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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESCOLHIDA AO ANOITECER / C. C. Hunter
ESCOLHIDA AO ANOITECER / C. C. Hunter

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Kylie Galen desviou os olhos da sua fatia de pizza de pepperoni sobre o prato de porcelana e tentou ignorar o fantasma que brandia a espada sangrenta bem atrás do seu avô e da sua tia-avó. Os membros recém-descobertos da sua família até que eram... gente boa, mas um pouco certinhos demais. E gente certinha provavelmente não apreciaria um fantasma indesejado manchando de sangue as paredes da sala de jantar.

O espírito, uma mulher de cabelos escuros e soltos, com trinta e poucos anos, conteve o movimento da espada e olhou diretamente para Kylie. Ou você mata ou matam você. É simples assim. As palavras reverberaram na cabeça de Kylie. Elas tinham sido transmitidas telepaticamente e, considerando o tópico discutido, essa provavelmente era a melhor opção.
— Não é tão simples assim — Kylie contra-atacou. — Estou tentando comer, então você se incomodaria de ir embora?
— Que indelicadeza! — exclamou o fantasma. — Você deveria ajudar os espíritos. Precisa ser fiel às suas próprias regras.
Kylie torceu o guardanapo de pano em seu colo. Será que existe alguma coisa nos manuais que obrigue alguém que se comunica com fantasmas a ser educado com espíritos detestáveis?
Ah, espere aí, ela não tinha uma droga de manual nem instruções a seguir. Estava improvisando. Improvisando em tudo, na verdade: na comunicação com fantasmas, no fato de ser sobrenatural e de ser a namorada de alguém.
Ex-namorada de alguém!
Ultimamente, ela sentia que estava improvisando toda a sua droga de vida, e fazendo uma confusão danada, também. Como sua decisão de deixar Shadow Falls, o acampamento recentemente transformado em escola para adolescentes paranormais. Na época ela sentiu que era a coisa certa a fazer.
Na época.
Ela estava ali, na morada dos camaleões, havia menos de duas semanas e não tinha mais tanta certeza.
É verdade que tivera uma boa razão para vir — descobrir mais sobre sua herança paranormal. Ter a chance de conhecer o avô, Malcolm Summers, e a tia-avó, Francyne.

 

 

 

 

 

 

Meses depois de saber que não era totalmente humana, ela finalmente descobriu que era um camaleão, uma espécie rara que foi obrigada a se esconder depois que uma unidade do governo paranormal, a Unidade de Pesquisa de Fallen, ou UPF, tinha usado alguns dos seus membros como cobaias para tentar explicar suas habilidades. A própria avó de Kylie tinha morrido por causa desses experimentos. E agora o mesmo ramo da UPF queria fazer testes com Kylie. Dava para acreditar que isso estava acontecendo?!

Mas a maior motivação de Kylie para deixar Shadow Falls não tinha nada a ver com a UPF ou com a descoberta da sua herança familiar. Tinha tudo a ver com a sua fuga.

Fuga de Lucas, o lobisomem por quem era apaixonada. O lobisomem que tinha prometido a própria alma a uma garota da própria espécie e esperava que Kylie acreditasse que aquela promessa não significava nada para ele. Como Lucas podia ter feito uma coisa daquelas? Como podia ter beijado Kylie com tanta paixão ao longo de todo o mês anterior e, no entanto, ter-se encontrado com aquela garota toda vez que ia para a casa do pai? Como Kylie podia ficar em Shadow Falls e continuar olhando na cara dele?

O problema era que ela até podia ter conseguido fugir de Lucas, mas não da própria desilusão. E agora não estava sofrendo apenas por causa de um certo lobisomem; estava sofrendo porque... cada célula do seu corpo sentia falta de Shadow Falls. Tudo bem, talvez não tanto de Shadow Falls, mas das pessoas de lá. Os amigos que tinham se tornado sua família: Holiday, a fae líder do acampamento, que era como uma irmã mais velha. Burnett, o vampiro austero, outro líder do acampamento que era ao mesmo tempo um amigo e uma espécie de pai para ela. Suas duas colegas de alojamento, Della e Miranda, que se sentiram abandonadas quando Kylie partiu. E Derek, que tinha declarado seu amor, mesmo sabendo que ela amava Lucas.

Ah, Deus, ela sentia tanta falta de todo mundo! E o mais irônico era que estava só a alguns quilômetros de Shadow Falls, entocada numa região isolada e montanhosa e que poderia muito bem estar do outro lado do mundo.

Claro que ela falava com Holiday todo dia. A princípio o avô tinha recusado esse direito a ela, mas a tia havia insistido para que ele fosse mais razoável. O avô tinha voltado atrás, mas só se ela usasse um certo aparelho telefônico e fosse muito breve, para que os telefonemas não fossem rastreados. E de maneira nenhuma Kylie poderia contar onde estava.

Como o acampamento era filiado à UPF, o avô não confiava em ninguém em Shadow Falls. E essa desconfiança só contribuía para aumentar o seu sentimento de isolamento com relação a todos que amava. Até com relação à mãe, que telefonara para avisar que viajaria para a Inglaterra com John, o seu novo namorado, com quem Kylie não simpatizava nem um pouco. Evidentemente, o avô permitia que ela retornasse a ligação da mãe toda vez que ela ligava. Por isso elas tinham se falado duas vezes. Mas só duas vezes.

As lágrimas provocaram um aperto na garganta de Kylie, mas ela se recusou a chorar. Tinha que ser forte. Já estava bem crescidinha e precisava agir como a adulta que era.

— A pizza está boa? — a tia-avó perguntou.

— Sim, está ótima. — Kylie viu os dois parentes idosos cortarem a pizza de pepperoni como se fosse um bife. Ela sabia que eles tinham servido a pizza apenas por causa dela, pois perguntaram quais eram seus pratos preferidos depois de ver que ela mal tocara em suas refeições nos últimos dias. Sentindo-se obrigada tanto a comer quanto a demonstrar boas maneiras assim como eles, ela se forçou a morder um pedaço de pizza e mastigá-lo.

Ela não era um vampiro agora, portanto devia estar apreciando a comida. Mas não estava.

Nada parecia ter gosto.

Nada parecia certo.

Não parecia certo comer pizza com garfo e faca, num prato de porcelana tão fina que parecia rara e antiga o bastante para estar num museu. Nem se sentar nessa luxuosa mesa de jantar posta com toda a pompa. E, especialmente, não parecia certo ver um espírito se aproximando do avô, segurando uma espada sobre a cabeça dele.

Kylie olhou para o espírito.

— Ou você me diz exatamente do que você precisa, sem que isso envolva assassinato, ou é melhor ir embora.

Uma gota de sangue caiu na testa do avô. Não que ele pudesse ver ou sentir. Mas Kylie podia. O espírito fazia aquele showzinho só para chamar a atenção de Kylie.

E estava funcionando.

— Pare! Vá embora. — Kylie lançou um olhar de advertência para o espírito.

— Você está com um péssimo humor, sabia? — disse o fantasma.

Sim, ela estava, Kylie admitiu para si mesma. A desilusão fazia isso com as pessoas. Tirava toda a alegria de viver. Ou talvez o que mais tirasse essa alegria fosse a falta que todo mundo fazia. Não que o tempo passado ali com o avô não tivesse sido proveitoso. Ela descobrira muito sobre si mesma e sobre os camaleões naqueles treze dias.

Os camaleões só tinham aparecido havia algumas centenas de anos. Embora eles se considerassem uma espécie, na verdade eram uma mescla de todos os paranormais — indivíduos dotados do DNA e dos poderes de todas as espécies.

O problema era que aprender a controlar esses poderes era dificílimo. A maioria dos camaleões só conseguia essa proeza com vinte e poucos anos. Não que houvesse muitos jovens camaleões tentando fazer isso. Os camaleões eram raros. Segundo o avô, existia uma centena de comunidades como aquela ao redor do mundo, mas no total havia menos de dez mil membros da sua espécie. E a cada dez casais de camaleões, só um era capaz de gerar uma criança. Por isso a população era tão pequena.

Kylie não podia deixar de perguntar se um dia conseguiria ter filhos. Mas, que droga! Ela só tinha 16 anos, era muito jovem para começar a se preocupar com a possibilidade de não ser fértil.

— Como foram as aulas hoje? — perguntou o avô.

Kylie concentrou a atenção no homem. Aos setenta e poucos anos, seu cabelo ainda era loiro avermelhado, com apenas alguns fios brancos. Seus olhos, de um azul brilhante, eram da mesma cor dos olhos dela e dos do pai.

Outra gota de sangue caiu na bochecha dele. Kylie rosnou para o fantasma risonho, que cortou o ar com a espada, parando a apenas um centímetro da cabeça do ancião.

— Eu disse pra parar! — exclamou Kylie, apertando os olhos.

— Não foi tudo bem? — o avô perguntou, obviamente lendo a expressão facial da neta.

— Não, foi tudo bem, sim. Eu já sou... já fui capaz de mudar meu padrão de lobisomem para fae.

Todos os sobrenaturais tinham padrões que podiam ser vistos pelos outros. Os camaleões tinham o seu próprio padrão, que eles escondiam. E, ao contrário de qualquer outro sobrenatural, podiam assumir o padrão de qualquer espécie e adquirir seus poderes ao se transformar.

O problema era que, assim como seus outros poderes, esse não era fácil de controlar. As aulas ali não incluíam inglês, matemática e ciências, mas o treinamento de como controlar seus poderes e esconder seu verdadeiro padrão de todo mundo.

— Isso é ótimo. Então por que a cara feia? — o avô perguntou.

— É que... — Eu estou muito infeliz aqui. Quero voltar para Shadow Falls. As palavras estavam na ponta da língua, mas ela não conseguiu dizê-las. Não diria enquanto não tivesse certeza de que conseguiria voltar. Enquanto não soubesse como conseguiria sobreviver ao olhar para Lucas.

— Eu não estava fazendo cara feia para o senhor. É que...

— Kylie tem companhia — disse Francyne. A tia não podia se comunicar com fantasmas. Ela dizia que não conseguia vê-los ou ouvi-los, mas podia sentir a presença deles sem dificuldade.

O fantasma segurava a espada em riste, apontando-a para o teto como se fosse fazer uma grande declaração.

— Você em breve terá mais companhia.

Kylie não sabia o que aquilo significava, mas agora ela não encarava o fantasma, mas o avô, que a fitava confuso.

— Companhia? — O avô olhou para a tia. — Ah! — Ele ficou tenso. Então arregalou os olhos. — É a minha mulher ou o meu filho, Daniel?

— Não. — Kylie gostaria que fosse Daniel, seu pai, que morrera antes de ela nascer. Ela bem que precisava de um pouco de consolo e seu pai era realmente bom nisso. No entanto, ele já esgotara o seu tempo na Terra.

— Nenhum deles. É... outra pessoa — respondeu Kylie.

Alguém que ainda tinha que explicar o que queria ou precisava. Bem, a não ser pelo fato de que ela já tinha dito que precisava de Kylie para matar alguém. O que o espírito pensava que ela era? Uma assassina de aluguel?

O espírito se curvou para chegar mais perto da orelha do avô de Kylie.

— É uma pena que não possa me ver. Você é uma graça. — Ela lambeu o sangue da bochecha dele. Bem devagar. E olhou para Kylie enquanto fazia isso.

Kylie derrubou o garfo.

— Pare de lamber meu avô, agora mesmo!

O espírito voltou a pôr a língua dentro da boca e olhou para Kylie.

— Pare de lutar contra o seu destino. Aceite o que tem que fazer. Deixe-me lhe ensinar como deve matá-lo.

— Matar quem? — Kylie deixou escapar, mas em seguida se encolheu ao perceber que estava falando alto.

— Lamber? Matar? O quê? — o avô perguntou.

— Nada — insistiu Kylie. — Eu estava falando...

— Ela estava falando com o espírito, eu presumo — completou a tia, com as sobrancelhas franzidas, demonstrando preocupação.

— Falando sobre matar alguém? — o avô perguntou, olhando diretamente para Kylie.

Quando a neta não respondeu, Malcolm olhou em volta da sala como se estivesse nervoso. Sua expressão de medo lembrava muito a dos outros sobrenaturais de Shadow Falls.

Foi nesse momento que um pensamento lhe ocorreu. Kylie tinha vindo por achar que iria se adaptar e, no entanto, mesmo vivendo num complexo de cinquenta acres do Texas com 25 outros camaleões, ainda não conseguira se entrosar. E não era só porque falava com fantasmas, mas porque era muito mais madura do que os outros quatro adolescentes que moravam ali. E eles também não pareciam muito entusiasmados diante de uma novata muito mais precoce do que eles.

Os anciãos do grupo — que incluíam seu avô, sua tia-avó e mais quatro outros — achavam que o desenvolvimento precoce de Kylie devia-se ao fato de ela também ser uma protetora, uma sobrenatural com poderes extraordinários. Embora isso parecesse o máximo, Kylie não concordava com aquela descrição por várias razões.

No topo da lista estava o fato de ela só poder usar esses poderes para proteger os outros, nunca a si mesma, o que para Kylie não fazia o menor sentido. Se ela tinha a incumbência de proteger os outros, não era importante que se mantivesse viva? Quem, afinal, tinha inventado aquela regra?

Kylie soltou um suspiro que, ao escapar dos lábios, denunciou sua tristeza. Será que era sua sina ser uma eterna desgarrada?

O avô se curvou para a frente e apoiou o garfo e a faca de prata sobre o caro prato de porcelana.

— Kylie, eu detesto me intrometer nos seus... assuntos espirituais, mas por que um espírito estaria conversando com você sobre matar alguém?

Kylie mordeu o lábio e tentou encontrar uma maneira de explicar sem assustá-los demais. Especialmente porque aquilo também a deixava apavorada. Ela abriu a boca para dizer alguma coisa, mas foi salva por uma campainha. Uma campainha muito alta, mais parecida com uma sirene. As luzes do lustre sobre a mesa começaram a piscar.

O avô, mais carrancudo ainda, tirou o celular do bolso da camisa imaculadamente branca e bem passada, apertou um botão e colocou-o junto à orelha.

— O que é? — Ele fez uma pausa. — Quem? — perguntou com rispidez, desviando os olhos para Kylie. — Já estou indo!

Ele desligou o telefone e se levantou da cadeira, depois olhou para a cunhada.

— Você e Kylie, sumam daqui. Escondam-se no celeiro. Volto logo.

Quando disse “sumam”, Kylie presumiu que ele estivesse se referindo a ficar invisível, outra coisa que os camaleões faziam. Desvanecer-se no ar.

— O que está acontecendo? — Kylie perguntou, lembrando-se de que o fantasma a advertira de que logo ela teria companhia.

— Temos intrusos. — O tom prático e severo do avô se aprofundou ainda mais e ficou mais sério.

— Intrusos? — Kylie perguntou.

Os olhos dele se estreitaram.

— É a UPF! Agora sumam!

A tia contornou a mesa e pegou a mão de Kylie. Então a mulher se desvaneceu no ar e, numa fração de segundo, Kylie olhou para baixo e viu que suas pernas tinham desaparecido.


Capítulo Dois

Três minutos depois, Kylie tinha sido levada ao celeiro pela tia. Ou pelo menos era o que ela supunha. Porque todo mundo estava invisível.

Respirando o cheiro terroso da forragem estocada ali, Kylie aprendeu mais uma coisa sobre seus poderes. Os camaleões eram capazes de fazer outras pessoas desaparecem. Ou pelo menos era o que parecia, porque ela não tinha desejado desaparecer e pelo visto o toque da tia tinha dado conta de todo o trabalho.

— Estamos todos aqui? — A voz da tia cortou o estranho silêncio, impregnado de tensão. Kylie percorreu com os olhos o celeiro vazio. Não havia ali uma única alma que ela pudesse ver. Claro, ela tampouco podia ver a si mesma.

Ao prestar atenção, ouviu o som leve de pés se arrastando no chão.

— Vamos fazer a contagem — a voz da tia ecoou novamente. — Um! — começou a tia.

— Dois! — outra voz acrescentou.

A contagem foi até 24, mas eles tinham feito várias pausas e pulado vários números, antes de passar para o próximo. Kylie reconheceu a maior parte das vozes. Especialmente os outros quatro camaleões adolescentes, além de Suzie, de 6 anos de idade, e seus pais, que eram os professores dos grupos. Os números que faltavam, obviamente, eram do seu avô e dos outros quatro anciãos.

— E eu estou com Kylie — disse a tia. — Kylie, o seu número é 25. Lembre-se dele e, sempre que precisarmos desaparecer, você deve dizê-lo para sabermos que está presente.

Ela balançou a cabeça, mas, ao se lembrar de que não podiam vê-la, disse:

— Tudo bem. — Sua mente estava a mil por hora, pensando em tudo o que estava acontecendo, desde ser o número 25 até estar invisível e, sobretudo, no que a UPF queria ali. Eles tinham vindo por causa dela? Então seus pensamentos em torvelinho se detiveram num assunto.

Seu avô. Ela estava preocupada com a segurança dele e com a possibilidade de que a UPF fizesse algo contra ele e os outros anciãos. Será que ele estava bem? Ela deveria encontrá-lo caso ele precisasse de... proteção?

— Talvez devêssemos nos juntar aos outros — disse ela, sentindo o sangue começar a borbulhar, como sempre acontecia quando ela temia que alguém estivesse em perigo.

— Não! — disse a tia numa tom de voz que deixou pouca dúvida de que ela estava no comando ali. — Vamos esperar aqui. Esse era o plano e nós nunca nos desviamos de um plano.

Kylie sentiu algo na voz da tia. Nervosismo, preocupação. O sangue de Kylie, correndo nas veias, ficou ainda mais quente.

— A UPF já veio aqui antes? Será que eles sabem que podemos desaparecer? — perguntou Kylie.

— Só se você contou a eles — disse Brandon com rispidez.

Brandon, o adolescente que não gostava dela. Ah, ele tinha gostado muito no começo, mas quando Kylie disse ao garoto de 17 anos para não perder tempo andando atrás dela, ele obviamente se sentiu ofendido. Desde então só o que fazia era esnobá-la. E sempre que Kylie conseguia fazer algo que os professores ensinavam, como alterar seus padrões e coisa assim, ele parecia pessoalmente insultado com o sucesso dela. Mas aquilo não era uma competição. Ela só queria aprender tudo o que podia e então... voltar para Shadow Falls.

Voltar para casa. O pensamento ficou pairando dentro dela, num lugar muito perto do coração.

— Eu não contei nada a eles! — defendeu-se Kylie.

— Agora não é hora de briga — repreendeu a tia.

— Foi ela que trouxe a UPF até aqui! — acusou Brandon. — Eles nunca estiveram aqui antes. E só Deus sabe o que vão fazer com a gente se nos encontrarem.

— Calado! — exigiu tia Francyne.

Mas, no silêncio que se seguiu, Kylie intuiu o que se passava pela cabeça dos outros. Eles concordavam com Brandon. Por causa dela, a UPF tinha descoberto a morada dos camaleões.

A culpa invadiu o peito de Kylie. Ela nunca pensara que sua vinda pudesse colocar alguém em perigo. No entanto, tinha acontecido exatamente isso, não é?

O sangue borbulhou mais rápido; a ideia de que o avô pudesse ser ferido por culpa dela fez seu coração acelerar.

Kylie tentou liberar a mão do aperto da tia.

— Não! — disse ela. — Se você largar a minha mão, vai ficar visível.

— Eu preciso ter certeza de que eles estão bem. E... posso me tornar invisível por mim mesma.

— Isso é impossível! — Brandon contestou. — Só aprendemos a ficar invisíveis depois dos 20 anos. Todo mundo sabe disso.

Kylie revirou os olhos. Ela estava cansada da inveja mesquinha do garoto.

Soaram passos. Números foram chamados. Ela reconheceu a voz do avô, assim como a dos outros anciãos.

— Eles vão procurar aqui! — disse o avô. — Adultos, não larguem as mãos dos seus filhos. Sigam para o extremo sul da propriedade.

Os sons de pessoas dirigindo-se para a porta ecoou no que, para Kylie, parecia um celeiro vazio.

Kylie sentiu o aperto da tia em seu pulso, incentivando-a a andar, mas então o avô voltou a falar.

— Todo mundo menos Francyne e Kylie. Vocês duas desçam pela orla da floresta, na parte dos fundos da propriedade.

Kylie se perguntou por que ela e a tia Francyne estavam sendo separadas dos outros.

— Por quê? — perguntou Kylie, depois de ouvir os últimos passos se afastando, embora achasse muito estranho falar se ninguém podia vê-la.

— Quando estamos numa situação de emergência, nunca fazemos perguntas.

A voz da tia ecoou no vazio do celeiro. Então, ainda segurando a mão de Kylie, a tia começou a andar e, com passos cuidadosos, guiou Kylie para fora do celeiro.

Ela acompanhou os passos da tia, mas não conseguiu permanecer em silêncio.

— O que está acontecendo? Por que eu tenho que ser levada para um lugar diferente? — Kylie perguntou, quando atravessavam a porta do celeiro. A luz vespertina fez suas pupilas se contraírem.

— Obviamente, é você que eles procuram — o avô respondeu, a voz soando bem perto, embora ele ainda estivesse invisível.

— Mas eu sou uma protetora — Kylie insistiu. — Se alguém precisar de ajuda, eu tenho que estar por perto.

— Eu posso sentir você, droga! Onde você está? — Uma voz familiar, que não era da tia nem do avô, soou atrás de Kylie.

Ela conteve a respiração e olhou por cima do ombro. A uns quinze metros de distância, de pé na grama alta, estava alguém com quem ela se preocupava.

— Derek! — ela gritou. Então se lembrou de que ninguém, além de outro camaleão invisível, podia ouvi-la quando ela estava invisível.

— Nós temos que ir. — A tia deu um puxão na mão de Kylie, mas ela não cedeu. Sem sair do lugar, Kylie se deliciou com a visão de Derek, tão carente que estava de qualquer coisa que estivesse ligada à sua vida em Shadow Falls.

O cabelo castanho-claro do garoto, caído na testa, agitou-se com o vento, dando-lhe um ar despreocupado, mas seus olhos verdes demonstravam preocupação. O que ele estava fazendo ali?

— Onde está você, Kylie? — ele perguntou, a brisa fazendo suas palavras ecoarem a distância.

Ela se lembrou do que o avô tinha dito sobre quem estava ali. Mas não era a UPF.

— Vá para o riacho! — mandou o avô. — Você não devia ter contado a eles onde estava.

A acusação e o tom do avô colocaram Kylie na defensiva. Embora ela não pudesse vê-lo, podia imaginar sua expressão severa e intransigente.

Ela se virou para o ponto de onde vinha a voz.

— Eu não contei! E, não, eu não vou para o riacho! Você mentiu! Não é a UPF! — O sentimento de traição bateu forte.

— Quando eu disse que era a UPF, eu estava repetindo o que disseram as sentinelas. Mas ainda assim, não é mentira. Esses dois trabalham para a UPF.

Esses dois? Quem mais estava ali? Ela ouviu passos vindos da casa. Seu primeiro pensamento foi que poderia ser Lucas. Seu coração deu um salto diante da possibilidade de vê-lo. A dor da deslealdade dele pesava em seu coração e ainda tinha um gosto amargo. No entanto, quando os passos se aproximaram, ela se virou para trás, sem conseguir se conter.

Olhando para trás, viu Burnett, um dos líderes do acampamento. Não era Lucas. A decepção bateu forte em seu peito, mas ela se recusou a crer que era porque Lucas não estava ali. Ela não queria que ele viesse. Não queria vê-lo, não agora, e talvez nunca. Mesmo enquanto esse pensamento atravessava sua mente, ela sentiu o coração disparar com a mentira.

Mas Kylie sabia que pelo menos algumas das suas decepções estavam relacionadas a Burnett. Ela não tinha se despedido dele, porque sabia que ele tentaria impedi-la de ir embora. Agora ela queria ir ao encontro dele e abraçá-lo. Desculpar-se por lhe negar a cortesia de uma simples despedida.

— Kylie — a tia falou de novo, dando um puxão leve em sua mão. — Seu avô sabe o que é melhor. Ouça-o. Temos de ir.

Kylie respirou fundo e tentou não deixar que suas emoções a controlassem. Mas parecia tarde demais. Sua cabeça girava enquanto muitos sentimentos se agitavam dentro dela. Solidão, tristeza e raiva por ter sido enganada.

— Ele sabe o que é melhor para ele, mas talvez não saiba o que é bom para mim.

— Você precisa confiar no seu avô — disse a tia, seu aperto no pulso de Kylie ficando mais forte. — Venha, por favor. Nós só queremos protegê-la.

— Eu não preciso que me protejam de Burnett ou Derek — ela falou calmamente. — E parece que meu avô precisa confiar em mim, também. Eu não contei a ninguém onde estava. Dei a vocês a minha palavra e a cumpri. — Ela ouviu o tom ressentido da própria voz.

— Isso não importa agora — disse o avô, mas Kylie discordou. Antes que ela pudesse expressar o que sentia, ele continuou: — O importante é que eles vão tentar forçá-la a voltar. Se sairmos daqui agora, vamos evitar um confronto.

— Ela está aqui em algum lugar — Derek disse para Burnett. — Eu posso senti-la. Sério, ela está aqui em algum lugar.

Kylie se concentrou onde supunha que o avô estivesse.

— Ninguém vai me forçar a fazer algo que não quero. Nem eles... nem o senhor — ela acrescentou. — Meu plano o tempo todo era voltar a Shadow Falls. Eu lhe disse isso desde o início.

— Um plano com o qual eu não disse que concordava. — A voz do avô ficou ligeiramente mais alta.

Kylie, atraída pelo som de passos, olhou por cima do ombro novamente. Ela observou enquanto Burnett se aproximava. Orgulhoso, forte, obstinado. De muitas maneiras, ele lembrava o avô. Inspirando, voltou a olhar para onde tinha ouvido a voz do avô antes.

— Eu vim aqui de livre e espontânea vontade e, quando eu quiser ir embora, ninguém vai me impedir!

— Você é teimosa demais para seu próprio bem. — A voz do avô soou do vazio.

— E eu receio que tenha herdado isso do meu avô! — Kylie vociferou, voltando a olhar para Derek e Burnett.

— Venha comigo, Kylie — a tia pediu, segurando firme a mão da garota.

— Não! — Kylie repetiu, e viu quando Burnett se aproximou, parando ao lado de Derek, só a alguns metros de Kylie. Ela queria correr até ele e atirar-se em seus braços.

— A pizza na casa principal ainda estava quente — disse Burnett. — Você tem certeza de que ela está aqui?

— Tenho — respondeu Derek. — E ela está chateada com algo, também.

Derek não podia vê-la nem ouvi-la, mas ainda era capaz de senti-la, Kylie pensou. Aquilo não era estranho?

A tia começou a acariciar a mão de Kylie, como se o toque suave fosse convencê-la. Mas Kylie não estava disposta a deixar que a convencessem de nada.

— Por favor, deixe-me ir — ela disse à tia. Mas esta segurou.

— Ela está em perigo? — Burnett rosnou.

Derek fechou os olhos como se estivesse tentando tocar suas emoções internamente. Quando os abriu, olhou para Burnett.

— Eu acho que não — Derek respondeu. — Ela está frustrada e eu sinto... solidão. E... ela está sentindo... alguma coisa... algo como se estivesse dividida, sem saber a quem ser leal.

Lágrimas brotaram dos olhos de Kylie. Derek sempre acertava quando lia suas emoções. Ela sabia que o avô e a tia se preocupavam com ela, sabia que só queriam o melhor para ela, mas como podia continuar invisível para Burnett e Derek? E por que sentia que seria desleal ao avô se deixasse que a vissem?

Ela tinha tentado jogar pelas regras deles, isso ninguém podia negar. Mas agora já bastava. Burnett olhou em volta e Kylie podia jurar que ele havia olhado diretamente para ela.

— Há outros aqui?

— Não sei ao certo — disse Derek. — Eu só posso sentir Kylie porque... — Ele não terminou a frase, mas ela sabia a resposta. Ele podia senti-la tão bem porque a amava.

Burnett ficou mais ereto.

— Senhor Summers, eu preciso falar com o senhor. Agora!

— Como sabe que ele está aqui? — perguntou Derek.

— Se Kylie está aqui, ele está por perto. — Burnett olhava para os lados. — Mostre-se!

Kylie ouviu o avô ficar ao seu lado.

— Você pertence a nós, filha. Basta deixá-los ir embora — disse o avô.

Seu ombro invisível roçou no dela. Mesmo que ela estivesse zangada com ele, o toque e o tom de sua voz a fizeram se lembrar de Daniel. Os laços que ligavam um ao outro não podiam ser negados.

— Não posso — disse Kylie.

— Deixe-os ir embora e depois falamos sobre isso de maneira racional — o avô sugeriu, e ela podia ouvir em sua voz que ele tentava moderar o temperamento.

— Eu estou sendo racional — disse ela. A tia apertou ainda mais a mão de Kylie e ela teve que se conter para não puxá-la.

— Não, você não está — discordou o avô.

De repente, o humor de Kylie azedou. Talvez ele realmente não tivesse mentido para ela quando disse que a UPF estava ali, mas sem dúvida tinha planejado afastá-la para que ela não soubesse quem tinha chegado. Desde quando ele achava que podia decidir quem ela podia ou não podia ver?

A resposta veio tão rápido quanto a pergunta que brotou em sua mente. Desde que cheguei aqui. Ela não tinha deixado de reparar em quanto a sua ligação com o mundo exterior tinha sido limitada desde a sua chegada. Sem telefone. Sem computador. E não era só ela. O estilo de vida camaleão incentivava o isolamento.

— Não. — Ela tocou a mão da tia. — Solte-me. — Ela falou lentamente, mas num tom que deixava claro que ela estava falando sério.

