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Esaú e Jacó 4 / Machado de Assis
Esaú e Jacó 4 / Machado de Assis

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Esaú e Jacó

 

CAPÍTULO LXXXI / AI, DUAS ALMAS...

Anda, Flora, ajuda-me, citando alguma cousa, verso ou prosa, que exprima a tua situação. Cita Goethe, amiga minha, cita um verso do Fausto, adequado: Ai, duas almas no meu seio moram! A mãe dos gêmeos, a bela Natividade, podia havê-lo citado também, antes deles nascerem, quando elas os sentia lutando dentro em Si mesma: Ai, duas almas no meu seio moram! Nisto as duas se parecem, — uma os concebeu, outra os recolheu. Agora, como é que se dá ou se dará a escolha de Flora, nem o próprio Mefistófeles no-lo explicaria de modo claro e certo. O verso basta: Ai, duas almas no meu seio moram! Talvez aquele velho Plácido, que lá deixamos nas primeiras páginas, chegasse a deslindar estas outras. Doutor em matérias escuras e complicadas, sabia muito bem o valor dos números, a significação dos gestos não só visíveis como invisíveis, a estatística da eternidade a divisibilidade do infinito. Era já morto desde alguns anos. Hás de lembrar-te que ele, consultado pelo pai de Pedro e Paulo, acerca da hostilidade original dos gêmeos, explicou-a prontamente. Morreu no seu ofício; expunha a três discípulos novos a correspondência das letras vogais com os sentidos do homem. quando caiu de bruços e expirou.

Já então os adversários de Plácido, — que os tinha na própria seita, — afirmavam haver ele aberrado da doutrina, e, por natural efeito, enlouquecido. Santos nunca se deixou ir com esses divergentes da casa comum, que acabaram formando outra igrejinha em outro bairro, onde pregavam que a correspondência exata não era entre as vogais e os sentidos, mas entre os sentidos e as vogais. Esta outra fórmula, parecendo mais clara, fez com que muitos discípulos da primeira hora acompanhassem os da última, e proclamem agora, como conclusão final, que o homem é um alfabeto de sensações.

Venceram estes, ficando mui poucos fiéis à doutrina do velho Plácido. Evocado algum tempo depois de morto, confessou ele ainda uma vez a sua fórmula, como a única das únicas, e excomungou a quantos pregassem o contrário. Aliás, os dissidentes já o haviam excomungado também, declarando abominável a sua memória, com aquele ódio rijo, que fortalece alguma vez o homem contra a frouxidão da piedade.

Talvez o velho Plácido deslindasse o problema em cinco minutos. Mas para isso era preciso evocá-lo, e o discípulo Santos cuidava agora de umas liquidações últimas e lucrativas. Não só de fé vive o homem, mas também de pão e seus compostos e similares.

CAPÍTULO LXXXII / EM S. CLEMENTE

Ao caso de poucas semanas, a família Batista saiu da casa Santos, e tornou à Rua de S. Clemente. A despedida foi terna, as saudades começaram antes da separação, mas a afeição, o costume, a estima, — a necessidade, em suma, de se verem a miúdo compensaram a melancolia, e a gente Batista levou promessa de que a gente Santos iria vê-la daí a poucos dias.

Os gêmeos cumpriram cedo a promessa. Um deles, parece que Paulo foi lá nessa mesma noite com recado da mãe para saber se tinham chegado bem. Disseram-lhe que sim, acrescentando Batista, para abreviar a visita, que estavam bastante cansados. Os olhos de Flor a desmentiram esta afirmação; mas dentro em pouco achavam se não menos tristes que alegres. A alegria vinda da prontidão de Paulo, a tristeza da ausência de Pedro. Quisera-os ambos naturalmente; mas, como é que as duas sensações se mostravam a um tempo. eis o que não entenderás bem nem mal. Certamente, os olhos iam diversas vezes para a porta, e uma vez pareceu à moça ouvir rumor na escada; tudo ilusão. Mas estes gestos que Paulo não viu, tão contente estava de se haver adiantado ao irmão, não eram tais que a fizessem esquecer o irmão presente.

Paulo saiu tarde, não só para o fim de aproveitar a ausência de Pedro, mas ainda porque Flora o fazia demorar, com o intuito de ver se o outro chegava. Assim que, a mesma dualidade de sensação enchia os olhos da moça, até a hora da despedida, em que a parte triste foi maior que a alegre, pois que eram duas ausências, em vez de uma. Conclui o que quiseres, minha dona; ela recolheu-se para dormir, e reconheceu que, se não dorme com uma tristeza na alma. muito menos com duas.

CAPÍTULO LXXXIII / A GRANDE NOITE

Há muito remédio contra a insônia. O mais vulgar é contar de um até mil, dous mil, três mil ou mais, se a insônia não ceder logo. É remédio que ainda não fez dormir ninguém, ao que parece, mas não importa. Até agora, todas as aplicações eficazes contra a física vão de par com a noção de que a tísica é incurável. Convém que os homens afirmem o que não sabem, e, por ofício, o contrário do que sabem; assim se forma esta outra incurável, a Esperança.

Flora, incurável também, se não preferes a definição de inexplicável, que lhe deu Aires, a graciosa Flora teve naquela noite a sua insônia. Mas foi um tanto culpa sua. Em vez de se deitar quietinha e dormir com os anjos, achou melhor velar com um dos dous deles, e gastar uma parte da noite, à janela ou sentada, a recordar e a pensar, a cotejar e a completar, metida no roupão de linho, com os cabelos atados para dormir.

A princípio pensou no que lá estivera, e evocou todas as suas graças, realçadas pela virtude particular de a ter ido ver à noite, sem embargo de se terem visto de manhã. Sentia-se grata. Toda a conversação foi ali repetida na solidão da alcova, com as entonações diversas, o vário assunto, e as interrupções freqüentes, ora dos outros, ora dela mesma. Ela, em verdade, só interrompia, para pensar no ausente, — e portanto não fazia mais que converter o diálogo em monólogo, o qual por sua vez acabava em silêncio e contemplação.

Agora, pensando em Paulo, queria saber por que é que o não escolhia para noivo. Tinha uma qualidade a mais, a nota aventurosa do caráter, e esta feição não lhe desprazia. Inexplicável ou não, deixava-se levar pelos ímpetos do rapaz, que queria trocar o mundo e o tempo por outros mais puros e felizes. Aquela cabeça, apenas masculina, era destinada a mudar a marcha do Sol, que andava errado. A Lua também. A Lua pedia um contacto mais freqüente com os homens, menos quartos, não descendo o minguante de metade. Visível todas as noites, sem que isso acarretasse a decadência das estrelas, continuaria modestamente o ofício do Sol, e faria sonhar os olhos insones ou só cansados de dormir. Tudo isso cumpriria a alma de Paulo, faminta de perfeição. Era um bom marido, em suma. Flora cerrou as pálpebras, para vê-lo melhor, e achou-o a seus pés, com as mãos dela entre as suas, risonho e extático.

—Paulo! meu querido Paulo! Inclinou-se, para vê-lo de mais perto, e não perdeu o tempo nem a intenção. Visto assim; era mais belo que simplesmente conversando das cousas vulgares e passageiras. Enfiou os olhos nos olhos, e achou-se dentro da alma do rapaz. O que lá viu não soube dizê-lo bem; foi tudo tão novo e radiante que a pobre retina da moça não podia fitar nada com segurança nem continuidade. As idéias faiscavam como saindo de um -fogareiro à força de abano, as sensações batiam-se em duelo, as reminiscências subiam frescas, algumas saudades, e ambições principalmente, umas ambições de asas largas, que faziam vento só com agitá-las. Sobre toda essa mescla e confusão chovia ternura, muita ternura...

Flora recolheu os olhos, Paulo estava na mesma postura; mas do lado da porta, metido na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste. Flora sentiu-se tocada daquela tristeza. Parece que, se amasse exclusivamente o primeiro, o segundo podia chorar lágrimas de sangue, sem lhe merecer a menor simpatia. Que o amor, conforme as ninfas antigas e modernas, não tem piedade. Quando há piedade para outro, dizem elas, é que o amor ainda não nasceu de verdade, ou já morreu de todo, e assim o coração não lhe importa vestir essa primeira camisa do afeto. Perdoa a figura; não é nobre, nem clara, mas a situação não me dá tempo de ir à cata de outra.

Pedro aproximou-se, a passo lento, ajoelhou-se também e tomou-lhe as mãos que Paulo apertava entre as suas. Paulo ergueu-se e sumiu-se pela outra porta. O quarto tinha duas. A cama ficava entre elas. Talvez Paulo fosse bramindo de cólera; ela é que não ouviu nada, tão docemente vivo era o gesto de Pedro, já agora sem melancolia, e os olhos tão extáticos como os do irmão. Não eram tais que saíssem, como os deste, às aventuras. Tinham a quietação de quem não queria mais sol nem lua que esses que andam aí, que se contenta de ambos, e, se os acha divinos, não cuida de os trocar por novos. Era a ordem se queres, a estabilidade, o acordo entre si e as cousas, não menos simpáticos ao coração da moça, ou por trazerem a idéia de perpétua ventura, ou por darem a sensação de uma alma capaz de resistir.

Nem por isso os olhos de Flora deixaram de penetrar os de Pedro, até chegar à alma do rapaz. O motivo secreto desta outra entrada podia ser o escrúpulo de cotejar as duas para julgá-las, se não era somente o desejo de não parecer menos curiosa de uma que de outra. Ambas as razões são boas, mas talvez nenhuma fosse verdadeira. O gosto de fitar os olhos de Pedro era tão natural que não exigia intenção particular nenhuma, e bastava fitá-los para escorregar e cair dentro da alma namorada. Era gêmea da outra; não lhe viu mais nem menos que nesta.

Unicamente, — e aqui toco o ponto escabroso do capítulo, — achou cá alguma cousa indefinível que não sentira lá; em compensação sentiu lá outra que não se lhe deparou cá. Indefinível, não esqueças. E escabroso porque nada há pior que falar de sensações sem nome. Crede-me, amigo meu, e tu, não menos amiga minha, crede-me que eu Preferia contar as rendas do roupão da moça, os cabelos apanhados atrás, os fios do tapete, as tábuas do tecto e por fim os estalinhos da lamparina que vai morrendo... Seria enfadonho, mas entendia-se.

Sim, a lamparina ia morrendo, mas ainda podia dar luz ao regresso de Paulo. Quando Flora o viu entrar e ajoelhar-se outra vez, ao pé do irmão, e ambos dividirem entre si as mãos dela, mansos e cordatos, ficou longamente atônita. Obra de um credo, como diziam os nossos antigos, quando havia mais religião que relógios. Voltando a si, puxou as mãos, estendeu-as depois sobre a cabeça deles, como se lhes apalpasse a diferença, o quid, o algo, o indefinível. A lamparina ia morrendo... Pedro e Paulo falavam-lhe por exclamações, por exortações, por súplicas, a que ela respondia mal e tortamente, não que os não entendesse, mas por não os agravar, ou acaso por não saber a qual deles diria melhor. A última hipótese tem ar de ser a mais provável. Em todo caso, é o prélogo do que sucedeu, quando a lamparina chegou aos últimos arrancos.

