enchendo meus pulmões de ar, deixando Trovoada correr mais rápido, me inclinando sobre ele, abraçando seu corpo. — Tudo ficará bem, Trovoada — digo, tentando convercer nós dois.
Puxo a rédea fazendo-o diminuir o passo, até que ele pare. Trovoada e eu temos uma conexão que poucos entenderiam. Ficamos ali parados, enquanto aliso sua crina. Desço sentando debaixo de uma imensa árvore, enquanto Trovoada pasta pelo campo, amo vê-lo assim solto e liberto.
Não sei quanto tempo fico por ali, mas saio do meu pequeno devaneio com o som de meu celular tocando.
— Bom dia, Dan. Temos um cliente, está muito longe?
— Bom dia, Mathias, já estou retornando — desligo o celular, guardando-o novamente no bolso do colete.
Trovoada vem ao meu encontro quando fico de pé, batendo seu nariz em meu queixo. — Temos que ir, garotão.
CAPÍTULO 5
Dandara
— Por que trocaram meu cavalo?
Respiro fundo me preparando para aguentar os chiliques de Silvana.
— Bom dia, Silvana — digo colocando um enorme sorriso no rosto. — Ele está afastado e ficará assim por um tempo.
— De novo? É a segunda vez que afastam ele por motivo de doença, você deveria cuidar melhor dos animais desse Haras se quer continuar com selo de excelência que tanto exibe!
É hoje!
— Isso não é uma discussão. Muito menos a forma como cuido do Haras e dos cavalos, pois ambas sabemos que você não acharia o mesmo tratamento em outro lugar, muito menos pelo valor que cobramos.
— Então o problema é dinheiro? — o sorrisinho de escarnio em seus lábios faz meu sangue ferver. — Por que já ouvi boatos que o Haras não será mais seu.
— O que importa nesse momento não é a fofoca que o povo desocupado dessa cidade faz, mas sim você.
— Eu? — ela questiona.
— Sim, você como amazona dele, deveria também ter notado que o pobre coitado estava com um prego varando sua ferradura. E isso não é de hoje, pelo modo como estava ferindo o casco dele, é coisa de semana.
— E você e seu capataz não viram quando foram escová-lo?
— Silvana não estou querendo comprar uma briga, pois se quissesse eu diria que o fato de você retirá-lo da baia e ficar dias com o cavalo no rancho de seu pai, não ajuda em nossos cuidados, muito menos quando é o empregado do seu pai que vem devolver o cavalo. Sem nem ao menos dizer os tipos de cuidados que tiveram com o animal. — retruco.
— E com qual manga-larga vou montar agora? As competições estão chegando, se não tiver alinhada com o cavalo perderei e eu detesto isso, preciso pedir para meu pai retirar nosso patrocínio do Haras e investir no concorrente?
— Vou lhe dar um animal excelente, quer que eu mesma busque?
— Acordou emburrada? Pois eu é que deveria estar! — ela resmunga.
— Estou apenas realizando meu trabalho, porém, não gosto quando se metem nele, duvidando das minhas atitudes. E não gosto principalmente daqueles que tratam os cavalos como apenas peças alugavéis — disparo.
— Ave Maria, você está cada vez mais parecida com um cavalo selvagem. — retruca com um sorriso dissimulado.
— Verdade, me dizem muito isso.
Silvana ajeita as luvas de couro nas mãos. — Com quem irei conseguir meu cavalo, preciso treinar.
Viro avistando Bento vindo da sede do escritório e, aceno chamando-o. — Bento irá conseguir para você um bom manga-larga — digo quando Bento se aproxima, ele acena concordando.
— Você poderia me deixar montar seu Percheron.
Sorrio falsamente de volta. — Ele não é para esse tipo de esporte, e outra, te jogaria longe se tentasse montá-lo.
Silvana dá de ombro e sai rebolando mais do que o quadril fino dela permite, me irritando ainda mais.
— Qual cavalo preparo, Dandara?
— Poderia dar o Bruto, só para vê-la com o nariz empinado de volta no lugar, mas dê a Estrela, ela é boa com saltos e poderá cansar Silvana o suficiente para que não abra a boca.
Bento sorri, bate na aba do chapéu se afastando em direção aos estábulos.
— Dan, Dan!
Viro caminhando para o escritório encontrando a afobada da Mariana correndo ao meu encontro.
— Temos uma nova cliente, ela está vindo para cá.