— Faça o que ela pede — disse o avô, derrotado.

Num piscar de olhos sua imagem começou a aparecer diante de seus olhos. Não era como um fantasma se materializando. De alguma forma era diferente. Como se o ar se partisse e ela fosse puxada de volta para o mundo.

A tia soltou o pulso de Kylie e ela sentiu um leve formigamento nos pés. Então olhou para baixo e viu seus pés e pernas tornando-se visíveis.

— Uau! — exclamou Derek.

Erguendo o rosto, Kylie viu-o olhando para ela e lutou contra o impulso de se lançar em seus braços. Olhando Burnett, ela viu a surpresa transparecendo em seus olhos.

Seu olhar encontrou brevemente o dela; em seguida, ele concentrou a atenção no avô, que estava parado protetoramente ao seu lado.

— Por que veio aqui? — perguntou o avô, o tom sombrio e ameaçador. Imediatamente, ela soube que a postura severa dele era para protegê-la.

— A vida de Kylie está em perigo e, se eu consegui encontrá-los, o pilantra que está atrás dela também conseguirá.

— Não é esse tal pilantra que eu mais temo — disse o avô, deixando pouca dúvida de que ele considerava a UPF, bem como Burnett, a maior ameaça.

— O senhor está deixando o passado impedi-lo de enxergar a verdade — disse Burnett. — Sim, a UPF gostaria de fazer testes em Kylie, mas alguns de nós decidiram que não vão deixar que isso aconteça. No entanto, é Mario e sua gangue assassina que está tentando pegá-la.

— Eu protegerei os meus — disse o avô, os ombros largos se enrijecendo.

— Como? Ficando invisível? O senhor não sabe que Kylie já foi mantida como refém por esse homem? E ela descobriu que Mario é um camaleão, assim como o senhor, o que significa que ele conhece esse truque de vocês. E se o conhece, isso faz com que todos vocês fiquem mais vulneráveis a ele.

— Eu sei disso — disse o avô, na defensiva.

— Então o senhor deveria estar com medo. Mario não passou os últimos cinquenta anos se escondendo como o senhor e seus amigos, viajando de cidade em cidade. Ele está matando inocentes. Ele tem poderes que vocês têm e os usa para matar pessoas. Até o próprio neto morreu pelas mãos dele na frente de Kylie, porque o garoto estava tentando defender sua neta. Se Mario sacrifica alguém do seu próprio sangue, eu acho que nada vai impedi-lo de matar sua própria espécie.

— Espere aí! — exclamou Kylie, tentando se colocar a par da situação. — Como você sabe que Mario está de volta?

Burnett olhou de relance para Kylie.

— Ele foi localizado.

— Localizado por quem? — o avô perguntou, a ironia evidente em seu tom. — Pela UPF? Como poderíamos acreditar neles?

— Eu vejo que o senhor tem suas reservas — disse Burnett, as palavras deslizando dos lábios franzidos, impregnadas do que parecia raiva. — Mas precisa entender...

— Como você se atreve a pedir que eu entenda? — O rosto do avô ficou vermelho de raiva. — O que eu entendo é que você e a sua laia mataram a minha mulher. Por causa de vocês, eu nunca conheci meu filho. O que eu entendo... — ele bateu no peito com o punho — é que agora vocês querem fazer o mesmo com a minha neta!

Kylie viu Burnett tentando manter o controle, mas ele não conseguiu esconder a raiva que brilhava em seus olhos. Ela tinha de intervir, mas como? Infelizmente, Kylie não teve tempo para pensar num plano. O avô deu um passo em direção a Burnett.

— Parem! — Kylie tentou se colocar entre os dois homens. Mas era tarde demais.

Ninguém parou.

O avô levou o punho para trás e Burnett levou um soco bem no queixo.

Embora o avô não fosse tão jovem quanto o vampiro, não lhe faltava força, e Burnett se estatelou no chão. Um som de pura fúria partiu de alguém, e Kylie presumiu que fosse de Burnett. Num segundo, o avô estava em cima do vampiro e a briga continuava.

Derek avançou, mas dois camaleões apareceram do nada e o agarraram pelos braços.

Como as coisas tinham desandado com tanta rapidez?


Capítulo Três

— Parem com isso! — Kylie sentiu que seu instinto de proteção começava a entrar em ação; a familiar sensação efervescente percorria seu corpo, mas ela não tinha ideia de onde aplicar sua força. Dividida, sem saber a quem ser leal. As palavras de Derek ecoaram em sua cabeça. Os camaleões eram a sua espécie. O avô era seu sangue. No entanto, Burnett e Derek eram... Eles eram sua família, também!

Sem aviso, outra figura apareceu e agarrou o avô por trás, afastando-o de Burnett com violência. O avô conseguiu ficar em pé e virou-se de frente para o recém-chegado.

Sentindo-se forçada a agir, mesmo antes de pensar no que estava fazendo, ela se aproximou, agarrou o mais novo membro da briga pela camiseta e atirou-o para bem longe do avô. A figura impotente voou cerca de dez metros no ar e caiu com estrondo no chão. Nesse momento, seus olhos azuis encontraram os dela e Kylie percebeu quem ela tinha atirado no ar.

Lucas.

Então, ele tinha vindo.

A lembrança do garoto beijando a noiva veio à tona em sua mente e ecoou dolorosamente em seu coração. E por um milésimo de segundo, ela desejou tê-lo atirado duas vezes mais longe.

Kylie se virou, ofegante, e seu olhar se encontrou com o de Derek, ainda se debatendo entre os dois camaleões que o seguravam.

— Larguem ele! — ela gritou para os homens. Viu que eram membros do grupo do avô, mas isso não importava. Ela não deixaria que machucassem Derek.

Suas palavras não tinham deixado completamente seus lábios, quando de repente os sujeitos que seguravam Derek se estatelaram no chão como moscas mortas. Derek olhou zangado para os seus corpos e ficou ereto, quase com um sentimento de orgulho pelo que tinha feito.

A visão dos corpos imóveis no chão provocou uma onda de pânico. O que Derek tinha feito? Ela queria que eles libertassem Derek, mas não queria... Ela então se lembrou da capacidade do fae para nocautear mentalmente as pessoas, mas deixando-as praticamente ilesas. Ou pelo menos era o que ela esperava.

Voltando-se para a sua direita, ela se recusou a olhar para Lucas, mas ouviu-o se levantar e pressentiu seu olhar sobre ela. E o sentiu implorando por um olhar apenas. Ele poderia implorar quanto quisesse; ela não estava disposta a ceder.

No entanto, menos de duas semanas atrás, ela teria dado seu coração a ele.

Mas quem ela queria enganar? Ela já havia dado seu coração a ele! Por isso estava sendo tão difícil.

Piscando, ela voltou a se concentrar no avô, que parecia preparado para atacar Burnett novamente.

O vampiro se levantou, o sangue escorrendo dos lábios. Seu rosto e linguagem corporal expressavam ferocidade; ele parecia alguém prestes a pagar na mesma moeda, mas uma das suas mãos se estendeu à frente, sugerindo uma tentativa de paz. Graças a Deus alguém tinha demonstrado bom senso, pois com o seu coração partido repetindo a mesma ladainha dolorosa várias vezes em sua cabeça, ela não achava que estivesse completamente sob controle.

Quando o avô deu mais um passo à frente, Burnett falou:

— Nós dois não precisamos brigar. Vamos parar antes que alguém se machuque.

Kylie, percebendo que precisava reagir, correu para o lado do avô.

— Ele tem razão — disse Kylie. — Pare, por favor! — Ela colocou a mão em torno do braço do avô. O calor encheu seu peito. Depois atravessou o seu braço e chegou aos dedos. Em seguida ela o sentiu fluindo do seu toque diretamente para o ancião. Instintivamente, soube que havia passado a emoção de calma para ele. E isso, obviamente, estava funcionando, pois ele baixou a cabeça e respirou fundo, como se estivesse tentando se recompor. Com o queixo ainda abaixado, ele deve ter visto os homens que Derek havia nocauteado, porque correu até eles.

— Eles estão bem — disse Derek, afastando-se do avô de Kylie, como se temesse que o homem viesse a agredi-lo. Mas o avô não mostrava mais nenhum sinal de que pretendia agredir alguém.

Kylie se lembrou do toque calmante que aplicara nele. Será que ela tinha instintivamente se transformado em fae? Tinha que ser isso, não é?

Lucas deu um passo à frente; não que ela tivesse olhado diretamente para ele, mas com a visão periférica observava seus movimentos. Tentou sentir algumas das emoções serenas que acabara de transmitir ao avô. Mas não funcionou. A dor da traição de Lucas tomou conta do seu coração, toldando seu julgamento e dando um nó em sua garganta.

— Todos nos deem licença — falou o avô. — Com exceção de Kylie e do senhor Burnett James.

— Para o senhor poder atacá-lo de novo? — Lucas perguntou, o tom duro, irado.

E, no entanto, ela poderia jurar que havia um toque de arrependimento na voz dele, também. Imaginou sua expressão, seus olhos cheios de remorso, mas mesmo assim não olhou para Lucas.

— Façam o que ele disse — Burnett ordenou, parecendo perceber, como ela, que o avô tinha recuperado a razão.

As pessoas começaram a se afastar. Kylie sentiu Lucas mover-se novamente, mas seus passos pareceram se demorar um pouco mais quando ele passou atrás dela. Seu cheiro encheu o ar que ela respirava e uma pergunta sussurrada chegou aos seus ouvidos.

— Você me odeia tanto que não consegue sequer olhar para mim?

Se ao menos ela pudesse odiá-lo, Kylie pensou.

Então ele continuou num tom de voz baixo, que só ela podia ouvir.

— Eu nunca me importei com ela. Só com você. — O som de seus passos se afastando soou como os últimos compassos de uma música triste.

Fisicamente ele tinha se afastado, mas suas palavras continuavam pairando no ar. Oprimiam Kylie com onda após onda de emoção. Ela sabia que Lucas tinha falado a verdade — sabia porque, sendo ainda fae, ela captava seus sentimentos; sentia-os se infiltrando em sua pele, deslizando para o seu coração e preenchendo-o a ponto de causar dor. Mas saber que ele falava a verdade não mudava nada.

Se ele tinha ou não a intenção de magoá-la, isso não mudava o fato de que a magoara. Como podia não ter lhe ocorrido que ela ficaria arrasada ao saber que ele estava comprometido com outra pessoa? Será que ele não via como ela ficara magoada ao descobrir que, durante todos os meses em que estiveram juntos, ele vinha se encontrando com aquela garota e pelo menos fingido se importar com ela?

Logo em seguida, Kylie ouviu os passos de outra pessoa movendo-se atrás dela. Então sentiu o leve toque de dedos roçando suas omoplatas. O toque lento e macio não pretendia seduzir nem chamar a atenção. Só queria acalmar.

O toque quente e tranquilizador não deixava dúvidas acerca da identidade da pessoa: Derek.

A dor em seu peito diminuiu e ela piscou para se livrar das lágrimas que começavam a se acumular em seus olhos.

Tentando recuperar o controle de suas emoções rebeldes, Kylie ficou parada ali, de olhos fechados, concentrando-se na sensação do sol em sua pele e da brisa em sua face.

— Kylie? — A voz de Burnett obrigou-a a abrir os olhos.

O avô e Burnett estavam na frente dela. A preocupação escurecia os olhos de ambos.

— Você está bem? — perguntou o avô.

— Estou ótima. — Ela abriu um sorriso que certamente não convenceu ninguém.

— Então venha — disse o avô. — Nós precisamos conversar. Em casa e diante de um copo de chá gelado.

Enquanto ela os acompanhava, viu Burnett lhe lançar um rápido olhar, dando a entender que tinha percebido sua mentira. Ela não estava ótima. Não estava nem mesmo bem. Então ela viu algo mais no olhar do vampiro. Ou ela tinha lido suas emoções? Medo. Medo de revelar alguma coisa, como se estivesse preocupado com a possibilidade de ela não gostar do que ele tinha a dizer.

Mal sabia ele que Kylie não gostava de nada do que andavam lhe dizendo nos últimos tempos. Então, no mesmo instante ela percebeu que estava pensando apenas em si mesma. Egoisticamente, estava focada apenas em sua própria dor. Havia uma razão para Burnett estar ali e talvez não fosse apenas por causa dela.

Fazendo uma parada repentina, ela pegou o vampiro pelo cotovelo.

— Estão todos bem? O que... o que aconteceu?

Cinco minutos depois, Kylie estava sentada à mesa da sala de jantar e esperava a tia lhes servir chá gelado antes de começarem a conversa. Ela só rezava para que não continuassem brigando, como tinham feito lá fora. A tensão entre Burnett e o avô lentamente voltou a aumentar. Kylie, porém, já estava no limite. Era melhor que alguém começasse a falar ou ela iria surtar. E “alguém” era uma referência a Burnett.

Ele tinha evitado responder à pergunta dela até chegarem a algum lugar... onde pudessem conversar. Isso basicamente colocou-a em alerta máximo, convencendo-a de que estava certa. Mario não era a única razão para ele estar ali. Alguém não estava bem.

No caminho para casa, ela quase tinha enlouquecido, imaginando o pior. Agora, sentada ali, com a pizza fria no centro da mesa, lutava contra a sensação de náusea, enquanto diferentes versões do “pior” oprimiam seu coração. Ela sabia que Derek e Lucas estavam bem. E, sim, ela sabia que não devia se preocupar com Lucas, mas ainda assim se preocupava.

Holiday tinha que estar bem, do contrário Burnett não estaria ali agora. Ele a amava demais para não ficar fisicamente arrasado caso algo tivesse acontecido a ela. Isso só deixava uma alternativa...

Seus pensamentos imediatamente se desviaram para suas duas amigas mais próximas — amigas com quem o avô insistira para que ela não falasse durante algum tempo. Mas como ele fora menos rígido com relação às suas conversas com Holiday, ela tinha tentado aceitar isso. Agora... se algo tivesse acontecido a elas... Ah, Deus! Sem saber o que pensar, as lágrimas começaram a arder em seus olhos.

A mente de Kylie voltou-se primeiro para Della. A vampira teimosa estava numa missão para a UPF. Será que alguma coisa tinha dado errado? Será que Della estava bem?

Kylie lembrou-se do dia em que dissera a Della que não gostava de vê-la trabalhar para a UPF, mas, quando Della lhe perguntou se queria que ela desistisse de ajudá-los, Kylie tinha dito que não. Ela sabia quanto Della queria trabalhar para a agência.

Mas agora... se algo tivesse acontecido a Della, Kylie iria se arrepender para sempre daquela resposta.

A preocupação minava a paciência de Kylie.

— É Della? — ela finalmente falou, quando o copo de chá foi deixado na sua frente e a tia saiu da sala. — Aconteceu alguma coisa com ela?

Burnett olhou para Kylie.

— Não, Della está bem... até onde eu sei. Ela ainda está em missão.

— Então quem... o que aconteceu?

Burnett segurou o vidro frio na palma da mão, mas não tomou nenhum gole do chá.

Se não fosse sangue, ele raramente bebia alguma coisa, a não ser o café forte que ela o vira tomar certas manhãs.

— Depois que Mario foi visto em Fallen, ocorreu um incidente. Não temos certeza se tem alguma coisa a ver com isso.

— Alguém se machucou? — As palavras deixaram um gosto amargo em seus lábios, pois ela de algum modo sabia que alguém não tinha saído ileso.

Ele girou o copo nas mãos duas vezes antes de responder.

— Helen foi atacada.

Kylie prendeu a respiração. Helen, meio fae, era a pessoa mais tímida e dócil de Shadow Falls. Quem diabos iria querer machucá-la? A resposta lhe ocorreu como um eco indesejado. Mario.

— Ela está... bem? — A palavra “viva” permaneceu em seus lábios, mas ela temeu pronunciá-la porque, caramba!, teria doído demais.

— Sim — ele respondeu. — Ela vai ficar bem. E nem mesmo sabemos se isso tem alguma ligação com Mario.

— Então esse Mario não estava procurando Kylie — concluiu o avô.

Ela olhou para o avô e disse o óbvio.

— Burnett não estaria aqui se não suspeitasse disso.

Burnett relutantemente concordou.

— Nós suspeitamos disso. — Ele olhou para Kylie. — Mas não há realmente nada que comprove. Ela foi atacada por trás. Não consegue se lembrar do que aconteceu.

— Está muito ferida? — Kylie perguntou, rezando para que Helen não ficasse com cicatrizes, físicas ou emocionais.

— Ela é mais forte do que qualquer um de nós imaginava. — Ele hesitou. — Os ferimentos foram graves, mas não fatais. Como você pode imaginar, Jonathon não sai do lado dela. Os pais dela estão no hospital e passaram por alguns momentos difíceis. Aparentemente, Helen não contou a eles sobre o seu novo amor.

Kylie imaginou Jonathon, o vampiro alto, magro e cheio de piercings, segurando a mão de Helen diante dos pais da garota.

— Posso imaginar que ele também esteja para lá de chateado e queira se vingar.

— Vejo que você conhece Jonathon muito bem. — Um levíssimo indício de sorriso passou pelos lábios de Burnett. Mas o sorriso não se demorou ali. — Pusemos guardas no hospital, apenas para o caso de o agressor voltar.

— Devo ir até lá? — perguntou Kylie.

— Não — disseram Burnett e o avô ao mesmo tempo.

Burnett continuou.

— Se foi Mario, isso poderia ser uma estratégia para fazê-la ir até o hospital.

O pensamento de que ela e mais ninguém fosse a razão de Helen ter sido atacada fez Kylie sentir tristeza. Então a raiva brotou e encontrou o seu próprio espaço. Ela estava farta de ver pessoas sofrendo na mão de Mario por causa dela! Mas como poderia detê-lo? Essa era a pergunta crucial, e Kylie concluiu que ela precisaria ser respondida. Melhor mais cedo do que mais tarde.

Burnett endireitou-se na cadeira e voltou a atenção para o avô de Kylie.

— Foi depois do ataque a Helen que fiquei preocupado com a segurança de Kylie. Imaginei que, se eu conseguisse encontrá-la, ele com certeza também conseguiria. Acho que Kylie estaria mais segura se voltasse para o acampamento.

— E eu discordo — disse o avô.

— O senhor discorda? — Burnett sibilou a pergunta. — Mario deixou claro: ou Kylie se junta ao seu grupo de camaleões ou ele tem planos para matá-la. Ele se sente ameaçado pelo poder que ela tem como protetora.

— Mais uma vez repito que eu sei disso — o avô insistiu. — Você não é o único em quem Kylie confia. Mas se esse ataque contra a outra garota foi para fazer com que Kylie aparecesse, então isso significa que ele não sabe onde ela está.

— Mas por quanto tempo? — perguntou Burnett. — Mario não é alguém que desista facilmente.

— Talvez, mas se ele já conseguiu entrar no acampamento para chegar até essa menina, como você quer me fazer acreditar que não poderia fazer o mesmo para pegar Kylie?

— Mas... — Kylie falou, porém o olhar direto de Burnett pareceu pedir que ela o deixasse resolver aquilo sozinho. Ela fechou a boca, embora com certa irritação.

— Eu entendo as suas preocupações — disse Burnett. — No entanto, o ataque não aconteceu no acampamento. — Ele girou mais uma vez o copo de chá nas mãos e fitou o líquido cor de âmbar, como se não soubesse se deveria bebê-lo ou não. Então ergueu o olhar. — Outro fator a considerar é que temos mais gente para ajudar a combater Mario e seus seguidores. E, embora eu saiba que essa ideia provavelmente vai enfurecer o senhor, eu também tenho a ajuda da UPF. Com o escritório em Fallen, perto do acampamento, posso ter uma centena de pessoas treinadas lá em questão de minutos.

O avô fez uma careta.

— Você está certo, essa ideia me enfurece. — Ele fez uma pausa e Kylie o viu rangendo os dentes antes de falar novamente. — Devo dizer que a única razão pela qual eu me sento à mesa com você é porque a minha neta o tem em alta conta. Na ausência do pai e na situação familiar em que ela se encontrava, você, em muitos aspectos, assumiu o papel de pai para ela.

Burnett passou o dedo sobre as gotículas condensadas do seu copo de chá, quase como se se sentisse desconfortável ao saber quanto Kylie o considerava.

— Peço a Deus que você mereça o respeito dela. — O avô suspirou novamente. — Dito isso, sua lógica me confunde. Você afirma que está protegendo minha neta da UPF e ainda assim iria chamá-los para ajudar a protegê-la. Como isso é possível?

— Estou ajudando a impedir que eles a submetam a testes simplesmente porque não tenho certeza de que esses testes sejam totalmente inofensivos. Acredito que a ânsia da UPF por encontrar respostas a impeça de levar em conta os interesses de Kylie. Mas, por favor, não considere isso uma afirmação de que acho que eles são capazes de fazer o que fizeram com outros no passado. A UPF não é perfeita, senhor Summers, nenhuma organização é nem nunca será, mas ela não é a mesma organização daquela época.

O silêncio encheu a sala. A tensão pairava espessa no ar.

— Deixe-me levar Kylie de volta a Shadow Falls, onde eu acredito que ela estará mais segura — Burnett continuou. — Vou ter guardas de prontidão, esperando Mario dar a sua próxima cartada. Quando ele fizer isso, estaremos prontos. Nós vamos pegá-lo e acabar com isso de uma vez por todas.

— E nós podemos fazer o mesmo — acrescentou o avô, o tom de voz firme novamente.

A carranca de Burnett se aprofundou.

— Olhe nos meus olhos e me diga com franqueza se acredita que o senhor e o seu pessoal são capazes de lidar com isso.

O avô entrelaçou os dedos — com força — e colocou as mãos fechadas sobre a mesa. Então olhou para as mãos como se refletisse sobre as palavras de Burnett.

Quando o avô levantou o olhar, encontrou os olhos de Kylie, e em seguida voltou o cenho carregado para Burnett.

— Eu não concordo com o seu plano, nem com a sua avaliação sobre a minha capacidade ou a do meu pessoal para proteger um dos nossos. No entanto, posso estar apegado aos meus preconceitos do passado. Preconceitos que, estou certo, farão parte de mim até a morte.

Ele limpou a garganta e soltou um suspiro.

— Contudo, uma coisa a minha neta deixou clara desde que chegou aqui: ela se considera dona do próprio nariz. Então, embora eu espere que ela ouça o meu conselho, estou consciente de que a decisão será dela. Perdi muitos familiares nesta vida e me importo muito com ela para afugentá-la tentando prendê-la demais.

Os olhos de Kylie encheram-se de lágrimas novamente. Ela estendeu o braço e tocou as mãos do avô. Ele virou a palma da mão para cima e segurou a mão dela. Seus olhares se encontraram.

— Fique aqui, Kylie. Fique e continue a aprender sobre quem você é e sobre o lugar a que pertence. — O toque do avô, tão parecido com o do pai, aqueceu seu corpo.

Uma parte dela queria ceder. Mas a que preço?


Capítulo Quatro

Antes que Kylie dissesse alguma coisa, ela viu na expressão do avô que ele já sabia qual seria a decisão dela. E viu a dor que estava lhe causando. Ela a sentia também. A dor do avô.

— O senhor não vai me perder. O fato de eu não morar aqui não vai mudar nada. Sempre vou ser sua neta. Mas acho que Burnett tem razão. Eu preciso voltar. — Essa era, ela pensou, a única escolha que poderia fazer.

Shadow Falls era a sua casa, mas essa era apenas parte da razão que a levara a tomar a decisão. No fundo, ela sabia que Burnett estava certo. Por mais talentosos que fossem seu avô e seu complexo de camaleões, eles tinham passado a maior parte da vida evitando o confronto, e não se preparando para isso. Eles não eram páreo para Mario e sua gangue assassina.

O problema era que Kylie não tinha certeza se Shadow Falls seria páreo para Mario. E se fosse, quantos mais seriam feridos como Helen, ou pior, mortos?! Aquilo já tinha acontecido antes.

Enquanto ela acompanhava os passos de Burnett até o portão da frente, eles permaneceram em silêncio.

A noite já caía. Parte do céu, tingido com tons de rosa, insinuava o pôr do sol. Quando chegaram ao portão, Burnett olhou para ela.

— Mais tarde telefono ao seu avô a fim de combinarmos um horário para eu vir buscá-la amanhã.

Kylie concordou com a cabeça; ela tinha insistido para que ele lhe desse tempo para se despedir do avô. Mas agora seu coração não queria ver Burnett ir embora. Eles não tinham começado a conversar de fato. Os últimos quinze minutos tinham se passado com o avô fazendo perguntas sobre como Burnett os encontrara ali. O vampiro explicou que tinha sido através do escritório imobiliário. Quando o avô vendera sua casa, Burnett conseguiu encontrar o corretor que realizou a venda e, por meio dos registros de vendas, descobrira outra propriedade do seu avô.

Agora, com o adeus em seus lábios, ela não se sentia pronta.

— Você jura que Helen está realmente bem?

— É como eu disse. Ela vai se recuperar.

— E a missão de Della vai indo bem? Ela não está em perigo?

— Da última vez que nos comunicamos, ela confirmou que está tudo bem.

Kylie assentiu.

— E Holiday, como vai?

— Ela está preocupada. Mas ela vive preocupada com vocês, campistas. É seu estado natural de ser.

— Mas as coisas entre vocês dois estão... bem?

Ele sorriu.

— Sim. Muito bem.

Os sorrisos de Burnett eram poucos, por isso ela pôde deduzir quanto o relacionamento havia progredido.

— E Miranda? — perguntou Kylie.

— Solitária — ele disse. — Com as suas duas colegas de alojamento fora, ela está se sentindo um pouco deslocada. Ela, assim como muitos outros, vai ficar feliz em saber que você está voltando.

— Certo. Sem ninguém com padrões mutantes andando por ali, acho que o dia a dia fica meio entediante.

Burnett deu de ombros.

— Ficaria espantada se soubesse quantas pessoas perguntaram de você. Você não é a aberração que imagina ser, Kylie.

— Sinto falta de todos, também — ela admitiu. — Posso dar um abraço de despedida?

Ele arqueou uma sobrancelha em sinal de desaprovação, e Kylie soube imediatamente por quê. Burnett não era o tipo de pessoa que eximia os outros das suas responsabilidades.

— Eu não acho que você mereça um abraço de despedida — ele disse, lembrando a Kylie que ela não tinha se despedido dele ao sair do acampamento.

— Eu estava errada — disse ela, aceitando que merecia o castigo. — Acontece que eu sabia que você iria discutir comigo. Teria tornado a minha partida ainda mais difícil.

— Eu teria argumentado. Teria insistido em dizer que não era a melhor atitude a tomar — ele disse. — E eu teria razão.

— Talvez não toda a razão. Eu aprendi algumas coisas. Além disso, ele é meu avô e ela é minha tia-avó. Passar um tempo aqui não foi totalmente errado.

— Entendo a sua necessidade de aprender sobre si mesma e, concordo, há um momento para se reunir com a família, mas não quando sua vida está em perigo.

Kylie olhou para ele.

— Então o bem-estar de uma pessoa é mais importante do que... a família. Mas Holiday não é a sua família? — Ela sabia que o pegara.

Ele nem sequer tentou dar alguma desculpa boba.

— Dou o braço a torcer.

— Uau, isso é uma raridade! — Ela sorriu.

— Bem, pode se vangloriar — disse Burnett. — Mas, como sempre digo, você conhecia a minha fraqueza e usou-a contra mim.

— Amar alguém não é fraqueza — disse Kylie. E então a preocupação ofuscou a leveza do momento. — Você tem certeza de que foi Mario quem atacou Helen?

— Tanta certeza que estou aqui agora — ele disse. — E vou colocar guardas vigiando este lugar durante a noite. Mario já viu o seu poder, Kylie. Você ameaça a existência dele.

E, no entanto, Kylie se sentia impotente contra ele. Ela olhou para além do portão da frente e viu duas figuras. Duas figuras que ela reconheceu como Lucas e Derek. Eles estavam a uns bons quinze metros de distância um do outro, como se não estivessem de fato juntos.

Ou, como se... estivessem em vigília... Eles estariam de guarda? A ideia de que Lucas podia ser a pessoa convocada para vigiá-la, depois de magoá-la tão profundamente, enviou outra onda de dor ao seu peito.

— Lucas não — ela murmurou.

— Lucas não o quê? — Burnett perguntou.

Kylie se achou meio infantil por se sentir assim, e até mais por expressar esse sentimento, mas ela não queria pensar que Lucas estaria tão perto naquela noite. Ela teria que enfrentar sua proximidade pela manhã, quando voltasse para Shadow Falls, mas não naquela noite.

— Eu não quero Lucas me protegendo.

Burnett abriu a boca para dizer algo, mas em seguida fechou-a, como se pensasse melhor. Então, com a testa franzida, concordou com a cabeça.

Kylie ignorou o olhar de desaprovação e se aproximou para reivindicar o seu abraço.

O abraço de Burnett, mesmo com a temperatura fria do seu corpo de vampiro, enviou uma sensação de calor direto ao peito de Kylie. Saber que no dia seguinte ela iria para casa tornou a despedida mais fácil, mas saber que seria forçada a ficar na presença de Lucas tornava meio agridoce essa volta para casa.

Kylie começou a fazer o caminho de volta para a sede do complexo, mas à medida que se aproximava ficou preocupada com a conversa que sem dúvida ocorreria lá dentro. Precisando de alguns minutos para encontrar uma maneira de ajudar o avô e a tia a entenderem sua decisão, ela passou reto pela casa e seguiu para o gazebo. O céu brilhava num tom de rosa forte e o sol poente banhava a cena à sua frente com tons dourados. Enquanto andava entre os carvalhos, seu olhar foi atraído para o musgo espanhol que balançava com a leve brisa.