Tudo se mistura à meia claridade; tal seria a causa da fusão dos vultos, que de dous que eram, ficaram sendo um só. Flora, não tendo visto sair nenhum dos gêmeos, mal podia crer que formassem agora uma só pessoa, mas acabou crendo, mormente depois que esta única pessoa solitária parecia completá-la interiormente, melhor que nenhuma das outras em separado. Era muito fazer e desfazer, mudar e transmudar. Pensou enganar-se, mas não; era uma só pessoa, feita das duas e de si mesma, que sentia bater nela o coração. Estava tão cansada de emoções que tentou erguer-se e ir fora, mas não pôde — as pernas pareciam de chumbo e coladas ao solo. Assim esteve até que a lamparina, ao canto, morreu de todo. Flora teve um sobressalto na poltrona, e ergueu-se: —Que é isto? A lamparina apagou-se. Foi acendê-la. Viu então que estava sem um nem outro, sem dous nem um só fundido de ambos. Toda a fantasmagoria se desfizera. A lamparina (agora nova) alumiava o seu quarto de dormir, e a imaginação criara tudo. Foi o que ela supôs, e o leitor sabe. Flora compreendeu que era tarde, e um galo confirmou essa opinião, cantando; outros galos fizeram a mesma cousa.

—Ora, meu Deus! exclamou a filha de Batista.

Meteu-se na cama, e, se não dormiu logo, também não se demorou muito; não tardou a estar com os anjos. Sonhou com o canto dos galos, uma carroça, um lago, uma cena de viagem do mar, um discurso e um artigo. O artigo era de verdade. A mãe veio acordá-la, às dez horas da manhã, chamando-lhe dorminhoca, e ali mesmo, na cama, lhe leu uma folha da manhã que recomendava o marido ao governo. Flora ouviu satisfeita; acabara a grande noite.

CAPÍTULO LXXXIV / O VELHO SEGREDO

Natividade dormiu tranqüila, em Botafogo, mas acordou pensando nos filhos e na moça de S. Clemente. Viera reparando nos três. Parecera-lhe antes que Flora não aceitava um nem outro, logo depois que os aceitava a ambos, e mais tarde um e outro alternadamente. Concluiu que ainda não sentiria nada particular e decisivo; naturalmente iria com os tempos, a ver qual destes a merecia deveras. Eles é que pareciam sentir igual inclinação e igual ciúme. Daí alguma possível catástrofe. A separação não suprimiria tudo — mas além de que, separadas as famílias, nem tudo seria presente a seus olhos, as visitas podiam ser menos freqüentes e até raras. Tinha assim o que quisera.

Ao demais, ia chegando o tempo de ir para Petrópolis — propriamente, chegara. Natividade cuidava de subir com os filhos. Sempre haveria lá no alto damas elegantes, diversões, alegria. Podia ser até que eles achassem noivas, e bastava uma para um. O que ficasse sem ela teria a liberdade de desposar Flora. Cálculos de mãe; vieram outros que os modificaram, e outros que os restauraram. Quem for mãe que lhe atire a primeira pedra.

Nenhuma outra mãe atirou a primeira pedra à nossa amiga. Quero crer que a razão disto não foi senão a própria discrição de Natividade. Suspeitas e cálculos iam ficando no coração dela. Calou tudo e esperou.

Ao cabo, Flora cada vez gostava mais de Natividade. Queria-lhe como se ela fosse sua mãe duplamente mãe, uma vez que não escolhera ainda nenhum dos filhos. A causa podia ser que as duas índoles se ajustassem melhor que entre Flora e D. Cláudia. A princípio, sentiu não sei que inveja amiga, antes desejo, quando via que as formas da outra, embora arruinadas pelo tempo, ainda conservavam alguma linha da escultura antiga. Pouco a pouco, foi descobrindo em si mesma o intróito de uma beleza, que devia ser longa e fina, e de uma vida que podia ser grande...

Flora conhecia a predição da cabocla do Castelo, relativamente aos dous gêmeos. A predição não era já segredo para ninguém. Santos falara dela em tempo, apenas ocultando a subida de Natividade ao Castelo; emendou a verdade, dizendo que a cabocla é que viera a Botafogo. O resto foi revelado em confiança, como ao finado Plácido, e ainda depois de alguma luta. Três ou quatro vezes investiu e recuou. Um dia. a língua deu sete voltas na boca, e o segredo saiu medroso e sussurrado, mas perdeu o medo pelo gosto de mostrar que os rapazes seriam grandes. Enfim, o segredo foi esquecendo. Mas Perpétua, por isto ou aquilo, contou-o agora à moça Batista, que a ouviu incrédula. Que podia saber a cabocla do futuro? —Sabia, e a prova é que adivinhou outras cousas, que não posso contar e eram verdadeiras. Você não imagina como o diacho da cabocla via longe. E tinha uns olhos de espetar o coração.

—Não acredito, D. Perpétua. Pois agora o futuro da gente... E grandes como? —Isso não disse por mais que Natividade lhe perguntasse; disse só que seriam grandes e subiriam muito. Talvez venham a ser ministros de Estado.

Perpétua parecia haver comprado os olhos à cabocla. Enfiava-os pela amiga abaixo, até o coração, que aliás não batia com força nem apressado, mas tão regular como de costume. Entretanto, não sendo impossível que os dous rapazes chegassem — aos altos deste mundo, Flora deixou de objetar e aceitou a predição, sem outra palavra mais que um gesto, — sabes, creio, — um gesto de boca, fazendo descair os cantos dela, levantando os ombros levemente, e espalmando as mãos, como se dissesse: Enfim, pode ser.

Perpétua acrescentou que, mudado o regímen, era natural que Paulo chegasse primeiro à grandeza, — e aqui espetou bem os olhos. Era um modo de apanhar os sentimentos de Flora, acenando-lhe com a elevação de Paulo, pois bem podia ser que viesse a amar antes o destino que a pessoa. Não achou nada. Flora continuou a não se deixar ler. Não lhe atribuas isto a cálculo, não era cálculo. Seriamente, não pensava em nada acima de si.

CAPÍTULO LXXXV / TRÊS CONSTITUIÇÕES

—Você crê deveras que venhamos a ser grandes homens? perguntara Pedro a Paulo, antes da queda do império.

—Não sei; você pode vir a ser, quando menos, primeiro-ministro.

Depois de 15 de novembro, Paulo retorquiu a pergunta, e Pedro respondeu como o irmão, emendando o resto: —Não sei; você pode vir a ser presidente da República.

Já lá iam dous anos. Agora pensavam mais em Flora que na subida. A boa moral pede que ponhamos a cousa pública acima das pessoas, mas os moços nisto se parecem com velhos e varões de outra idade, que muita vez pensam mais em si que em todos. Há exceções, nobres algumas, outras nobilíssimas. A história guarda muitas delas, e os poetas, épicos e trágicos, estão cheios de casos e modelos de abnegação.

Praticamente, seria exigir muito de Pedro e Paulo que cuidassem mais da Constituição de 24 de fevereiro que da moça Batista. Pensavam em ambas, é verdade, e a primeira já dera lugar a alguma troca de palavras acerbas. A Constituição, se fosse gente viva e estivesse ao pé deles, ouviria os ditos mais contrários deste mundo, porque Pedro ia ao ponto de a achar um poço de iniqüidades, e Paulo a própria Minerva nascida da cabeça de Jove. Falo por metáfora para não descair do estilo. Em verdade, eles empregavam palavras menos nobres e mais enfáticas, e acabavam trocando as primeiras entre si. Na rua, onde o encontro de manifestações políticas era comum, e as notícias à porta dos jornais freqüentes, tudo era ocasião de debate.

Quando, porém, a imagem de Flora aparecia entre eles por imaginação, o debate esmorecia, mas as injúrias continuavam e até cresciam, sem confissão do novo motivo, que era ainda maior que o primeiro. Efetivamente, eles iam chegando ao ponto em que dariam as duas constituições, a republicana e a imperial, pelo amor exclusivo da moça, se tanto fosse exigido. Cada um faria com ela a sua Constituição, melhor que outra qualquer deste mundo.

CAPÍTULO LXXXVI / ANTES QUE ME ESQUEÇA

Uma cousa é preciso dizer antes que me esqueça. Sabes que os dous gêmeos eram belos e continuavam parecidos; por esse lado não supunham ter motivo de inveja entre si. Ao contrário, um e outro achavam em si qualquer cousa que acentuava, se não melhorava, as graças comuns. Não era verdade, mas não é a verdade que vence, é a convicção. Convence-te de uma idéia, e morrerás por ela, escreveu Aires por esse tempo no Memorial, e acrescentou: "nem é outra a grandeza dos sacrifícios, mas se a verdade acerta com a convicção, então nasce o sublime, e atrás dele o útil..." Não acabou ou não explicou esta frase.

CAPÍTULO LXXXVII / ENTRE AIRES E FLORA

Aquela citação do velho Aires faz-me lembrar um ponto em que ele e a moça Flora divergiam ainda mais que na idade. Já contei que ela, antes da comissão do pai, defendia Pedro e Paulo, conforme estes diziam mal um do outro. Naturalmente fazia agora a mesma cousa, mas a mudança do regímen trouxe ocasião de defender também monarquistas e republicanos, segundo ouvia as opiniões de Paulo ou de Pedro. Espírito de conciliação ou de justiça, aplacava a ira ou o desdém do interlocutor: "Não diga isso... São patriotas também... Convém desculpar algum excesso..." Eram só frases, sem ímpeto de paixão nem estímulo de princípios; e o interlocutor concluía sempre: —A senhora é boa.

Ora, o costume de Aires era o oposto dessa contradição benigna. Hás de lembrar-te que ele usava sempre concordar com o interlocutor, não por desdém da pessoa, mas para não dissentir nem brigar. Tinha observado que as convicções, quando contrariadas, descompõem o rosto à gente, e não queria ver a cara dos outros assim, nem dar à sua um aspecto abominável. Se lucrasse alguma cousa, vá; mas, não lucrando nada, preferia ficar em paz com Deus e os homens. Daí o arranjo de gestos e frases afirmativas que deixavam os partidos quietos, e mais quieto a si mesmo.

Um dia como ele estivesse com Flora, falou daquele costume dela, dizendo-lhe que parecia estudado. Flora negou que o fosse; era inclinação natural defender os ausentes, que não podiam responder por nada; demais, aplacava assim um dos gêmeos com que falasse, e depois o outro.

—Também concordo.

—E por que há de o senhor concordar sempre? perguntou ela sorrindo.

—Posso concordar com a senhora, porque é uma delícia ir com as suas opiniões, e seria mau gosto rebatê-las, mas, em verdade, não há cálculo. Com os mais, se concordo, é porque eles só dizem o que eu penso.

—Já o tenho achado em contradição.