— Ótimo, estamos precisando mesmo.
— Separei todas as papeladas, a situação está complicada. — Mariana diz torcendo os lábios.
— Cinco meses, Mari, temos cinco meses para colocar tudo em ordem.
— Então ele está disposto mesmo a tirar o Haras de nós? — pergunta enquanto caminhamos para o escritório.
— Ele pode tentar, mas não irá conseguir. Dei meu suor e sangue por esse Haras, ele não liga a mínima para este lugar, e eu não dou a mínima para ele. Mas não vou perder o que é meu, nem mesmo para Miguel, que sempre foi um garoto rídiculo.
Mariana assenti, sentando na ponta da mesa.
— Desembucha, criatura! — exclamo ao ver as torcidas de boca que ela dá pensativa.
— Arra, fico pensando o que será de nós, dos cavalos. — Mariana dá de ombros — Desculpa, eu preciso tanto desse estágio e não consigo parar de pensar nisso. Os cavalos, será que ele vai vender todos? Entregar para algum Haras ou fazenda de corte?
Só de escutar suas angustias, que são as mesmas que as minhas, me doí o peito. Devolvo a pasta de documentos para a mesa, olhando seu rosto aflito. — Eu não deixarei isso acontecer, fique despreocupada. Ninguém vai tirar esse lugar de nós. Nem mesmo fazer uma sandice dessa com nossos cavalos.
Passei o resto da manhã analisando papeladas e tentando ver diversas maneiras para sanar as dívidas que o Haras tem, mesmo tendo diversos montadores e treinos para novos alunos de hipismo, o Haras está mal das pernas há anos, e isso fez as dívidas se perdurarem, não poderia culpar Pedro por isso, os animais davam gastos, tínhamos funcionários e todo o cuidado com o próprio Haras, são gastos altos. Ele foi um anjo em apoiar meu projeto de equoterapia com as crianças, mesmo sabendo que isso daria custos para nós. Agora é minha missão deixar tudo certo, ainda mais sabendo que eu posso perder tudo para aquele almofadinha do Miguel.
O sino da porta abrindo me fez erguer a cabeça.
— Desculpa atrapalhar.
— Imagina, Santiago. Como estão os cavalos?
— Passaram bem a noite, a égua continua muito fraca, se alimentou forçada, ainda teremos que manter vigilância sobre ela; já o outro, terá que ficar dois dias pelo menos sem ninguém montá-lo.
— Tudo bem, vou deixar avisado com todos os funcionários, a dona também está ciente que não está disponível os treinos com ele.
— Sim, isso é o melhor a se fazer.
CAPÍTULO 6
Miguel
Acordo e é a primeira vez em anos que quebro minha rotina, o relógio no celular marca dez e meia, nem aos sábados costumava acordar esse horário e foi mais estranho ainda desligar o despertadores programados nele. Levanto caminhando até o banheiro, iniciando minha higiene matinal.
Paro por alguns instantes em frente à janela depois de sair do banho com a toalha enrolada na cintura, da pequena janela do quarto de hóspedes eu tinha uma visão privilegiada do Haras, que estava em completo movimento.
De onde esse povo tirava essa animação e vontade de estar no meio dos bichos?
Avisto Dandara passar como sempre montada naquele cavalo gigante, parecia que tinham passado cola nesses dois, eram poucos momentos que tinha visto ela longe desse cavalo preto. Cavalo em si já é um bicho assustador, imagina esse que tem para lá de um metro e sententa.
Lembro de uma vez que meus pais me arrastaram para mais uma de suas temporadas aqui no Haras quando moleque, me encheram tanto o saco para dar uma volta com eles a cavalo, que eu fui, mesmo contrariado, na época o funcionário afirmou que eu não precisava ficar receoso, pois o bicho era manso. Sim, manso, aquilo era o lobo em pele de cordeiro, quando fiz menção de chegar perto do bicho ele me deu um coice que voei longe.
Jurei que nunca mais me meteria no meio do mato outra vez, e nunca descumpri minha promessa. Até hoje.
E agora estou amarrado naquele Diabo em formato de mulher, mesmo eu querendo o quanto antes sumir daqui, não daria o braço a torcer indo embora e nem deixando que ela ficasse com o que eu tenho direito. Dandara é tão teimosa quanto uma mula empacada. Pelo visto não seria forçando que as coisas se resolveriam do meu jeito, teria que pensar outro modo.