Ela se perguntou se o avô se sentiria obrigado a se mudar, agora que Burnett tinha provado quanto era fácil encontrá-lo. Ela esperava que não. Por mais descontente que tivesse se sentido ali aquela semana, a beleza da propriedade não tinha lhe passado despercebida. Os ecos da natureza pareciam anunciar a chegada do anoitecer — um pássaro, alguns grilos.

Então o crepúsculo pareceu prender a respiração e a tranquilidade do momento foi interrompida pelo barulho de um galho estalando. O coração de Kylie parou quando seu olhar se voltou para a orla das árvores. Por que o ligeiro ruído a sobressaltou, ela não sabia. Poderia ter sido apenas uma criatura inocente voltando para casa antes de escurecer.

No entanto, o barulho não parecia inocente.

De repente, uma sombra apareceu e depois desapareceu entre as árvores. Kylie não podia explicar por quê, mas, em vez de correr do barulho, ela se sentiu compelida a correr na direção dele.

Perto das árvores, ela viu a figura novamente, uma silhueta feminina, entrando e saindo das sombras. Por um milésimo de segundo, Kylie achou que a reconhecera.

Ela fez uma parada abrupta.

Como era possível? Como ela poderia estar ali? O que ela estaria fazendo ali?

Kylie a seguiu. A garota tinha que ter seguido Lucas. Por que outra razão sua noiva estaria ali?

Sem muita certeza se queria enfrentá-la, ela se virou para se afastar. Tinha dado apenas alguns passos quando ouviu os pés de alguém pisando a terra macia, acompanhando os passos de Kylie.

— O que você quer? — Kylie falou com rispidez, sem olhar para a pessoa que agora movia-se ao seu lado.

— Falar com você — a pessoa respondeu. No entanto, havia alguma coisa errada com a voz. Não era o tom de voz floreado com o qual ela ouvira a moça prometer sua alma à pessoa que Kylie amava. Não era Monique.

Kylie parou e olhou para Jenny, a camaleoa de 17 anos de idade que fazia do complexo. Ela tinha cabelos escuros e a mesma altura de Monique. Será que Kylie a confundira com...?

— Era você?

— Era eu o quê? — perguntou Jenny.

Kylie olhou novamente para os traços de Jenny, um nariz reto, queixo quadrado e olhos verde-claros acinzentados, e lembrou-se da vaga sensação de que ela parecia familiar. Não era como se a conhecesse, mas como se ela se parecesse com alguém que ela conhecia.

— Era você... que estava na floresta?

— Acho... que sim. Eu estava vindo de casa.

Kylie teve um rápido vislumbre da pessoa que ela pensara ser Monique. Não tinha sido Jenny. Ou tinha?

— Você viu mais alguém?

— Não. Por quê? Havia mais alguém andando por aí?

Kylie olhou para a floresta.

— Provavelmente não — disse ela, mas sem estar completamente convencida. Por ser um lobisomem, Monique poderia ser muito silenciosa, se quisesse. Ou muito rápida ao fugir. Kylie voltou a andar, sua mente mais acelerada do que seus passos.

— Então... você se incomoda? — perguntou Jenny.

Perdida em seus pensamentos, Kylie olhou para a garota.

— Me incomodo de fazer o quê?

— De conversar — disse Jenny, apertando as mãos como se estivesse preocupada com alguma coisa.

— Eu... — Kylie olhou para trás, na direção da casa. — Eu preciso falar com meu avô e minha tia agora, mas por que você não vem comigo?

Kylie observou novamente a expressão preocupada de Jenny e achou estranho que a garota quisesse falar com ela. Jenny não tinha sido rude com Kylie durante sua estadia ali, mas também não tinha sido amigável.

— Algo errado?

— Ouvi dizer que você está indo embora. É verdade?

Kylie assentiu.

— Sim. Por quê?

Jenny mordeu o lábio inferior como se estivesse nervosa.

— Quando?

— Amanhã — respondeu Kylie.

Vozes vieram da casa do avô. Kylie olhou na direção da porta.

— Eu... tenho que ir.

Jenny correu para longe, apressada. Kylie voltou-se para a casa e percebeu que na varanda do avô estavam os outros quatro camaleões mais velhos, como se tivessem acabado de sair da casa para ir embora.

Kylie olhou para trás e tentou mais uma vez convencer a si mesma de que era Jenny e não Monique que ela tinha visto. Mas não estava totalmente convencida.

Enquanto se dirigia para a casa, os anciãos passaram por ela. Todos acenaram rapidamente com a cabeça e continuaram andando, mas Kylie sentiu a tensão se irradiando deles. De alguma forma, Kylie sentia que eles tinham conversado com o avô sobre ela. Embora estivesse aliviada com o fato de o avô ter pelo menos chegado a um certo nível de paz com Burnett, isso não significava que os outros anciãos o apoiavam. E isso, Kylie percebeu, poderia significar problemas. Se não para ela, pelo menos para o avô.

Kylie hesitou ao entrar na casa. Mesmo depois de treze dias morando ali, ela ainda se sentia no dever de bater. Não que a tia ou o avô não a fizessem se sentir bem-vinda, mas ela simplesmente sentia não pertencer àquele lugar. Talvez porque, no fundo, soubesse que não se adaptaria à comunidade dos camaleões. Ela pertencia a Shadow Falls. Lembrou-se de Burnett dizendo que a sua vinda tinha sido um erro. E mesmo que não parecesse muito certo, ela não estava preparada para chamar de erro.

As vozes vinham da sala de jantar e ela se dirigiu para lá. Quando entrou no corredor, as vozes pararam. Pararam rápido demais, como se soubessem que ela estava lá e não quisessem que ela ouvisse o que diziam. Kylie fez uma pausa no limiar da porta. A tia e o avô estavam sentados à mesa, olhando para ela. Kylie desejou saber a coisa certa a dizer. No entanto, uma parte dela sabia que não importava o que dissesse, ela iria magoá-los. Talvez Burnett estivesse certo. Vir tinha sido um erro. Se não por outra razão, pela dor que havia causado ao avô e à tia.

— Sinto muito se causei problemas. Lamento que...

— Não se preocupe, minha filha. Sente-se — disse a tia. — Você quer que eu esquente a sua pizza?

— Não, não estou com fome. — Kylie sentou-se e olhou para o avô.

— Os anciãos estão chateados com o que aconteceu? Estão chateados comigo ou com você?

O avô suspirou.

— Chateados, sim, mas não com uma pessoa em particular. Eles não gostam de mudanças, e ultimamente tem havido uma série de mudanças.

E, principalmente, por minha causa. Kylie mordeu o lábio.

— Uma pessoa uma vez me disse que é quando as coisas não mudam que devemos começar a nos preocupar.

— Eu aposto que essa pessoa não era um camaleão — disse o avô.

— Não — respondeu Kylie.

Ele acenou com a cabeça.

— Certo ou errado, temos uma tendência a gostar de nossas zonas de conforto.

— Existe algo que eu possa fazer para ajudar? — ela perguntou.

As rugas entre os olhos ficaram mais evidentes.

— Fique conosco e continue a aprender o que a sua herança significa — disse ele. — Você só arranhou a superfície do que há para aprender.

— Malcolm — disse a tia —, não ponha a menina numa situação difícil.

— Eu me preocupo que a situação fique realmente difícil quando ela voltar para Shadow Falls — ele disse.

— Eu fiz o máximo para agir da maneira certa, mas não posso ficar — confessou Kylie, sentindo a garganta apertar.

— Eu sinto muito. — Ele ergueu a mão. — Sua tia está certa, eu estou pressionando você e não deveria. Já dei a minha opinião. Mas tenho que dizer que vou sentir sua falta.

— E eu vou sentir a sua — disse Kylie. — Vocês vão ficar morando aqui?

Ele deu de ombros.

— Se os outros anciãos forem embora, vamos também.

— Porque eles não confiam em Burnett? — perguntou Kylie.

— Tenho certeza de que é por isso também — disse ele.

— Como vou entrar em contato com o senhor?

— Hayden Yates ainda está trabalhando na sua escola.

Hayden era o camaleão que o avô havia contratado para ficar de olho em Kylie. Por alguma razão, quando ela foi embora, tinha presumido que ele iria também.

— Ele ficou como professor?

O avô assentiu.

— Ele os convenceu de que você o enganou para que a levasse embora do acampamento. Eles ainda não sabem quem ele é, e precisa continuar disfarçado.

Kylie concordou com a cabeça, mas não podia deixar de achar suspeito. Burnett não era enganado com tanta facilidade.

— Na verdade, Hayden fala muito bem da direção da escola.

— Viu? — disse Kylie. — Na verdade, lá não é um lugar ruim.

* * *

Naquela noite, sem saber o horário em que Burnett viria buscá-la, Kylie fez as malas. Então se esticou na cama, coberta com os lençóis e o edredom mais macios que ela já tinha visto, e começou a rever as fotos do pai. Achava que estar com o avô faria com que sentisse menos falta do seu verdadeiro pai, mas não; parecia que estava acontecendo o contrário. Ver esse homem que parecia uma versão mais antiga do pai fazia com que ela sentisse ainda mais a falta de Daniel.

Por fim, depois de passar muito tempo desejando que as coisas fossem diferentes, ela ficou ali, olhando o teto. Preocupava-se com a possibilidade de sua partida magoar o avô. Preocupava-se com Della, e até um pouco com Miranda, sentindo-se abandonada pelas duas amigas. Preocupava-se com a mãe, na Inglaterra, provavelmente transando com um homem que lhe dava arrepios.

Ah, Deus, ela tinha que afastar bem rápido essa imagem da cabeça, ou ia pôr para fora o pouco de pizza que tinha comido.

Ela também estava preocupada porque ainda não sabia como enfrentar Lucas.

— Mas você não está preocupada comigo?

O frio chegou tão rápido que Kylie perdeu o fôlego quando o oxigênio gelado atingiu seus pulmões. Ela pegou o edredom e puxou-o até o queixo.

— Eu deveria estar preocupada com você? — perguntou Kylie, olhando para onde o fantasma estava. Seu cabelo pendia solto e ia quase até a cintura. Ela usava o mesmo vestido branco coberto de sangue.

E parecia... morta. Mais morta do que antes.

Kylie não entendia. Se um fantasma tinha a opção de parecer morto ou não tão morto, por que não escolhia sempre a segunda opção?

— Não, não se preocupe comigo. Eu já estou morta. Vê? Ela puxou a saia esticando-a e mostrou uma dúzia de cortes sangrentos no vestido branco. Era como se alguém a tivesse atacado com uma faca e não soubesse quando parar.

— Isso é terrível. — Kylie desviou o olhar por um segundo e depois voltou a fitar o fantasma. — Quem fez isso com você?

O fantasma não respondeu, só ficou olhando para os buracos no vestido.

— Na verdade, não é tão terrível. E para ser honesta, a pessoa com quem você deveria se preocupar é você mesma. Porque, se não começar a me ouvir, vai acabar morta. Assim como eu.

— Ouvir o quê? Você me dizendo para eu matar alguém? É isso que você quer? — Kylie perguntou, franzindo a testa.

— Sim. — Ela continuou a olhar para os buracos no vestido. — E não faça isso parecer uma coisa terrível. Tirar uma vida não é a pior coisa do mundo.

— Ok, eu estou curiosa. Quantas pessoas você matou?

O espírito olhou para cima como se estivesse considerando a questão. E parece que aquilo exigia um tempão. Como se ela realmente tivesse que contar.

— Você realmente fez isso, não fez? Você matou mais de uma pessoa?

— Mais de vinte, mas sei que estou me esquecendo de algumas. É que essas não contam muito.

— Quem você era? Um assassino de aluguel... uma assassina de aluguel?

— Não, bem, mais ou menos, eu acho. Eu não lucrava com o meu trabalho. Só cuidava do problema de outras pessoas. E dos meus próprios. — De repente apareceu sangue em suas mãos. Ela as ergueu e olhou para elas. O sangue escorria dos seus dedos. Parte dele caiu sobre o vestido já ensanguentado e algumas gotas escorreram para o tapete bege. O cheiro de ferrugem encheu a sala e fez Kylie sentir náuseas. Ela supôs que deveria estar feliz por não apreciar mais o cheiro de sangue.

— Você está tentando me levar para o inferno com você? É isso o que você quer? Ouvi falar que alguns maus espíritos presos no inferno fazem isso. Mas eu não vou para lá, e me recuso a ajudá-la a matar alguém, então pode desistir. Você entendeu? — Kylie fechou os olhos e tentou ter pensamentos positivos, da maneira que, segundo Holiday, poderia impedir um fantasma de assumir o controle... e levar você para lugares onde não queira ir.

Ela sentiu o refluxo da maré de frio, mas ouviu o espírito sussurrando em sua cabeça.

— Eu não quero que você vá para o inferno. Eu quero que você mande alguém para lá.

— Vá embora! Vá embora! Vá embora! — Kylie murmurou em voz alta e mentalmente. — Eu não vou matar ninguém para você. Não... Não... eu, não.

O frio foi embora e Kylie respirou fundo. Mas o estalo em sua janela a fez gritar de susto e saltar pelo menos três centímetros da cama.

Seu olhar se desviou para a janela, mas ela não viu nada.

Depois que o pânico inicial diminuiu, surgiu na sua mente a imagem do pássaro azul — o mesmo que ela tinha salvado da morte. Será que ele a seguira até ali?

Saindo da cama, ela se aproximou da janela, e com os pensamentos no fantasma saído do inferno ainda agitando a sua mente, puxou cautelosamente as cortinas rendadas brancas. De súbito, um rosto distorcido apareceu pressionado contra a vidraça.

Kylie gritou.


Capítulo Cinco

— Kylie? Você está bem? — A voz do avô soou na porta do quarto ao mesmo tempo que ela reconheceu o rosto na janela.

Jenny. A jovem camaleoa que falara com Kylie mais cedo e agira com tanto nervosismo. A mesma que Kylie pensou ser Monique.

O que ela estava fazendo na janela? O que poderia querer àquela hora da noite?

O olhar de Jenny disparou para a porta do quarto e ela balançou a cabeça.

O pânico transpareceu em seu rosto, fazendo seus olhos se arregalarem; sua expressão implorava que Kylie não dissesse ao avô que ela estava ali.

— Sim, eu estou bem. Acho que estava sonhando — Kylie mentiu, esperando que o avô não estivesse no padrão dos vampiros e fosse capaz de detectar a mentira por meio do seu batimento cardíaco. Olhando pela janela, ela viu o alívio nos olhos verdes da menina.

— Durma bem, então — disse o avô, por detrás da porta.

— Pode deixar — respondeu Kylie. Ela esperou até ouvir os passos se afastando pelo corredor e, em seguida, foi até a janela e abriu a vidraça.

Jenny pôs um dedo sobre os lábios e fez sinal para Kylie sair.

Antes de atender ao pedido de Jenny, Kylie colocou a cabeça para fora e olhou ao redor. Ela não tinha certeza do que estava procurando, só não queria ter nenhuma surpresa. A presença de Jenny já era surpresa suficiente.

Assim que ela começou a rastejar para fora da janela, Jenny a deteve e inclinou-se para dentro do quarto.

— Aquela é a sua mala pronta?

Kylie olhou para a mala sobre uma cadeira.

— Sim.

— Pegue-a — Jenny sussurrou de volta.

Kylie prendeu a respiração.

— Por quê?

— Eu tenho que tirar você daqui.

— Você o quê? Não! — Kylie balançou a cabeça. — Eu vou embora amanhã.

— Não, você não vai. Ou pelo menos não vai para onde acha que vai.

— O que você está dizendo? — Kylie perguntou, e parte dela queria fechar a janela na cara da garota, porque sabia instintivamente que a notícia que Jenny tinha não ia agradá-la nem um pouco.

Dez minutos depois, esgueirando-se pela parte de trás da propriedade do avô, com a velha mala marrom na mão, Kylie ainda não conseguia aceitar o que Jenny lhe havia dito.

— Não posso acreditar que meu avô faria isso.

— Eu disse a você, provavelmente essa não é a vontade dele. São os outros anciãos. Para ser sincera, seu avô é o mais tolerante de todos eles.

Kylie parou.

— Mas ele não ia prosseguir com isso. Não deixaria que me raptassem e me prendessem contra a vontade.

— Olhe, para ser sincera, nem sei se ele sabe. Eles podem estar fazendo isso pelas costas dele. Mas você e eu vimos os outros anciãos, lá na casa, falando com ele.

A raiva e a dúvida ficaram tão fortes dentro dela que lágrimas brotaram de seus olhos.

— Mas ir embora desse jeito... É tão errado! Eu deveria voltar e falar com ele.

— Não! Se você voltar, é quase certo que vão nos encontrar. Eu conheço o horário dos guardas e, se não nos apressarmos, eles vão pegar você fugindo.

Kylie respirou fundo. O aroma da floresta encheu seus pulmões e ela tentou raciocinar. A noite parecia se arrastar entre as árvores e o ar estava espesso.

— Por quê? Por que eles fariam isso?

— Não é óbvio? Você é uma protetora e pertence aos camaleões.

— Eu não pertenço a ninguém!

— Eu não quis dizer isso... Sei que você na verdade não pertence a ninguém. Mas é assim que eles se sentem. — Jenny se aproximou. — Eles estão errados, estão completamente errados acerca de muitas coisas! Por que você acha que estou fazendo isso?

Kylie olhou para Jenny e a pergunta da garota vibrou na sua cabeça.

— Por que você está fazendo isso? E não diga que é só porque acha que eles estão errados, ou porque você gosta de mim ou algo assim, porque você não trocou mais do que algumas palavras comigo. Minha intuição me diz que é mais do que isso e a minha intuição geralmente está certa.

Ela desviou o olhar, mas não antes de Kylie ver a culpa em seus olhos.

— Isso é algum tipo de armadilha? — Kylie começou a olhar ao redor.

— Não, não é uma armadilha! — afirmou Jenny.

Kylie sentiu convicção na voz de Jenny, mas ela não era um vampiro e não podia ter certeza se a menina estava mentindo ou não. Ela olhou para Jenny com firmeza.

— Ou você se explica agora ou eu vou dar meia-volta e procurar o meu avô.

— Explicar o quê? — Jenny perguntou, parecendo frustrada.

— Explique por que você está me ajudando se nem gosta de mim.

Ela bufou.

— Olha, eu não gosto de você porque Brandon gosta. Eu deveria me casar com ele e, embora fique furiosa de pensar que eles acham que podem me dizer por quem eu devo me apaixonar, ainda assim fiquei chateada quando vi que ele estava dando em cima de você.

— Se casar com ele? Você quer dizer que os mais velhos tentam arranjar casamentos?

— Eles tentam fazer tudo. São todos loucos. Bem, seu avô, nem tanto, mas... — Jenny passou a mão na calça jeans como se ficasse nervosa ao falar dos seus verdadeiros sentimentos. — Eles nos obrigam a ficar longe de tudo. Dizem que é porque não querem que as pessoas nos vejam até que a gente tenha habilidade para esconder os nossos padrões. Mas olhe para você. Você vivia no mundo normal e não foi morta nem escravizada.

— Escravizada?

— É, eles usam o medo para nos manter submissos. Para nos convencer a ficar aqui e não sair pelo mundo.

Kylie balançou a cabeça.

— Não ouvi nada a esse respeito. — Mas ela percebeu de repente quanto tinha ficado isolada desde que chegara. Sentia-se tão sobrecarregada que não tinha se dado conta disso.

— Eles tomam cuidado com o que dizem na sua frente. Mas você tem que acreditar em mim. Eles querem nos manter aqui. Para nos proteger, dizem, mas... às vezes eu acho que o que mais devemos temer é sermos sufocados por esse modo de vida. E se descobrirem que não concordamos com eles, vão fazer da nossa vida um inferno.

— O que me leva de volta à minha pergunta original — disse Kylie. — Se você tem tanto medo, por que está fazendo isso?

A garota desviou os olhos de novo.

— O que você não está me contando? — Kylie insistiu.

Jenny suspirou.

— É Hayden.

— Hayden Yates? — perguntou Kylie.

— Conversamos às vezes. Meus pais não sabem. Os mais velhos não sabem. E você não pode contar a ninguém.

Kylie fez as contas na cabeça, comparando a possível idade de Hayden com a de Jenny.

— Ele é velho demais para você.

Os olhos verdes de Jenny se arregalaram. Ela balançou a cabeça.

— Ele não é meu namorado. É meu irmão mais velho.

Kylie tentou avaliar essa nova informação.

— Então por que seus pais não querem que você fale com ele?

— Por que ele nos deixou. Quando um camaleão vai embora, tem que cortar todos os laços com a família para não nos expor.

— Mas meu avô mantém contato com Hayden — disse Kylie.

— Como eu disse, seu avô é o menor dos males aqui. Ele, na verdade, me deixa falar com o meu irmão às vezes. — Jenny fez uma careta. — Mas não temos tempo para ficar aqui conversando. Estou falando sério, se não formos agora, os guardas vão nos pegar. — O som de passos se aproximando, e bem rápido, ilustrou o alerta de Jenny.

— Droga! — ela exclamou. — Corra! Basta continuar indo para o sul e você vai chegar aos limites da propriedade. Se correr, vai chegar lá antes dos guardas.

— Mas...

— Vá! Eu prometi ao meu irmão que iria tirar você daqui!

A urgência na voz de Jenny fez Kylie começar a correr, mas ela só tinha avançado uns cem metros quando seu peito se contraiu com um mau pressentimento. Um mau pressentimento sobre deixar Jenny. Kylie sentia uma mudança sutil em seu corpo diante da menor ideia de que alguém poderia estar em perigo. Ela não ia deixar a menina, não até saber que ela não estava em perigo. Ela parou e começou a voltar.

— Droga! — Uma voz grave explodiu no escuro da floresta. Parecia uma voz familiar. — Me solta!

— Deixe ela em paz! — Jenny gritou. — Ela está voltando para o lugar a que pertence.

Os pés de Kylie batiam com mais força contra o chão enquanto ela corria para a orla das árvores. Ela não tinha parado completamente quando reconheceu a voz. Então viu Derek com Jenny, muito irritada, agarrada às costas dele, com as mãos sobre os olhos do garoto e as pernas em volta da sua cintura.

Derek puxou as mãos dos olhos, mas Jenny as apertou em torno do pescoço dele.

— Onde está Kylie? — ele resmungou, e virou-se, como se tentasse encontrá-la ao mesmo tempo que lutava para se livrar da sua agressora.

Kylie quase sorriu ao ver Jenny agarrada às costas de Derek. O sorriso desapareceu quando ela o viu fechar os olhos, como se fosse se concentrar. Ela sabia que ele estava prestes a fazer aquela coisa com a mente. Isso deixaria Jenny inconsciente.

— Pare! Eu estou aqui! — Kylie gritou.

— Você o conhece? — perguntou Jenny, com as pernas ainda agarradas à cintura de Derek.

— Sim. Eu o conheço. Saia de cima dele. — Kylie sugeriu, sem ter certeza de que Derek compreendia que Jenny não era uma ameaça.

Jenny escorregou para baixo e, em seguida, recuou rapidamente, como se agora que o momento de pânico tivesse acabado, ela sentisse medo. Derek virou-se e, pela expressão de Jenny, sem dúvida a encarou de cara feia.

Depois de apenas um segundo, sua raiva diminuiu. Os dois olhares se encontraram, nenhum deles parecendo feliz, mas avaliando um ao outro.

— Então... então é melhor irem embora, vocês dois. — Jenny acenou com os braços e rapidamente desviou o olhar de Derek. — Vão antes que os guardas encontrem vocês.

— O que está acontecendo? — Derek perguntou, e finalmente olhou de Jenny para Kylie. Ela viu o olhar dele se desviar para a mala em sua mão.

— Ela diz que os anciãos vão tentar me impedir de ir embora.

Kylie sentiu o aperto da traição ao dizer isso. Será que seu avô estava envolvido nisso?

— Mas Burnett disse que...

— Vocês não têm tempo para falar sobre isso! — repreendeu-os Jenny.

Derek olhou para Kylie, como se estivesse esperando uma explicação.

— Temos que ir — disse ela, e a tristeza vibrou dentro de si, ao pensar em partir dessa maneira. Sem saber se o avô a traíra ou não.

Ela olhou mais uma vez para Jenny.

— Obrigada.

Jenny lançou a Kylie um sorriso tímido e acenou com a cabeça antes que ela e Derek se afastassem.

Kylie manteve o ritmo dos passos de Derek, sabendo que ele não conseguiria acompanhar os dela. A mala parecia leve em sua mão firme, mas o sacolejar, para a frente e para trás, era incômodo.

— Eu poderia ter batido nela. Mas você sabe que eu não queria machucar aquela garota.

— Eu sei. — Kylie reprimiu um sorriso. Ah, os rapazes e seus egos...

Seus passos pareciam ecoar nas árvores e encher a escuridão.

Mas os ânimos de repente mudaram. Embora ela não conseguisse explicar, sua pele estava ultrassensível e seu sangue parecia correr mais rápido. Medo. Perigo. A sensação queimava dentro dela como um fogo lento, e o cheiro parecia encher o ar, causando um ardor na sua carne.

E pelo olhar rápido que Derek lhe lançou, Kylie sabia que não era a única a sentir. O ritmo dos seus passos aumentou de repente.

* * *

Eles estariam a cem metros do portão em menos de cinco minutos. Kylie poderia ter chegado lá na metade do tempo, mas Derek não. Quando se aproximaram, Kylie divisou o portão. Eles poderiam facilmente pular. Kylie estava prestes a dizer a Derek qual era o plano, quando de repente ela se lembrou. Só porque não podia ver os guardas não significava que eles não estivessem lá.

Ela agarrou o braço de Derek e puxou-o para trás de uma árvore.

— Espere! — ela sussurrou baixinho.

— Está tudo bem — ele disse, olhando para trás, além do tronco de carvalho.

— Não dá para ter certeza — disse ela. — Eles são camaleões.

O olhar dele disparou para a cerca, a testa franzida em perplexidade.

Ela percebeu o segundo exato em que ele se deu conta do que ela queria dizer.

— Como vamos saber se... eles estiverem invisíveis? — ele perguntou.

Kylie de repente recordou que, embora não pudesse ver ninguém quando estava invisível, ela podia ouvir.

— Deixe-me verificar uma coisa.

Ela fechou os olhos e se concentrou em desaparecer. Por um segundo, teve receio de que aquilo não fosse funcionar, mas logo em seguida sentiu o tipo estranho de formigamento em seus pés e depois nos joelhos.

Os olhos de Derek se arregalaram quando ela desapareceu. Assim que não conseguiu mais ver a si mesma, ela se concentrou em ouvir. Seu olhar vagou entre as árvores, tentando ver alguma coisa no escuro. Ao seu lado, podia ouvir a respiração de Derek. Ela olhou para ele, viu-o ainda olhando para ela, como se achasse seu desaparecimento um pouco demais. Em seguida, ela ouviu. Som de passos.

Merda.

Alguém estava se aproximando deles. Tinha que ser os guardas.

Em pânico, ela pensou no que poderia fazer. Eles podiam ouvi-la, estivesse invisível ou não. Mas pelo menos ela não podia ser vista.

Mas e Derek?

Lembrando-se de algo que tinha aprendido, ela desejou ficar visível novamente e, quando apareceu, Derek só olhou para ela ligeiramente surpreso.

Ela se inclinou e cochichou em seu ouvido.

— Eles estão por perto. — Ela pegou a mão de Derek e entrelaçou os dedos nos dele. Normalmente, Kylie não se preocuparia tanto com os guardas. Camaleões não eram conhecidos como bons lutadores, mas a sensação de medo que ainda eriçava seus pelos lhe dizia que ela não deveria arriscar. Não agora, quando estavam tão perto de escapar.

Ela inclinou-se para mais perto da orelha de Derek.

— Vou fazer você ficar invisível, junto comigo. Você tem que ficar muito quieto, porque eles não podem nos ver, mas podem nos ouvir. Entendeu?

— Espere aí. Você vai me deixar inv...?

Ela o interrompeu, pressionando um dedo sobre os lábios dele. Então, sem saber realmente se conseguiria fazer aquilo, fechou os olhos com força e não pensou em nada que não fosse desaparecer, levando Derek consigo.

Aos poucos, suas pernas começaram a se desvanecer, e então ela viu a mão de Derek começar a brilhar. Ela o ouviu ofegar de leve quando ele viu a mesma coisa. Não tinha ocorrido a ela até então que essa coisa toda de ficar invisível poderia não funcionar da mesma forma com outras espécies. E se aquilo fizesse mal a ele? Kylie quase largou a mão dele, mas ouviu a intuição e ela lhe dizia que estava tudo bem.

Santo Deus!, ela esperava que sua intuição não a deixasse na mão justo agora!

À medida que a sensação de formigamento subia lentamente pelo seu corpo, ela viu o braço dele desaparecer completamente. Então segurou firme o pulso de Derek e sentiu o polegar dele acariciar a parte de trás do seu braço. Quando ela mirou seus olhos, viu que o olhar dele estava fixo em sua boca. Ele se inclinou um pouco. Ah, Deus! Felizmente, antes que ele pressionasse os lábios contra os dela, ele tinha visualmente sumido. E ela também. Quando sentiu a respiração dele nos lábios, ela se afastou um pouco.

— Você pode me ouvir? — ela sussurrou, ainda pensando no beijo que quase aconteceu. Por que parecia tão errado? Ela não precisava ser leal a Lucas agora. Mas precisava ser fiel aos seus sentimentos, e o “quase beijo” não parecia certo. Talvez não totalmente errado, mas certo também não.

— Você está bem? — ela perguntou.

Ela ouviu sua resposta calma.

— Claro! Isso é demais!

