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Ancona, Itália, dias atuais.
Um casal de jovens andava pelas íngremes e magníficas colinas nos arredores da província de Ancona, Itália. Olhando lá de cima, era possível ver o mar se estendendo no horizonte, misturando-se com o céu. Uma vista gloriosa, que dava àquela paisagem a beleza de um paraíso.
Quando tentaram subir mais, o chão começou a ceder e Giovanna gritou, assustada, tentando se segurar como podia, quando viu suas pernas serem sugadas pela terra. Toni agarrou-a pelos braços, mas o chão abriu-se mais e os dois caíram na imensa fenda, de uma altura gigantesca.
Recuperando os sentidos, Giovanna tentou mover-se para ver onde estava. Tossiu por causa da poeira que pairava no ar e sentiu uma imensa dor, que a fez gemer. Ela estava com uma perna quebrada, assim como algumas costelas, e várias escoriações pelo corpo.
— Toni! — gritou, assustada, olhando ao redor.
Ela não obteve resposta e não ouviu nenhum outro ruído, além do eco de sua própria voz, então se moveu para ver se o encontrava. A luz do sol entrava pela fresta acima dela, revelando Toni caído ao seu lado.
Ela, com dificuldade, arrastou-se até ele, gemendo com sua dor excruciante.
— Toni! Toni! — chamou-o com a voz embargada, com o pânico tomando conta de sua mente.
Ele estava vivo, mas desacordado e sangrava na cabeça. Apavorada, Giovanna o chamou, sacudiu-o, mas ele não se moveu.
Ela, com seu coração batendo erraticamente de terror, olhou para o lado com os olhos arregalados e assustados e viu-se frente a uma imensa estátua de pedra caída com a figura de um homem que parecia encará-la.
Ela soltou um grito agudo que ecoou no imenso salão de pedra onde caíra.
Capítulo 1
Londres, Inglaterra, dias atuais.
Marien Stewart é arqueóloga. Uma bela mulher, esguia, de cabelos castanhos e olhos impressionantemente verdes esmeralda. Sua beleza não era menos notada que sua inteligência e altivez. Morava em Londres, mas lhe agradava um clima com menos chuva, menos sombrio.
Felizmente, ou não, seu trabalho a levava a diversos lugares do mundo. Muitas vezes ela ficava meses fora de casa. Basicamente morava em todos os lugares, menos no seu próprio; era como uma turista em sua casa.
Naquela tarde chuvosa de Londres, estava sentada à mesa do escritório em sua casa, vendo algumas correspondências. Havia estado fora por seis meses para realizar estudos a respeito de uma múmia egípcia. Enquanto olhava as correspondências e as atirava sobre a mesa, uma após outra, ouvia os recados da secretária eletrônica.
De repente, uma das cartas lhe chamou a atenção e Marien parou, arqueando as sobrancelhas. Era do Vaticano.
Um tanto apreensiva, abriu a carta e a leu. Estavam a convidando a ir para Ancona, a capital da província e região de Marcas na Itália, acerca de uma antiga ruína encontrada.
Aturdida, Marien pegou o telefone e ligou para Urs Barker, curador do Museu de Londres e seu empresário.
— Oi, sou eu.
— Oi, Marien! Eu ia te ligar. Você recebeu a carta do Vaticano? — Urs perguntou, sentado confortavelmente no escritório do museu.
— Recebi. Do que se trata, exatamente?
— Eles encontraram, há alguns meses, uma grande ruína que estava soterrada. Acreditam que se trata de uma antiga igreja do período medieval e você foi indicada para orientar as escavações e a pesquisa.
— Interessante. Mas eu não quero me envolver com o Vaticano.
— Querida, você vai lá, faz seu trabalho e volta, simples assim; não vai se envolver diretamente com eles.
— Huum... Até parece! — disse, fazendo uma careta. — Quem me indicou?
— Padre Sebastien Caseneuve, ele também é arqueólogo. Eles ofereceram uma boa quantia em dinheiro e já têm uma equipe trabalhando no caso, mas estão esperando que você aceite o trabalho. Ele está aguardando uma resposta. Então, o que acha?
— Não poderei levar minha equipe?
— Não. Infelizmente, terá que ir sozinha.
— Urs, para que eu tenho uma equipe se não posso levá-la?
— Marien, pelo que o padre me revelou, o Vaticano demorou a aceitar o seu pedido para contratá-la e as escavações começaram sem você, até que cederam. E nós estamos falando do Vaticano, querida, eles a solicitaram, mas é lógico que encontrará algumas barreiras.
Ela suspirou e pensou por um momento.
— Será que eu poderia ter uma folga para descansar primeiro?
— Minha querida, se você quiser, eu direi que não pode ir. Mas pelo menos veja com mais atenção do que se trata e, se quiser descansar, seria muito bom para você. A decisão é sua.
— Eu vou pensar, mas eu quero mais detalhes, está bem?
— Tudo bem, eu vou obter mais informações e nos falamos.
— Obrigada, até mais, beijos.
Marien desligou o telefone e pensou se deveria aceitar ou não. Mal chegara e já estavam querendo que viajasse novamente. Soltou um suspiro cansado, pegou o telefone e ligou para sua amiga de infância, Lizza.
— Oi, estranha.
— Marien! Você já está em Londres? — Lizza perguntou, animada.
— Sim, cheguei há poucos dias, mas sabe como é, tive minha excitante maratona familiar e quis curtir minha casa um pouquinho.
— Entendo. — disse, rindo. — E quando vamos nos ver?
— Venha jantar comigo amanhã. Eu estou precisando de uma sessão caseira com massa italiana, vinho, porre e besteirol, por favor.
— Claro que eu vou! Eu levo o vinho e você faz a massa, aquela especial que me faz assassinar minha dieta.
— Pode deixar, Lizza, eu vou caprichar. Até amanhã.
— Até amanhã.
Marien desligou o telefone, foi à sua suíte e abriu as torneiras para encher a banheira. Olhou demoradamente no espelho, escorando-se na pia com as mãos e ficou analisando seu rosto.
— Será que daria para você ter uma vida normal, Marien? — ela fez uma pausa e suspirou profundamente. — É! Acho que não.
Quando a banheira estava cheia, ligou um aparelho de som, acendeu velas aromáticas e despejou seus sais de banho. Entrou e ficou descansando na água quente e perfumada. Seu celular tocou e, sem abrir os olhos, resmungou contrariada, tateou com a mão pelo chão do banheiro para pegá-lo de onde o tinha deixado e o colocou no ouvido.
— Alô?
— Srta. Stewart?
— Sim, sou eu!
— Boa noite, sou o padre Sebastien Caseneuve. — Marien abriu os olhos ao ouvir este nome e sentou-se na banheira.
— Oh, olá, padre!
— A senhorita recebeu nossa carta?
— Recebi. Hum... Eu falei com Urs e vou averiguar seu pedido, padre.
— Obrigado. Ficarei muito feliz de ter uma arqueóloga renomada como a senhorita neste projeto.
— O senhor poderia me passar mais informações sobre a escavação?
— As informações já foram enviadas ao senhor Barker hoje no fim da tarde, ele lhe passará isso. Liguei somente para lhe dizer que será muito bem-vinda em Ancona. Eu gostaria muito de sua ajuda. Eu estou em Roma no momento e devo retornar a Ancona daqui a alguns dias. Eu aguardarei ansioso por sua resposta.
— Tudo bem, eu vou analisar o material que enviou e depois lhe dou uma resposta.
— Obrigado. Devo dizer que li seu livro sobre arqueologia e gostei muito.
— Obrigada, padre, eu estou lisonjeada.
— Bem... Eu espero uma resposta sua. Boa noite.
— Boa noite.
Marien desligou o telefone e ficou ali, parada, um tanto atordoada. Aquela voz falando inglês com um sotaque estranho lhe embaralhou a cabeça. Não sabia se deveria fazer isso. Vaticano era uma palavra que lhe dava arrepios. O que mais queria era distância.
Marien voltou ao seu banho e tentou relaxar, mas não teve muito êxito.
*
No dia seguinte, Marien foi ao museu falar com Urs.
— Boa tarde, senhor curador! — Marien disse, sorrindo, adentrando em sua sala e indo ao seu lado.
Urs, sorridente, levantou da cadeira e a recebeu carinhosamente.
— Boa tarde! Eu achei que você não viria aqui hoje, que estaria descansando. — Urs respondeu, dando-lhe um beijo no rosto.
— Ah! Você me conhece, minha curiosidade estava me matando. Ainda mais depois que o padre me ligou.
— Sim, ele me disse que ligaria. Ele me pareceu muito simpático.
— Realmente pareceu. Então, deixe-me ver o que ele lhe mandou.
— Está aqui.
Marien pegou uma pasta, sentou-se na confortável poltrona e começou a ler. Urs recostou-se em sua cadeira e a olhava atentamente com um ar sereno, com as mãos cruzadas sobre o estômago e os cotovelos apoiados nos braços da cadeira.
— Que maneira de se descobrir uma coisa destas. — ela disse, lendo um breve relatório.
— Sim. A moça sobreviveu, mas o rapaz morreu, infelizmente; ficaram dias lá embaixo até serem encontrados.
Marien remexeu-se na cadeira; aquilo lhe parecia familiar.
— Ancona é uma comuna italiana, que hoje é capital da província; é muito antiga e teve períodos de completo esquecimento na história e outros de ter sido um vilarejo próspero. Não me recordo muito sobre esta área da Itália, mas é estranho ter uma igreja soterrada nesse lugar, esses penhascos são muito íngremes. — disse, olhando algumas fotos.
— Pelo que ele pôde ver, trata-se de uma igreja, mas pode não ser. Acha que poderia ter algo a ver com as lendas das sibilas, as videntes virgens do Império romano?
— É uma possibilidade, pois as lendas diziam que elas se refugiaram nas cavernas das Marcas para fugir da perseguição cristã, pois eram consideradas hereges por serem pagãs, ligadas a Apolo, mas isso foi muito antes dos indícios dessa igreja. Aqui já estaria na baixa idade média, talvez seja algo novo.
— Se não me engano, há mais uma lenda específica sobre Ancona. — ele disse, pensativo.
— Urs, eu já ouvi algo sobre esta lenda. É de uma igreja que deveria ter existido ali, mas é só um folclore.
— Marien, essa igreja é aquela que dizem que foi desgraçada, amaldiçoada ou algo assim?
— Sim, por uma bruxa.
— Bem, isso é interessante, mas você só saberá se for lá e averiguar.
— Sim. Estas fotos são impressionantes!
— E se bem a conheço, você não resistirá e irá atrás de saber sobre esta bruxa.
— Engraçadinho. Posso levar isso?
— Pode.
— Eu vou olhar com mais calma e depois dou uma resposta.
— Tudo bem. Pode tirar alguns dias de folga, descanse o quanto quiser, eu lhe darei respaldo.
— Obrigada, Urs.
— Agora eu vou ver o que faço com esta maluquice que você fez no Egito. Quase me deixou de cabelos brancos.
— Eu não fiz maluquice nenhuma, eu estava certa; o arqueólogo, errado.
— Eu sei que estava. Você é meu orgulho.
— Obrigada! — ela disse com cara de satisfação. — Até mais, Urs.
Marien se despediu e foi embora. Foi ao mercado fazer compras para o jantar e passou numa floricultura para comprar flores para espalhar pela casa; isso era uma coisa que lhe agradava.
Mais tarde, estava na cozinha tomando uma taça de vinho e preparando o jantar quando a campainha tocou e ela foi atender.
Marien sorriu ao ver a amiga com seu enorme sorriso, seus olhos castanhos e brilhantes, usando um elegante vestido azul, com um casaco preto longo até os joelhos. A noite estava um pouco fria.
— Oi, Lizza!
— Oi, querida! Como está?
As duas se abraçaram sorridentes e felizes pelo reencontro.
— Bem! Feliz por estar em casa, e você parece ótima.
— Estou bem! Estou reformando minha casa, o que dá muito trabalho, mas vai ficar do jeito que eu quero. — Lizza disse, sorridente, retirando o casaco e entregando o vinho que havia trazido.
— Já não era sem tempo.
— Então, conte-me como foi no Egito.
— O Egito é sempre fascinante, eu adoro aquela civilização, mas foi desgastante demais.
Elas foram para a cozinha e Marien serviu as taças de vinho.
— Eu sei! Então, vai ficar quanto tempo em Londres?
— Ah! Mal acabei de chegar e já estão me solicitando na Itália.
— A Itália é ótima! Quem sabe você arruma um belíssimo italiano comedor de porpetones.
Marien soltou uma bela risada.
— Bem, isso deve ser melhor do que ficar com múmias e aqueles egípcios não me agradaram.
— Oh, nenhum bonito?
— Se há, não passou por mim, mas, com minha sorte ultimamente, os bonitos devem ter passado longe.
— Imagino... Diferente da Itália, que é recheada de homens lindos por todos os lados. Sobre o que é a descoberta desta vez?
— Parece ser uma antiga igreja, eu vou ser contratada pelo Vaticano.
— Humm! — Lizza resmungou, fazendo cara feia.
— Eu sei. — disse, rindo.
— Não deve ser tão ruim. Pense num homem belíssimo, moreno, de olhos verdes, falando em italiano nos seus ouvidos...
— Lizza, pare com isso!
— Ai, amiga, eu só estou tentando animá-la, você não sai com alguém há muito tempo, nem aceitou os convites de Peter que eu sei. Faz quanto tempo que não sai com alguém?
— Acho que um pouco antes de eu ir para o Egito.
— Ai, meu Deus, isso é uma catástrofe! Eu não entendo como você tem esta pele linda se não faz sexo.
— Como queria que fizesse isso? Só se fosse com uma múmia! O que tem uma coisa a ver com a outra?
— Dizem que sexo deixa a pele bonita.
— Se fosse assim, eu deveria estar mais enrugada que a múmia que eu estava estudando.
— Isso é verdade, que terror! Mas essa múmia é aquela que você contestou seu estudo, não é, quer dizer, quem a descobriu?
— Sim, provei que o arqueólogo estava errado em seus estudos.
— Ele deve estar querendo matá-la.
— Ele já está morto, Lizza.
— Ai, meu Deus! Você o matou?! Marien riu com gosto.
— Não. Mas provavelmente, se estivesse vivo, ele iria querer me matar por ter acabado com a descoberta dele.
— Bem, sorte sua, mas sobre aquele outro assunto... Eu conheço alguém, que, como você diz, é ótimo de cama, tem olhinhos puxados... — disse, maliciosa.
— Vai começar? — Lizza riu, fazendo careta e ergueu as mãos, dando a entender que não falaria mais nada e bebendo o vinho. — Vamos comer, está pronto!
— Eu estava morrendo de vontade de comer este macarrão que você faz. Eu nunca consigo fazer igual. A única coisa que faço bem são Martinis.
— Sim, seus Martinis são ótimos, faremos uma sessão com eles da próxima vez.
Marien riu, sentaram-se à mesa e começaram a jantar.
— Isso é de se comer rezando, que maravilha! — Lizza exclamou, saboreando a comida. — Você nasceu no país errado, deveria ser italiana.
— Verdade, eu adoro tudo que é italiano. Eu só espero que este padre não seja rabugento, velho e feio.
— Por quê? Vai querer um padre bonito?
— Seria melhor para meus olhos. Pelo menos que não seja rabugento.
— Hum... Acho improvável, impossível, só se fosse um milagre.
— Teremos que esperar para ver. Como vai seu espanhol, o Carlos?
— Ai, uma maravilha! Aquele homem é um furacão, muy caliente.
— Imagino, amantes espanhóis são uma perdição.
— Concordo plenamente.
Elas jantaram e depois sentaram no sofá com as taças e o vinho; beberam e falaram de tudo, riram muito até tarde com uma suave música de fundo.
— Eu tenho que ir, senão vou ficar bêbada demais. Acho que já não enxergo o buraco da fechadura! — disse Lizza.
— Então ligue para seu espanhol, que ele lhe ajude.
— Gostei desta parte, talvez eu peça para ele achar outras coisas também.
As duas riram.
— Ligue para ele e me dê o telefone.
— O quê? O que vai fazer?
— Pare de resmungar e ligue!
Lizza pegou o celular e ligou para Carlos e, quando Marien viu que chamava, ela pegou o telefone de sua mão.
— Oi, Lizza. — Carlos disse.
— Não é a Lizza, é Marien.
— Boa noite, Marien. Mas o que aconteceu? Lizza está bem?
— Está. Mas eu acho que ela bebeu um pouquinho demais, está na minha casa. Será que você poderia fazer a gentileza de apanhá-la e deixá-la a salvo em casa? Não queria deixá-la dirigir nem ir de táxi para casa sozinha... Se não for nenhum incômodo para você, é claro.
Lizza ria e tentava tirar o telefone da mão de Marien que, rindo, esquivava-se dela, mas tentava falar seriamente com Carlos.
— Não é incômodo nenhum, num minuto estarei aí.
— Obrigada, você é um cavalheiro.
Marien, rindo, desligou.
— Sua louca, por que fez isso? — Lizza perguntou, espantada.
— Para você terminar sua noite em grande estilo, minha amiga, afinal, nunca se pode desperdiçar um espanhol... — disse, rindo. — Muito menos quando se está bêbada.
— Obrigada. — Lizza soltava gargalhadas ao jogar-se no sofá. — Agora vou acabar com ele e provavelmente não me ligará mais.
— Aproveite e com certeza irá te ligar, deixe de ser boba. O Carlos é louco por você e se atura suas loucuras até hoje, é porque aturará muito mais.
Ficaram conversando e rindo até que Carlos chegou.
— Oi, Marien. — Carlos disse, sorrindo, e lhe dando um beijo no rosto. — Onde está a vítima?
— Serve aquela ali no sofá?
— Oi, querida. — ele disse, sorrindo.
— Oi, Carlos. Eu não estou assim bêbada. — Lizza respondeu.
— Estou vendo. — ele disse, rindo, e Lizza riu também, levantando-se do sofá.
— Até mais, Marien, nos veremos logo.
— Até e juízo! E, Carlos, por favor, leve-a direto para casa, heim?
— Pode deixar comigo, ela está em boas mãos.
— Hummm... — elas disseram, rindo, e se olhando maliciosamente.
Marien despediu-se de Carlos e Lizza e eles foram embora. Ela fechou a porta, rindo; havia sido uma noite maravilhosa. Ela gostava muito dos encontros com Lizza, era revigorante. Ter uma amiga assim era um presente que pretendia cultivar para sempre. Era como se fosse sua irmã, já que como filha única não sabia como era ter uma.
Ela, realizada e feliz, foi para a cama; aconchegou-se e dormiu pesadamente. Como era bom estar em casa.
No meio da madrugada, Marien começou a se debater na cama; estava tendo um sonho confuso.
Ela estava correndo em um campo muito bonito e podia ouvir risadas, a sua e de mais alguém, de um homem que parecia brincar com ela. Seu coração parecia aquecido e tranquilo. Usava um vestido longo até os pés, de cor azul escuro e branco. Seu cabelo estava solto e, muito comprido, balançava no vento.
Ela estava feliz ali; suas gargalhadas contagiavam. De repente ela se chocou com algo ou alguém, derrubando-a. Um homem com feições grotescas pairou sobre ela, usando uma roupa preta e vermelha, com um colar muito grosso com uma cruz pendurada e um chapéu estranho. A imagem do seu rosto dançava como se estivesse borrando. Ele olhou, furioso, para ela e gritava grosseiramente; parecia um eclesiástico antigo.
Seu coração se oprimiu, com medo e com uma dor intensa. Ela tentou se arrastar pela grama para fugir, gritando por ajuda, mas ninguém ajudava. O dia foi ficando escuro como a noite; as nuvens passavam rapidamente e trovões retumbavam pelo céu e parecia que várias mãos tocavam seu corpo, puxando-a, impedindo-a de fugir. Seus gritos desesperados machucavam sua garganta.
Então, sentiu uma dor enorme atingir suas costas como as tiras de couro de um chicote e, com um grito agudo, a imagem do sonho mudou.
Agora ela estava em uma sala de pedras brutas, muito suja e fria, não havia luz, nem saída. Ela, ofegante, agonizando em desespero, tateava desesperada a parede para encontrar a porta. Quando a encontrou, era enorme de carvalho e ferro. Bateu nela e gritou e gritou em desespero, até que uma dor aguda atravessou seu corpo e um grito agudo irrompeu pela escuridão.
Marien sentou na cama, assustada, ofegante e desorientada, olhando ao redor, tocando a si mesma, porque a dor parecia estar ali ainda.
Ela puxou o ar com dificuldade e automaticamente duas lágrimas escorreram por seu rosto. Ela as secou, tremendo. Tateou a mesinha de cabeceira e acendeu o abajur; eram três da manhã, as horas apontavam no relógio.
Ela pegou o copo de água e bebeu avidamente, depois se deitou, tentando acalmar seu coração que saltava descompassado no peito.
— Calma, Marien, foi só um pesadelo estúpido. — sussurrou.
Ela tentou dormir novamente, mas com a luz acesa, porque parecia que a escuridão poderia devorá-la. Tentou apagar as imagens do sonho estranho e agonizante, mas não teve muito sucesso.
Aquilo ficou na sua memória e gritava como um aviso, um aviso de que algo estava vindo.
Ela só não sabia o que era.
Capítulo 2
Urs, após convidar Marien para jantar, tomou um demorado banho e arrumou-se com sua tão costumeira elegância. Era vaidoso e cuidava da aparência. Andava sempre com roupas sociais caras e bem cortadas emoldurando seu físico perfeito. Usava cabelo longo até um pouco acima da linha do ombro, penteado para trás, e estava sempre perfumado.
Era de uma beleza exótica; tinha uma pele perfeita, possuía os olhos extremamente diferentes, levemente repuxados e de um tom de verde amendoado que os tornava mais belos.
Urs tinha trinta e cinco anos, vinha de uma família muito rica e tradicional de Londres. Nunca passava despercebido, principalmente pelas mulheres, que não perdiam a chance de puxar assunto, insinuar-se ou tentar conquistar o belo homem, o que não era fácil, apesar de carregar uma fama de Don Juan.
— Nossa! Você está linda! — ele disse, embevecido, quando Marien o veio receber à porta.
Após receber um doce beijo na bochecha, Marien o brindou com um lindo e gigante sorriso.
— Urs, se você fizesse estes comentários enquanto nós estávamos casados, talvez estivéssemos casados até hoje. Mas obrigada mesmo assim. — ela disse com ar zombeteiro e sorrindo para ele.
— Não seja exagerada, eu lhe fazia comentários assim, você é que nunca fez a mim.
— Que mentiroso! Se há uma coisa que nunca faltou, foi meus elogios. Está belíssimo e elegante, como sempre.
Ele riu e abriu a porta do carro esportivo para ela, sua última aquisição, o recém- lançado modelo da Aston Martin, um One-77 prata.
Chegaram ao elegante restaurante, o Gordom Ransey, um dos mais elegantes e caros de Londres, decorado com a requintada decoração britânica clássica e um toque de Manhattan.
O metre, impecavelmente vestido, veio lhes receber e os levou até uma mesa em um lugar agradável, onde podiam desfrutar de uma bela música suave ao piano.
As reservas sempre deveriam ser feitas com muita antecedência, mas para Urs Barker sempre havia exceções e ele tinha um lugar cativo, e um balde de gelo com uma garrafa de champanhe já os esperava.
Após fazerem um brinde e beberem o champanhe, iniciaram uma conversa agradável.
— Já decidiu o que vai fazer? — ele perguntou, curioso.
— Eu vou para Ancona. Só quero mais alguns dias de folga.
— Eu sabia que iria aceitar, eu a conheço bem.
— Sim, conhece.
— Por que cortou seus cabelos? — disse, observando-a.
— Meu pescoço anda sensível ultimamente, então eu achei que uma tesoura resolveria o caso. E não fique me olhando assim com estes olhos devoradores, Sr. Barker. — disse, sorrindo.
Urs soltou uma gargalhada e pegou a taça de champanhe.
— Eu adoro seu senso de humor. Um brinde a sua nova aventura na Itália. Eu espero que sua pesquisa seja um sucesso, como sempre. — Marien ergueu a taça, sorriu, e eles brindaram. — Sua agente de viagens estava lhe procurando sobre uma viagem à Grécia. Do que se trata?
— Quero passar alguns dias de descanso em Santorini antes de ir a Ancona.
— E não ia me contar?
— Claro que ia, só estou vendo os dias ainda.
— Claro. Espero que se divirta.
— Irei, vou aproveitar ao máximo antes de me afundar no trabalho novamente. Eu vou sozinha agora para Ancona, mas depois vou dar um jeito de levar Sarah, não vou trabalhar sem minha assistente.
— Sei que vai dar seu jeito. Amacie aquele padre e com certeza ele lhe concederá a presença de Sarah.
— Espero que sim. Urs, você parece muito bem, seu humor está como um doce.
— Sim, estou bem, você está por perto e isso me deixa bem.
— Também gosto de vê-lo por perto. Bem... E você? Já fez as pazes com sua namorada?
— Não.
— Você não tem jeito!
— Dessa vez a culpa não foi minha.
— Ah, não?
— Não. Que mau juízo faz de mim. O que acha que sou? Um cretino com as mulheres?
— Acho! — disse, rindo e bebendo o champanhe.
— Marien! Você deveria ser mais generosa comigo.
— Querido, eu sou generosa com você, e às vezes até demais.
Ele foi obrigado a rir.
— Tenho um presente para você.
— Eu estou dizendo que você está de muito bom-humor. — ela pegou um embrulho que ele colocou em cima da mesa e o abriu. – Oh! Urs, é lindo!
Ela ficou admirando o pequeno amuleto.
— Sabe o que é? — ele perguntou.
— Sim, é um antigo amuleto celta. Diziam que trazia proteção. Os maridos deixavam isso debaixo do travesseiro da esposa quando partiam para a guerra, para proteger a família ou ela dava a ele para se proteger na guerra.
— Acho que era mais para se proteger dos chifres na ausência deles.
— Ai, Urs, que maldade! Onde conseguiu isso? Isso é original!
— Originalíssimo. O adquiri em um leilão há uma semana, o arrematei para você. Eu mandei colocar uma corrente, assim pode pendurar no seu lindo pescoço sensível. Assim se aquela igreja for amaldiçoada, isso lhe protegerá.
— Padres não gostam de amuletos pagãos. Você deveria ter me dado um crucifixo.
— Crucifixos são para espantar vampiros, acho que não é o caso.
— Com certeza não. — ela disse, rindo. — Obrigada, Urs, eu adorei.
Ela o colocou na caixinha novamente porque já tinha um colar no pescoço. O jantar transcorreu maravilhoso; falaram de vários assuntos, riram e brincaram. Eram bons juntos, sempre brincalhões um com o outro; ficaram assim depois que se separaram, eram melhores amigos do que tinham sido marido e mulher.
Eram perfeitos no trabalho e na amizade, mas imperfeitos no amor.
Urs a levou até sua casa e entrou um pouco a convite de Marien.
— Acho que eu bebi demais. — ela disse.
— Você sempre foi fraca para champanhe.
— Sim, devo ser mesmo.
— Sua casa está muito bonita. — disse, olhando ao redor.
— Está. Pena que fico pouco aqui.
Marien olhou diretamente nos olhos de Urs por um momento. Virou-se de costas para ele, retirando o casaco e expondo o decote das costas de seu vestido. Urs não resistiu; chegou perto dela e beijou suavemente seu pescoço por trás. Marien sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha e seu corpo todo estremeceu.
— O que está fazendo? — ela perguntou baixinho, sentindo o ar lhe faltar nos pulmões.
— Você disse que seu pescoço estava sensível, eu só queria ter certeza. — sussurrou sedutoramente.
Marien calmamente se virou, olhando-o.
— Bem... Já que atestou que me arrepio dos pés à cabeça por ser tocada no pescoço, pode parar agora, então boa noite.
— Boa noite. — disse com as mãos nos bolsos, olhando-a com um olhar penetrante e um leve sorriso.
Ele devia mover-se e ir embora, mas não era a sua intenção. Urs a beijou no rosto devagar e a olhou nos olhos por uns instantes. Aproximou-se dos seus lábios e os tocou suavemente. Marien fechou os olhos e não ofereceu resistência; ele se afastou, tentando pensar em sair dali, mas parecia pregado no chão.
— Acho que você quis me embebedar de propósito. Para me seduzir. — ela disse com dificuldade de respirar.
— Nunca faria uma coisa destas. — disse roucamente.
— Você mente muito mal.
— Eu estava com saudades.
— Eu também.
Sem pensar em mais nada, Urs envolveu seu rosto com as mãos e lhe deu um beijo intenso que fez os corpos de ambos esquentarem rapidamente. O beijo durou uma eternidade, ambos saboreando, desfrutando daquela carícia que abria todas as portas para o pecado.
Ele desceu as duas mãos para suas coxas; as subiu lentamente, trazendo junto seu vestido e a suspendeu, fazendo-a entrelaçá-lo com as pernas pela cintura. Ele a escorou na parede da sala e beijaram-se ardentemente. Tocando seu corpo, deslizando pela sua pele com suas mãos fortes e grandes, como se quisesse marcá-la, fazendo-a gemer de prazer pelo seu toque.
Enquanto a empurrava contra a parede, encaixava cada vez mais seu corpo no dela, enroscando, entrelaçando sua essência com a dela, provocando e despertando o prazer.
Ele beijou seu colo e, afastando seu decote, tomou o seio na boca, fazendo-a gemer e arfar. Mesmo com receio de perguntar, ele a olhou nos olhos, com o olhar escuro, profundo, dominador. Lançando a proposta mesmo sabendo que ela não recusaria.
Beijou-a, encarando-a, desafiando-a, torturando-a.
— Vamos fazer isso de novo? — ele perguntou, afastando seus lábios dos dela por um instante, esperando que ela dissesse que sim.
— Cale a boca e me beije.
Ele sorriu e a beijou longamente; segurando-a nos braços, subiu as escadas e a levou até o quarto. Vagarosamente a deitou na cama, deitando-se sobre ela e a beijou novamente, deliciando-se com seus lábios. Ele retirou seu vestido preto, que a deixava extremamente elegante e sexy, enquanto ela retirava a roupa dele avidamente. Tocando, excitando, arrancando suspiros e gemidos um do outro, provando o sabor da pele. E quando ele entrou nela, o mundo estava esquecido e só havia o momento deles, apaixonante.
Exploraram seus corpos como já haviam feito tantas vezes, com paixão crua, intensa e prazerosa.
Eles conheciam-se bem; o sexo sempre fora maravilhoso entre eles.
Não entendiam como haviam se divorciado, nem sabiam onde foi que o amor entre eles havia esfriado ou acabado. Nem sabiam se era normal um casal que havia se divorciado dormir juntos ou conviver amistosamente.
Mas Urs e Marien eram assim.
Entregaram-se intensamente noite adentro, sem remorsos, sem cobranças, somente carinho e prazer intenso. Haviam feito isso diversas vezes depois que se separaram.
Como isso era possível? Nenhum dos dois sabia nem se questionava; só deixavam que acontecesse quando caíam em determinadas situações nas quais o desejo falava mais alto.
No dia seguinte, cada um seguia com suas vidas separadamente como se nada tivesse acontecido.
*
Lizza suspirou e encostou-se à cadeira do restaurante onde ela e Marien tinham ido jantar.
— Marien, eu não sei como você e Urs podem ser desse jeito. — disse Lizza.
— Que jeito?
— Vocês são divorciados há cinco anos e vivem desse jeito. Quando eu pisco, você está na cama dele. Assim, sem mais nem menos. Eu não consigo entender uma coisa destas. Meu ex-marido é um cretino, eu tenho vontade de pendurá-lo numa forca como faziam nos séculos passados, e você e Urs... buff!
— Lizza, é só sexo, nada mais.
— Jesus! E o pior é que ele te liga no dia seguinte.
Marien riu.
— Se eu trabalho com ele, é obvio que ele tem que me ligar. Mas ele me liga sobre trabalho, pois ele não liga para as amantes dele no dia seguinte, nem sequer amanhece com elas. Pois o dia que ele ligar ou amanhecer com elas, interne-o, pois está doente.
— Como sabe que ele nunca liga ou vira a noite com suas amantes?
— Ele me conta.
— Ai, meu Deus! — gemeu. — É pior do que eu imaginava. Tudo bem. — disse, respirando. — Analisando... Você dormiu com ele ontem. O que ele fez hoje de manhã?
Marien, querendo rir, calmamente mordiscava um palito de pão e olhava para a amiga indignada.
— Bem, deixe-me lembrar... Eu acordei e ele não estava, mas tinha um origami de um pássaro e um bilhete no travesseiro.
— O que estava escrito?
— “Os pássaros sempre voam para o sul no inverno. Obrigado por ser meu sul. Adorei a noite, ligo mais tarde. Beijos, Urs... Ps.: Durma!”.
— Ai, Marien, eu vou me matar! E ele ligou?
— Ligou ao meio-dia. Disse bom dia, que eu deveria ligar para meu editor e passar no museu para assinar alguns relatórios.
— Só isso? Definitivamente, vocês são loucos.
— Lizza, se não fôssemos assim, não conseguiríamos trabalhar juntos. E eu não sei por que você surta cada vez que isso acontece, pensei que já havia se acostumado.
— Nunca vou me acostumar com uma coisa dessas. Para mim, casais divorciados são gladiadores e não amantes. Por que vocês dois não se casam novamente?
— Não. Assim cada um cuida da sua vida.
— Bem, com isso eu concordo. Pelo menos vocês podem ficar com outras pessoas sem cobrança.
— Pois é. Quando nós éramos casados, ele ficava com outras mulheres quando eu viajava, e eu não aguentei isso.
— Também, você passava meses fora! E ele fez isso quando você desistiu dele e brigavam.
— Por isso que não deu certo. Eu até me enroscava na entrada das pirâmides de tão grandes que eram meus chifres e eu sofria ficando longe dele, agora parei de sofrer. Para mim, isso é ótimo!
Lizza riu com gosto.
— Ai, Marien, sua vida é uma piada.
— Verdade. Mas ele é uma delícia e eu gosto de ficar com ele de vez em quando.
— Você precisa arrumar um namorado descente, se apaixonar.
— Eu não quero me apaixonar.
— Querida, a paixão não bate na porta, ela simplesmente entra. Se você fechar a porta, ela pula a janela, ninguém escapa dela. Quando vê, já está de quatro.
— Assim como você e o Carlos?
— Eu não sou apaixonada por ele.
— Não? Cuidado, pois seu nariz vai crescer.
— Está bem... Eu acho que sou, o adoro.
— Vocês estão juntos há muito tempo e fazem a mesma coisa que eu e Urs: vocês não têm compromisso e volta e meia estão na cama. Julga-me, mas faz o mesmo.
— Não a estou julgando. Concordo que é difícil resistir a Urs, minha querida, aquele homem é um arraso! Se fosse eu, também não resistiria. O que me incomoda é que vocês foram casados e se dão melhor agora do que antes. Isso é que não entra na minha cabeça.
— Na minha também não, então eu não penso e não questiono. Simplesmente deixo que aconteça; e sinceramente eu nunca me senti mal em nenhuma das vezes que isso aconteceu.
— Bem, então que assim continue.
— Sim, talvez um dia isso acabe.
— Céus! Vamos pedir a comida, senão você vai se empanturrar destes palitos de pão e não vai jantar.
— Está bem, mas isso aqui está bom.
— Quando vai viajar para a Itália?
— Na próxima segunda-feira.
— Já?
— Sim, minha mordomia vai acabar, estava tão bom.
— Coitadinha de você, amiga. Espero que lá seja bom.
— Vai ser. Mas vou passear um pouquinho por uns dias antes de ir à Itália. Vou para a Grécia.
— Não me diga? Vai lá medir as estátuas gregas?
Marien riu.
— Não. Eu vou para Santorini, de folga. Eu adoro aquele lugar! Eu peguei um quarto num hotel com uma varanda imensa de frente para o mar. Ai, meu Deus, não vejo a hora de chegar lá!
— Vai quando?
— Amanhã cedo.
— Que maravilha. Aquele lugar é inebriante.
— Sim, é fantástico!
— Me faz um favor? Arrume um deus grego por lá.
Marien riu e sacudiu a cabeça negativamente.
— Você nunca muda o discurso, só muda o lugar.
— Sim! Quem sabe um dia você me escuta.
As duas jantaram e continuaram a conversa animada até irem para suas casas.
Marien chegou em casa e foi terminar de arrumar as malas. Estava ansiosa para chegar na Grécia, ficar apreciando o belo lugar, sem ter compromisso nenhum.
No dia seguinte, logo cedo, Marien embarcou com destino a Santorini. A viagem de avião até Atenas foi rápida, mas demorou quatro horas para chegar a Santorini de barco. Todo o caminho valeu a pena, era maravilhoso e a viagem era mais um passeio do que um transporte.
Quando chegou ao hotel, soltou as malas e a primeira coisa que fez foi ir à varanda e ver a paisagem. Chegou a ficar sem fôlego vendo aquela imensidão azul do mar Egeu, que contrastava com o azul magnífico do céu e, como a varanda do hotel ficava no alto de um morro, a visão era ampla e deslumbrante.
A única coisa que detestava e ao mesmo tempo adorava era a canseira que lhe dava de andar pelas vielas de Santorini. Mas todo e qualquer sacrifício de suas pernas valia a pena pela beleza do lugar.
Suas casas exóticas, brancas, com seus telhados, janelas e portas azuis; as pequenas, mas bem cuidadas floreiras coloridas que enfeitavam as janelas e as escadarias; o sorriso sempre presente nos rostos dos moradores; o clima fantástico.
Um lugar fantástico.
Capítulo 3
Após dois dias no lugar, Marien foi jantar em um restaurante esplêndido, pequeno e aconchegante, mas um dos melhores e bem-conceituado, chamado Kapari Wine Restaurant. A noite estava quente e ela pediu uma mesa no canto da varanda com vista para o mar.
Além das estrelas, as luzes da cidade e a meia luz da sacada do restaurante davam àquele lugar um clima que nem tinha palavras para expressar.
O restaurante estava quase vazio e sua mesa era a única ocupada na sacada. Ela estava perdida naquele mundo perfeito, bebendo um drink exótico que o sorridente garçom lhe indicara; nem sabia o que tinha dentro, mas era doce e delicioso.
Estava usufruindo da paz que a envolvia. Sua alma estava branda, acometida de um silêncio que há muito tempo não sentia. Foi difícil consegui-la e deveria mantê-la assim. Num súbito, foi arrancada de seus devaneios quando seu celular tocou e perguntou-se imediatamente por que o havia colocado na bolsa. Quem seria àquela hora? Abriu a bolsa e pegou o celular; o nome de Urs piscava no visor e ela atendeu com um sorriso.
— Oi, Urs.
— Oi, querida. Como está seu passeio?
— Maravilhoso. Foi uma ótima ideia ter vindo aqui.
— Fico feliz por você. O que está fazendo agora?
— Eu estou sentada numa mesa de restaurante com uma vista esplendorosa e tomando um drink. Daqui a pouco vou jantar.
— Está sozinha?
— Sim.
— Que desperdício.
Marien riu.
— E você, o que está fazendo?
— O mesmo que você; em um restaurante, esperando para jantar, apreciando uma bela vista.
— Uma bela vista em um restaurante de Londres? Aposto que aí está frio, chuvoso e sua bela vista é uma mulher.
— Não está frio nem chuvoso e, sim, a minha vista é uma bela mulher, diria até que a mais bela que já vi.
— E o que está fazendo no telefone comigo ao invés de estar falando com esta tal mulher?
— É que fiquei em dúvida se ela aceitaria que eu lhe fizesse companhia. Ela parece estar muito bem sozinha. Ela está com um rosto sereno, olhos brilhantes...
— Meu querido, você não saberá se não tentar.
— Tudo bem, eu vou me aproximar e falar com ela; perguntar se eu poderia me sentar à sua mesa para lhe fazer companhia para o jantar. Mas antes eu queria lhe dizer que você está maravilhosa neste vestido branco; combina com minha roupa.
Marien estranhou o que ele disse, na verdade não entendeu.
— Urs, como sabe que estou de vestido branco?
— Ele é branco, longo e deixa suas belas costas nuas, o que é extremamente sexy.
Marien arfou. Olhou para trás e viu Urs escorado com o ombro na porta da varanda, com o celular no ouvido e com a outra mão no bolso. Ele estava magnificamente lindo à contraluz, vestindo calça branca com uma blusa de linha fina de mangas longas, também branca. Marien perdeu a fala e não sabia o que dizer, ainda segurava o telefone no ouvido e ficou parada, olhando-o.
— Será que eu poderia lhe fazer companhia? — ele perguntou, sorrindo.
Ela sorriu e ficou olhando-o por alguns instantes, até que recuperou sua voz.
— Pode, forasteiro. Se for um homem gentil, poderá me fazer companhia para o jantar.
— Obrigado, eu serei um verdadeiro cavalheiro.
Ele desligou o celular e aproximou-se dela, beijou sua mão e sentou-se à sua frente, escorando-se na mesa com os cotovelos; entrelaçou os dedos, sorrindo lindamente.
— O que faz aqui, Urs? — ela perguntou ainda meio perdida.
— Desculpe. Mas eu não resisti à tentação de vê-la neste lugar maravilhoso, então tomei a liberdade de vir encontrá-la. Espero que não se aborreça com minha companhia.