—Pode ser. A vida e o mundo não são outra cousa. A senhora não saberá isto bem, porque é moça, e ingênua, mas creia que a vantagem é toda sua. A ingenuidade é o melhor livro e a mocidade a melhor escola. Vá desculpando esta minha pedanteria; alguma vez é um mal necessário.

—Não se acuse, conselheiro. O senhor sabe que eu não creio nada contra a sua palavra, nem contra a sua pessoa; a própria contradição que lhe acho é agradável.

—Também concordo.

—Concorda com tudo.

—Olha aqui, Flora; dá licença, conselheiro? Esqueceu-me dizer que esta conversação era à porta de uma loja de fazendas e modas, Rua do Ouvidor. Aires ia na direção do Largo de S. Francisco de Paula e viu a mãe e a filha dentro, sentadas, a escolher um tecido. Entrou, cumprimentou-as, e veio à porta com a filha. O chamado de D. Cláudia interrompeu a conversação por alguns instantes. Aires ficou a olhar para a rua, onde subiam e desciam mulheres de todas as classes, homens de todos os ofícios, sem contar as pessoas paradas de ambos os lados e no centro. Não havia burburinho grande, nem sossego puro, um meio-termo.

Talvez algumas pessoas fossem conhecidas de Aires e o cumprimentassem; mas este tinha a alma tão metida em si mesma que, se falou a uma ou duas, foi o mais. De quando em quando, voltava a cabeça para dentro, onde Flora e a mãe faziam a sua consulta. Ouvia as palavras trocadas ainda agora. Sentia-se curioso de saber se finalmente a moça escolhia a um dos gêmeos, e qual destes. Vá tudo; tinha já pesar que não fosse algum posto não lhe importasse saber se Pedro ou Paulo. Quisera vê-la feliz, se a felicidade era o casamento, e feliz o marido, sem embargo da exclusão — o excluído seria consolado. Agora, se era por amor deles, se dela, é o que propriamente se não pode dizer com verdade. Quando muito, para levantar a ponta do véu, seria preciso entrar na alma dele, ainda mais fundo que ele mesmo. Lá se descobriria acaso, entre as ruínas de meio celibato, uma flor descorada e tardia de paternidade, ou, mais propriamente, de saudade dela...

Flora trouxe novamente a rosa fresca e rubra da primeira hora. Não falaram mais de contradição, mas da rua, da gente e do dia. Nenhuma palavra acerca de Pedro ou Paulo.

CAPÍTULO LXXXVIII / NÃO, NÃO, NÃO

Eles, onde quer que estivessem naquele momento, podiam falar ou não. A verdade é que, se nenhum consentia em deixar a moça, também nenhum contava obtê-la, por mais que a achassem inclinada. Tinham já combinado que o rejeitado aceitaria a sorte, e deixaria o campo ao vencedor. Não chegando a vitória, não sabiam como resolver a batalha. Esperar, seria o mais fácil, se a paixão não crescesse, mas a paixão crescia.

Talvez não fosse exatamente paixão, se dermos a esta palavra o sentido de violência, mas, se Ihe reconhecermos uma forte inclinação de amor, um amor adolescente ou pouco mais, era o caso. Pedro e Paulo cederiam a mão da pequena, se houvessem de consultar só a razão, e mais de uma vez estiveram a pique de o fazer; raro lampejo, que para logo desaparecia. A ausência era já insofrível, a presença necessária. Se não fora o que aconteceu e se contará por essas páginas adiante, haveria matéria para não acabar mais o livro; era só dizer que sim e que não, e o que estes pensaram e sentiram, e o que ela sentiu e pensou, até que o editor dissesse: basta! Seria um livro de moral e de verdade, mas a história começada ficaria sem fim. Não, não, não... Força é continuá-la e acabá-la. Comecemos por dizer o que os dous gêmeos ajustaram entre si, poucos dias depois daquele sonho ou delírio da moça Flora, à noite, no quarto.

CAPÍTULO LXXXIX / O DRAGÃO

Vejamos o que é que estes ajustaram. Vinham de estar com Aires no teatro, uma noite, matando o tempo. Conheceis este dragão; toda a gente lhe tem dado os mais fundos golpes que pode, ele esperneia, expira e renasce. Assim se fez naquela noite. Não sei que teatro foi, nem que peça, nem que gênero; fosse o que fosse, a questão era matar o tempo, e os três o deixaram estirado no chão.

Foram dali a um restaurant. Aires disse-lhes que, antigamente, em rapaz, acabava a noite com amigos da mesma idade. Era o tempo de Offenbach e da opereta. Contou anedotas, disse as peças, descreveu as damas e os partidos, quase deu por si repetindo um trecho, música e palavras. Pedro e Paulo ouviam com atenção, mas não sentiam nada do que espertava os ecos da alma do diplomata. Ao contrário, tinham vontade de rir. Que Ihes importava a notícia de um velho café da Rua Uruguaiana, trocado depois em teatro, agora em nada, uma gente que viveu e brilhou, passou e acabou antes que eles viessem ao mundo? O mundo começou vinte anos antes daquela noite, e não acabaria mais, como um viveiro de moços eternos que era.

Aires sorriu, porquanto ele também assim cuidou, aos vinte e dous anos de idade, e ainda se lembrava do sorriso do pai, já velho, quando lhe disse algo parecido com isso. Mais tarde, tendo adquirido do tempo a noção idealista que ora possuía, compreendeu que tal dragão era juntamente vivo e defunto, e tanto Valia matá-lo como nutri-lo. Não obstante, as recordações eram doces, e muitas delas viviam ainda frescas, como se viessem da véspera.

A diferença da idade era grande, não podia entrar em pormenores com eles. Ficou só em lembranças, e cuidou de outra cousa. Pedro e Paulo, entretanto, receosos de que os adivinhasse e compreendesse o desprezo que lhes inspiravam as saudades de tempos remotos e estranhos, pediram-lhe informações, e ele deu as que podia, sem intimidade.

Ao cabo, a conversação valeu mais que este resumo, e a separação não custou pouco. Paulo ainda lhe pediu Offenbach, Pedro uma descrição das paradas de 7 de setembro e 2 de dezembro — mas o diplomata achou meio de saltar ao presente e particularmente a Plora, que louvou como uma bela criatura. Os olhos de ambos concordaram que era belíssima. Também louvou as qualidades morais, a finura do espírito, tais dotes que Pedro e Paulo reconheceram também, e daí a conversação, e por fim o ajuste a que me referi no começo deste capítulo e pede outro.

CAPÍTULO XC / O AJUSTE

—Quanto a mim, um de vocês gosta dela, senão ambos, disse Aires. Pedro mordeu os beiços, Paulo consultou o relógio; iam já na rua. Aires concluiu o que sabia, que sim, que ambos, e não trepidou em dizê-lo, acrescentando que a moça não era como a República, que um podia defender o outro atacar; cumpria ganhá-la ou perdê-la de vez. Que fariam eles, dada a escolha? Ou já estava feita a escolha, e o preterido teimava em a torcer para si? Nenhum falou logo, posto que ambos sentissem necessidade de explicar alguma cousa. Tinham que a escolha não era clara ou decisiva. Outrossim, que lhes cabia o direito de esperar a preferência, e fariam o diabo para alcançá-la. Tais e outras idéias vagavam silenciosamente neles, sem sair cá fora. A razão percebe-se, e devia ser mais de uma, — primeiro, a matéria da conversação, — depois, a gravidade do interlocutor. Por mais que Aires abrisse as portas à franqueza dos rapazes, estes eram rapazes e ele velho. Mas o assunto em si era tão sedutor, o coração, apesar de tudo, tão indiscreto, que não houve remédio senão falar negando.

—Não me neguem, interrompeu Aires; a gente madura sabe as manhas da gente nova, e adivinha com facilidade o que ela faz. Nem é preciso adivinhar; basta ver e ouvir. Vocês gostam dela.

Eles sorriam, mas já agora com tal amargor e acanhamento que mostravam o desgosto da rivalidade, aliás sabida deles. Tal rivalidade era também sabida de outros, devia sê-lo de Flora, e a situação lhes parecia agora mais complicada e fechada que dantes.

Tinham chegado ao Largo da Carioca, era uma hora da noite. Um vitória da Santos esperava ali os rapazes, a conselho e por ordem da mãe, que buscava todas as ocasiões e meios de os fazer andar juntos e familiares. Teimava em emendar a natureza. Levavas muita vez a passeio, ao teatro, a visitas. Naquela noite, como soubesse que iam ao teatro, mandou aprestar a vitória que os conduziu para a cidade, e ficou à espera deles.

—Entre, conselheiro, disse Pedro, o carro dá para três: eu vou no banquinho da frente.

Entraram e partiram.

—Bem, continuou Aires, é certo que vocês gostam dela, e igualmente certo que ela ainda não escolheu entre os dous. Provavelmente, não sabe que faça. Um terceiro resolveria a crise, porque vocês se consolariam depressa; também eu me consolei rapaz. Não havendo terceiro, e não se podendo prolongar a situação, por que é que vocês não combinam alguma cousa? —Combinar quê? Perguntou Pedro sorrindo.

—Qualquer cousa. Combinem um modo de cortar este nó górdio. Cada um que siga a sua vocação. Você, Pedro, tentará primeiro desatá-lo; se ele não puder, Paulo, você pegue da espada de Alexandre, e dê-lhe o golpe. Fica tudo feito e acabado. Então o destino, que os espera, com duas belas criaturas, virá trazê-las pela mão a um e a outro, e tudo se compõe na Terra como no Céu.

Aires disse mais cousas antes de se apear à porta da casa. Apeado, ainda lhes perguntou: —Estamos de acordo? Os dous responderam de cabeça afirmativamente, e, ficando sós não disseram nada. Que fossem pensando, é natural, e porventura o tempo lhes pareceu curto entre o Catete e Botafogo. Chegaram a casa, subiram a escada do jardim, falaram da temperatura, que Pedro achava deliciosa e Paulo abominável, mas não disseram assim para não irritar um ao outro. A esperança do ajuste é que os levava à moderação relativa e passageira. Vivam os frutos pendentes do dia seguinte! Cá estava o quarto à espera deles, um brinco de arranjo e graça, de comodidade e repouso. Era a mãe que dava os últimos retoques todos os dias; ela cuidava das flores que seriam postas nos vasinhos de porcelana, e ela mesma as ia tirar à noite e pôr fora das janelas para que eles não as respirassem dormindo. Cá estavam as velas ao pé das duas camas, metidas nos seus castiçais de prata, um com o nome de Pedro, outro com o de Paulo, gravados. Tapetinhos de suas mãos, laços dados por ela nos cortinados, finalmente o retrato dela e o do marido pendurados à parede, entre as duas camas, naquele mesmo lugar em que estiveram os de Luís XVI e Robespierre, comprados na Rua da Carioca.