É estranho como cada pessoa interpreta as situações de um jeito diferente. A primeira vez que aquilo tinha acontecido com Kylie, ela tinha ficado apavorada. Claro, ela não tinha ninguém ao seu lado, nem mesmo sabia que aquilo era possível.

— Não tire a mão da minha ou você vai ficar visível — ela sussurrou. Pelo menos era assim que a seu ver a coisa funcionava. Ah, ótimo! E se não fosse assim tão simples?

— Não me afastar de você é muito fácil — ele sussurrou, acariciando o pulso dela com o polegar novamente. — Eu nunca quis deixar você.

— Agora não é hora...

— Eu sei. — Um pouco de culpa soou na voz dele.

Kylie tentou acalmar sua mente acelerada que oscilava entre o “quase beijo” e o medo de ter causado algum mal a Derek, tornando-o invisível. Felizmente, ele parecia estar bem. Agora ela só rezava para que torná-lo visível fosse tão fácil quanto o contrário. Deus, ela esperava que não tivesse sido um erro!

— E agora? — ele perguntou numa voz quase inaudível, e ela sentiu a respiração dele contra sua bochecha. Ela se afastou um pouco.

— Se entendi o que Jenny queria dizer, os guardas andam a pé pela propriedade. Eu posso ouvir os passos, e suponho que sejam eles agora. Não estão muito perto, mas pelo barulho parece que são dois. Só espero que passem por nós e se afastem.

— Seria bom.

Seria como um tiro no escuro, Kylie pensou.

Ficaram completamente silenciosos e invisíveis. Os passos chegaram mais perto. Bem perto.

Em seguida, se aproximaram mais. Mas eles permaneceram invisíveis. O som da respiração dos dois guardas ecoava muito alto no ar da noite. Kylie tentou ouvir para ver se a respiração dela e de Derek também estava muito alta.

Derek devia ter transferido o peso do corpo para a outra perna porque o som de um galho estalando encheu o ar.

Kylie se retesou e rezou para que o barulho não os delatasse.

— Ouviu isso? — perguntou uma voz.

Kylie reconheceu uma das vozes dos camaleões. Ela não o conhecia bem o suficiente para chamá-lo pelo nome. Não que saber o nome dele ajudasse em alguma coisa agora. Se ele os descobrisse, provavelmente chamaria os anciãos. E o que os anciãos fariam, ela não fazia ideia.

— Quem está aí? — Uma voz diferente soou, e os passos se aproximaram mais. Eles definitivamente eram dois.

— Fale agora se você é um de nós! — a segunda voz disse, aproximando-se tanto que Kylie poderia jurar que era capaz de sentir o calor de seu corpo invisível.

E esse calor deixou Kylie gelada de medo.

Principalmente quando o corpo se materializou e ficou a poucos centímetros dela. Derek apertou mais os dedos de Kylie, indicando que estava sentindo seu medo.

O camaleão de cabelo ruivo olhou ao redor e gritou.

— Olá? Tem alguém aí?


Capítulo Seis

Outros passos ecoaram na escuridão, vindos de trás.

— Sou eu — disse uma voz feminina, vários metros atrás de onde Kylie e Derek estavam, invisíveis e silenciosos.

Kylie reconheceu a voz aguda de Jenny antes que ela aparecesse das sombras. A menina, obviamente, os seguira para se certificar de que tinham conseguido fugir. Kylie se sentiu um pouco culpada por duvidar da garota a princípio.

— Jenny Beth? O que você está fazendo andando pela floresta esta hora da noite?

Derek apertou a mão dela e Kylie só poderia deduzir que ele estava preocupado com Jenny. Mas seus instintos lhe diziam que Jenny era capaz de lidar com isso. Kylie quase disse isso a Derek, mas se lembrou de que o outro guarda poderia ouvi-la.

Jenny se aproximou mais alguns centímetros.

— Eu não conseguia dormir. Saí para uma caminhada rápida e, então... vi alguém.

— Viu quem?

— Não sei, não parecia ninguém conhecido. Cabelos castanho-claros, mais ou menos 1,80 m. Porte médio. Jovem. E quando a luz da lua o iluminou, me pareceu que tinha olhos claros.

Kylie mordeu o lábio. Por que Jenny estava descrevendo Derek?

Kylie apertou a mão de Derek um pouco mais, fazendo silenciosamente a mesma pergunta.

O outro camaleão materializou-se ao lado do parceiro.

— Parece um dos guardas que a UPF trouxe. Aquele que nocauteou a gente. Eu adoraria dar uma bela facada nele.

A tensão percorreu a mão de Derek e chegou ao braço de Kylie. A necessidade de protegê-lo despertou em seu peito.

O guarda desviou os olhos para Jenny.

— Por que você ficou aqui fora com um estranho solto por aí? — perguntou o homem.

— Eu não fiquei. Quero dizer, é por isso que eu vim por este caminho. Ele estava entre eu e a minha casa quando o vi. Caminhava em direção à parte norte da propriedade. Eu estava indo para casa do senhor Summers para denunciá-lo.

— Eu sabia que isso não ia acabar bem... — o guarda falou com rispidez. Ele então puxou um celular do bolso e discou. O outro guarda se aproximou de Jenny.

— Eu vou levá-la para casa.

— Acho que posso fazer isso sozinha.

— Não com estranhos andando por aí.

Kylie viu Jenny voltar os olhos em direção a ela e Derek, quase como se soubesse onde estavam. E, ao olhar, ela parecia enviar uma mensagem silenciosa dizendo que eles deveriam correr assim que ela tirasse aqueles sujeitos dali.

Foi uma mensagem que Kylie não precisou receber duas vezes.

O guarda com o celular estava falando com alguém sobre ter encontrado Jenny.

— Ela disse que o sujeito estava indo para o norte. — Ele fez uma pausa. — Estamos indo pra lá. — Ele desligou e olhou para o outro guarda. — Leve a garota de volta para casa e se encontre comigo no extremo norte para procurarmos aquele cara. Recebi ordens para soar o alarme caso a gente não o encontre rápido.

— Soar o alarme duas vezes em 24 horas, eu acho que é um recorde! — o outro declarou, contrariado.

O silêncio reinou em meio à escuridão.

— É, isso é o que acontece quando começamos a trazer estranhos para cá. Protetora ou não, eu sabia que essa garota ia complicar a nossa vida. E acho que eles, os anciãos, querem que ela continue aqui.

O coração de Kylie teve um sobressalto ao ouvir aquilo. Não que ela não tivesse acreditado em Jenny, mas é que ouvir isso da boca dos guardas tornou a coisa mais verdadeira. E doeu mais ainda.

O toque de Derek ficou mais quente e Kylie soube que ele estava tentando confortá-la.

Um dos guardas se aproximou de onde ela sabia que Derek estava. Derek fez um movimento, obviamente assustado ao pensar que alguém poderia ocupar o mesmo espaço que ele, agora que estava invisível.

O guarda olhou em volta como se quase suspeitasse de que não estava sozinho.

— Você não acha que um de nós deveria verificar se a garota ainda está na casa do avô?

— É, acho que sim — respondeu o outro guarda.

Kylie se deu conta de que, tão logo descobrissem que ela não estava com o avõ, seria mais difícil fugir dali.

Os guardas e Jenny se afastaram. Kylie esperou até que estivessem fora do alcance de sua voz. Ela estava prestes a falar quando ouviu outros passos ecoando perto deles. Será que um dos guardas tinha ficado invisível e voltado? Ou seria outra pessoa?

Kylie apertou a mão de Derek, na esperança de alertá-lo com relação ao recém-chegado.

Derek apertou a mão dela também, como se tivesse entendido.

Os passos pararam a poucos metros dela. Kylie tentou controlar a respiração, rezando para que o seu suspiro ou a respiração de Derek não os denunciasse.

Vários minutos se passaram. Finalmente, quem quer que perambulasse por ali, soltou um suspiro frustrado e começou a se afastar. O barulho de galhos se quebrando encheu o ar enquanto ele ia se afastando. A vontade de chamar o nome do avô era forte, pois a cadência dos passos e o longo suspiro lhe pareceram familiares. Mas como ela podia ter certeza? Talvez fosse apenas uma ilusão.

Ilusão de que ele tinha dado pela falta dela e ficado tão preocupado que viera procurá-la.

Ilusão de que ele não sabia o que os outros camaleões estavam fazendo.

Mas uma ilusão poderia enterrá-los até as orelhas em problemas. Então ela ficou congelada no local e esperou. Tão logo os passos se dissiparam entre as sombras das árvores, Kylie disse a Derek:

— Temos que sair daqui rápido.

— Pode crer — concordou ele.

— Eu vou largar a sua mão e acho que você vai ficar visível de novo.

— Você acha? — Derek perguntou, e havia mesmo um leve toque de medo em sua voz. — Ah, merda! Não me diga que você nunca fez isso antes.

— Na verdade, não — Kylie confessou.

— Ok, vamos torcer para que dê certo. — Ele soltou a mão dela. Kylie fechou os olhos e desejou ficar visível. Um ou dois segundos se passaram e ela abriu os olhos. Quando não conseguiu ver Derek, seu coração bateu forte e o medo oprimiu o seu peito.

— Derek? — ela sussurrou. As lágrimas encheram seus olhos. Ah, droga, será que ela tinha provocado uma desgraça?

— Estou bem atrás de você — ele disse.

Kylie deu meia-volta e soltou um suspiro quando o viu.

— Está pronta? — ele perguntou e sorriu, como se tivesse captado os sentimentos dela e gostado de ver que Kylie estava apavorada com a ideia de perdê-lo. Porque, era preciso admitir, isso significava que ela gostava dele, certo?

Não que isso fosse uma surpresa. Ela nunca tinha deixado de gostar dele. Ela apenas não sabia se gostava da mesma forma que antes.

— Pronta — disse ela. — Temos que nos apressar. — E eles fizeram exatamente isso.

Correram, lado a lado. No entanto, ela nunca o pressionava a correr mais do que ele podia.

Quando chegaram à cerca de um metro e meio, Kylie pegou a mão dele, pronta para ajudá-lo se necessário. Ele não pareceu ofendido. Pelo contrário, sorriu e apertou a palma da mão contra a dela. O sorriso, e o contentamento que transpareceu em seus olhos, lembrou-a de que ele tinha tentado beijá-la e isso só aumentou a ansiedade dela.

Mas não seria muito cedo, depois de sofrer tamanha decepção com Lucas?

Ou seria tarde demais para ela e Derek?

Percebendo que não era hora para esse tipo de reflexão, ela começou a correr mais rápido. Segurando firme a mão de Derek, eles pularam a cerca.

E aterrissaram com um baque do outro lado. Derek segurou-a pela cintura. Sua respiração pesada fazia seu peito subir e descer sob a camiseta escura, assim como a dela. Seus olhares se encontraram por um segundo, uma cena que parecia saída de um filme romântico. Do tipo em que uma música suave começa a tocar ao fundo. Do tipo que termina com um beijo ardente. Ela se afastou dele.

— Temos que ir.

A decepção brilhou nos olhos de Derek, mas desapareceu num piscar de olhos. Ela sabia que ele tinha lido suas emoções. Provavelmente sentira sua confusão. E sendo quem era, ele não iria pressioná-la, ou pelo menos não muito. Pensando bem, tentar roubar um beijo já tinha sido uma grande ousadia.

Será que esse era um novo Derek?

Será que ela teria que ser um pouco mais cuidadosa?

Derek pegou a mala da mão dela e eles começaram a correr novamente. Uma fuga de seus novos problemas, mas uma volta aos antigos.

Eles já tinham percorrido alguns quilômetros quando Kylie diminuiu o ritmo e parou. Olhou ao redor. Eles estavam à beira de uma estrada e, embora tivesse perdido o rumo, sabia que estavam a pouco menos de dez quilômetros de Shadow Falls.

Ao longe, um pássaro chamava o companheiro. Sons de insetos vibravam no ar da noite. O cheiro de mato os envolvia. O perigo iminente devia ter passado. Eles já estavam bem longe do complexo, os guardas não deveriam ir tão longe. Mas uma leve sensação na boca do estômago lhe dizia para não ter tanta certeza.

— Preciso ligar para Burnett — disse Derek.

— Tem razão. — O sinal de perigo em seu estômago diminuiu quando ela pensou em como iria explicar tudo aquilo para o severo vampiro. A frustração crescia dentro dela. Burnett ficaria furioso e acharia que seu avô tinha mentido o tempo todo. E, sim, Kylie admitia que parecia aquilo mesmo, mas ela não podia acreditar. Ela não iria parar de acreditar no avô sem antes falar com ele, sem que o olhasse nos olhos e ele negasse tudo aquilo. Talvez ela não o conhecesse há muito tempo, mas, por alguma razão, sentia que o conhecia. Conhecia bem o suficiente para acreditar que, se ele tivesse feito aquilo, não iria negar. Ele admitiria os próprios erros, talvez afirmasse que tinha suas razões, mas não iria mentir.

Mais uma vez, ela se perguntou se seria ele que estava perambulando pela floresta, antes de eles começarem a correr. A dor no peito, que ela já sabia ser pela falta que sentiria do avô, oprimiu seu coração.

— Ei... Você está bem? — Derek perguntou, passando a mão pelo braço dela.

— Eu vou ficar — disse Kylie, e ela tinha que acreditar nisso.

— Então... você não quer que eu ligue para Burnett? — Derek largou a mala e tirou o telefone do bolso, mas hesitou em discar, esperando a permissão dela.

— Sim, é melhor ligar pra ele — disse ela, aceitando que era a coisa certa a fazer. Uma hora ela teria que enfrentar a desaprovação de Burnett com relação ao avô.

Derek apertou um botão e franziu a testa.

— Meu telefone está sem bateria. — Ele apertou mais algumas teclas. — Eu sei que o carreguei. Droga! — Ele deu um pulo e jogou o celular no chão. — Mas que merda é essa? Essa coisa me deu um choque! — ele reclamou.

Kylie observou que faíscas começaram a sair do telefone e, então, um zumbido veio do aparelho, seguido de fumaça.

— Eu não sabia que isso podia acontecer — disse Derek.

— Não é normal.

— E o telefone é novo — ele lamentou. — Minha mãe vai ter um ataque.

Lembrando-se de que alguns fantasmas podiam fazer coisas com telefones, Kylie ficou alerta, à espera de que algum fantasma aparecesse. Nenhum vento frio roçou sua pele.

Ela olhou ao redor, procurando... Não sabia o que esperava ver, mas algo lhe dizia que o telefone descarregado não era um acidente. Ela olhou de um lado para o outro, mas não conseguiu ver nada sob o manto da noite. A escuridão engolia tudo. A rua parecia abandonada. As luzes estavam apagadas, nem um lampejo de luz vinha das lâmpadas.

Havia algo estranho ali, mas o quê? Não parecia um fantasma.

— É melhor a gente correr.

Ele pegou o braço dela.

— O que foi?

— Eu não sei, mas não estou gostando...

— Então somos dois — disse Derek.

— Três — disse uma voz ao lado de Kylie.

Kylie virou-se e o espírito da mulher assassina estava ao lado dela.

— Foi você quem fez isso, não foi?

— Por que eu iria explodir meu próprio telefone?! — perguntou Derek.

— Não estou falando com você — Kylie respondeu, sem desviar os olhos do espírito.

— Não! Parei de explodir telefones há muitos anos. Encontrei maneiras muito melhores de anunciar a minha presença.

Kylie virou-se para Derek.

— Vamos dar o fora daqui. — Ele pegou a mala e eles começaram a correr.

— Não! Por aqui. — O espírito começou a correr em outra direção.

Parando, Kylie estendeu a mão e agarrou o braço de Derek, obrigando-o a estancar de repente.

O espírito se virou e olhou para Kylie.

— Por aqui. Vá para o cemitério. Você terá ajuda. Por alguma razão inexplicável todos os mortos lá gostam de você.

— Por que eu deveria confiar em você? — Kylie perguntou, e com o canto do olho, viu Derek franzindo a testa. Sem dúvida, vê-la manter uma conversa com um fantasma deveria ser inquietante. Ele deveria algum dia tentar ver isso por si mesmo.

— Porque você quer continuar viva.

Kylie prendeu a respiração e olhou para Derek.

— Vamos seguir por aqui — disse a ele, rezando para que sua intuição estivesse certa e ela pudesse confiar no espírito. Rezando para que aquilo não fosse alguma armadilha para levá-la ao cemitério e dali para o inferno.

Eles correram. Correram muito. Mas Kylie sentia que algo os seguia enquanto corriam. Sentia isso dentro dela. Um sentimento que ela estava prestes a expressar.

Ela viu os portões da frente do cemitério. Seu coração batia contra o peito e, se ela já estava perdendo as forças, Derek certamente não poderia correr muito mais.

— Espere! — Derek parou e estendeu a mão para ela. — Por que... estamos... indo... para o cemitério? — ele perguntou com a respiração entrecortada.

— Eu tenho amigos lá — disse ela.

— Amigos mortos, suponho — disse ele, não parecendo muito feliz.

— Não vamos ser exigentes agora.

Ele lançou um olhar para os portões enferrujados.

— É melhor irmos para Shadow Falls. Estamos perto.

— Não vamos conseguir — disse Kylie, e algo dentro dela disse que estava certa. Algo dentro dela disse que a coisa que os seguia não estava brincando. Algo dentro dela dizia que era Mario. Deus do céu, ela esperava estar errada!

Ela agarrou Derek pelo braço e começou a correr novamente. Infelizmente, não conseguiram chegar ao portão antes que o homem se fizesse visível.

Mario, o malfeitor superpoderoso que queria ver Kylie morta, estava a poucos passos deles. O mesmo sujeito que tinha machucado Helen, matado Ellie, matado o próprio neto, e não se importava em tirar a vida de qualquer inocente que cruzasse o seu caminho.

Os olhos escuros do homem brilharam com um lampejo de maldade. Sua pele parecia couro de tão envelhecida, e ele usava um manto escuro como se se considerasse uma espécie de realeza.

Lembranças desse homem lançando raios na direção do próprio neto fizeram brotar um sentimento de fúria em Kylie, e sua natureza protetora entrou em ação com força total numa fração de segundo. Ela empurrou Derek pelo braço, para que ele ficasse atrás dela.


Capítulo Sete

— Nos encontramos de novo! — exclamou Mario, uma brisa quente e sombria agitando a bainha de seu manto. O céu parecia ter ficado mais escuro. Mesmo a lua e as estrelas pareceram se encolher diante da presença dele.

— Infelizmente — disse Kylie, respirando fundo. O ar da noite parecia impregnado com a maldade que emanava dele. Ela sentiu o sangue ferver em suas veias e a sensação de perigo quase sugava o oxigênio do ar.

Derek se moveu atrás dela e Kylie o empurrou de volta, segurando-o atrás de si.

Protegê-lo. Protegê-lo. As palavras se repetiam na sua alma como uma ladainha.

Mario riu como se pudesse ler a mente dela.

— Não se preocupe, garota. Eu não quero nada com o seu amiguinho. No que me diz respeito, ele não está em perigo.

O velho sorriu. Seus dentes, finos, ligeiramente amarelados pela idade, apareceram sob o lábio. A bizarrice do momento causou um tremor na espinha de Kylie.

— Pode acalmar esse seu lado protetor — disse Mario, como se sentisse o instinto de defesa dela vindo à tona. — Não lhe fará nenhum bem. Só estou atrás de você. Não vou causar nenhum mal a esse frangote.

Com um puxão, Derek se soltou de Kylie e foi para cima do velho malfeitor.

Kylie deu um protetor passo à frente para intervir. Mario ficou invisível e Derek caiu no chão.

Mario reapareceu a alguns metros de distância.

— Que lindo... — ele zombou. — O rapazinho quer protegê-la.

Derek não hesitou em avançar contra ele novamente. Mas, como antes, Mario desapareceu no ar e reapareceu novamente a poucos metros do fae.

— Pare com isso! — Kylie disse Derek.

Ele a ignorou e seus olhos dispararam punhais contra Mario.

— Não sou eu quem está desaparecendo, seu cretino. Lute como um homem.

Mario riu, e a maldade de seu tom estilhaçou os nervos de Kylie como cacos de vidro.

— Sei que quer lutar comigo para despertar os poderes da sua namorada. Eu não sou nenhum tolo, garoto.

Por mais que ela se ofendesse com isso, Mario estava certo; se ele não machucasse Derek, ela não podia recorrer aos seus poderes para lutar contra ele. O medo invadiu suas entranhas.

— Vá embora! — Kylie insistiu e, logo em seguida, viu os espíritos se aglomerando atrás dos portões, seus murmúrios cheios de preocupação por ela.

— Não sem você — Mario exigiu, mas sua confiança pareceu ligeiramente abalada quando ele olhou na direção dos portões do cemitério.

Será que ele podia sentir os espíritos, também? Ele deu um passo para chegar mais perto dela. Ou seria apenas para se distanciar um pouco mais do portão do cemitério?

Ela deu um passo para trás. Pelo canto do olho, viu Derek pegar uma grande pedra a seus pés. Ela sabia que seu plano era deixar Mario furioso a ponto de se transformar numa ameaça para ele e ela poder proteger a ambos, mas Kylie não tinha certeza se esse plano daria certo. A indecisão encheu seu peito, pois não sabia se deveria impedi-lo ou não. Porque o plano de Derek podia ser a sua única chance, gostasse dele ou não.

Mario, concentrado nela, não viu a pedra sendo atirada. Ela bateu em sua têmpora com um baque. Mas Kylie sabia que viria um contra-ataque. E ela deveria estar pronta para enfrentá-lo.

A tensão engrossou o ar em torno deles, enquanto os olhos do marginal brilhavam num tom verde-limão e o sangue vermelho jorrava da sua testa. Um rosnado baixo serpenteou pelos lábios do homem quando ele olhou para Derek.

Kylie sentiu a força começar a se acumular nos seus músculos, mas aquilo não era nada em comparação ao que deveria sentir para despertar seu verdadeiro poder.

— Venha me pegar, seu covarde! — Derek provocou.

Mario limpou o sangue da testa e a fúria em seus olhos se desvaneceu.

— Você não me interessa.

— E quanto a mim, seu vampiro filho da mãe? — Lucas apareceu do nada, avançou de trás das árvores e empurrou o velho, fazendo-o cair.

Kylie não teve tempo para pensar na sua devastação emocional. Derek, obviamente vendo uma oportunidade, atacou com tudo. Kylie o acompanhou, agora com força total. Mas sua força e sua velocidade não eram nada comparadas às de Mario. Ela não tinha chegado ao tumulto de punhos atacando, quando viu Mario livrando-se primeiro de Lucas e depois de Derek. Seus corpos voaram no ar como bonecas de trapo. Com a respiração presa na garganta diante daquela visão, Kylie deu um salto e agarrou os dois garotos no ar. Depois de apenas uma fração de segundo, deixou os dois no chão para em seguida investir contra o agressor.

Provando mais uma vez suas habilidades, Mario deu um salto antes que ela o alcançasse, se desviado do seu ataque. Ela se deteve, assustada, e olhou em volta. Ele estava a vários metros de distância, observando-a como se ela não passasse de um entretenimento.

Mario estava brincando com ela. E Kylie não sabia como virar o jogo.

Agarrando o próprio punho com tanta força que chegou a machucar a mão, ela se forçou a aceitar que não era páreo para o malfeitor. Ele podia ser velho, mas, obviamente, ainda era ágil e rápido.

Ele olhou para ela e sorriu, em seguida, com os olhos sedentos para ver mais, ele estendeu a mão em direção a Lucas.

— Até onde você vai para salvá-los?

Kylie viu uma bola de fogo surgir nos dedos dele. Ela correu e se colocou entre a bola de fogo e Lucas. Então arrebatou a bola de chamas e atirou-a de volta, na direção de Mario. Ele conseguiu desviar, e em seguida jogou mais duas. Kylie pegou uma delas e a outra passou raspando por ela. Ela olhou por cima do ombro e viu a outra bola de fogo derrubar Lucas. O gosto de fúria, amargo e salgado, espalhou-se pela língua dela. Apesar do seu estado emocional com relação a Lucas, seu coração pedia que fosse até ele e se assegurasse de que o ex-namorado não tinha se ferido gravemente. Mas a necessidade de deter Mario fez com que ela o encarasse novamente.

— Você vai morrer para salvá-lo? — Um sorriso encheu seus olhos acinzentados pela idade. — Qual deles vai salvar primeiro? — Mario analisou a expressão dela como se se divertisse, definitivamente sem nenhum medo e, aparentemente, tão ocupado em atormentá-la que não percebeu Derek se aproximando dele novamente. E nem Kylie, ou ela o teria impedido. Ela o deteria antes que alguém morresse.

No momento em que Derek atacou Mario, o homem estendeu a mão na direção dele e apertou os dedos retorcidos em torno do pescoço do rapaz. Kylie avançou, cega em sua fúria, em sua necessidade de vingança. Fechando uma mão em torno da garganta de Mario, ela usou a outra para arrancar as mãos do velho do pescoço de Derek. No segundo em que ela o sentiu se libertando, usou ambas as mãos para apertar a garganta do malfeitor.

— Solte-o! — A voz ecoou no ouvido dela ao mesmo tempo, em que o frio fantasmagórico deslizou pela sua espinha. — Pare!

Kylie ignorou o espírito. Aquela não era hora de parar.

Ela ouviu Derek lutando para respirar. Agora era Mario que não podia respirar. Ela sentia os tendões rígidos sob seu aperto. Seu objetivo era simples. Detê-lo. Pará-lo agora e para sempre. Tudo o que tinha a fazer era apertar um pouco mais.

Ela iria esmagar a traqueia dele com um pouco mais de força.

Iria mandá-lo para o inferno, o lugar a que ele pertencia.

Seus pensamentos voaram para Ellie, que Mario tinha levado deste mundo ainda tão jovem. Ela pensou no neto desse homem, que tinha morrido sabendo que seu próprio sangue causara sua morte.

Mario merecia essa morte.

Um pensamento passou pela sua mente. Matar não era fácil. Nem quando era a coisa certa a fazer.

— Largue-o! — o espírito gritou. — Você está cega. Nada é como você vê!

Ela enxergava muito bem, obrigada! Apertou mais o pescoço do velho, tentando convencer a si mesma de que precisava terminar o que havia começado. O som áspero de Derek tentando insuflar ar nos pulmões ecoou atrás dela. O braço de Mario se agitou dos lados, tentando encontrar algo a que se segurar. Tentando se agarrar à vida.

Ela ouviu Derek gritar seu nome, a voz rouca, mas ela o ignorou. Ignorava tudo que não fosse o fato de que estava prestes a tirar uma vida.

De repente, uma sensação de mal-estar invadiu seu estômago, como se algo estivesse terrivelmente errado. E foi aí que ela viu Mario. Parado vários metros atrás e sorrindo. Conteve o fôlego e seu olhar se desviou para o rosto da pessoa que ela estava matando.

Lucas!

A risada de Mario ecoou ao redor dela.

O pânico atravessou Kylie como uma dor lancinante. Ela afrouxou o aperto em torno do pescoço do lobisomem. Ele desabou no chão como um saco de batata, mas Kylie não tirou os olhos de Mario.

Lucas se moveu aos pés dela. Lágrimas encheram seus olhos quando ela percebeu quanto estivera perto de tirar a vida de alguém que amava.

— Eu deveria matá-la agora — disse Mario —, mas é muito mais divertido vê-la sofrer.

Kylie inspirou o ar, estremecendo ao senti-lo entrar em seus pulmões.

— Ah, ele está vivo, mas por quanto tempo? — perguntou Mario, o tom de voz expressando a emoção que sentia com a dor que causava em Kylie.

A maldade do homem parecia contaminar o ambiente. Ela não fazia ideia de como Mario tinha trocado de lugar com Lucas, mas o que importava era impedi-lo de fazer coisas piores. E se ela não conseguisse pensar em algo rápido, ele iria derrotá-la. E ela não iria ser derrotada sozinha.

O sangue de Kylie correu mais rápido, o ar que respirava parecia saturado de gás carbônico pelas emoções violentas que a invadiam como um vírus. Então o medo, como um líquido tentando afogá-la, brotou em seu peito.

Seu coração se enfureceu com horror ao pensar que essa era uma batalha perdida. Por um segundo, ela aceitou a derrota e lamentou. Não chorou por sua vida, mas pela de Derek e de Lucas. Eles tinham vindo salvá-la e, agora, morreriam por causa da sua lealdade. E, em seguida, outros viriam. Mario não iria parar.

A voz pareceu vir com o vento. Você não está sozinha. Peça e lhe será concedido.

Os anjos da morte estariam ali? Ela se concentrou em Mario, mas rezou pedindo ajuda. Orações sem fé, seu coração parecia sussurrar. A dúvida a corroía e ecoou em sua alma. Se os anjos da morte iriam ajudá-la, eles já não deviam estar lá? Por que ela se sentia tão só, tão desprotegida? Por que eles não ofereceram ajuda antes de ela quase matar um dos seus?

Num lampejo, ela se lembrou das garotas mortas no portão, e algo que Holiday lhe dissera uma vez surgiu em sua mente como um pensamento que ela precisava captar. Às vezes eu acho que todos os mortos são meus anjos da morte.

Kylie deu um suspiro de esperança. Ajudem-me. O apelo ecoou em sua mente. Sejam meus anjos da morte.

Um ranger alto, de gelar os ossos, ecoou no escuro. Os portões começaram a se abrir. O barulho do metal enferrujado sendo forçado retiniu nos seus ouvidos. Então os mortos começaram a sair por ali às centenas. Homens, mulheres, jovens, velhos, todos vinham correndo, com as mãos estendidas. Os olhos fantasmagóricos. Mas suas expressões não imploravam ajuda; elas a ofereciam.