— Eu estou impressionada. Vou aceitar sua companhia por ser meio indelicado mandá-lo de volta a Londres sem jantar.
— Hum... Então depois do jantar, vai me mandar de volta?
— Provavelmente.
— Que chato. Mas não tem problema, eu aceito somente o jantar, já me valeu a viagem.
O celular de Urs tocou em cima da mesa; ele olhou o visor e não atendeu.
— Não vai atender?
— Não.
Marien pegou o celular e olhou o nome que aparecia no visor.
— Por que não fala com ela? Isso é indelicado.
O celular tocou novamente e ele o deixou desligado.
— Ela é insistente. Terminamos, eu não quero mais falar com ela.
— Vai ver que ela tinha intenção de se casar com você. — disse, sorrindo e bebendo de seu drink.
— Todas têm, mas eu não pretendo me casar de novo.
Urs fez sinal para o garçom e pediu um uísque com gelo. Quando o garçom saiu, Marien continuou.
— Ficou traumatizado?
— Parece. Igual a você!
— Não sou traumatizada.
— Que bom, assim não precisa pagar terapia e eu não fico com remorso. — Marien riu. — Não quer saber por que eu vim assim?
— Não! — Urs a olhou por alguns instantes. — Sem perguntas, Urs, sem respostas. Vamos aproveitar este momento, o resto não importa.
— Tudo bem, como quiser. O que quer comer?
— Você escolhe, mas eu quero algo com frutos do mar.
Urs fez o pedido de lagosta e camarões. Queria aproveitar que estava no litoral para comer frutos do mar frescos, assim como Marien.
Jantaram e conversaram confortavelmente. Depois, foram dar um passeio na pequena praia com a faixa de areia estreita que ficava abaixo do restaurante. A lua estava encantadoramente gigante, parecia que magicamente havia descido mais do céu.
— Fazia tempo que eu não via o mar. — ele disse, admirando a vista.
— É lindo.
— Como vocês mulheres dizem, este passeio é muito romântico.
— Desde quando entende de romance?
— Não entendo. — Marien riu. — Mas pelo que sei, nos romances, neste momento eu deveria beijá-la, aqui, na beira do mar e abaixo da lua, não é?
— Urs, você anda lendo romances?
— Leio alguns, claro. Os acho meio melosos, mas até que são agradáveis de vez em quando.
— Eu creio que você lê os livros para tirar frases ou situações para aplicar com suas mulheres.
— Funciona, sabia? — ele disse, divertindo-se, e Marien riu. — Posso aplicar esta com você?
— Por que vai querer ser romântico comigo?
— Talvez porque estamos em Santorini, um dos lugares mais românticos que dizem existir. — eles ouviram uma música suave que vinha de uma sacada. Os dois, sem jeito, se olharam. — Aceita dançar comigo?
Urs a envolveu pela cintura, puxando-a contra seu corpo e segurou uma de suas mãos. Ela sorriu, deixou que ele a conduzisse e dançaram suavemente. Estavam tão próximos, e aqueles lentos movimentos embriagantes começaram a amolecer suas pernas; seus perfumes inebriantes os amorteciam, seus corações começaram a sair do compasso e a linda música os embalava.
Começaram a se olhar nos olhos e beijaram-se suave e demoradamente. Sentindo, testando, envolvendo os sentidos. Doces e lentos beijos que queriam abrir as portas do desejo, incitar o pecado.
Marien perdia o rumo quando ele fazia aquilo; tocava-a de um jeito que somente ele sabia fazer. Sua língua e lábios eram tão desejáveis e perfeitos que deixavam seu corpo como uma tocha ardente. Quando se soltaram, Marien queria correr dali, mas ao mesmo tempo não queria, porque se desvencilhar de Urs era como cortar um braço fora, porque sentia um desejo imenso por ele, assim como ele por ela.
— Eu queria fazer amor com você agora, aqui nesta areia. — ele disse sedutoramente, sussurrando em seu ouvido com uma voz rouca e sensual, carregada de desejo.
— Aqui não é uma ilha deserta, então seríamos presos.
— Não pretendo passar a noite numa cela e, sim, numa cama, então acho que deveríamos encontrar uma.
— Você só teve permissão para o jantar.
— Vai me mandar embora?
— Vou.
Ele se afastou um pouco e a olhou seriamente. Queria dizer algo, mas não disse nada por um momento; ficou meio indignado e parou de embalá-la.
— Desculpe, eu acho que eu passei dos limites. — ele disse, soltando-a.
— Acho que sim.
— Vamos. Eu vou levá-la; eu estou no mesmo hotel que o seu, no quarto em frente. Amanhã de manhã eu volto para Londres.
— Está num quarto em frente ao meu? Como descobriu tudo isso?
— Sou bem persuasivo.
— Sei.
Foram calados para o hotel. Ele a levou até seu quarto e ela entrou; virou-se e olhou para ele, que ficara do lado de fora da porta em meio ao corredor.
— Boa noite, Urs.
— Boa noite, Marien.
Ela fechou a porta, foi até a varanda e enrolou-se na echarpe. Fechou os olhos, sentindo o vento no rosto.
Urs ficou um pouco na frente da porta dela com as mãos nos bolsos. Que tolice fizera.
Foi para seu quarto e se jogou na cama, olhando para o teto. Nem sabia o que estava fazendo, estava meio confuso. Como sempre, tinha sido impulsivo e simplesmente ido atrás dela, sem medir as consequências.
Marien também estava confusa, sua noite havia sido maravilhosa e de repente estava se sentindo mal, sentindo um vazio no peito. Não podia ficar com Urs novamente, mas ele estava ali, tinha ido por ela e não sabia se tinha feito certo de tê-lo mandado embora.
Por que estragar o resto da noite se até aquele momento havia sido tão bom, tão agradável, na verdade perfeito?
Ela entrou no quarto, tirou a echarpe, jogando-a na cama, e olhou agoniada ao redor. Fechou os olhos, tocou os lábios, lembrando-se do beijo na praia e seus lábios pareciam ainda quentes e com o sabor de Urs, e ela queria mais. No impulso, ela saiu e foi até o quarto de Urs e bateu na porta. Ele, sem imaginar que era ela, levantou contrariado da cama e a abriu rapidamente.
— Marien, o que faz aqui? — ele perguntou, estranhando seu comportamento.
Marien entrou e o olhou por alguns instantes.
— Eu acho um desperdício nós ficarmos no mesmo hotel, em quartos separados e sozinhos.
— Voltou por que se sentiu sozinha?
— Não. Eu voltei porque quero saber por que veio aqui.
— Você disse que não queria saber.
— Mas agora eu quero. Está quebrando nosso trato. Por quê?
Ele suspirou e fechou a porta.
— Quer a verdade?
— Por favor.
— Porque eu quero ficar com você esta noite. Eu senti saudades. Sua companhia me faz bem, eu gosto de conversar com você. Estou cansado de mulheres burras, que não tenho assunto para conversar; geralmente a conversa acaba no meio do jantar. Eu gosto do seu humor e eu sinto desejo por você, isso eu não posso evitar. Eu não me importo de ter viajado para outro país somente para ter passado estes momentos que acabamos de ter. Mas eu confesso que queria mais. Sempre foi assim, quando você chega a Londres, nós acabamos na cama. Nunca pedi nada e você também não. Mas eu não me importo porque isso basta, sem cobranças, sem brigas, somente momentos bons. Eu não devia ter vindo, mas não me arrependo. Eu só queria uns momentos com você. Vou embora amanhã e tudo volta a ser como sempre foi.
Marien, parada como uma estátua, olhava-o. Como se estivesse tentando voltar ao chão, respirou profundamente e falou calmamente.
Odiava quando ele fazia aquelas coisas, desestabilizando seu juízo.
— Bem... Eu não vou negar que a noite foi maravilhosa, que eu também desejei mais, por mais que tenha dito que não. Eu estou aqui, você está aqui e nós temos uma noite.
— Eu aceito só uma noite.
— É só o que tenho a lhe oferecer.
— Nossa vida sempre foi de uma noite, Marien. Nunca passou disso, mesmo quando éramos casados.
— Eu sei. Então que esta seja mais uma.
Urs se aproximou devagar, olhando-a intensamente, e envolveu seu rosto com as mãos.
— Pare de ser assim linda, boa de cama e inteligente, que eu paro de querer sair com você. — ele disse com um sorriso no canto da boca e ela riu.
— Você é um cafajeste.
— Devo ser.
Urs afundou seus lábios nos dela, beijando-a intensamente. Beijando-a com toda paixão que chegou a lhe arrancar um suspiro entre seus lábios. Ele desceu as mãos de seu rosto, passando para seus ombros, e enroscou os dedos pelas alças do seu vestido, descendo-as pelos ombros, e o tecido deslizou até o chão.
Ele se afastou e olhou para ela de cima abaixo, admirando seu corpo; tirou sua blusa e descartou no chão. Pegou-a no colo e foi para a cama.
Cobrindo seu corpo com o dele, beijou seus lábios intensamente, deixando que a paixão tomasse conta do momento. Novamente percorrendo seu corpo com as mãos, sentindo sua pele macia, excitando os sentidos, embriagando-se com as sensações deliciosas que um causava no outro, os cheiros, os toques cada vez mais intensos e ousados.
Urs beijou seu corpo, excitou-a com os dedos, fazendo Marien soltar gemidos extaziados; deu prazer com sua boca, sua língua e suas mãos, fazendo crescer uma explosão de prazer.
Quando ele entrou nela, fazendo que a respiração fosse cortada e o prazer atingisse outro nível, eles estavam totalmente perdidos no mundo, presos em seu prazer perfeito.
Estar dentro dela era como estar em casa, quente e intenso, acolhedor e seguro. Urs amava ter o poder de estar com Marien desse jeito, possuindo-a e marcando-a com o prazer, porque isso o deixava feliz. Feliz por fazê-la feliz.
Aquele era o lar que ambos adoravam curtir juntos.
— Adoro quando está dentro de mim... — Marien sussurrou, perdida de prazer.
— Adoro estar dentro de você... Toda minha. — ele sussurrou, impulsionando dentro dela outra vez. Tomando sua boca para engolir seus gemidos.
O clímax, para ambos, foi intenso e desnorteador.
Ali, eles se entregaram ao prazer noite adentro. Não queriam desperdiçar aquele momento por mais que tentassem. Entregaram-se a uma noite apaixonante. Como sempre.
Como poderiam interromper aquele encontro que se tornou tão fantástico? A surpresa de Urs, o jantar, a dança, o beijo, o lugar. Não haveria como terminar de forma diferente. Os dois na cama.
Aquela noite encantadora acabara e ambos dormiram saciados, abraçados, entre os lençóis.
Aquilo era uma raridade, pois geralmente Urs saia no meio da noite, voltando para sua casa ou para seu hotel, mas, desta vez, ele ficou até amanhecer. Raras exceções eram cometidas com Marien, mas com outras mulheres? Nunca.
*
Ao amanhecer, ele acordou, olhou no relógio e levantou-se. Olhou Marien dormindo, enquanto vestia-se e arrumou sua pequena maleta para voltar a Londres. Marien acordou e espreguiçou-se na cama.
— Você está ficando preguiçosa. — ele disse com um sorriso.
— São as férias, não sou acostumada a isso.
— Como seu empresário, eu aconselho a não se acostumar.
— Ah, não seja malvado!
— Está na hora de eu ir.
Urs sentou-se ao lado dela e puxou o lençol para cobri-la melhor.
— Já?
— Sim. Eu aluguei um helicóptero, pois demora muito para chegar a Atenas de barco para pegar o avião e eu estou atrasado.
— Isso foi culpa minha?
— Foi, mas não posso dizer que isso me deixou zangado, porque esta noite foi estupenda.
— Sim, foi.
— Aproveite o resto de sua folga. Adeus, minha querida, a vejo em Londres antes de embarcar para Ancona, está bem?
— Ok.
— Ah! Eu trouxe o livro que me pediu que encontrasse, está em cima da mesa; dê uma olhada e me devolva. Eu não posso deixá-la levar para Itália, pois ele deve estar de volta ao museu na segunda, mas acho que pode ajudar.
— Obrigada. — ele a beijou suavemente nos lábios. – Urs, isso tem que parar. Sabe... Eu e você.
Ele suspirou.
— Eu sei, Marien. É sempre assim quando você faz suas paradas de longas viagens, não é?
— Parece que sim. Mas desta vez ficamos juntos duas vezes em uma semana, isso quebra as regras.
— Nós já sobrevivemos a várias recaídas, sobreviveremos a esta também. Afinal, você vai sumir das minhas vistas por um bom tempo. Mas eu acho que não devemos mais ficar juntos, nem que seja só por sexo. Acho melhor eu ser somente seu empresário e pronto.
— Também acho.
— Vamos refazer nosso trato. Nada de cama.
— Este trato nunca funcionou.
— Eu sei, mas vamos refazer, quem sabe agora funciona. Acho que nós temos que nos empenhar mais.
— Tudo bem, eu aceito. Quando este trato começa?
— Agora mesmo.
Urs lhe deu um beijo no rosto e levantou da cama, pegou sua maleta de couro e foi em direção à porta.
Ao vê-lo pegar sua bagagem e ir até a porta, Marien sentou na cama subitamente e deixou que as palavras atropelassem seus pensamentos coerentes.
— Nós podemos começar na segunda?
— Como assim? — ele disse, parando na porta.
Sem se virar, ficou parado e suspirou, pois sabia o que viria e, ao mesmo tempo que queria que aquilo ocorresse, não queria.
— Fique aqui durante o fim de semana, você volta comigo no domingo e a gente recomeça o trato na segunda. Eu vou ficar um bom tempo longe, vai ser fácil cumprir o trato.
— Marien... Eu não sei se posso. — disse, virando-se e a olhando.
— Urs, você viajou da Inglaterra até aqui somente por uma noite, então já que está aqui, fique mais dois dias, eu prometo que vou cumprir o trato a partir de segunda. Mas fique só se quiser... Se realmente desejar ficar aqui comigo.
Urs soltou a maleta e voltou, sentando-se perto dela.
— Querida, não me tente. Eu quero ficar, mas eu não sei se vou conseguir cumprir o trato depois disso.
— Você conseguiu por cinco anos, claro que consegue. Afinal, o Don Juan de Londres nunca perde seu posto.
— Eu não sou o Don Juan de Londres!
— É! Vou sumir por um tempo e você vai continuar a namorar todas as mulheres disponíveis de Londres. Sempre foi assim. Eu já me conformei com isso, nunca espero nada de você.
— Eu não sou assim como diz, você sabe disso.
— Mas é este Urs que eu conheço. Pelo menos foi nisso que você se tornou, é essa imagem que todos têm de você. Então é melhor que continue, pois assim nós nunca vamos nos machucar de novo, porque manteremos nossos muros erguidos. Eu não quero perder esta harmonia que nós temos, que pode parecer um tanta bizarra para algumas pessoas, mas é perfeita para nós. É importante para mim, mas eu queria que ficasse aqui comigo.
Ele suspirou e acariciou seu rosto docemente.
— Tudo bem, eu fico. Mas depois disso, eu vou voltar a ser somente seu empresário e as nossas regras vão voltar a vigorar, mesmo que de vez em quando a gente dê um deslize. A partir de segunda, firmes no nosso trato? — ele disse, oferecendo a mão para que ela batesse; ela bateu e sorriu.
Marien levantou e foi até a porta do banheiro. Escorou-se no batente e o olhou por cima do ombro.
— Você não vem? — disse com um sorriso malicioso.
Ele sorriu e a seguiu. Tirou a roupa e entrou no chuveiro com ela; beijou-a, deixando que a água quente caísse sobre os dois. Urs pegou o sabonete e deslizava sobre o corpo dela, o que fazia com que suas mãos deslizassem com facilidade.
Marien acariciava seu corpo perfeitamente delineado e deliciava-se com seus toques, excitando-se. Ela virou-se e ele passou os dedos sobre uma tatuagem que ela tinha nas costas, próxima ao pescoço, “I Love you”, escrita em letra renascentista.
Ele beijou a tatuagem demoradamente e virou seu rosto para poder beijá-la nos lábios, deslizando sua mão pelo seu ventre para tocá-la em suas partes íntimas, e eles fizeram amor debaixo da água.
Eram sempre intensos um com o outro, entregavam-se plenamente sem nenhuma vergonha entre eles, fosse no lugar que fosse.
Quando saíram do chuveiro, Marien lentamente secou os cabelos dele. Aquilo parecia mais uma carícia que propriamente lhe secar. Urs a deixava fazer aquilo, precisava de algo tão terno. Na verdade, sentia falta disso e ele a olhou com um sorriso nos lábios.
— Nossa! Não fazia isso há muito tempo. — ele disse.
— O quê? Tomar banho? — ela disse, brincando, e ele riu, abraçando-a pela cintura. — Nunca toma banho com suas mulheres?
— Não. Nunca acordo com elas.
— Isso é verdade, a fama de amante o precede, mas hoje eu me senti uma exceção.
— Você sempre foi exceção.
— Estou lisonjeada. — disse, beijando-o, e ficaram ali, abraçados, trocando doces beijos.
— Tive uma ideia. — Urs pegou o telefone no criado-mudo e ligou para a recepção. — Por favor, seria possível me ajudar? Eu quero alugar um iate com piloto e um cozinheiro. Completo, eu quero passar o dia no mar... Pode contatá-lo, por favor? O valor não importa, mas quero que seja possível almoçar no barco, quero champanhes, frutas, uma refeição leve, e é para imediatamente... — ele aguardou a resposta e deu um beijo em Marien, que o olhava com um sorriso. — Obrigado, daqui a pouco estamos indo para lá.
Urs desligou e a abraçou.
— Nossa! Está animado.
— Não gostou da ideia?
— Adorei.
— Então vamos nos arrumar e aproveitar o dia.
Capítulo 4
Arrumaram tudo e foram até a marina, onde lhes mostraram alguns iates, e ele escolheu o que estava mais completo e já adaptado para o que queria. Subiram e foram ao alto-mar; pararam o iate onde podiam ver a bela Santorini. Ficaram confortavelmente sentados no sofá do convés, trajando roupas de banho, admirando a vista das construções azuis e brancas e o mar azul ao redor. Urs serviu a champanhe e sentou ao seu lado.
— Você fica linda de chapéu e esses óculos, parece uma madame.
— Eu, madame? — disse, rindo.
— Sim.
— Bem, me sinto uma hoje. Nossa, que vista maravilhosa! — exclamou, admirada.
— Quem, eu ou a cidade?
— A cidade.
— Ah, fiquei decepcionado.
— Você também, é lógico. — disse, beijando-o.
Urs levantou e a pegou no colo, foi até a beirada do iate e se jogou com ela gritando em seus braços. Afundaram na água e subiram. Urs ria dos gritos escandalosos de Marien.
— Urs, seu maluco! — ele a abraçou, rindo.
Mergulharam e beijaram-se debaixo d’água; podiam se ver claramente pela água límpida. Ficaram brincando na água por um tempo e depois voltaram para o barco para almoçar.
— Depois nós podemos ir para a ilha Anáfi, o que acha? Eu também sugiro uma daquelas praiazinhas desertas. — Urs disse maliciosamente.
— É? Para quê? — ela perguntou, rindo.
— Porque assim nós não seríamos presos.
— Isso está parecendo nossa lua de mel.
— Está! Está sendo um déjà vu interessante.
Ele a puxou para seu colo e ficaram por longos momentos trocando longos e deliciosos beijos, carícias delicadas e excitantes. Passaram o resto do dia passeando pelas ilhas, divertindo-se. Quando voltaram para Santorini, já era tarde da noite.
No domingo de manhã, Urs ainda dormia quando Marien levantou e ficou o olhando por algum tempo, admirando-o. Dormia lindamente, parecia tão tranquilo. Seria muito fácil se apaixonar por ele novamente; mudara muito desde o período de seu casamento. Mas sua vida de nômade não permitiria isso, pois passariam pelos mesmos problemas que tiveram anteriormente.
Ficaram casados por cinco anos, e pouco tempo tiveram para ser um casal de verdade. Talvez a idade não desse o amadurecimento necessário para sobreviver a um casamento naquele estilo. Tiveram muitos problemas.
Marien queria trabalhar com sua paixão, que era estudar e praticar suas pesquisas e suas descobertas. Ela trocara o casamento pelo trabalho e, por muitas outras razões, trancara no seu coração.
Urs também era formado em arqueologia. Eles haviam se conhecido na universidade, mas ele gostava mais dos trabalhos nos museus e não a pesquisa de campo. Era inteligentíssimo e muito sagaz, fizera fortuna com seu trabalho, além da enorme herança que recebera com o falecimento de seus pais.
Ambos perderam algumas coisas e ganharam outras.
E estavam ali, juntos, e se separariam na segunda-feira novamente, como sempre. E o único laço que sobraria, por regra, era o trabalho.
Passar estes dias juntos foi demasiado perigoso; estavam trazendo à tona coisas que deveriam esquecer, brincando com fogo, aproximando-se demais. Claramente fora outra recaída.
Eles tentavam seguir as regras que eles mesmos se impunham, mas de vez em quando davam seus deslizes.
Marien respirou fundo, afastando os pensamentos. Pediu café pelo telefone, vestiu um robe de seda e pegou o livro que Urs trouxera. Colocando-o na mesa, desenrolou-o do grosso pano de veludo vermelho e cuidadosamente virava suas páginas.
Quando o serviço de quarto chegou, ela beliscou alguns frios e pegou café.
Marien não ficava sem café, era viciada; se não bebesse uma xícara de manhã, seu cérebro não funcionava. Nunca tinha fome pela manhã, mas obrigava-se a comer algo salgado por causa de sua pressão, então, presunto e queijo eram as únicas coisas que comia.
Sentou-se à mesa, prestando atenção no livro; procurava algo sobre Ancona ou algum indício da igreja perdida. Leu por um tempo até que Urs acordou e espreguiçou-se.
— Bom dia, dorminhoco.
— Bom dia. Achou alguma coisa?
— Não muito. Venha, o café está quente, eu pedi outro bule.
Ele olhou para seu Rolex para ver que horas eram, levantou-se e ficou somente de cueca. Beijou-lhe o rosto e foi ao banheiro e, quando voltou, sentou-se à mesa e ela lhe deu uma xícara de café.
— Bebendo café em cima de um livro pré-histórico. Quer me matar do coração?
— Sou cuidadosa, Ursinho. Não se preocupe, não vai acontecer nada com seu livro.
— Não sei como uma inglesa pode beber tanto café.
— Às vezes acho que sou tudo, menos inglesa.
— Concordo. O que achou?
— Aqui há indícios da existência desta igreja, pelo menos sua estrutura, desde a Baixa Idade Média, e que supostamente haveria desaparecido, destruída por um terremoto no início do século XIV, mas tem algo me deixando intrigada. Por que tanto interesse em fazer um estudo deste tamanho numa ruína destas? — ele ergueu as sobrancelhas e bebeu o café sem responder. — Bem, mas o fato é que esta igreja existiu. Segundo alguns relatos da lenda, ali eram realizados casamentos, batizados, missas, e que uma maldição teria sido lançada por uma bruxa. Depois que a bruxa amaldiçoou a igreja, todas as pessoas que se casavam nela, ungiam seus filhos com o batismo, comiam da hóstia ou bebiam o vinho, morriam. Foi assim que a população de Ancona foi praticamente desaparecendo, morria um a um, ou aos tantos de uma vez.
— Ancona pode ter sido atingida por uma peste, que faria várias pessoas morrerem ao mesmo tempo, ou foi atacada por inimigos ou bárbaros, afinal, muitas vilas eram inteiramente destruídas assim. Por que essa tal bruxa ou sei lá o quê teria amaldiçoado a igreja?
— Sobre isso, já vi mais de uma alternativa. Uma é que ela foi impedida de se casar, a outra foi que seu marido se matou e o padre não lhe deu a extrema unção.
— Hum... E isso quer dizer que ele não pode ser enterrado com uma cruz em terra sacra e sua cabeça teve que ser decepada e, com isso, seria um excluído do paraíso.
— Sim, as cabeças dos suicidas eram cortadas para que eles chegassem ao outro lado sem ela e não conseguissem enxergar o caminho para o reino de Deus, indo para o inferno.
— Eu vou me lembrar disso quando pensar em me suicidar. — Marien riu. — O que mais?
— Nada mais, só que a igreja desapareceu, assim como todo o vilarejo que ficava fora da cidade atual. Então Ancona recomeçou tempo depois por povos que vinham de outros lugares. Interessante a contradição. Se ela era uma bruxa, era uma pagã. Então por que iria querer se casar em uma igreja católica ou querer um enterro cristão para seu marido?
— Realmente as informações são contraditórias.
— Talvez ela foi presa pela igreja.
— Muito provável.
— Dizem que os templários passaram por ali.
— Sim, os cruzados sempre registravam suas passagens em todos os lugares por onde andavam, mas não há muitas evidências escritas sobre Ancona. O único pergaminho registrado por um cruzado que citou Ancona vagamente, ao que me recordo, foi encontrado na França no século XIX numa ruína, que era um túmulo. Mas um cruzado nunca andava sozinho, então deveria haver mais relatos sobre isso, se foi algo importante.
— Eu já vi este pergaminho no museu em Paris. Deve ser o mesmo ao que se refere.
— Eu teria que ver este pergaminho ou uma cópia dele.
— Vou a Paris semana que vem, posso tentar conseguir isso para você. Mais alguma coisa?
— Não.
— Então largue este belíssimo livro e venha aqui. — ele disse, pegando-a pela mão, fazendo-a levantar, e a trouxe para seu colo. — Nosso tempo está acabando, não quero mais saber de templários ou bruxas, quero aproveitar e ficar com você. — Marien sorriu. — Onde está a corrente que eu lhe dei? Por que não a está usando?
— Urs, eu estou na Grécia e não numa catacumba amaldiçoada.
— Por isso que eu estou aqui. Na realidade, aquele amuleto era para você conseguir ficar longe de mim. Viu no que deu?
Marien riu com gosto.
— Se você tivesse me avisado para o que ele servia, eu o teria usado e evitado este fim de semana horroroso.
— Verdade. Está sendo um desastre mesmo, eu até sinto pena de você.
— O que vamos fazer hoje? À tarde teremos que ir embora.
— Depois eu não sei, mas agora eu quero fazer isso... — Urs a segurou pela cintura, fazendo-a virar-se, sentando-a encaixada de frente para ele, escarranchada sobre suas coxas. — Se hoje vai ser o último dia que você vai ser minha, então eu não quero sair da cama. — Marien fechou os olhos e seu corpo estremeceu quando sentiu Urs lhe beijar carinhosamente e abrir o laço de seu robe, passando as mãos por debaixo dele, passando por sua cintura e deslizando suavemente pelas costas, puxando-a para que colasse seus seios nus em seu peito e com isso aprofundou o beijo, arrancando um suspiro de prazer de ambos.
— Você é deliciosa, Marien, eu adoro tocar você.
— E eu adoro tocar você, Urs.
Urs deslizou os lábios pelo seu pescoço e Marien gemeu e se contorceu quando ele tomou um de seus seios na boca, sugando-o com ferocidade, despertando todo seu corpo para a luxúria e convidando-a para o pecado. Marien se encaixou nele, acomodando seu membro pulsante dentro dela; entregou-se a ele plenamente e os dois fizeram amor na cadeira, somente caindo na cama depois, e continuando a se amarem.
Ficaram ali, jogados na cama, abraçados por um longo tempo, descansando da longa maratona de sexo quente, curtindo pequenos carinhos.
— Marien, eu nunca lhe disse.
— O quê?
— Eu sinto muito.
— Pelo quê?
— Por tê-la traído.
Marien ficou calada um pouco, não esperava que ele dissesse aquilo, sentiu um baque em seu coração. Não sabia o que responder.
— Eu não culpo você, nenhum homem aguentaria aquilo.
— Eu teria aguentado, mas eu perdi a cabeça e queria puni-la, eu acho.
— Eu fui má com você, eu sei.
— Sim, machucou.
— Eu também estava machucada. Arrepende-se?
— Muito. Aquilo tudo estava tão errado.
— Eu sei, mas nós não podemos mudar o passado, Urs, ele já se foi.
— Só queria que soubesse.
Ela o olhou, analisando-o.
— Obrigada por me dizer, eu também sinto muito. Por tudo.
— Ainda bem que você não me ouviu quando eu pedi que tatuasse meu nome nas suas costas. “Eu te amo” vale para qualquer um.
Marien sorriu meio sem jeito.
— Não foi esta a intenção de eu ter tatuado isso, você sabe o significado dela e para quem eu tatuei.
— É, eu sei. Você sempre adorou dormir de conchinha, assim quando eu acordasse, saberia que você me amava mesmo estando de costas para mim.
— Éramos dois tolos, não é?
— Ainda somos, querida. E pelo jeito vamos continuar sendo.
— Então vamos aproveitar isso que temos agora e o passado, deixemos para trás.
— Sim, eu aceito.
Beijaram-se longamente e tentaram aproveitar seus últimos momentos juntos.
Passearam por Santorini de motocicleta Vespa alugada; Urs dirigia e Marien ia à sua garupa. Almoçaram num delicioso restaurante com vista para o mar e, à tarde, pegaram o barco para Atenas, onde ainda puderam desfrutar de maravilhosas paisagens juntos.
Chegando a Atenas, pegaram o avião para Londres e foram de táxi até a casa de Marien. Urs entrou, ajudando-a com as malas, enquanto o taxista o esperava. Ele largou as malas no chão e a olhou sem jeito.
O momento de se separarem havia chegado, mas não era bem-vindo.
— Bem... Eu acho que está na hora de eu ir, venho buscá-la para levá-la ao aeroporto amanhã.
Ela assentiu.
— Foi maravilhoso, Urs.
— Para mim também.
Ela chegou perto dele e lhe deu um beijo suave nos lábios. Queria dizer algo, mas não sabia o que dizer, nem ele.
— Mande-me embora, por favor, senão eu não conseguirei sair daqui.
Urs sussurrou com a testa encostada na dela e com os olhos fechados. Queria que ela pedisse que ele ficasse. Seu coração estava balançado com aquela súbita proximidade. Marien demorou em responder, nem ela queria dizer aquilo. Engoliu em seco, respirou profundamente e o olhou.
— Nosso tempo acabou, Urs. Você precisa ir.
Ele assentiu levemente. Forçando um sorriso, beijou-a carinhosamente, lhe acariciando o rosto; virou as costas e foi embora. Ela respirou profundamente, fechou os olhos e esfregou o rosto, pegou suas coisas e foi para o quarto.
Tomou um banho e terminou de arrumar sua bagagem pessoal; viu que Sarah havia deixado as bagagens dos equipamentos enfileiradas na sala.
Marien deitou-se, olhando para o teto; seus pensamentos e seu corpo estavam carregados de Urs, precisava afastar tudo, pois no dia seguinte começaria sua nova aventura. Tudo voltaria a ser como antes.
Enquanto navegava em seus pensamentos, pegou o celular e ligou para sua assistente.
— Oi, chefinha! — ela logo respondeu.
— Oi, Sarah! Eu não abri as maletas dos equipamentos, você arrumou tudo?
— Sim, como sempre. Está tudo em ordem, pode confiar.
— Está bem. Se Urs ou eu precisarmos de você, nós ligaremos. Assim que conseguir levá-la, eu a aviso.
— Tudo bem, eu estarei esperando. Boa viagem.
— Obrigada, até mais.
Marien desligou e ligou para Lizza.
— Marien, ai, amiga me conte, como foi lá? — disse, ansiosa.
— Foi ótimo, já estou na cama. Só estou ligando para dizer um adeus, amanhã estarei indo para Ancona.
— Achou um deus grego?
Marien riu.
— Achei, sim, não se preocupe.
— Hum... Conte-me este babado. Como ele é? Qual o nome dele, ou nem perguntou? Ele era digno de uma estátua?
Marien mordeu o lábio e hesitou em dizer.
— Chama-se Urs.
— O quê? Como assim? O Urs? Nosso Urs?
— Sim. — Marien ouviu um barulho pelo telefone. — O que foi isso?
— Caí da cama! – Lizza gritou e Marien riu. — Ele foi com você? — ela perguntou, esbaforida.
— Não, mas apareceu lá sem avisar e passou o fim de semana comigo.
— Ai, minha mãe, minha mãe! E agora vão fazer o quê?
— Nada. Tudo volta a ser como era antes, como sempre.
— Marien, você é uma desajustada, eu deveria interná-la! Nem vou falar mais nada.
— Obrigada, amiga, você ajuda muito. Adoro seu apoio moral! — disse, rindo.
— Disponha.
— Lizza?
— Diga.
— Ele me disse que sentia muito.
— Pelo quê?
— Por ter me traído. Eu não esperava que ele dissesse isso.
— Isso é grave. Marien, faça de conta que ele não disse nada. Homens nunca se desculpam por uma coisa destas. Eles nem sabem o significado da palavra “desculpa”, finja que é surda, pelo amor de Deus! Você não quer passar por tudo aquilo de novo, não é? Você só vai sofrer, então deixe as coisas como estão. Você sabe que isso é uma recaída, vai passar, como das outras vezes. Foi a mesma coisa quando vocês tiveram que ficar uma semana juntos lá em Paris por causa daqueles pratos quebrados. Ai, meu Deus! Onde Urs estava com a cabeça de ir para a Grécia, ainda mais onde vocês passaram a lua de mel? Não sei qual de vocês dois é mais louco.
— Talvez os dois.
— Querida, fique longe dele, está bem?
— Vou fazer isso. Boa noite! Eu mando notícias, cuide-se, beijos.
— Beijos, boa aventura, Srta. Indiana Jones, e se cuide naqueles lugares esquisitos que você se enfia.
— Pode deixar.
— E faça um favor para si mesma. Conheça um belo italiano e faça sexo com ele; nem pergunte nome, telefone ou endereço, capicce?
Marien riu.
— Você não tem jeito, adeus.
Marien desligou o telefone, ficou ali, na cama, olhando para o teto. As memórias do fim de semana não sumiam de sua cabeça, mas Lizza estava certa. Seria um grande erro trazer Urs de volta à sua vida de forma tão intensa.
Era melhor deixar tudo como estava.
*
— Lizza, por que você implica tanto com Urs e Marien? Deixe os dois em paz.
— Carlos, eu só estou tentando evitar que ela sofra novamente.
— Eles se amam, Lizza, isso é mais claro do que água. Alguém deveria dizer isso a eles.
— Eu sei, mas eles não deram certo na primeira vez, por que dariam agora?
— As pessoas mudam. Quem sabe agora eles poderiam se entender.
— Você voltaria a ficar com sua ex-mulher?
— Não.
— Nem eu com meu ex-marido. Então o que fazem é errado.
— Acontece que você odeia seu ex-marido, eu odeio minha ex-mulher, mas eles não se odeiam; muito pelo contrário. Também não entendo como eles vivem nesta paz, mas está na cara que se amam.
— Não sei, prefiro que ela se apaixone por outro e fique longe de Urs.
— Só se acontecer um milagre. E chega de falar deles, venha aqui. — disse, puxando-a. — Não se machucou de ter caído da cama?
— É... Machucou bem aqui no joelho. — disse, fazendo beicinho.
— Oh, que pecado, deixe-me ver isso. — Carlos beijou seu joelho e de supetão a agarrou e beijou, empurrando-a contra o travesseiro e ambos riram, perdendo-se entre os lençóis.
Capítulo 5
No dia seguinte, Urs buscou Marien e a levou ao aeroporto.
— Me informe de tudo e se cuide por lá, por favor. — Urs disse.
— Urs, eu estarei bem, não se preocupe.
— Eu espero que consiga levar Sarah antes do que imagina. Este é o telefone de Davide Mollinaro, ele estará a esperando no aeroporto. Se vocês se desencontrarem, ligue para ele.
— Está bem.
— É melhor ir. Boa viagem!
— Obrigada. Até a volta.
— Até! Se aquele padre fizer alguma coisa, me avise que vou lá e arranco a batina dele.
Marien riu.
— Cuidado, ele pode excomungar você.
— Não ligo para isso. — disse, sorrindo lindamente.
Marien o beijou no rosto e foi para o portão de embarque. Ela se virou e ele a olhava intensamente, com as duas mãos nos bolsos. Marien colocou a mão no decote de sua blusa e puxou a corrente que ele lhe dera, mostrando-a e sorrindo.
Ele sorriu lindamente e acenou um adeus com a mão.
Quando ela desapareceu de suas vistas, Urs respirou profundamente e voltou ao trabalho.
Marien chegou ao portão de desembarque em Ancona e trazia seu carro de bagagem cheio de malas e com as caixas especiais que trazia seus equipamentos. Sempre pagava excesso de bagagem, era de praxe. Olhou para as placas e viu seu nome; olhou para o rapaz alto e bonito que a segurava e foi em direção a ele.
— Boa tarde, senhorita Stewart. — ele disse, sorridente.
— Boa tarde, você é Davide?
— Sim, senhorita, muito prazer.
— Igualmente, Davide. — disse, apertando sua mão.
— Deixe-me ajudá-la. — ele pegou o carrinho e o foi conduzindo para fora, em direção ao estacionamento. — Fez boa viagem?
— Sim.
— Agora vamos de carro até a antiga vila de Ancona, onde fica seu chalé. Está tudo preparado para sua chegada, mas começaremos sua visita no local da escavação somente amanhã. Hoje o padre Caseneuve disse que a senhorita deve descansar da viagem e adaptar-se à sua casa. Espero que esteja tudo do seu agrado.
Davide colocou sua bagagem numa caminhonete Land Rover Desbrave, cabine dupla preta e começaram a seguir caminho.
— Você é quem vai me mostrar as primeiras descobertas?
— Sim, o padre está no Vaticano, infelizmente teve que ir para lá novamente, mas voltará logo, espero que eu possa ajudá-la em tudo.
— Você também é arqueólogo?
— Não, mas estudei tudo que o padre me ensinou e me mandou ler, falo seis línguas e estou estudando as antigas. Sei bastante sobre arqueologia, estou com ele há bastante tempo, ele me força a estudar, foi este o trato.
— Que trato?
— Ele me tirou de um monastério quando era jovem, eu trabalhava lá de cozinheiro para os padres. Ele me fez a oferta, que se eu estudasse tudo que ele mandasse e fosse seu braço direito, ele me levaria com ele. E eu aceitei.
Marien sorriu, espantada.
— Gosta do que faz?
— Adoro! Ele salvou minha vida, sou muito grato a ele.
— Então, você não é padre?
— Não. Os padres queriam que eu me tornasse um, mas eu nunca quis, não tenho vocação para o celibato. — Marien riu.
— E todos os padres têm? — ela perguntou irônica e Davide riu.
— Se eu responder isso, eu serei enforcado.
— Pode dizer, eu não vou contar seu segredo, eu não acredito nesta tal fidelidade dos padres aos votos da igreja, Davide.
— Alguns cometem erros, mas padre Sebastien é exceção.
— É mesmo? — ela perguntou, descrente.
— É sim, o conheço há muitos anos e nunca o vi dar nenhuma escapada. — Marien riu. — Não sou padre, mas eu e toda nossa equipe somos obrigados a fazer uma “espécie” de voto de silêncio. — disse, sorrindo.
— Como assim?
— Bem, temos mais sigilo que os arqueólogos, nossa obrigação com a igreja nos força. Há algumas informações que devem ser bem guardadas, se é que me entende. E, como os padres, temos a confidencialidade.
— Tudo bem, Davide, eu já entendi.
— Eu li seu livro e gostei muito. Suas pesquisas são magníficas e sua maneira de ver a arqueologia é inspiradora.
— Obrigada.
— Padre Sebastien é seu fã, lê tudo sobre a senhorita, por isso a solicitou neste trabalho, fato na verdade que me espantou muito.
— Por quê?
— Senhorita, o Vaticano não permite estranhos na maioria das pesquisas sobre a igreja. Mas muitos arqueólogos já o fizeram por serem autores de suas descobertas, não haveria como impedir, o que não é o caso aqui, pois é um assunto meio delicado, não entendi porque a chamaram. A descoberta foi reportada diretamente ao Vaticano, e eles não precisariam tê-la solicitado se possuem uma equipe para isso. É o que acontece com a maioria das coisas relacionadas à igreja.
— Eu sei, o que é da igreja fica na igreja... Nem imagino o que deve haver escondido lá. — disse em um sussurro irônico.
— Desculpe, não entendi o que disse.
— Nada, só disse que entendi.
— Sinto muito que não pôde trazer sua equipe ou pelo menos sua assistente para este trabalho.
— Isso vai ter que mudar, eu quero minha assistente aqui.
— Pode tentar, mas não sei se vai conseguir, mas vou lhe ajudar em tudo que precisar.
— Hum...
— Desculpe, senhorita Stewart. Eu acho que falo demais.
— Para quem fez “voto de silêncio”, você é bem falante.
Davide soltou uma gargalhada.
— Sempre me dizem isso, desculpe.
— Me faz um favor? Chame-me de Marien, eu não gosto de ser chamada de senhorita, senhora, estas coisas.
— Tudo bem. De uma inglesa, isso é difícil de ouvir.
— É! Sempre dizem que não devo ser inglesa. Eu devo ter nascido no país errado. O que é aquilo? — perguntou, espantada, avistando um grupo em frente a uma fogueira no campo.