Ao pé de cada um dos castiçais acharam um bilhetinho de Natividade. Aqui está o que ela dizia. "Algum de vocês quer ir comigo à missa, amanhã? Faz anos que seu avô morreu, e Perpétua está adoentada." Natividade esquecera de lhes falar antes, e, aliás, andava bem sem eles, mormente de carruagem; mas gostava de os ter consigo.

Pedro e Paulo riram do convite e da forma, e um deles propôs que, para agradar à mãe, fossem ambos à missa. A aceitação da proposta veio pronta; já não era harmonia, era uma espécie de diálogo na mesma pessoa. O céu parecia escrever o tratado de paz que ambos teriam de assinar, ou, se preferes, a natureza corrigia as índoles, e os dous rixosos começavam a ajustar o ser e o parecer. Também não juro isto, digo o que se pode crer só pelo aspecto das cousas.

—Vamos à missa, repetiram.

Seguiu-se um grande silêncio. Cada um ruminava o ajuste e o modo de o propor. Enfim, de cama a cama, disseram o que lhes parecia melhor, propuseram, discutiram, emendaram e concluíram sem escritura de tabelião, apenas por aceitação de palavra. Poucas cláusulas. Confessando que não podiam assegurar a escolha de Flora, concordaram em esperar por ela durante um prazo curto; três meses. Dada a escolha, o rejeitado obrigava-se a não tentar mais nada. Como tivessem a certeza final da escolha, o acordo era fácil; cada um não faria mais que excluir o outro. Não obstante, se ao fim do prazo, nenhuma escolha houvesse, cumpria adotar uma cláusula última. A primeira que acudiu foi deixarem ambos o campo, mas não os seduziu. Lembrou-lhes recorrer à sorte, e aquele que fosse designado por ela, deixaria o campo ao rival. Assim passou uma hora de conversação, após a qual cuidaram de dormir.

CAPÍTULO XCI / NEM SÓ A VERDADE SE DEVE ÀS MÃES

As nove horas da manhã seguinte, Natividade estava pronta para ir à missa que mandava dizer na matriz da Glória; nenhum dos filhos se lhe apresentou.

—Parece que dormem.

E duas, três, quatro, cinco vezes, foi até à porta do quarto a ver se ouvia rumor, como resposta ao bilhete que deixara. Nada. Concluiu que teriam entrado tarde. Só não atinou que dormissem sobre o ajuste, nem que ajuste era. Uma vez que o fizessem em cama fofa, tudo ia bem. Enfim, acabou de calçar as luvas, desceu, entrou no carro e foi para a igreja.

A missa era aniversária, como dizia o bilhete. Uso velho; o pai tinha a sua missa, a mãe outra, os irmãos e parentes outras. Não Ihe esqueciam datas obituárias, como não lhe esqueciam natalícias, quaisquer que fossem, amigas ou parentas; trazia-as todas de cor. Doce memória! Há pessoas a que não ajudas, e chegam a brigar consigo e com outros por abandono teu. Felizes os que tu proteges; esses sabem o que é 24 de março, 10 de agosto, 2 de abril, 7 e 31 de outubro, 10 de novembro, o ano todo, suas tristezas e alegrias particulares.

Voltando a casa, viu Natividade os dous filhos no jardim, à espera dela. Eles correram a abrir-lhe a portinhola do carro, e depois de a apearem e lhe beijarem a mão, explicaram a falta. Tinha resolvido ambos, mas o sono...

—O sono e a preguiça, concluiu a mãe rindo.

—Foi só o sono, disse Pedro.

—Acordamos agora mesmo, acabou Paulo.

Disputaram dar-lhe o braço; Natividade os satisfez dando um braço a cada um. Em casa, ao mudar de roupa Natividade refletiu que, se Flora lhes tivesse feito algum pedido, eles acordariam cedo, por mais tarde que se deitassem; a memória serviria de despertador Passou-lhe uma sombra rápida, mas depressa se reconciliou com a diferença. Assim que, não foi por ciúme, mas para os trazer a outras seduções e separá-los da guerra ante a bela Flora, que a mãe teimou em levar os filhos para Petrópolis. Subiriam na primeira semana de janeiro. A estação seria excelente; anunciou festas, citou nomes, notou-lhe que Petrópolis era a cidade da paz. O governo pode mudar cá embaixo e nas províncias...

—Que províncias, mamãe? atalhou Paulo.

Natividade sorriu e emendou: —Nos Estados. Vai desculpando os descuidos de tua mãe. Bem sei que são Estados; não são como as províncias antigas, não esperam que o presidente lhes vá aqui da Corte...

—Que Corte, baronesa? Agora os dous riram, mãe e filho. Passado o riso, Natividade continuou: —Petrópolis é a cidade da paz; é, como dizia outro dia o Conselheiro Aires, é a cidade neutra, é a cidade das nações. Se a capital do Estado fosse ali, não haveria deposição de governo. Petrópolis, — vejam vocês que o nome, apesar da origem, ficou e ficará, — é de todos. A estação dizem que vai ser encantadora...

—Eu não sei se posso ir já, disse Paulo.

—Nem eu, acudiu Pedro.

Ainda uma vez estavam de acordo, mas aqui o acordo trazia provavelmente o divórcio, refletiu a mãe, e o prazer que lhe deram aquelas duas palavras morreu depressa. Perguntou-lhes que razão tinham para ficar e até quando. Se estivessem estabelecidos com o seu consultório médico e a sua banca de advogado, era bem; mas, se nenhum deles começara ainda a carreira, que fariam cá embaixo, quando ela e o marido...

—Justamente; eu tenho que fazer uns estudos de clínica na Santa Casa, respondeu Pedro.

Paulo explicou-se. Não ia praticar a advocacia, mas precisava de consultar certos documentos do século XVIII na Biblioteca Nacional; ia escrever uma história das terras possuídas.

Nada era verdade, mas nem só a verdade se deve dizer às mães.

Natividade ponderou que eles podiam fazer tudo entre as duas barcas de Petrópolis — desciam, almoçavam, trabalhavam, e às quatro horas subiriam, como a demais gente. Em cima achariam visitas, música, bailes, mil cousas belas, sem contar as manhãs, a temperatura e os domingos. Eles defenderam o estudo, como sendo melhor por muitas horas seguidas.

Natividade não teimou. Mais depressa ficaria esperando que os filhos acabassem os documentos da Biblioteca e a clínica da Santa Casa. Esta idéia fê-la atentar para a necessidade de ver estabelecidos o jovem médico e o jovem advogado. Trabalhariam com outros profissionais de reputação e iriam adiante e acima. Talvez a carreira científica lhes desse a grandeza anunciada pela cabocla do Castelo, e não a política ou outra. Em tudo se podia resplandecer e subir. Aqui fez a crítica de si mesma, quando imaginou que Batista abriria a carreira política de algum deles, sem advertir que o pai de Flora mal continuaria a própria carreira, aliás obscura. Mas a idéia do mando tornava a ocupar a cabeça da mãe, e cheios dela os olhos fitavam ora Pedro, ora Paulo.

Chegaram a acordo. Eles subiriam aos sábados e desceriam às segundas o mesmo por ocasião de dias santos e festas de gala. Natividade contava com o costume e as atrações.

Na barca e em Petrópolis era objeto de conversação a diferença entre os filhos, que só iam lá uma vez por semana, e o pai, que trazia tantos negócios às costas, e subia todas as tardes. Que fariam eles cá embaixo, quando alguns olhos podiam atraí-los e agarrá-los lá em cima? Natividade defendia os gêmeos, dizendo que um ia a Santa Casa e outro à Biblioteca Nacional, e estudavam muito, às noites. A explicação era aceitável. mas, além de fazer perder um assunto aos bonitos dentes do verão, podia ser invenção dos rapazes; naturalmente, iriam às moças.

A verdade é que eles faziam rumor em Petrópolis, durante as poucas horas que lá passavam. Além do mais, tinham a semelhança e a graça. As mães diziam bonitas cousas à mãe deles, e indagavam da razão verdadeira que os prendia à capital, não assim como eu digo, nu e cru, mas com arte fina e insidiosa, arte perdida, porque a mãe insistia na Biblioteca e na Santa Casa. Deste jeito, a mentira, já servida em primeira mão, era servida em segunda, e nem por isso melhor aceita.

CAPÍTULO XCII / SEGREDO ACORDADO

Enfim, que segredo há que se não descubra? Sagacidade, boa vontade, curiosidade, chama-lhe o que quiseres, há uma força que delta cá para fora tudo o que as pessoas cuidam de esconder. Os próprios segredos cansam de calar, — calar ou dormir; fiquemos com este outro verbo, que serve melhor à imagem. Cansam, e ajudam a seu modo aquilo que imputamos à indiscrição alheia.

Quando eles abrem os olhos, faz-lhes mal a escuridão. Um raio de sol basta. Então pedem aos deuses (porque os segredos são pagãos) um quase nada de crepúsculo, aurora ou tarde, posto que a aurora prometa dia. enquanto a tarde cai outra vez na noite, mas tarde que seja, tudo é respirar claridade. Que os segredos, amiga minha, também são gente; nascem, vivem e morrem. Agora o que sucede, quando um olhar de sol penetra na solidão deles, é que dificilmente sai mais, e geralmente cresce, rasga, alaga, e os traz pela orelha cá para fora. Vexados da grande luz, eles a princípio andam de ouvido em ouvido, cochichados, alguma vez escritos em bilhetes, ainda que tão vagamente e sem nomes, que mal se adivinhará quais sejam. Si o período da infância, que passa depressa; a mocidade pula por cima da adolescência, e eles aparecem fortes e derramados, sabidos como gazetas. Enfim, se a velhice chega, e eles não se vexam dos cabelos brancos, tomam conta do mundo, e acaso conseguem, não digo esquecer, mas aborrecer; entram na família do próprio sol, que quando nasce é para todos, segundo dizia uma tabuleta da minha infância.

Tabuletas da minha infância, ai, tabuletas! Quisera acabar por elas este capítulo, mas o assunto não teria nobreza nem interesse, e ainda uma vez interromperíamos a nossa história. Fiquemos no segredo divulgado; é quanto basta. Uma veranista elegante não dissimulou o seu espanto ao saber que os dous irmãos combinavam num ponto que faria romper os maiores amigos deste mundo. Um secretário de legação insinuou que podia ser brincadeira dos dous.

—Ou dos três, acrescentou outra veranista.

Iam de passeio à Quitandinha, a cavalo. Aires acompanhava-os, e não dizia nada. Quando lhe perguntaram se Flora era bonita, respondeu que sim, e falou da temperatura. A primeira veranista perguntou-lhe se era capaz de suportar aquela situação. Aires respirou, como quem vem de longe, e declarou que aos pés de um padre seria obrigado a mentir, tais eram os seus pecados; mas ali, na estrada, ao ar livre, entre senhoras, confessou que matara mais de um rival. Que se lembrasse trazia sete mortes às costas, com várias armas. As senhoras riam — ele falava soturno. Só uma vez escapou de morrer primeiro, e inventou uma anedota napolitana. Fez a apologia do punhal. Um que tivera, há muitos anos, o melhor aço do mundo, foi obrigado a dá-lo de presente a um bandido, seu amigo, quando lhe provou que completara na véspera o seu vigésimo nono assassinato.