Visto uma calça jeans e uma camisa branca, olho com tristeza em direção ao meu par de sapatos Berluti. Destruídos! Seu couro está manchado de barro, duvido muito que um dia consiga tirar essa sujeira toda dele.
Saio descalço mesmo, quem sabe alguém não encontra uma bota, fazer o quê, eu é que não estragarei mais um de meus sapatos nesse fim de mundo.
Paro na entrada da cozinha, a senhora que ontem me recepcionou de maneira educada sorri, depositando uma jarra de suco na mesa de madeira.
— Bom dia, patrão. — me cumprimenta.
— Não sou teu patrão, — digo com um sorriso — ainda.
Ela dá um sorriso, logo voltando para suas tarefas.
— Me diga...
— Maria — diz voltando a atenção para mim.
— Maria, isso mesmo, onde posso encontrar um par de botas? E você conseguiria mandar para uma loja ou alguém que consiga salvar meu sapato de tudo isso? — pergunto levantando meus sapatos na altura de seus olhos.
— Sim, senhor, basta lavá-los — responde escondendo o riso — quanto às botinas, eu posso ver se Bento tem uma disponível para o senhor. — Maria vem em minha direção arracando o par de sapatos dos meus dedos, deixando perto da porta da cozinha.
— Obrigado.
Puxo a cadeira para trás, pegando um pedaço de pão, montando um sanduíche com os frios expostos na mesa, assim como uma grande xícara de café.
— Tarde, Maria — Mathias surge pela porta lateral da cozinha, tirando o chapéu da cabeça ao limpar o suor da testa no dorso das mãos.
— Tarde, menino. Um suco?
— Ô se aceito, o dia tá quente demais, isso é sinal de chuva forte vindo por aí. Ainda tenho que terminar a lista que Dandara pediu para resolver ainda hoje e ir na fazenda dos Junqueiras.
— É bom ver ocê gastando sua energia onde merece e não com essas chaienes por aí — Maria entrega um copo generoso de suco para Mathias.
Mathias revira os olhos acabando com o suco em poucas goladas. — Vai começar com essa proza de novo? Arre égua! — Ele aponta para mim, sentado, dividindo minha atenção em meu lanche e o assundo deles.
— Ocê tem sorte que eu não marquei teu lombo com a Bentinha. — Ela faz um sinal com a mão — Vá furando enquanto a terra tá mole.
Bentinha? Que assunto mais doido.
— Desculpe me intrometer, mas quem é Betinha e porque ir furando enquanto a terra tá mole?
Maria gargalha ao se virar para mim. Vai até a bancada de marmore do outro lado da cozinha e mostra uma colher de pau surrada. — Essa é a Betinha, Seu Miguel. E tô dizendo para esse desajuizado ir aproveitando enquanto tem chance. Por que uma hora eu pego ou senão os maridos.
— Vocês dão nome para uma colher de pau? E você gosta de sair com mulher casada? — pergunto querendo rir, ergo o garfo em minha frente. — Qual é o nome dele? — caçou.
— Ah, Seu Miguel, não somos doido não, a colher só tem um nome porque é quase da família, não tem uma alma viva nessa Ajapi que já não sofreu com ela sendo jogada em nossas cabeças. — Mathias conta. — Quanto a acusação de sair com muié comprometida, isso aí vai de quem conta a história.
— Abusado! — Maria resmunga. — Mudando de proza, o menino, consegue um par de botinas para o Seu Miguel?
Mathias me encara por um segundo. — Acho que posso conseguir sim, que número cê calça, Seu Miguel?
— Quarenta.
— Eita pezão, cê deve fazer sucesso com a mulherada!
Dou de ombros — Mas não saio com as casadas — brinco.
— Eita, homi , não complica a situação. — ele resmunga.
— Cadê aquela brucutu? — pergunto.
Eles se entreolham.
— Dandara, cadê ela? — refaço a pergunta.
— Ih, se eu fosse o senhor não iria vê-la hoje não.
— Que foi, ela está mordendo os cotovelos?
— Apareceu botando fogo pelas ventas, está trancada no escritório desde cedo.
— Ela é um bicho do mato, tá parecendo esses cavalos que tanto cuida.
Mathias sorriu, coçando a cabeça. — Dandara é muito apegada a isso daqui, Seu Miguel. Viveu no meio dos bichos, o Haras, os cavalos, essa vidinha é tudo que ela tem, assim como nós. Desculpe falar, — Mathias troca outro olhar com Maria, antes de continuar. — O senhor pisou no calo dela.