— Estamos nos aproximando do período das festas do solstício, eles estão fazendo um ritual do fogo para abençoar a colheita vindoura.
— Davide, isto não estava extinto por aqui? O que é, um grupo celta atual? — perguntou, espantada.
— Estava, mas parece que alguns voltaram a realizar rituais pagãos por aqui. Desde que as ruínas foram descobertas, algumas coisas estranhas andam acontecendo.
— Tipo o quê?
— Alguns rituais, alguns grupos postando coisas na internet. Eles acreditam que se a igreja foi descoberta, algo se revelará e estão praticando as antigas crenças. É como um sinal.
— Interessante.
— São inofensivos, nada fazem demais, já foram averiguados. A igreja não pode impedi-los de fazer isso.
Marien olhou para Davide com espanto.
— Nem deveria. A igreja não manda nas pessoas, Davide. Cada um faz o que quer, não estamos mais na idade média. O Vaticano não tem mais o poder que tinha, cada um faz o que quer e escolhe o caminho que quer para sua fé. Todo mundo tem o direito de escolher sua religião sem ter que ser averiguados. Este sempre deveria ter sido o correto, mas não foi assim que aconteceu. Os celtas deveriam ter tido o direito de escolher se queriam continuar com suas crenças ao invés de terem sido esmagados pela igreja, tratados como criminosos, assim como todas as outras religiões massacradas.
— Você não gosta muito da igreja, não é?
— Na verdade, eu não sou muito a favor de nenhuma instituição deste tipo. A maioria são fachadas para ganhar dinheiro e impor poder com finalidade política. Mas eu gostaria que fosse diferente, que as pessoas fossem bem orientadas na religião que escolhessem, sendo cristã ou não, mas não é bem assim que ocorre.
— Sei do que está falando.
— Não tenho nada contra a fé das pessoas, cada um escolhe o que quer seguir, no que quer crer. O que me aborrece, são as mentiras e as manias de colocarem coisas nas cabeças das pessoas ou impor seu poder sobre elas, como faziam os antigos e muitos o fazem até hoje, através de opressão e mentiras. E, pior, sempre jogando uns contra os outros. Ao invés da união, pregam a separação e preconceito.
— Vejo paixão nas suas palavras. Nunca expressa suas opiniões pessoais em suas pesquisas?
— Nunca. Um arqueólogo deve ser imparcial, não pode colocar opiniões sobre o que estuda, de forma que possa influenciar. É como um antropólogo, analisa de fora, não se envolve. Nada de emoções. Nós temos que ser científicos, concretos e corretos.
— Sim, o padre me ensinou isso. A imparcialidade é importante.
— A emoção corrompida ou perdida abala o senso de análise. Você perde o rumo. Se você fizer um texto explicativo sobre como eram os rituais aos deuses Maias e expressar suas emoções sobre isso, você começaria a dizer que isso era absurdo, repugnante ao senso humano. Nem conseguiria ao menos relatar os motivos pelos quais eles arrancavam o coração e cortavam cerca de cem cabeças de escravos num só dia e jogavam seus corpos escada abaixo do templo. Hoje, para nós, isso é uma aberração, mas para eles, naquela época, era normal; viam sentido neste tipo de ritual, pois adoravam os deuses e os glorificavam. Tenho minhas opiniões e as pronuncio, mas quando se trata de redigir o trabalho de forma acadêmica e profissional, fico neutra, mesmo que não goste.
— Muitos não fazem isso hoje em dia? Quer dizer, impor a fé?
Marien respirou fundo.
— Fazem, e aos montes, mas hoje em dia é diferente. As pessoas têm informações, são ignorantes porque querem e não por falta de liberdade ou poder de buscar o que seria melhor. Hoje há internet, livros, revistas, a liberdade de conhecer as religiões e escolher a que mais te agrada. Mas muitos têm tudo isso e continuam cegos, aceitando falácias de alguns charlatões. Como eu disse, cada um segue o que lhe convém. Seguem rituais que convêm ao seu senso. O que acham que estão felizes.
— Você tem algum ritual? — ele perguntou, brincando.
Marien suspirou de forma pícara.
— Tenho. Tomar café o dia todo e dormir com meu ex-marido. — respondeu baixinho.
Davide riu, pois escutou a frase inteira.
— Acho que não devo perguntar sobre isso.
— Não.
Ele parou o carro na frente de um lindíssimo chalé. Marien desceu, colocou as mãos na cintura e olhou ao redor, analisando tudo.
— Uau, isso é lindo. É meio isolado, mas lindo. — ela disse, extasiada.
— Sim, e é muito confortável. O senhor Barker pediu que tivesse uma casa ao invés de hotel, e uma pessoa que cuidasse da casa. Foi o que encontramos de mais confortável. Achei que lhe agradaria.
— Parece bom.
Marien e Davide entraram na casa e era muito bonita, bem decorada e aconchegante. Ela olhava tudo com atenção e admiração.
— A empregada virá a partir de amanhã, então me diga o que quer jantar que providenciarei ou, se quiser, posso levá-la a um restaurante na cidade.
— Não. Eu prefiro ficar aqui hoje, estou cansada da viagem e quero arrumar minha bagagem, me instalar.
— Tudo bem, eu vou providenciar. Espero que fique à vontade. Se faltar alguma coisa, é só me dizer que providencio. Está tudo limpo, há toalhas nos banheiros e comida nas prateleiras e geladeira na cozinha, se deseja cozinhar. Este é o controle da calefação; há lenha aqui se quiser acender a lareira e mais lenha no porão. O telefone está funcionando. Do lado da casa, há uma garagem com um carro que ficará com você para ir e vir quando quiser; as chaves dele estão na mesa perto da porta. Coloquei internet, impressora, enfim, acho que tudo que precisa. Tem seu computador ou preciso providenciar um?
— Tenho o meu notebook, obrigada.
— Ok. Os materiais de pesquisa estão no acampamento e no chalé do padre Sebastien. Aqui é calmo, pode ficar tranquila. Mais alguma coisa?
— Acho que não, parece tudo em ordem. Você foi muito atencioso, Davide, obrigada. Isso é muito mais do que esperei.
— O padre disse que era para arrumar o melhor.
— Bem, diga o meu obrigada a ele também.
— Tudo bem, eu vou à cidade. O que gostaria de jantar?
— Hum... — pensou um pouco. — Uma massa italiana seria bom e um vinho.
— Há algumas garrafas de vinho na cozinha, e há um restaurante na cidade que faz um esplêndido ravióli ao molho de cogumelos e entregam em casa. O que acha?
— Parece perfeito. — disse, sorrindo.
— Eu providenciarei. Agora vou indo, fique à vontade. Se precisar, me ligue a qualquer hora. Estarei aqui amanhã às oito para irmos à escavação. Boa noite.
— Boa noite.
Davide saiu e ela respirou profundamente, olhando ao redor com atenção. Pegou suas malas e levou ao quarto. Tudo era limpo, cheiroso, até diferente de vários lugares em que já estivera. Tudo era melhor do que ela imaginara. Olhou o banheiro e havia uma banheira, o que para ela era imprescindível. Todos pareciam estar fazendo de tudo para cativá-la. Bem, talvez aquilo não fosse ruim no final.
Foi até a cozinha e olhou os armários e geladeira e realmente estavam abastados. Pegou um cacho de uva na geladeira e foi para fora. Deu uma olhada na garagem e havia outra caminhonete Land Rover Desbrave, cabine dupla, preta, estacionada e havia algumas ferramentas penduradas no canto da garagem.
Havia um belíssimo jardim com flores e plantas; uma mesa de ferro enorme com cadeiras combinando, toda torneada em estilo barroco, com um imenso sombreiro sobre ela. Marien arqueou as sobrancelhas vendo aquilo; era lindo.
Mais abaixo, havia um pequeno lago com um casal de patos que elegantemente passeavam sobre ele, um trapiche e um barco pequeno a motor. Tudo era lindo e charmoso.
Ouviu o som do mar e virou-se. Foi para o outro lado da casa e deu-se com um imenso penhasco com vista para o mar.
Marien ficou impressionada pela paisagem; era simplesmente magnífica. Sorriu e sentiu-se bem ali; parecia que tudo ficaria bem nesta sua temporada. Voltou para a casa e desfez as malas, colocando tudo no guarda-roupa e na cômoda.
Deixou a banheira encher, enquanto vasculhava à procura de um vinho. Pegou uma garrafa e uma taça e colocou um pouco, pegou o celular e voltou ao banheiro. Tirou a roupa e entrou na banheira e ficou ali, pensativa e relaxada.
Sempre acreditara que fazer um vínculo harmonioso com o ambiente que estaria hospedada a ajudaria a se sentir bem fora de casa, pois aquela ali seria sua casa por longas semanas.
Esteve relaxada até que seu celular tocou, tirando-a de seu descanso. Ela o pegou e o colocou no ouvido.
— Alô?
— Boa noite, senhorita Stewart.
— Padre Sebastien? — disse, espantada.
— Sim, estou ligando para ver se está tudo de seu agrado.
— Está ótimo, já estou acomodada e o chalé é muito agradável. Obrigada pela atenção.
— Que bom. Se precisar de algo, ligue para mim ou para Davide, estarei aí o quanto antes. Sabe como é; isso veio em uma hora que estava meio ocupado, tenho que terminar algumas coisas antes de encontrá-la sem mais estorvos. Davide vai lhe passar tudo e qualquer dúvida pode me ligar. Eu a verei em alguns dias.
— Tudo bem, eu me viro aqui, obrigada.
— Então, boa noite.
— Boa noite.
Ela desligou o celular e o soltou no chão, como era acostumada, e bebeu mais um gole de vinho. Fechou os olhos e ficou mais um tempo na banheira até que ouviu uma batida na porta e assustou-se. Saiu da água, colocou o robe e foi até a porta; era o entregador da comida. Preparou seu prato, olhou para a mesa e não quis sentar-se ali pois parecia formal demais para quem estava sozinha, então pegou o prato e a taça de vinho e foi para a sala, acendeu a lareira, sentou-se no sofá e começou a comer. Seu celular tocou novamente, era Urs.
— Oi, querido! — ela atendeu, sorrindo.
— Oi, chegou bem?
— Sim. Está tudo bem e estou jantando.
— Sei, e eu aposto que algo com massa.
— Sim. — disse, rindo.
— E está tomando uma taça de vinho.
— Sim.
— Como pensei e também aposto que está no sofá com os pés para cima e com o prato na mão.
— Você não está do lado de fora do chalé me espiando pela janela, está?
Urs riu.
— Não, querida, estou no museu, na minha cadeira, cansado e com fome. Agora que vou sair daqui e ir para casa.
— Que pena... Este ravióli ao molho de cogumelos está divino e o vinho, humm...
Urs soltou uma gargalhada.
— Você é muito má.
— Se quiser, venha aqui; ainda tem ravióli e vinho.
— Marien, não me tente.
— Estou brincando, vá para casa e jante uma comida boa para variar.
— Eu vou fazer isso, só queria saber se tinha chegado bem.
— Sim, não se preocupe. O lugar é bem aconchegante, aliás, é divino, estou bem.
— Que bom, se precisar de qualquer coisa, me ligue.
— Ok.
— Vou desligar, boa noite.
— Boa noite.
Marien desligou, continuou comendo e ligou a TV. Depois de ver mais algumas coisas na casa, foi deitar-se.
Capítulo 6
Ao amanhecer, Marien levantou, abriu as cortinas e viu a paisagem de seu quarto, que dava para o penhasco e avistava o mar. Sorriu e foi à cozinha fazer o café. Arrumava a cafeteira quando foi surpreendida.
— Bom dia! — veio a voz atrás dela.
Ela levou um susto e virou-se, deparando-se com uma mulher de mais idade que a olhava atentamente.
— Ai, meu Deus! Que susto!
— Desculpe, não quis assustá-la. Sou Gina, a empregada.
— Olá, sou Marien.
— Pode deixar que eu preparo seu café, só me diga o que gosta.
— Eu gosto de café com leite e frios. Eu tenho pressão baixa, então preciso de sal pela manhã.
— Tudo bem, vou preparar.
Marien foi trocar-se; vestiu uma calça cargo, uma bota, uma camisete e uma blusa de lã. Pegou seu cinturão com seus principais materiais de trabalho, uma mochila, seu notebook e voltou para a cozinha. Gina preparara uma bela mesa de café da manhã, com coisas até que ela nem comia, mas Marien sorriu, sentou-se e comeu o que lhe convinha.
— Bon giorno! — Davide disse, sorridente, batendo na porta da cozinha.
— Bon giorno, Davide! Já tomou café?
— Sim, senhorita, quer dizer, sim, Marien.
— Vamos? Eu estou curiosa para ver essa tal descoberta.
— Hoje irá comigo para conhecer o caminho, depois poderá usar o carro.
— Tudo bem.
Foram até as escavações com o carro de Davide e Marien percebeu que era perto. Marien prestava atenção nos caminhos que Davide passava, para gravar a rota.
Chegando lá, pararam o carro meio distante, o restante do caminho seguiram a pé. Logo viu a movimentação de pessoas trabalhando com uma mini escavadeira e alguns trabalhando com a retirada de pedras e terra um pouco distante do buraco no chão. Já do outro lado, havia homens agachados em valas, explorando com pincéis em buscas de pequenos indícios.
— Temos alguns homens trabalhando aqui que estão fazendo o trabalho pesado de retirar a terra. Não conseguimos trazer uma escavadeira grande, já deu um belo trabalho para trazer esta pequena aqui, mas precisamos dela para abrir caminho para passarmos. Conseguimos abrir um pouco mais a entrada, mas é perigoso, porque não sabemos a estabilidade deste chão. Temos que manter uma distância.
— Bem, se uma parte do chão cedeu, é provável que caia mais, muito peso pode colocar o resto abaixo.
— Sim, mas precisamos dela, pelo menos para o mais grosso, o resto os homens seguem manualmente. Esta parte aqui nós pensamos ser a parte baixa, a entrada, então estamos colocando ela aqui, mas lá em cima é inviável. Embaixo teremos, eu, você, Celo, Vanna, e mais alguns homens que trabalharão na exploração interna. Quando precisarmos, os homens de cima vêm para baixo. E o padre Sebastien, é claro, assim que ele voltar.
— Ok. — Marien olhou ao redor e a imensa cratera no chão. — Davide, como uma igreja pode ser soterrada desse jeito?
— Pensamos que o mais certo teria sido um terremoto que abalou a montanha e trouxe o topo abaixo, cobrindo tudo por aqui. Segundo o geólogo, esta encosta era bem mais alta e sempre foi alvo de abalos sísmicos.
— Ok. Bem, então vamos descer?
Colocaram o equipamento usado para escalar montanhas atrelando às ferragens e roldanas para descer no buraco. Alguns homens os ajudaram; já haviam montado uma estrutura para que a terra de cima não desmoronasse pelo buraco, para que os que estavam embaixo não sofressem danos.
Primeiro desceu Davide e depois Marien. Foram iluminando o local com a lanterna ao descer. Marien prestava atenção em tudo por onde passava até chegar ao chão. Davide lhe ajudou a tirar os ganchos e o cinturão. Ela olhava boquiaberta ao redor; era bem maior do que imaginara. Estava fascinada.
— Logo colocaremos o elevador aqui e não precisaremos mais descer pela corda, iremos abrir mais a entrada para poder colocá-lo.
— Isso é bom, eu não gosto muito de ficar pendurada em cordas.
— Nem eu. — Davide disse, sorrindo. — Este é Celo, ele cuida da parte de análise e laboratório; esta é Vanna, é perita em trabalhos minuciosos, é formada em arqueologia.
— Bom dia, senhorita! — Celo disse, ajeitando os óculos.
— Bom dia, muito prazer!
— Senhorita Stewart, é um prazer conhecê-la.
— Igualmente, Vanna. Ok, Davide vá falando. — disse, andando e passando a lanterna ao redor.
— Esta parte de cá consideramos que é o altar, aquela parte desmoronada e que fica de frente para a encosta, deve ser a entrada da igreja.
— Hum... Este lugar é úmido por ser uma encosta. Mesmo que a madeira tenha se deteriorado, não há indícios de bancos, móveis. — olhando ao redor, ficou pensativa, vendo a disposição do ambiente. — Parece mais um templo do que uma igreja. Se isso é uma igreja do século XIV, já costumavam colocar alguns bancos, mas talvez não em Ancona.
— Um templo não teria um altar com uma cruz.
Marien olhou para o altar e foi até lá; a cruz, com uma imensa estátua de Jesus, estava próxima, caída no chão.
— É a estátua que a moça viu?
— Sim.
— A cena de crucificação. O pé direito desta construção é muito alto; uma igreja deste tamanho teria relicários, móveis. Se foi abalada por um terremoto, tudo deveria estar aqui, mas não há nada. Vocês retiraram?
— O que foi retirado está no nosso alojamento, mas nada em grande tamanho. Nem tiramos a estátua de Cristo, que era a maior que estava aqui.
— Nenhuma igreja medieval teria somente uma cruz. Neste período já se ornava as igrejas.
— Pode ser uma igreja simples, sem esmeros.
— Não. Com um pé direito deste tamanho? Só se ela estivesse inacabada, mas pelo período que dizem que ela esteve aqui de pé, seria uma igreja mais ornada. Não há nem castiçais!
— Ancona, nessa época, não era uma província rica, por que teriam uma igreja ornada?
— A província não era, mas pelo que descobri, o comando daqui era bem forte, por ser a capital. O arcebispo regia não somente em Ancona, mas Prisco, Pádua, Antero e Luzerna. Se aqui era a maior delas, esta igreja deveria ser o paradeiro do arcebispo, assim como bispo e alguns padres. Nada seria assim simples. Minha pergunta é; se aqui era o centro, deveria ser mais ornada, com muito mais luxo, se não é, então porque é um templo. E, além de tudo, onde estão os destroços dos ornamentos, relíquias, móveis se a igreja foi destruída por um terremoto? Olhe este salão, não há escombros de nada disso. — Davide embaralhou-se. Piscou e ficou sem resposta. — Não vai responder?
— Fiquei confuso.
— Ótimo! Eu quero minha assistente aqui esta semana. — disse, andando sem olhar para ele.
— Isso não é possível.
— Então responda quando lhe faço uma pergunta, Davide.
— Está dizendo que não sirvo para lhe ajudar?
— Não. Estou dizendo que duas cabeças pensam mais que uma.
— Tudo bem. Se aqui deveria ser o paradeiro do arcebispo junto dos outros membros da igreja, concordo que deveria ser mais ornada, principalmente porque na baixa idade média a igreja ostentava certo luxo.
— Certo.
— Então ou tudo isso não estava aqui quando foi soterrado, como se tivesse sido esvaziada, ou alguém os tirou daqui depois disso, mas acho improvável porque nunca houve relatos de que este lugar tivesse sido explorado antes.
— Padre Sebastien não fez nenhuma anotação sobre isso?
— Fez, sim.
— E onde está?
— Com ele ou na casa dele.
— Já que ele não está aqui, eu quero ver suas anotações.
— Hum... Eu posso pedir a ele, mas eu só tenho permissão para lhe mostrar o que ele me deixou até agora e o material que já foi mandado a você por ele. O resto vai ter que esperar ele voltar.
— Davide, eu vou ser bem clara com você.
Ela se aproximou dele, colocando a lanterna no seu rosto, iluminando-o.
— Sim, senhorita... — disse, apreensivo.
— Se vocês dois estiverem me escondendo alguma coisa, eu vou descobrir o que é, e se vierem com esta conversinha de que isso é privado ou isso não pode e atrapalharem a minha investigação sobre a procedência desta igreja, eu vou pegar minhas malas e voltarei imediatamente a Londres. Entendeu?
— Hum... Sim, senhorita.
— Já disse para me chamar de Marien.
— Sim, Marien.
— Outra pergunta. — disse, retirando a luz da lanterna de seu rosto, andando um pouco e parando nos degraus.
— Sim? — Davide disse, piscando rapidamente.
— Se aqui em cima era o altar, a cruz com a crucificação deveria ficar aqui. O que essa cruz com esta estátua, que é de pedra talhada, pesada como o inferno, está fazendo tão distante do altar? Ela deveria estar caída aqui e não lá.
— Talvez alguém tentou removê-la e desistiu.
— Alguma anotação sobre a tal maldição?
— Temos as lendas, boatos e ranhuras. Nada específico.
— Alguma relação com as sibilas?
— Não, definitivamente não.
— Você conhece os manuscritos do cruzado, com esta lenda da bruxa?
— Sim, o padre falou. Disse que queria ver os manuscritos que estão num museu na França.
— Sim, já sei sobre eles. Nada faz sentido. Preciso saber como esta cruz se deslocou assim! Onde estão os relicários e móveis e como era esta igreja? Eu tenho que saber sobre esta tal maldição, sobre esta mulher que teria a lançado e o que aconteceu aqui. Afinal, onde foram os escombros das outras casas? Onde está o resto do vilarejo? Nenhuma construção em pedra?
— Há algumas ruínas que poderiam ser algumas construções, encontramos um suposto cemitério. Há uma cruz de pedra, que nos levou a crer que seja. Mas é normal, e não comportam as tantas pessoas que dizem que haviam morrido na época. Pode ser que haja outro lugar que não temos conhecimento ou ele não existiu.
— Deve existir. Se houve tantas mortes assim, onde estão os corpos?
— Talvez não tenha mortes, as pessoas poder ter ido embora.
— Não acredito. Para mim, esta vila foi sucumbida e, pela minha experiência, foi dizimada. Talvez não haja corpos porque foram queimados na fogueira.
— Fogueira?
— Onde há bruxaria, igreja, há fogueira.
David ficou boquiaberto.
— Acho que é por isso que o padre Sebastien lhe admira, você não tem papas na língua, não tem medo de ninguém nem de falar nada.
— Por que teria medo de falar alguma coisa?
— Bem, estamos falando de queimar pessoas na fogueira e eu sou da igreja.
— E isso teria que me intimidar?
— Não teria?
— Isso não apaga a história, Davide, e não, não me intimida em nada.
Marien olhou seriamente para Davide e depois continuou olhando os escombros.
— Você não tem nenhuma religião?
— Minha mãe é protestante, meu pai, católico. Fui apresentada para as duas, sem nenhuma cobrança, mas eu não sigo nenhuma.
— Perdeu sua fé?
— Não. Mas eu não sigo nenhuma religião ou igreja.
— Como se tem fé se não tem religião?
— A fé não está na religião, Davide, está no coração. A alma deve ser livre para crer naquilo que a faz feliz e forte para continuar, não pode ser imposta. Se ouvisse as palavras de Jesus, saberia disso. Se tivesse visto alguns manuscritos, saberia disso. Conheço pessoas que tem mais fé em Deus que muitas carolas de igreja. Em minha opinião, não adianta frequentar uma igreja se do lado de fora pratica ações más, pratica mal aos outros. Enchem a boca para se vangloriar que são devotas e corretas, mas são perversas, preconceituosas, não ajudam ao próximo e têm maldade no coração.
— Eu concordo com isso, mas você também está falando dos manuscritos de Tiago. Eu sei, você estava junto quando os descobriram, quando... Bem... O que diziam? O padre me disse um dia que os viu.
— Viu? — perguntou, espantada.
— Sim.
— Então peça a ele que lhe mostre.
— Já pedi, ele me disse que não podia.
— Isso não me espanta, quase ninguém viu. E você acabou de me confirmar uma coisa... — disse, olhando seriamente para ele, com um ranger de dentes.
— O quê?
— Isso eu também não vou lhe dizer.
— Por que não?
— Porque me custou uma vida, então eu nunca falo disso.
— Vida de quem?
— Já disse que nunca falo disso!
— Desculpe. Mas como vou entender o que você pensa se não me diz?
— Davide, se eu lhe contasse, você não iria gostar nada, então este assunto morre aqui. Você trabalha para uma igreja, eu trabalho para a história. Se sua igreja não lhe mostra a história, eu posso lhe mostrar, mas eu garanto que você não vai gostar nada. E se nós dois continuarmos esta conversa, estaremos começando com o pé esquerdo e não é isso o que eu desejo. Eu desejo que este seja um trabalho sério e prazeroso para ambos.
Davide não entendeu tudo, mas tentou assimilar as palavras de Marien; sabia que ela estava com a razão.
Vendo sua confusão, ela suspirou.
— Por dois mil anos, a maioria das guerras e assassinatos foram em nome da igreja e da religião. O homem queria poder e queria impor a sua religião aos outros. Ao obrigar as pessoas a se converterem, não admitia que quisessem outras coisas e cultivassem as próprias crenças. Por diversas vezes, as grandes guerras envolvendo religiões eram mais sobre questão política do que fé e, quando eram sobre a fé, também eram um desastre, porque ambas acabavam com milhares de pessoas torturadas e mortas. Tem ideia de quantas pessoas inocentes foram mortas por causa das inquisições? Sempre se matou e conquistou em nome dos deuses, mas não era exatamente isso o que os deuses pregavam.
— Mas isso foi no passado.
— Coisas como o que aconteceram no passado ainda acontecem hoje em dia de alguma forma, e isso me aborrece infinitamente, por isso, não gosto de discutir certos assuntos. Discutir religião, seja ela qual for, é dar tiro na água. Todas elas acham que são as corretas e as outras, erradas. É uma discussão sem fim.
— Nossa igreja não iria gostar de ouvi-la dizer isso.
— Para minha felicidade, eu posso dizer isso sem que me queimem numa fogueira.
— Isso parece certo. — Davide disse com um suspiro.
— Isso está nos livros, é a história, é a realidade. O que acontece é que poucas pessoas leem.
— Mas você tem um motivo em particular que a desagrada?
— Sim, eu tenho, mas, como eu disse, não falarei sobre isso. Vamos nos concentrar na pesquisa.
Marien girou nos calcanhares e foi explorar mais da igreja. Ela passou o resto do dia olhando e analisando aquela parte da igreja; nada fazia sentido.
Havia alguma coisa errada ali, podia sentir; era como um formigamento sob sua pele, um sino badalando na sua cabeça, como um aviso, além dos fatos.
Mais tarde, eles saíram de lá e foram para o acampamento onde Davide lhe mostrou as outras instalações; um pequeno laboratório para análises, alguns artefatos que tiraram da igreja e lhe apresentou algumas pessoas, lhe mostrou algumas anotações e assim seguiram o dia.
Quando Marien percebeu, o dia havia acabado e Davide a levou para casa. Estava exausta. Tomou um banho, jantou o que Gina lhe deixara esquentando no micro-ondas. Jogou-se na cama e adormeceu com o sono agitado.
Capítulo 7
Marien estava na tenda, olhando alguns livros e as anotações feitas por Davide e padre Sebastien, enquanto digitava informações no seu notebook. Olhou para o outro computador, com uma tela de vinte polegadas, onde havia um desenho 3D de como seria a montanha antes de ter desmoronado. Ficou pensativa, olhando para a imagem até que Davide entrou na tenda, trazendo-lhe uma xícara de café.
— Achei que você gostaria de um café.
— Obrigada, estava precisando. — Marien tomou e fez cara feia.
— É expresso. — ele disse, sorrindo lindamente.
— Nossa! Isso acordaria até a um defunto. — Davide riu.
— Café italiano é forte.
— Verdade, mas é uma delícia... — disse, tomando mais um gole. — Estas anotações que o padre fez sugerem que todos os relicários tenham sido retirados da igreja antes de ela ter desabado; que pode ter sido saqueada.
— Sim, e encontramos isso.
Davide lhe deu uma estatueta.
Marien franziu o cenho, pegando-a cuidadosamente; era uma estátua de uns quinze centímetros e a olhou por alguns minutos, tentando identificá-la, pois estava com algumas partes quebradas.
— Isso estava dentro da igreja?
— Estava.
— Isso é uma estátua pagã, me parece de uma deusa.
— Já procurei sobre esta imagem e ainda não encontrei nada.
— Está meio quebrada, o que é uma pena, mas eu acho que é a deusa Amirtati.
— Amirtati?
— É uma deusa muito antiga, que protegia o ventre das mulheres na gestação. Era chamada de Mãe da Vida, por isso que ela tem o ventre saliente, veja. Era cultuada por algumas civilizações antigas, principalmente pelos hebreus. Há poucos relatos de sua adoração. O que isto estaria fazendo dentro de uma igreja?
— Não sei, Marien.
— Pois bem, então veja se encontra algo mais sobre esta deusa.
— Tudo bem. Você vai descer hoje?
— Vou daqui a pouco, prepare os cintos, por favor.
O celular de Marien tocou e ela atendeu.
— Bom dia, minha querida! — veio a voz tranquila do outro lado.
— Bom dia, meu querido Urs!
— Como está por aí?
— Tudo bem e você, como está?
— Estou bem e estou em Paris.
— Como você é chique! — disse, brincando, e ele riu.
— Tem um computador aí? Vou lhe mandar umas fotos dos manuscritos.
— Estes manuscritos estavam disponíveis assim tão facilmente?
— Claro que não, mas sou uma pessoa influente.
— Claro. — ela disse, sorrindo.
— Estão em uma ala restrita. Na verdade, tive um pouco de dificuldade de conseguir isso, mas consegui ser persuasivo.
— Por isso que eu amo você... — disse, sorrindo.
— É mesmo?
— Sim, estou olhando para um computador, pode mandar.
— Ok.
Logo as imagens começaram a chegar ao e-mail de Marien.
— Obrigada. Vai ficar aí até quando, Urs?
— Vou embora amanhã de manhã.
— Tudo bem, hum... Eu sinto falta de Paris.
— Sim, para nós isso aqui é um paraíso.
— Verdade.
— Preciso desligar, eu tenho um almoço importante.
— Huum...
— Não é isso que está pensando.
— Não estou pensando nada.
— Sei. Até mais, minha querida, beijos.
— Até, beijos e obrigada pelos manuscritos, me ajudou muito.
— Disponha.
Marien desligou e mandou as imagens para a impressora. Pegou as folhas e começou a ler. Muitas partes estavam ilegíveis pelas rasuras e pelo tempo e, enquanto lia as escritas que estavam em latim e outras em inglês antigo, algumas passagens lhe chamavam a atenção.
“Ouviu-se um grande estrondo e o chão tremeu, não se via mais nada, e não se via mais a extensa montanha. O que era não é mais, o que se via não se vê mais. O homem foi calado, o mal extirpado, as sombras estão soterradas. Ancona não é mais Ancona. O fim está próximo, só levo uma parte, a outra a mãe protege. Sou um infeliz. Deixo com ela meio homem e todo um coração. Mas uma sombra me acompanha, acho que ela nunca vai me deixar.”
Em outra página ela leu:
“O monstro de duas faces irradia o brilho. Seu brilho é a morte”.
Mais abaixo, depois de uma rasura que não se podia ler, havia escrito:
“A nuvem negra cega os olhos dos monstros e meus ouvidos estão surdos. Tudo está onde deveria estar, menos eu”.
“O mar é renovador de almas. As almas puras não sucumbem ao desespero e não se afogam no mar da maldade. O barco do paraíso está ali, colhendo as almas sofredoras, mas quem poderá ir?”.
“O destino de Ancona reza de joelhos e faz oferenda com os braços levantados. A mulher um dia saberá a verdade, a mãe mostrará e a filha obedecerá. Mas aquele que espia será cegado pelos seguidores, assim como aquela que cantava ficou muda”.
“Aquele que está perdido irá encontrar na escuridão do labirinto dois caminhos, um lhe trará a paz; o outro, o medo. E terá uma mão para segurar. Esta mão será a chave do seu caminho. A mão será escolhida pela besta que levará tudo ao perdido, mas a luz irradiará de suas entranhas, pois será abençoado pela mãe e será libertado”.
“A vista do penhasco era a mais bela que já vi, parecia que Deus dormia no horizonte. Quando se levantará em sua ira? Seus olhos estão fechados para a vergonha e covardia. O diabo é mais reluzente do que parece. Tira e esconde, mas não será para sempre. Meu coração aqui ficou e minha mera devoção um dia será revelada e a alma que está presa será salva. O negro véu não será em vão e a cruz do meu peito não me crucifica”.
Quando Marien acabou de ler, franziu o cenho e olhou para Davide, que estava sentado ao seu lado e prestava atenção, olhando os manuscritos atentamente.
— Que confuso. — Davide disse.
— Ele assina como Sir Asch.
— Sir Asch? Um inglês? Bem, isso explicaria o inglês antigo. Esta aqui não parece ser a mesma letra, veja! — Davide disse, entregando a ela outra cópia de manuscrito.
— Que língua é esta?
— Parece-me nórdico, talvez o antigo dinamarquês. Bem, não entendo muito, mas deixe-me tentar decifrar. “Não feche os olhos para seu coração e para a verdade, eu estarei contigo até o fim e, quando o fim chegar, a nuvem que nos separa será dissipada e estaremos juntos. Não tenho a língua, mas não podem atingir minha mente e podes ouvir através de meus pensamentos. Meu fim não será o fim, mas meu dia chegará e, quando o fim chegar, eu renascerei e o mundo conhecerá o começo de tudo”.
— Isto é de outra pessoa realmente, está assinado como M.D. Quem seria M.D.? — ela perguntou, intrigada.
— Este eram os manuscritos que o padre queria ver. Não entendi muita coisa. Parece um oráculo.
— Bem, algumas partes, sim. Este templário esteve aqui, viu o que estava acontecendo, mas fala em enigmas.
— Estes manuscritos foram escritos com uma agonia, não? Quem é a mãe de quem ele fala?
— Pode estar se referindo a esta deusa, a Mãe da Vida.
— Um cruzado não faria referência assim a uma deusa pagã.
— Realmente não faria. Mas se ele não estava falando da deusa, estava falando de quem?
— Não sei. O que é nuvem negra?
— Ele se referiu duas vezes ao negro, uma é a nuvem, a outra, o véu negro. E também não fala nada da maldição ou da mulher que a lançou. Acho que isso é mito.
— Provavelmente. — o celular de Davide tocou e ele o atendeu. — Bom dia, padre. Está tudo bem por aqui. O senhor vai gostar de saber o que temos em mãos. Os manuscritos do Templário. Sim, o senhor Barker acabou de nos enviar de Paris. Ok... Ele quer falar com a senhorita.
Marien pegou o telefone.
— Bom dia, padre.
— Bom dia, Srta. Stewart. Vejo que já conseguiu os manuscritos.
— Sim, é fascinante.
— O que diz?
— Está em parábolas, tem que ser decifrado, não vi sentido em muitas coisas. Muito do que ele escreve parece mais um desabafo, mas há coisas que estão ocultas. Nós temos que descobrir seu significado.
— Sim, irei para Ancona amanhã e então veremos isso.
— Tudo bem.
— Até lá, adeus.
— Adeus... — ela desligou e voltou à sua pesquisa. — Vejamos, por que Urs me mandou esta carta? Será que estava com os manuscritos? Vou ligar para ele e perguntar.
— Sr. Mollinaro! — gritou uma voz assustada, fazendo Marien e Davide pularam da cadeira e correram para fora da tenda.
— O que foi?
— Uma parte lá embaixo desmoronou. — disse o homem, assustado.
— Alguém se feriu? — Marien perguntou, preocupada.
— Não, mas acho que encontramos alguma coisa.
— Vamos descer, Davide. — disse Marien.
Marien e Davide correram e pegaram seus kits básicos, atrelando seus cinturões na cintura, enquanto iam em direção ao buraco para descer até a igreja. Havia uma nuvem de poeira que ainda pairava pelo ar e os obrigou a colocar os óculos de proteção. Marien iluminava com a lanterna à medida que entrava mais na escavação.
— Vocês estão bem? — Davide perguntou a Celo e Vanna.
— Sim. Foi esta parte aqui que caiu, uma parte já estava desmoronada, mas outra pequena camada desceu! — Celo respondeu, entusiasmado.
Marien focou a lanterna para cima, olhando o teto e suas laterais.
— O que é esta estrutura aqui?
— Parece uma parede, mas, como estava encoberta, não sabemos o que é... Agora muito menos.
Marien chegou mais perto.
— Cuidado, Marien, não se aproxime, pode cair mais terra.
— Que inscrição é esta? — ela perguntou, estreitando os olhos e se aproximando para tentar ler.
Davide se aproximou e iluminou mais o local com a sua lanterna.
— Parece que as letras estão embaralhadas. Este símbolo eu nunca vi antes, parecem hieróglifos, mas não os conheço. Seriam de algum dialeto celta?
— Por que haveria hieróglifo numa igreja? — Celo perguntou.
— Esta é a igreja mais confusa que já vi! Quem escreveu isso, tinha a intenção de nos confundir.
— Vanna, fotografe isso. Davide, peça aos homens para descerem aqui; escore este teto e tire esta terra daqui, quero ver o que tem atrás disso. E peça para descerem holofotes aqui, estas lanternas não ajudam muito, quero este local mais iluminado. — Marien disse.
— Já mandei providenciarem novos geradores para os holofotes, estão trazendo cabos para a elétrica, amanhã já estará feito.
— Ótimo, amanhã quero esta terra fora daqui.
— Tudo bem.
Marien andou para o outro lado da igreja e continuava olhando para as paredes. Havia suportes para estátuas ou castiçais, mas eles estavam vazios. Chegou bem à uma lateral da parede e iluminou de perto. Passou os dedos e percebeu que ali haveria uma espécie de mosaico, mas que não estava; parecia que haviam sido arrancados.
— Houve um saque aqui. Vanna, me passe uma máquina.
Vanna, que tinha duas máquinas fotográficas no pescoço, deu uma a ela, e Marien bateu fotos daquela parte da parede. Chegou mais à frente, na lateral do altar, e havia uma porta de madeira maciça.
— Davide! — ela gritou e ele correu até ela. — Esta porta já foi aberta?
— Já. Dá em um corredor e em uma sala. Há alguns poucos entulhos de madeira, mas nenhum relicário.
— Ajude-me a abrir.
Os dois empurraram forçosamente e a porta se abriu. Entraram pelo corredor e avistaram uma porta com uma saleta; estava como Davide dissera.
— Esta parte está toda fotografada, está na pasta que eu lhe dei.
— Sim, eu vi. Nenhum papel, nenhum relicário, livros, um pergaminho, nada?
— Nada. Completamente vazia.
O walk talk de Davide tocou.
— Davide, é melhor saírem daí, está vindo uma tempestade, nós temos que cobrir a entrada.
— Temos que subir. — disse Davide para Marien.
Saíram e olharam para o céu; uma nuvem negra estava vindo e trovões retumbavam pelo céu. Marien foi para a tenda, pegou suas coisas e colocou na mochila. Seguiu dirigindo calmamente quando um homem, que estava parado na beira da estrada, lhe chamou a atenção. Parecia que a estava olhando.
Marien olhou para ele e, virando o pescoço para trás, achou-o tremendamente estranho e um frio lhe percorreu a espinha. Virou-se para frente e dirigiu para casa; já começava a chover quando chegou.
Soltou suas coisas na mesa e foi direto para o chuveiro; estava imunda. Depois, foi ver os manuscritos e ligou para Urs.
— Oi.
— Sabia que estava com saudades minhas. — disse ele, rindo.
— Não seja presunçoso.
— Então não ligou por minha causa?
— Não.
— Que lástima. — Urs suspirou fundo com ar zombeteiro, fazendo-se de indignado.
— Por que esta carta estava junto do manuscrito de Sir Asch?
— Foi encontrada junto, no túmulo.
— Ninguém fez algum estudo sobre ele ou descobriu quem é este M.D.?
— Houve estudos de um professor aqui da França, mas sua pesquisa foi interrompida. Ele morreu alguns anos atrás e sua pesquisa nunca foi encontrada. Então nada se sabe sobre isso nem quem seria este tal M.D. Leia a carta para mim.
— Não está ocupado?
— Estou no hotel, nu; ia tomar banho.
— Urs, não precisava ser assim, explícito!
Urs riu.
— Ah, era só para provocar.
— Coloque um robe.
— Por quê?
— Porque eu prefiro imaginar que você está de robe e não nu.
— Deixe-me ficar assim.
— Se não colocar, eu não lerei.
— Está bem. — ele demorou alguns segundos. — Pronto! Agora leia.
Marien leu o manuscrito para ele.
— Que profundo, parece escrito por um profeta. — ele respondeu, pensativo.
— Verdade, ou por uma mulher. — ela disse, rindo, e Urs soltou uma gargalhada.
— Este tal Sir Asch era um cruzado, com fé inabalável, pelo menos é o que gostariam que todos pensassem, mas talvez ele estivesse tendo problemas com sua fé e sua lealdade para com a igreja e alguém o estava encorajando a seguir em frente. Talvez seja uma carta de outro cruzado. Se ele estava sozinho, é porque se separou de seus companheiros.
— O que ele quis dizer com não tenho língua? — ela perguntou, pensativa.
— Talvez seja uma expressão, ele está escrevendo uma carta, não usa a língua, o que é uma pena.
— Urs, quer parar, que safado! — disse, brava, mas rindo.
— Não disse nada demais, você é que está entortando tudo.
— Sei... No manuscrito de Sir Asch, ele fala em nuvem negra.
— Talvez seja o período difícil que estavam passando. Mas pode ter um significado específico, que ainda não apareceu.
— Bem, me parece que aquilo tudo foi um grande inferno.
— Não fala nada da maldição?