—Aqui está para o trigésimo, disse-lhe entregando a arma.

Poucos dias depois soube que o bandido, com aquele punhal, matara o marido de uma senhora, e depois a senhora, a quem amava sem ventura.

—Deixei-o com trinta e um crimes de primeira ordem.

As damas continuavam a rir; ele conseguiu assim desviar a conversação de Flora e seus namorados.

CAPÍTULO XCIII / NÃO ATA NEM DESATA

Enquanto indagavam dela em Petrópolis, a situação moral de Flora era a mesma, — o mesmo conflito de afinidades, o mesmo equilíbrio de preferências. Cessado o conflito, roto o equilíbrio, a solução viria de pronto, e, por mais que doesse a um dos namorados, venceria o outro a menos que interviesse o punhal da anedota de Aires.

Assim passaram algumas semanas desde a subida de Natividade. Quando Aires vinha ao Rio de Janeiro, não deixava de ir vê-la a S. Clemente, onde a achava qual era dantes, salvo um pouso de silêncio em que a viu metida uma vez. No dia seguinte recebeu uma carta de Flora, pedindo-lhe desculpa da desatenção, se a houve, e mandando-lhe saudades. "Mamãe pede que a recomende também ao senhor e à família da baronesa". Esta recomendação exprimia o consentimento obtido da mãe para que lhe escrevesse a carta. Quando ele tornou ao Rio, correu a S. Clemente e Flora pagou-lhe com alegria grande o silêncio daquela outra manhã. Todavia, não era espontânea nem constante, tinha seus cochilos de melancolia. Aires voltou ainda algumas vezes na mesma semana. Flora aparecia-lhe com a alegria costumada, e, para o fim, a mesma alteração dos últimos dias.

Talvez a causa daquelas síncopes da conversação fosse a viagem que o espírito da moça fazia à casa da gente Santos. Uma das vezes, o espírito voltou para dizer estas palavras ao coração: "Quem és tu, que não atas nem desatas? Melhor é que os deixes de vez. Não será difícil a ação, porque a lembrança de um acabará por destruir a de outro, e ambas se irão perder com o vento, que arrasta as folhas velhas e novas, além das partículas de cousas, tão leves e pequenas, que escapam ao olho humano. Anda, esquece-os; se os não podes esquecer, faze por não os ver mais; o tempo e a distancia farão o resto".

Tudo estava acabado. Era só escrever no coração as palavras do espírito, para que lhe servissem de lembrança. Flora escreveu-as, com a mão trêmula e a vista turva; logo que acabou, viu que as palavras não combinavam, as letras contundiam-se, depois iam morrendo, não todas, mas salteadamente, até que o músculo as lançou de si. No valor e no ímpeto podia comparar o coração ao gêmeo Paulo; o espírito, pela arte e subtileza, seria o gêmeo Paulo. Foi o que ela achou no fim de algum tempo, e com isso explicou o inexplicável.

Apesar de tudo, não acabava de entender a situação, e resolveu acabar com ela ou consigo. Todo esse dia foi inquieto e complicado. Flora pensou em ir ao teatro para que os gêmeos não a achassem à noite. Iria cedo, antes da hora da visita. A mãe mandou comprar o camarote, e o pai aprovou a diversão, quando veio jantar, mas a filha acabou com dor de cabeça, e o camarote ficou perdido.

—Vou mandá-lo aos jovens Santos, insinuou Batista.

D. Cláudia opôs-se e guardou o camarote. A razão era de mãe; posto lhe tardasse a escolha e a casamento, ela queria vê-los ali consigo, falando, rindo, debatendo que fosse, com os olhos pendentes da filha. Batista não entendeu logo nem depois: mas para não desagradar à esposa, deixou de obsequiar os rapazes. Uma ocasião tão boa! Não era muito para eles que possuíam com que despender, e despendiam. o obséquio estava na lembranças e também na cartinha que lhes escreveria, mandando o camarote. Chegou a redigi-la de cabeça, apesar de já inútil. A mulher, ao vê-lo calado e sério, cuidou que fosse zanga e quis fazer as pazes; o marido arredou-a brandamente com a mão. Redigia a cartinha, punha no texto um gracejo sisudo, dobrava o papel e lançava-lhe este sobrescrito gêmeo: "Aos jovens apóstolos Pedro e Paulo". O trabalho intelectual tornou mais dura a oposição de D. Cláudia. Uma cartinha tão bonita!

CAPÍTULO XCIV / GESTOS OPOSTOS

Como pode um só tecto cobrir tão diversos pensamentos? Assim é também este céu claro ou brusco, — outro tecto vastíssimo que os cobre com o mesmo zelo da galinha aos seus pintos... Nem esqueça o próprio crânio do homem, que os cobre igualmente, não só diversos, senão opostos.

Flora, no quarto, não cuidava então de bilhetes nem camarotes; também não acudia à dor de cabeça, que não tinha. Se falou nela foi por ser uma razão próxima e aceitável, breve ou longa, conforme a necessidade da ocasião. Não suponhas que está rezando, embora tenha ali um oratório e um crucifixo. Não viria pedir a Jesus que lhe livrasse a alma daquela inclinação desencontrada. Posta à beira da cama, os olhos no chão, pensava naturalmente em alguma cousa grave, se não era nada, que também agarra os olhos e o pensamento de uma pessoa. Mordeu os beiços sem raiva; meteu a cabeça entre as mãos, como se quisesse concertar os cabelos, mas os cabelos estavam e ficavam como dantes.

Quando se levantou era totalmente noite, e acendeu uma vela. Não queria gás. Queria uma claridade branda que desse pouca vida ao quarto e aos seus móveis, que deixasse algumas partes na meia escuridade. O espelho, se fosse a ele, não lhe repetiria a beleza de todos os dias, com a vela posta em cima de uma papeleira antiga, a distancia. Mostrar-lhe-ia a nota de palidez e de melancolia, é verdade, mas a nossa amiguinha não se sabia pálida, sem se sentia melancólica. Tinha na tristeza desvairada daquela ocasião uma pontinha de abatimento.

Como tudo isso se combinava, não sei, nem ela mesma. Ao contrário, Flora parecia, às vezes, tomada de um espanto, outras de uma inquietação vaga, e, se buscava o repouso de uma cadeira de balanço, era para o deixar logo. Ouviu bater oito horas. Daí a pouco, entrariam provavelmente Pedro e Paulo. Teve lembrança de ir dizer à mãe que a não mandasse chamar; estava de cama. Esta idéia não durou o que me custa escrevê-la, e aliás já lá vai na outra linha. Recuou a tempo.

—E um despropósito, disse consigo; basta não aparecer. Mamãe dirá que estou adoentada, tanto que perdemos o teatro, e, se vier aqui, digo-lhe que não posso aparecer...

As últimas palavras saíram-lhe de viva voz, para maior firmeza da resolução. Projetou reclinar-se já na cama; depois achou melhor fazê-lo quando ouvisse o passo da mãe no corredor. Todas essas alternativas podiam vir de si mesmas, entretanto, não é impossível que fosse também um modo de sacudir quaisquer lembranças aborrecíveis. A moça temia ir atrás delas.

CAPÍTULO XCV / O TERCEIRO

Temendo ir atrás delas, que havia de fazer Flora? Abriu uma das janelas do quarto, que dava para a rua, encostou-se à grade e enfiou os olhos para baixo e para cima. Viu a noite sem estrelas, pouca gente que passava, calada ou conversando, algumas salas abertas, com luzes, uma com piano. Não viu certa figura de homem na calçada oposta, parada, olhando para a casa de Batista. Nem a viu, nem lhe importaria saber quem fosse. A figura é que tão depressa a viu como estremeceu e não despegou mais os olhos dela, nem os pés do chão.

Lembras-te daquela veranista de Petrópolis que atribuiu um terceiro namorado à nossa amiguinha? "Um dos três", disse ela. Pois aqui está o terceiro namorado, e pode ser que ainda apareça outro. Este mundo é dos namorados. Tudo se pode dispensar nele; dia virá em que se dispensem até os governos, a anarquia se organizará de si mesma, como nos primeiros dias do paraíso. Quanto à comida, virá de Boston ou de Nova Iorque um processo para que a gente se nutra com a simples respiração do ar. Os namorados é que serão perpétuos.

Aquele era oficial de secretaria. Geralmente os empregados de secretaria casam cedo. Gouveia era solteiro, andava às moças. Um domingo, à missa, reparou na filha do ex-presidente, e saiu da igreja tão apaixonado que não quis outra promoção. Tinha gostado de muitas acompanhou algumas, esta foi a primeira que o feriu deveras. Pensava nela dia e noite. A Rua de S. Clemente era o caminho que o levava e trazia da repartição. Se a via, olhava muito para ela, detinha-se a distancia, à porta de uma casa, ou então fingia acompanhar com os olhos um carro que passava, e tirava-os do carro para a moça.

Quando amanuense; fizera versos; nomeado oficial, perdeu o costume, mas um dos efeitos da paixão foi restituir-lho. Consigo, em casa da mãe, gastava papel e tinta a metrificar as esperanças. Os versos escorriam da pena, a rima com eles, e as estrofes vinham seguindo direitas e alinhadas, como companhias de batalhão — o título seria o coronel, a epígrafe a música, uma vez que regulava a marcha dos pensamentos. Bastaria essa força à conquista? Gouveia imprimiu alguns em jornais, com esta dedicatória: A alguém. Nem assim a praça se rendia.

Uma vez deu-lhe na cabeça mandar uma declaração de amor. Paixão concebe despropósitos. Escreveu duas cartas, sem o mesmo estilo antes contrário. A primeira era de poeta — dava-lhe tu, como nos versos, adjetivava muito, chamava-lhe deusa por alusão ao nome de Flora, e citava Musset e Casimiro de Abreu. A segunda carta foi um desforço do oficial sobre o amanuense. Saiu-lhe ao estilo das informações e dos ofícios, grave, respeitoso, com Excelências. Comparando as duas cartas, não acabou de escolher nenhuma. Não foi só o texto diverso e contrário, foi principalmente a falta de autorização que o levou a rasgar as cartas. Flora não o conhecia; quando menos, fugia de o conhecer. Os olhos dela, se encontravam os dele, retiravam-se logo indiferentes. Uma só vez cuidou que traziam a intenção de perdoar. Que esse breve raio de luz lhe desabotoasse as flores da esperança (começo a falar com a primeira carta) era possível e até certo; tão certo que lhe fez perder o ponto na repartição. Felizmente, era ótimo empregado; o diretor ampliou o quarto de hora de tolerância, e atendeu à dor de cabeça, causa de triste insônia.

—Dormi sobre a madrugada, acabou o oficial.

—Assine.