A sensação gelada da sua presença queimava a pele de Kylie. O ar em seus pulmões parecia muito frio para respirar. Mas mesmo em sua dor, ela viu que não estava sozinha. E isso lhe deu esperança. Sentimento a que ela se agarrou.

O rosto de Mario, velho e enrugado, contorceu-se de angústia. Dor, talvez o mesmo frio que ela sentia em seu corpo, se refletiu em seus olhos cinzentos. Ele atirou a cabeça para trás e rugiu. Vapor subiu de sua boca e dançou sobre seus lábios. Ele prendeu a respiração e saltou para trás alguns metros.

Como se a distância lhe oferecesse um certo alívio, seu olhar se voltou para ela.

Kylie apertou os olhos e viu o padrão do malfeitor. Mario era certamente um camaleão.

Curiosamente, com a visão um pouco fora de foco, ela sentiu algo levemente diferente com relação a ele. Familiar, mas de um jeito diferente. O pensamento pareceu importante, mas como uma nuvem de tempestade que prometia voltar, ele se desvaneceu.

— Você pode ter vencido desta vez, mas o meu momento se aproxima — ele disse com aspereza. — Você vai vir até mim, Kylie Galen, vai vir até mim disposta a morrer, a sofrer em minhas mãos, para minha alegria, porque o preço será muito alto! Sua fraqueza será sua ruína.

Minha fraqueza? Que fraqueza?, Kylie se perguntou. Mas com a mente cheia de dor e esperança ao mesmo tempo, a pergunta não foi formulada e permaneceu sem resposta.

Em vez disso, ela se concentrou na esperança. Esperança de ter poupado a vida de Lucas e Derek. E em algum lugar no fundo de sua alma, ela queria que sua vida fosse poupada, também.

Os espíritos ainda aglomerados avançaram contra Mario mais uma vez. De maneira determinada. A intenção deles de protegê-la mostrava-se em seus rostos preocupados e lívidos. Holiday tinha razão. Todos os espíritos eram de alguma forma anjos da morte, visto que os anjos da morte eram espíritos de seres sobrenaturais. Espíritos que, embora conhecidos por proteger os inocentes, eram em sua maioria temidos pelo julgamento severo que faziam dos que abusavam dos seus poderes. Um rápido olhar para os portões do cemitério e Kylie viu ainda mais fantasmas saindo dali aos tropeços.

Alguns moviam-se a um passo lento e incerto, como se tivessem acabado de acordar de um sono profundo.

— Obrigada — Kylie conseguiu dizer, muito embora seus dentes batessem e o frio da presença de tantos mortos tornasse difícil estar viva.

Quando os espíritos se reagruparam em torno de Mario, ele rugiu novamente e o som de sua decepção e agonia foi a última coisa que Kylie ouviu antes do tremor que sacudia todo o seu corpo tornar-se excessivo. Sua visão ficou turva, gelo revestiu seus lábios, e ela se sentiu puxada numa espiral sombria em direção ao nada.


Capítulo Oito

— Vamos esperar Burnett.

— Vamos é dar o fora daqui agora!

Kylie lentamente ficou consciente das vozes. De quem eram? Esperar Burnett para quê? As perguntas se sucediam na sua mente confusa. Onde ela estava? Quem a segurava no colo com tanto...?

Ela ouviu o som de uma batida rítmica. A batida de um coração? Mas não era o seu. O calor, a sensação quente de alguém pressionado contra ela, era celestial. Ela tinha sentido tanto frio! Por quê? Se ela se concentrasse conseguiria descobrir. Mas parte dela não queria se concentrar; parte dela queria ficar assim. Inconsciente, aquecida e sentindo-se segura nos braços de alguém que a abraçava.

Que a segurava com ternura.

Que a segurava como se ela fosse um tesouro precioso.

— Não podemos sair daqui — disse uma das vozes. Uma voz a distância. Não a que a segurava.

— Ele pode voltar. Precisamos sair daqui enquanto ainda for seguro.

Ela ouviu as palavras vibrarem profundamente no peito da pessoa que falava.

— Eu não acho. Você disse que Burnett estava a caminho. Precisamos esperar aqui.

— Só porque você está com medo...

— Eu não estou com medo, porra! Estou sendo racional. Kylie veio até aqui por um motivo. Os fantasmas, e eu aposto que foram eles que afugentaram aquele cretino.

Kylie reconheceu a voz de Derek.

Tudo voltou à sua memória numa fração de segundo. A traição do avô, a ajuda de Jenny, Derek encontrando-a, Mario aparecendo, a luta, e Lucas... A sensação familiar dos braços em volta dela revelou quem a segurava, de quem era o calor que ela agora absorvia. Enrijecendo, ela empurrou o peito de Lucas.

— Ponha-me no chão.

Os olhos azul-escuros, agora de um laranja brilhante, sem dúvida ainda sentindo o perigo, fixaram-se em seu rosto.

— Você consegue ficar de pé sozinha?

— Consigo — disse ela. Quando viu os hematomas no pescoço dele seu coração se apertou. Santo Deus, ela quase o matara! Apertara as mãos ao redor do pescoço de Lucas, fazendo a vida quase se esvair dele, e por pouco não tinha terminado o serviço.

Lágrimas fizeram suas narinas arderem, mas ela piscou, evitando que transbordassem. Agora não era hora de desmoronar. Mais tarde ela iria deixar isso acontecer. Mais tarde teria bastante tempo para sentir pena de si mesma. Ela merecia isso. Mas não agora. Agora não, ela repetiu mentalmente, tentando combater a sobrecarga emocional.

— Você está machucada? — perguntou Lucas.

— Ela pediu para você colocá-la no chão — Derek insistiu, em tom firme, sem dúvida captando as emoções dela em conflito.

— Eu ouvi — Lucas rosnou, e Kylie desviou os olhos dos hematomas em seu pescoço e olhou-o no rosto. A antipatia que o lobisomem sentia por Derek fazia seus olhos brilharem num tom laranja mais claro. — Só quero ter certeza de que ela está bem.

— Estou bem — ela mentiu, as emoções pipocando num turbilhão.

Traição.

Medo.

Seu olhar desviou-se para o pescoço machucado.

Culpa.

— Por favor, me coloque no chão — ela insistiu.

Ele fez o que ela pedia. Seus joelhos estavam fracos, mas Kylie se concentrou para não deixá-los virar geleia e conseguiu permanecer em pé.

Lucas manteve a mão estendida, pronto para ampará-la caso as pernas dela fraquejassem. Ela não queria precisar da ajuda dele. Por que Lucas estava ali? Ela não tinha dito a Burnett para não colocá-lo de guarda? Então Kylie se lembrou de ter pensado que vira Monique. Teria sido ela?

Suas emoções sofreram uma reviravolta e ela percebeu quanto isso era insignificante naquele momento. Agora ela tinha que se certificar de que voltariam para Shadow Falls em segurança. Mais tarde, durante o período que reservaria para sentir pena de si mesma, ela poderia lamentar por Lucas e pelos seus problemas.

— Você está pronta para voltar? — Lucas perguntou.

— Nós não vamos sair daqui até Burnett aparecer — Derek insistiu novamente.

Kylie olhou para Derek e depois para os portões do cemitério, que agora estavam fechados. Os espíritos montavam guarda, com o rosto entre as barras de metal enferrujado.

— Derek tem razão. Vamos ficar aqui até Burnett aparecer.

Um flash passou por Kylie, e depois outro.

Burnett, juntamente com três outras pessoas da UPF, assim como vários campistas, inclusive Perry, de repente os rodearam.

— Estou aqui — disse Burnett. Seus olhos brilhantes pareciam dizer que ele estava preparado para a briga. Ele olhou em volta, como se calculasse o perigo, antes de voltar a se concentrar neles. — E é melhor que alguém me diga que diabos está acontecendo.

Quando ninguém falou rápido o suficiente para aplacar a sua impaciência, seu olhar se fixou em Kylie.

— Era para eu vir buscá-la pela manhã. — Seu olhar saltou para Derek. — Você deveria estar montando guarda perto da casa do avô dela. — Ele olhou para Lucas. — E você me disse que estava indo para a casa do seu pai.

— Bem, eu menti — Lucas confessou, embora não fosse alguém que aceitasse facilmente uma reprimenda. — Eu queria ter certeza de que Kylie não precisaria de mim. E ela precisou.

— O que aconteceu? — Burnett perguntou de novo, seu tom de voz indicando que ele estava perdendo a paciência.

— Mario — respondeu Kylie.

Os olhos de Burnett iluminaram-se e ele olhou ao redor novamente.

— Você tem certeza de que era ele?

— Tenho. — Kylie estremeceu, lembrando-se da maldade que sentira emanando do camaleão. Ela se lembrou da sensação de que ele gostava de brincar com ela, como um gato perseguindo um rato. Mas o rato tinha vencido dessa vez. Graças aos mortos, ninguém tinha morrido nas mãos de Mario, mas como seria da próxima vez? Ela ouviu a ameaça de Mario ecoar em sua cabeça. Você virá até mim, Kylie Galen, virá até mim disposta a morrer, a sofrer em minhas mãos, para a minha alegria, porque o preço será muito alto!

Ele falou com certeza, como se já tivesse traçado um plano. O medo subiu da ponta dos pés e atravessou a sua espinha.

Burnett continuou a olhar em volta. Depois de mais alguns segundos farejando o ambiente, ele olhou para Derek.

— Ele já foi — disse Derek.

— Isso eu posso ver.

Mas será que tinha realmente ido embora? Sendo um camaleão, ele podia ficar invisível.

Ele ainda poderia estar ali. Kylie quase disse isso, mas lembrou-se dos outros membros da UPF. Sua falta de confiança neles a levou a ficar de boca fechada. Quanto menos eles soubessem sobre ela e sobre os camaleões como um todo, melhor.

— E o que vocês estavam fazendo aqui? — perguntou Burnett, aparentemente cada vez mais frustrado à medida que pensava no que havia acontecido. — As ordens eram para que me esperassem até amanhã. Por que eu dou ordens aqui se ninguém me ouve?

— Nós não pudemos. Eles não iriam deixá-la partir — defendeu-se Derek, olhando para Kylie como se soubesse quanto era difícil para ela ouvir a verdade. E ele estava certo. A dor em seu peito ficou mais forte.

— Eles quem? — Burnett perguntou. — Quem não iria deixá-la partir? — Seu olhar oscilava entre Derek e Kylie.

— Os camaleões — respondeu Derek.

O olhar de Burnett voltou a se fixar em Kylie e o peito dela ficou oprimido, pois sabia que Burnett iria pôr a culpa em seu avô.

— Meu avô não sabia disso — disse Kylie, mas ela não tinha como ter certeza. E sabia que Burnett perceberia sua mentira inocente.

Sua expressão se suavizou por uma fração de segundo, como se ele pudesse perceber a dor que ela sentia.

— Você devia ter me ligado. — Burnett olhou de volta para Derek.

— Ele tentou — defendeu-o Kylie, sem querer que Derek levasse a culpa. — Tivemos que sair de lá às pressas, para fugir dos guardas, e então... então, quando ele tentava ligar para você, Mario... ele detonou o telefone de Derek.

De repente, a escuridão da noite foi cortada pelo feixe de faróis. Um carro se aproximou até frear abruptamente, fazendo os pneus guincharem no asfalto. O carro de Holiday.

Ela desceu apressada do Honda, o cabelo vermelho solto como se tivesse acabado de sair da cama. E quando os seus olhos marejados se iluminaram ao ver Kylie, ela murmurou “Graças a Deus” e colocou a mão sobre os lábios.

Ver a emoção de Holiday enfraqueceu a determinação de Kylie de esperar até mais tarde para desmoronar. Ela correu para a amiga e caiu em seus braços.

Com a cabeça enterrada no ombro da líder do acampamento, Kylie ouviu Burnett repreender:

— Eu pensei que tivesse falado para você esperar no acampamento.

Kylie sentiu a tensão de Holiday ao ouvir a reprimenda, então levantou a cabeça.

— E eu pensei que você soubesse que não sigo as ordens de ninguém.

— Alguém aqui por acaso me ouve? — perguntou Burnett, a frustração fazendo seu tom parecer quase cômico.

— Obviamente que não — disse um dos agentes da UPF, rindo.

Burnett gemeu, mas Kylie ouviu seu suspiro de puro alívio. Ela sabia que ele via a proteção de todos em Shadow Falls como sua responsabilidade pessoal. E ela o amava por isso, também.

— O que aconteceu? — perguntou Holiday, estreitando os ombros de Kylie em seu abraço reconfortante.

— Vamos falar sobre isso mais tarde — disse Burnett. — Precisamos voltar a Shadow Falls agora.

Kylie sabia que a conversa incluiria acusações ao seu avô. Embora ela ficasse apreensiva ao pensar nessa conversa, naquele momento, com os braços quentes e reconfortantes de Holiday em torno dela, até mesmo ouvir Burnett e Holiday brigando a tranquilizava. Era quase como se sentir em casa outra vez.

E aquilo era muito bom.

* * *

Atravessar os portões de Shadow Falls transmitiu a Kylie uma sensação de calidez. Aquele era o lugar a que ela pertencia. Nem mesmo pensar que passaria a próxima hora enfrentando as perguntas de Burnett dissipou completamente a sensação de estar em casa.

— Me desculpe ter que fazer isso agora — Burnett disse várias vezes. Ele já tinha recapitulado tudo com Lucas e Derek, enquanto Kylie estava sentada no escritório com Holiday. Elas não tinham falado sobre o que havia acontecido aquela noite porque Kylie sabia que Burnett gostaria de estar presente, de modo que falaram sobre o pouco que ela tinha aprendido com o avô.

Quando Burnett entrou, o clima ficou mais sério.

— Sei que você não dormiu a noite toda, mas, de acordo com as estatísticas, quanto mais esperarmos, mais provável é que você se esqueça de alguma coisa.

Kylie, sentada no sofá ao lado de Holiday, assentiu.

— Eu sei. — Ela mordeu o lábio e tentou se concentrar e colocá-lo a par de tudo o que havia acontecido. Ela contou sobre Mario e sua ameaça ao ir embora. Então começou do início novamente e contou a ele sobre Jenny vindo à sua janela.

A única coisa que ela não disse foi que Jenny era irmã de Hayden Yates. Ela nem mesmo tinha certeza de que Burnett tinha descoberto que Hayden era um camaleão. Em seguida, ela contou mais uma vez sobre Derek aparecendo na floresta. Ela propositadamente contou novamente sobre a pessoa invisível que havia sentido ali, antes de fugirem. E lembrou Burnett de que ela acreditava que essa pessoa fosse o seu avô, e que ele não estava lá para impedi-la de ir embora, mas para ver como ela estava.

— Mas você não falou com ele? — perguntou Burnett. — Então você não sabe com certeza se era ele mesmo, ou se a presença dele ali significava que ele não estava por trás de tudo isso.

Kylie o olhou com uma expressão séria.

— Eu conheço o meu avô. Não acho que ele faria isso. Até Jenny disse que ele era diferente dos outros anciãos. E não quero que você comece a pensar nele como um inimigo.

Burnett cerrou os dentes.

— Ele se preocupa com você, Kylie. Senti isso quando nos falamos. Mas ele nunca escondeu o fato de que não confiava em mim e em Shadow Falls. Ele poderia muito bem se justificar, dizendo que sentiu que sua vida estava em perigo. Ele pode achar que tem boas intenções a seu respeito, mas está errado. E, embora eu saiba que é difícil para você aceitar isso, não podemos mais confiar nele.

A observação de Burnett criou um nó na garganta de Kylie. Ela compreendia o ponto de vista dele, mas não podia ir contra o que seu coração dizia. E seu coração dizia que o avô não estava por trás das tentativas de mantê-la com ele contra a vontade dela.

— Você não pode confiar nele — disse Kylie. — Eu ainda tenho que decidir. E por que você está desperdiçando tanto tempo se preocupando com ele se o verdadeiro vilão é Mario?

— Eu sei muito bem quem é o verdadeiro vilão — respondeu Burnett. — Mas é por causa do seu... devido às ações de pessoas que estão com o seu avô que Mario quase pegou você.

— Elas não tiveram nada a ver com o fato de Mario aparecer.

— Concordo, mas elas tiveram tudo a ver com o fato de você estar numa situação de vulnerabilidade.

— Fui eu que optei por fugir. — Ela torceu as mãos no colo.

— Você não acha que devemos terminar por essa noite? — Holiday interveio. — Vamos parar agora e continuar pela manhã.

Burnett franziu o cenho para Holiday, em seguida ajoelhou-se em frente à Kylie. Colocou a mão sobre as mãos crispadas dela. Seu toque era frio, mas terno e carinhoso. O nó na garganta de Kylie dobrou de tamanho. Quando ele a fitou, Kylie viu a luta em seu olhar para manter a calma e não deixar que o seu temperamento intempestivo o dominasse. Ele queria fazer exigências, dar ordens. No entanto, Kylie também sentiu que ele se esforçava para fazer o que Holiday tentava incutir nele: fazer concessões em vez de impor.

Olhando a mão dele sobre os seus dedos crispados, Kylie soube que Burnett se preocupava — ela sabia que a intenção dele não era magoá-la, mas sim ajudá-la. No entanto, não era exatamente isso que seu avô também queria?

— Kylie, eu sei que isso é difícil pra você — disse Burnett. — Eu de fato sei. Mas preciso da sua promessa de que não fugirá para ver o seu avô.

Ele apertou o pulso dela.

— Por favor. Não vou ter um momento de paz se você não me prometer isso.

— Não vou fugir. — Ela não podia lhe negar isso, não quando ele estava quase implorando. No entanto, lá no fundo, ela se perguntava se seu batimento cardíaco dizia que era mentira e, se fosse, se Burnett teria ouvido.

Que Deus a ajudasse, porque, se o avô lhe pedisse para encontrá-lo, como ela podia lhe dizer não? Ela estava verdadeiramente dividida em sua lealdade. Só rezava para que não tivesse que chegar a esse ponto.

O horizonte a leste já estava um pouco mais claro do que o resto do céu quando Burnett e Holiday levaram Kylie até a sua cabana. As estrelas brilhavam no céu, como se soubessem que estavam prestes a ser ofuscadas pelo sol e quisessem oferecer um pouco mais da sua luz.

Ela deveria estar exausta, e parte dela estava, mas duvidava que conseguisse dormir assim que caísse na cama. Sua mente remoía tantas coisas que parecia impossível desligá-la. Além disso, ela tinha assumido um compromisso consigo mesma: iria se permitir um pouco de autopiedade. O nó que sentira na garganta antes agora estava preso na região do coração. No passado, Kylie tinha aprendido que não existia nada como um bom choro para aliviar esse tipo de dor.

Obviamente, os efeitos calmantes do toque de Holiday já estavam se dissipando. Ou talvez aquilo tudo fosse demais para ser amenizado apenas com a magia de um fae. Algumas coisas precisavam ser processadas. Coisas como deixar a casa do avô sem dizer adeus. Como o fato de quase ter matado Lucas. Como saber se era realmente Monique, a noiva de Lucas, que ela vira aquela noite. Como a falta que a mãe fazia e o fato de ela estar do outro lado do mundo dormindo com um estranho.

Coisas como ter um assassino psicótico querendo acabar com ela.

A ameaça dele ecoou em sua cabeça como um verso ruim de uma canção que não se consegue esquecer. Você vai vir até mim, Kylie Galen, vai vir até mim disposta a morrer, a sofrer em minhas mãos, para minha alegria, porque o preço será muito alto! Sua fraqueza será sua ruína.

E pensar em coisas desse tipo podia incluir derramar algumas lágrimas. Quem poderia censurá-la por isso? Claro, ela provavelmente ia ter que passar algum tempo tentando descobrir o que Mario queria dizer com “sua fraqueza”.

— Que tal fazer um passeio até a cachoeira amanhã? — Holiday sugeriu e, em seguida, como se estivesse captando o estado emocional de Kylie, estendeu a mão e apertou o braço da amiga.

Kylie assentiu.

— Amanhã bem cedo eu vou descobrir qual o melhor horário para esse passeio — Burnett acrescentou, deixando claro que iria com elas.

O silêncio caiu sobre eles como uma chuva suave. O céu estava um pouco mais púrpura, como se já fosse amanhecer. Burnett limpou a garganta.

— Você sabe que vai ter que voltar a ter uma sombra?

— Eu imaginei — disse Kylie.

— Antes que eu prepare a escala de sombras, hã... queria saber se há alguém que você não queira como sombra.

— Apenas uma pessoa — disse Kylie. — E acho que você sabe quem é.

Burnett apenas balançou a cabeça.

Seus passos no caminho de cascalho enchiam a noite com um som de trituração.

— Como está Helen? — perguntou Kylie.

— Muito melhor — disse Holiday.

— Será que ela se lembra de alguma coisa? Sabemos se foi ou não Mario?

— Não — respondeu Holiday.

— Ainda estamos investigando — disse Burnett, e um pouco de frustração se evidenciou em sua voz. — Mas sabemos que Mario foi flagrado em Shadow Falls naquela mesma manhã. E com o aparecimento dele esta noite, tudo indica que está por trás disso.

Eles estavam quase chegando à curva do caminho. A distância, Kylie podia ver a cabana. Não havia nenhuma luz lá dentro. Ela olhou para Burnett.

— Della ainda não voltou?

— Não, ainda não — disse ele, e algo na maneira como pronunciou aquelas três palavras disparou um alarme dentro de Kylie.

Ela o pegou pelo braço.

— O que aconteceu?

Burnett levantou a mão, como se estivesse se defendendo.

— Ela está bem. Teve alguns problemas ontem à noite, mas tudo está bem agora. Ela deve estar de volta hoje, mais tarde, ou amanhã.

— Que tipo de problema? — perguntou Kylie, sua preocupação com Della trazendo algum alívio com relação aos seus próprios problemas.

Burnett hesitou em responder, o que deixou Kylie ainda mais desconfiada.

— O que aconteceu? — Kylie insistiu.

— Ela entrou numa briga com alguns membros da gangue. Mas...

— Tem certeza de que não era Mario?

— Tenho — afirmou Burnett.

— Ela está machucada? — O peito de Kylie doía. — Eu sabia que trabalhar para a UPF era uma má ideia.

— Ela apenas apanhou um pouco e saiu meio machucada... — disse Burnett.

— Quanto ela apanhou e quanto está machucada?! — perguntou Kylie.

— Não tanto que eu não possa dizer que seu ego é que deve ter ficado mais ferido — Burnett respondeu.

— Ela está ótima. Eu juro — Holiday acrescentou. — Eu mesma falei com ela.

Kylie suspirou, sabendo que provavelmente estava exagerando, mas suas emoções represadas estavam a ponto de transbordar de novo. Ela recomeçou a andar, agora quase correndo para a cabana, querendo ficar sozinha antes que as emoções transbordassem de fato.

Holiday acompanhou o ritmo dela e pegou a mão de Kylie, fazendo-a parar antes de subir os degraus da varanda.

— Você quer que eu entre para podermos conversar um pouco?

— Não — Kylie disse, sentindo-se uma idiota. — Eu só preciso de um tempo para me recuperar. — Ela abraçou a amiga, absorvendo um pouco mais de seu toque calmante. Quando Kylie deu um passo para trás e começou a se virar para a porta, Burnett pigarreou. Ela olhou para ele.

O vampiro estendeu as mãos.

— Eu não ganho um também?

Kylie viu o brilho de surpresa nos olhos de Holiday, então não conseguiu resistir e sorriu.

— Cuidado, as pessoas podem pensar que conseguimos te dobrar.

— Duvido muito — disse ele, dando-lhe um abraço rápido. Com o queixo pressionado contra seu cabelo, ele sussurrou: — Eu vou pegar aquele filho da mãe. Prometo a você.

Ela não precisava perguntar quem era o filho da mãe. Sabia que era Mario.

— Obrigada — disse ela, se afastando. E antes que realmente começasse a chorar, ela entrou na cabana.

O cheiro do lugar encheu seus sentidos. Ela não sabia bem o que contribuía para aquele aroma, mas fosse o que fosse, exercia um efeito calmante. E então ela percebeu que a cabana tinha o cheiro das pessoas que ela amava. Miranda, Della. E havia um perfume amadeirado que ela conhecia. Um cheiro que pertencia... Não! Ela só cheirava à casa, disse a si mesma.

A porta do quarto de Della estava aberta, como uma placa em néon avisando que ela não estava ali. A vampira, uma pessoa super-reservada, sempre mantinha a porta fechada.

O olhar de Kylie voltou-se para a porta de Miranda.

— Tempo para me recuperar... — ela sussurrou para si mesma. Se ia desmoronar, queria fazer isso sozinha. Começou a entrar no seu quarto, mas mal tinha aberto a porta quando ouviu o piso de madeira ranger. Ela não estava sozinha. Seu olhar desviou-se para o canto do quarto e viu alguém de pé ali.

Viu e reconheceu.

Talvez, no final das contas, ela não fosse ter um tempo para se recuperar...


Capítulo Nove

Kylie girou sobre seus tênis, provavelmente deixando marcas de derrapagem no assoalho de madeira, e começou a sair do quarto.

— Não vá! — disse Lucas. — Por favor! Você vai ter que falar comigo mais cedo ou mais tarde.

Mais tarde seria muito melhor. Então a raiva a fez apertar as mãos. Não era justo. Ela olhou fixamente para a parede, ainda sem querer enfrentá-lo.

— Por quê? Por que eu tenho que falar com você? Não lhe devo nada. Nenhuma explicação, nenhuma desculpa. Não fui eu quem... — Sua garganta se estreitou e ela ficou em silêncio. Ouviu-o se deslocar atrás dela.

— Eu sei... Estraguei tudo. Eu admito isso. Eu... deveria ter contado. Não, está errado, eu nunca deveria ter deixado ir tão longe. Eu deveria ter dito ao meu pai para se danar logo no início. Fui eu quem errei, mas não fiz nada... além disso. Eu não dormi com ela. Beijei-a duas vezes. Você viu um desses momentos. E em ambas as vezes eu estava em apuros. Só fiz aquilo para tentar convencer o meu pai de que eu tinha concordado com o casamento. Mas nunca, nem por um minuto, planejei me casar com ela.

O nó na garganta de Kylie apertou ainda mais. Seus olhos ardiam, assim como seu coração. Ela balançou a cabeça e conseguiu dizer uma palavra.

— Não. — Ela nem sabia direito a que se referia ao dizer não. Então se virou e o encarou.

Não importava o que ela dissesse, porque ele não estava ouvindo.

Ele ficou lá olhando para ela em seu próprio mundo de dor e sofrimento.

— Você me ama — disse ele. — Eu sei disso.

Agora era a hora de ela dizer não, mas não conseguiu pronunciar a palavra. Ah, ela estava na ponta da língua, mas ficou colada ali. Claro que teria sido uma mentira, mas não se podia mentir em momentos como aquele? Quando a verdade era muito dolorosa? Quando a verdade poderia dilacerar você?

— Eu também sei que você está me castigando. E está funcionando, porque estou sofrendo como um cachorro. Não que eu não mereça isso. — Ele estendeu a mão e passou-a na parte de trás do pescoço.

Kylie piscou para conter as lágrimas. Mesmo na escuridão ela podia ver os hematomas no pescoço dele. Contusões que ela mesma provocara. Ela apertou as mãos ao se lembrar de quanto chegara perto de esmagar a traqueia de Lucas.

— Eu não queria sufocá-lo — ela disse. — Foi um truque de... de Mario. Eu não sei como ele fez isso, mas...

— Eu sei. Não acho que você quisesse... me punir com isso. — Ele passou a mão sobre as contusões. — Isso não é nada comparado ao que sinto por dentro. Estou falando de você não querer falar comigo, não querer me ter por perto. Você não tem ideia do quanto dói ficar bem aqui, tão perto... Você pode imaginar quão difícil é ficar aqui e saber que você não quer que eu a toque? — Ele deu um passo, como se a testasse.

Embora ele ainda estivesse a alguns centímetros, o aroma veio com ele. Ela se lembrou de ter sentido esse cheiro quando entrou na cabana. Ela deveria saber. Deveria ter percebido que parte do cheiro da casa que lhe dera as boas-vindas era a essência dele. Ele representava um lar para ela.

Ou tinha representado.

Agora ela se sentia uma sem-teto.

Ele deve ter reunido um pouco mais de coragem, porque deu outro passo.

Ela recuou. E aquele pequeno recuo disse tanto!

— Está vendo? — ele disse, e até respirar lhe parecia doloroso. — Mas eu sei que você ainda gosta de mim porque... porque você salvou minha vida. Você poderia não ter feito nada e deixado Mario me matar. Você não fez isso. Pegou as bolas de fogo que ele atirou em mim.

A emoção dele ecoou pelo cômodo, e ela daria qualquer coisa para não ter que sentir isso. Quanta emoção ela ainda podia aguentar?

Não havia um limite? Certamente ela havia chegado ao seu.

— Sim, eu salvei a sua vida, mas não me faça me arrepender. — Ela acenou em direção à porta. — Saia. Eu não quero você aqui. — E era a verdade.

Ela não queria ali o Lucas que a traíra. Ela queria o Lucas em quem ela confiava, o Lucas que ela achava que iria até o fim do mundo para protegê-la. E, no entanto, eles eram todos a mesma pessoa.

Ele deu mais um passo. Ela viu seu pomo de adão subir e descer. Parecia doloroso engolir.

— Eu magoei você — disse ele. — Sei disso, e estou disposto a ouvir tudo que você queira jogar na minha cara. Eu mereço. Foi isso que eu vim dizer. Que aceito que o que fiz foi errado. Mas não fiz outras coisas que talvez você pense que eu fiz. E quando a sua raiva passar, eu ainda vou estar aqui. Não importa quanto tempo leve.