— Não. Está em parábolas, vou descobrir o que tudo significa. Encontramos uma estatueta de uma deusa pagã na igreja.
— Isso está ficando bom. O que uma estatueta dessas fazia numa igreja?
— Não faço ideia, mas a igreja está vazia, não há nada lá. Não parece ser uma igreja, Urs.
— Talvez não seja. Talvez seja um antigo templo e esta dita igreja esteja em outro lugar. Mas a estátua não era de Cristo crucificado?
— Era. Isso é que não entendo.
— Vai entender. Daqui a pouco você acha as peças, você é muito inteligente. Mas se eu puder ajudar em alguma coisa, é só me ligar.
— Obrigada. Vou desligar, vou deixar você tomar seu banho.
— Ah, muito obrigado, senhorita.
— Boa noite.
— Boa noite. Ah! Marien...
— O quê?
— Eu continuo nu, não coloquei meu robe.
— Sabia que não. — disse, rindo. — Eu te conheço como a palma de minha mão. Até mais.
Marien desligou o telefone e se jogou na cama com o notebook. Olhava as páginas do manuscrito no computador e tentava interpretar as parábolas em voz alta.
— “Não tenho a língua, mas meu coração está intacto e podes ouvir através de meus pensamentos”. Bem, além de ele não usar a língua para escrever — disse, dando uma risadinha, lembrando-se da brincadeira de Urs —, pode ser que estivesse preso em algum lugar ou impossibilitado de falar pessoalmente. “Meu fim não será o fim, meu dia chegará”. O que isso quer dizer? Um egípcio diria isso; acreditavam na vida após a morte. Um celta também... Mas um cruzado não falaria desse jeito. Este diabo pode não ser o diabo em si, mas uma pessoa com tamanha maldade que foi comparada a ele.
Marien ouviu uma batida forte e levou um susto. Levantou e foi até a sala e cozinha, mas não viu nada. Olhou as portas e janelas e estavam trancadas; olhou para fora, tentando ver alguma coisa, mas tudo estava calmo, pois a chuva já havia se acalmado.
Não entendeu de onde veio o barulho, mas deu de ombros. Voltou para o quarto e continuou lendo e pesquisando na internet; ficou ali até tarde da noite e foi dormir.
Capítulo 8
Na manhã seguinte, Marien pegou o carro e foi para a escavação. Davide já a estava esperando. Os dois desceram e alguns homens estavam colocando holofotes para iluminar a porta.
— Vanna, já bateu fotos daqui?
— Sim, senhorita. O pessoal está terminando de retirar a terra, mas acho que dá para tentar entrar.
— A porta parece emperrada, me ajudem a empurrar.
Os três se encostaram à porta; juntos, contaram até três e empurraram com toda força e ela abriu. Quando iluminaram a passagem, perceberam que se tratava de um corredor sem nenhuma porta. Iluminaram com as lanternas e olhavam as paredes; não tinha nada, mas seguiram o corredor até o final.
— É sem saída. — David disse, decepcionado.
— Que droga é essa? Uma porta que dá para o nada?
Marien passava a lanterna, iluminando a parede no fim do corredor para ver se encontrava algo, deslizava a mão sobre as pedras.
— Eu não entendi, mas esta passagem deve ter sido fechada.
— Este corredor me dá calafrios. — Vanna disse, arrepiando-se.
— Se era uma passagem e foi fechada, deve haver algum sinal de onde era e deve ser importante.
— Talvez tenha uma passagem secreta.
— É possível, era costume fazer passagens secretas.
Depois de um tempo observando atentamente cada pedacinho das pedras, Marien iluminou uma marca na parede. Chegou mais perto para ver melhor, pegou um pincel e passou numa parte saliente da parede para tirar o pó. Ela apertou a pedra e ela moveu-se um pouco para o fundo.
Nisso, um jato de uma espécie de gás saltou da parede e atingiu o rosto de Marien, que deixou a lanterna e o pincel cair e gritou com as mãos nos olhos, indo para trás.
Davide e Vanna, que estavam mais distantes, cobriram os olhos com os braços e Marien, gritando, caiu no chão.
— Marien! — Davide gritou.
Ele correu até ela e mais que depressa tentou tirar as mãos dela do rosto.
— Vanna, me ajude aqui! — gritou.
Vanna segurou as mãos dela para evitar que colocasse no rosto. Davide rapidamente abriu sua pochete atrelada ao cinturão e retirou um lenço, colocando-os nos olhos dela para evitar a luz e pegou o walk talk.
— Calma, Marien, não coloque as mãos. Mauricio, eu preciso de um cinturão duplo, desça um rápido! Vanna, tire uma amostra disso, fotografe a parede e leve para o laboratório, rápido, preciso saber o que é isso.
— Pode deixar. — ela disse, colocando os óculos de proteção e revirando sua mochila.
Davide pegou Marien no colo e foi até a entrada da escavação. Mauricio já havia descido o cinto e ele colocou sobre seus quadris.
— Segure-se em mim. — ela, sentindo seus olhos queimarem, tentou segurar-se no pescoço de Davide, estava zonza. — Pode puxar! — Davide gritou e a roldana começou a puxá-los para cima. Quando chegaram ao topo, dois homens ajudaram a tirar os dois do buraco e foram para o carro. — Calma, Marien, eu vou levá-la ao hospital.
— Davide, meus olhos estão queimando!
— Eu sei. Fique calma, tudo vai ficar bem.
Davide saiu rapidamente com a caminhonete e, chegando ao hospital, deu a volta no carro e abriu a porta, pegou Marien no colo e entrou hospital adentro, gritando.
Uma enfermeira veio correndo. Levaram-na até uma sala e chamaram o médico. Davide ficou com ela até o médico chegar. Marien havia perdido os sentidos, o que deixou Davide apavorado, e o médico entrou rapidamente.
— O que houve?
— Somos os arqueólogos, estávamos nas escavações, um gás saiu da parede e atingiu os olhos dela.
— Oh, sim, ouvi sobre as escavações. Que tipo de gás?
— Eu não sei, mas era uma espécie de armadilha na parede. Mandei para o laboratório para ver se descobrimos a substância.
— Tudo bem, vou examiná-la. Espere lá fora, por favor.
O médico foi examiná-la e duas enfermeiras a colocaram numa maca e a levaram à outra sala. David foi para o corredor e começou a andar de um lado para o outro, então, sem saber o que fazer, ligou para o padre.
— Padre, eu estou no hospital, aconteceu um acidente com Marien... Eu não sei. Algo atingiu os olhos dela, uma espécie de gás que saiu da parede... Sim, senhor. — Davide desligou e ligou para Celo. — Celo, já pegou a amostra?
— Peguei e eu nem faço ideia de onde isso saiu.
— Pois descubra o mais rápido possível e me ligue.
— Sim, senhor.
Davide ficou na sala de espera por um bom tempo até que o padre Sebastien chegou e Davide o abraçou nervoso.
— O que aconteceu? O que a atingiu? — o padre perguntou.
— Uma espécie de gás, uma fumaça, eu não sei direito, foi muito rápido, eu a trouxe o mais rápido possível.
— Já mandou analisar?
— Já.
— Onde vocês estavam?
— Encontramos uma porta e entramos, deu num corredor sem saída, então resolvemos procurar indícios de alguma porta secreta ou passagem que tivesse sido fechada. Eu acho que ela encontrou algo na parede e tocou, um jato saiu dela e a atingiu em cheio nos olhos.
— Meu Deus, Davide! Nós estamos em uma igreja, como isto pode ter acontecido?
— Não faço ideia.
Os dois ficaram ali mais um tempo até que o médico chegou.
— Ela está no quarto, já acordou.
— Como ela está? — o padre perguntou.
— Sinto muito, mas os primeiros exames indicam que ela está cega.
— O quê?!
— Não entendo o que aconteceu. A íris e a pupila estão intactas, mas ela tem uma película nos olhos e não pode ser retirada, senão a córnea será danificada.
— Uma película?
— Estranho, mas parece como uma lente de contato gelatinosa que cobre todo o olho e impede a visão.
— Como assim? Ela vai ficar cega?! — Davide perguntou, assustado.
— É o que parece, mas temos que analisar isso melhor.
— Não pode ser temporário?
— Padre, eu não faço ideia, nunca vi algo que pudesse causar uma coisa destas. Vou ver o que posso fazer, consultar outros médicos, fazer outros exames.
— Podemos vê-la?
— Sim. Está no quarto três.
Os dois foram até o quarto e viram Marien deitada na cama com curativos nos olhos.
— Marien? — Davide disse calmamente, tentando esconder seu nervosismo e ela se virou. — Como você está?
— Cega! Como acha que estou?!
— O padre está aqui.
Padre Sebastien foi ao seu lado e pegou gentilmente sua mão.
— Olá, Srta. Stewart.
— Oi, padre.
— Parece que nos conhecemos numa má hora.
— Parece.
— Eu vou descobrir o que é isso e vamos ajudá-la.
— O senhor pode me explicar o que uma armadilha com gás, que era usada nas tumbas mais de dois mil anos atrás, está fazendo numa igreja da idade média?
O padre, sem saber o que responder, olhou para Davide.
— Não faço ideia.
— Padre, eu já escavei tumbas, já entrei em pirâmides, já entrei em cada buraco que até Deus duvida, já achei armadilhas de todo o tipo. Jamais pensei que iria achar algo assim aqui.
— Srta. Stewart, se isso é o que eu estou pensando, temos que esperar a análise para saber o que vai acontecer.
— Eu sei ao que se refere e eu sei o que vai acontecer. Se isso é o que pensamos, ou vai passar em alguns dias ou ficarei cega para sempre. E, por favor, não me chame de senhorita! — disse, nervosa, e o padre respirou fundo, tentando ficar calmo.
— Marien, isso não vai acontecer.
Davide pegou o celular e ligou para Celo.
— Celo, já descobriu alguma coisa?
— Nunca vi isso antes, mas estou pesquisando. — ele respondeu e o padre pegou o telefone da mão de Davide.
— Celo, se eu precisasse fazer a análise, não tinha contratado alguém para fazê-lo.
— Eu estou tentando, padre, mas não tenho equipamento para isolar isso.
— Misture a amostra com nitrato de antrofetamina, tem um frasco na minha casa, corra até lá e pegue. A amostra contém resíduos de micrósporos, não?
— Sim, padre, somente vistos no microscópio.
— Pois bem, estes micrósporos misturados com o nitrato devem ficar verde e virar uma pequena pasta. Depois, veja seu componente e veja de que planta é, e veja a porcentagem de concentração.
— Sim, senhor.
O padre deu o celular para Davide, que o olhava com os olhos arregalados; poucas vezes vira o padre nervoso, e ele segurou a mão dela novamente.
— Você vai ficar bem, Marien. Não se preocupe.
O médico entrou no quarto.
— Padre, eu estou vendo as possibilidades de uma operação para tentarmos retirar isso.
— Não! — Marien disse rapidamente.
— Srta. Stewart, eu não vejo alternativa. — o médico disse.
— Vamos esperar o resultado e torcer que seja de 30%.
— Padre, o que isso quer dizer? — Davide perguntou.
— Se esse gás é feito de uma planta chamada Clautópolus Irirrapis, ele é emitido quando é exposto ao calor e tem propriedades venenosas. O gás cria uma membrana gelatinosa fina quando em contato com algo úmido, por isso causa a cegueira. Até os 40% de concentração, ela se dissipa em alguns dias, mais que isso ela se solidifica e, no caso dos olhos, seria impossível retirar sem que Marien ficasse cega de vez; em questão de dias ele queimará a córnea, como um ácido.
O médico ficou boquiaberto ouvindo a explicação do padre.
— De onde saiu uma coisa destas?
— É o que estou me perguntando, doutor.
— Meu Deus! — Davide disse.
Horas se passaram e o padre ligou mais duas vezes para Celo para saber o resultado da análise, e ainda não tinha resposta.
— Por favor, vocês dois querem parar de andar? — ela disse sem se mover na cama.
— Como sabe que estamos andando?
— Davide, eu não estou vendo, mas eu ainda escuto. Sua bota range quando você anda.
O padre sorriu para Davide e foi para perto dela.
— Marien, você quer avisar alguém?
— Não. Primeiro eu quero saber do resultado, depois eu aviso quem precisar, ok? Não quero ninguém em pânico sem necessidade.
— Você é corajosa.
— Engano seu. Alguém pode me dizer se pelo menos a minha cegueira valeu de alguma coisa? Eu estava procurando uma porta. Alguma passagem se abriu naquela parede?
— Não.
— Não é possível! Eu empurrei a pedra, mesmo que tenha sido uma armadilha, alguma coisa teria que ter aberto.
— Talvez fosse só uma armadilha. Se há uma passagem lá, pode ser em outro lugar e não onde você mexeu. E, como já deveria ter sido, ninguém mais anda por lá sem óculos de proteção.
— O senhor realmente acha que as ruínas são de uma igreja?
— Eu primeiramente tive certeza de que era a igreja da lenda, mas muitos indícios vão contra. Não vou negar que estou confuso.
— O senhor acha que é um templo? — Davide perguntou.
— Um templo com uma cruz de Cristo não existe.
— Uma igreja com armadilhas e estátuas pagãs também não. — Marien disse, irônica.
— Então teremos que descobrir qual das duas era.
— Isso se eu voltar a enxergar.
— Você vai, tenha fé.
Marien tentou rir, nervosa. A enfermeira entrou carregando o cinturão de Marien.
— Senhora, eu trouxe isso, tem um celular que não para de tocar.
— Por favor, pode abrir e olhar, Davide?
Davide o fez.
— Vejamos... Tem duas ligações de Sarah, três ligações de Urs. O que quer fazer? Quer que retorne? — Davide perguntou.
— Não.
— Eles vão ligar de novo.
— Desligue, eu só vou falar com eles depois.
Davide desligou o telefone como Marien pediu.
— Você conseguiu traduzir alguma coisa do manuscrito?
— Eu não me lembro direito das frases contidas lá, mas pelo menos eu poderia sugerir que véu negro, nuvem negra ou sei lá o que ele se referia, talvez fosse algo como isso... — ela disse, mostrando o rosto com a mão e falando ironicamente.
— Pode até ser ou não, depois vamos decifrar.
— Ei! Eu me lembrei, ele fala algo assim, “Aquele que espia será cegado pelos seguidores” ou algo assim. Isso pode ser uma referência direta a esta armadilha. — ela disse e o padre e Davide se olharam.
— Bem... Isto parece certo.
— Acha que o cruzado sabia da armadilha?
— Só se ele a viu funcionar ou a montou.
— Se ele se referiu diretamente a esta armadilha, talvez todas as suas outras colocações também se refiram a tudo que aconteceu ali ou do que está por detrás disso.
— Agora isso está me animando. — Davide disse e seu celular tocou.
— Diga, Celo.
— Davide, consegui. A porcentagem deu em 32%. — Celo disse.
— Tem certeza?
— Sim, refiz três vezes, e é mesmo a planta que o padre falou, está confirmado.
— Tudo bem, Celo, faça mais uma vez para ter certeza.
— Tudo bem.
Davide desligou o celular.
— 32%. Três análises, mesma planta.
— Ai, meu Deus! — Marien disse, rindo nervosamente.
— Abençoado seja, Senhor. — o padre disse, levantando as mãos para o céu. — Viu? Temos a esperança de que isso passe em alguns dias.
— E se isso não acontecer?
— Vai acontecer, tenha fé.
— Bem, então posso sair daqui.
— Talvez fosse bom ficar aqui no hospital.
— Não, odeio hospitais e se eles não podem fazer nada, então não há motivo para eu ficar aqui. Prefiro ir para o chalé.
— Ok. Vou pedir ao médico que a libere, não vai adiantar ficar aqui, não há nada que ele possa fazer. Você só tem que passar um remédio que vou providenciar para que seus olhos não sequem e temos que esperar isso se dissipar. Agora que a membrana já se formou, ela precisa ficar sempre úmida.
— Ai, Deus! Quantos dias isso vai levar?
— Isso eu não sei responder, mas quando você começar a perceber pequenas réstias de luz, é porque ela está começando a ceder.
— Meu Deus, isso é um alívio. — Davide disse.
— Vou falar com o médico.
O padre saiu e Davide chegou perto dela e segurou sua mão.
— Você vai conseguir, eu acredito nisso.
— Obrigada, Davide.
Capítulo 9
O médico deu alta a Marien, mesmo a contragosto, e o padre e Davide a levaram para seu chalé. Ela estava com as bandagens nos olhos e o padre a guiou até o sofá, ajudando-a a sentar.
— O que quer fazer agora? — ele perguntou calmamente.
— Vou esperar, enquanto isso, eu preciso de Sarah aqui.
— Marien, eu não posso trazer Sarah para cá, não tenho permissão.
— Padre, o que quer? Que eu fique sentada, esperando, sem fazer nada? Sarah será meus olhos.
— Se você quiser voltar a Londres até isso passar, tudo bem.
— Não. Eu quero ficar, mas quero Sarah aqui, ela vai me ajudar.
— Isso eu não posso fazer.
— Acho bom que possa.
Ele suspirou, cansado.
— Vou tentar, está bem? — Marien assentiu com a cabeça. — Quer falar com alguém agora?
— Ligue meu celular, por favor.
No que o padre ligou seu celular, recebeu uma ligação de Urs. Marien respirou fundo e atendeu.
— Marien, eu estou tentando te ligar há um tempão. Por que não atendeu? — Urs perguntou, nervoso.
— Desculpe, Urs, mas eu tive um problema aqui.
— Não diga. Que tipo de problema? Estou agoniado o dia todo.
Marien explicou tudo o que houve a Urs, que teve um acesso de nervosismo ao telefone e esbravejava se parar.
— Urs, se acalme. Eu estou bem.
— Como pode estar bem? Eu sabia que tinha algo errado.
— Querido, por favor, me escute. Isso vai passar em alguns dias, não se preocupe.
— Você tem que voltar para Londres.
— Não, eu vou ficar aqui.
— Marien, o que você tem na cabeça?
— Urs, não se preocupe, eu estou bem, vou ficar bem.
— Tudo bem... Eu vou fazer o que me pede. Mas, por favor, me informe de tudo, senão vou morrer de agonia aqui.
— Eu prometo que lhe direi tudo que está acontecendo, está bem?
— Está bem. Eu te ligo mais tarde, beijos.
Urs desligou e ela suspirou, cansada.
— Você não pode ficar aqui sozinha. — o padre disse. — Vou falar com Gina para ver se ela pode ficar aqui, mas eu estarei direto com você. Não se preocupe, eu vou cuidar de você.
Marien respirou fundo; estava uma pilha de nervos, mas estava tentando manter-se controlada.
— Obrigada.
— Podemos tirar isso. — o padre sentou ao seu lado e começou a tirar cuidadosamente o curativo de seus olhos. Quando retirou, os olhou demoradamente. — É impressionante. Seus olhos não mudaram em nada.
— Não aparece nada?
— Não. Pelo menos a olho nu, é como se não existisse nada neles, o verde de seus olhos está como a relva na primavera, parece que nada aconteceu a eles.
O padre ficou meio hipnotizado, olhando para aqueles olhos intensamente verdes. Marien não conseguiu segurar; um nó lhe veio à garganta e seus olhos marejaram, mas ela ficou firme e se segurou para não chorar, mas o padre percebeu.
— Vai dar tudo certo, Marien, isso vai passar. — disse mansamente e ela só assentiu com a cabeça. — Deite-se e descanse agora. Vou fazer um relatório. Não se preocupe, estarei bem aqui do lado.
— Está bem.
O padre ficou o resto do dia com ela e, quando anoiteceu, preparou o jantar e a ajudou a comer, dando a comida em sua boca.
— Pareço uma criança. — ela disse, encabulada.
— Não tem problema, você não está acostumada a comer sem ver. — disse, sorrindo, e colocando com cuidado o garfo com comida em sua boca.
— Não. E nem me lembro de ganhar comida na boca.
— Há momentos na vida em que as pequenas coisas as quais não damos importância se tornam muito necessárias e caras.
Marien parou por um momento, nunca havia percebido isso.
— Talvez tenha razão. — de repente, ouviram um barulho intenso vindo de fora e algumas luzes vindo do céu. — O que é isso?
O padre levantou da cadeira e olhou pela janela.
— Parece um helicóptero.
Sebastien saiu na porta e o vento provocado pelas hélices batia nele a toda força. O helicóptero pousou no imenso gramado e um homem saiu de dentro dele e foi se aproximando da casa.
— Padre Sebastien? — ele perguntou.
— Sim?
— Sou Urs Barker.
— Oh! Sr. Barker, que surpresa, não esperava pelo senhor.
— Imagino que não. Onde está Marien?
— Lá dentro. Por favor! — disse, dando com a mão para que ele entrasse.
Urs entrou como um furacão na casa. Marien, sem saber de nada, estava imóvel na cadeira.
— Marien! — ele disse, avistando-a. Correu e se ajoelhou à sua frente.
— Urs? — ela disse, sorrindo e espantada, tentando tocar-lhe o rosto.
— Meu Deus! Como isso foi acontecer?
— O que está fazendo aqui?
— Acha que eu conseguiria ficar sentado em casa sem lhe ver? — Marien riu e chorou ao mesmo tempo, abraçando-o fortemente. O padre ficou calado, assistindo a cena. — Eu vim buscá-la.
— Urs, eu não vou voltar.
— Marien, por favor, eu vou levá-la a um médico em Londres.
— Você sabe que não há nada a fazer, deu 32%, vai passar.
— O que quer que eu faça? Que deixe você aqui desse jeito? Isso pode estar errado.
— Um médico não poderá fazer nada, Sr. Barker, errado ou não, só nos resta esperar. — o padre disse.
— Maldição! Eu sei disso, mas esperar me parece um terror.
— Urs! — ela disse com as mãos no rosto dele. — Eu preciso que você fique calmo para eu conseguir ficar calma também.
Ele suspirou, tentando se acalmar, e acariciou o rosto dela.
— O senhor vai passar a noite aqui? — o padre perguntou.
— Vou.
— Então eu vou para casa, vou deixá-los sozinhos.
— Tem um quarto de hóspedes aqui?
— Sim, tem dois quartos, e com as camas limpas. — ela disse.
— Ótimo, eu preciso de um para meu piloto.
— Padre, nós nos vemos amanhã? — Marien perguntou.
— Sim. Se precisar de mim ou de Davide, ligue a qualquer hora.
— Pode deixar que eu cuido dela esta noite, padre. — Urs disse.
— Tudo bem. Boa noite. — ele disse e foi embora.
Urs a olhou, e a agonia estava estampada nos seus olhos. Marien passou os dedos no seu rosto e na sua testa.
— Não está escondendo sua expressão de preocupação.
— Você quer me matar do coração?
— Para um empresário, você se preocupa demais. — disse com um ar triste. Urs quis dizer algo, chegou a abrir a boca, mas engoliu as palavras. — Alugou um helicóptero só para vir aqui?
— Eu comprei um.
— Está louco?! — disse, espantada.
— Louco eu sempre fui, eu já tinha visto para comprar, mas a necessidade me fez dar o último passo.
— Quando eu penso que você já fez todas as loucuras que podia, você me surpreende.
— Eu poderia dizer o mesmo de você. Espere um momento, eu já volto.
Urs chamou seu piloto e, juntos, foram para um dos quartos para que ele se instalasse. Logo, Urs voltou para a cozinha e segurou a mão de Marien.
— Leve-me para o quarto, por favor, eu queria tomar um banho e deitar.
Urs a pegou no colo e a levou ao quarto. Entrou no banheiro, ligou o chuveiro, enquanto ela tirava a roupa, e ele a conduziu até debaixo da água. Ela tomou banho e ele ficou sentado na beirada da banheira sem dizer nada; ajudou-a a se secar e a levou de volta ao quarto.
— Onde guardou suas camisolas?
— Na gaveta de cima.
Ele pegou uma branca e foi na sua frente, desdobrando-a.
— Tudo bem, isso deveria ir para o guines ou algo assim.
— Por quê?
— Nunca vesti uma mulher. — Marien sorriu.
— Sempre tem uma primeira vez.
— Hum... O que digo para meus hormônios?
— Seus hormônios?
— Marien, você está nua na minha frente e estamos no seu quarto. — disse, tentando brincar para espantar o imenso nervosismo que lhe corroía por dentro.
— Diga que você está impossibilitado de fazer sexo comigo. Que temos um trato.
— Isso eles já cansaram de ouvir e nunca me deram atenção.
Ele a ajudou a vestir a camisola.
— Então, diga que esta noite eu só quero seus braços. Porque meus olhos não podem lhe ver.
Lágrimas rolaram dos seus olhos. Urs pensou que ia desabar ali, na frente dela, e sentiu uma vontade imensa de chorar. Ele segurou seu rosto, beijou levemente seus lábios e a abraçou fortemente.
— Vai ficar tudo bem...
— Estou tentando ser otimista, mas não posso negar que estou com medo.
— Você, com medo? Isso me espantaria.
— Oh, eu tenho mais medos do que pode imaginar.
— Você é a mulher mais valente que conheço.
Ela suspirou e queria dizer que não era, que era uma mulher cheia de medos; sua valentia às vezes era somente uma fachada. Era necessário ser forte para enfrentar aquele mundo em que vivia.
Ficaram abraçados um tempo; ele a levou para a cama e a deitou com cuidado. Tirou suas roupas, arrumou as cobertas e deitou, abraçando-a para que se aninhasse em seu corpo. Marien só queria se sentir protegida, tentando afastar o terror que estava em seu coração e Urs queria protegê-la em seus braços e assim adormeceram.
Marien dormia, mas seu sono estava agitado. Sonhava que estava num corredor de pedras e corria; havia algo atrás dela. Estava em pânico e ouvia alguém chamar seu nome de uma maneira mórbida. Havia pouca luz e, de repente, toda a luz dissipou-se; ela parou e só podia ouvir sua respiração ofegante. Um rosto horripilante iluminou-se à sua frente e disse seu nome.
Marien soltou um grito agudo; pulou na cama, ofegante, e debatendo-se, pois abriu os olhos e continuou tudo escuro. Urs levou um imenso susto e sentou na cama, segurando-a.
— Marien! — ela tentou se esquivar dele, pois não tinha se dado conta que já havia acordado e estava na sua cama com Urs. — Marien, calma, sou eu, Urs! — ele a agarrou com força e ela veio a si e parou.
— Urs!
— Calma, querida, foi só um sonho, eu estou aqui. — Marien o abraçou forte, tentando recuperar o fôlego, mas tremia, parecia terrivelmente amedrontada. — Calma, deite aqui. — Urs, abraçado a ela, acariciava seus cabelos. — Foi só um pesadelo. Quer beber uma água?
— Quero, por favor.
Urs pegou um copo de água que havia na mesinha de cabeceira e a ajudou a beber.
— Está mais calma?
Ela suspirou e assentiu. Ele pegou o copo e colocou na mesinha. Olho-a e acariciou seu rosto. Olhou atentamente para seus olhos, como se tentasse ver alguma coisa neles; estavam como sempre estiveram, lindos, mas perdidos na escuridão. Urs quis tocar no assunto, mas achou melhor não.
— Urs?
— Hum?
— Nunca pensei que iria sentir tanta falta de ver seu rosto.
— Eu sempre acordo descabelado e com a cara amassada, acho que você deveria dar graças a Deus por não poder me ver neste momento, senão era capaz de dizer que eu fui o motivo do seu pesadelo.
Marien riu.
— Você sempre brinca com tudo.
— Só um pouquinho, pelo menos eu arranquei um sorriso destes lábios lindos.
Urs olhava para seus lábios e queria beijá-los. Tentava segurar-se, seu coração batia forte e sua respiração ficou difícil.
— Você não devia estar aqui. — Urs colocou a mão suavemente em seu pescoço, acariciando-a com as pontas dos dedos. Marien parou de respirar e fechou os olhos. — É melhor você ir embora.
— Não posso ir. — ele sussurrou.
— Por que não?
— Porque eu preciso disso.
Capítulo 10
Urs a puxou e beijou seus lábios profundamente. Empurrou-a com o corpo, deitando-se sobre ela sem parar de beijá-la. Deslizou sua mão pelas suas coxas por debaixo de sua camisola. Marien quis dizer para que ele parasse, mas não conseguiu, ele a enfeitiçava quando a tocava. Da maneira que estavam, seria quase impossível pararem.
Estavam seminus numa cama e beijando-se; aquilo era mais que a perdição.
Quando Marien se deu conta, pois estava perdida no meio da luxúria, sentiu Urs entrar dentro dela, enlouquecendo-a. Foi uma sensação estranha, mas excitante, e Marien entregou-se a ele, retribuindo aquele momento de loucura.
Urs era diferente na cama com ela, bem diferente do que era com outras tantas amantes que sempre teve. Ele sentia um prazer que não vinha somente de seu sexo, mas de todas suas entranhas e fazia de tudo para agradá-la.
Amaram-se e ficaram jogados na cama, mudos. Urs repousava deitado no seu peito e ela acariciava seus cabelos. Nem sabiam o que dizer um ao outro, haviam se perdido novamente, naquele lugar, daquele jeito.
Marien nem sabia o que estava sentindo; estava estranha, passando por uma situação que nunca havia vivido com aquela cegueira temporária, e Urs, que num minuto estava em Londres, agora estava ali, nos seus braços, e haviam feito amor, de novo.
Não adiantava quantos juramentos fizessem de nunca mais se tocarem, nunca cumpriam, isso era demais para eles. O pior é que nunca sentiam remorso.
— Volte comigo para Londres. — disse ele.
— Não posso.
— Como pretende ficar aqui sozinha desse jeito, Marien?
— O padre vai cuidar de mim.
— Hum... — ele disse, entortando a boca e lembrando-se do padre. — Marien... — ele levantou a cabeça e olhou para ela, que abriu os olhos mesmo sem ver nada, o que era agonizante. — E se isso não passar?
— É um risco que vou correr.
— Você não se cansa de correr riscos?
— Estar aqui de novo com você me parece bem arriscado. Então poderia perguntar a mesma coisa.
— Quando você vai parar com isso?
— Parar com o quê?
— De colocar sua vida em risco. Meu Deus, não sente medo de algum dia acontecer algo muito pior que isso?
— Urs, por favor...
— Marien, pare de se esconder nestes buracos.
— Não estou me escondendo.
— Está! Está fugindo, está fugindo de tudo. Se eu parei, por que você não para?
— Eu não sou igual a você.
— Isso é verdade. Pelo menos tomei juízo depois do acidente.
— Urs, pare com isso, eu não quero falar sobre este assunto! — exclamou, ficando nervosa.
— Marien... Eu não culpo você pelo que aconteceu, mas parece que você não pensa assim.
— Você já fez isso.
— Eu sei, mas eu me arrependi, sei que não teve culpa. Nem eu nem você.
— Urs, eu já disse para parar! — ela o empurrou e sentou na cama.
— Escute-me. Eu perdi você quando nosso filho morreu, eu não quero perder você de novo por causa de outra desgraça. Quero você viva e bem, mesmo que nunca mais seja minha mulher de verdade. Eu só quero ver você salva, feliz e saudável, entendeu? — Marien começou a chorar. Urs fechou os olhos e passou as mãos no rosto e foi por detrás dela, abraçando-a forte. — Tudo bem, se quer ficar aqui, não vou forçá-la a voltar, mas pense no que está fazendo.
— Você nunca pensou nas coisas que fez e faz ainda hoje.
— Talvez não, mas eu tento cuidar de você, do meu jeito meio estabanado, mas eu tento.
— Você é péssimo!
— Eu sei, venha aqui. — ele a puxou, recostou-se nos travesseiros e a abraçou contra seu peito. — Desculpe, eu não devia ter tocado nesse assunto.
— Não devia mesmo. — balbuciou na tentativa de parar de chorar.
— Eu deixo você brigar comigo, mas não me demita, está bem?
— Você é um péssimo empresário.
— Sou. Eu deveria ser demitido. — Marien tentou rir. — Eu vou deixar você ficar se me prometer se cuidar direito. Você promete? Eu lhe dou alguns dias; se isso não passar, eu venho buscá-la e vamos a um especialista, em qualquer lugar do mundo. Está bem assim?
— Está.
— Promete?
— Prometo.
— Ótimo. Eu vou confiar nesta sua cabecinha desmiolada.
Marien levantou-se e virou-se mais para ele.
— Você diz que eu sou desmiolada, mas não fui eu que comprei um helicóptero.
— Bem... Eu ia comprar um jato, mas gosto de helicópteros, a visão é bem mais ampla. — disse, brincando, tentando dissipar o clima ruim que ele criou. Ela riu e ele acariciou seu rosto.
— Urs, por que você não se afasta de mim?
— Não faço a mínima ideia. E você?
— Também não.
— É! Nós dois temos problemas psicológicos sérios, deveríamos fazer terapia.
— Acho que sim.
— Vou ver um café para nós, espere aqui e logo venho buscá-la, está bem?
Marien assentiu. Urs a beijou e levantou-se, vestiu a roupa e foi para a cozinha. Marien ficou na cama e respirou profundamente. Sua cabeça estava um turbilhão, nem sabia o que estava fazendo.
Dali um tempo, Urs voltou e levou Marien para tomar café e Gina já estava na cozinha.
— Querida, eu vou falar com o padre, também quero dar uma olhava nas escavações. Você vai ficar bem aqui?
— Vou, Gina ficará comigo.
— Vou falar com ele para arrumar alguém para dormir aqui, você não pode ficar sozinha e também vou falar sobre Sarah. Já que você é teimosa e não quer voltar comigo, pelo menos que fique segura.
— Quando vai voltar?
— Tenho que voltar hoje, eu tenho trabalho no museu, tenho uma reunião importante à noite, não poderei ficar aqui. O que me deixa nervoso.
— Urs, não fique nervoso, vai dar tudo certo.
— Se eu não estivesse envolvido com essa abertura do Centro de Pesquisas, eu até poderia ficar mais alguns dias.
— Você conseguiu?
— Sim. Assim que você voltar, o Centro estará pronto, e você e sua equipe terão um lugar bem mais amplo, com todos os equipamentos necessários para trabalharem.
— Urs, isso é uma notícia maravilhosa! Estou orgulhosa de você.
— Bem... Eu queria saber se você quer coordenar o Centro.
— Eu? Achei que você que o faria! — disse, espantada.
— Sim, farei, mas preciso de uma arqueóloga renomada para coordenar os projetos, as pesquisas, enfim, eu ficarei mais na administração. O que acha?
— É maravilhoso, é claro! Bem, já temos o trabalho do museu, mas com o Centro, ficará ótimo.
— Eu sei, por isso é que batalhei tanto tempo para colocar o projeto em prática.
— Quem são os financiadores? Os mesmos do museu?
— Sim, e outros milionários excêntricos que querem financiar o Centro e suas descobertas. Afinal, isso enriquecerá nosso museu.
— Hum... Aquele tal Lorde B vai desembolsar dinheiro também?
— Vai.
— Eu não entendo por que muitos financiadores ficam ocultos, deveriam participar mais. Esse tal Lorde é praticamente o dono do museu e eu nunca o conheci.
— Eles preferem assim. Mas o que importa é que o dinheiro entra e a senhorita pode continuar suas loucuras. Mas cuidando do Centro, você não poderá se ausentar tanto como faz agora. Precisará ficar mais no Centro do que nos trabalhos em campo, terá suporte para isso.
— Isso me parece estranho.
— Por quê?
— E se eu não quiser ficar no Centro?
— E por que não iria querer ficar? Está brincando, não é? Isso é muito importante!
O padre chegou à casa de Marien e interrompeu a conversa.
— Bom dia!
— Bom dia, padre.
— Como está, Marien?
— Ainda do mesmo jeito.
— Isso não vai passar em um dia, você tem que estar atenta a dores de cabeça, tontura, dor nos olhos, qualquer coisa deve me comunicar, está bem? Eu a levarei sempre ao médico para ver como estamos indo.
— Está bem, mas eu não sinto nada.
— Deve tomar este remédio três vezes ao dia. — o padre instruiu, lhe entregando uma caixinha de remédio. — Assim impedirá alguma possível infecção e este é para colocar nos olhos.
— Está bem.
— Padre, o senhor poderia levar-me às escavações? Eu gostaria de dar uma olhada.
— Tudo bem, Sr. Barker, vamos.
Marien ficou deitada no sofá, não havia muito que fazer. Urs ligou uma música suave e ajeitou as almofadas.
— Eu não demoro.
— Ok.
Urs beijou seu rosto e saiu com o padre. Foram até as escavações e Urs desceu com ele e Davide. Foram até o túnel onde Marien sofrera o acidente.
— Realmente, tenho que concordar com Marien, padre, isto não parece uma igreja normal.
— Vamos descobrir o que era, Sr. Barker. Continuaremos os trabalhos até que a Srta. Stewart fique boa e retome as suas atividades, já que ela não quis voltar a Londres. Se quiser, ela poderá ir e voltar quando melhorar.
— Já tentei isso, padre, mas ela não quer, quer ficar aqui.
— Ela me parece bem determinada.
— Cabeça dura seria uma expressão melhor para se aplicar a ela. — o padre sorriu. — Padre, agora será preciso trazer a assistente de Marien, ela está exigindo isso. Nas condições em que ela está e querendo ficar aqui, acho melhor o senhor aceitar.
— Sr. Barker, isso não depende de mim.
— Pois acho melhor o senhor rever isso, senão eu vou mandá-la assim mesmo.
— Isso não seria adequado, é uma pesquisa fechada. O Vaticano autorizou só a vinda da Srta. Stewart e com muito custo. Na verdade, o senhor nem deveria estar aqui.
— Acontece que ou Sarah vem ou Marien vai. O senhor escolhe. Então ficamos assim, o senhor mexe seus pauzinhos com o Vaticano, porque assim que eu chegar a Londres, vou providenciar a vinda de Sarah e esta conversa está acertada, padre, nem que o museu tenha que pagar a estadia dela aqui. Pois eu não vou deixar Marien sozinha.
— Tudo bem, Sr. Barker. Eu prometo que vou ver sobre isso.
Urs, que olhava seriamente para o padre, virou-se e olhou a parede que Marien mexera.
— Isso é impressionante, ela ativou uma armadilha e nada se moveu além do gás.
— Sim. Ah, este é Davide. — o padre se adiantou e apontou o homem alto que chegou e parou ao lado deles.
— É um prazer, Sr. Barker. — Davide disse, sorrindo e dando a mão a Urs, que o cumprimentou.
— Por que haveria armadilhas deste tipo aqui?
— Ainda não sei.
— Eu garanto que isto é uma parede falsa e que deve haver algo bem interessante atrás dela.
— Pode ser. Ninguém colocaria armadilha por nada.
— Aliás, uma armadilha pagã numa igreja católica é impensável.
— Pois é. É melhor subirmos.
Subiram e foram até o acampamento onde ficava o laboratório.
— Celo, este é o Sr. Barker, curador do museu de Londres e empresário da Srta. Stewart.
— Muito prazer, senhor.
— Celo, tem certeza que deu 32%?
— Sim, Sr. Barker. Refiz os testes diversas vezes.
— Hum... Onde está o material que retiraram de lá?
— Está aqui. — Urs se aproximou e olhou atentamente. — Isso é impressionante, senhor. É um sistema equivalente a uma catapulta. Quando a senhorita Marien apertou a pedra, o dispositivo foi acionado pela pressão com uma velocidade incrível. Isso é muito antigo.
— O sistema é, mas a construção disso equivale à idade média. — o padre disse.
— Como alguém na idade média, em Ancona, montaria uma armadilha utilizada há dois, três mil anos? — Urs perguntou ao padre.
— Estas armadilhas já foram encontradas em algumas tumbas egípcias e têm muitas características aplicadas pelos mouros. Foram desenvolvidas para proteger tumbas de reis e tesouros que eram enterrados com eles ou apenas seus túmulos mesmo.
— Padre, eu acho que o senhor não encontrou sua igreja aqui. — Urs disse, olhando atentamente para a estátua da deusa.
— Não é possível, havia estátuas referentes à igreja católica, um altar, uma cruz, vitrais, isso tem que ser a igreja perdida.
— Só se foi dividido; metade igreja, metade templo.
— Isso é impossível, senhor! — Davide disse.
— Nada é impossível. Eu tenho que ir, quero ficar mais um tempo com Marien e depois tenho que voltar a Londres.
— Foi um prazer tê-lo conhecido, senhor Barker.
— Igualmente. Padre, cuide bem de Marien, e se algo mais acontecer, eu venho buscá-la e levo-a amarrada. Espero deixá-la em segurança desta vez.
— Pode deixar, eu vou cuidar bem dela.
Urs saiu da tenda e andou nervoso até o carro.
— Nossa, padre, como esse empresário protege Marien! — Davide exclamou baixinho.
— Um homem não protegeria assim uma ex-esposa, Davide. A não ser que ainda a ame.
— Hãn? Esposa? — perguntou, espantado.
O padre seguiu Urs até o carro e deixou Davide para trás, de boca aberta. Urs voltou para o chalé e encontrou Marien no mesmo lugar em que a havia deixado.
— Oi, minha querida! — disse, sentando no sofá ao lado de Marien e acariciando seu rosto.
— Oi, viu tudo? — Marien perguntou calmamente, tentando esconder seu nervosismo.
— Só dei uma olhada, queria ficar mais um tempo com você antes de ir embora.