Senão quando, morre-lhe o padrinho ao Gouveia, e em testamento deixou ao afilhado três contos de réis. Qualquer acharia nisso um benefício, Gouveia achou dous — o legado e a ocasião de travar relações com o pai de Flora. Correu a pedir-lhe que aceitasse a procuração de legatário, ajustando logo os honorários e as despesas. Com pouco, foi procurá-lo à casa, e para que o advogado desse a notícia do constituinte à família, empregou muitos ditos subtis e graciosos, contou anedotas do padrinho, expôs conceitos filosóficos e um programa de marido. Descreveu também a situação administrativa, a promoção iminente, os louvores recebidos, comissões e gratificações, tudo o — que o distinguia de outros companheiros. De resto, ninguém na repartição lhe queria mal. Aqueles mesmos que se creram prejudicados, acabavam confessam do que era justa a preferência dada ao Gouveia. Não seria tudo exato; ele o cria assim, ao menos, e, se não cria tudo, não desmentiu nada. Perdeu tempo e trabalho. Flora não soube da conversação.

Nem soube da conversação, nem deu agora pelo vulto, como lá disse. Também disse que a noite era escura. Acrescento que começou a pingar fino e a ventar fresco. Gouveia trazia guarda-chuva e ia a abri-lo, mas recuou. O que se passou na alma dele foi uma luta igual à dos dous textos da carta. O oficial queria abrigar-se da chuva, o amanuense queria apanhá-la, isto é, o poeta renascia contra as intempéries, sem medo ao mal, prestes a morrer por sua dama, como nos tempos da cavalaria. Guarda-chuva era ridículo; poupar-se à constipação desmentia a adoração. Tal foi a luta e o desfecho; venceu o amanuense, enquanto a chuva ia pingando grosso, e outra gente passava abrigada e depressa. Flora entrou e fechou a janela. O amanuense esperou ainda algum tempo, até que o oficial abriu o guarda-chuva e fez como os outros. Em casa achou a triste consolação da mãe.

CAPÍTULO XCVI / RETRAIMENTO

Aquela noite acabou sem incidente. Os gêmeos vieram, Flora não apareceu, e no dia seguinte duas cartinhas perguntavam a D. Cláudia como passara a filha. A mãe respondeu que bem. Nem por isso Flora os recebeu com a alegria do costume. Tinha alguma cousa que a fazia falar pouco. Pediram-lhe música, tocou; foi bom, porque era um meio de se meter consigo. Não respondeu aos apertos de mão .Como eles supunham que fazia até há pouco. Assim foi essa noite, assim foram as outras. Ora um, ora outro chegava primeiro, imaginando que a presença do rival é que tolhia a moça; mas a precedência não valia nada.

CAPÍTULO XCVII / UM CRISTO PARTICULAR

Tudo isso lhe custava tanto, que ela acabou pedindo ao seu Cristo um lugar de governador para o pai, — ou qualquer comissão fora daqui. Jesus Cristo não distribui os governos deste mundo. O povo é que os entrega a quem merece, por meio de cédulas fechadas, metidas dentro de uma urna de madeira, contadas, abertas, lidas, somadas e multiplicadas. A comissão podia vir, isso sim; a questão era saber se Jesus Cristo acudirá a todos os que lhe pedem a mesma cousa. Os comissários seriam infinitamente mais que as comissões. Esta objeção foi logo expelida do espírito de Flora, porque ela pedia ao seu Cristo, um de marfim velho, deixa da avó, um Cristo que nunca lhe negou nada, e a quem as outras pessoas não vinham importunar com súplicas. A própria mãe tinha o seu particular, confidente de ambições, consolo de desenganos; não recorria ao da filha. Tal era a fé ingênua da moça.

Certamente, já lhe havia pedido que a livrasse daquela complicação de sentimentos, que não acabavam de ceder um ao outro, daquela hesitação cansativa, daquele empuxar para ambos os lados. Não foi ouvida. A causa seria talvez por não haver dado ao pedido a forma clara que aqui lhe ponho, com escândalo do leitor. Efetivamente, não era fácil pedir assim por palavras seguidas, faladas ou só pensadas; Flora não formulou a súplica. Pôs os olhos na imagem e esqueceu-se de si, para que a imagem lesse dentro dela o seu desejo. Era demais; requerer o favor do céu e obrigá-lo a adivinhar o que era... Assim cuidou Flora, e resolveu emendar a mão. Não chegou lá; não ousou dizer a Jesus o que não dizia a si mesma. Pensava nos dous, sem confessar a nenhum. Sentia a contradição, sem ousar encará-la por muito tempo.

CAPÍTULO XCVIII / O MÉDICO AIRES

Um dia pareceu à mãe que a filha andava nervosa. Interrogou-a e apenas descobriu que Flora padecia de vertigens e esquecimentos. Foi justamente um dia em que Aires lá apareceu de visita, com recados de Natividade. A mãe falou-lhe primeiro e confiou-lhe os seus sustos. Pediu-lhe que a interrogasse também. Aires fez de médico, e, quando a moça apareceu e a mãe os deixou na sala, cuidou de a interrogar cautelosamente.

Vão propósito, porque ela mesma iniciou a conversação, queixando-se de dor de cabeça. Aires observou que dor de cabeça era moléstia de moça bonita, e, tendo confessado que este dito era banal, descobriu-lhe o motivo. Não queria perder a ocasião de lhe dizer o que toda a gente sabia e dizia, não só aqui, como em Petrópolis.

—Por que não vai a Petrópolis? concluiu.

—Espero fazer outra viagem mais longa. muito longa...

—Para o outro mundo, aposto? —Acertou.

—Já tem bilhete de passagem? —Comprarei no dia do embarque.

—Talvez não ache. Há grande concorrência para aquelas paragens; melhor é comprar antes, e, se quer, eu me encarrego disso; comprarei outro para mim, e iremos juntos. A travessia, quando não há conhecidos, deve ser fastidiosa; às vezes, os próprios conhecidos aborrecem, como sucede neste mundo. As saudades da vida é que são agradáveis. A gente de bordo é vulgar, mas o comandante impõe confiança. Não abre a boca, dá as suas ordens por gestos, e não consta que haja naufragado.

—O senhor está caçoando comigo; eu creio até que estou com febre.

—Deixe ver.

Flora estendeu-lhe o pulso; ele, com ar profundo: —Está; febre de quarenta e sete graus, a mão está ardendo, mas isto mesmo prova que não é nada, porque aquelas viagens fazem-se com as mãos frias. Há de ser constipação, fale a sua mãe.

—Mamãe não cura.

—Pode curar, há remédios caseiros, em todo caso, peça-lhe, e ela pode mandar chamar um médico.

—Médico dá tisanas, e eu no gosto de tisanas.

—Nem eu, mas tolero-as. Por que não experimenta a homeopatia, que não tem gosto, como a alopatia? —Qual é a que lhe parece melhor? —A melhor? Só Deus é grande.

Flora sorriu, de um sorriso pálido, e o conselheiro percebeu algo que não era tristeza de passagem ou de criança. Novamente lhe falou de Petrópolis, mas não insistiu. Petrópolis era a agravação do momento atual.

—Petrópolis tem o mal das chuvas, continuou. Eu, se fosse a senhora, saía desta casa e desta rua; vá para outro bairro, casa amiga, com sua mãe ou sem ela...

—Para onde? perguntou Flora ansiosa.

E ficou a olhar, esperando. Não tinha casa amiga, ou não se lembrava, e queria que ele mesmo escolhesse alguma, onde quer que fosse, e quanto mais longe, melhor. Foi o que ele leu nos olhos parados. É ler muito, mas os bons diplomatas guardam o talento de saber tudo o que lhes diz um rosto calado, e até o contrário. Aires fora diplomata excelente, apesar da aventura de Caracas, se não é que essa mesma lhe aguçou a vocação de descobrir e encobrir. Toda a diplomacia estar nestes dous verbos parentes.

CAPÍTULO XCIX / A TÍTULO DE ARES NOVOS

—Vou arranjar-lhe uma casa boa, disse ele, à despedida.

Desde que estava em Petrópolis, Aires não ia jantar a Andaraí, com a irmã, às quintas-feiras, segundo ajustara e consta do capítulo XXXII. Agora foi lá, e cinco dias depois Flora transferia-se para a casa dela, a título de ares novos. D. Rita não consentiu que D. Cláudia lhe levasse a filha, ela mesma a foi buscar a S. Clemente, e Aires acompanhou as três.

A mocidade de Fiora na casa de D. Rita foi como uma rosa nascida ao pé do paredão velho. O paredão remoçou. A simples flor, ainda que pálida, alegrou o barro gretado e as pedras despidas. D. Rita vivia encantada; Flora pagava o agasalho da dona da casa com tanta ingenuidade e graça, que esta acabou por lhe dizer que a roubaria à mãe e ao pai, e foi ainda ocasião de riso para as duas.

Você me deu um lindo presente com esta moça, escrevia D. Rita ao irmão; foi uma alma nova, e veio em boa ocasião, porque a minha anda já caduca. É muito docilzinha, conversa, toca e desenha que faz gosto, tem aqui tirado riscos de várias cousas, e eu saio com ela para lhe mostrar vistas apreciáveis. As vezes, apresenta uma cara triste, olha vagamente, e suspira; mas eu pergunto-lhe se são saudades de S. Clemente, ela sorri e faz um gesto de indiferença Não Ihe falo dos nervos, para a afligir, mas creio que vai melhor...

Flora também escreveu ao Conselheiro Aires, e as duas cartas chegaram à mesma hora a Petrópolis. A de Flora era um agradecimento grande e cordial, mal entremeado de alguma palavra saudosa; confirmava assim a carta da outra, posto não a houvesse lido. Aires comparou-as, lendo duas vezes a da moça para ver se ela escondia mais do que transparecia do papel. Em suma, confiava no remédio.

"Não os vendo, esquece-os", pensou ele; "e na vizinhança houver alguém que pensa em gostar dela, é possível que acabe casando".

Respondeu a ambas, na mesma noite, dizendo-lhes que na quinta-feira iria almoçar com elas. A D. Cláudia escreveu mandando-lhe a carta da irmã, e foi passar a noite em casa de Natividade, a quem deu a ler as cinco cartas. Natividade aprovou tudo. Notava só que os filhos não lhe escreviam, e deviam estar desesperados.

—A Santa Casa cura, e a Biblioteca Nacional também, retorquiu Aires.

Na quinta-feira, Aires desceu e foi almoçar a Andaraí. Achou-as como as tinha lido nas cartas. Interrogou-as separadamente para ouvir por boca as confissões do papel; eram as mesmas. D. Rita parecia ainda mais encantada. Talvez a causa recente fosse a confidência que fez a moça, na véspera. Como falassem de cabelos, D. Rita referiu o que também consta do cap. XXXII, isto é, que cortara os seus para os meter no caixão do marido, quando o levaram a enterrar. Flora não a deixou acabar; pegou-lhe das mãos e apertou-as muito.

—Nenhuma outra viúva faria isto, disse ela.

Aqui foi D. Rita que lhe pegou nas mãos, pô-las sobre os seus ombros, e concluiu o gesto por um abraço. Todas as pessoas louvaram-lhe a abnegação do ato; esta era a primeira que a achou única. E daí outro abraço longo, mais longo...