É como dois tapas no meio de meu rosto. — Eu não iria chutar a bunda de vocês, não sou esse tipo de homem, para tudo há um limite. Mas não é por isso que ela tem o direito de atrapalhar meus planos. Eu entrei aqui querendo um acordo, ela que chutou minha bunda.
— Olha, Seu Miguel, não vou me meter nisso não, preciso do meu trabalho. — Mathias ajeita o chapéu novamente na cabeça. — Maria, obrigado pelo suco, vou ajeitar as botinas.
— Me diga, Mathias, tem como eu conhecer o Haras? — pergunto.
— Posso selar um cavalo pro senhor.
— Ótimo, vamos ver o que esse pedaço de terra tem de bom.
Mathias concorda quase saindo da cozinha quando chamo sua atenção novamente.
— E o que vocês fazem para se divertir a noite?
Ele para na entrada, me encarando com uma sobrancelha arqueada. — Temos um bar no centro, música ao vivo, cerveja boa e mulher. Mas não sei se é lugar pro senhor.
— Como assim? — questiono irritado.
— É mais nosso estilo, Seu Miguel, desculpa falar. — comenta com um dar de ombros.
— Quando for para esse tal de bar me avise, pois vou junto.
Mathias concorda com um pequeno gesto sumindo da cozinha.
CAPÍTULO 7
Dandara
— Dandara, preciso que venha comigo.
Olho para porta do estábulo, vendo Bento com cara de quem viu assombração.
— O que houve?
Limpo as mãos na calça, devolvendo o cavalo para seu espaço, fechando a porta de ferro da baia.
— Seu Miguel, ele está pertinho de tomar um tombo daqueles.
Torço os lábios, — O que eu tenho com isso, deixe aquele mofete cair de cara no chão. — Dou uma mordida em minha laranja, escrevendo as observações do cavalo na planilha e vou até a próxima baia, dando continuidade pro trabalho.
— Dandara, o homi vai se machucar de verdade. — Bento tenta suplicar.
Bufo. — Ocê quer que eu largue os trinta cavalos da inspeção para salvar aquela mula? — reviro os olhos pela falta de resposta de Bento e sua careta de “pare com isso, menina”. — Onde essa mula está? — dou um pedaço da laranja para o cavalo, descascando mais para mim.
Bento sai, fazendo sinal para que o acompanhe.
— Eu mereço! — resmungo — E ocê pare de cobiçar minha fruta, seu pidão! — acrescento entregando a laranja para o cavalo.
— Se eu fosse ocê não montaria nesse garanhão. — cuspo as palavras, vendo Miguel acompanhar enquanto selavam o Bruto.
— Acredito que me viro muito bem — diz vestindo a chaparreira 2 que Mathias entrega.
Até que esse engomadinho tinha um belo traseiro, o culote deixava sua bunda em evidência, assim como as coxas grossas, quem diria que por trás de tanto estrume na mente ele seria... gostosinho.
— Quem deixou ele pegar o Bruto? — questiono a Mathias.
— Ele que escolheu, Dandara. — Mathias me olha, tentando sair da culpa.
— E ocê tinha o que na cabeça para deixar? Ainda mais o Bruto. — Retruco — Olha, eu não quero dor de cabeça, Bruto não é um cavalo para iniciantes, são poucas pessoas que conseguiram montar nele, ainda estou domando-o.
Miguel vira, sorrindo, o que me faz querer arrancar dente por dente desse sorrisinho falso.
— Como disse, eu consigo.
Dou de ombros, ótimo, ele que se vire.
Bento faz um sinal para que eu não deixe isso acontecer, mas apenas respondo com um dar de ombros. Não estou aqui para ser babá de riquinho, eu tenho trabalho de verdade para ser feito.
Mathias segura as rédeas para que ele suba, levando-o para fora do estábulo. — Segure bem as rédeas e o resto é com ele, tente não pressioná-lo, Seu Miguel. Dandara sabe o que fala. Tirando ela, o máximo que ficaram no lombo dele foi dez segundos.
— E o que aconteceu depois? — Miguel questiona.
— O cara caiu e se estrupiou inteirinho. Não quer mesmo trocar de cavalo? Pode pegar o meu, Calastrão será mais manso.
— Duvido algum cavalo ser manso com essa mula — resmungo.