— Vai ser uma boa descoberta, não vai?
— Claro que vai. Você é perita em fazer boas descobertas. Se acha que vai valer a pena, então vou apoiar você.
— Obrigada, Urs.
— Marien, você se deu conta que a deusa da vida é proveniente da antiga Israel, não é?
— Sim, estava pensando nisso agora.
— Os israelitas tinham trocas de crenças, compartilhavam de suas descobertas com os egípcios e vice-versa, pois muitos israelitas foram exilados para a Babilônia. Com o passar dos anos e com as conquistas, muitas práticas e conhecimentos foram trocados e se espalharam para outros povos da europa.
— Então isso faz sentido, os seguidores da deusa mãe e a armadilha. Mas como haveria seguidores da deusa aqui, em Ancona, na idade média? Isso é que não entendo. Até não me espantaria de encontrar algo celta, druida, mas isso?
— Isso eu não sei. E também não sei como aquele lugar pode ser as duas coisas, igreja e templo, mas uma só das opções não parece ser. Eu acho que alguém estava cultuando a deusa aqui. Mas chega de falar disso um pouquinho. O que quer fazer?
— Me leva na beira do penhasco? Tem uma vista linda.
— Está bem, vamos. — ele a pegou no colo e foi saindo da casa em direção ao penhasco.
— Urs, eu posso andar.
— Não, deixe que eu a levo, você ainda está levinha. — disse, rindo, e Marien riu. — Só espero que quando isso acabar, eu ainda consiga te levantar; maneire na massa, senão não conseguirei carregá-la mais.
— Pode deixar, meu bem, pretendo continuar ganhando colo.
Chegando lá, sentaram-se num banco de ferro pintado de branco à beira do penhasco e ficaram de mãos dadas. Urs ficou admirando a vista maravilhosa e Marien fechou os olhos, sentindo a brisa do mar em seu rosto.
— Urs, se algum dia um de nós casar com outra pessoa, não poderemos mais ficar assim.
— Eu sei, Marien. Mas como eu disse, não pretendo me casar de novo; já tive uma esposa e para mim será a única.
— Não seja radical assim, um dia você pode amar alguém de novo. — disse amorosamente.
— Pode ser. Assim como você. Quem sabe você encontra um italiano por aqui. — disse, brincando, mas contrariado. — Ainda bem que você está trabalhando com um padre.
— Por que diz isso?
— Por nada, assim quem sabe esse seu novo amor demore a vir.
— Isso foi uma praga?
Ele soltou uma gargalhada.
— Marien, claro que não! Jamais faria isso, apesar de que eu morreria de ciúmes de qualquer homem por quem você se apaixonasse.
— É. Contanto que você não bata nele, está bom.
— Claro que não, sou um cavalheiro.
— Sei que é.
Os dois ficaram conversando por um tempo; falaram sobre diversos assuntos até que Urs teve de ir embora. Levou-a para dentro de casa e despediu-se com um beijo; foi para o helicóptero com seu piloto e voltou a Londres.
Urs queria parecer tranquilo, mas seu coração estava em pedaços. Não sabia onde Marien conseguia tanta força; ela formara uma carcaça ao redor dela, e ele, por mais que tentasse, não conseguia passar; nem sabia se queria passar. Melhor deixar tudo como estava.
Capítulo 11
O padre foi ficar com Marien em sua casa; levou alguns materiais e foram discutir sobre suas descobertas. Ele examinou seus olhos com um aparelho para poder ver com precisão.
— A membrana está do mesmo jeito, nada mudou. — disse um pouco chateado. — Você não consegue ver nenhuma luz?
— Não. Completamente escuro.
— Quando ela começar a se dissipar, você começará a ver focos de luz e aos poucos ela terá se dissipado por completo.
— Ai, isso vai me matar! — exclamou nervosamente.
— Tenha paciência, minha filha, é só o que pode ter agora. Paciência e fé que isso irá passar.
— Tudo bem. O senhor foi ver a entrada da parede?
— Sim. Eu pressionei a parede no mesmo lugar que você e em vários outros lugares, mas nada aconteceu. Eu acho que não há porta ali.
— Isso não faz sentido, padre, tem que haver uma passagem.
— Se tem, eu não encontrei. A terra que havia desmoronado foi retirada, Vanna tirou fotos das inscrições. Está escrito em hebraico em algumas partes e em outras está embaralhado com uma língua que eu não conheço.
— O que conseguiu ler?
— “Aquela que passa saberá que o fim não é o fim”, e tem um trecho que não conseguimos decifrar. Depois tem outra inscrição em celta antigo, realmente uma salada de línguas. “A água substitui a terra e o fogo, sem moeda, sem barco”.
— Nos manuscritos fala algo sobre fim e moeda.
— Onde estão?
— No escritório.
O padre levantou e foi até o escritório pegar as cópias dos manuscritos, voltou à sala e os leu atentamente.
— Muitos enterros eram feitos no mar, principalmente dos reis ou nobres. Colocavam os corpos em barcos e os queimavam. A moeda seria o pagamento do barqueiro que levaria a alma até o outro lado; duas moedas colocadas nos olhos. Os plebeus também eram enterrados com as moedas. Talvez seja isso.
— Sim, isso seria o mais comum. Era normal este tipo de crença, mas acho que tem algo mais, pois como um ritual normal, não teria tanta ênfase aqui. Os manuscritos de Sr. Asch são sucintos e precisos, apesar de estar em parábolas. Creio que seus objetivos sejam maiores que isso.
— Eu também acho. Talvez aja algum tesouro enterrado, talvez alguma relíquia debaixo do templo, eu não sei. — ela disse, pensativa.
— Você enfatiza muito isso como templo.
— E o senhor ignora. Havia adoradores da deusa aqui, como não vê isso?
— Eu vejo, Marien, mas não achei nada que me faça relacionar as duas coisas.
— Isso nós teremos que descobrir.
— Uma tempestade está vindo e eu tenho que ir, o padre da paróquia ficou doente, preciso rezar a missa esta noite. Eu vou pedir à Gina que passe a noite aqui com você. Se ela não puder vir, eu arrumo outra pessoa. Em menos de uma hora terá alguém aqui com você, está bem? O celular de Gina está sem sinal, vou passar na sua casa e pedir que venha para cá.
— Ok.
— Fique sentada aqui, eu vou fechar todas as portas e janelas, o telefone está à sua direita e o celular está aqui. Qualquer coisa, me ligue. Fiz uma primeira chamada, é só clicar duas vezes no enviar e chamará no meu telefone. Consegue fazer isso?
— Ficarei bem, não se preocupe.
— Tudo bem.
Já estava escurecendo, por isso, o padre acendeu todas as luzes; fechou toda a casa e se foi. Marien ficou sentada no sofá; o tempo foi passando e a tempestade chegou com toda a força e ela só ouvia os trovões ecoarem pelo céu; a chuva era torrencial.
De repente, as luzes começaram a piscar, mas ela não viu isso e tudo se apagou. Ouviu uma batida forte e um barulho de algo se quebrar que vinha da cozinha. Num salto, pulou do sofá e derrubou o celular no chão. Virou-se em direção ao barulho, seu coração acelerou bruscamente.
Dali a pouco, ouviu outra batida forte e ela se contraiu.
— Tem alguém aí?! — gritou, amedrontada. — Gina? — chamou, mas nenhuma resposta veio.
Seu coração acelerou mais e começou a ficar ofegante quando ouviu outra batida. Em pânico, tateou pelo chão, tentando achar o celular que havia derrubado; suas mãos passavam perto dele, mas não o alcançava. Tateou o sofá para achar o telefone, mas ele estava mudo. Seu terror aumentou mais quando ouviu uma batida mais forte. Sem saber o que fazer, tentou mover-se e achar o celular novamente.
— Marien... — uma voz ofuscada soou em seus ouvidos, mais parecia um sussurro. Ela se virou com os olhos arregalados na direção do som.
— Gina, é você?
Seu terror tomou conta do seu ser; mal conseguia respirar. Com o maior esforço, tentou achar o celular e o pegou debaixo do sofá. Com as mãos trêmulas, tentou ligar, mas estava sem sinal. Ouviu aquela voz chamar seu nome novamente e seu pânico era completo.
De repente, um vento forte veio sobre ela, fazendo seus cabelos voarem. Seu nome ecoou novamente. Gritou e caiu no chão; engatinhou até o sofá, levantando-se. Tentou andar e outro vento lhe atingiu; gritou novamente, erguendo seus braços contra o rosto.
Ela parou perto da porta, olhando ao redor, mas seus olhos a impediam de ver qualquer coisa. Havia um degrau no chão que ficava perto da porta de saída e, sem notar, esbarrou nele, caindo de costas.
Quando ia levantar-se, um gato veio correndo, miando alto e pulou por cima dela, fazendo-a gritar, e suas unhas felinas arranharam seu braço, que ela levou ao rosto instintivamente para se defender. Seu pânico a deixou fora de si. Engatinhando, chegou à porta da casa. Abriu-a e saiu correndo para fora. Trombou em algo que a segurou; eram mãos. Ela, apavorada, gritou, tentando se desvencilhar.
— Marien, o que foi? — ela tentou se soltar e gritava mais. — Marien, sou eu, padre Sebastien! — estavam na chuva e já encharcados, pois ele derrubara o guarda-chuva que carregava quando ela trombara nele. — Marien, sou eu!
— Padre! — sem pensar, ela pulou no seu pescoço, abraçando-o.
— O que houve?
— Tem alguém na casa! — exclamou, apavorada.
— O quê?
— Tem alguém lá!
— Calma. Venha, eu vou ver, está tudo bem. — ele a puxou lentamente e entraram na casa. Ela estava agarrada em seu braço e ele olhava em volta. As luzes piscavam. — O que ouviu?
— Algo quebrando, batidas e alguém chamando o meu nome, ventos estranhos e algo pulou em mim.
As luzes piscaram novamente e a energia voltou. Ele viu pela luz da cozinha um jarro de flores espatifado no chão e a janela estava com a persiana aberta e batia.
— Calma, é uma janela aberta, o vento deve ter derrubado o vaso. — ele foi até a janela e a fechou. Lembrou-se de que havia fechado aquela janela, mas não disse nada e olhou atentamente ao redor.
— Foi isso? — disse completamente nervosa.
— Sim, foi só um susto. Venha, tem de se secar.
— Tinha alguém aqui! Alguém disse meu nome, parecia uma voz de mulher. — disse, apavorada.
— Calma, não há ninguém, você está assustada, respire...
Ela tentava controlar seu medo, mas seu coração ainda estava acelerado. Sebastien a levou para o quarto e pegou uma toalha, ajudando-a a secar rapidamente seus cabelos.
De repente, ele se deu conta do que estava fazendo e parou abruptamente. Olhou apavorado para seu rosto, e ela tremia de frio. Seus olhos se cruzaram, mas apenas ele podia ver isso.
Ela olhava em direção a ele e Sebastien perdeu-se nos olhos dela; ele desceu seus olhos para seus lábios e pôde perceber seu contorno perfeito. Ele parou e se afastou dela.
— Eu preciso ir. — disse rapidamente, tentando voltar a si.
— Não! — quase gritou, segurando-o pelo braço. — Por favor, fique, eu não quero ficar sozinha, por favor.
Sebastien olhou o rosto dela, que ainda transmitia medo, e não teve como dizer não.
— Está bem, eu fico. Vista uma roupa seca senão vai se resfriar.
— Você também está molhado.
— Não se preocupe, eu tenho uma muda de roupa no carro, vou pegá-la. — Sebastien foi até o carro, enquanto Marien trocava de roupa. Ele foi ao banheiro e trocou-se. — Eu vou fazer um chá quente.
Ele foi à cozinha e preparou um chá. Marien sentou-se no sofá com um cobertor e o esperou. Ele chegou à sala e a olhou; parecia uma menina assustada, olhando para o nada. Aquilo o partia em dois.
— Aqui está. Chá é minha especialidade. — disse, colocando uma caneca em sua mão e ela provou um gole.
— Está realmente uma delícia. O que tem aqui?
— É segredo. — ela sorriu e bebeu mais. Houve um silêncio entre eles. — Seu braço está sangrando! — exclamou, espantado.
— Algo pulou em mim, parecia um gato.
— Tem um gatinho que de vez em quando anda por aqui, deve ter sido ele.Vou ver isso. — ele procurou uma caixinha de primeiros socorros e fez um curativo no seu braço. — Viu? Foi um gatinho maldoso que lhe assustou. — disse, brincando, e ela tentou sorrir.
— Padre, eu ouvi uma voz chamando meu nome.
— Marien, foi sua imaginação. Você estava com medo, a mente faz isso. Não havia ninguém, foi só um susto.
— Pode ser... Padre, eu posso lhe pedir algo?
— O quê?
— Eu nunca vi seu rosto, posso tocá-lo? Assim saberei mais ou menos com quem estou falando. É agonizante falar com alguém sem saber como ela é.
Sebastien não sabia o que responder; ficou surpreso, mas entendia a situação de Marien.
— Claro... — disse meio sem jeito.
Marien se virou, chegou perto dele e suavemente começou a tocar seu rosto, verificando vagarosamente sua fisionomia. Seguiu o contorno do rosto dele, do nariz, dos olhos, suavemente passou a mão nos seus cabelos.
Ele sentiu algo dentro dele, algo que não entendeu; seu coração começou a bater mais rápido e ela chegou aos seus lábios e os contornou com os dedos.
Uma carícia que deixou os dois atordoados.
Ele fechou os olhos e prendeu a respiração. Então, ela tirou a mão de seu rosto, também um tanto aturdida. Ela respirou fudo, engoliu em seco e tentou retomar a compostura.
— Você é bonito. De que cor são seus olhos? — sussurrou.
— Verdes.
Ela sorriu e ele engoliu a saliva que parecia mal descer pela garganta. Pigarreou e tomou seu chá para se acalmar.
Marien percebeu que ele estava constrangido e também ficou sem jeito. Houve um silêncio entre eles por alguns minutos.
— Por que se tornou padre?
Ele puxou o cobertor sobre as pernas e olhou para ela, que se recostou nas almofadas. Lá fora, a tempestade ainda estava forte.
— Depois que me formei arqueólogo, comecei a trabalhar no ramo, mas eu achava que havia algo que faltava na minha vida, que eu tinha algo importante a fazer. Um dia eu resolvi que era isso que faltava, então entrei para a igreja.
— Era isso que faltava?
— Acho que sim, eu sou feliz. Faço duas coisas que amo, pois, dentro da igreja, eu pude praticar minha profissão, cuidando das escavações, estudando seus relicários e suas histórias. E posso ajudar as pessoas e servir a Deus.
— O senhor parece tão moderno pelo jeito que fala.
— Minha maneira de atuar na igreja me permite ser mais liberal, temos muitas restrições, regras de como nos portar, mas sou jovem, tenho ideias e isso me faz assim, meio rebelde. — disse, sorrindo. — E como atuo em outra área, tenho mais liberdades, mas não posso quebrar regras que possam me prejudicar, prejudicar aos outros ou a minha igreja.
— Nunca pensou em se casar e ter uma família?
— Pensei, mas eu escolhi ser padre. Meu celibato nunca me incomodou, a vida é feita de escolhas, e eu as aceito por inteiro.
— Fico feliz pelo senhor.
— Não me chame de senhor, Marien. Pode me chamar por você. Está mais tranquila agora?
— Sim. Acho que me assustei à toa.
— Não acho que foi à toa, querida, com os barulhos que ouviu e sem poder ver, é natural que tenha ficado apavorada e imaginado que havia alguém na casa. Aliás, não acho que seja bom você ficar mais sozinha; vou arrumar alguém que fique aqui com você. Gina teve problemas em casa e não pôde vir, por isso que eu vim. Meu Deus, você podia ter se machucado.
— É, foi uma experiência aterrorizante.
— Imagino! Que tal eu ler para você?
— Claro.
— Bem, deixe-me ver o que temos aqui, há livros nesta estante.
Sebastien levantou e olhou os livros.
— Há um romance na mesinha de cabeceira do meu quarto, que eu trouxe. Se importaria de ler para mim?
— Claro que não. — ele foi até o quarto, deu uma olhada e pegou o livro e voltou à sala, sentou, puxou o cobertor e abriu na página marcada com uma fita de cetim. Olhou o livro por uns instantes. — Achei que você só lia sobre arqueologia.
Ela sorriu.
— Tenho um lado romântico. Geralmente é dormente, mas gosto de ler, faz me sentir menos “mármore”.
Ele olhou atentamente para ela e começou a ler. Ela recostou-se mais nas almofadas e ficou atenta às palavras dele.
Sua voz era linda e entrava nos seus ouvidos como uma música. Marien adormeceu no sofá e ele ajeitou as almofadas e a cobriu com o cobertor. Olhou-a por um momento, passou as mãos fortemente no rosto e sentou no outro sofá. Adormeceu rapidamente, já era tarde da noite.
Capítulo 12
— Padre, aqui estão as fotos dos escritos daquela porta, tudo já está limpo. — Davide disse com algumas fotos nas mãos.
— O que diz?
— Aqui na primeira parte diz: “O último suspiro navega aqui. Só os que entendem entrarão; a mão segurará a mão da escolhida, a morte aqui prevalece. Pobre não é o que morre e, sim, o que mata”.
— Nossa! Isso parece bem mórbido para mim. — Marien disse.
— Sim, parece. — o padre concordou. — Eu também não entendo esta parte do meio, nunca vi esta língua em nada.
— Que estranho. — disse Marien. — Mas parece um lugar de onde entravam e não saíam mais. Ele fala da moeda, claramente se refere ao pagamento da passagem.
— Padre, as análises mostraram que as inscrições são do século XIV, mas a arquitetura é bem mais antiga, da alta idade média. — Davide disse.
— Hum... Eu acho que quem viu o fim disso foi quem gravou as inscrições. — explicou o padre e Marien pensou um pouco.
— Quem é a escolhida? — Marien perguntou sem entender. O padre a olhou seriamente, mas não disse nada. — Padre... Por volta de 1303, houve uma grande inquisição pela Europa, além da que já era constante, uma perseguição aos seguidores de religiões, adorações, cultos que não fossem a católica, houve muitas mortes, muitos foram presos com acusação de bruxaria.
— A inquisição mais forte não foi no século XVII? — Davide perguntou.
— Não, Davide. A inquisição, como ficou mais conhecida séculos depois, começou por volta do século V. Os registros maiores são de XVII, porque foram os mais relatados em livros, mas milhares de vidas foram sacrificadas em nome da religião bem antes disso. Mas na baixa idade média foi terrível, foi uma das mais sangrentas e atingiu a maior extensão territorial. Também no século XVI, a Europa foi assolada por outra; os maiores massacres foram liderados pelo rei da Espanha, Felipe II; era um louco sádico.
— Ah, eu me lembro da história, foi ele que invadiu a Inglaterra. Queria derrubar a rainha que não era católica.
— Sim, Elizabeth era protestante e sua meia irmã, Mary, era católica; seu reinado foi curto e sangrento. Este período de brigas de cristãos e protestantes na Inglaterra foi um banho de sangue.
— Quando o povo não era massacrado pelos católicos, era massacrado pelos protestantes. — Davide disse, entortando a boca.
— Sempre houve uma luta contra a fé das pessoas. — Marien suspirou. — Acho que se passarmos daquela entrada, nós encontraremos pistas de mortes. Padre Sebastien, eu acredito que aquela igreja seja a sua procurada. Acho que a igreja chegou aqui, matou os pagãos da província, confiscou seus bens e transformou o templo numa igreja. — Padre Sebastien, perplexo, olhou para ela e ficou mudo por um minuto. — Não adianta me olhar com cara de espantado, como imagino estar me olhando. Mas acho que a sua igreja não esteve fazendo coisas boas aqui.
— Marien, como pode dizer tudo isso? Nem desvendamos os manuscritos!
— Não desvendei nada, mas meu instinto diz que é isso.
— São suposições.
— Não quer admitir nada, não é?
— Não estou aqui para julgar, não sou responsável pelo que aconteceu séculos atrás.
— Eu sei, não estou dizendo que é. Só estou levantando algo que pode não agradar a sua fé.
— Minha fé não tem nada a ver com a história.
— Que bom, pois se tivesse, lhe diria que é um sádico.
Davide levantou as sobrancelhas e ficou mudo diante daquela discussão; não ousaria abrir a boca para se meter.
— Está aumentando as coisas.
— Não estou, não, são fatos registrados. Não adianta tentar me enrolar, não a mim. Sou arqueóloga, esqueceu?
Sebastien suspirou.
— Estou mudo.
— De quem é a mão que fala a inscrição? De que escolhida está falando?
— Não sei. — ele respondeu.
— “A morte chega para aqueles que não têm fé”, isso enfatiza a vida após a morte, é uma inscrição pagã. Se estiver escrito em hebraico, faz relação com a Mãe da Vida que era cultuada pelos hebreus. Isso explicaria as armadilhas, que ainda por cima tinham relação com os celtas, porque uma das inscrições é celta. Este era um templo de Amirtati, a Mãe da Vida.
— Não temos prova disso. — disse o padre.
— Pois eu encontrarei a prova.
O celular de Marien tocou. Ela, apalpando, achou a tecla para ligá-lo.
— Oi, minha querida, como você está?
— Oi, Urs, que bom ouvir sua voz, estou bem.
— Alguma mudança?
— Não, mas estou bem, acredite em mim.
— Vou tentar acreditar. Estou ligando para dizer que Sarah chegará amanhã às onze horas. Peça a alguém que vá buscá-la no aeroporto.
— Assim, sem permissão?
— Minha querida, isso é um assunto que eu resolvo, ela está indo e ponto final. Se alguém aí bufar, diga para me ligar.
Marin sorriu.
— Está bem.
— Sinto saudades.
— Eu também.
— Te ligo mais tarde, beijos.
Marien desligou o celular e, com um sorriso, disse:
— Davide, você pode ir ao aeroporto buscar Sarah amanhã às onze da manhã?
— Quem é Sarah?
— O quê? Como assim? — o padre perguntou, espantado.
— Sarah, minha assistente, está chegando e ela vai ficar.
— Marien, eu disse ao senhor Barker que ia ver isso.
— Bem, acho que o senhor demorou, e ela não irá embora, isso sou eu quem está dizendo.
— Hum... Tudo bem, eu vou buscá-la, não é, padre?
— Tudo bem, Davide, pode ir. — disse, contrariado e quase exasperado, prevendo confusão. — Você não é fácil de lidar, Srta. Stewart.
— Não sou, e se me contratou, devia saber disso.
— Eu sei muito mais que imagina.
— Pois bem, se acha que sabe tanto, por que não me diz quem foi o responsável pelo roubo dos pergaminhos de Tiago?
Sebastien a olhou com os olhos arregalados.
— Não sei nada sobre isso! Desculpe, tenho que ir, pois tenho algo importante a fazer, depois eu volto. Se você sentir ou vir algo, me ligue.
Marien ficou calada. O padre e Davide foram embora, deixando-a com Gina. Marien respirou fundo e passou as mãos no rosto. Não devia ter falado sobre os pergaminhos de Tiago, mas até que ela tinha conseguido segurar sua língua mais do que pensara.
O padre, quando deixou a casa, pegou o celular, discando nervosamente alguns números.
— Filippe?
— Sebastien, eu quase enfarto quando você me liga.
— Preciso que veja algo para mim.
— Ok. O que é desta vez?
— Quero os registros de entrada de relíquias de 23 de outubro de 2003 e alguns dias depois desta data.
— Eu posso saber por que está pedindo para mim? O padre Pedro pode lhe mandar isso.
— Não seja ingênuo, não é daqueles registros que estou falando.
— Está louco? Você não tem acesso àqueles outros registros.
— Mas você tem.
— Quer que eu vá lavar pratos num monastério numa montanha do Alasca?
— Não há monastério no Alasca. Por favor, faça isso.
— Ai, você me mata!
— Filippe, por favor, é importante.
— Está bem, eu vou tentar ver isso, mas não garanto nada, sabe que sou vigiado. Sem data para entrega, heim?
— Preciso disso o mais rápido possível.
Ele desligou o celular e respirou fundo. Aquela mulher estava o tirando do seu controle emocional e ele nem havia percebido.
Gina, que encarecidamente pôde ficar dormindo na casa com ela, ajudou-a a deitar-se e depois foi para o quarto de hóspedes. Marien aconchegou-se nos travesseiros para tentar repousar; tentava achar algumas respostas, mesmo pensando no trabalho, tentava pensar em outra coisa e dormir.
De repente, ouviu seu nome de forma ofuscada e sentou na cama rapidamente, seu coração acelerou e seu corpo tremeu.
— Gina?
Houve um longo silêncio. Ela deitou no travesseiro devagar, respirou fundo, cobrindo os olhos com as mãos. De repente, um clarão lhe veio e o rosto de uma mulher lhe apareceu, sorrindo; vestia-se lindamente de branco e o ambiente era escuro, iluminado com fogo em piras; ela parecia olhar diretamente para Marien. Disse seu nome novamente e tudo ficou escuro.
Marien sentou na cama, olhou para os lados e teve vontade de gritar. Estava vendo coisas e aquela voz era nítida na sua cabeça. Pensava que sua cabeça estava do avesso. Respirou e teve a ideia sobre as inscrições; pegou o celular, que deixara ao lado do travesseiro, e ligou para o padre.
— Marien, está bem?
— Padre, às avessas! Leia de trás para frente os escritos que não conseguimos decifrar.
— Um momento. — houve um silêncio enorme que quase a fez perder a paciência até que ele voltou ao telefone. — Marien, você está certa! Como não percebi isso?
— O que diz?
— “Com força de dois opostos, a terra se abre. Um será aberto, mil serão descobertos. Dois corações, em um têm a chave; a escolhida e a cruz”.
Marien sentiu um forte choque em sua mão. Gritou e soltou o celular, que caiu longe no chão do quarto. Um clarão forte lhe veio nos olhos e ela viu um labirinto e ouviu uma respiração forte. Seu corpo todo tremeu e um frio lhe percorreu a espinha; sua pulsação saiu do controle, e ela tentou fazer com que aquilo sumisse, mas parecia não ter controle nenhum daquelas visões e de seu corpo, pois não conseguia se mover.
Viu o rosto daquela mesma mulher que lhe sorria e, no seu peito, viu o pentagrama. Quando Marien focou seus olhos na estrela, sentiu uma dor em seus olhos; gritou, apertando-os com as mãos.
O celular que caiu no chão, mas ficou ligado; pôde transmitir ao padre seus gritos. Ele chamava seu nome pelo telefone, sem resposta. Ele, assustado, levantou da cadeira e saiu correndo em direção ao carro. Foi a toda velocidade em direção à sua casa.
Gina, que ouvira seus gritos, estava com ela no quarto quando ele chegou correndo, quase arrombando as portas.
— O que houve? Marien, está bem? — o padre disse, nervoso, entrando no quarto.
— Eu não sei. Eu vi uma mulher, ouvi meu nome. — Marien respondeu, agoniada.
— Padre, ela gritou e eu vim correndo, mas não há nada no quarto. Olhei pela casa e não há ninguém, acho que ela sonhou.
— Eu não sonhei, estava falando com o senhor pelo telefone.
— Eu sei, calma. — Sebastien sentou na cama e olhou para Gina. — Deixe-nos a sós. — ele esperou ela sair com os olhos arregalados e fechar a porta. — Marien, você está amedrontada, está tendo ilusões.
— Não estou tendo nada, eu sei o que vi, não é a primeira vez.
— Tudo bem. Fique tranquila, isso vai passar, acho que estes clarões são porque sua visão está voltando.
— Acha mesmo?
— Marien... — ele a olhou nos olhos. — Mantenha a fé, não a perca, senão seus sentidos irão se perder.
— Não estou perdendo os sentidos, eu estou vendo e ouvindo coisas. Não acredita em mim?
— Eu acredito. Mas acho que esta história está afetando você.
— Como não estaria? Você não está escondendo nada, não é?
— Não. Quando eu souber de algo a respeito disso, eu lhe direi.
— Por que me trouxe aqui? Você não precisa de mim.
— É claro que eu preciso, não sou conhecedor de tudo. Seus conhecimentos são preciosos, eu queria que você fizesse parte disso.
— Por que eu?
— Marien, eu confio no seu trabalho, por isso a chamei. Não sou vaidoso de querer ser vangloriado por nada. Você é fantástica nas suas pesquisas, no seu livro, nos seus artigos; eu li tudo, sei tudo sobre seu trabalho e eu sabia que precisava de você aqui, mas sobre sua vida pessoal, eu não sei muita coisa.
— Não falo da minha vida pessoal.
— Não falaria comigo nem em confissão?
— Nunca me confesso, eu não acredito nisso.
Ele sorriu.
— Entendo. Você tem mais jeito de quem acenderia uma pira, se vestiria de branco e louvaria a deusa com um medalhão de cinco pontas no pescoço, do que estar de joelhos num confessionário.
Marien, ouvindo isso, afastou-se dele bruscamente, arrastando-se na cama; aquelas palavras dele lhe cravaram como um punhal.
— Você descreveu o que eu vi!
— Como assim?
— O que acabou de dizer, foi a visão que eu tive! — ela exclamou, nervosa.
— Marien, é uma visão comum de pagãs adorando uma deusa.
— Sebastien, você sabe o que houve aqui?
— Não, Marien, eu não sei, isso é o que eu quero descobrir. Vamos, se acalme, está muito nervosa.
— Posso confiar em você?
— Pode, de todo coração. — disse, segurando seu rosto.
Marien fechou os olhos e Sebastien ainda estava segurando seu rosto quando uma onda de sentimentos o invadiu; ele sentiu algo diferente e a soltou rapidamente.
Ele começou a perceber que ficava incomodado com sua presença, mas não entendia nenhum sentimento que vinha de dentro dele nem como se aproximava dela daquele jeito. Ele fazia movimentos inapropriados e inesperados, movimentos que nunca fizera antes.
— Durma, já é tarde. — ele disse nervosamente.
— Então fique aqui comigo, por favor.
Ele suspirou cansadamente, arrumou os travesseiros e ela se aconchegou neles. Sebastien sentou ao seu lado e ela segurou sua mão até adormecer. Ele ficou muito incomodado com aquela situação, mas fez aquilo, pois deveria ser horrível para ela estar naquela desventura. E, afinal, ele era o responsável por ela estar em Ancona e, consequentemente, pela sua cegueira.
Talvez algo naquilo tudo fizesse um grande sentido, e era isso o que ele queria tanto descobrir. “A escolhida e a cruz”, o que isso significava?
Seu sentido poderia ser maior do que parecia; a inscrição era uma chave, mas qual? E as visões que ela dizia ter estavam perturbando-o imensamente.
Oh, aquilo era ruim, muito ruim.
Ele ficou deitado ao seu lado e, sem se aperceber, dormiu também, pois estava exausto.
Gina veio ao quarto e viu os dois dormindo lado a lado segurando suas mãos. Arregalou os olhos e abriu a boca de espanto, mas não fez barulho. Fechou a porta e respirou fundo; aquilo parecia um péssimo sinal.
Ela fez o sinal da cruz e foi para o quarto de hóspedes para dormir. Não queria saber de nada daquilo.
*
Quando Sebastien acordou, já estava amanhecendo. Levou um susto ao perceber onde estava. Olhou para o lado e viu Marien dormindo; saiu da cama rapidamente, quase como se ela o estivesse queimando.
Ele, atordoado, esfregou o rosto, saiu do quarto e foi para sua casa. Ficou nervoso e indignado consigo mesmo, pois suas atitudes estavam descontroladas. Chegando ao seu chalé, foi direto tomar um banho. Ficou ali por mais tempo do que jamais pensara em ficar; seus pensamentos estavam embaralhados e queria lavar aquilo tudo com a água.
Marien acordou algumas horas depois com o barulho de Gina no quarto. Forçosamente, tentou abrir os olhos e percebeu algo diferente; percebeu o vulto de Gina movendo-se.
— Gina?! — chamou alto e eufórica, sentando na cama.
— Ai! O que, senhorita? — disse, virando-se, assustada.
— Estou vendo seus movimentos!
— Jura?
— Sim, é só uma névoa, mas vejo você se mover!
— Então esta desgraça vai passar, como o padre disse?
— Sim!
Marien riu como uma boba e ligou para Urs, mas ele não atendeu. Bebeu o café que Gina lhe preparou e dali a pouco seu celular tocou. Gina atendeu e falou algumas palavras.
— Senhorita, ela diz que é sua amiga, Lizza.
— Oi, Marien, como vai?
— Estou bem, não se preocupe.
— Não viu as notícias online de Londres?
— Não, por quê?
— Seu ex está nela e você também.
— E por que desta vez?
— Pelo de sempre, jantando com uma mulher.
— Ele é livre, Lizza, pode jantar com quem quiser.
— Sei. Acho que não vai querer saber o que está escrito.
— Se você me ligou, é porque quer ler para mim.
— Tudo bem... “O solteiríssimo multimilionário mais cobiçado de Londres, Urs Barker, curador do museu de Londres, assina contratos com novos investidores para seu novo projeto, o Centro de Pesquisas Arqueológicas. E parece que comemorou em grande estilo com a empresária Sasha não sei o quê. De acordo com os últimos rumores, ele foi atrás de sua ex-esposa na Itália com seu novo brinquedo voador. Mas também demonstrou estar bem feliz com a bela loira que não escondia sorrisos. Ao que parece, ela pode ser a futura lady Barker. Será que, casando-se, ele deixaria de trabalhar com a ex-mulher, Marien Stewart, de quem, segundo boatos, ele daria o nome ao Centro de Pesquisas?” E consta uma bela e enorme foto dos dois saindo do restaurante. — Marien ficou calada. — Está viva?
— Obrigada pela notícia, Lizza.
— Desculpe, querida. Eu só quis ajudá-la.
— Ajudou sim, obrigada.
Marien pensou em falar de sua situação ou comentar sobre a noticia, mas preferiu calar-se, não queria que Lizza se preocupasse.
— Está calada, eu a aborreci.
— Não, só estava dormindo e meu cérebro ainda não acordou. Sabe como é, falta de café.
— Ok. Eu te ligo mais tarde, porque o pedreiro acabou de chegar. Por favor, se cuide.
— Pode deixar, beijos.
Marien deitou nos travesseiros e respirou profundamente. Nada demais, só mais um dos tantos casos de Urs. Era engraçado como ele saía tanto nos noticiários e sites de fofocas, até mais que os príncipes da Inglaterra. Talvez por isso ele não atendeu o telefone.
Capítulo 13
Ela ficou deitada, tentando voltar a dormir, porque na sua situação não havia muito o que fazer, mas foi em vão, então se irritou e ligou para o padre.
— Bom dia, padre.
— Bom dia, Marien.
— Desculpe, eu não vi o senhor sair ontem à noite.
— Está tudo bem.
— Estou começando a ver vultos. Vi Gina movimentar-se no quarto, acho que minha visão está começando a voltar.
— Marien, isto é uma notícia maravilhosa! Deus seja louvado.
— Alguma novidade?
— Marien, eu acho que sei o que quer dizer uma parte da inscrição.
— O que é?
— Acho que a escolhida é você e a cruz sou eu.
— Como assim?
— No manuscrito de Sir Asch, ele fala da filha. Acredito que seja uma mulher, e a cruz representa os cruzados e os cristãos, então, como sou padre, a cruz é nosso símbolo. Acho que é uma indireta para que nós possamos entrar na passagem; não estudei como é essa tal chave, mas parece que é isso que dá a entender, que eu e você conseguiremos abrir a porta juntos.
— Mas pode ser qualquer mulher e não eu.
— Isso é genérico, mas acho que não é por acaso que uma pagã e um padre estejam nisso juntos.
— Não sou pagã.
— Talvez não, mas não é católica, ou pelo menos não é mais.
— Tudo bem, vou considerar isso. Mas, padre, isso não faz sentido, seria muita coincidência esta inscrição se referir a nós dois. Isto é absurdo, você sabe mais do que me disse.
— Como eu disse, foi uma suposição, eu fiz uma relação de fatos, mas vamos ver isso. Daqui a pouco Davide vai buscar sua assistente.
— Ótimo. Obrigada.
Marien desligou o telefone e se jogou na cama, sentia-se extremamente nervosa.
*
— Davide, esteja no aeroporto no horário marcado para esperar Sarah. — o padre disse, esfregando os olhos com os dedos.
— Sim, senhor. Hum... Padre, quando vai contar a ela?
— Tudo há seu tempo, Davide, não posso dizer nada, nem eu entendo isso, como vou explicar a ela? O Senhor vai me mostrar a hora certa, eu espero que eu consiga desvendar esse quebra-cabeças.
— Nunca o vi assim nervoso.
— Essa mulher me deixa nervoso.
— Isso é um mau sinal.
— Mau sinal de quê?
— Nada. — disse, desconversando.
*
Davide foi ao aeroporto esperar por Sarah. Ela era recém-formada em arqueologia e acompanhava Marien em seus trabalhos já há alguns anos. Era sua companheira para todas as horas no trabalho e pessoais.
Sarah era uma moça muito bonita, animada e inteligente, adorava seu trabalho e, principalmente, trabalhar com Marien.
Quando o voo chegou, Davide ficou com uma placa no desembarque. Sarah saiu empurrando o carrinho e olhou as placas, mas não viu seu nome. Parou vendo Davide e ela ficou o olhando, boquiaberta; aquele homem parecia um poste perto dela. Ele a olhou também e ambos permaneceram assim por alguns segundos até que finalmente ela fechou a boca e piscou, tentando manter a compostura. Ela olhou para a placa, entortou a boca e foi até ele.
— Está esperando por mim? — disse, irônica, mas sustentando um leve sorriso.
— Você é Sarah?
— Sou.
— Então, eu estou com seu nome aqui.
— Mas eu poderia achá-lo com mais facilidade se sua placa não estivesse de cabeça para baixo. — ela disse, pegando a placa da mão dele e a virando.
— Ah, desculpe! — ele riu, envergonhado. — Muito prazer, eu sou Davide, o assistente do padre.
— Sou Sarah, assistente de Marien. — os dois apertaram as mãos.
— Deixe-me ajudá-la. — ela o olhou de canto de olho, olhando para cima, ela deveria alcançar na altura de seu ombro. — Sua vinda está causando confusão por aqui.
— É! Eu causo este efeito.
Ela riu e Davide a olhou, sorrindo.
— Sua chefe é durona.
— Sim, cuidado com ela, ela pode fritá-lo no café da manhã.
— Acho que ela fritou o padre hoje de manhã.
— Gostaria de ter visto isso.
Sarah riu. Os dois chegaram ao carro e seguiram até o chalé de Marien, enquanto travavam uma conversa animada. Logo que chegaram, Davide descarregou as malas e voltou para o carro.
— Vou deixá-la aqui; tenho coisas a fazer. Se precisarem de mim, pode me chamar.
Sarah entrou e Marien estava na sala, sentada no sofá.
— Chefinha! — exclamou, eufórica.
— Sarah! — as duas se abraçaram. — Que bom que está aqui!
— Eu sinto muito pelo que aconteceu, o Sr. Barker me contou.
— Estou melhorando, hoje já consigo ver vultos, vejo um pouco de você. — disse, sorrindo.
As duas sentaram no sofá e Marien contou tudo a Sarah para inteirá-la de todos os acontecimentos.
*
Padre Sebastien estava revendo algumas anotações e olhava intrigado para a estatueta da deusa Mãe da Vida. Iria à casa de Marien para conhecer Sarah e trabalharem quando recebeu um telefonema e reconheceu a pessoa pelo visor.
— Olá, Filippe.
— Olá, Sebastien, eu preciso que venha aqui urgente.
— Para o Vaticano?
— Sim, eu preciso lhe mostrar algumas coisas.
— Mande-me o que encontrou.
— Você poderia ser mais específico, para tirar minha dúvida? Vi sobre as entradas no período que me pediu. Exatamente o que está procurando?
— Sobre os pergaminhos de Tiago, quero saber quando deram entrada.
— Bem, eu imaginei que fosse isso. Aqui consta dia 24 de outubro.
— O quê?! — perguntou, espantado.
— Sim, mas por quê?
— O que mais diz?
— Hum... Tem as siglas e acho que você não vai gostar nada, mas não posso te enviar isso e tem mais coisas aqui que você precisa ver. Eu preciso que venha aqui, pois estou proibido de sair.
— Por quê? O que você fez?
— Eu fui pego xeretando onde não devia, então estou com algumas limitações. Posso me encontrar com você hoje à noite, lá pelas duas da manhã, pois amanhã cedo isso aqui tem que estar no lugar novamente, portanto venha logo.
— Tudo bem, eu estou indo imediatamente.
— Nos encontraremos no lugar de sempre.
Sebastien desligou e foi de encontro a Davide.
— Davide, eu estou indo a Roma.
— Agora? — perguntou, espantado.
— Já.
— Mas, padre...
— Davide, é necessário, cuide de tudo por aqui e principalmente cuide de Marien. Veja se Sarah se integra dos assuntos enquanto estou fora. Já que ela está aqui, faça-a trabalhar.
— Sim, senhor.
Sebastien arrumou uma maleta de couro com alguns pertences, pegou o carro e saiu rapidamente.
*
— Sarah, eu quero que desça com Davide e tente abrir aquela porta e também dê uma olhada na entrada onde sofri o acidente.
— Sim, chefinha.