CAPÍTULO C / DUAS CABEÇAS

Tão longo foi o abraço que tomou o resto ao capítulo. Este começa sem ele nem outro. O mesmo aperto de mão de Aires e Flora, se foi demorado, também acabou. O almoço fez gastar algum tempo mais que de costume, porque Aires, além de conversador emérito, não se fartava de ouvir as duas, principalmente a moça. Achava-lhe um toque de languidez, abatimento ou cousa próxima, que não encontro no meu vocabulário.

Flora mostrou-lhe os desenhos que fizera, paisagens, figuras, um pedaço da estrada da Tijuca, um chafariz antigo, um Princípio de casa. Era uma dessas casas, que alguém começou muitos anos antes, e ninguém acabou, ficando só duas ou três paredes, ruína sem história. Havia ainda outros desenhos, uma revoada de pássaros, um vaso à janela. Aires ia folheando, cheio de curiosidade e paciência — a intenção da obra supria a perfeição, e a fidelidade devia ser aproximada. Enfim, a moça atou os cordões à pasta. Aires, parecendo-lhe que ficara um desenho último e escondido, pediu que lho mostrasse.

—É um esboço, não vale a pena.

—Tudo vale a pena; quero acompanhar as tentativas da artista; deixe ver.

—Não vale a pena...

Aires insistiu; ela não pôde recusar mais tempo, abriu a pasta, e tirou um pedaço de papel grosso em que estavam desenhadas duas cabeças juntas e iguais. Não teriam a perfeição desejada por ela; não obstante, dispensavam os nomes. Aires considerou a obra, durante alguns minutos, e duas ou três vezes levantou os olhos para a autora. Flora já os esperava, interrogativa; queria ouvir o louvor ou a crítica, mas não ouviu nada. Aires acabou de observar as duas cabeças, e pousou o desenho entre os papéis.

—Não lhe dizia que era um esboço? perguntou Flora, a ver se lhe arrancava uma palavra.

Mas o ex-ministro preferiu não dizer nada. Em vez de achar quase extinta a influência dos gêmeos, vinha dar com ela feita consolação da ausência, tão viva que bastava a memória, sem presença dos modelos. As duas cabeças estavam ligadas por um veículo escondido. Flora, vendo continuar o silêncio de Aires, compreendeu acaso parte do que lhe passava no espírito. Com um gesto pronto, pegou do desenho e deu-lho. Não lhe disse nada, menos ainda escreveu qualquer palavra. Qualquer .que fosse, seria indiscreta. Demais, era o único desenho a que ela não pôs assinatura. Deu-lho como se fora um penhor de arrependimento. Em seguida, atou novamente as fitas da pasta, enquanto Aires rasgava calado o desenho e metia os pedaços no bolso. Flora ficou por um instante parada, boca entreaberta mas logo lhe apertou a mão, agradecida. Não pôde evitar que lhe caíssem duas pequemnas lágrimas, — como outras tantas fitas que lhe atavam para sempre a pasta do passado.

A imagem não é boa, nem verdadeira; foi a que acudiu ao conselheiro, andando, ao voltar de Andaraí. Chegou a escrevê-la no Memorial, depois riscou-a, e escreveu uma reflexão menos definitiva: "Talvez seja uma lágrima para cada gêmeo".

"Pode acabar com o tempa, pensou ele indo para a barca de Petrópolis. Não importa; é um caso embrulhado."

CAPÍTULO CI / O CASO EMBRULHADO

Também os gêmeos achavam o caso embrulhado. Quando iam a S. Clemente, tinham notícias da moça, sem que lhes dessem certeza do regresso. O tempo andava; não tardaria que consultassem a sorte, como dous antigos.

A giro, não contavam as semanas de interrupção, uma vez que a escolha se não dava, e eles podiam trazer da consulta o contrário da inclinação definitiva da moça. Reflexão justa, posto que interessada. Cada um deles não queria mais que prolongar a batalha, esperando vencê-la. Entretanto, não confiavam um do outro este pensamento gêmeo, como eles. Ambos se iam sentindo exclusivos, a afeição tinha agora o seu pudor e necessidade de calar. Já não falavam de Flora.

Nem só de Flora. Crescendo a oposição, recorriam ao silêncio. Evitavam-se; se podiam, não comiam juntos; se comiam juntos, diziam pouco ou nada. As vezes, falavam para tirar aos criados qualquer suspeita, mas não advertiam que falavam mal e forçadamente, e que os criados iam comentar as palavras e a expressão deles na copa. A satisfação com que estes comunicavam os seus achados e conclusões é das pousas que adoçam o serviço doméstico, geralmente rude. Não chegavam, porém, ao ponto de concluir tudo o que os ia tornando cada vez mais avessos, a ponta de ódio que crescia com a ausência da mãe. Era mais que Flora, como sabeis; eram as próprias pessoas inconciliáveis. Um dia houve na copa e na cozinha grande novidade. Pedro, a pretexto de sentir mais calor que Paulo, mudou de quarto e foi dormir mal em outro não menos quente que o primeiro.

CAPÍTULO CII / VISÃO PEDE MEIA SOMBRA

Entretanto, a bela moça não os tirava da mesma alcova sua, por mais que buscasse deveras fugir-lhes. A memória os trazia pela mão, eles entravam e ficavam. Iam depois embora, ou de si mesmos, ou empurrados por ela. Quando tornavam, era de surpresa. Um dia. Flora aproveitou a presença para fazer um desenho igual ao que dera ao conselheiro, mais perfeito agora, muito mais acabado.

Também cansava. Então saía do quarto e ia para o piano. Eles iam com ela, sentavam-se aos lados ou ficavam defronte, em pé, e ouviam com atenção religiosa, ora um noturno, ora uma tarantela. Flora tocava ao sabor de ambos, sem deliberação; os dedos é que obedeciam à mecanica da alma. Para os não ver, inclinava a cabeça sobre o teclado; mas o campo da visão os guardava, se não era a respiração que se fazia sentir defronte ou dos lados. Tal era a sutileza dos seus sentidos.

Se fechava o piano e descia ao jardim, sucedia muita vez que os ia achar ali, passeando, e a cumprimentavam com tão boa sombra, que ela esquecia por instantes a impaciência. Depois, sem que os mandasse, iam embora. Nos primeiros tempos, Flora tinha medo que a houvessem abandonado de todo, e chamava-os dentro de si. Ambos tornavam logo, tão dóceis, que ela acabou de se convencer que a fuga não era fuga, nem eles sentiam desespero, e não os evocou mais. No jardim era mais rápido o desaparecimento, talvez pela extrema claridade do lugar. Visão pede meia sombra.

CAPÍTULO CIII / O QUARTO

Sei, sei, três vezes sei que há muitas visões dessas nas páginas que lá ficam. Ulisses confessa a Alcinoos que lhe é enfadonho contar as mesmas cousas. Também a mim. Sou, porém, obrigado a elas, porque sem elas a nossa Flora seria menos Flora, seria outra pessoa que não conheci. Conheci esta, com as suas obsessões ou como quer que lhes chames.

Nem por isso, nem ainda porque houvesse colhido algum abatimento e nervos, deixava Flora de enfeitar muito, de se fazer mais linda, e ter mais de um namorado incógnito, que suspirava por ela. Não faltava quem a admirasse de passagem, e fosse vê-la, quando menos, no banco verde, à porta do jardim, ao pé da irmã de Aires. Pode ser que conhecesse algum, Gouveia, por exemplo; em verdade, era como se os não visse.

Um deles valia mais que todos pela carruagem, — tirada por uma bela parelha de cavalos, — capitalista do bairro. A casa dele era um palacete, os móveis feitos na Europa, estilo império, aparelhos de Sèvres e de prata, tapetes de Esmirna, e uma vasta camara com dous leitos, um de solteiro, outro de casados. O segundo esperava a esposa.

"A esposa há de ser esta", pensou ele um dia. ao ver Flora.

Era maduro; trazia o rosto batido dos ventos da vida, a despeito das muitas águas de toucador; ao corpo faltava aprumo, e as maneiras não tinham graça nem naturalidade. Era o Nóbrega, aquele da nota de dous mil-réis, nota fecunda, que deitou de si muitas outras mais de dous mil contos de réis. Para as notas recentes, a avó perdiase na noite dos tempos. Agora os tempos eram claros, a manhã doce e pura.

Quando viu a moça, e fez a reflexão que lá fica, estranhou-se a si próprio. Vira outras damas, e mais de uma com escritos nos olhos, dizendo-lhe o vazio do coração. Esta era a primeira que veramente lhe prendeu a vontade e lhe deteve o pensamento. Tornou a vê-la; a gente vizinha notou porventura a freqüência recente do capitalista. Enfim, Nóbrega acabou por se fazer entrado na casa de D. Rita, com desgosto dos seus habitantes, que assim se viam esquecidos do anfitrião. Nóbrega, entretanto, dera ordens bastantes para que fossem todos servidos e agasalhados, como se ele estivesse presente.

A ausência não lhe faria perder as loas dos amigos. Ao contrário os servos podiam dar testemunho do que todos eles pensavam do "grande homem". Tal era o nome que lhe aplicara o secretário particular, e pegou. Nóbrega sabia pouca ortografia, nenhuma sintaxe, lições úteis, decerto, mas que não valiam a moral, e a moral, diziam todos, acompanhando o secretário, era o seu principal e maior mérito. O fiel escriba acrescentava que, sendo preciso despir a camisa e dá-la a um mendigo, Nóbrega o faria, ainda que a camisa fosse bordada.

Agora mesmo, este amor era, ao cabo, um movimento de caridade. Em pouco tempo, aquele gosto de relance passou a grande paixão, tão grande que ele não a pôde conter, e resolveu confessá-la. Hesitou-se o faria à própria moça ou à dona da casa. Não tinha animo para uma nem outra. Uma carta supria tudo, mas a carta pedia língua, calor e respeito. Se, ao menos, o gesto de Flora lhe dissesse alguma cousa, ainda que pouca, vá, a carta seria então uma resposta. Mas não lhe dizia nada o gesto da moça. Era só cortês e gracioso; não ia além dessas duas expressões.

D. Rita percebeu a inclinação de Nóbrega e achou que era a melhor solução da vida para a hóspede. Todas as incertezas, angústias e melancolias vinham acabar nos braços de um ricaço, estimado, respeitado, dentro de um palacete com uma carruagem às ordens... Ela mesma punha em relevo este prêmio grande da loteria de Espanha.

Enfim, o secretário de Nóbrega redigiu com a melhor linguagem que possuía uma carta em que o capitalista pedia a D. Rita o favor de consultar a moça amada.

—Não escreva palavrinhas doces, recomendou ele ao secretário. Gosto dessa moça com um sentimento de proteção, antes que outra cousa. Não é carta de namorado. Estilo grave...

—Uma carta seca, concluiu o secretário.