Ela desviou o olhar, lembrando-se dele de pé na frente da família e dos amigos. Ele usava um smoking e parecia tão bonito... Parecia um homem, não um garoto. A imagem dele pegando as mãos de Monique passou-lhe pela cabeça e ela ouviu as promessas que ele tinha feito. O tipo de promessa que não se quebrava.

Uma nova onda de dor tomou conta dela. Kylie o olhou novamente.

— Você deu a ela sua alma.

Ele balançou a cabeça.

— Não, você está errada. Eu não dei a ela a minha alma. Eu menti. Eu não poderia ter dado a ela a minha alma. Porque eu já tinha dado a minha alma. Você a roubou quando eu tinha 7 anos de idade. — A voz dele tremeu. — E se ainda restasse uma parte dela comigo, você teria pego o resto quando entrou em Shadow Falls naquele primeiro dia. Na cultura dos lobisomens, acredita-se que só exista uma alma gêmea. E você é minha, Kylie Galen. Eu soube disso naquele momento e isso não mudou.

A visão dela estava borrada de lágrimas. Ela inspirou, esperando manter as emoções sob controle. Mas sentiu uma lágrima deslizar dos cílios para a bochecha.

Ela a secou. A respiração estremeceu quando Kylie sorveu o ar e inflou os pulmões. Por que doía respirar?

Você é minha, Kylie Galen. As palavras dele ecoaram em seu coração. Ela não podia negar que parte dela queria ir com ele, para fazê-lo dizer aquilo várias e várias vezes até que a dor que borbulhava em seu peito tivesse um fim. Até que ela pudesse olhar para ele sem se lembrar de como tinha se sentido ao vê-lo fazendo promessas para outra pessoa. Mas ela não conseguia se aproximar dele, porque sabia que a dor não iria embora.

Não agora.

Talvez nunca.

Ela não tinha certeza.

Lucas fez uma pausa e ela viu a mesma dor que sentia no peito se refletir nos olhos dele. Sua própria dor dobrou de tamanho ao saber que ela o feria. Mas não tinha sido tudo culpa dele? Por que ela deveria se sentir culpada por ele estar sofrendo agora?

— Sinto muito ter te causado essa dor — disse ele. — E por mais raiva que você esteja sentindo agora, precisa saber que estou com mais raiva ainda de mim mesmo. Eu fiz isso com você. Conosco. Machuquei a pessoa mais importante na minha vida. Se mais alguém tivesse feito tanto mal a você, eu arrancaria o coração dessa pessoa.

Ele ficou ali, só olhando para ela. O silêncio no quarto parecia muito alto. Ou era a dor ecoando na sala que perfurava seus ouvidos?

— Eu vou embora agora — ele disse, e Kylie não conseguia se lembrar de algum dia tê-lo visto parecer tão derrotado. Tão perdido. — Já disse o que queria, e apenas saiba que vou te dar todo o tempo que quiser para me perdoar. Mas não me perdoar... isso eu não vou aceitar. Porque eu te amo.

Ela se afastou para que Lucas passasse e ele saiu pela porta. Ela foi para a cama. Sentou-se. Chutou os sapatos.

— Gatinho, gatinho... — ela chamou, querendo algo para abraçar. Mas Socks não apareceu. Ele realmente não gostava de lobisomens. Nesse exato momento, uma parte dela concordava com ele.

Ela colocou as pernas para cima e abraçou os joelhos contra o peito tão apertado que chegou a doer.

E então esperou.

Esperou que as lágrimas fluíssem com força total.

Esperou que um pouco da pressão que oprimia seu coração desaparecesse. Mas as lágrimas não fluíram. A pressão manteve-se.

Fechando os olhos, ela mordeu o lábio. Por que não conseguia chorar?

Será que estava simplesmente esgotada?

E confusa?

Sim, ela estava confusa demais.

Como Lucas podia agora ver que estava errado e ter sido incapaz de ver isso na época? Como é que ele pôde ter ficado lá em pé e prometido sua alma, prometido se casar com outra pessoa, se ele amava Kylie?

Mas por que ele mentiria? Por que teria vindo dizer todas aquelas coisas se elas não fossem verdadeiras?

Ela ficou sentada ali, no quarto escuro, por longos minutos. Sentia-se sozinha. Solitária.

Um pensamento louco e um pouco infantil lhe ocorreu: Eu quero a minha mãe. Mas a mãe dela não estava ali. Não em Shadow Falls. Nem mesmo no país. A mãe dela estava na Inglaterra transando com um cara que Kylie odiava.

Mas ela ainda podia lhe telefonar. Quem sabe conseguisse até mesmo causar um leve transtorno nos planos de John de seduzir sua mãe. Isso tornou a ideia de telefonar ainda mais tentadora. Ela queria que John soubesse que sua mãe não estava sozinha no mundo.

Ela enfiou a mão no bolso e, em seguida, gemeu. Havia deixado o telefone na casa do avô.

— Droga! — Kylie murmurou. À medida que as frustrações pelo telefone perdido ocupavam o seu cérebro, seus pensamentos foram para Jenny, para a conversa em que ela tinha confessado falar com Hayden e para algumas das acusações que tinha feito com relação aos anciãos. Será que os jovens camaleões eram realmente forçados a viver num mundo de isolamento? Parecia tão errado!

De repente ela se sentiu compelida a procurar Hayden Yates. Ele teria respostas. Talvez pudesse até mesmo garantir que o avô não estava por trás disso. Ela ficou de pé num salto, correu para a porta, mas abrandou o passo quando chegou à porta. Ah, droga! Ela só poderia ir com uma sombra.

Burnett surtaria se descobrisse que Kylie estava vagando sozinha à noite. Mas, dane-se!, ela precisava de respostas. E às vezes era preciso quebrar as regras. Ela saiu, fechando a porta silenciosamente para não acordar Miranda. Descendo os degraus da varanda, ela se dirigiu para o caminho que levaria à cabana de Hayden. Ele provavelmente ainda estaria dormindo, mas ela não se importava.

Kylie estava a poucos metros quando viu alguém aparecer por entre as árvores. Sua respiração ficou presa na garganta quando viu quem era.

O pensamento que lhe veio à mente foi uma frase que Nana tinha lhe dito muitas vezes, quando ela se via numa situação ruim. Ela estava num mato sem cachorro.

— Eu... Sinto muito — Kylie murmurou.

— Não precisa nem mesmo tentar me convencer a não ficar furioso! — Burnett rosnou. — Nem uma palavra!

— Eu só...

— Já são duas palavras e eu disse “nenhuma”! — ele retrucou, e fez um gesto com a mão para dar mais ênfase.

Kylie mordeu o lábio e, como dava para imaginar, as lágrimas começaram a fluir. Grossas e rápidas. Ela fungou e enxugou o rosto com as costas da mão. Sua respiração ficou presa no peito. Mas caramba! Por que isso não poderia ter acontecido quando ela estava sozinha?

— Essas lágrimas não me afetam, mocinha! — Ele apontou um dedo para ela. Embora ela não pudesse ouvir seu coração bater no ritmo de uma mentira, ela a pressentiu em sua voz. As lágrimas dela na verdade o afetavam. Não o suficiente para impedi-lo de ficar furioso, mas o suficiente para que sua voz denunciasse sua emoção.

E saber que ela o desapontara adicionou outra camada de dor no seu peito. Justamente aquilo de que ela precisava... mais dor.

Ela abraçou a si mesma e tentou parar de chorar. Mas as lágrimas continuavam brotando. Ele não disse nada. Apenas ficou andando de um lado para o outro, na frente dela.

De um lado para o outro.

De um lado e para o outro.

Olhando para ela o tempo todo com total descontentamento e decepção. Ela começou a voltar para sua cabana, e ele rosnou. Apenas um rosnar. Sem palavras, mas com entonação suficiente para ela saber que ele não queria que ela saísse da cabana. Obviamente, sua punição era ficar ali e aceitar o fato de que o decepcionara.

Num recôndito da sua mente, ela se perguntou se era assim que Lucas se sentia.

Mais uma vez sentiu o tremor em sua respiração.

— Eu só...

— Eu disse que você poderia falar? — ele perguntou. Ele andou mais três vezes de um lado e para o outro, como se estivesse tentando se acalmar, antes de olhar para ela novamente.

— Onde você estava indo?

Quando ela o olhou, ele cuspiu:

— Responda.

— Você disse que eu não podia falar. — Ela enxugou o rosto novamente.

— Onde você estava indo, Kylie?

Santo Deus, ela não sabia o que dizer! Não podia dizer a verdade. Ela tinha prometido ao avô que nunca entregaria Hayden Yates.

Sim, ela estava definitivamente num mato sem nenhum cachorro à vista.

— Você ia ver Lucas? — perguntou Burnett.

Ela começou a concordar com a cabeça, mas sentiu o coração disparar só de pensar numa mentira.

— Então não era Lucas — ele sibilou, obviamente, ouvindo o coração dela e sabendo que ela estava tentada a mentir.

Ele se aproximou um pouco mais e seus olhos escuros a analisaram. Ele estava perto demais. Tão perto que ela viu novamente a decepção em seus olhos, e o nó na garganta ressuscitou.

Ela tentou pensar no que dizer, algo para ajudar, algo inofensivo. Algo que não fosse uma mentira.

— Eu só...

— Não precisa nem falar se você vai mentir.

Ok, então seu coração não ia permitir nem mesmo uma mentirinha para tirá-la dessa encrenca.

— Eu quero a verdade — disse ele. — Você estava indo se encontrar com seu avô?

— Não — Kylie disse com sinceridade, e com ela veio um enorme alívio.

Ele a estudou mais de perto. Seus olhos se estreitaram.

— Ok, vou fazer uma pergunta direta e quero que me diga sim ou não. Não tente me enganar, porque eu vou saber. — Ele fez uma pausa para causar mais efeito, ou talvez apenas para ordenar seus pensamentos. — Você ia ver Hayden Yates?

A mente de Kylie disparou. O que Burnett sabia? Quando o avô lhe contara que Burnett tinha acreditado na mentira de Hayden, de que ela tinha simplesmente enganado o professor, levando-o a pensar que tinha permissão para sair, ela não tinha acreditado que Hayden havia enganado Burnett.

Ele sabia alguma coisa. Mas quanto e o que ele sabia continuavam sendo um mistério.

— Ok, seu silêncio praticamente responde à minha pergunta. Vamos. — Ele fez sinal para que ela começasse a andar.

— Para onde? — ela perguntou, com medo do que ele ia dizer.

— Você queria ver Hayden, então vamos vê-lo. E então ou vocês dois vão me dizer que diabos está acontecendo ou o bicho vai pegar!


Capítulo Dez

Kylie tinha ouvido a expressão “o bicho vai pegar”, num filme em que condenados caminhavam para a execução e, no trajeto até a cabana de Hayden, ela de fato caminhava como um condenado rumo à cadeira elétrica. Burnett não falou. Ela mal o ouvia respirar. E ainda assim sua postura rígida ao lado dela revelava sua impaciência. Sua lealdade para com o avô e Burnett dilacerava o seu coração como num cabo de guerra.

— Podemos falar com Holiday primeiro? — perguntou Kylie, sabendo que talvez a fae pudesse acalmar Burnett e fazê-lo entender.

— Não. — A resposta de Burnett soou áspera. — Eu vou descobrir a verdade.

Mas a que preço, Kylie pensava. Será que Hayden perceberia que Kylie não o delatara? Ela esperava que sim. Mas será que o avô ia pensar que ela quebrara a sua promessa?

Ela achava que sim.

Como o homem andando tão bruscamente ao seu lado, seu avô também não era tolerante.

Quando chegaram à curva perto da cabana de Hayden, Kylie procurou desesperadamente uma saída.

— Temos que acordá-lo? Não podemos simplesmente...

— Ele já está acordado — Burnett disse com severidade. — Está se revirando na cama, preocupado com alguma coisa. Ele estava esperando você esta manhã? Você já está atrasada?

— Não — ela murmurou.

Eles continuaram avançando até chegar aos degraus da varanda da cabana e de repente Kylie percebeu uma coisa. A raiva agitou suas entranhas e ela agarrou Burnett pelo cotovelo.

— Tudo bem, você pode ouvir tudo!

— E por que está me dizendo isso agora? — perguntou ele, obviamente notando a sua nova disposição. E, sim, ficar com raiva fez com que ela se sentisse um pouco menos culpada por ter sido pega escondendo coisas dele.

— Mais cedo, quando me deixou na minha cabana, você sabia que Lucas estava lá, não sabia? Você sabia que ele estava esperando para falar comigo!

Um vinco se formou na testa de Burnett, demonstrando culpa.

— Ele me implorou para lhe dar dez minutos.

— E você deu. Achou que a escolha era sua — Kylie acusou.

Burnett franziu a testa, mas a culpa não desapareceu completamente dos seus olhos.

— Se bem me lembro, você também colocou o seu dedinho no meu relacionamento amoroso com Holiday.

— Nenhum de vocês dois fugiu e ficou noivo de outra pessoa!

Burnett não vacilou, mas pela expressão dele viu que o argumento provocou um peso na consciência do vampiro.

— Todo mundo merece a chance de se explicar — ele justificou, sem muita convicção.

— Não há explicação para o que ele fez — ela contra-atacou.

Burnett suspirou e beliscou a parte superior do nariz.

— Ok, admito que eu possa ter errado permitindo esse privilégio a ele. E já adianto que não vou interferir mais. E agora, talvez você e Hayden possam se corrigir também e explicar o que os dois estão escondendo de mim!

Ele arqueou uma sobrancelha para Kylie, levantou o punho e bateu na porta de Hayden com tanta força que sacudiu as dobradiças.

Depois de descarregar todo o seu mau humor na porta, Burnett desviou os olhos para Kylie novamente. Ela percebeu a sua mente agitada, à procura de respostas. Era a primeira vez que ela tinha a sensação de que Burnett não sabia tanto quanto ela temia.

— Fique avisada — ameaçou o vampiro —, se eu descobrir que está rolando um romance aqui, vou mandá-lo de volta para o lugar de onde veio... mas aos pedaços.

O queixo de Kylie caiu.

— Um romance? Ah, pelo amor de Deus, ele é muito velho pra mim. Tão velho quanto você.

A testa de Burnett se franziu.

— É por isso mesmo que estou avisando... — Sua carranca se aprofundou. — Não que eu seja tão velho assim.

Hayden abriu a porta e seu olhar oscilou entre Burnett e Kylie.

Burnett rosnou. Depois o vampiro cruzou a soleira da porta como se fosse o maioral ali. O que de fato ele era.

Hayden não ficou feliz com a entrada triunfal de Burnett, mas não tentou detê-lo. Ele recuou, permitindo que o vampiro entrasse.

Kylie engoliu em seco, sem saber como aquela situação ia acabar. Burnett ia ficar furioso e, assim que o avô soubesse que Burnett tinha descoberto o disfarce de Hayden, ele ficaria furioso também.

— Ok, vamos deixar uma coisa bem clara — disse Burnett, iniciando a conversa. — Ninguém vai deixar esta cabana até que eu tenha respostas. E não me importo de ter que usar a força para obtê-las. — Ele olhou diretamente para Hayden. — E já que eu não bato em garotas, sugiro que você comece a se explicar.

Hayden inclinou a cabeça de lado.

— Explicar o quê? — perguntou, não se mostrando nem um pouco intimidado.

Kylie teve que admirar Hayden por isso, também. Ela adorava Burnett e sabia que ele não era injusto, mas ainda sentia um aperto na boca do estômago. O vampiro era um apreciador da arte da intimidação. E era um mestre nessa arte.

— Qual é a ligação entre vocês dois? — perguntou Burnett.

— Ligação? — perguntou Hayden.

— No início, Kylie tinha certeza de que você estava por trás da morte das garotas, e de repente você se tornou um aliado. Você mentiu quando me disse que ela pediu para ser deixada no cemitério.

— Eu a deixei no cemitério.

— Então você mentiu sobre ela tê-lo procurado. Eu conheço Kylie, e ela não teria procurado você para pedir ajuda sem um motivo, sem uma conexão de algum tipo.

— Sou professor dela — respondeu Hayden. — Pensei que ajudar um aluno em situação difícel era um fator positivo aqui.

— E eu pensei que você fosse inteligente o bastante para saber quando falar a verdade! — Os olhos de Burnett soltavam centelhas de raiva. — A única razão pela qual eu ainda não chutei você daqui é que primeiro eu quero respostas. Portanto, comece a falar!

Kylie, com medo de que a situação saísse do controle, colocou-se entre os dois homens.

— Será que você pode nos deixar sozinhos um instante?

A expressão de Burnett endureceu.

— Por favor — disse Kylie. — Eu... acho que vai ajudar a esclarecer isto.

Burnett cerrou o maxilar a ponto de parecer que estava prestes a quebrá-lo.

— E quando você voltar, vou ter as respostas que você quer.

A carranca se aprofundou.

— Estarei do lado de fora da porta.

— Mas você ainda vai poder ouvir...

— É tudo o que eu posso oferecer! — ele deixou claro.

De repente, ela percebeu que aquilo bastava, pois ela e Hayden poderiam ficar invisíveis e a conversa entre eles não seria ouvida pelos ouvidos indiscretos do vampiro. Ela concordou com a cabeça e observou o vampiro furioso sair. Assim que a porta se fechou, ela pressionou um dedo sobre os lábios e, em seguida, agarrou a mão de Hayden e levou-o para o reino invisível com ela.

— Você já consegue fazer isso? — A voz de Hayden ecoou, mas ele permaneceu invisível.

— Consigo. — Kylie segurou a mão dele, para saber onde ele estava.

— Isso é incrível, Kylie! Você percebe quanto já progrediu? Quando foi que você...

— Desculpe, mas não temos tempo para falar sobre isso agora. O que vamos dizer a Burnett? Eu acho que devíamos abrir o jogo.

— Ele vai insistir para eu ir embora — disse Hayden. — E você vai perder a minha proteção.

— Em primeiro lugar, não preciso da proteção de ninguém aqui. Mas não quero que você vá, quero ter alguém que eu possa procurar se tiver alguma dúvida. Em segundo lugar, não sei bem se Burnett vai mandar você embora. Mas, se não dissermos a verdade, ele com certeza vai chutar você daqui. A única chance que temos é dizer a verdade.

— Talvez você tenha razão... — disse Hayden. — Mas...

— Não contei nada a ele, você sabe. Ele ainda não sabe que você é um camaleão. Ele simplesmente...

— Eu sei — disse Hayden. — Ele já desconfiava de mim desde antes de você partir.

— A culpa é minha. Eu...

— Eu sei — disse Hayden.

O som da porta da frente batendo violentamente interrompeu Hayden. Burnett invadiu a cabana, com os olhos brilhando de fúria.

— Esse homem é impossível — disse Hayden.

— Filhos de uma...! — As palavras de Burnett ecoaram pelo cômodo. — Kylie! Onde você está?!

— Vou falar com ele — Kylie disse a Hayden. — Você fica invisível.

Ela soltou a mão dele e desejou ficar visível.

A cara feia de Burnett fixou-se nela instantaneamente.

— Onde ele está? — ele perguntou com rispidez.

— Está aqui. Nós ainda estamos conversando. Em particular, como eu pedi.

— Você pode deixar outras pessoas invisíveis?

Ela assentiu com a cabeça. Não que eu precisasse deixar Hayden invisível, sendo ele um camaleão, mas Burnett não sabe disso.

— Isso é tolice. Eu quero respostas!

— E você vai ter, se me der um tempo — ela implorou, sem recuar. — Estou pedindo que você confie em mim, como você mesmo me pediu tantas vezes no passado.

Ele grunhiu e voltou a olhar para o teto, como se pedindo a Deus para ter paciência. Kylie desejou ficar invisível novamente.

— Eu estou bem aqui — a voz de Hayden soou ao seu lado. — Então exatamente o que você quer contar a ele?

— Tudo — Kylie disse olhando para o vazio, mas acreditando que ele estava ali. — Que você foi enviado aqui pelo meu avô e é um camaleão. E que você quer ficar aqui. — Ela fez uma pausa. — E não faria mal acrescentar quanto você está impressionado com este lugar. Se pudermos convencê-lo de que você é nosso aliado, então talvez...

— Talvez o quê? — perguntou Hayden.

— Eu não sei se é possível, mas eu estava pensando que uma grande parte dos camaleões mais jovens, como Jenny, poderia se beneficiar de Shadow Falls.

— Tenho pensado nisso também — disse Hayden. — Mas os anciãos não vão...

— Ok, acabou o tempo! — Burnett gritou, e começou a andar em torno do cômodo. — Podem fazer o favor de voltar agora.

— Só mais um minuto — Kylie insistiu. — Estamos quase terminando.

— Ele não pode ouvi-la — disse Hayden.

— Ah, é. — Ela fez uma pausa; as perguntas que tinha para Hayden se sucediam na sua cabeça, mas Burnett estava prestes a surtar. E um surto de Burnett não era brincadeira.

— Está pronto? — perguntou Kylie. — Eu tenho muito mais para conversar com você, mas por ora... Acho que devemos acabar logo com isso. Espere! — Kylie pediu. Quando ela não o ouviu, ela chamou por ele. — Hayden?

— O quê? — ele perguntou.

— Você acha que meu avô estava a par do plano de me raptar e me impedir de vir para Shadow Falls?

— Não. Eu não acho. Ele está muito preocupado com você, a ponto de me ligar seis vezes antes de você chegar.

O alívio vibrou através dela.

— Você pode dizer a ele que eu sinto muito por... não ter me despedido?

— Claro.

— Kylie! — Burnett rosnou.

Respirando fundo, ela desejou ficar visível novamente. Hayden apareceu ao seu lado.

Burnett não pareceu impressionado. Ele se aproximou de Hayden e agarrou-o pela gola da camisa.

— Desapareça de novo e eu vou fazer você desaparecer para sempre.

— Acalme-se. — Kylie aproximou-se de Burnett. — Hayden não é nosso inimigo. É por causa dele que conseguimos encontrar Holiday, quando Warren a levou. Na verdade, foi por causa dele que eu consegui escapar esta noite. — Kylie viu Hayden olhar para ela como se estivesse surpreso ao ver que ela conhecia essa peça do quebra-cabeça.

Burnett soltou Hayden e depois estudou a testa do professor.

— Não me diga que você é um camaleão.

A postura corporal de Hayden se enrijeceu.

— Você diz isso como se fosse um insulto.

Burnett endireitou os ombros.

— Eu digo isso como se você tivesse mentido para mim.

Hayden arrumou a gola da camisa.

— Eu vim aqui para me certificar de que Kylie não seria levada para a UPF por alguém que vive alardeando sua autoridade.

Burnett fez uma careta.

— Eu sou a autoridade aqui. E investiguei você a fundo. Tudo indica que seja metade vampiro, metade fae. Você está até registrado assim.

— Estou — disse Hayden.

— Mas isso não é verdade.

Hayden não piscou.

— Foi assim que eu escolhi viver a minha vida.

Burnett balançou a cabeça, como se estivesse tentando entender.

— Mas, de acordo com a minha pesquisa, o avô de Kylie está registrado como ser humano na UPF. E os poucos camaleões que eu vi fora do complexo usavam o padrão de seres humanos. Eu achava que isso era o que todos vocês faziam o mundo pensar. Aliás, por que você optou por não viver no complexo com os outros? Você é um desgarrado?

Hayden se empertigou.

— Você é um desgarrado porque não vive numa comunidade de vampiros? A gente deve viver a vida como quer, não é assim? Eu simplesmente preferi viver por conta própria e escolhi ser sobrenatural em vez de humano.

— Então, você apenas escolheu uma espécie e falsificou esse padrão?

— Eu não fiz nada de errado para ser julgado por você — Hayden disse.

Burnett ainda parecia confuso.

— Quantos como você existem por aí? Vivendo como um tipo diferente de sobrenatural?

— Não o suficiente para a gente se sentir confortável se expondo por aí — Hayden explicou. — Não quando a História tem mostrado o que pode acontecer.

Kylie viu Burnett tentar absorver e registrar o que estava ouvindo.

— Então, quando você viu que eu não representava nenhuma ameaça à Kylie, por que não revelou sua identidade?

— Para que você pudesse me chutar daqui ou, pior, me prender?

Burnett era forte, até mesmo um pouco mais forte do que Hayden, mas verbalmente Hayden estava levando a melhor. E esse fato não agradava a Burnett.

— Você trabalha para o avô de Kylie? — perguntou Burnett.

— Se trabalho para ele? Não. Se eu o estava ajudando? Sim. Como você deve saber com base nas muitas investigações que fez a meu respeito, eu dei aulas para o ensino médio durante três anos numa escola em Houston.

— Você ainda está ajudando o avô de Kylie? — A pergunta de Burnett pairou no ar como se a resposta fosse decisiva.

— Depende do que você entende por ajudar. Estou tentando ir contra você para causar algum dano a Kylie? Não. Mas ainda estou de olho nela e respondendo às perguntas de seu avô preocupado? Sim.

— O mesmo avô preocupado que tinha planejado sequestrá-la?

— Meu avô não estava por trás disso! — disse Kylie antes que Hayden pudesse responder. — E eu tampouco quero que você mande Hayden embora. Por favor, Burnett, faça isso por mim.

Burnett olhou para Kylie.

— Não sei se eu posso trabalhar com alguém que não sabe a quem ser leal.

Kylie revirou os olhos.

— Quer dizer, como você e a UPF?

Burnett estreitou os olhos.

— Meu compromisso foi sempre o de proteger você.

— Mas você ainda trabalha para eles também. Porque, como você diz, você vê o bem que a UPF faz. Bem, Hayden faz o mesmo. Ele quer me proteger, mas compreende que o meu avô tem boas intenções. Por que você não pode aceitar isso?

Burnett franziu a testa, mas Kylie podia ver que seu argumento tinha convencido o vampiro.

— Vou levar isso em consideração e discutir o assunto com Holiday.

Hayden acenou com a cabeça, sua expressão dizendo que não iria implorar para ficar. Não que Kylie o culpasse por não querer implorar, mas ela não era orgulhosa a ponto de fazer o mesmo. Sua vida seria simplesmente mais fácil com Hayden ali, e a ajudaria a se comunicar com o avô. Ela realmente, realmente precisava de Hayden.

— Minhas regras, no entanto, ainda estão valendo — Burnett continuou. — Não importa o que eu decida com relação ao futuro do senhor Yates em Shadow Falls — disse Burnett, encarando Kylie —, você não vai fugir para ver o seu avô. Vai andar por aí acompanhada de uma sombra e, se eu tiver que guardar pessoalmente sua cabana todas as noites para impedi-la de violar as regras, vou fazer isso.

Kylie concordou com a cabeça, aceitando que teria que conquistar a confiança do vampiro novamente.

Burnett voltou sua atenção para Hayden.

— E se eu decidir deixá-lo ficar em Shadow Falls, espero que aceite as minhas regras e me ajude a ficar de olho em Kylie. E me ajude também a aprender como lidar com aquele ladino da sua espécie.

— Se você decidir que eu posso ficar, vou considerar a sua oferta — disse Hayden, a rispidez da sua voz indicando que ele obviamente não tinha se esquecido do comportamento de Burnett. Não que Kylie pudesse culpá-lo. Ela também tinha levado um tempo para se acostumar com o vampiro. Até perceber quanto ele se importava com ela.

— Mas uma coisa eu posso dizer, senhor James, eu me recuso a ser tratado com desrespeito.

— Desrespeito? — Burnett rosnou.

E então tudo foi por água abaixo.

Burnett e Hayden passaram a trocar duros golpes verbais. De acordo com Hayden, Burnett era metido a besta e, de acordo com Burnett, Hayden era um idiota pedante que tinha mentido para ele.

Ela não sabia se tinha certeza de que a tensão não acabaria com uma troca de socos ou se estava simplesmente cansada demais para se importar. Se os dois quebrassem o nariz um do outro, paciência. Ela não achava que fossem se matar. Pensando bem, ela podia estar enganada.

No entanto, subitamente ficou cansada demais para tentar detê-los.

Seus joelhos ficaram bambos e as pálpebras, cada vez mais pesadas. Ela tinha que se sentar antes que caísse ali mesmo. Ignorando os dois homens trocando insultos, Kylie atravessou o cômodo e se jogou no sofá de Hayden.

Sentindo um arrepio percorrê-la, ela abraçou a si mesma. Estava tão cansada que levou um minuto para perceber que o frio não era apenas uma reação natural à sua exaustão. Também levou um segundo para perceber que os homens haviam parado de discutir e estavam olhando para ela.

Kylie ignorou os homens para lidar com o espírito.

— Agora não — ela murmurou, e olhou diretamente para a mesinha de centro na frente dela, sem vontade de enfrentar o fantasma e sua conversa absurda sobre um assassinato. E realmente sem vontade de enfrentar Burnett ou Hayden, também.

— Agora não, o quê? — perguntou Burnett.

— Nada — disse Kylie, e o fantasma entrou na frente dela. Seu vestido rosa pálido pendia pesado, encharcado de sangue. Muito sangue. Pelo menos parecia sangue.

Matar ou ser morto. As palavras do espírito se agitaram na mente de Kylie.

Ela se inclinou para trás e fitou os olhos frios e sem vida do espírito. Neste momento, eu ia preferir “estar morta”. Estou cansada demais.

— Está pronta para voltar para sua cabana? — Burnett olhou ao redor como se tivesse consciência de que havia um visitante ali que ele não podia ver. Ele de fato não devia ser capaz de ver o fantasma, mas tinha conseguido ver Hannah, a irmã de Holiday, então Kylie não tinha certeza.

— Você pode vê-la? — perguntou Kylie.

— Ver quem? — perguntou Hayden.

— Um fantasma — Burnett respondeu a Hayden.

— Merda! — Hayden murmurou, e deu um passo para trás.

— Não, mas posso senti-la — disse Burnett, e seu olhar preocupado se fixou em Kylie. — Você não vai desmaiar, não é?