— E fique de olho no que eles estão fazendo. Ligue para Davide e diga para ele vir buscá-la, aprenda o caminho.
— Sim, mas eu vou ficar aqui na sua casa?
— Por enquanto, sim, mas depois eu vejo isso, está bem? Vou tentar arrumar um lugar só para você, como sempre.
Sarah ligou para Davide e em poucos minutos ele estava no chalé.
— Onde está o padre, Davide? — Marien perguntou.
— Ele teve que ir a Roma.
— De novo? Ele não pode sair assim, temos muito trabalho a fazer aqui, eu estou impossibilitada por enquanto. Se ele se ausentar, nunca vamos terminar isso.
— Eu sei, mas foi uma emergência, ele saiu correndo.
— Hum... Ok. Por favor, quero que vocês dois desçam lá e tentem abrir a porta.
— Mas nós já tentamos. — Davide disse.
— Quero que tentem seguindo a inscrição, vocês dois juntos. Vocês são opostos, homem, mulher, religiões diferentes, enfim... Algo deve fazer sentido, como o padre deduziu, tentem alguma coisa, mas me abram aquela passagem.
— Pode deixar, chefinha, já estamos indo.
— Se conseguirem algo, me avisem.
Marien sentia-se nervosa e angustiada; tudo estava empacado, nada fazia sentido, tudo que lia faltava um pedaço; encontraram duas entradas importantes e não conseguiam penetrar em nenhuma das duas.
Marien sentia sua cabeça doer, pensava em um jeito de desvendar aquilo.
De repente, seus olhos viram um clarão; viu uma rebuscada imagem de um homem de vermelho com uma fisionomia grotesca. Seus lábios moveram-se, mas ela não entendeu o que ele dizia.
Sua visão mudou e parecia que ela corria entre um labirinto de pedras. Subitamente, alguém lhe agarrou pelos braços e seus ouvidos foram atingidos por um grito horrível e ela sentiu uma dor imensa em sua boca.
Marien colocou a mão sobre a boca e caiu no chão; num segundo, voltou a si e percebeu que estava na sua sala e seus olhos podiam ver mais do que antes. Suas imagens eram mais nítidas, mas a dor horrenda que chegou a lhe tirar lágrimas dos olhos ainda estava presente, mas se amenizando.
Seu coração pulsava no peito tão fortemente que parecia que iria ter um enfarto e, com dificuldade, tentava respirar.
— Marien, o que foi, o que está sentindo?! — Davide gritou e Marien não conseguia responder. Davide forçosamente lhe retirou a mão e olhou sua boca. — Não há nada. Sente dor?
— Horrível. — ela disse, gemendo.
— Calma, sente aqui. — ele a levantou do chão e a sentou no sofá. — Eu vou levá-la ao hospital.
— Não... Já está passando. — disse, tentando respirar.
— Chefinha, o que foi isso? Você mordeu sua boca?
Marien não respondeu, só fez sinal com a cabeça que não sabia. Ficaram ali por alguns minutos e Marien não sentiu mais nada.
— Vamos ao hospital, por favor.
— Não, eu estou bem.
— Você viu alguma coisa. O que viu? — perguntou Davide.
— Como sabe que vi algo?
— Pelo seu jeito. Você viu alguma coisa?
— Eu não sei. Não era nítido, mas vi um homem de vermelho, um túnel, senti pânico e depois essa dor.
— Bispos... Bispos antigos usavam às vezes uma roupa inteira vermelha.
— Ok, muito obrigada, eu adorei saber que estou vendo bispos, agora vão.
— Não vamos a lugar nenhum com a senhorita assim.
— Vão logo, estou bem. Abram aquela porta, entenderam?
— Vamos tentar, chefinha. Vamos, Davide. — Sarah o puxou pelo braço. — Marien, se precisar, ligue imediatamente.
Quando Davide e Sarah estavam lá fora, ele olhou nervoso para Sarah.
— Sarah, nós não devíamos deixá-la assim. Se algo acontecer novamente a ela na ausência do padre, ele me esfola vivo.
— Pensei que seu padre fosse bonzinho.
— Ele é, mas eu tenho que cuidar dela.
— Ela está bem, mas mal vamos ficar nós dois se não abrirmos aquela porta e eu não estou gostando nada destas visões.
— Humm... Eu também não.
— Você ficou estranho.
— Não é nada, eu só acho isso estranho. Ela sempre teve visões?
— Que eu saiba, não. Vamos.
*
Sarah desceu com Davide e olhava atentamente para a porta, fazendo beicinho. Davide a olhava com uma expressão séria.
— Sempre faz beicinho quando está pensando? — ela o olhou de canto de olho e não respondeu. — A porta não vai abrir.
— Podemos tentar. Se é uma porta, deve abrir.
Os dois olhavam intrigados para a parede e tentavam encontrar algo que lhes permitisse abri-la.
— Está vendo esta parte da madeira que está funda? — Sarah perguntou.
— Sim.
— Coloque sua mão aqui. — Davide colocou e Sarah colocou sua mão ao lado da dele. — Empurre.
Os dois tentaram empurrar e nada aconteceu.
— Já tentamos isso, ela jamais abrirá como uma mágica.
Houve um imenso silêncio entre eles. Olhavam e tentavam de tudo, mas nada acontecia.
— O que será que tem atrás disso?
— Não deve ser coisa boa para estar assim tão secreta.
— Teria um tesouro aqui?
— Tesouro de quem?
— Sei lá, ninguém fecharia algo assim se não fosse para esconder algo precioso.
— Bem, quem sabe as minas do Rei Salomão. — ela disse, brincando, e Davide riu.
— Seria bom.
— Davide?
— Hum?
— O que você diz para uma garota quando a ama? Ou como se sente?
— Não sei, eu nunca amei ninguém.
Sarah olhou para ele com os olhos arregalados.
— Tudo bem... Que estúpida, claro que não. — disse, respirando fundo. Sarah ainda não tinha muitas informações por ali e pensava que Davide era um padre, assim como Sebastien. — Bom, vou clarear suas ideias. Quando uma pessoa está apaixonada pela outra, ela diz que a ama de coração, que seu coração pertence à outra, estas coisas. Unidas pelo coração. Quer dizer um casal apaixonado.
— A lenda diz que a bruxa amaldiçoou a igreja por causa do marido.
— Isso! — exclamou, fazendo cara de satisfeita.
— Sua teoria é que esta porta está enfeitiçada e somente um casal apaixonado pode abri-la? Sarah, esta visão está romântica demais. Não acredito nisso.
— Ai, Davide, como você é estraga prazeres. Dê-me alternativas, mas acho que minha teoria está certa.
— Não acho de toda errada, pode estar certa, mas o que acontece é que não seria simplesmente um casal qualquer e, sim, duas pessoas específicas.
— Davide, eu concordo que não são duas simples pessoas e que tem algo aqui muito estranho e isso está afetando a Marien de uma maneira que eu nunca vi. Às vezes, tenho medo de que ela esteja metida nisso mais do que ela pensa e mais do que deveria.
— Acha que tem algo aqui que pode prejudicá-la?
— Bom, ela está cega, está tendo visões estranhas e este lugar é todo cheio de enigmas. Por que só ela está sendo afetada por isso e mais nenhum de nós? — Davide ficou mudo, olhando-a, e não respondeu. — Está escondendo alguma coisa?
— Como o padre diz, com o tempo tudo se esclarecerá e todas as verdades serão reveladas. Para tudo há seu tempo.
— Isso é verdade, e é verdade também que está escondendo alguma coisa. Se o que está escondendo prejudicar Marien, eu dou um jeito em você e no seu padre, entendeu?
— É a segunda vez que escuto esta ameaça. — ele disse, olhando para seu rosto.
— Talvez devesse prestar atenção nela.
— Por que me retruca?
— Não retruco.
— Você é teimosa.
Sarah olhou-o, intrigada, e o achou incrivelmente lindo.
— É... Eu devo ser mesmo.
Sarah virou as costas e saiu. Davide respirou fundo e esfregou os olhos com as duas mãos.
— Inglesas...
Capítulo 14
O padre chegou ao lugar combinado às duas da manhã e Filippe o estava esperando, nervoso. O ar estava gélido, e ele se encolhia, segurando firmemente uma pasta. Quando viu alguém se aproximando, seu coração retumbou, mas logo reconheceu o andar de Sebastien, altivo e elegante.
Quando ele chegou à sua frente, sorriu, e os dois se abraçaram.
— Como vai, amigo? — Sebastien perguntou.
— Com a corda no pescoço. Por favor, Sebastien, pare de me pedir estas coisas, que você vai acabar me metendo em encrencas.
— Desculpe, mas era preciso. Diga-me o que achou.
— Sobre o registro, eu consegui uma cópia. — ele lhe entregou um papel. Sebastien leu e sua respiração parou por um segundo. — É ela, não é? — Filippe perguntou.
— Sim, meu Deus! Como isso foi acontecer? Isso é muito errado!
— Sebastien, isso não está ao meu alcance nem ao seu. Você conhece estas siglas, fique longe, por favor.
— Eu já desconfiava, só queria ter certeza.
— Por que a chamou para o trabalho em Ancona, está louco? Se ela descobrir, vai odiar você e certamente vai embora.
— Eu não tive culpa disso.
— Eu sei, mas ela não sabe e creio que ela não terá uma reação pacífica a isso. Já imaginou se ela jogar na imprensa?
— O motivo pelo qual a levei a Ancona não tem nada a ver com isso. Eu sabia que ela esteve neste projeto, mas não imaginei que esse era o resultado.
— Bom, se você conseguir separar as duas coisas, o parabenizo. Se for redenção que procura, talvez tenha forçosamente agora.
— O que mais tinha para me mostrar?
— Isso.
Filippe colocou um maço de folhas na mão dele.
— O que é isso?
— Os estudos do professor Limon Aurtred.
— O pesquisador dos manuscritos de Sir Asch? — perguntou, espantado.
— Sim.
— Filippe, eu não quero nem perguntar como vocês têm isso.
— Constam as mesmas siglas.
— Meu Deus!
— Eu tive tempo de tirar uma cópia para que levasse. Eu dei uma olhada e percebi que faltam muitas páginas e que ele não terminou o estudo, portanto, esta será sua missão. Preciso ir, senão sentirão minha falta e os originais devem voltar ao seu lugar, senão estarei ferrado.
— Obrigado, amigo.
— Ta, ta, da próxima vez, pelo menos me pague um jantar, estou faminto. Aquela comida é horrível, nem parece que estamos na Itália, porca miséria!
— Prometo que irei pagar-lhe um banquete da próxima vez.
— Eu vou cobrar. E não me peça mais nada a respeito disso.
— Espero não ter que pedir e prometo uma bela massa italiana do melhor restaurante da Itália.
— Ah, agora estou voltando a gostar de você.
— Amigo, obrigado. Vá agora, eu não quero que se prejudique por minha causa.
— Tudo bem... E, Sebastien, por favor, veja o que vai fazer. Você se meteu numa enrascada sem tamanho. Tem certeza daquilo que me disse?
— Não sei, mas estou chegando à conclusão que sim. Vou ler os estudos do professor e depois lhe digo, mas acho que tudo a indica.
— Hum... E o resto de tudo indica você.
— Sim, mas é apenas uma suposição das minhas visões e alguns escritos.
— Sebastien, não caia nesta armadilha, você vai se ferrar.
— Não vou me ferrar, é apenas uma pesquisa. Nada vai abalar meu coração.
— Ah, ta! Se eu não o conhecesse há uns dez anos, eu nem diria isso, mas esta tua cara já o leva ao inferno.
— Está enganado, eu não estou misturando trabalho e sentimentos.
— Sebastien, se não estivesse, não estaria tendo estas visões.
— Isso eu não posso controlar, é mais forte que eu. Por mais que eu ore, elas não desaparecem.
— Isso é coisa do demônio, você está se metendo na cova deles. Pelo amor de Deus, se acordar os demônios, você sucumbirá com eles. Se eu fosse você, pediria para abandonar esta escavação, passe para outra pessoa, não faça isso, e tire aquela mulher de lá, ela não merece passar por isso. A ira dela cairá sobre você e talvez sobre a igreja, e não abra aquelas portas.
— Não posso. Se eu precisar pagar com a ira de Marien, eu pagarei. Mesmo que a culpa não seja minha, eu carregarei este fardo.
— Então que Deus tenha piedade de sua alma.
— Eu também rogo por isso em todos os momentos, meu amigo.
— Eu nem imagino o que tem lá embaixo, mas eu não queria estar na tua pele. Não tenho mais argumentos para lhe fazer desistir e creio que depois de ler o estudo, muito menos. Deus o abençoe.
Despediram-se e Sebastien e Filippe foram embora seguindo rumos diferentes. Sebastien foi para sua casa que ficava em Roma. Sentou-se no sofá e esfregou os olhos, acendeu o abajur e começou a ler a pesquisa do professor.
No início, muita coisa que ele escrevera, Sebastien já tinha conhecimento, mas algumas páginas estavam faltando. Leu algumas anotações que lhe chamaram a atenção.
“Creio que as escritas de algumas páginas de Sir Asch dizem respeito a uma profecia que foi lançada antes da morte dela. Que quando houver um alinhamento no mundo oculto, duas almas opostas, mas ligadas pelo passado, se encontrarão. O feminino e o masculino, esta será a chave para os portões da terra e o segredo da Mãe da Vida e da igreja será revelado. Com isso, a fé será abalada, a sacerdotisa será libertada de sua prisão, o grande mau e a injustiça serão reparados”.
“Não se sabe quem seriam estas duas pessoas que receberiam esta dádiva ou esta maldição, mas só os dois escolhidos conseguirão abrir as portas que foram lacradas por Sir Asch, e todos os segredos escondidos serão revelados, trazendo o começo de tudo, devolvendo a paz àquela que chora. Acredito que o templo, que foi transformado em Igreja pelo Bispo Francesco de Pádua em 1303, esteja soterrado em algum lugar na província de Ancona, mas nunca se soube onde. Espero um dia ter a dádiva de encontrá-lo.”
— Sir Asch?! — Sebastien quase gritou. — Ele que fez aquelas portas daquele jeito? Colocou as armadilhas? Mas o que estão escondendo? Então Marien tinha razão, não era uma igreja e, sim, um templo que foi transformado em igreja. — o padre recostou-se no sofá, estava exausto. — Se você e eu somos os escolhidos, Marien, por quê? Qual é a ligação?
Ele ficou ali, recostado, com os olhos fechados, pensando no que tinha lido e sem querer adormeceu.
Já eram quase quatro da manhã e Sebastien sonhava; via uma guerra, homens lutando com espadas, alguns com as vestes de templários com a cruz no peito. Um homem se destacava na luta e lutava com bravura, levantando forçosamente sua pesada espada.
Num momento, parece que tudo parou e aquele homem com sangue nas vestes e no rosto encarou profundamente Sebastien. Ele ouviu gritos, mais parecendo urros e tudo se apagou.
Lentamente na escuridão, uma luz foi surgindo; viu uma mulher que já vira outras vezes, podia ver seu rosto num relance. Era linda, com os cabelos longos, ondulados e castanhos que lhe caiam pelos ombros e sorria lindamente.
— Se quiser conhecer o segredo, abra seu coração. Estarás entre o amor e a fé, mas não tenha medo, a verdade liberta.
De repente, o rosto dela transformou-se num rosto conhecido, parecia o de Marien. Sebastien acordou num salto, deixou as folhas que estavam no seu colo caírem no chão e, agoniado, esfregou o rosto. Ele juntou as folhas, olhou no relógio, viu que já estava amanhecendo e foi para o chuveiro.
Depois de um bom banho e um café forte, voltou a Ancona.
*
Marien dormia tranquilamente quando acordou num solavanco e o quarto iluminou-se. Surgiu a imagem de uma mulher que estava lindamente vestida em um vestido que parecia do período medieval, branco e longo até os pés. Seus cabelos eram compridos até a cintura e soltos, e uma delicada tiara adornava sua testa. Ela era tranquila, muito bonita e sorria como o sol. Sua voz soava como uma doce melodia e pôde ouvir claramente:
— A verdade nos libertará e eu a recompensarei. Está na hora de começar a enxergar a verdade. Todos os véus cairão.
Ela tocou o rosto de Marien e a imagem sumiu. Marien esfregou os olhos, pois algo estava estranho com eles. Tateou a mesinha ao lado da cama, procurando o abajur. Acendeu a luz e olhou para o quarto. Ficou ali parada, boquiaberta, olhando para as coisas e riu.
— Estou vendo! Meu Deus! Sarah! — gritou.
Sarah pulou da cama de pijama e, quase sem abrir os olhos, estava no quarto de Marien.
— O que foi? — perguntou, assustada.
— Eu estou vendo, minha visão voltou!
— Jura? Ai, meu Deus, deixe-me ver! Está me vendo direitinho? Não está mais falhando?
— Não, a nuvem desapareceu. Já te vejo bem! — elas se abraçaram, rindo. — Este pesadelo acabou.
— Isto é maravilhoso, Marien!
— Sim, dê-me o celular. — Marien ligou para Urs e ele demorou a atender. — Ai, Urs, anda, atende este telefone.
— Ele deve estar dormindo, ainda é cedo e é domingo. — Sarah disse.
— Marien, o que houve? — Urs atendeu, sonolento.
— Urs, minha visão voltou! — disse, eufórica.
— O quê? — ele rapidamente se sentou na cama e acendeu o abajur.
— Minha visão voltou, estou enxergando claramente!
— Meu Deus, isso é ótimo, Marien! Estou muito aliviado, minha querida, obrigado por me dizer, este susto acabou.
— Sim! Ah, deixe-me ir, só liguei para avisá-lo. Eu quero ver o dia, quero ver o mar! — disse, rindo feliz.
— Vai, minha querida, qualquer coisa me ligue, está bem?
— Sim, eu ligo. Beijos.
Urs desligou o celular, aliviado, e deitou nos travesseiros respirando profundamente, com um sorriso no rosto.
Era cedo e queria dormir mais um pouco, mas não conseguiu porque Marien não saia de seus pensamentos. Só agora se dava conta de quanto tinha ficado nervoso por causa de sua cegueira e quanto seus pensamentos estavam tomados por ela novamente. Aquilo tinha que parar.
— O que está acontecendo comigo? Por que Marien está me afetando desse jeito de novo? Pare com isso, Urs! Esta história está morta e enterrada.
*
Depois de um bom café da manhã, Marien foi contemplar o dia naquela paisagem maravilhosa. Foi uma dádiva. Ela correu até o penhasco e sorriu. Ficou por uns instantes com um sorriso estampado no rosto, mas ele se apagou quando se lembrou da visão daquela mulher, do sonho que teve e do que ela disse.
— Quem é você, como se chama? Por que está aparecendo assim para mim? Acho que você era a sacerdotisa do templo. Você cultuava a Deusa da Vida aqui, por isso a igreja lhe condenou por bruxaria. Eu vou achar a verdade. Vou abrir aquelas portas e vou descobrir o que tem lá embaixo. Se for isso que está tentando me dizer, me ajude.
— Marien! — Davide gritou.
Ele correu até ela com um sorriso imenso nos lábios que iluminava seu rosto e Sarah o seguiu. Ele parou de correr quando chegou na sua frente, ofegante e eufórico.
— Oi.
— Sarah me contou que está vendo, que maravilhoso! Estou feliz por você e aliviado, lógico.
— Davide, eu adorei ver seu rosto! — ela disse com um sorriso e o abraçou, deixando-o encabulado, mas ele sorriu, feliz.
— Ei, hoje é domingo! O que acham de eu levá-las para um passeio e depois irmos almoçar num belíssimo restaurante? Eu acho que nós temos que comemorar.
— Quando o padre volta?
— Hoje. Ele vai ficar muito feliz de saber que você está bem.
— Que ótimo, finalmente vou poder ver o padre. — disse, rindo. — Vamos então, eu quero passear, nem tive tempo de ver quase nada aqui em Ancona.
Davide estava animado; levou as duas para diversos lugares belíssimos de Ancona, algumas ruínas, praia, as encostas cheias de desfiladeiros que beiravam o mar, os campos com um tom de verde sobrevivente ao outono. Os três estavam se divertindo e Marien sorria como uma criança.
Foram para um restaurante no centro da cidade; sentaram-se a uma mesa na janela que dava para a rua e as pessoas passavam tranquilamente. O celular de Davide tocou e ele, com um sorriso, atendeu-o.
— Bom dia, padre... A que horas chega? Já está aqui? Sim, tenho ótimas notícias; Marien já está enxergando, uma maravilha, e eu as trouxe para almoçar no restaurante da Mama... Tudo bem, o esperamos aqui, até mais. — Davide desligou o celular e olhou, sorridente, para as duas. — O padre está vindo para cá.
— Isso é ótimo! — Marien exclamou, animada.
Conversaram mais um pouco e Marien olhou pela janela.
— Ai... Meu... Deus! — Marien disse baixinho e pausadamente.
— O que houve? Por que está babando assim? — Sarah perguntou, olhando para fora.
— O que foi? — Davide perguntou.
— Que homem lindo! — Marien disse sem piscar, extasiada, e o ar quase não entrou mais em seus pulmões.
— Jesus, Maria e José, há um Deus grego em Ancona! — Sarah disse, embasbacada.
O belo homem parou na rua para cumprimentar um casal; conversaram por alguns minutos e, com um lindo sorriso, despediu-se. Ele atravessou a rua e vinha em direção ao restaurante. Era belíssimo, alto, cabelos pretos penteados, meio molhados, deixando um leve topete; tinha a pele clara, corpo atlético e os olhos fascinantemente verdes.
— Eu dormiria com ele sem nem perguntar seu nome antes. — Marien disse.
— Eu também. — Sarah complementou.
— De quem estão falando? — Davide perguntou.
— Daquele homem maravilhoso que está vindo para cá.
— Aquele com o sobretudo preto? — Davide disse, olhando pela janela.
— Bem esse. Olhe aquela boca, aqueles olhos verdes.
Marien, de longe, se perdeu nos olhos dele; lhe pareciam tão familiar. O tal homem olhou para a janela e sorriu.
— Ah, meninas, eu acho que vocês estão cometendo um grande erro, aquele...
— Cale-se, Davide... Você está estragando minha visão.
— Ai, Deus, ele entrou no restaurante! — Sarah disse, endireitando-se na cadeira. — Acho que ele gostou de você, olhou-a direto, chefinha.
Davide arregalou os olhos e tapou a boca com a mão e as deixou continuarem para ver o que aconteceria. Aquele homem parou em frente à mesa deles e abriu um sorriso majestoso, olhando para Marien.
— Eu nem acredito que vocês estão aqui. — ele disse.
Marien não entendeu e ia questionar, pois como um estranho se aproximava assim? Mas Davide se adiantou.
— Bom dia, padre!
Marien e Sarah literalmente abriram a boca, ouvindo aquilo que lhes entrou pelos ouvidos como um estrondo.
— Padre? — as duas, juntas e espantadas, perguntaram.
— Acho que agora que pode me ver, Marien, eu posso me apresentar formalmente. Eu sou o padre Sebastien. — ele estendeu a mão para ela.
Marien ficou completamente muda e lentamente estendeu a mão para ele. Davide ria baixinho. Sarah o olhou e deu um chute na sua canela.
— Ai!
— Por que não avisou? — disse, cochichando entre os dentes.
— Eu tentei, mas vocês me mandaram calar a boca! — respondeu, também cochichando e rindo.
— Você deve ser a Sarah. — Sebastien disse, estendendo a mão para ela.
— Sou! — disse, ainda muito boquiaberta, e apertou sua mão.
— Você não usa roupa de padre? — Marien perguntou.
Ele retirou o casaco impecavelmente cortado, tirou a manta preta do pescoço e sentou-se.
— Roupa de trabalho. Eu não uso as roupas tradicionais, só quando opero na igreja. Tenho a liberdade de usar roupas comuns, como todos os outros homens. Minha profissão de arqueólogo, além de padre, me deixa mais moderninho. — disse, sorrindo graciosamente, meio zombeteiro. — Estou imensamente feliz que esteja enxergando. Precisamos dar uma examinada nisso. Como que sua visão voltou assim tão rápido?
— Não sei, eu acho que foi algo que houve à noite. — disse sem jeito.
— E o que teria sido isso?
Marien pensou se diria ou não.
— Eu tive uma visão daquela mulher novamente e ela disse que estava na hora de eu enxergar, que a verdade nos libertaria e que todos os véus cairiam. Ela tocou meus olhos e tudo ficou claro, a nuvem que cobria meus olhos sumiu.
Todos ficaram mudos, olhando para ela.
— Acha que foi isso que a fez enxergar novamente? — Davide, abismado, perguntou.
— Eu não sei, mas foi o que aconteceu.
Sebastien ergueu as sobrancelhas e não sabia o que responder.
— Isso é incrível, eu nem sei o que dizer.
— Eu também não. Isso está ficando mais frequente e as visões mais claras; foi como se ela literalmente estivesse na minha frente, me tocado.
— O importante é que agora você está bem, estou imensamente aliviado. Deus nos abençoou hoje com sua graça e é muito bom poder ver você sorrindo. Aquele ar de tristeza não combina com você.
— Acho que poderemos voltar a trabalhar agora.
Ele a olhou profundamente nos olhos e perderam-se ali por um segundo.
— Sim... Amanhã cedo retomaremos e eu tenho algo que vai lhe agradar.
— Tem? O que é?
— Amanhã, Marien, amanhã. Domingo deve ser de repouso.
— Pena que não deve ser o que ela queria que fosse. — Sarah disse entre os dentes, mais para si mesma, mas Davide ouviu e bufou.
— Vou pedir. O que querem comer? — Davide disse, chamando o garçom, tentando tirar todos daquela confusão.
Os quatro almoçaram, conversaram e deram algumas voltas por Ancona e Davide as levou para casa.
— Vou deixar vocês descansarem por hoje e amanhã cedo venho aqui. Eu tenho algumas coisas importantes para falar com você, Marien. — disse o padre.
— Assim eu estou ficando curiosa.
— Não precisa ficar, mas muitas coisas irão se esclarecer.
— Isso seria bom. Então você vai me revelar seus segredos? — perguntou, sorrindo, e Sebastien sorriu.
— Vou. Pelo menos alguns.
— Até amanhã, Sarah! — Davide disse, sorrindo para ela.
— Até, Davide, obrigada pelo passeio, foi maravilhoso.
— Isso foi ótimo. — Marien suspirou, pensativa.
As duas ficaram meio paralisadas, olhando o carro se afastar.
— Chefinha, eu quis cortar meu pescoço quando soube que ele era o padre.
— Eu também, Sarah, e ainda por cima com uma faca sem fio.
— Ele deveria ser processado por ser um padre.
— Também acho.
— Eu vi o jeito que se olharam, acho que não foi nada saudável.
— Não é nada, Sarah. Só fiquei impressionada. Eu sabia que ele era bonito, mas é mais que isso, algo nele me chamou a atenção.
— Mais do que deveria, suponho.
— Não seja tola. Ele continua sendo um padre; é melhor esquecer aquela impressão depravada que tive dele.
— Hum... Infelizmente as primeiras impressões é que ficam.
— Está se dando bem com Davide? — disse, mudando de assunto.
— Sei lá. Eu o acho estranho. Quando vejo, estamos discutindo.
— Estão competindo.
— Mais que você? Acho difícil.
— Davide é muito lindo. Tem algo nele que me intriga.
— Oh, se é. Um homem daquele tamanho me faria virar uma manteiga derretida em dois segundos.
— Então o bote na frigideira. Garanto que ele derreterá também.
— Ele é um padre, Marien! — disse meio indignada.
Marien olhou para ela, franzindo o cenho e depois riu.
— Não, Sarah, Davide não é padre.
— Não? — Sarah, espantada, interrogou, quase gritando.
— Não, ele não é. É apenas o protegido do padre e trabalha com ele. — disse, sorrindo maliciosamente.
Marien deu as costas para Sarah e seguiu para dentro de casa. Sarah ficou ali, parada que nem uma estátua, com a boca aberta, antes de virar e entrar correndo.
— Marien, me explique isso direito!
*
— Padre, desculpe-me perguntar, se é que o senhor pode falar. Mas o que descobriu com o seu amigo neste encontro misterioso?
— Davide, as minhas suspeitas estavam certas.
— Sobre o quê?
— O acidente de Marien não foi um acidente; eu vi o registro.
— Como sabe?
— ODS.
— O senhor já me falou algo, mas me explique melhor.
— ODS, Ordini di Silencio. É uma antiga ordem secreta que era chamada quando precisavam ocultar fatos, documentos ou algo que pudesse infringir e riscar a imagem da igreja. Eles também chamavam de faxinas.
— E isso quer dizer o quê?
— Quer dizer que Marien e seu ex-marido, Urs Barker, quase morreram no dia 23 de outubro de 2003, presos numa escavação em Jerusalém. Eles encontraram os pergaminhos de Tiago, mas foram atacados por bandidos, assim a polícia os chamou; eles os roubaram e, pelo que vi, tentaram matá-los. Só que eles foram encontrados ainda com vida. Acontece que no dia 24 de outubro, os pergaminhos deram entrada na ala secreta do Vaticano e no relatório consta as siglas que dizem como foram conseguidas.
— Padre! — disse ele, boquiaberto. — O senhor está dizendo que o responsável por Marien e Urs quase morrerem naquela escavação foi o Vaticano, por que queriam ocultar os pergaminhos?
— Exatamente, Davide.
— Meu Deus! Como pode existir tal coisa?
— Eu tinha ouvido rumores, mas soube que isso havia sido extinto há muitos anos. Não imaginei que ainda existisse, nem sei se existe ainda hoje. Mas o fato é que, naquele período, foi colocada em prática. E nunca imaginei que isso chegaria a este ponto.
— Estou chocado.
— Se ela souber de uma coisa destas, será um pandemônio.
— Ela vai nos odiar, e olha que nem temos nada com isso.
— Eu sei, mas ela não vai saber, Davide.
— Eu acho que ela já desconfia.
— Por que diz isso?
— Porque ela tem um pé atrás enorme com os padres e, numa conversa que tivemos sobre os pergaminhos de Tiago, ela disse que desconfiava de algo e que isso causou a morte de uma pessoa, mas não sei quem, ela não quis mais falar no assunto. Quem morreu?
— Eu não sei. Pelo que eu soube das notícias que saíram na época, somente os dois foram encontrados e os dois sobreviveram. Eu não sei de que morte ela está falando.
— Hum... E sobre a nossa escavação de agora?
— Eu consegui os trabalhos do professor Aurtred, que também estavam no Vaticano e que também possuíam as siglas.
— Ai, ai, ai, quer dizer que a morte dele não foi acidental?
— Isso eu não sei. A polícia disse que foi um acidente de carro, mas os estudos dele haviam sumido e estão com o Vaticano.
— Padre, sinceramente, agora eu estou ficando com medo. Se descobrirmos algo aqui, o Vaticano pode mandar nos matar?
— Davide, não seja trágico, eles não irão nos matar. Sou um padre e você praticamente é um.
— Ah, que consolo! — disse, nervoso.
— Mas se eles quisessem que ela ficasse fora disso, não teriam aceitado que ela viesse para cá, não é?
— Isso é verdade.
— A não ser que eles saibam mais que nós ou não saibam que ela é a mesma pessoa, pois daquele tempo para cá, houve mudanças por lá.
— Isso nem imagino e não vou gostar de saber.
— Odeio estas coisas. — Sebastien disse, indignado.
— Padre, estas coisas não lhe fazem repensar?
— Fazem, Davide, mas eu sirvo a Deus e não acho que Ele me coloque com trabalhos de maltratar quem quer que seja. Eu estou meio confuso, confesso que fiquei chocado, achei que a ordem secreta já estava extinta há muitos anos, que era um rumor. Eu não concordo com isso, vai contra ao que prego e acredito.
— Isso está ficando cada vez mais confuso. Ontem ela teve uma visão que não foi nada boa.
— Que visão?
— Disse que viu um homem de vermelho.
— Os bispos medievais.
— Sim, e sentiu uma dor imensa na boca, chegou a cair. Eu fiquei assustado, mas logo passou.
— Sentindo dores? Isso é impossível.
— Não sei, acho que as visões dela estão mais fortes que as suas.
— As minhas não estão nada fáceis de aturar, mas nunca senti dor.
— Então, temos que ler os estudos do professor e juntá-los às nossas descobertas e suspeitas e com os pergaminhos de Sir Asch. Quem sabe conseguimos juntar tudo e desvendar isso de uma vez. O senhor vai mostrar o trabalho do professor para ela, não vai?
— Claro que sim, ela é minha parceira, não vou ocultar nada dela a respeito disso mais do que já está. Só não vou falar nada sobre Jerusalém, acho que revelar algo agora seria destruir nosso trabalho aqui. E agora, mais do que nunca, tenho certeza que ela e eu de alguma maneira fomos escolhidos para descobrir o que houve aqui.
— Disso eu já não tenho mais dúvidas.
— Estou começando a me arrepender de ter descoberto sobre Jerusalém. Não sei o que fazer com isso.
— Padre, não conte a ela.
— Isso é mentir.
— É ocultar. Pense na confusão que iria causar. Acho que trazer esta história à tona vai fazê-la sofrer e ela vai virar-se contra o senhor. Padre... Não conte a ela.
— Eu estou exausto. — disse, meio confuso e esfregando as mãos no rosto.
— Vá descansar.
— Vou, amanhã falarei com ela. Se em algum momento eu sentir que é necessário contar a ela sobre Jerusalém, eu o farei, mesmo que tenha que assumir as consequências.
— Ela vai odiá-lo.
— Talvez sim, mas talvez ela entenda que eu não tive nada a ver com isso, que eu não tinha conhecimento disso neste período.
Capítulo 15
Sebastien olhava os olhos de Marien com o aparelho ocular.
— A película desapareceu completamente.
Marien ficou meio estranha e mordeu os lábios, olhando para Sebastien.
— Eu vi aquela mulher, ela tocou meus olhos e tudo passou. O que foi isso, uma espécie de magia?
— Magia temporal? Nunca ouvi falar disso, seria impossível.
— Talvez não. Talvez ela fosse poderosa, talvez tivesse poderes para fazer coisas acontecerem. Ela não era uma falsa bruxa, era uma sacerdotisa.
Todos ficaram mudos, olhando para ela, e o padre respirou fundo.
— Não quero duvidar de você, mas isso é muito estranho, seria absurdamente inadmissível.
— Estou lhe dizendo o que aconteceu. Se não acredita em mim, não posso fazer nada.
— Eu não disse que não acreditava. Só estou tentando entender.
— O que tem para mim?
— Eu tenho aqui os estudos do professor Limon Aurtred que estavam desaparecidos. Ele fazia uma pesquisa sobre Sir Asch e Ancona.
— O quê? Como conseguiu isso?
— Minha querida, eu tenho minhas fontes, mas o que interessa é que tentemos desvendar todos estes mistérios.
— Padre, Davide e eu tentamos de todas as formas abrir as portas e não conseguimos. — Sarah começou a explicar. — Eu acredito que tem que ser um homem e uma mulher que tenham uma ligação forte, eu diria que estejam ligados pelo amor e tenham sido, de alguma maneira, escolhidos para tal.
— Eu sei, Sarah. Acontece que agora eu acredito piamente que só serão abertas pelos escolhidos.
— Que escolhidos? — Marien perguntou.
— Havia uma profecia que dois escolhidos seriam designados a abrir as portas. E eu acho que somos você e eu. — disse, olhando sério para Marien.
— Por que acha isso?
— Porque você e eu coincidentemente estamos aqui, somos opostos, feminino e masculino, somos de religiões diferentes, crenças diferentes e nós dois estamos tendo visões.
— O quê?! — Marien pronunciou aquela frase quase gritando, nem estava acreditando no que ouvia.
— Eu também tenho visões, como você, Marien.
Marien, estupefata, não conseguiu responder de imediato.
— Padre, mas... por que não me disse isso antes?
— Estava esperando mais coisas se encaixarem. Queria ter certeza que você estava tendo visões ou se eram apenas sonhos coincidentes.
— Agora você já sabe que não são, são reais e muito fortes. Você devia ter me dito isso antes. O que você vê?
— Vejo uma mulher, como você, e também um templário. Às vezes eles dizem mensagens, algumas eu entendo e outras, não.
— E o que estas visões querem dizer?
— Isso eu não sei direito, eu não as entendo, assim como você.
— Eu acho que nós estamos vendo as coisas que aconteceram naquela época. A mulher que eu vejo, eu acho que é a sacerdotisa do templo. Sei que não concorda, mas insisto que era um templo.
— Eu concordo.
— Concorda?
— Sim, aqui diz que em 1303 o bispo transformou o templo numa igreja, por isso ela tem as duas características.
— Isso explicaria tudo, só não explica as portas trancadas e armadilhas.
— Acontece que ele também diz que quem fez as portas, quem selou a igreja, foi o Sir Asch.
— Por que ele faria isso?
— Isso eu não sei, pois não li tudo, mas se não estiver escrito aqui, teremos que descobrir.
— Então a maldição da bruxa é uma mentira? — Sarah perguntou.
— Acho que não é mentira, Sarah. — Davide disse. — As bruxas eram condenadas por qualquer coisa que fosse contra as leis ditadas pela igreja; qualquer ritual, por mais simples que fosse, era condenado por ser anticristão, portando, pagão. Suas palavras eram hereges e seus feitos considerados bruxaria.
— Sim, mas nada existia de bruxaria, pelo menos não desta maneira satânica como diziam. — Marien complementou, indignada. — Milhares de homens e, principalmente, mulheres foram mortos por causa desta besteira. Os deuses pagãos representavam a natureza e seus Elementais. Eles eram cultuados há séculos e séculos antes do cristianismo e do catolicismo. Não era errado cultivar vários deuses, praticar rituais e magia, usar a cura com plantas, não tinha nada demais. Qualquer frase que ela tenha dito para proteger seu templo a teria condenado. Mas a Deusa da Vida era uma das filhas da Deusa Mãe, que era a protetora de toda a vida na terra. E a Deusa da Vida era mais específica, porque cultuava a graça da vida, gerar vida, o feminino, vida do ventre, por isso que sua estátua parece ser de uma grávida. Comparando, ela era como Maria, uma mãe que gerava vida. Mas eles não viam dessa maneira.
— Isso é certo. Bem, o que temos que descobrir que ainda está oculto?
— Listando: — Marien disse — temos que abrir as portas. Descobrir como a igreja, que praticamente não é uma igreja, foi soterrada. Onde foram parar o povo antigo de Ancona e onde estão enterrados, ou se simplesmente converteram-se ao cristianismo ou foram embora. Qual a relação de Sir Asch com esta sacerdotisa? Não nos esqueçamos do homem de vermelho que supostamente seria o bispo da época. Por que essas entradas estão tão bem guardadas, que segredo existe atrás delas?
— Eu gostaria de saber por que vocês dois foram os escolhidos e por que agora, depois de tantos séculos? — Sarah complementou meio sarcástica.
— Temos muitas perguntas, mas acho que as respostas estão começando a chegar.
— Nós temos vários enigmas para desvendar. Creio que o pergaminho de Sir Asch é muito mais significativo do que pensamos. Acho que ele pode ter ficado com as chaves e o resto pode estar escondido atrás daquelas portas.
— Eu tenho uma pergunta. — Davide disse. — Sir Asch estava enterrado com sua espada?
— Não que eu saiba; a única coisa que foi encontrada no seu túmulo foram seus pergaminhos e sua roupa. — Marien disse.
— Um templário jamais se separaria de sua espada, ela era sagrada para os cruzados. Eles lutavam com ela e a mesma lhes servia de cruz. Quando oravam, eles fincavam a espada no chão e ela se transformava numa cruz, e eles, de joelhos, oravam a Cristo. E mais importante... Nela estava contida toda sua honra. — Davide disse.
— Então onde está sua espada?
— Boa pergunta. Ele foi enterrado com as vestes de templário, mas sem a espada, acho isso estranho. — o padre disse.
— Ele pode ter passado a alguém.
— Isso é verdade, mas só se fosse a um iniciado por ele, um aprendiz guerreiro, um filho, senão jamais o fariam.
— Tudo bem. Então nós vamos partir de onde?
— Temos que ler isso e tentar abrir a porta. Se acha que somos os escolhidos, o que eu ainda não acredito, temos que tentar. — Marien disse.
— Por que custa tanto acreditar que seria você uma escolhida? — o padre perguntou.
— Não sei por que acredita nisso assim tão rápido, ainda mais o senhor sendo um padre.
— Sou um padre, mas sou um arqueólogo, Marien, eu tenho a mente aberta e acho que isso pode ser possível. Só não entendo como que uma conhecedora do paganismo se nega a acreditar.
Houve um silêncio. Sarah olhou para Davide, que arqueou as sobrancelhas.
— Dá para ver que vocês são opostos. — Sarah disse. — Só que vou dizer uma coisa. — os três olharam para Sarah. — Mesmo vocês sendo opostos, não estão ligados pelo coração. Como uma romântica, acho que unidos pelo coração quer dizer que existe amor ou um laço muito forte, significativo.
Houve outro silêncio tenebroso.
— Então quer dizer que não somos os escolhidos. — Marien ressaltou. — Mas escolhida ou não, eu irei abrir aquilo e descobrir o que existe lá e isso é um fato.