—Totalmente seca, não, emendou Nóbrega, uma carta lisonjeira, sem esquecer que não sou criança.

Assim se cumpriu. Ia a cumprir-se demais; Nóbrega achou que o estilo podia ser um tanto ameno; não fazia mal pôr duas ou três palavras apropriadas ao objeto, beleza, coração, sentimento... Assim se cumpriu finalmente, e a carta foi levada ao seu destino. D. Rita ficou contentíssima. Justamente o que ela queria. Tinha o plano feito de concluir, por ato seu, uma história melancólica, a que daria, por derradeira página, conclusão deslumbrante. Não pensou em dizê-lo primeiro ao irmão, pela razão de querer que ele recebesse a notícia completa, tudo feito e acabado. Releu a carta; dispôs-se a ir logo, mas há pessoas para quem o adágio que diz que "o melhor da festa é esperar por ela", resume todo o prazer da vida. D. Rita tinha essa opinião. Todavia, entendeu que tais cartas não são das que se guardam largo tempo, nem aliás das que se comunicam sem cautela. Esperou vinte e quatro horas. Na manhã seguinte, depois de almocadas, leu a carta à moca. O natural é que Flora ficasse espantada. Ficou, mas não tardou que risse, de um riso franco e sonoro, como ainda não rira em Andaraí. D. Rita ficou espantadíssima. Supunha que, não a pessoa, mas as vantagens e circunstancias pleiteassem a favor do candidato. Esquecia os seus cabelos entregues à sepultura do marido. Deu conselhos à moça, pôs em relevo a posição do pretendente, o presente e o futuro, a situação esplêndida que lhe dava este casamento, e por fim as qualidades morais de Nóbrega. A moça escutou calada, e acabou rindo outra vez.

—A senhora sabe se serei feliz? perguntou.

—Creio que sim; agora, o futuro é que confirmará ou não.

—Esperemos que o futuro chegue, conquanto me pareça muito demorado. Não nego as qualidades daquele homem, parece bom, e trata-me bem, mas eu não quero casar, D. Rita.

—Realmente, a idade... Mas nem, ao menos, quer pensar alguns dias? —Está pensado.

D. Rita ainda esperou um dia. A resposta negativa, dado que Flora viesse a mudar de opinião, podia ser uma desgraça para esta. Uso os próprios termos dela, consigo, grande desgraça, posição esplêndida, sentimento profundo. D. Rita ia aos extremos, diante daquele rico-homem dos últimos anos do século.

CAPÍTULO CIV / A RESPOSTA

Não querendo dar a resposta nua e crua. D. Rita consultou a moça, que lhe respondeu simplesmente: —Diga que não pretendo casar.

Quando Nóbrega recebeu as poucas linhas que D. Rita lhe mandou, ficou assombrado. Não contava com recusas. Ao contrário, era tão certa a aceitação que ele tinha já um programa do noivado. Imaginava a moça, os olhos tímidos, a boca cerrada, o céu que lhe cobriria a linda carinha, a delicadeza dele, as palavras que lhe diria entrando em casa. Tinha já composto uma invocação à Mãe Santíssima, para que os fizesse felizes. "Dou-lhe carro, dizia consigo, jóias, muitas jóias, as melhores jóias do mundo..." Nóbrega não fazia idéia exata do mundo; era expressão. "Hei de dar-lhe tudo, sapatinhos de seda, meias de seda, que eu mesmo lhe calçarei..." Estremecia de cor, ao calçar-lhe as meias. Beijava-lhe os pés e os joelhos.

Tinha imaginado que ela, ao ler a carta, devia ficar tão pasmada e agradecida, que nos primeiros instantes não pudera responder a D. Rita; mas logo depois as palavras sairiam do coração às golfadas. "Sim, senhora, queria, aceitava; não pensara em outra cousa." Escreveria logo ao pai e à mãe para lhes pedir licença; eles viriam correndo, incrédulos, mas, vendo a carta, ouvindo a filha e D. Rita, não duvidariam da verdade, e dariam o consentimento. Talvez o pai lho fosse dar em pessoa. E nada, nada, nada, absolutamente nada, uma simples recusa, uma recusa atrevida, por que enfim quem era ela, apesar da beleza? uma criatura sem vintém, modestamente vestida, sem brincos, nunca lhe vira brincos às orelhas, duas perolazinhas que fossem. E por que é que lhe furaram as orelhas, se não tinham brincos que lhe dar? Considerou que às mais pobres meninas do mundo furam as orelhas para os brincos que Ihes possarn cair da céu. E vem esta, e recusa os mais ricos brincos que o céu ia chover sobre ela...

Ao jantar, os amigos da casa notaram que ele estava preocupado. De noite, ele e o secretário saíram a pé. Nóbrega buscou em si o gesto mais frio e indiferente que pôde, quase alegre, e anunciou ao secretário que Flora não queria casar. Não se descreve a admiração do secretário, em seguida a consternação, finalmente a indignação. Nóbrega respondia magnanimo: —Não foi por mal; foi talvez por se julgar abaixo, muito abaixo da fortuna. Creia que é boa moça. Pode ser também, quem sabe? por ter sido um mau conselho do coração. Aquela moça é doente.

—Doente? —Não afirmo; digo que pode ser.

O secretário afirmou.

—Só a doença, disse ele, explicará a ingratidão, porque o ato é de pura ingratidão.

Aqui tornou a nota da indignação, nota sincera, como as outras. Nóbrega gostou de ouvi-la; era um compadecimento. No fim, cumpriu a idéia que trazia ao sair de casa; aumentou-lhe o ordenado. Podia ser a paga da simpatia; o beneficiado foi mais longe, achou que era o preço do silêncio, e ninguém soube de nada.

CAPÍTULO CV / A REALIDADE

A moléstia, dada por explicação à recusa do casamento, passou à realidade daí a dias. Flora adoeceu levemente; D. Rita, para não alarmar os pais, cuidou de a tratar com remédios caseiros; depois mandou chamar um médico, o seu médico, e a cara que este fez não foi boa, antes má. D. Rita, que costumava ler a gravidade das suas moléstias no rosto dele, e sempre as achava gravíssimas, cuidou de avisar os pais da moça. Os pais vieram logo. Natividade também desceu de Petrópolis, não de vez; em cima, tinham medo de algum movimento cá embaixo. Veio a visitar a moça, e, a pedido desta ficou alguns dias. — Só a senhora pode me curar, disse Flora; não creio nos remédios que me dão. As suas palavras é que são boas. e os seus carinhos... Mamãe também, e D. Rita, mas não sei, há uma diferença, uma cousa... Veja; parece-me que até já rio.

—Já, já; ria mais.

Flora sorriu, ainda que daquele sorriso descorado que aparece na boca do enfermo, quando a moléstia consente, ou ele força a seriedade própria da dor. Natividade dizia-lhe palavras de animação; fê-la prometer que iria convalescer em Petrópolis. A enfermidade começou a ceder. D. Cláudia aceitou a oferta de D. Rita, e lá ficou aposentada. Natividade ia à noite para Botafogo e voltava de manhã Aires descia de Petrópolis um dia sim, um dia não.

Também os gêmeos lá iam saber da enferma. Agora mais que dantes, sentiam a fortaleza do vínculo que os prendia à moça. Pedro, já médico, ainda que sem prática, punha mais autoridade nas perguntas, concluía melhor dos sintomas, mas as esperanças e os receios eram de ambos. Algumas vezes, falavam mais alto que de costume e de conveniência. A razão, por egoísta que fosse, era perdoável. Supõe que os cartões de visita falassem; alguns, mais sôfregos, proclamariam os seus nomes, para que soubessem logo da presença, da cortesia e da ansiedade. Tal cuidado da parte dos dous era inútil, porque ela sabia deles e recebia as lembranças que lhe deixavam.

Flora ia assim passando os dias. Queria Natividade sempre ao pé de si, pela razão que já deu, e por outra que não disse, nem porventura soube, mas podemos suspeitá-la e imprimir. Estava ali o ventre abençoado que gerara os dous gêmeos. De instinto, achava nela algo particular. Quanto ao influxo que exercia nela, por essa ou qualquer outra causa, não a sabia Natividade; contentava-se em ver que, ainda agora, e em tal crise, Flora não perdeu a amizade que lhe tinha. Passavam as horas juntas, falando, se não fazia mal falar, ou então uma com as mãos da outra entre as suas. Quando Flora adormecia, Natividade ficava a contemplá-la, com o rosto pálido, os olhos fundos, as mãos quentes, mas sem perder a graça dos dias da saúde. As outras entravam no quarto, pé ante pé, esticavam os pescoços para vê-la dormir, falavam por gestos ou tão baixo que só o coração as adivinharia.

Quando pareceu melhorar, Flora pediu um pouco mais de luz e de céu. Uma das duas janelas foi então escancarada, e aenferma encheu-se de vida e riso. Não é que a Febre se fosse de todo. Essa bruxa lívida estava ao canto do quarto, com os olhos espetados nela mas, ou de cansada, ou por obrigação imposta, cochilava a miúdo, e longamente. Então a enferma sentia só o calor do Mal, que o médico graduava em trinta e nove ou trinta e nove e meio, depois de consultar o termômetro. A Febre, ao ver esse gesto, ria sem escandalo, ria para si.

CAPÍTULO CVI / AMBOS QUAIS?

Ficamos no ontto em que uma das janelas do quarto aumentou a dose de luz e de céu que Flora pediu, sem embargo da febre, aliás pouca. O mais que se passou valia a pena de um livro. Não foi logo, logo, gastou longas horas e alguns dias. Houve tempo bastante para que entre a vida e Flora se fizesse a reconciliação ou a despedida. Uma e outra podiam ser extensas; também podiam ser curtas. Conheci um homem que adoeceu velho, se não de velho, e despendeu no rompimento fmal um tempo quase infinito. Já pedia a morte, mas quando via o rosto descarnado da derradeira amiga espiar da porta entreaberta, voltava o seu para outro lado e engrolava uma cantiga da infancia, para enganá-la e viver.

Flora não recorria a tais cantigas, aliás tão próximas. Quando via o céu e um pedaço de sol no muro, deleitava-se naturalmente, e uma vez quis desenhar, mas não lho consentiram. Se a morte a espiava da porta, tinha um calefrio, é verdade, e fechava os olhos. Ao abri-los fitava a triste figura, sem lhe fugir nem chamar por ela.

—Você amanhã está pronta, e de hoje a oito dias, ou antes, vamos para Petrópolis, disse Natividade disfarçando as lágrimas, mas a voz fazia o ofício dos olhos.

—Petrópolis? suspirou a doente.

—Lá terá muito que desenhar.

Eram sete horas da manhã. Na véspera, quando os gêmeos saíram de lá, já tarde, os receios da morte cresciam; mas não bastam receios, é preciso que a realidade venha atrás deles; daí as esperanças. Também não bastam esperanças, a realidade é sempre urgente. A madrugada trouxe algum sossego; às sete horas, depois daquelas palavras de Natividade, Flora pôde dorm ir.

                                                                                            

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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