— Acho que não — respondeu Kylie.

— Ótimo. Vamos voltar para a sua cabana? — perguntou Burnett novamente.

— Sim — disse Kylie. Quando estava prestes a se levantar, ela viu o telefone de Hayden sobre a mesinha de centro. Lembrando-se de que queria ligar para a mãe, ela o pegou e olhou para Hayden. — Vou pegar emprestado, tá? — disse a ele. — Deixei o meu com o meu avô.

Hayden fez uma careta.

— Só não ligue para a minha namorada como fez da última vez que pegou o meu telefone emprestado.

Ela andou até Hayden, ignorando o espírito que sentia estar perto da porta, e o abraçou. Talvez ela não devesse ter feito isso, porque ele ficou tenso. O que os homens têm contra os abraços?, ela se perguntou.

— Obrigada — disse ela, afastando-se.

— Tudo bem.

Ela olhou para Burnett. Ele parecia chateado, como se ela tivesse acabado de abraçar o inimigo.

— Sabem, o problema com vocês dois é que são muito parecidos — ela constatou.

Ambos pigarrearam como se não concordassem. Kylie apenas revirou os olhos e se dirigiu para a porta. E o fantasma, carregando uma espada ensanguentada numa mão e... e a cabeça de alguém na outra, entrou na frente de Kylie. A cabeça, aparentemente recém-cortada e ainda pingando sangue, balançava e batia contra seu quadril enquanto ela se movia.

Kylie arquejou e fez uma parada abrupta. O espírito se virou e sorriu. Em seguida, levantando a cabeça por um punhado de cabelo escuro como se fosse um troféu, deu uma boa sacudida nela.

— Eu disse, matar é moleza.

O fantasma agitou a cabeça decapitada. Os olhos balançaram, como se soltos das órbitas, e o sangue esguichou do pescoço. Kylie soltou um grito assustado.

Perdendo o equilíbrio, Kylie colidiu com Burnett, enterrou o rosto em seu ombro e ficou ali.

— Estou cansada demais para enfrentar cabeças decapitadas — ela choramingou. — Faça com que ela vá embora. Por favor, faça com que ela vá embora.


Capítulo Onze

Cinco minutos depois, o fantasma tinha desaparecido e Kylie subia os degraus da sua varanda e despedia-se de Burnett.

Ele a olhou com compaixão. Não tinha se desculpado por ser tão duro com ela e provavelmente não se desculparia. Sem dúvida, achava que ela merecia. E, de certa forma, ela achava que merecia mesmo.

Burnett a contornou e abriu a porta.

— Promete ir para a cama e não tentar fugir de novo?

— Prometo — disse Kylie.

— E tente confiar em mim — ele disse.

— Eu confio.

— Não, não confia — ele afirmou, derrotado. — Se confiasse em mim, eu não teria descoberto só agora o disfarce de Hayden.

— Alguém me fez prometer não contar — disse ela. — Se você tivesse prometido alguma coisa a alguém, não iria tentar cumprir essa promessa?

Ele suspirou, provavelmente oferecendo-lhe o seu melhor olhar de compreensão.

— Mas você precisa ter cuidado com o que promete às pessoas. — Ele olhou ao redor, procurando algo, um pouco desconfiado. — Ela ainda está aí fora?

Kylie sabia o que ele queria dizer com “ela”. Olhou para a esquerda e, em seguida, para a direita.

— Não estou vendo nada. — Mas, no fundo, ela se preocupava com a possibilidade de o espírito não ficar longe por muito tempo. No dia seguinte ela precisava consultar Holiday sobre como se livrar do fantasma permanentemente. A amiga estava certa. Kylie não tinha nenhuma razão para ajudar alguém tão ruim.

— Você sabe o que ela quer? A quem a cabeça pertencia? — perguntou Burnett.

— Não sei. Pode ter acontecido anos atrás. Mas, quanto ao que ela quer, sim, eu sei.

— E o que é? — ele perguntou.

— Ela quer que eu mate alguém para ela. — Kylie estava cansada demais para imprimir sarcasmo à voz.

Burnett fez uma careta.

— Quem?

— Ela não deixou isso muito claro ainda — disse Kylie.

— Eles nunca pedem muita coisa, não é? — disse ele, mas o sarcasmo era claro na voz dele. Obviamente, ele não estava tão exausto quanto ela.

Kylie deu de ombros. Ela foi dar um passo para trás, mas desta vez foi Burnett quem a surpreendeu, ao se aproximar para um abraço. Foi curto, mas carinhoso, e ela percebeu que precisava mesmo de um abraço.

— Você quer que eu fique um pouco? — ele perguntou, parecendo pouco à vontade depois da demonstração de afeto.

— Não — disse Kylie, tirando-o do aperto.

— Quer que eu chame Holiday? — ele perguntou. — Eu posso chamar.

— Não, eu estou bem. Só quero ir para a cama. — Ela olhou para o céu; estava quase amanhecendo. Ela realmente precisava dormir um pouco. Estava fisicamente exausta, mas a caminhada de volta tinha acionado o seu cérebro novamente. Ao sentir o telefone de Hayden em seu bolso, ela se lembrou de que também queria ligar para a mãe. Entrou na varanda, olhando para trás uma vez para ver Burnett em pé nos degraus, olhando-a com um ar de preocupação paternal.

Lembrou-se de seu avô dizendo que Burnett tinha passado a representar um pai para ela e de certo modo ele tinha razão.

— Eu vou ficar bem — assegurou ela, embora não tivesse tanta certeza.

— Prometa que não vai sair da cabana — disse ele novamente.

— Eu prometo. — Ela lhe lançou um sorriso forçado e fechou a porta.

Quando ouviu os passos dele se afastando, Kylie encostou-se à porta e ficou ali. Então algo chamou sua atenção na porta do seu quarto. Seu coração afundou quando viu uma espiral de fumaça saindo da fresta da parte inferior, indicando que ela tinha companhia.

Ah, não. Será que ela trouxe mais alguma coisa para me mostrar? Que parte do corpo tinha arrastado consigo desta vez?

Mas que droga! Kylie não queria nenhuma companhia.

Ou pelo menos não esse tipo de companhia. Ela precisava de uma amiga. Precisava de uma de suas melhores amigas. Olhou por cima do ombro, para ver a porta de Miranda. Não havia nenhuma fumaça ondulando pelas frestas.

Virando-se, ela abriu a porta da amiga. Era cedo, mas algo lhe dizia que Miranda não iria reclamar.

Um sorriso muito necessário borbulhou dentro de Kylie ao ver a bruxa adormecida vestindo seu pijama estampado e abraçando um enorme urso de pelúcia como se fosse seu namorado. Kylie tocou os cabelos loiros com mechas rosas, verdes e pretas da bruxa espalhados pelo travesseiro, e de repente sentiu seu coração mais leve diante da visão de sua boa amiga.

Quando ela deu outro passo, o assoalho de madeira rangeu como se anunciando a presença de Kylie.

Os ombros de Miranda se contraíram, mas ela não se mexeu.

— Pensei que íamos esperar para transar — ela murmurou.

O sorriso de Kylie se alargou.

— Acho que seria mais sensato. Não tenho certeza se o nosso relacionamento poderia suportar algo assim agora.

Miranda virou-se, levando o urso de pelúcia com ela. Seus olhos sonolentos agora estavam totalmente abertos.

— Além disso — Kylie acrescentou —, acho que você e o ursinho de pelúcia já são íntimos.

Miranda gritou, jogou o urso em Kylie e saiu correndo da cama.

— Eu pensei que você fosse Perry! — Rindo, a moça colocou os braços em torno de Kylie e lhe deu um abraço apertado.

— Mal posso acreditar que você está em casa! Estou tão feliz que esteja de volta! — Ela soltou Kylie, deu um passo para trás e olhou para a amiga como se tivesse receio de que ela não fosse real. — Você está em casa, certo? Isto não é um sonho?

— Não é um sonho — assegurou Kylie, embora no fundo desejasse que grande parte daquela noite fosse de fato um sonho.

O sorriso da bruxa diminuiu e ela bateu o pé.

— Você faz ideia de quanto ando me sentindo infeliz? Primeiro você vai embora e me deixa aqui e depois Della sai por aí bancando a super-heroínai! Eu devia estar furiosa com você em vez de me sentir feliz em te ver.

— Não, não fique brava. Vamos só ficar felizes por eu estar de volta. — Kylie pegou o urso de um metro de altura do chão e o recolocou na cama.

Miranda lançou um olhar malicioso para a amiga.

— Você voltou para ficar? Não vai mais fugir de mim?

— Não, chega de fugir — disse Kylie.

— Promessa de mindinho? — Miranda perguntou, estendendo o dedo mínimo.

Por que será que todo mundo agora queria que ela fizesse promessas? Kylie olhou para o dedinho da amiga, que era a arma das bruxas.

— Não sei se é seguro fazer promessas de mindinho com você, porque...

— É seguro. É uma promessa entre bruxas. E como você é meio bruxa, é a promessa mais inquebrável que você pode fazer.

— Tudo bem. Eu prometo. Kylie estendeu o dedo mínimo para tornar válida a promessa. E, embora parecesse um gesto tolo, no momento em que seus dedos se entrelaçaram, uma onda de emoção invadiu seu peito. Talvez as promessas de mindinho entre as bruxas fossem mais do que um gesto infantil. Ou talvez ela só estivesse feliz demais por estar em casa.

— Senti tanto a sua falta! — Kylie estendeu as mãos e apertou os braços da garota.

— Eu também. — Miranda se reclinou na cama. — Agora, sente-se aqui e me conte tudo que aconteceu. — Ela apertou os olhos e verificou o padrão de Kylie. — Você voltou a exibir aquele padrão estranho outra vez.

— Eu acho que o padrão estranho é o de um camaleão. — Se Kylie fosse um pouquinho paranoica, como noventa por cento dos outros camaleões, devia estar tentando esconder esse padrão. Mas era um pouco tarde para isso, não era? Tarde demais para começar a fingir ser algo que não era.

Todo mundo ali já tinha visto o padrão dela. E ela conseguiria fingir?

Claro, ela tinha conseguido alterar o padrão algumas vezes, mas como conseguiria mantê-lo? De acordo com o que havia aprendido, a maioria dos camaleões não era capaz de fazer isso enquanto não atingisse seus 20 anos.

E, por Deus, ela não ia deixar ninguém afastá-la de todos até seu padrão parar de se comportar mal. Seu coração voltou para Jenny e os outros adolescentes da propriedade de seu avô. De repente, Kylie teve o pressentimento de que ajudar os jovens camaleões era parte do seu destino. Mas, como Hayden tinha falado, convencer os camaleões mais velhos parecia impossível.

— Mas você pode se transformar em quase qualquer coisa, não é? — A pergunta de Miranda tirou Kylie de seus devaneios.

— Mais ou menos — Kylie respondeu, tentando manter a mente concentrada em Miranda. — Mas ainda é meio complicado.

— Que maluquices você pode fazer agora? — perguntou Miranda. Seus olhos verdes brilharam de entusiasmo.

Kylie deu de ombros e jogou-se na cama, ao lado de Miranda.

— Nada de novo, apenas um pouco mais de controle sobre o que eu posso fazer. Ah, espere, tem uma coisa. Eu posso fazer as outras pessoas ficarem invisíveis.

— Sério? Me faça ficar invisível agora! Faça! Faça!

— Pelo amor de Deus, agora não. Estou exausta. Além disso, eu não tenho certeza... Quero dizer, é ainda um pouco assustador fazer isso. — Ela se lembrou de como ficara assustada só de pensar que poderia ter perdido Derek no reino do invisível aquela noite.

Então, quase querendo uma distração que lhe permitisse parar de falar sobre si mesma, ela estendeu a mão para o urso e o abraçou.

— Então, está rolando alguma coisa entre você e este urso, hein? Parecia algo muito sério quando cheguei aqui.

Miranda sorriu.

— Perry me deu esse urso para me fazer companhia quando ele não estivesse aqui. No entanto, este cara aqui nem de longe beija tão bem quanto Perry.

Kylie sorriu. Era disso que ela sentira tanta falta. Simplesmente ter alguém com quem conversar, com quem rir.

— Que amor... — disse Kylie.

— É mesmo... — disse Miranda, e então perguntou: — Você pode brilhar a hora que quiser, agora? — Ela abraçou os joelhos e apertou-os contra o peito.

— Não — disse Kylie. — Isso só acontece quando eu curo as pessoas. — Ou as trago de volta da morte, pensou. Perceber os poderes malucos que iam e vinham a deixava assustada. Ela realmente esperava que Hayden e Burnett pudessem resolver as suas diferenças. Seria muito bom se Hayden estivesse ali para ajudá-la, caso as coisas ficassem instáveis novamente.

— É uma pena, aquela coisa de brilhar era demais! Quero dizer, eu posso brilhar também, mas não é tão legal como quando você faz isso. Eu não sei por quê, mas é diferente.

Kylie balançou a cabeça.

— Não foi tão legal, acredite.

— Foi, sim. — Miranda fez uma cara engraçada. — Todos concordaram que você parecia um anjo. Eles até ficaram se perguntando se você não teria um anjinho dentro de você.

— Não sou nenhum anjo. — Basta perguntar a Burnett.

— Todo mundo ainda está falando disso.

Que ótimo! Mas, mesmo correndo o risco de ser tema de conversa de todo mundo e alvo dos olhares surpresos de alguns alunos, ela já não temia isso tanto quanto antes. Precisava admitir, estava emocionada por estar de volta, mesmo que isso significasse que ela ainda era considerada uma aberração.

Deixando tudo isso de lado, ela se concentrou em Miranda novamente.

— Então, o que eu perdi desde que fui embora?

— Tudo. Tem sido uma loucura. Ah... — Uma ruga apareceu na testa da bruxa. — Você ouviu falar de Helen?

— Sim — Kylie assentiu. — Holiday me jurou que ela está bem.

Miranda novamente fez cara de preocupação.

— Você sabe quem eles acham que fez isso? Aquele maluco do Mario foi visto...

Kylie acenou com a cabeça novamente.

— Eu sei.

Miranda fez uma careta.

— Eu também acho que foi ele. Eu tinha começado a sentir aquela presença estranha de novo. Como se alguém estivesse por perto. Me dava arrepios. E eu estava totalmente sozinha, também.

— Eu sei o que você quer dizer. — Um forte arrepio percorreu a espinha de Kylie ao se lembrar do seu confronto com Mario naquele mesmo dia. Então Kylie olhou para Miranda.

— E eu sinto muito. É minha culpa que ele esteja aqui.

— Não é culpa sua. Ele é perverso.

— É, sim. — E ele era. Logo Kylie percebeu que teria que contar a Miranda sobre o que tinha acontecido naquela noite, mas não tinha energia para tanto naquele momento. — Você não está sentindo a presença dele agora, está?

Miranda inclinou a cabeça para o lado como se consultasse seus instintos.

— Não.

— Ótimo! — Kylie afastou a sensação de que ele poderia voltar a qualquer hora. Ela realmente queria acreditar que Shadow Falls era seguro, mas será que estava apenas enganando a si mesma?

— Você está bem? — perguntou Miranda, observando-a.

— Tudo bem. Como é que vai indo a escola?

— Temos um novo professor de História. Para substituir aquele maluco, Collin Warren. Um cara legal. Um lobisomem. Ele é jovem. Só tem uns vinte e poucos anos. Ele era uma criança prodígio, mas ninguém diria disso agora. Você devia ver Fredericka! Ela está caidinha por ele!

Kylie balançou a cabeça em desaprovação, mas não queria falar mal de Fredericka. Elas tinham feito uma espécie de trégua.

— E que outra loucura aconteceu?

Miranda arqueou a sobrancelha direita.

— Nikki aconteceu, e se ela não parar de “acontecer” eu vou encher a cara dela de espinhas!

Miranda ergueu a mão, balançou o dedo mindinho e fez uma careta.

Demorou um instante para Kylie se lembrar de que Nikki era a nova metamorfa que tinha uma quedinha por Perry. Kylie franziu a testa, pensando na Hora do Encontro que ela tinha passado com a garota. Nikki com certeza estava apaixonada por Perry.

— Caramba! Como as coisas vão indo?

— É melhor que as coisas não estejam indo a lugar nenhum! Eu fico tão furiosa com Perry! Quer dizer, ele jura que nunca a tocaria, mas eu acho que ele está adorando saber que uma garota está atrás dele. E tenho certeza de que ele gosta de ver que estou com ciúmes. Ele fala dela em conversas sem importância. Como se gostasse de me ver irritada.

Kylie mordeu o lábio e se perguntou se Lucas não teria ficado um pouco envaidecido ao ver que Monique gostava dele. Mas será que Monique algum dia gostou dele? Será que Lucas tinha realmente falado a verdade quando afirmou que eles não tinham feito nada além de trocar alguns beijos? Seria Monique a garota que Kylie tinha visto na propriedade do avô?

As perguntas vieram tão rápido que ela não teve tempo de se desviar mentalmente.

A amiga se deitou de costas na cama fazendo um pouco de drama, e Kylie percebeu que sua mente a tinha levado de volta aos seus problemas, quando ela devia estar concentrada em Miranda.

— Você confia nele? — perguntou Kylie. — Se confia, então tem que parar de ficar pensando nisso.

Miranda apertou os lábios como se estivesse pensando.

— Foi isso que você fez com Lucas?

— É diferente — defendeu-se Kylie.

Miranda se apoiou sobre um cotovelo.

— Você está bem? Deus, eu sei que deve ter doído.

— Eu vou ficar bem — disse Kylie. — Um dia. — Ela olhou para o teto e tentou não pensar no desgosto que sentia. Não era como se ela não tivesse milhares de outras questões com que se preocupar. Como o fantasma carregando por aí cabeças decapitadas, e que provavelmente estava esperando por ela em seu quarto.

Um arrepio percorreu a sua espinha ao se lembrar disso.

Miranda se virou e se reclinou na cama novamente.

— Sabe que depois que você foi embora ele veio falar com Della e comigo?

Kylie se virou e olhou para Miranda.

— Ele veio?

— Sim, senhora. Acho que esperava que a gente pudesse tentar falar com você sobre ele. Convencê-la a perdoá-lo.

Kylie voltou a fitar o teto e estendeu a mão para o ursinho de pelúcia, abraçando-o.

— Eu sinto muito que ele tenha incomodado vocês.

— Ele não nos incomodou — disse Miranda. — Não sei se você quer ouvir isso, mas... ele estava realmente sofrendo. Não estou dizendo que você deva perdoá-lo, mas ele jurou que só tinha concordado com o noivado para entrar naquele Conselho idiota.

— Não sei se o motivo é o mais importante — disse Kylie. — Acho que é mais o fato de ele ter feito isso. E nas minhas costas. Não que eu teria aceitado se ele tivesse me contado, mas... — Sua garganta apertou. Ela abraçou ainda mais o ursinho de Miranda.

— Eu sei. — Miranda fez uma pausa. — Della disse praticamente a mesma coisa. E ela acabou com ele. Disse coisas que só Della pode dizer. Disse que ele era um merdinha e que deveria ser castrado. — Miranda soltou um suspiro profundo. — Quando Della começou a descarregar o verbo sobre ele, pensei que eu ia ter que apartar uma briga entre os dois. Quer dizer, eu pensei que ele ia perder a cabeça. Os lobisomens não costumam aceitar desaforos de um vampiro. Mas ele nem sequer reagiu. Ficou ali firme e ouviu tudo o que ela disse. Mais tarde, até Della admitiu que não poderia deixar de admirá-lo por enfrentar sua punição como um homem.

O nó na garganta de Kylie dobrou de tamanho.

— Não quero falar sobre isso.

— Tudo bem. — O silêncio encheu o quarto. Miranda finalmente falou: — Então vamos falar de outra coisa. Alguma coisa boa. Você sabia que Holiday e Burnett estão pensando em se casar aqui em Shadow Falls?

— Não, eu não sabia! — A notícia fez Kylie se sentir melhor. — Quando eles planejam se casar?

— Ainda não marcaram a data. Eu sinto que ela estava esperando você voltar. Mas provavelmente será em breve. Fui ver Holiday outra noite e havia coisas de Burnett espalhadas por toda a cabana. Eu acho que ele está morando lá agora. Eles se amam tanto! Aposto que transam três vezes por noite.

Kylie fez uma cara de espanto.

— As pessoas realmente transam tanto assim?

— Eu não sei — Miranda confessou —, mas espero que sim.

As duas começaram a rir. Um calor encheu o peito de Kylie.

— Burnett e Holiday merecem ser felizes.

— E todos nós não merecemos? — Miranda perguntou, e então suspirou novamente. — Eu vou dizer isso e então calar a boca. Eu sei que você está realmente com raiva de Lucas e eu não te culpo por isso, mas... Talvez você não devesse desistir completamente dele. Você não me deixou desistir de Perry.

Kylie balançou a cabeça e fez uma careta.

— Duas semanas atrás você estava me dizendo que eu deveria dar um chute nele e voltar para Derek.

— Isso foi antes de eu ver como Lucas está sofrendo. Eu acho que ele te ama mesmo.

Kylie balançou a cabeça.

— Realmente não quero falar sobre isso. Não quero pensar sobre isso. Eu apenas quero... Eu apenas quero... Preciso ligar pra minha mãe e então quero ir dormir. Você vai me odiar se eu sair agora?

— Você não vai à aula hoje? — perguntou Miranda.

Kylie refletiu um pouco.

— Não, acho que eu vou cabular aula. Não fui para a cama ainda.

— Ah, então vá dormir. — Miranda olhou para ela. — Por que tenho a sensação de que você não está me contando tudo o que aconteceu?

Kylie fez uma careta.

— Porque eu não estou, mas estou cansada demais pra contar tudo agora. Vou te contar cada detalhe sórdido depois.

Miranda assentiu.

— Foi muito horrível?

— Realmente horrível.

— Ok. — Miranda franziu a testa. — Talvez eu apareça só para dar uma olhada em você de vez em quando. Eu realmente senti sua falta.

Kylie sorriu.

— Eu senti a sua, também.

— Você pode pegar o Teddy emprestado, se quiser. — Miranda sorriu.

— Eu acho que vou pegar. — Kylie estendeu o braço e apertou a mão de Miranda.

— Obrigada. — Ela se levantou e saiu do quarto, segurando o enorme bicho de pelúcia como se ele fosse a sua tábua de salvação.

No mínimo, ela poderia usá-lo para esconder o rosto, para que não tivesse que olhar para cabeças decepadas.


Capítulo Doze

Felizmente o fantasma devia ter se cansado de esperar, porque Kylie encontrou seu quarto quente com Socks, o gatinho preto e branco, descansando pacificamente em seu travesseiro.

Quando ela se juntou a Socks na cama, o gato se levantou para lhe dar espaço e, em seguida, com a sua pata branca, deu um tapa no ursinho que Kylie ainda segurava.

— Ok, eu acho que abraçar você é melhor. — Ela colocou o urso no chão.

O gato subiu no peito de Kylie e ela deu ao bichano um pouco da atenção de que ele tanto precisava. Depois de vários minutos, ela se sentou e colocou o felino deitado ao seu lado.

— Desculpe, amigo, mas preciso ligar para a minha mãe. Mas não se preocupe, eu provavelmente vou ser breve e delicada. Ela está muito ocupada com John para perder tempo falando comigo.

No momento em que as palavras saíram da boca de Kylie, ela percebeu qual era, em parte, o seu problema com John. Ela estava com ciúmes. Sentia que seu relacionamento com a mãe tinha acabado de melhorar quando John apareceu e roubou a atenção dela. Mas por acaso era errado ela querer ser a coisa mais importante na vida da mãe por um tempo?

Provavelmente, Kylie pensou, respondendo à própria pergunta. Especialmente agora, que estava vivendo longe de casa. A mãe dela tinha todo o direito de viver a própria vida.

Mas, se metade do problema de Kylie com o homem era o ciúme, por que ela sentia tanta antipatia por ele? Pura e simplesmente, ela não gostava dele.

Lembrou-se de que Burnett tinha verificado os antecedentes do sujeito, mas não tinha descoberto nada de suspeito.

Kylie se lembrou de como Burnett ficara chocado ao descobrir que Hayden não era tudo aquilo que seus antecedentes tinham revelado.

Talvez ela não devesse colocar tanta expectativa nas investigações de Burnett.

Ou talvez Kylie precisasse parar de tentar criticar John e começar a tentar aceitá-lo como uma parte da vida de sua mãe. Especialmente porque ele parecia ser a única pessoa preocupada em fazê-la feliz. Sua mãe merecia ser feliz, não é?

Kylie discou o número da mãe, determinada a parecer simpática.

Ele tocou uma vez. Depois duas. Normalmente a mãe atendia rapidamente. Kylie ficou preocupada com a possibilidade de estar interrompendo algum interlúdio romântico. Ela franziu a testa e olhou para o relógio. Devia ser quase hora do almoço na Grã-Bretanha, com certeza eles não estavam... fazendo sexo ou, como Della teria dito, ocupados com uma rapidinha.

Ela afastou o pensamento o mais rápido que pôde e deixou sua mente vagar para Della. Burnett dissera que a vampirinha tinha entrado em algum tipo de briga. Ver Miranda tinha sido maravilhoso, mas ter as duas em casa seria perfeito.

Outro toque da linha trouxe sua atenção de volta para o telefone. Ela esperava ouvir o correio de voz a qualquer momento. Será que a mãe estava bem? O ressentimento agitou-se dentro dela por causa de John novamente. Se alguma coisa tivesse acontecido à mãe nessa viagem...

— Alô? — A voz da mãe soou... distante. De alguma forma, pouco acolhedora.

— Tudo bem? — perguntou Kylie, a mão apertando o celular de Hayden.

— Kylie? — perguntou a mãe. — De que telefone você está me ligando?

Percebendo que esse talvez fosse o motivo para a demora da mãe e do seu estranho tom distante, Kylie afundou no travesseiro. No entanto, o distanciamento em sua voz a fazia se lembrar de quando ela era mais jovem e tinha que se esforçar muito para conseguir a aprovação da mãe. Uma época em que Kylie questionava o afeto da mãe por ela. Mas isso pertencia ao passado. Elas tinham começado um novo relacionamento, muito melhor. Pelo menos até o momento. Ela rezava para que a presença de John não mudasse isso.

— Onde está o seu telefone, mocinha?

— Ah... Eu... — Ela tinha que pensar rápido numa mentira e fazê-la parecer convincente. A mãe não conseguiria ouvir seu coração disparado por causa da mentira, mas ela tinha um detector de mentiras maternal que havia colocado Kylie em apuros mais de uma vez.

— Perdi meu telefone ontem à noite, então pedi emprestado o de um amigo. — Para todos os efeitos, não era realmente uma mentira.

— Bem, isso explica por que você não retornou meu telefonema ontem à noite — a mãe disse em tom de bronca. — Ah, meu Deus, você percebe quanto vai me custar substituir o seu telefone?

— Eu... acho que eu vou encontrá-lo. Sinto muito. — Kylie acariciou Socks quando ele esfregou a cara contra o queixo dela. — Algum problema? Por que você me ligou ontem?

— Não, apenas... seu pai estava preocupado.

O padrasto, Kylie quis corrigir, mas não falou nada.

— Ele disse que ligou três vezes ontem à tarde e você não atendeu. E então ele me ligou três vezes, enquanto John e eu estávamos... Quero dizer, quando eu estava na cama.

Cruzes! A capacidade de Kylie para ficar enojada atingiu o limite máximo, obrigando seu cérebro a bloquear todas as imagens mentais inadequadas.

— Sinto muito — Kylie respondeu, e, em seguida, mordeu o lábio. Ela tinha prometido a si mesma que não iria mais ter esperança de que sua mãe e o padrasto se reconciliassem, mas era difícil às vezes. Mesmo assim, no que mais importava — as lembranças que ela ainda acalentava de como sua família costumava ser —, uma centelha de esperança ainda brilhava.

— Ligar três vezes é ridículo — disse a mãe. — Especialmente porque ele sabia que horas eram aqui.

— Eu sei — disse Kylie, mas pensando, Dá um tempo, mãe! Ele estava preocupado comigo!

— Bem, é hora de o seu pai saber que não pode me ligar a qualquer hora que quiser — ela reclamou.

— Tenho certeza de que ele vai se acostumar com o tempo — disse Kylie. — Vou tentar falar com ele hoje e ver o que ele quer.

— Faça isso — disse a mãe, e fez uma pausa. — Espere aí. Se você não sabia que eu liguei antes, então o que aconteceu? Está tudo bem?

— Sim, eu só queria ver se estava tudo bem. Detesto pensar que você está tão longe de mim.

— Eu sei... Eu me sinto assim também. Estou com saudades. Não é que eu não esteja me divertindo. A Inglaterra é maravilhosa, Kylie. Talvez quando John e eu voltarmos da próxima vez você possa vir com a gente.

Da próxima vez? Eles já estariam planejando outra viagem?

— Claro! — Kylie murmurou, lembrando-se de que estava tentando ser simpática.

— Adivinhe, querida!

O peito de Kylie de repente se encheu de medo. Deus, por favor, não deixe que ela me diga que eles se casaram ou algo assim.

— O quê? — perguntou Kylie, a voz dando a impressão de que ela tinha engolido um sapo.

— John me perguntou se...

— Não! — Kylie respondeu com rispidez.

— Não o quê? — a mãe perguntou.

— Você não o conhece o suficiente.

A linha permaneceu muda por um instante demasiadamente longo.

— O que você acha que ele me perguntou?

Kylie se encolheu.

— Eu não sei — disse Kylie, e percebeu que ela provavelmente estava cansada demais para conversar com a mãe. Exausta demais para manter uma conversa lógica, especialmente quando tinha que fingir que gostava de alguém de quem não gostava.