— Já que Davide e eu não conseguimos abrir, quem sabe agora vocês dois não tentam? Se não forem os escolhidos, também não conseguirão abrir.
— Certo. Mas o que seria isso? “Mil serão descobertos”?
— Não diz nada aí sobre isso, na pesquisa?
— Bem, vejamos. Aqui diz, “Segundo algumas conclusões, Sir Asch teria sido um protetor do templo; teve ex-templários como aliados, mas a guerra foi cruel, o povo revoltou-se contra a prisão e tortura da sacerdotisa”.
— Viu? Eu disse que havia uma sacerdotisa. — Marien disse.
— Continuando... “Asch a descreve de uma maneira esplêndida e demonstra toda sua devoção a ela, o que, para um templário, teria sido uma condenação. Parece que em seus últimos anos de vida, ele cultuou a deusa, assim como muitos ex-templários, que tiveram contato com suas crenças pagãs. Ele mencionou esta mulher numa frase lindamente escrita. “Meus olhos seriam pobres se eu passasse por esta humilde vida de guerras e não pudesse contemplar a beleza e magnitude desta mulher. A força que vinha de minhas entranhas era o que me fazia crer que a libertaria e nosso castigo seria perdoado. Eu morreria um milhão de vezes, mataria um milhão de vezes para livrá-la do julgo a que foi submetida, pela ignorância e poder”. Em minha humilde pesquisa, tenho algo a dizer, apesar de não ter as provas: creio que Sir Asch não era apenas um seguidor guardião, mas, sim, que fora apaixonado pela sacerdotisa. Tentei encontrá-la, mas nos manuscritos lemos apenas “M.D.”. Creio piamente que o nome dela era Marien Debuawski”.
— Marien? — Sarah disse, olhando-a.
— Coincidência, Sarah. — Marien disse rapidamente para cortar o surto de Sarah, mas por dentro sentiu um baque em seu coração. — M.D. Estas iniciais estão no manuscrito, então foi ela quem assinou aquela mensagem. E onde está esta passagem que não li?
— Aqui. — o padre lhe deu um dos pergaminhos.
Marien suspirou ao ler.
— Que julgo ele está falando? — Davide perguntou.
— Se ela foi subjugada, provavelmente foi presa e morta. Parece que ele tentou evitar e protegê-la, mas acho que não conseguiu.
— Será que a guerra de que ele fala é porque houve uma guerra aqui entre os católicos e os pagãos?
— Pode ser. Na verdade, eu acredito que não foi exatamente uma guerra e, sim, um massacre. — Marien disse.
— Eu o vi diversas vezes. — Sebastien disse, divagando. — Sempre está com sua espada e lutando, parece uma guerra infindável.
— Aqui? — Marien perguntou, curiosa.
— Em um momento o vi em lutas contra os sarracenos, mas, sim, ele lutou aqui contra a igreja.
— Um templário lutando contra a igreja, essa é grande. — Davide sussurrou, espantado.
— Por que eu nunca o vi? — Marien perguntou.
— Eu não sei explicar estas visões, Marien, elas vêm como e quando querem.
— Isso é certo, quem sabe ao fim, consigamos dominar isso.
— Seria bom.
— Eu quero descer.
— Agora?
— Já. Se há alguma possibilidade de abrirmos aquelas portas, temos que tentar, padre.
— Hum... Isso me cheira a confusão. — Sarah disse, cochichando para Davide.
— Nem me diga! — concordou Davide.
— Espere aí! Não é obvio? Vocês não prestaram atenção? Se Sir Asch era um templário e M.D. era uma sacerdotisa pagã, segundo o professor, eles eram opostos, religiões diferentes. Sexos diferentes. Unidos pelo coração, porque o professor acreditava que eles tinham algo amoroso. — Marien disse.
— Verdade, isso combina com minha teoria, mas o que isso tem a ver com vocês? — Sarah perguntou.
Marien ficou um tanto aturdida e não sabia o que responder. Sebastien a olhou, atordoado. Aquilo não parecia bom.
— Não sei, mas vamos descer e tentar abrir as portas, uma ou outra vai ter que ser aberta.
*
Os quatro desceram e ficaram parados na frente da primeira porta.
— Aqui estamos. — o padre disse com um suspiro.
— Tudo bem. — Marien respirou fundo. — Padre, coloque sua mão na porta.
Sebastien colocou e, depois, Marien colocou a sua ao lado; esperaram, mas nada aconteceu.
— Empurre.
Os dois empurraram com toda força.
— Meu Deus, isso é uma brincadeira? — Marien disse, irritada, sem saber o que fazer.
— Não funcionou.
O padre colocou as duas mãos na porta e tentou empurrar, mas nada. Marien tocava cada parte dela e também nada acontecia; os dois se afastaram com as mãos na cintura.
— Que droga!
Sebastien, indignado, escorou-se na porta e abaixou a cabeça. Marien olhou para ele demoradamente e depois para sua mão esquerda. Ela chegou perto, quase colando nele, que ergueu a cabeça e a olhou.
— Olhe para mim. — ela disse baixinho.
Ele olhou diretamente dentro dos olhos dela e, sem dizer mais nada, ela colocou sua mão esquerda em cima da dele e algumas imagens embaralhadas lhe passaram pela mente. Logo a porta começou a mover-se lentamente; abriu sozinha, como uma mágica. Boquiabertos, os dois olharam para a porta e se olharam por um segundo. Marien caiu na risada e os quatro vibraram.
— Isso é que eu chamaria de unidos! — Davide disse.
— Uau! Isso é incrível! — Marien disse entusiasmada e o padre estava muito atordoado para dizer algo.
Eles jogaram as luzes das lanternas no buraco para iluminar o caminho, pois estava muito escuro. Olharam para os lados e viram dois túneis de pedra com alicerces para tochas nas paredes.
— Para que lado?
— Gosto da direita. — o padre disse.
Os quatro andaram um pouco, cautelosos, observando tudo com atenção; o padre e Marien na frente, e Davide e Sarah atrás.
— Ai, credo, este lugar me dá arrepios! — Sarah disse.
— Pensei que fosse acostumada com lugares estranhos. — Davide disse.
— Eu sou, mas os arrepios sempre me acompanham. — disse, olhando-o, e Davide sorriu.
Marien ouviu um grito em seus ouvidos, virou-se bruscamente, assustada e com os olhos arregalados.
— O que foi? — o padre perguntou.
— Ouviram isso? — perguntou, espantada.
— Eu não ouvi nada. — Sarah disse.
— Eu também não. — o padre concordou.
Andaram mais um pouco e Marien sentiu um embrulho no estômago; fez uma careta, mas continuou olhando tudo à sua volta.
— Não parece ter nada aqui.
— Deve haver algo, é uma passagem para algum lugar.
Quando pisaram em uma pedra marcada, ouviram um estalo e todos pararam de andar, prestando atenção.
— Agora eu ouvi algo. — Sarah disse.
— Eu também ouvi. Acho que pisamos em alguma coisa.
Algumas pedras e terra caíram sutilmente sobre eles. Os quatro olharam para cima com as lanternas; o barulho pareceu soar mais forte e o teto começou a vir abaixo.
— Protejam-se! — o padre gritou, puxando fortemente Marien pelo braço, e Davide puxou Sarah para o outro lado. Marien e o padre caíram no chão, cobrindo a cabeça com os braços, e formou-se uma enorme nuvem de poeira; uma parte do teto desabara sobre eles. Quando tudo parou de cair, Marien e Sebastien tossiram e tentaram erguer as lanternas para ver o que havia acontecido, mas não viram nada mais atrás deles a não ser uma muralha de pedras e terra.
— Sarah! — Marien gritou e não ouviu nada.
Sebastien levantou e tentou tirar as pedras e a terra com as mãos, mas eram muitas e era inútil.
— Que maravilha... Estamos presos.
Capítulo 16
Marien fechou os olhos e respirou fundo.
— Você está bem? — Sebastien perguntou.
— Estou. Será que Davide e Sarah estão bem?
— Não sei, eu espero que sim.
Marien pegou o walk talk, mas não dava sinal nem seu celular.
— Que ótimo! Temos que conseguir sinal.
— Aqui parece que está bem ruim.
— O que vamos fazer?
— Vamos seguir o túnel e ver onde dá, quem sabe haja outra saída.
— Não foi fácil entrar, talvez seja mais difícil sair. — Marien ouviu uma espécie de gemido e virou-se rapidamente. — Padre, ouviu isso?
— Não.
— Tudo bem, definitivamente estou ouvindo coisas.
Eles continuaram seguindo devagar pelo túnel.
— Agora estou ouvindo algo.
— Parece barulho de mar.
— Parece.
Eles andaram mais e o túnel começou a clarear. Chegaram a uma fenda nas rochas que dava para o mar e os dois olharam para fora.
— Sem saída. — Marien disse, desanimada.
— Por que uma abertura tão bem guardada daria para o nada?
— Já vi isso antes. — Marien disse, paralisada por um minuto.
— O que viu?
— Num dos meus sonhos. Eu me lembro desta passagem, vi algo horrível e acordei.
— Horrível como?
— Tipo... Um fantasma horrível.
— Deve ter sido só um pesadelo.
— Isso me parece um pesadelo, estamos presos aqui. — Marien tentou colocar a mão com o celular para fora e pegar sinal para poder ligar para Sarah e pedir socorro, mas antes que ligasse, sentiu algo. — Padre... — disse, perdendo a voz, sentindo-se tonta.
— O que foi, Marien? — Marien cambaleou; sua visão escureceu, e suou frio. Seu estômago embrulhou e ela desfaleceu nos braços dele. — Marien! — ele a apoiou com os braços no seu colo e, assustado, chamava seu nome. Embebeu um lenço com água fria do cantil que tinha pendurado no cinturão e colocou na sua testa. — Marien, por favor, o que está sentindo?
Várias imagens vieram à mente de Marien. Pessoas gritando, sofrendo, pedindo socorro, sendo torturadas, sendo levadas pelo túnel e jogadas. Umas já estavam mortas, outras ainda com vida.
Marien cobriu o rosto com as mãos para que aquilo parasse, mas sentia-se extremamente fraca; sentia pânico em seu coração. Teve vontade de gritar, mas não conseguiu balbuciar nada até que as imagens sumissem.
— Me dê... Sal. — disse, mal conseguindo falar e sem ver nada; sua visão estava escura e seu corpo todo estava amortecido.
— Sal? Onde? — ela tentou colocar a mão sobre a sua pochete na cintura; o padre abriu o zíper e encontrou os saches de sal, rasgou um e colocou na sua boca. Ela espremeu a boca, fazendo careta e tossindo. — Beba isso. — disse, dando-lhe água do cantil. O suor de seu corpo todo aumentou e respirava com dificuldade. Ele colocou o lenço molhado na sua testa e, aos poucos, ela foi voltando a si. — Está bem? — ela assentiu com a cabeça. — O que foi isso?
— Os corpos eram jogados daqui... — ela sussurrou.
— O quê?
— Foi uma visão... este túnel nos levou ao penhasco e lá embaixo fica o mar, muitos dos corpos dos pagãos eram jogados daqui.
— Marien, os padres não fariam isso.
— Padre, por favor. Você sabe o que acontecia na inquisição? Os corpos simplesmente desapareciam, eram enterrados em qualquer lugar numa cova coletiva, eram jogados no mar ou queimados numa fogueira. E eu digo, com certeza, que muitos foram jogados daqui.
— Marien, não havia nenhuma inquisição aqui, talvez algumas mortes, mas uma caça às bruxas? Com um incontável massacre?
— Bem, se temos uma bruxa, igreja e corpos desaparecidos, então sim! — ela tentou puxar ar e falava ainda com dificuldade. — A deusa mãe não era adepta a este tipo de sacrifício, e não foram somente algumas mortes, foram muitas, muitas! Foi a igreja, eu sei, e foi grande.
— Isso é absurdo.
— Não, não é. Com todos os absurdos que estudamos na história, muitos dos quais envolveu a igreja e outras religiões, como pode me dizer que isso é absurdo? É plausível, sim! A inquisição esteve aqui e matou a todos!
Sebastien parou e pensou. Marien começou a se sentir melhor, não estava mais enjoada e sua visão clareou; tentou sentar-se e tomar mais água.
Os dois se escoraram na parede, um de cada lado, e ficaram mudos. Sebastien olhava para ela, pensativo.
— Está melhor? — ele perguntou.
— Sim, já passou. Você está sangrando. — disse. Ele passou a mão no rosto e a olhou, vendo que ficara ensanguentada. Ela pegou o lenço e seu pequeno cantil. — Venha aqui mais perto da luz. — ele foi e sentou no chão. Marien parou ao lado dele, molhou o lenço e começou a limpar seu rosto levemente. — Acho que vai ter que fazer pontos. Está se sentindo bem?
— Estou um pouco tonto, mas estou bem. Você passou mal por que teve a visão?
— Não sei, eu tenho pressão baixa, e de vez em quando tenho uma crise e acontece isso. Acho que a visão ajudou a ter o mal estar. Mas as visões são reais, isso aconteceu aqui, eu vi.
— Tudo bem, eu acredito em você.
Marien olhou fixo para seus olhos e se perdeu ali. Seus olhos passeavam pelo rosto dele, observando cada detalhe, e sua respiração diminuiu. Passou o lenço em seus lábios, limpando-os, e Sebastien não conseguia tirar os olhos dela.
Marien sentiu uma vontade enorme de beijar aqueles lábios; estava tão próxima que apenas um leve movimento e os tocaria. Ambos perceberam o que estava acontecendo e, por um momento, se olharam estranhamente, confusos.
Sebastien a olhou quase sem respirar e sentiu desejo. Sua mente embaralhou-se e ele levantou a mão lentamente e pegou a mão dela, afastando-a de seu rosto. Marien piscou, como que voltando à realidade e engoliu em seco; levantou e sentou do outro lado.
Os dois ficaram sem dizer nada, sem jeito e confusos. Marien, depois de tentar voltar ao seu juízo, foi à beira do penhasco e deitou-se no chão, tentando achar sinal para o celular. Quando pegou sinal, ligou para Sarah.
— Sarah? Ai, meu Deus, que susto! Você e Davide estão bem?
— Sim, estamos bem, ficamos só com alguns arranhões. Onde vocês estão? Estão bem?! — Sarah gritou.
— Sim, estamos bem, estamos na beira do penhasco. O túnel deu no penhasco, há uma fenda nas rochas.
— Preciso saber exatamente onde estão para descer uma corda, pois do outro lado demorará uma eternidade para retirar a terra e as pedras. Acha que dá para fazermos isso?
— Acho que sim. Eu vou jogar algo, tente ver de onde sai.
— Ok, espere até chegarmos à borda do penhasco e eu ligo para você.
Marien embolou o lenço e esperou Sarah chamar Davide e alguns homens com os apetrechos que precisavam e chegar à beira do penhasco, mais ou menos na área em que aquele túnel deveria ter dado. Sarah deu o ok pelo celular e Marien jogou o lenço.
— Viu? — Marien perguntou.
— Não.
Marien tirou a blusa de lã que vestia, ficando de regata. Procurou algumas pedras e amarrou; jogou com força pela passagem.
— Agora vi. Aguentem aí, já vou descer, tente agarrar a corda.
— Tudo bem. Padre, fique com o celular aqui.
Ele foi até a beirada e o segurava para fora. Desceram a corda com o cinturão de escalar na ponta, e esta demorou um pouco a chegar.
— Mais para a direita. — o padre disse, mas a corda enroscou num galho e ficou presa. — Sarah, puxe a corda, ela ficou presa, não dá para alcançar.
Tentaram, mas faltava pouco. Davide e os homens tentaram puxar, mas estava enroscada. Marien esgueirou-se pela abertura e estava quase alcançando. O padre segurou seu braço e ela agarrou o cinturão, mas quando foi puxá-lo, a beirada da fenda rompeu e ela caiu. O padre tentou segurar sua mão, mas ela escapou; ele se jogou no chão para agarrá-la.
— Marien!
Ele gritou, assustado, e ela também. Marien, segurando com uma mão no cinturão, foi para baixo, deslizando pela parede. Davide e os homens, que não sabiam o que estava acontecendo lá embaixo, sentiram o puxão e a corda escorregar entre suas mãos.
Marien escorregou pela parede, tentando segurar-se até que conseguiram segurar firmemente a corda, parando-a num solavanco.
— Marien, segure-se! — o padre gritou. Pegou o celular rapidamente e continuou gritando. — Segurem a corda! Marien está pendurada!
— Segurem, Marien está segurando a corda e caiu! — Sarah gritou para Davide. Eles seguraram com mais força, tentando puxá-la.
— Puxem! — o padre gritou.
Marien começou a subir, segurando-se com dificuldade; estava quase alcançando a fenda e Sebastien tentava alcançá-la.
— Mais um pouco!
Quando ela estava bem próxima da fenda, ele soltou o celular no chão rapidamente e a agarrou pelos braços.
— Padre... — Marien arfou.
— Consegui. Te peguei!
— Parem de puxar! — Sarah gritou e eles pararam.
Sebastien a pegou por debaixo dos braços, puxou-a com toda força e caiu para trás com ela por cima dele. Ela olhou para ele; estava ofegante e com os olhos arregalados.
— Obrigada.
Ela ficou colada ao peito dele por alguns minutos, ainda com a respiração difícil.
— Se queria tomar banho de mar era só me dizer. Eu a levo à praia, está bem? — ele disse, sorrindo, nervoso.
— Vou lembrar-me disso da próxima vez. — disse, ofegante e tentando rir.
Os dois olhavam-se e respiravam rápido; seus corpos, tão unidos naquele chão, deixou-os mais atordoados do que a queda de Marien.
Ela rolou, saindo de cima dele, e soltou-se no chão. Ficaram os dois alguns minutos olhando para o teto, recuperando-se do choque e tentando ordenar os pensamentos.
— Sir Asch fala do mar, do barqueiro. Ele disse que os mortos iam sem as moedas para pagar o barco e que eles não conseguiam. Seus corpos eram jogados daqui sem um cerimonial, suas almas podem estar presas na montanha ainda. — Marien disse, pensativa.
— Do que está falando? — perguntou, confundido.
Marien levantou, sentando-se, e recostou-se na parede, e o padre fez o mesmo.
— Estamos dentro de uma espécie de corredor da morte e ali embaixo é o cemitério. — disse, demonstrando um imenso desagrado.
Ele suspirou e fez o mesmo.
— Tudo bem, eu concordo com você.
— Seriam os pagãos, os seguidores do templo. A igreja os acusou de bruxaria por cultivarem uma deusa que não era Cristo. Então os matou, e não foram poucos.
— Os torturavam para que se convertessem e depois eram mortos.
— Sim.
Sebastien fechou os olhos e respirou profundamente, esfregando os olhos com os dedos.
— Que negro é o passado. A história está carregada de violência. Não me admira que a idade média seja conhecida como a idade das trevas.
— Não foi só a idade média, este tipo de coisa aconteceu por séculos e séculos. Parece que a maldade é enraizada; atravessa o tempo, impiedosa. A única coisa que muda é a maneira como são praticadas, mas, no fim, é tudo a mesma coisa.
— Às vezes me pergunto se nós carregamos os pecados dos nossos antepassados nas mãos.
— Eu não acredito nisso. — ela disse.
— No que acredita?
— Acredito que nós levamos nossos pecados. Ninguém paga pelo pecado de ninguém; eu pago pelo meu e você, pelo seu. Tudo que fazemos de errado volta-se contra nós e pagamos por eles, cedo ou tarde. Mas há tanta barbaridade neste mundo que às vezes é insuportável ver a história verdadeira de tudo. Isso aqui é bárbaro demais.
— Talvez esteja certa. Porém, podemos nos livrar da justiça do homem, mas da de Deus, nunca.
— E quando a pessoa não acredita no seu Deus?
— Ele vai seguir sua vida conforme as crenças que ele acredita, seja em outro deus ou em outra coisa. Isso não impede que seja uma pessoa boa, misericordiosa, que ajude aos outros, que seja feliz no que escolheu para si. Temos muitas pessoas hoje em dia que largaram o cristianismo e se voltaram para os deuses que seus países acreditavam no passado. O que acontecerá após sua morte somente Ele vai saber. Eu, como acredito no Deus cristão, acredito que a receberá de braços abertos e lhe mostrará a verdade.
— E isto está bem?
— Bem, eu poderia dizer que não está, mas eu não posso obrigar ninguém a crer no meu Deus, só posso orientá-los. A verdadeira crença precisa vir do coração, caso contrário, é vazia, sem fé.
— Pena que antigamente a igreja não pensava assim.
— Nunca perde a oportunidade de me alfinetar, não é? — disse com um meio sorriso.
— Apesar de o senhor ser um padre bem diferente, não.
— Eu fico contente que pelo menos aprecie o meu jeito.
Marien o olhou profundamente por alguns instantes; passou a língua pelos lábios e os mordeu, abaixou os olhos e respirou fundo e pigarreou.
— Acho melhor sairmos daqui. — Marien foi até a beira e ligou o celular. — Sarah, eu vou vestir o cinturão, nos puxe quando der o sinal.
Marien e Sebastien colocaram o cinturão e deram o sinal. Começaram a ser puxados e foram escalando o penhasco até em cima, devagar e com dificuldade, até que os ajudaram a sair da beirada do penhasco.
— Por Deus, padre. Que susto! — Davide exclamou, apavorado.
— Está bem, Marien?
— Estou, Sarah. Fiquei só com alguns arranhões.
— Sua cara não está nada boa, está branca como um defunto.
— Eu preciso comer algo, estou fraca.
— Sua pressão está baixa. Venha, vamos para casa, eu vou arrumar algo para comer. Já é tarde e ainda nem almoçamos.
— Padre, eu vou levá-lo ao hospital, está com um corte na testa.
— Não precisa, Davide, só faça um curativo, por favor.
— Tem certeza? — ele assentiu com a cabeça. Marien andava com Sarah e olhou para trás; Sebastien estava parado e a observava distanciar-se. — O que encontraram? — Davide perguntou, rompendo seu olhar.
— O destino dos hereges, Davide. O cemitério.
— Dentro da montanha? — perguntou, abismado.
— Não, no mar.
— Ai... Meu... Deus! — disse, pausando cada palavra e com os olhos arregalados.
Davide o levou para casa e fez um curativo em seu corte. Sebastien foi banhar-se e almoçar. O mesmo fez Marien; tomou um banho e sentou-se com Sarah à mesa da cozinha para comer o que Gina havia deixado preparado. Já passava das três e as duas estavam famintas. Sarah aqueceu o frango ao molho tártaro e colocou a salada na mesa.
— Sua cara não está nada boa, Marien. — disse, olhando para ela enquanto degustava a salada, e ela a olhou com uma cara estranha.
— Eu estou confusa.
— Acho que deveria estar mesmo. O jeito que você e o padre abriram aquela porta não foi nada natural.
— Já vi tantas coisas, Sarah, mas isso... Isso é muito estranho.
— Eu sei.
— Se eu tivesse um pouco de juízo, seguiria os conselhos de Urs...
— E voltaria para casa. — Sarah complementou.
— Sim.
— Marien, você nunca seguiu os conselhos de Urs, não sei por que o faria agora.
— É. Acho que eu não sou uma pessoa muito certa da cabeça.
— Não diga isso, você é incrível.
Marien sorriu.
— Você é uma ótima assistente e amiga.
— É... Eu acho que eu merecia um aumento. — Sarah resmungou, rindo e fazendo-se de debochada, e Marien riu.
— Agora você tem que falar disso com Urs. O museu assumiu o pagamento do seu salário, esqueceu? Não sai mais do meu bolso.
— Ai, então esquece! — disse, rindo.
— Sarah, ele é bem acessível.
— Acessível com você, mas ele é durão com o pessoal do museu.
— Verdade. Sabe... Às vezes não entendo Urs naquele museu.
— Por quê?
— Ele é multimilionário e trabalha como curador, é estranho... Às vezes o vejo tomar decisões que não são cabíveis a ele, não sei por que se submete a isso. Às vezes ele tem um poder lá dentro que também não entendo, ele me deixa confusa.
— Eu acho que ele ama o que faz, trabalha pelo prazer e não pelo dinheiro. Acho que ele não se importa. Suas outras empresas o manterão rico para a eternidade. Pelo menos ele pode ficar no museu e fazer o que realmente gosta. Quem hoje em dia tem o luxo de poder fazer o mesmo?
— Isso é verdade. — disse, meio divagando. — Ele paga profissionais para administrar suas empresas e fica no museu. Urs é estranho às vezes.
— Mas agora ele vai abrir o Centro de Pesquisas e vai administrar também, isso é um projeto dele, é importante para ele.
— Eu sei, Sarah, e estou orgulhosa dele por isso.
— E você vai aceitar o convite dele?
— Não sei.
— Coma, Marien, e depois vá descansar, acho que por hoje suas aventuras deveriam parar, não é?
— Quero ler algumas coisas e quero que peça a Davide que veja sobre aquele chalé perto da estrada, está com placa de aluga-se.
— Eu vi.
— O achei bonitinho. Se gostar, eu irei alugar para você; se tiver mobília, é lógico, senão talvez um hotel.
— Está me expulsando? — perguntou, rindo.
— Claro que não, sua boba, mas eu gosto que você tenha sua privacidade. Se iremos passar um tempo aqui, gosto que tenhamos um conforto. Sabe que essa é uma exigência de que não abro mão.
— Tudo bem, eu vou ver o chalé. Posso lhe fazer uma pergunta?
— Pode.
— Você sentiu alguma coisa quando conseguiu abrir aquela porta daquele jeito?
Marien respirou profundamente, olhou-a e pensou um pouco.
— Não sei, foi estranho, parece que saí do chão por um minuto. E parece que havia algo muito familiar nos olhos do padre e meu corpo pareceu vibrar.
— Uau.
— Não entendo por que eu seria escolhida para uma coisa destas; isso me soa fantasmagórico demais.
— Verdade, mas tivemos a prova que vocês são os escolhidos. Acho que vocês dois têm uma ligação muito forte sobre isso.
— Eu não entendo. Por que eu?
— Não sei. Mas talvez esse seja o maior dos seus trabalhos.
Marien, pensativa, olhou-a e nem sabia o que responder.
— Não sei o que está acontecendo aqui, tudo está tão confuso. Meu coração parece querer me dizer alguma coisa, e não sei o que é.
— Talvez com o tempo ache as respostas.
— Espero que sim.
— Só vou dar-lhe um conselho. — Marien a olhou. — Cuidado com este padre. Ele me cheira a areia movediça e eu não quero ter que tirar você semimorta de outro buraco.
Sarah suspirou, levantando-se da mesa; acariciou o braço de Marien e saiu da cozinha.
Marien respirou fundo, fechou os olhos e passou a mão pelo pescoço, parando-a sobre seu amuleto, segurando-o firmemente, e ficou pensando nas respostas.
Capítulo 17
Naquela manhã, Urs estava em sua casa, sentado no sofá de uma de suas elegantes e bem decoradas salas em estilo vitoriano; olhava para uma caixa de madeira nobre, estreita e longa, com lacres de metal que estava em cima da mesa.
Harry, mordomo de Urs, era um homem que sempre transmitia calma e serenidade em seu olhar e em suas palavras. Era responsável, organizado e muito devoto aos trabalhos da mansão. Era um homem de quase setenta anos, tinha os cabelos brancos e porte de um legítimo mordomo inglês. Com alta classe e sabedoria, era um ávido leitor e acima de tudo adorava Urs como se fosse um filho.
— Seu uísque, milorde. — Harry disse, entrando na sala com uma pequena bandeja de prata na mão.
— Obrigado.
Urs pegou o copo e bebeu um gole; levantou e abriu a caixa, admirando uma belíssima espada medieval.
— Senhor, que magnífica! — Harry exclamou ao vê-la.
— Sim, quando a vi no leilão, não resisti. — disse, tocando-a com a ponta dos dedos.
Ele bebeu mais um gole, soltou o copo na mesa e retirou cuidadosamente a espada da caixa.
— Deve ter custado uma pequena fortuna! — Harry exclamou.
— Diria que sim.
— Sua coleção de espadas está uma maravilha.
— Não sei por que sempre fui fascinado por elas.
— A honra de um homem sempre esteve contida na sua espada, senhor.
— Verdade, Harry. É engraçado... Eu não gosto de nada que me lembre de guerras, mas adoro estas espadas medievais. Olhe estes entalhes do punho e do pumo, perfeitos.
— A quem pertenceu, senhor?
— Pertenceu a um guerreiro da Dinamarca. Dizem que ele foi criado pelo rei e sua rainha e que se tornou chefe de sua guarda.
— Um rei criando um menino plebeu?
— Dizem que foi a pedido da esposa.
— Até mesmo os poderosos sucumbem a um pedido doce de uma mulher.
Urs sorriu para ele.
— Dependendo do sorriso dela, pode-se derrubar um exército, não acha?
— Certamente, milorde. Vai enviar ao museu?
— Não. Esta é minha e ficará aqui. Arrume um lugar para ela junto das outras, mas a quero em destaque, por favor.
— Pode deixar. Qual o nome do guerreiro, senhor?
Urs parou um pouco pensativo.
— Ielay alguma coisa, depois lhe darei o registro para ver o sobrenome para que faça uma placa.
— Belo nome. Quando irá para a Itália?
— Amanhã.
— Vai adquirir mais alguma espada?
Urs o olhou e riu.
— Não, Harry, mas se eu encontrar alguma, provavelmente me apodere dela também.
Harry sorriu.
— Ah, o joalheiro disse que viria às três.
— Obrigado.
— Eu sugeriria esmeraldas, milorde.
Urs sorriu.
— Posso saber por quê?
— Combinam com os olhos dela. O almoço será servido daqui vinte minutos, com licença.
Urs o ficou olhando sair da sala com um sorriso no rosto. Voltou seus olhos para a espada novamente, empunhou-a, girando-a devagar, um tanto fascinado por ela. Depois a colocou na caixa e a fechou. Pegou seu copo de uísque e sentou-se no sofá novamente; bebeu a bebida e ficou pensativo. Pegou o celular e ligou para Marien.
— Oi, princesa. Como está?
— Oi, Urs, eu estou bem e você?
— Melhor agora. Sabe... Eu andei fuçando em uns papeizinhos por aqui e encontrei algo bem interessante.
— Mesmo? E o que seria?
— O aniversário de certo alguém.
— Hum... Eu nem imagino quem seja. — disse, dissimulando com a voz suave e tentando falar seriamente, fazendo Urs rir.
— Eu queria saber se eu poderia ir vê-la amanhã à noite.
— Amanhã à noite?
— Sim. Vou à Itália a trabalho e gostaria de poder ir para Ancona para vê-la, pelo seu aniversário.
— Meu aniversário é na sexta.
— Eu sei, mas na sexta não poderei ir.
— E você quer vir aqui passar uma noite comigo?
— Se você me deixar, pois se não, como eu vou lhe dar seu presente? Por favor, não vai me negar isso, vai?
— Você comprou um presente para mim?
— Sempre compro.
— Verdade, você nunca esquece meu aniversário. — Marien pensou um pouco. — Tudo bem, Urs, eu vou esperá-lo amanhã à noite.
— Ah! Muito obrigado pelo sacrifício.
— De nada. — disse, rindo.
— Mas eu acho que vou chegar meio tarde. Incomoda-se?
— Não. Eu vou esperá-lo, mas se chegar muito tarde, eu deixarei a porta encostada. E vou deixar o quarto de hóspedes arrumado para você.
Urs deu uma parada e respirou, rindo.
— Tudo bem. Eu aceito o quarto de hóspedes.
— Não pensou que dormiria na minha cama, não é? — ela disse, zombando dele e sorrindo.
— Eu não pensei nada.
— Sei. Eu aluguei um chalé para a Sarah, quero saber quem vai pagar.
— Pode deixar, eu vou ver isso.
— Obrigada.
— A vejo amanhã à noite.
— Está bem, até amanhã.
— Até amanhã.
Urs desligou o telefone e, sorridente, acenou negativamente com a cabeça, escorou os cotovelos nos joelhos e respirou fundo. Ficou ali pensando e lembrando-se dos tantos momentos maravilhosos que passara com ela.
Seu coração estava arrebatado por ela novamente. Mais uma vez estava perdendo as rédeas de seus sentimentos por Marien.
*
— Hum... Eu sinto cheiro de festa. — Sarah disse, olhando para Marien com as sobrancelhas levantadas e sorrindo após ouvir a conversa dos dois.
— Não vai ter festa nenhuma. — respondeu, disfarçando e fazendo de conta que não se importava com aquilo.
— Ah, que novidade! Pelo menos vai fazer uma festinha com o magnífico.
— Não pude negar o pedido dele.
— Pois é difícil negar, não é?
— Não seja má.
— Não sou má, sou sarcástica. É diferente.
— Bom dia. — o padre disse, entrando na tenda.
— Bom dia, padre. Como está sua testa?
— Bem, não se preocupe; esta área sangra muito e assusta, mas foi apenas um pequeno corte. Vamos descer?
Celo entrou na tenda ajeitando os óculos.
— Hum... Vocês não vão acreditar, mas eu encontrei pólvora.
— Pólvora? Onde? — todos olharam para ele, espantados.
— Nos escombros, misturada à terra. Fiz uma análise e encontrei esporos de pólvora.
— E de que lugar você retirou a terra?
— De baixo, bem embaixo.
— Impossível.
— É verdade. Veja.
Celo lhes entregou os relatórios.
— Foi desta área aqui?
— Sim, nas primeiras camadas que soterraram a igreja, e existe também na parte mais demolida dela.
— Como pólvora foi parar lá?
— Bom, minha teoria é que a montanha tenha sido explodida com pólvora e, com isso, soterrou a igreja.
— Quase impossível ter pólvora em 1303 em Ancona... ou... não. — Sarah disse, reticente e pensativa.
Marien encostou-se à cadeira e respirou profundamente.
— Tudo bem, alguém pode me explicar como pólvora foi parar lá? — Marien levantou e pegou os pergaminhos de Sir Asch. — Acho que Sir Asch realmente estava interessado em ocultar esta igreja, heim? Vejamos o que ele escreveu. “Ouviu-se um grande estrondo e o chão tremeu, logo não se via mais nada, e não se via mais a extensa montanha”. Realmente foi uma explosão; primeiro o estrondo e depois o chão tremeu. Se tivesse sido um terremoto, o chão tremeria primeiro.
— Faz sentido. — o padre disse. — Eu acho que agora sabemos como aquela montanha veio abaixo.
— O negro véu, nuvem negra, tudo encaixa. — Marien continuou.
— Sir Asch era muito sábio. Arrumou pólvora, o que na Europa ainda era difícil de conseguir naquele período, ainda mais com a quantidade que precisou para botar tudo abaixo. Deve ter trazido do oriente. Ele sabia fazer armadilhas, entendia de magia... — Sebastien disse.
— Que tipo de cruzado era este homem? — Davide perguntou.
— Não sei, um bem flexível, e eu acho que ele conseguiu tudo o que queria — Marien disse.
— Para ele proteger a sacerdotisa, deve ter aberto mão de seus votos cristãos. — o padre disse.
— Ele não precisaria ser pagão para ajudar injustiçados, padre. — Marien disse. — Se ele esteve aqui, acho que viu toda a injustiça que estava sendo feita e ficou do lado da sacerdotisa para proteger seu povo de ser dominado. Mas creio que ele abdicou da igreja.
— Se ele abdicou, por que seria enterrado com suas vestes de templário?
— Uma forma de chamar a atenção. Quem daria atenção para o túmulo de um ninguém? Templários sempre foram motivos de especulações, curiosidades.
— Pena que muitos não entendem hoje em dia como realmente tudo funcionava.
— Asch sabia como tudo funcionava e fez suas escolhas.
— Eu adoro a palavra livre-arbítrio. — Sarah disse, divagando, e Davide a cutucou. — O quê? — disse, olhando-o e franzindo a testa.
— Acha que ela foi morta pela igreja? — Sebastien disse.
— Acho que sim. — Marien respondeu.
— Então ele não conseguiu protegê-la. — Sebastien disse.
— Talvez seja essa a imensa dor que ele descreve nos seus manuscritos. Ele falhou.
Houve um silêncio entre todos e o padre fechou os olhos.
— Está bem, padre? — Davide perguntou.
— Estou... Só fiquei um pouco tonto.
— Acho que sua pancada na cabeça ainda está lhe afetando. — Davide disse. — Deveria se deitar.
— Estou bem, Davide. Não se preocupe.
— Tudo bem. Eu vou ser sincera, vocês dois estão muito afetados por esta história. Tendo visões, passando mal, sentindo dores. Alguém quer me explicar por que isso está acontecendo? — Sarah disse.
— Eu não sei, Sarah. — Marien disse.
— Se vocês são mesmo os escolhidos da história que consta numa profecia, a ligação é muito forte. Acho que os dois estão vendo e revivendo coisas que aconteceram com a sacerdotisa e com Sir Asch. — Davide disse.
— Onde isso vai parar? O que mais vocês dois vão ver e sentir, heim? — Sarah disse e houve outro silêncio.
— Sarah, Davide, preparem a descida, eu já vou. — os dois se olharam e saíram. Marien levantou e foi à frente do padre. — Você viu alguma coisa?
— Quando você falou que Sir Asch falhou, eu vi ligeiramente a imagem do homem ajoelhado na beira do penhasco, pude sentir sua dor. Acho que é verdade, que ele tentou salvá-la e não conseguiu, e também acho que não foi só isso.
— Padre... — disse mansamente, tocando-o no braço. — Não sei por que isso está acontecendo, mas sentirmos o que eles sentiram, ver o que eles viram, não me agrada em nada. Temos que parar com isso.
— Não sei como parar, Marien.
— Quando eu senti aquela dor na boca, parecia que minha língua havia sido cortada. Leia isso.
O padre pegou o manuscrito e leu a parte que ela indicou.
— Acha que ela não podia falar por que sua língua foi cortada? — perguntou, espantado.
— Esse era um dos destinos dos hereges. Se ela lançou alguma maldição, eles podem ter feito isso para calá-la, como punição, tortura.
— Isso seria horrível. — Sebastien disse, erguendo as sobrancelhas.
— Acho que isso era uma das coisas menos horríveis. Sabemos muito bem quão cruéis as torturas infligidas pela igreja podiam ser.
— Eu sei. — disse em um suspiro.
— Ok, sendo bem insana e pelo que já observei, você sente o que Sir Asch sentia e eu, o que Marien sentia, não é?
— Parece que sim.
— Isso é demasiado para minha cabeça. É de dar medo o que ainda podemos sentir ou ver.
— Se é para a sua, imagine para a minha. — disse, tentando sorrir forçosamente. — Isso vai contra tudo que vivi, Marien, vai contra tudo que eu preguei. Eu sei quão cruel a igreja foi com tantas torturas e mortes ao longo dos anos, mas isso é passado. E por mais que me doa, eu não posso deixar minha fé ser abalada.
— Acha que seremos colocados à prova?
— Talvez sim.
— Isso me assusta como o próprio inferno e eu desconfio que as coisas vão ficar bem piores.
— Acha que devemos continuar?
— Não sei o que vamos encontrar, mas não quero desistir e fugir como um cordeirinho assustado. Vamos até o fim, custe o que custar.
Sebastien fechou os olhos e suspirou. Ela saiu, deixando-o sozinho.
— Pai, me dê forças para suportar tudo isso. Seja feita sua vontade.
Capítulo 18
Marien suspirou e passou a mão na testa nervosamente. Entrou no túnel em que sofrera o acidente e parou em frente à parede; ficou analisando tudo, procurando pistas até que o padre chegou.
— Tudo bem. Vamos fazer a mesma coisa que fizemos na outra porta.
Marien ficou meio sem jeito e assentiu. Ela ficou de frente para ele, que a olhava seriamente.
— Pronta? — ele perguntou.
Ela assentiu, olhou nos seus olhos e colocou sua mão em cima da dele. Os dois empurraram a pedra e ela foi para o fundo. Levaram um susto, indo para trás e vagarosamente a parede moveu-se, abrindo uma passagem. Os dois ficaram boquiabertos, olhando-a até que parou.
— Tudo bem, isso já me convenceu. — ele disse, boquiaberto.
— Acho que a mim também.
— Como isso é possível?
— Não faço a mínima ideia.
Marien levantou a lanterna e foi entrar, mas o padre a puxou pelo braço.
— Deixe que eu vou na frente. — o padre disse.
— Está com medo que eu fique cega de novo?
— Engraçadinha. — disse, entortando a boca.
Marien sorriu e esperou que ele entrasse e foi atrás.
— O que acha que vamos encontrar aqui?
— Não faço ideia.
— Estamos dizendo muito esta frase.
— Também reparei.
Olharam ao redor e havia mais túneis.
— Só espero que o teto não desabe na nossa cabeça de novo. — Marien disse.
— Eu também espero. Vamos por aqui.
Andaram por alguns minutos e deram numa parede sem saída. Deram alguns passos para trás e entraram em outra passagem, logo deram com outra parede que dava para o nada e os dois suspiraram, desanimados.
— Ok, voltando.
— Espere. — Marien disse, segurando-o pelo braço.
— O que foi?
Marien jogou luz na parede e chegou perto, tocando-a com as mãos.
— Tem uma inscrição aqui.
Ela pegou o pincel e limpou a parede, retirando a sujeira e depois leu.
— “Um dia os escolhidos virão e sua história será contada.”