Miguel me encara bravo. — Vou ficar com ele mesmo — diz dando uns tapinhas no pescoço do animal.
Foi questão de um segundo para que Mathias soltasse a rédea para o cavalo dar uma empinada e sair galopando pelo Haras, fazendo as pessoas pularem para fora do caminho, deixando o cavalo e Miguel gritando passar como um trovão por eles.
Reviro os olhos.
— Dandara, o homem vai morrer. — Bento e Mathias disseram quase no mesmo instante.
— Que merda! Eu avisei esse asno que não era uma boa ideia!
Mathias curva a cabeça vendo o caminho que eles fizeram. — Bruto vai jogar Seu Miguel no riacho, tá pulando mais que boi com a cinta na cintura.
— Ocê vai cuidar das inspeções por um mês dos cavalos, inclusive do banho do Trovoada.
— Caramba, mulher! — Mathias reclama.
— A culpa é toda sua.
— Tá bom, tá bom. Não vamos deixar o homi se arrebentar, muié ruim!
Estralo a língua no céu da boca, chamando atenção do Trovoada, pulo para cima dele, batendo a sola da bota em sua anca. Segurando firme em sua crina, já que estava montada no pelo. — Vamos menino, vamos salvar aquele bundão!
Bruto abriu uma boa distância, forço Trovoada a aumentar o galope, fazendo todos sairem do caminhos ao atravessar o Haras, forço Trovoada ainda mais ao sair dos muros, indo para os campos abertos. Tentando diminuir a distância que o cavalo abria.
— Socooooorro! Puta que pariu, paraaa! — Os gritos de Miguel ecoavam.
Bruto fazia os galhos baixos das árvores atingirem o rosto e braços de Miguel enquanto passava no meio delas, mas acaba perdendo um pouco da força ao passar pela beirada do riacho, como Trovoada é mais alto que o manga-larga, consigo alcançá-lo, tomando as rédeas das mãos de Miguel.
— Ouh, calma garoto!
O cavalo relincha contrariado, tentando se erguer nas patas traseiras, mas acaba obedecendo meu comando e para, levantando uma nuvem de terra em nossa volta.
Miguel desce xingando e bufando como um bicho revoltado.
Fico parada, deixando-o se acalmar.
— Vai tripudiar?
— Poderia dizer que eu avisei. Mas não vou fazer. — desço do Trovoada, acariciando sua crina. — Pode voltar montado no Trovoada, eu volto com esse.
Miguel me encara desconfiado.
— Você mesma disse que esse daí nem o diabo monta.
O cavalo relincha, como se dissesse para Miguel que ouviu o que disse.
— Como eu disse, Bruto está na fase de domação, se você é burro o suficiente para entender isso nem ele ou eu temos culpa. Quanto ao Trovoada, não existe cavalo mais manso que ele, até mesmo para você que parece ter espora nos pés.
— Vou caminhando. — responde bravo.
— Você que sabe. — resmungo, ajeitando o chapéu na cabeça, subindo novamente no cavalo. Seguro firme a rédea de Bruto, pronta para voltar.
Estou quase ultrapassando Miguel, quando ele retruca. — Sério que você vai me largar no meio do mato? Mal sei que direção seguir.
— Você parece aquele moleque chorão de anos atrás, sobe na garupa do Trovoada então.
— Como? Não tem sela, nada para eu me segurar.
— Dá seu jeito, senão deixo você aí!
Ele torce os lábios, dá a volta na bunda do cavalo, despois volta.
— Suba logo, vem eu ajudo. — Contenho o riso com a cena de Miguel agarrado em minha mão, tentando subir em Trovoada, travando as pernas em sua anca enquanto voltamos para o Haras.
Será que Deus me castigaria se fizesse ele cair de bunda no chão? — penso sorrindo ainda mais.
Sinto sua mão surgir em minha cintura, na altura do quadril. — Desencosta essas mãos, se não quiser perdê-las — digo dando um tapa.
— Seria mais fácil se tivesse onde me segurar. — Escuto-o dizer. — Esquentadinha!
— Brucutu!
Isso não me impressiona muito
Então você tem beleza, mas tem o toque?
Não me leve a mal
Conheci alguns caras que achavam que eram muito espertos
Você pensa que é um gênio
Mas isso não me aquecerá no meio da noite
Isso não me impressiona muito
(That Don’t Impress Me Much — Shania Twain)