— Isso indica que tudo é bem intencional.
Marien começou a estudar mais a parede para ver se achava algo mais. Sebastien pressionou uma quina saliente e uma passagem se abriu lentamente.
— Acho que estamos pegando o jeito. — ele disse, rindo.
Marien sorriu para ele e cuidadosamente entraram. Olharam ao redor e para o teto, foram mais ao meio do salão e ele parecia vazio.
— Não tem nada aqui? — Sebastien disse e olhou para Marien, que focava a lanterna para frente e parecia paralisada. — O que foi? — perguntou, mas ela não respondeu. Ele virou-se e olhou na direção que ela olhava. Lentamente, Marien andou para frente e chegou a um bloco enorme de pedra e o tocou com a mão. Sebastien tentou iluminar e ver o que era. — Parece um bloco de pedra. Será que era onde oravam?
Marien iluminava as beiradas e viu uma junção de duas pedras.
— Pode ser um túmulo, veja, isso é uma tampa. Vamos abrir.
Os dois tentaram movê-la, mas não conseguiram. Tentaram novamente, colocando toda força e conseguiram empurrar a tampa, abrindo-a até a metade. Os dois tossiram pelo pó e tiraram as teias de aranha, pararam e ficaram estáticos, olhando para o buraco e o iluminaram com a lanterna.
— Não há corpo nenhum.
O padre colocou a mão dentro e viu que parecia fofa; moveu os dedos e o fundo se moveu. Puxou o que parecia ser um tecido e havia rolos de pergaminhos.
— Opa, acho que encontramos algo muito bom. Pergaminhos!
Então, ele colocou a mão novamente e retirou cuidadosamente uma espada de dentro, era imensamente pesada e magnífica.
— Ai, meu Deus! — Marien disse, sentindo o ar lhe faltar.
— A espada de Sir Asch! — ele disse, espantado. Marien continuou paralisada; ele olhou para ela, rindo. — Marien, nós encontramos a espada de Sir Asch!
— Não é a espada de Sir Asch.
Sebastien a olhou, espantado.
— Como não? Ele não foi enterrado com ela, deve ser esta aqui.
— Estou dizendo, não é a espada dele.
Ela pegou a espada da mão dele e imediatamente diversas imagens lhe vieram com um clarão, uma atrás da outra. Ela sentia como se seu corpo todo fosse golpeado.
As imagens eram de Marien, de um homem jovem e bonito; ela sorrindo; os dois como um casal feliz, dor, tristeza, guerra; viu um homem de joelhos, todo ensanguentado, gritando para o céu e fincando a espada no chão. Ouviu gritos, urros e batidas de espadas e um menino jovem assustado gritar pelo pai.
Ela andou, cambaleando para trás. Derrubou a espada e caiu no chão, completamente tonta.
— Marien! — o padre se ajoelhou e ergueu sua cabeça. — Marien, fale comigo! — ela tentou abrir os olhos e lágrimas começaram a cair; uma dor imensa lhe afligiu o peito e ela começou a chorar aos soluços. — Calma, eu estou aqui. O que foi, o que você viu?
— Padre... eu...
Sebastien a puxou contra o peito e ela o abraçou com força, chorando compulsivamente.
— Está tudo bem, se acalme, vai passar, vai passar. — ele esperou alguns minutos, abraçando-a, e aos poucos ela foi afrouxando os braços, acalmando-se, até que ela afastou-se dele lentamente e o olhou. — O que viu?
— Eu não sei direito... uma luta e... meu coração parece que vai arrebentar.
— Venha, vamos sair daqui.
Ele a ajudou a se levantar ainda um pouco tonta. Sebastien pegou a espada e os pergaminhos, os enrolou no pano e colocou debaixo de seu braço.
— Segure-se em mim.
Com dificuldade, ele levou tudo e ainda mais a lanterna para iluminar o escuro caminho, escorando Marien. Seguiram por onde vieram e encontraram Sarah e Davide na entrada.
— Ajudem aqui! — o padre gritou.
— O que houve? — Davide disse, escorando Marien.
— Encontramos alguns artefatos e Marien passou mal.
— Vamos subir, ela precisa de ar. — Sarah disse.
Davide a colocou no elevador de madeira e a roldana começou a levá-los para cima; depois subiram Sebastien e Sarah. Foram até a tenda e Marien sentou-se, puxando ainda o ar com muita dificuldade e se sentindo muito tonta. Davide pegou água e deu a ela.
— Você está bem? — Sebastien perguntou, apreensivo.
— Estou, sim, está passando. — ela cobriu o rosto com as mãos.
— O que houve lá embaixo? — Sarah perguntou, apavorada.
— Encontramos isso. — Sebastien colocou o embrulho em cima da mesa e retirou o pano. — Devem descer amanhã e ver se ficou mais coisas no túmulo.
— Ai, meu Deus, deve ser a espada de Sir Asch! — Davide disse.
— Marien diz que não é.
— Não é? — Sarah perguntou, espantada.
Marien balançou a cabeça negativamente.
— Já está escurecendo, vamos todos para casa. Eu a levo, Marien. — o padre disse.
Ele levou Marien e as coisas e colocou dentro do carro.
— Marien, quer que eu vá com você? — Sarah perguntou.
— Não, Sarah. Eu estou bem, por sorte estas sensações são passageiras. Pode ir para sua casa, você ainda nem arrumou suas coisas.
— Ah, sim, duas malas! — disse, rindo, e Marien sorriu.
— Estou bem, querida, vá descansar.
— Está bem. Se precisar, me ligue.
O padre seguiu o caminho até o chalé de Marien sem fazer nenhum comentário, até que sua curiosidade foi mais forte.
— Se esta espada não é de Sir Asch, de quem é, Marien?
— Não sei. Nunca vi o rosto de Sir Asch, mas o rosto que eu vi não me dizia que era ele.
— Era um templário?
— Parece que sim.
— Podia ser um companheiro dele.
— Não sei, temos que ler os pergaminhos para ver o que tem ali. Mas acho que é mais do que isso.
— Vamos ler, mas primeiro você vai tomar um banho e nós comeremos. Então podemos ler alguma coisa.
Quando chegaram à casa de Marien, ela foi para a banheira, afundando-se na água. Queria relaxar, pois seu corpo todo doía, e seu coração também; sentia-se imensamente estranha. O padre ficou um tempo na sala, olhando para a espada, depois foi para a cozinha e olhou no armário; pegou uma massa e alguns mantimentos nas prateleiras e geladeira.
Marien saiu do banho e colocou uma calça e um blusão de lã, secou os cabelos levemente e os deixou caindo no rosto. Foi até a cozinha, ouvindo o barulho que vinha de lá. Parou na porta e viu o padre mexendo nas panelas.
— Está cozinhando? — perguntou, espantada.
— Estou. Abri um vinho para nós. Fizemos um achado hoje, temos que comemorar. — disse, sorrindo.
Marien pegou a taça e ele brindou, sorrindo; ela lhe sorriu de volta.
— Não imaginei que cozinhasse.
— Imagina, sou um verdadeiro cheff.
Marien riu.
— Parece que você tem muitas habilidades.
— Gosto de aprender muitas coisas. Está se sentindo bem?
— Estou. Aquelas sensações horrorosas passaram.
— Felizmente isso é passageiro. Estou morrendo de fome e imagino que você também.
— Sim. O que está cozinhando?
— Pasta ao molho de cogumelos, minha especialidade.
— Parece bom. Mas você não é italiano, pelo seu sotaque e sobrenome...
— Sou francês.
— Oh, agora faz sentido. — disse, rindo.
— Eu daria tudo por um banho. — disse, suspirando.
— Vá tomar um banho, eu cuido das panelas.
— Não acho que seria prudente.
— Não seria prudente você jantar cheio de poeira. — Marien o levou até o quarto, pegou uma toalha e um blusão preto de lã com gola alta. — Este blusão cabe duas de mim, então vai lhe servir.
— Ficarei lindo de blusão feminino.
Marien riu.
— Este blusão é unissex, não se preocupe.
— Ah, obrigado, me sinto melhor. — disse, brincando.
Sebastien foi para o banheiro. Ela voltou para a cozinha e sentou; bebeu uns dois goles de vinho de uma vez e arrumou a mesa. O padre voltou vestindo o blusão e cheirava a banho tomado. Marien o olhou e sorriu.
Ele passou as mãos nos cabelos molhados e fez uma careta engraçada, mostrando como ele ficava com o blusão. Estava irritantemente lindo e admirá-lo daquela maneira não foi bom.
— Viu? Não ficou nada mal. — ela disse para disfarçar seu súbito arrebatamento, pois o achou mais atraente do que nunca.
— Realmente você deve sumir aqui dentro. Vamos ver este espaguete...
Após preparar tudo, ele serviu a mesa.
— Padre cheff, vamos ver se sua pasta é boa. — Marien disse, sorrindo e servindo os dois pratos. Sentou-se. Provou e fechou os olhos para saborear e quase gemeu de prazer, pois estava divino. — Nossa, está muito bom! Minha amiga diz que sou maravilhosa com massas, mas se ela provasse isso, beijaria seus pés.
— Obrigado. — disse, sorrindo satisfeito.
Jantaram e conversaram. Falaram besteiras engraçadas que faziam os dois rirem; foi num estalo que os dois esqueceram o sufoco que haviam passado algumas horas atrás e compartilharam do jantar animadamente.
Marien olhava para ele e o achava engraçado. Ele havia derrubado alguns tijolos do muro que Marien criara ao redor dela ao agir naturalmente; ele era daquele jeito brincalhão, só não havia tido oportunidade de ser assim perto dela, e o mesmo sobre ela.
Os dois estavam achando a companhia um do outro mais que agradável, o que era um perigo iminente para os dois.
— Você deveria abrir um restaurante ao invés de ser arqueólogo.
— Já pensei nisso, mas prefiro as tumbas. — disse, sorrindo, e Marien riu.
— O que vai fazer depois que isso acabar?
— Não sei... Provavelmente estudar outra coisa que aparecerá, assim como você. Talvez ir para outro buraco.
— É o que minha mãe diz, ela acha que sou uma mendiga que vive em buracos. — ele riu.
— Não se dá bem com ela?
— Eu não gosto do estilo de vida dela, e ela não gosta do meu. Então, fica um pouco difícil de nos entendermos. Ela é fascinada pelo luxo e boas maneiras, o que significa que eu não faço muito bem o papel que ela desejou para sua única filha.
— Ela deve amar você e querer vê-la bem.
— Eu sei e eu também a amo, mas o que ela quer é que eu me case com um milionário e tenha filhos, me vista como ela, frequente os eventos da elite e não trabalhe. É uma socialite, aliás, daquelas bem frescas. — disse, rindo. — Quando me divorciei de Urs, ela quase me enlouqueceu.
Sebastien sorriu.
— Soube que Urs Barker está abrindo um Centro de Pesquisas Arqueológicas em Londres.
— Está, é o sonho dele, e foi o meu por um tempo.
— Mas você pode trabalhar lá.
— Sim, mas talvez conviver mais do que já convivo com um ex-marido não seja uma boa ideia. — disse, rindo e bebendo um gole de vinho. Sebastien riu dela. — Vamos à sala?
Marien pegou a garrafa de vinho e as taças, e os dois foram para a sala. Ela jogou-se no sofá e suspirou, pois estava exausta.
— Vamos fazer assim: temos vários pergaminhos, você escolhe um, nós o lemos e depois iremos descansar, está bem? — ele disse.
— Está. Só um então.
Ele levantou, abriu sua maleta e colocou uma luva; girou o dedo para ver qual abriria, pegou um e sentou-se no chão, parecia um adolescente. Marien o acompanhou e sentou-se no chão com ele. Ele colocou o pergaminho no chão forrado com um plástico e cuidadosamente o abriu, estendendo-o; os dois ficaram lado a lado e ele começou a ler em voz alta.
— “Não sei que dia é hoje, não vi o sol, pois esteve nublado o dia todo. Houve uma trégua na batalha, parece que os sarracenos nos esqueceram. Sinto sede e fome. O deserto é impiedosamente gelado à noite e escaldante de dia. Queria poder ver as estrelas esta noite, pois quando as vejo, sempre penso que duas delas são seus olhos que me vigiam. Ainda... Ainda faltam cinco anos, não tenho mais preces para que isso acabe logo. Espero que você esteja bem, pelo menos está aquecida e protegida, se assim poderia se dizer. Eu tenho rezado, Marien, mas acho que Deus parou de ouvir minhas preces. Eu... Eu continuo escrevendo porque, em pensamento, eu mando minhas cartas para você e imagino que as lê. Quem sabe um dia você possa lê-las e possamos descansar em paz. Sinto sua falta a cada segundo do meu dia e em cada suspiro que eu dou, tento não deixar meu coração como pedra, para não sucumbir. A única coisa que me mantém vivo e aguentando este martírio é que tenho esperanças de te ver de novo, para que seja minha esposa. Eu perdi as contas de quantos homens matei para proteger Jerusalém, mas a única coisa na minha vida que eu queria proteger era você”.
A carta acabou e o padre e Marien ficaram mudos; ela nem piscou, ficou meio paralisada.
— Não está assinada.
— É provavelmente uma carta de Sir Asch para Marien. Os templários que foram para Jerusalém passaram muitos anos lá.
— Acha que isso foi escrito por Sir Asch? — Marien perguntou.
— Já tínhamos uma suspeita que ele era apaixonado por ela nos outros manuscritos, acho que aqui se confirma.
— Hum, mas tem algo que não se encaixa.
— Bom, quem sabe quando nós lermos os outros pergaminhos, nós encontremos mais alguma pista.
— Sim.
— Pelo menos temos pistas. — ele disse, sorrindo.
— Um brinde a isso. — disse, erguendo sua taça. — Leia mais um.
— Eu falei que leríamos somente um, já é tarde. — o padre disse.
— Só mais um, e eu prometo que vou deixá-lo ir dormir.
— Tudo bem, vejamos... Vamos ler este aqui. Vamos ver se faz sentido, pois estou pegando embaralhado, se é que isso tem uma ordem.
— “Marien, amanhã é minha liberdade. Eu contei cada dia, guardei meu salvo-conduto com toda minha vida, agora poderei ir para casa. Não rezo há muito tempo, mas hoje eu pedirei a Deus que tenha misericórdia e me deixe chegar em casa bem. Você já deve estar livre, espero que me espere, pois meu coração já está com você. Eu te amo. Ainan Sucksdoff”.
Os dois ficaram mudos novamente, com os olhos arregalados.
— Ainan Sucksdoff? — Marien perguntou, espantada, massageando o peito, para tentar aliviar uma pontada que se formou ali.
— Quem é esse? E por que ele precisaria de um salvo-conduto?
— Me parece que foi obrigado a ir para Jerusalém, como um condenado. O salvo-conduto, nestas circunstâncias, lhe daria respaldo no território estrangeiro e, ao término do período imposto no documento, poderia ser liberto.
— Os templários eram, no geral, guerreiros voluntários, impulsionados pela sua própria fé na igreja de Roma, impulsionados a lutar pela causa da igreja, a não ser que fossem julgados por algum crime e condenados a lutar nas guerras. Mas em alguns períodos, se fossem embora sem permissão, eram considerados desertores, então seriam caçados e enforcados.
— Por que este Ainan teria sido condenado a isto? Escreve muito bem, parece um homem de posses. E ele se referiu a ela como se estivesse presa também, não foi? — Marien perguntou, curiosa.
— Parece que sim.
— A espada é de Ainan, foi ele quem eu vi.
— Tem certeza disso?
— O máximo de certeza que é permitido nesta loucura, mas sim.
— Bem, tem mais alguém aqui nesta história, mas descobriremos depois quem é este Ainan. Agora eu vou indo, pois estou muito cansado e amanhã será um longo dia. Amanhã terminaremos de ler os outros pergaminhos.
— Claro, eu não quero prendê-lo aqui. Vá descansar, eu mesma preciso descansar, mas guardar a curiosidade é difícil.
Sebastien levantou do chão e guardou os pergaminhos com os outros. Virou-se e olhou para ela.
— Sim, isso é difícil, mas necessário. Se não mantivermos uma rotina de trabalho com o devido descanso, não teremos energia para findar os trabalhos.
— Sim, está certo.
— Espero que descanse bem, Marien.
— Você também. Obrigada pelo jantar, estava maravilhoso.
— Obrigado a você. Boa noite e fique com Deus.
— Boa noite.
Ele foi embora e Marien colocou as taças na cozinha, depois foi para a cama e dormiu. Teve o sono tranquilo, o que seria improvável depois daquele dia, mas parece que seu sono foi velado para que descansasse naquela noite.
Capítulo 19
Todos trabalharam duro o dia todo lendo os pergaminhos, os estudos e explorando as ruínas. Os pergaminhos eram sempre cartas do tal Ainan para Marien e relatos impressionantes sobre sua dita guerra santa, o que deixou todos emocionados e mais curiosos sobre o tal homem que era tão apaixonado por sua amada. Mas nos escritos não constava exatamente sua vida mais a fundo, além de relatos de suas memórias.
No fim da tarde, Marien foi para casa preparar-se para ver Urs. Havia algo que a estava perturbando intensamente; o nome de Ainan não saia da sua cabeça, martelava impiedosamente, e sentia uma saudade de Urs imensa naquele dia. Esperava, ansiosa, para que a noite chegasse para encontrá-lo e ela nem sabia o por quê.
Ele chegou tarde à casa de Marien, pousando o helicóptero no imenso jardim de seu chalé. Marien, que já havia pegado no sono, acordou com o barulho. Não abriu os olhos, mas sorriu.
Urs abriu a porta e olhou ao redor, mas a sala estava vazia. Chamou pelo nome de Marien, mas não ouviu resposta.
Os abajures estavam acessos, dando uma penumbra ao ambiente, e algumas velas aromáticas estavam distribuídas pela casa. Ele fechou a porta e olhou para o chão, percebendo pétalas de rosas; andou, seguindo-as, e parou quando viu algo branco no chão. Abaixou e pegou um robe de seda branca.
Urs seguiu as pétalas pelo corredor e encontrou mais uma peça; era uma camisola. Sentiu o perfume dela, sorriu lindamente e seu coração acelerou no peito.
Continuou seguindo até a porta do quarto, que estava aberta. Parou e olhou para dentro; estava iluminado por velas e havia pétalas de rosas no chão. Marien dormia de bruços, coberta com um edredom branco. Andou um pouco e viu uma última peça no chão, ao lado da cama; soltou as duas que segurava na mão, deixou a sua pasta na poltrona do quarto e tirou o casaco, o paletó e o sapato. Puxou o edredom e a viu nua.
Quando a viu daquela maneira, mordeu os lábios, sorrindo, e o desejo tomou conta de seus sentidos. Retirou a caixa do bolso, abriu e retirou um bracelete de esmeraldas e colocou a caixa no criado-mudo. Deslizou os dedos pelas suas costas e a beijou levemente, subindo até chegar ao seu pescoço.
Ele aconchegou-se nela pelas costas e ela sorriu com o toque suave dele, que fez seu corpo todo tremer.
— Pensei que o aniversário fosse seu e eu é que ganho surpresas? — ele perguntou, beijando seu ombro.
— Não sei do que está falando.
— Oh, claro que perdeu suas roupas pela casa por engano.
— Você as achou? Como sou descuidada.
Ele beijou sua face e ela abriu os olhos, mordendo os lábios e sorrindo. Ele pegou o bracelete e colocou no seu pulso. Marien olhou, admirada, e virou-se para ele, que a olhava com um sorriso.
— Urs, é lindo! — disse, fascinada.
— Feliz aniversário!
— Obrigada. — ela carinhosamente deslizou os dedos pelo seu rosto. — Como é bom ver seu rosto.
— Eu estava com saudades.
— Eu também.
Ele a beijou docemente nos lábios, uma e outra vez.
— Pensei que me faria dormir no quarto de hóspedes.
— Mudei de ideia. — disse, passando a mão pela sua nuca e puxando-o para um beijo.
Foi demorado e intenso, carregado de paixão. E foi com prazer transbordando que ele tirou as roupas com a ajuda dela; fez com que ele se deitasse de costas na cama e subiu em seu corpo, escarranchada em seu quadril, enchendo-o de beijos sensuais em seu peito, seu pescoço, arrancando-lhe suspiros de prazer, aumentando seu desejo por ela.
— Adoro quando faz isso, quando quer me devorar. — Urs sussurrou, ficando com a respiração difícil.
— Sempre quero devorar você.
— Então faça o que quiser comigo.
Ela o olhou com um sorriso malicioso nos lábios e beijou sua barriga.
— Eu vou.
Ele fechou os olhos e soltou a respiração num gemido e dali em diante as palavras foram perdidas e descartadas entre beijos, gemidos e prazer. Estavam saudosos um do outro e deliciaram-se com cada toque do outro.
Marien o desejava imensamente naquela noite, mais do que pensara. Não sabia por que, mas parecia que aqueles manuscritos tinham lhe causado muita comoção, deixando-a mais sensível.
Urs beijava seu corpo com maestria; ele sabia onde tocá-la, como fazê-la enlouquecer. Adorava vê-la gemer de prazer, isso o deixava mais louco por ela.
Aquilo tudo estava mais intenso, mais completo. Seus corações chegaram a sair do seu prumo normal com a paixão desenfreada.
Seus corpos encontraram o ritmo certo para seus movimentos, ora calmos, ora intensos, arrancando gemidos altos. Ter Urs dentro dela era o que Marien precisava, mas parecia que aquela saudade que a tinha atormentado não passava nunca; queria devorá-lo, queria entrar em sua alma.
Ela estava sentindo algo diferente e profundo por ele, não sabia o que era, mas eles se amaram noite adentro, com toda paixão que queriam demonstrar naquele momento e dormiram abraçados e extasiados como só com ela Urs fazia.
*
Quando o dia já estava firme, Urs acordou e a beijou, fazendo-a despertar; puxou-a mais para seus braços e se embolou no edredom macio.
— Bom dia! — ela disse, sonolenta, acordando com as carícias de Urs em seu rosto. Ele a olhava de uma maneira diferente.
— Bom dia.
— Por que está me olhando assim, Urs?
— Eu preciso lhe dizer uma coisa.
— Assim, já de manhã? Meu cérebro ainda não acordou, preciso de um café primeiro.
— É importante. — disse, sorrindo.
— Então diga.
— Eu te amo.
Marien o olhou estranhamente.
— Urs!
— Escute-me. Eu preciso falar, senão vou perder a coragem. — Marien ficou muda, mas seu coração doeu e não sabia se queria ouvir o resto. — Eu amo você, nunca deixei de amá-la, e eu quero me casar com você de novo.
— O quê? — perguntou meio zonza.
— Não aguento mais fingir, eu quero você de volta, eu te amo mais do que posso suportar. Eu quero nossa vida juntos de volta. — Marien sentou na cama e puxou as cobertas para se cobrir. Olhou para ele e mal conseguiu engolir a saliva ou respirar. Ele sentou e segurou seu rosto com uma das mãos e se apoiava na outra. — Diga que aceita se casar comigo, por favor, sei que sente o mesmo por mim! — ela respirava com dificuldade e, olhando-o ali, à sua frente daquela maneira, não sabia o que dizer. — Não vai responder?
— Urs, por favor, o que está fazendo?
— Estou abrindo meu coração, me declarando para você. Você nunca deixou de ser minha mulher no meu coração, Marien, eu amo você.
— Já fomos casados uma vez, Urs, e não deu certo.
— Não deu porque tivemos problemas que não soubemos resolver e você se afastou de mim, mas eu sei que me ama, senão por que faria o que fez ontem à noite, me seduzindo daquela maneira?
— Isso é só sexo, Urs.
— Marien, eu sei o que é só sexo e nesta noite não foi só isso, nunca foi. Diga que me ama, abra seu coração para mim. — disse, encostando sua testa na dela.
Marien não resistiu e o beijou.
— Eu amo.
Urs soltou um sorriso de alívio.
— Eu sei que nosso casamento foi conturbado e desastroso, mas não foi por falta de amor, foi porque não soubemos levar os problemas e acabamos nos esgotando e procurando a saída mais fácil, que era terminar tudo, do que lutar. Podemos tentar novamente e podemos ser felizes. Eu posso te fazer feliz. Podemos fazer direito, eu sei disso.
Ela estava hipnotizada por ele e seus pensamentos, completamente amortecidos. Não sabia o que fazer com aquilo tudo que ele dizia e muito menos o turbilhão que sua cabeça se tornou.
— Aceita se casar comigo de novo?
— Urs, eu não sei... — disse quase sem voz.
— Enquanto você pensa, eu vou tentar convencer você.
Ele a sufocou com um beijo apaixonado. Marien abriu seu coração; tentava derrubar seus muros, e fizeram amor novamente. Depois, ficaram ali, jogados na cama, em silêncio, nem um nem o outro estava no seu eixo normal. Estavam felizes.
Marien estava deitada no seu peito e os dois entrelaçavam seus dedos carinhosamente, mudos. Estavam ali somente sentindo seus suaves toques até que ouviram um celular tocar.
— Hum... Seu celular está tocando. — ela disse, entortando a boca.
— Deixa tocar.
O celular parou e de repente começou a tocar novamente.
— Eu pego para você, mas se for uma de suas mulheres, eu vou atender como sua mulher, posso?
— Deve. Então isto é um sim? — disse, rindo.
Ela não respondeu. Levantou e foi até a maleta dele meio saltitando, abriu-a e pegou o celular e jogou para ele, rindo. Colocou a maleta de volta no sofá, mas ela virou e caiu no chão.
Urs atendeu ao telefone, era sua secretária do museu. Ele distraiu-se falando com ela e Marien foi juntar as coisas que derrubara; colocava-as dentro da maleta. Franziu a testa quando viu a ponta de uma pasta sobre o Centro de Pesquisas; pegou e a abriu com curiosidade.
Ela começou a ler as páginas e Urs, quando a viu lendo, desligou o celular imediatamente na cara da secretária e ficou paralisado. Ela o olhou de uma maneira que o fez gelar dos pés à cabeça.
— O que é isso, Urs?
Urs fechou os olhos e respirou fundo por um segundo.
— Eu posso explicar!
— Por que você está assinando por Lorde B? Por que aqui diz que ele é o dono do museu, mas... aqui diz seu nome. O que é isso?
Urs suspirou, vendo-se em um beco sem saída, então resolveu falar a verdade.
— Porque eu sou o Lorde B.
Marien soltou a pasta no chão e sua raiva aflorou, quase como uma explosão em suas veias, mas ela respirou fundo e tentou falar pausadamente.
— Eu não acredito no que vi.
— Marien, eu posso explicar!
— Explicar o quê? Que você é o Lorde B? Fui tão estúpida que nunca percebi! “B” de Barker. Você é dono do museu!
— Marien, isso não muda nada.
— Como não muda? Por que mentiu para mim? — disse com um nó na garganta quase a sufocando.
— Eu não menti, só ocultei.
— Por quê? — disse, sentindo seu coração em pedaços.
— Porque achei que não iria querer trabalhar para mim.
— Urs, você toma conta de todos os meus trabalhos, eu confiei minha vida profissional em suas mãos porque confiava em você. Como pôde mentir assim sobre quem me paga? Você foi meu chefe por cinco anos? E nunca me disse! Se faz de curador do museu quando que você é dono dele?
— Eu só achei que não aceitaria trabalhar para mim, eu queria te proteger.
— Proteger do quê?
— Se você trabalhasse para mim, eu saberia onde andava, eu só queria cuidar de você.
— Cuidar de mim? Proteger-me?
— Foi a única coisa que eu sempre quis. Proteger você.
— Oh...
Marien pensou que fosse desmaiar, pois aquelas palavras entraram nela como facas. Ouviu em seus ouvidos o padre lendo aquelas mesmas palavras nos pergaminhos.
— Marien, você está bem? O que você está sentindo? — Urs pulou da cama e a segurou quando ela trambalhou, zonza, com a mão na cabeça. Urs a segurou e a fez sentar no sofá. — Marien?
— Eu estou bem, só fiquei zonza. Vá embora daqui.
— Marien, por favor, me escute.
— Não quero ouvir nada agora, Urs, suma da minha frente.
— Eu a pedi em casamento, eu não vou embora assim desse jeito, você disse que me amava.
— Eu menti. Não vou me casar com você! — gritou, furiosa. — Eu não sei onde estava com a cabeça de pensar em aceitar me casar com você de novo.
— Você me ama, Marien. Eu quero você de volta! Nós temos que recomeçar, eu quero ter uma família com você, eu quero ter um filho com você.
— Pare com isso, vá embora! — ela, nervosa, começou a chorar.
— Eu não vou embora! Você tem que esquecer o que aconteceu. Você parou no tempo! Esqueça que nosso filho morreu, podemos ter outro! Pare de fugir de mim! — disse, já meio bravo.
Ela pensou que seu coração fosse esmigalhar e olhou para ele.
— Eu não posso. Ache outra mulher para se casar, para lhe dar os filhos que tanto quer, eu não vou voltar para você.
— Diga que não me ama olhando nos meus olhos.
Ela normalmente não conseguiria mentir assim, mas estava muito zangada e se isso o afastaria então, sim, diria.
— Eu não te amo, não vou ter outro filho com você, não vou me casar com você! Saia daqui, Urs!
Urs levantou e rangeu os dentes de nervoso. Nem conseguia acreditar que ela estava lhe dizendo aquilo.
— Marien, está mentindo. Por que ficou tão brava por causa do museu? Perdoe-me se eu não contei, mas eu ia lhe contar tudo. Eu estou construindo o Centro de Pesquisas para você, para trabalhar em segurança. Eu só quero que fique bem. Foi um erro estúpido de minha parte ocultar isso, mas eu te amo e meu pedido de casamento é sincero. Por favor, se acalme e pense.
Ela esfregou o rosto com as mãos e não sabia o que fazer. Tentou se acalmar e respirar.
— Por favor, me deixe sozinha, Urs.
— Marien...
— Por favor, vá embora, eu preciso esfriar minha cabeça para pensar e com você aqui falando sem parar, eu não consigo. Vá antes que possamos dizer mais coisas das quais vamos nos arrepender mais tarde.
Urs segurou o choro que impiedosamente queria arrebentar pelos seus olhos.
— Eu vou. Vou esperar você se acalmar, depois nos falamos.
Urs vestiu-se e foi embora. Marien se jogou na cama e chorou; chorou como há anos não fazia. Ela ouviu o helicóptero levantar voo e soube que ele havia ido embora e chorou mais ainda. Não haveria outra coisa a fazer. Não tinha outra opção a dar a ele.
Marien sentia uma dor no peito que a estava cortando em pedaços.
As coisas poderiam ser mais fáceis, mas na sua cabeça tudo era muito complicado. Era como um grande emaranhado de fios do qual não conseguia encontrar a ponta para desatar os nós.
Havia um ditado que dizia que vemos os problemas dos outros e as soluções com muita facilidade, mas os nossos é como se não existisse solução. Talvez ela precisasse de uns conselhos para aliviar seu coração.
Mesmo duvidando que algum conselho seria o que ela poderia seguir em relação a Urs, levantou, vestiu-se e foi até a casa do padre e bateu na porta. Ela não sabia por que tinha pensado nele para tratar daquele assunto, mas sua cabeça não estava fucionando claramente.
— Marien, bom dia! — exclamou, espantado. Ele percebeu a tristeza em seu rosto e ficou preocupado. — O que foi?
— Posso falar com você?
Marien apertava as mãos, nervosa.
— Claro, entre. O que aconteceu?
— Padre, eu não sei por que vim aqui, mas eu preciso conversar.
— Pode se abrir comigo.
— Quero que o que eu diga aqui fique entre nós, como uma confissão. Nem sei como é se confessar, mas quero que seja assim.
Ele a olhou, pensativo.
— Tudo bem, então isso será guardado pelo sigilo da confissão, fique despreocupada. Pode falar comigo sem medo, não sairá daqui. Venha, sente-se.
Eles sentaram-no sofá e, pacientemente, Sebastien esperou que ela estivesse pronta para falar.
— Urs esteve aqui e me pediu em casamento.
Ele a olhou, sério.
— Ele passou a noite aqui? Então era dele aquele helicóptero que ouvi passar hoje tão cedo?
Sebastien quase mordeu a língua; aquilo soara quase como uma frase estranha para ele, quase ciumenta, e franziu o cenho pela sua própria colocação, mas Marien nem percebeu, pois estava aturdida demais com seus pensamentos.
— Sim, ele veio para comemorar meu aniversário, me trouxe este bracelete de presente. — disse, mostrando-o.
— É lindo. E por que você não ficou feliz?
Ela suspirou.
— Eu descobri uma grande mentira. Ele mentiu sobre muitas coisas e por tanto tempo que fiquei tão furiosa e o mandei embora.
— Acha que ele mentiu por maldade?
— Não, acho que não. Só que me senti manipulada por ele. Eu sei lá o que senti.
— As pessoas cometem erros, Marien. Se ele lhe pedir perdão, você pode perdoá-lo e esquecer.
— Eu sei, mas não pude aceitar seu pedido de casamento. Eu aceitei, mas depois recusei e bem... não posso aceitar.
— Por que não? Você o ama?
— Eu não sei o que eu sinto por ele! — disse, exasperada. — Eu o amei perdidamente, eu o odiei, eu tenho carinho, o respeito, gosto da companhia dele. Às vezes preciso dele como o ar que respiro. Às vezes eu quero ficar longe, às vezes gosto somente de ouvir a voz dele mesmo que diga porcarias, e às vezes queria que ele não existisse. Às vezes sinto saudades de ser sua esposa, penso que minha vida não tem sentido nenhum sem ele, acho que é por isso que não consigo ficar longe dele. — ela suspirou e limpou uma lágrima que escorreu.
— Então? — ele encorajou.
— Mas isso é passado, não quero reviver isso, quero deixar para trás, porque... eu não sei se consigo lidar com ele. Eu pensei que podia, mas, agora, é como se o trem estivesse descarrilhando... Eu estou tão confusa. Nós tínhamos encontrado um modo de conviver e estava perfeito, mas agora...
— Se ainda existe amor entre vocês, poderiam se dar outra chance. Se ele se declarou a você e a pediu em casamento, pode ser que ele esteja querendo tentar fazer as coisas direito desta vez. Por que não lhe dá uma segunda chance?
— Não posso. Ele tem que se casar com outra pessoa, eu não posso dar o que ele quer.
— O que ele quer?
— Uma família. Ele quer um filho, padre.
— Você não quer dar um filho a ele? — ela não conseguiu conter as lágrimas. Sebastien não estava entendendo as colocações que Marien fazia, mas estava com toda a paciência do mundo e queria ajudá-la. — Abra seu coração, Marien, fale comigo.
— Não posso dar um filho a ele, padre. Se ele se casar comigo, nunca terá um herdeiro. Por que ele iria querer isso?
— Por que não?
Ela respirou, tomando coragem de contar tudo ao padre, trazer à tona aquela história que ela fazia tanto esforço para esquecer.
— Há alguns anos, eu quase morri numa escavação, Urs estava junto. Eu e ele éramos entusiastas e nos separamos de nossa equipe, explorando sozinhos outra ala da escavação e fizemos uma grande descoberta, mas... Um bandido nos roubou. Tentamos fugir, mas quando íamos sair pelas cordas, ele as cortou e nós caímos de uma grande altura. Ficamos presos lá por alguns dias até sermos encontrados.
Sebastien sentiu seu coração apertar como se estivesse sendo esmagado e engoliu em seco.
— Mas vocês sobreviveram.
— Mas eu estava grávida e meu filho morreu. Como demorei demais para ser levada a um hospital, fiquei muito mal, tive complicações. E eu não posso mais ter filhos.
Sebastien fechou os olhos. Sentiu o remorso abater-se sobre ele como uma machadada no coração. Então fora seu filho quem havia morrido, mas ninguém soubera disso; a imprensa não ficara sabendo, e ele nem sequer havia considerado isso.
— O que aconteceu depois?
— O médico não contou a Urs, pois ele estava em coma. Contou a mim, e eu não consegui contar a ele quando acordou.
— Ele não sabe?
— Não. Depois disso, eu fiquei muito mal. Fui tomada pela dor e pelo remorso; minha raiva me consumiu e comecei a me afastar dele. Eu me enfiei no trabalho e o deixava sozinho. Ele achou que eu não o amava mais e começou a me trair. Ficamos dois anos assim antes de nos divorciarmos. Eu não consegui manter meu casamento. Tinha medo que ele me odiasse, mas era algo tão estúpido que eu mesma acabei dando motivos para que o fizesse, mas pelas razões erradas. Tudo virou uma bagunça.
— Marien, por que ele te odiaria? Você não teve culpa.
— Eu sei, mas eu devia ter ficado em casa e não enfiada num buraco, correndo perigos. Todo mundo me recriminou, ouvi sermões por meses de minha família, da dele, que acabei ocultando o resto da verdade.
— Por que não conta a verdade a ele agora?
— Porque prefiro que ele pense que eu não o amo mais do que saiba que não posso lhe dar um filho. Por que ele iria querer ficar com uma mulher que não pode lhe dar uma família? Ter um filho é o sonho dele e sempre foi o meu. E eu achei que se ele soubesse, iria sentir a raiva que sinto em meu coração por aquele homem maldito ter feito o que fez. Eu não queria isso para Urs e também achei que isso tinha passado. Nunca imaginei que ele diria aquelas coisas, que me pediria em casamento de novo, que pediria um filho de novo.
— Sinto muito, Marien. — ela respirou profundamente.
— Isso tudo estava apagado. Não sei por que está voltando à tona deste jeito. Depois do divórcio, nós vivemos bem por cinco anos; nunca brigamos, trabalhamos juntos, somos amigos, estávamos em paz. Mas agora tudo está virando de cabeça para baixo. É como abrir uma ferida que estava cicatrizada.
— Talvez os segredos que tentamos esconder tenham que vir à tona um dia. Cedo ou tarde, os fantasmas retornam e nos forçam a encarar a verdade.
— Parece que Ancona exerce um poder grande sobre as pessoas.
— Por que diz isso?
— Porque tudo isso começou a virar de cabeça para baixo quando Ancona entrou na minha vida. Como se eu tivesse sido jogada no olho do furacão e minha vida virasse do avesso.
— Ontem você me perguntou se nós seríamos colocados à prova. Acho que já temos a resposta.
Ela, apavorada, olhou-o.
— O que vou fazer?
— Você tem que seguir seu coração e encontrar sua resposta, mas eu acho que ele tem o direito de saber a verdade.
— Eu não quero isso.
— Calma, esfrie a cabeça. Quem sabe mais tarde você consegue pensar melhor. Ter a coragem que precisa, pois está muito nervosa agora.
— Me ajude, padre, eu não sei o que fazer. Quero que ele fique longe de mim, mas não consigo afastá-lo.
Marien, sem pensar, abraçou-o e ele levantou levemente as mãos e fechou os olhos. Não esperava que ela o abraçasse daquele jeito. Sebastien, com uma dor no coração, abraçou-a.
— Sinto muito pelo seu filho, Marien, eu realmente sinto muito.
Sebastien continuou abraçado a ela e orava a Deus, pedindo forças, que Ele a abençoasse. Pedia perdão em nome dele pelo malfeito que seria do Vaticano sobre ela. Como aquilo poderia ter acontecido? Realmente tudo estava vindo à tona de uma maneira descomunal e os golpeando de todos os lados.
— Se sente melhor? — ela assentiu e o soltou. — Vá para casa e descanse, esfrie a cabeça, depois eu irei vê-la. Em nome do poder a mim concedido, eu a absolvo dos teus pecados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. — ele fez o sinal da cruz na testa dela e os dois se olharam.
— O que acontece agora? Meus pecados estão perdoados?
— Se você se arrependeu deles, estão.
— Então por que a dor que eu sinto ainda está no meu peito?
Sebastien olhou para aqueles olhos verdes molhados pelas lágrimas e passou os dedos no seu rosto para secá-las.
— Não posso arrancar a dor de seu coração, Marien, se pudesse o faria. Você é quem tem que jogá-la para fora, livrar-se dela. Deixe só o amor em seu coração. A raiva e a mágoa só te levam à tristeza. Dê-se a chance de ser feliz.
Marien, olhando para os olhos dele, sentiu que suas palavras eram como um bálsamo.
— Vou tentar.
— Quando você esfriar a cabeça, conseguirá pensar com mais clareza e vai encontrar a sua resposta. A raiva, a dor e revolta sempre nublam a mente, o que nos faz tomar decisões equivocadas e, depois, nos sobra o sofrimento.
— Obrigada.
— Estarei aqui se precisar.
Marien assentiu, levantou e foi embora.
Sebastien sentiu vontade de gritar. Ajoelhou-se, respirando fora de controle, e começou a orar fortemente.
— Pai, se eu contar a verdade, ela vai me odiar. Por favor, me mostre o que eu tenho que fazer. Por que a presença dela me perturba desse jeito? Sei que é egoísmo, que não conto por medo de que ela me odeie. Ajude-me, me dê forças. Por que isto tinha que acontecer? Por que fizeram isso? Eu sinto que estou caindo, pai, meu coração está se abalando. Quando ela está por perto, fico perdido. Por que está me colocando à prova? Sempre fui fiel a ti. Se esta é sua vontade, o faça, mas me dê forças para resistir.
Ele rezou por um longo tempo até seu coração se apaziguar.