— Ele quer que eu vá trabalhar na empresa dele — a mãe explicou. — Está disposto a me pagar quase o dobro do que eu ganho agora.

Ok, a mãe dela trabalhar para o homem não era tão ruim quanto se casar com ele, mas Kylie tampouco gostava daquilo.

— Eu pensei que você gostava do seu trabalho — comentou Kylie.

— Eu gosto, mas... quase o dobro de salário e viagens de graça... Quero dizer, é uma proposta difícil de recusar.

— Mas... mas você está — transando — namorando com ele. Não é uma espécie de assédio sexual? Quer dizer, há leis contra isso, não há?

— Não, se a relação for consensual — a mãe esclareceu. — John e eu conversamos sobre como seria difícil eu trabalhar para ele, mas deixou claro que eu não estaria trabalhando diretamente com ele. Por isso, não seria como se estivéssemos realmente trabalhando juntos.

Kylie podia ouvir a resposta na voz da mãe. Sua decisão já estava tomada. Ela iria aceitar a proposta.

— Sim, mas eu não sei se é sensato trabalhar para alguém com quem você está... saindo.

— Acho que John e eu somos maduros o suficiente para lidar com isso.

Claro! Assim como ele se mostrou maduro da última vez em que você o trouxe aqui e ele deu um soco no meu padrasto e começou um showzinho de luta livre no refeitório. Kylie mordeu o lábio para não dizer nada ofensivo.

— Eu acho que só penso assim porque não o conheço muito bem — disse Kylie.

— O que eu pretendo corrigir da próxima vez que você for para casa. Achei que talvez pudéssemos viajar juntos a algum lugar, para passar um fim de semana.

Por favor, não!

— Eu... Não acho que precisamos fazer isso. Eu... para ser franca, acho que gosto quando esses fins de semana são só para você e eu.

— Mas você precisa conhecê-lo, Kylie. Ele é um grande cara. Tenho certeza de que você o adoraria se realmente o conhecesse.

— Tá, tudo bem. Mas não vamos... Não vamos apressar as coisas, ok? Tudo a seu tempo.

A mãe ficou em silêncio novamente.

— Você está bem, querida? Só agora percebi que horas são aí. O que você está fazendo acordada às cinco e meia da manhã?

— Eu tinha alguns deveres de casa e precisei acordar mais cedo — Kylie mentiu novamente. — E é melhor eu desligar e começar a fazê-los.

— Você está com problemas com os garotos novamente? — perguntou a mãe.

Assim como com um problema com fantasmas carregando cabeças decepadas.

— Nada que eu não possa resolver.

— O que aconteceu, querida? — perguntou a mãe.

— Estou bem. Na verdade, prefiro não falar sobre isso. Talvez mais tarde.

Kylie ouviu a mãe dar um longo suspiro do outro lado da linha.

— Estou pronta para ouvir quando você quiser falar a respeito...

— Eu sei, e eu te amo, mãe.

— Eu também te amo, querida.

Foi repetindo as palavras de sua mãe várias vezes em sua cabeça que Kylie finalmente adormeceu.

— Para onde estamos indo? — Kylie perguntou a Derek quando sentiu aquela indefinição típica de um sonho tranquilo. Correção: de um sonho lúcido.

Mas logo em seguida, a tranquilidade se foi. Fazia um tempo que ela fazia aquilo, mas imediatamente percebeu que o sonho não era dela. Ela não tinha ido até Derek. Ele tinha vindo até ela. E agora a estava levando a algum lugar, andando na frente dela, mas com a mão atrás das costas, segurando a dela e levando-a por uma trilha. Uma trilha arborizada.

Ela tentou fazer com que sua mente ficasse mais alerta. Que horas seriam? Havia quanto tempo estava dormindo? Ela tinha que detê-lo.

Mas então Derek olhou para trás, por cima do ombro, e sorriu para ela. Ela perdeu a linha de pensamento e foi tragada para o mundo em que ele estava. Um mundo mais seguro, dizia sua mente. Ela olhou para cima. O sol irradiava uma luz matinal suave, que dançava por entre as árvores.

— Estamos indo para a nossa pedra. Você gosta de lá, não gosta? — A mão dele apertou ligeiramente a dela. Sua palma estava quente na dela. Reconfortante. Estranho como apenas segurar a mão de alguém podia transmitir a sensação de um abraço — um abraço caloroso. Pensando bem, ela estava falando sobre Derek. Ele tinha todos aqueles poderes fae que tornavam o seu toque... mais...

Significativo.

Ela se lembrava vagamente dele tentando beijá-la um pouco antes, durante a fuga da casa de seu avô, e pensando que não seria tão fácil fazê-lo se comportar. Será que ela realmente queria que ele se comportasse?

A resposta parecia estar em algum lugar entre o coração e a mente, e ela não conseguia chegar a uma conclusão. Mas tudo era apenas um sonho, dizia uma parte dela como desculpa. Mais tarde, ela descobriria. Ela pensaria naquilo, prometeu a si mesma.

— Antes você sempre gostava de ir até lá — disse ele.

— Sim, mas... — Ela parou e olhou para si mesma. Estava usando um short e uma camiseta. Mas estava descalça. Era gostoso. Havia uma camada macia de terra e grama úmida sob os pés. Definitivamente um sonho. Se fosse real, ela estaria sentindo as pedras e os espinhos. Isso não era real. Não era verdade. Mas ela precisava tomar cuidado. Ela mexeu os dedos dos pés e tentou novamente acordar para descobrir o que era certo e o que era errado.

Derek se virou, ainda segurando a mão dela, e a encarou novamente.

— Apenas venha comigo, Kylie. Faça isso por mim, por favor. — Ela já podia ouvir o barulho de água corrente, da água espirrando nas pedras arredondadas pelo tempo. O aroma da grama, dos arbustos e das árvores altas perfumava o ar que respirava.

Uma brisa agitou o cabelo de Derek.

— Só me dê um tempo para ficar com você.

Ela o fitou através de seus próprios cabelos, agitando-se na frente de seus olhos. Viu a súplica nos olhos dele.

A palavra “não” estava na ponta da língua, mas então ela viu os hematomas no pescoço dele. Contusões que pareciam tão profundas quanto as de Lucas.

Não que ela tivesse provocado aquelas contusões em Derek. Mario tinha. Mas havia sido por causa dela. Ele tinha enfrentado Mario para protegê-la.

Derek estivera disposto a morrer por ela.

Ele a amava.

— Por favor — disse ele, e o som de sua voz ecoou no seu coração como uma canção triste.

Ir com ele não parecia certo, mas não atender ao seu pedido também não era.

— Só para conversarmos — disse ela, arqueando uma sobrancelha.

— Certo. — Ele sorriu e as raias douradas em seus olhos brilharam. Ela se lembrava daquele olhar também. Um olhar diabolicamente sexy que sugeria que ele estava tramando alguma coisa.

Ele se virou e ela continuou a segui-lo. Em poucos minutos, chegaram à correnteza. Ele acenou em direção à pedra.

— Sua carruagem está à espera, minha cara dama — ele disse em uma voz formal, e fez uma reverência, como se encenasse uma peça de escola.

Ele parecia tão bonito que ela não pôde deixar de sorrir.

— Seu bobo.

— Pode ser, mas se isso for preciso para fazer você sorrir, eu não me importo em ser bobo durante o dia todo. Você teve uma noite difícil. Merece um pouco de diversão.

— Mereço mesmo — concordou ela e, em seguida, pulou para cima da pedra. Sua carruagem.

Ele pulou para a pedra logo atrás dela. Seu ombro roçou o dela. Kylie não pôde deixar de se lembrar da primeira vez em que estiveram ali. O lugar parecia tão mágico, tão semelhante a um conto de fadas! Algo saído de uma ilustração de um livro infantil. Claro que, na época, isso acontecia muito quando ela estava com Derek, e não só quando eles estavam ali.

Kylie olhou para a floresta e para a paisagem. Nenhuma sensação de conto de fadas dominava o lugar. Talvez a sensação de conto de fadas não acontecesse em sonhos.

Não que a paisagem não fosse bonita ou tranquilizante. O sol irradiava uma cor dourada por entre as árvores e as folhas que se agitavam. O ar tinha um aroma fresco de manhã. Era bom estar sentada ao lado de Derek, sentir o ombro dele pressionar delicadamente o seu. Ela não poderia simplesmente relaxar? Não iria deixar nada acontecer. Eles estavam ali para conversar, ela lembrou a si mesma.

Ela o fitou e sentiu a atração fazendo cócegas no seu estômago. Pela primeira vez, notou as mudanças sutis pelas quais ele tinha passado ao longo dos últimos meses. O garoto com quem ela viera uma vez àquela pedra tinha quase desaparecido, e um homem havia tomado o seu lugar. O cabelo sobre a testa parecia um pouco mais escuro. Ele tinha um perfil masculino, a linha do queixo forte, e belos lábios.

Ele olhou para ela.

— Sabe, foi demais quando você me fez ficar invisível.

— Sim, mas eu quase morri de susto quando não consegui vê-lo ao trazer você de volta.

— Eu sei. Senti suas emoções. — Ele hesitou. — Mas isso foi bem legal também — disse ele. — Na verdade, essa foi a parte mais legal.

— Não, não foi — disse ela. — Sério, eu me assustei.

— Eu sei, mas isso é que tornou tudo tão bom. Porque foi quando eu tive certeza. Foi quando eu soube que você ainda me amava.

As palavras dele ecoaram na cabeça de Kylie e ficaram dando voltas em torno de seu coração. Ele se inclinou mais para baixo. Seu dedo roçou a bochecha dela. Sua respiração tocou sua têmpora. Ah, droga, Kylie pensou. Lá estava ela de novo, num mato sem cachorro.

O toque passou pelo queixo de Kylie.

Suave.

Carinhoso.

Amoroso.

Ela se lembrou de que estava em meio a um sonho lúcido com Derek, mas não conseguia se lembrar de como tinha terminado. O toque voltou. A sensação de lençóis pressionados contra um lado do seu corpo. Ah, Deus do céu, será que ela ainda estava com Derek? Na cama? Que diabos ela tinha feito?

Ela abriu os olhos, com medo de que... de que... Olhos amarelos olhavam diretamente para ela. Olhos felinos e amarelos. E uma pata branca agora estava pousada sobre a ponta de seu nariz.

— Socks! — Ela riu com alívio, o coração batendo forte com a lembrança distante do sonho brincando de esconde-esconde em sua mente.

— Ei, gatinho! — ela murmurou quando a pata do gato deu um tapa em seu nariz.

— Então, você realmente sentiu minha falta quando eu fui embora, hein?

— Todo mundo sentiu — veio uma voz do outro lado do quarto.

Antes que ela pudesse forçar seu cérebro a identificar a voz, ou até mesmo saber se era homem ou mulher, ela deu um pulo da cama e ficou ali de olhos arregalados, olhando... Ok, ela respirou fundo. Não havia razão para entrar em pânico. Era apenas Holiday.

— Eu não queria assustá-la. Só dei uma passadinha para ver se você estava bem. Estava ficando um pouco preocupada. Você dormiu durante várias horas. Vim aqui umas duas ou três vezes e você nem sequer se mexeu.

Kylie piscou os olhos e olhou para o relógio na mesa de cabeceira. Três horas da tarde.

— Eu não queria dormir tanto.

— Acho que você estava exausta — disse Holiday e então franziu o cenho. — Burnett me contou sobre todo o episódio com Hayden. — Socks pulou da cama e começou a se enroscar nos tornozelos de Holiday.

A líder do acampamento ignorou o gato e continuou a olhar para Kylie.

— Sobre isso... — disse Holiday. Sua expressão dizia a Kylie que ela estava prestes a receber uma reprimenda. Holiday não a repreendia muitas vezes, de modo que, quando fazia isso, sempre parecia doer o dobro.

E, com certeza, Kylie merecia, mas ainda estava sonolenta e não sabia se conseguiria aguentar aquilo de pé. Ela se jogou de costas na cama, pegou o urso de pelúcia, e o abraçou.

— Você não pode esconder as coisas de nós, Kylie.

Sim, lá vinha a bronca.


Capítulo Treze

— Eu sei que não deveria ter escondido isso. — O peito de Kylie apertou. — E eu sei que Burnett ficou realmente desapontado comigo e você provavelmente está furiosa, também. E eu entendo por quê. Realmente entendo. Mas... — Ela respirou fundo, enquanto Holiday continuava a fitá-la com um ar de reprovação.

Abraçando o urso de pelúcia ainda mais, ela continuou:

— Você não consegue entender que eu prometi ao meu avô não expor Hayden? Eu não teria mantido essa promessa se achasse que ele era má pessoa ou quisesse causar algum mal. Ele não é uma pessoa má. Se não fosse por ele, eu não teria descoberto naquela noite que Collin Warren tinha sequestrado você. E se eu não tivesse encontrado você no momento certo, provavelmente não teria... conseguido salvá-la. Ele ajudou a salvar a sua vida.

Holiday franziu a testa.

— Eu não estou dizendo que ele seja uma pessoa má, Kylie. E não é que eu não entenda por que você se sentiu obrigada a manter sua promessa, mas Burnett está certo em querer protegê-la. Precisamos saber o que está acontecendo.

— Bem, agora você sabe de tudo. Quero dizer, se Burnett lhe contou.

— Ele contou — assegurou Holiday.

Kylie mordeu o lábio e, em seguida, empurrou o urso de pelúcia para o lado.

— Burnett e Hayden se falaram de novo? Ele contou que eles quase se pegaram na noite passada? Burnett disse que ia pensar se o deixaria ficar. Pensar! E então Hayden disse que ele iria pensar se queria ficar. — Ela deu um profundo suspiro. — Burnett agiu como um troglodita.

Holiday fez cara feia.

— Quando se trata de proteger as pessoas de quem ele gosta, Burnett sempre exagera um pouco.

— Um pouco? Está brincando? — Kylie revirou os olhos. — Ou está falando sério?

Um ligeiro sorriso apareceu nos lábios da líder do acampamento.

— Ok, talvez exagere muito, mas, na maioria das vezes, ele está certo. — Ela puxou o cabelo vermelho para o lado e começou a torcê-lo.

— Mas ele não está certo quando se trata disso. E esse é o xis da questão. Eu preferia que Burnett não mandasse Hayden embora. Eu sei que ele mentiu para ser contratado, mas significa muito para mim ter... ter alguém por perto que entenda o que significa ser um camaleão. Quero dizer, você é maravilhosa. Você ficou ao meu lado desde o início e o mesmo posso dizer de Burnett, mas é como você me disse muitas vezes: você não sabe nada sobre camaleões.

Holiday assentiu.

— Eu sei que seria bom ter Hayden aqui, e eu disse isso a Burnett, também. E prometo a você, ele está levando isso em consideração.

— Você vai deixá-lo decidir? — perguntou Kylie, não gostando nem um pouco daquilo. — O que aconteceu com a Holiday que era sempre a manda-chuva aqui?

— Agora que estamos realmente juntos, decidimos que Burnett tem a palavra final sobre tudo o que afeta a segurança de Shadow Falls.

— Ah, mas que inferno! Você sabe que ele pode ser irracional às vezes. Você acabou de admitir isso — exclamou Kylie. Será que o fato de amar Burnett tinha mexido com a cabeça de Holiday? Kylie tinha ouvido falar que o amor deixava a pessoa meio cega, mas agora ela sabia disso com certeza.

— É verdade, ele pode ser irracional. No entanto, eu posso ser mole demais — Holiday admitiu. — E quando se trata da segurança dos nossos alunos, eu prefiro exagerar na cautela. Mas não se preocupe. Eu realmente acredito que Burnett acha bom ter Hayden por perto. Não só por você, mas para nos ajudar a nos precaver contra... futuros ataques.

Kylie puxou os joelhos e os abraçou. Ela sabia que, quando dizia “futuros ataques”, Holiday se referia a Mario. Embora Helen ainda não conseguisse se lembrar de nada, Kylie sabia em seu coração que tinha sido Mario o autor do ataque. Uma onda de tristeza e melancolia invadiu-a e alguns acontecimentos da noite anterior pipocaram em sua cabeça. Ela ergueu os olhos.

— Não acho que possa aguentar ver Mario ferindo outra pessoa. — Ela torceu as mãos. — Primeiro Helen, e então eu quase vi Derek sendo morto ontem à noite. E Mario quase me fez matar Lucas.

— Eu sei — Holiday interrompeu, como se soubesse que apenas falar sobre aquilo já era difícil para Kylie. — Deve ter sido uma noite difícil. Mas isso só enfatiza o que Burnett diz sobre você ser cuidadosa. Ele tem se dedicado muito ao sistema de segurança desde que você se foi e realmente acha que ele é infalível.

Aquilo devia fazer Kylie se sentir segura, e ela se sentia, mas...

— Então, eu sou uma prisioneira aqui — disse ela, pensando que, se as coisas não mudassem, seria tão ruim viver ali quanto na casa do avô.

— Não, não por muito tempo — Holiday insistiu. — Eu sabia que você se sentiria assim, e Burnett e eu já discutimos isso. Você não está proibida de sair, mas, até as coisas se acalmarem, Burnett quer estar junto quando você for a algum lugar. Eu não sei se ele disse, mas Mario foi flagrado em Shadow Falls. Então Burnett está inflexível sobre acompanhá-la, se você sair do acampamento. Você acha que pode aceitar isso? Ele apenas quer ter certeza de que está segura, Kylie. Você é especial para ele.

Kylie assentiu.

— Eu sei, e eu o amo também. — Ela se lembrou da conversa com a mãe. — Mas e o fim de semana dos pais daqui a algumas semanas? Minha mãe já está fazendo planos. Ela quer que John e eu... que a gente se conheça melhor. — A mente de Kylie criou uma imagem dela sendo forçada a ser educada com o namorado de sua mãe durante todo um pavoroso fim de semana. Santo Deus!, a última vez em que ela vira o homem perdera totalmente a cabeça e lançara insultos contra ele a torto e a direito. Era como se ela não conseguisse se conter. Kylie tinha surtado completamente.

Holiday se sentou na beira da cama.

— Vamos resolver isso quando chegar a hora. — Mas Kylie viu preocupação nos olhos da amiga.

Kylie abraçou os joelhos com mais força.

— Para ser franca, eu não me importaria de não ir para casa nesse fim de semana dos pais. Então, se você puder encontrar uma maneira de cancelar, eu não ia me opor. Você tem a minha palavra.

Holiday suspirou, demonstrando que compreendia.

— Agora me diga... Quem é esse espírito que anda por aí carregando uma cabeça?

Kylie revirou os olhos.

— Você vai me dizer que os seus fantasmas não fazem esse tipo de coisa? — ela perguntou com sarcasmo.

Holiday riu, apesar de Kylie não ter feito o comentário com a intenção de ser engraçada.

— Eu tinha um que, durante algum tempo, andou por aí carregando seu próprio braço e sua perna. Ele os tinha perdido num acidente e não queria se separar deles. Era horrível.

— Que sorte a nossa! — exclamou Kylie, mas depois ela pensou nos espíritos do cemitério e se sentiu mal por ser tão cínica. A maioria deles era simplesmente almas perdidas à procura de ajuda.

Holiday estendeu o braço e pousou a mão no braço de Kylie.

— Que sorte a deles por terem a nós — disse ela, como se tivesse lido a mente de Kylie, ou pelo menos suas emoções. — Mas nem todos merecem a nossa ajuda. Eu já lhe disse isso antes; você pode mandá-los embora. Tem todo o direito de dizer não a alguns deles.

— Eu sei, e eu tentei, mas acho que não fiz isso direito. Ou talvez não tenha me esforçado o suficiente.

— Pelo que Burnett me disse, acho que mandar esse espírito embora é a atitude mais sensata. O que é isso de ela querer que você mate alguém? Ela lhe disse quem é?

— Não. Ela não é de falar muito, como todos os fantasmas. Eu nem tenho certeza se ela sabe as respostas.

— Ela parece perversa?

Kylie pensou um minuto.

— Sim e não. Quero dizer, ela não é um anjo. Já admitiu que matou um monte de gente. Na maioria das vezes em que a vejo ela tem sangue nas mãos, mas quase sempre parece que ela se sente culpada por isso. Pelo menos às vezes — Kylie emendou, lembrando-se de como o fantasma carregava a cabeça decepada sem o mínimo de sensibilidade. — Mas eu não acho que ela queira me causar algum mal. Eu até perguntei se ela estava tentando me levar para o inferno.

Holiday ergueu uma sobrancelha.

— E você acha que ela iria admitir isso?

— Não, mas ela não hesitou em responder nem negou como se estivesse mentindo. Ela me disse com naturalidade que queria que eu mandasse alguém para o inferno. E eu acho que a coisa toda da cabeça foi porque eu comecei a ignorá-la. Ela só queria chamar a minha atenção.

— E eu aposto que isso funcionou — arrematou Holiday.

— Pode apostar — confirmou Kylie. — É meio difícil não prestar atenção nisso. — Ela estremeceu, lembrando-se da imagem da cabeça.

— Ainda acho que despachar esse fantasma pode ser a melhor coisa a fazer.

— Eu sei, e ontem à noite eu estava mesmo pensando em fazer isso, mas uma coisa me deteve.

— O quê? — perguntou Holiday, colocando uma das pernas sobre a cama.

Kylie suspirou. Ela não tinha se preocupado muito com isso antes, mas agora parecia algo que ela deveria considerar. — Ela diz que, se eu não fizer isso, se eu não matar essa pessoa, sou eu quem vai morrer.

Holiday franziu a testa.

— Ok, isso muda um pouco as coisas. Você sente que ela está tentando proteger você ou apenas causar mal a outra pessoa?

Kylie refletiu sobre a pergunta.

— Acho que ela está fazendo as duas coisas. Não sei por que ela iria querer me proteger. Mas, ontem à noite, quando Derek e eu estávamos deixando o complexo, foi ela quem me disse para ir ao cemitério. Acho que ela estava me ajudando.

Holiday fez uma cara séria.

— Ok, mantenha esse espírito por perto por enquanto. Mas pelo amor de Deus, tenha cuidado. Você já tem alguém neste mundo tentando prejudicá-la, não precisa de um fantasma tentando fazer isso também. Você é especial demais para que qualquer um queira machucá-la.

As palavras de Holiday ficaram se repetindo na cabeça de Kylie e de repente ela se lembrou de alguém lhe dizendo palavras semelhantes. Alguém de olhos verdes e raias douradas, e lábios... quentes. De repente, lembrou-se de parte do sonho lúcido, uma parte importante dele. A parte em que Derek a beijou.

— Ah, merda! — murmurou, segurando a cabeça entre as mãos. — O que eu fiz?

— O que foi? — perguntou Holiday.

Kylie olhou para ela.

— Nos sonhos lúcidos, a pessoa que inicia o sonho está no controle, mas a pessoa que é trazida pode impedir que as coisas aconteçam, certo?

— Certo. Contanto que ela esteja convicta de que aquilo não está acontecendo de verdade.

— Merda... — ela murmurou de novo, ao se lembrar de que tinha se sentido confusa sobre o que queria. Confusa sobre o que era certo e errado. E se ela estava confusa no sonho, então ela poderia ter deixado acontecer o que não deveria ter acontecido.

— Ah, droga! — lamentou, tentando se lembrar do resto do sonho. Então ela voltou a olhar para Holiday. — Eu não deveria conseguir me lembrar de tudo?

— Sim, exceto se... — Ela fez uma cara como se não achasse que Kylie ia querer ouvir o resto. — Exceto se você estivesse realmente exausta.

— E eu estava. Mas que ótimo! — Kylie murmurou.

— Acalme-se. Depois de comer alguma coisa e relaxar você provavelmente vai se lembrar de tudo.

— Não sei se quero me lembrar — ela murmurou. — Ah, mas que inferno, eu quero, sim!

Holiday franziu a testa.

— Você quer que eu fale com Derek a respeito?

Kylie franziu a testa.

— Eu não disse que era Derek.

Holiday olhou-a como se quisesse dizer, “Não seja boba”.

— Vocês dois e eu somos os únicos aqui que podem iniciar um sonho lúcido. Tinha de ser ele.

Kylie mordeu o lábio novamente.

— Ok, tem razão, mas não, eu não quero que você fale com ele. Preciso resolver isso sozinha. — Ela soltou um suspiro profundo. — Derek acha que ainda sou apaixonada por ele.

— E você não é? — perguntou Holiday.

— Não! — admitiu Kylie. E ela estava falando sério. Ela estava. Sim, realmente estava. Então por que parecia que ela estava tentando convencer a si mesma? — Eu não quero falar sobre Derek.

Holiday examinou o rosto de Kylie por um instante.

— Você quer falar sobre Lucas?

— Não!

— Ok, mas, se você precisa falar sobre ele ou qualquer coisa assim, eu estou aqui para ouvi-la.

— Eu sei. — Então, só para provar que ela era uma mentirosa, as palavras deslizaram de seus lábios. — Eu percebi que o amava um pouco antes de tudo o que aconteceu. — Seu coração pareceu encolher. — Eu ia dizer isso a ele da próxima vez que o visse. Então, na próxima vez que o vi, ele estava prometendo sua alma a Monique.

Holiday franziu os lábios como se hesitasse em dizer o que estava em sua mente.

— Não acho que ele estivesse falando sério.

— Não me importo se estava ou não; ele não deveria ter feito aquilo.

— Isso é verdade. E eu não vou dizer a você o que fazer, mas acredito que ele estivesse dizendo a verdade sobre suas intenções. E eu só estou dizendo que, se você ainda gosta dele, não acho que ele seja um cara ruim.

Kylie respirou fundo.

— Eu perguntei a minha mãe uma vez se ela ainda amava meu pai. Ela me disse que não sabia. Que talvez, quando superasse a raiva que sentia dele, tivesse que pensar se realmente o amava ou não. Talvez seja isso que vá acontecer comigo e com o Lucas. Mas, por ora, fico muito irritada quando todo mundo fica dizendo que ele é um cara legal. Faz com que eu me sinta a única pessoa que fez alguma coisa errada. — As lágrimas apertaram a sua garganta, mas ela as engoliu e ficou mais ereta.

— Sinto muito. — Holiday levantou uma mão. — E você sabe que não fez nada errado. E não vou dizer nem mais uma palavra.

— Obrigada.

Sua barriga de repente roncou alto, avisando que estava tão infeliz quanto ela... e vazia. Ela olhou de volta para Holiday.

— Eu preciso comer alguma coisa. Acho que meu estômago está roendo minha espinha dorsal agora.

— Tome. — Holiday estendeu a mão para a mesinha de cabeceira, pegou um saco de papel e o entregou a Kylie. — Eu trouxe para você mais cedo, pois achei que precisaria comer alguma coisa.

Kylie tirou de dentro um saquinho plástico e viu metade de um sanduíche com o formato de uma mordida num dos lados.

— Desculpe, fiquei com fome enquanto esperava você acordar.

Quando Kylie desembrulhou o sanduíche e deu uma mordida, Holiday pegou novamente o saco de papel e tirou de dentro um saquinho aberto de batatas fritas.

— Ainda estou com fome. — Ela sorriu desculpando-se e colocou uma batata na boca.

Enquanto Kylie comia o sanduíche e via Holiday comer as batatas fritas, o peso do mundo que oprimia o seu peito ficou bem mais leve. Não chegou a desaparecer, mas diminuiu o suficiente para lhe causar um certo alívio. Ela ainda tinha toneladas de problemas para resolver. Mas estar de volta a Shadow Falls era bom.

E estar ali com Holiday contribuía para isso.

Kylie terminou o último pedaço de sanduíche e enfiou a mão no saco de batatas de Holiday. Seus dedos encontraram o fundo do saco.

Holiday fez uma cara engraçada.

— Desculpe, eu não sei o que se passa comigo. Meu apetite aumentou.

— É provavelmente o amor — disse Kylie. — Você está simplesmente iluminada. Cada vez que diz o nome de Burnett, seus olhos começam a brilhar.

— Na verdade, o amor faz exatamente o oposto com o apetite. Você acha que pode viver de amor. Nem precisa comer.

Kylie arqueou uma sobrancelha.

— Então... talvez você esteja grávida!

Holiday lambeu a gordura da batata e as migalhas dos dedos.

— Não é possível.

— Ah, por favor. Miranda me disse que foi à sua cabana e havia coisas de Burnett espalhadas por toda parte. Vocês dois estão planejando se casar. Miranda me contou também. O fato de vocês dois estarem dormindo juntos é... é normal. E, se você fingir o contrário, vai parecer uma idiota.

Holiday inclinou a cabeça para o lado, olhando para Kylie com uma cara meio séria.

— Eu não estou fingindo. E, embora eu não precise explicar nada — Ela parou. — Eu não disse que ele não estava hospedado na minha cabana, ou que não estávamos... dormindo juntos. Eu disse que não era possível. Estamos tomando cuidado. Usando proteção. Que é o melhor conselho que posso dar a qualquer adolescente. — Ela apontou para o saco de papel sobre a cama. — Tem uns biscoitos aí. Desculpe, mas eu... comi alguns, também.

Kylie agarrou o saco de papel e pegou outro saco plástico no fundo, que continha três biscoitos de chocolate. Ela pegou um e, por educação, ofereceu um a Holiday, que aceitou com entusiasmo.

— Eu adoro biscoitos de chocolate! — comentou Holiday, percebendo a surpresa de Kylie. Em seguida a fae colocou o biscoito inteiro na boca.

— Você sabe que os preservativos não são infalíveis — Kylie disse, abrindo o biscoito ao meio e lambendo o glacê branco entre as duas partes de chocolate. — Segundo estatísticas, são apenas de 85 a 90 por cento eficazes na prevenção da gravidez. Alguns afirmam que em dez por cento dos casos a falha é humana ou, no seu caso, do vampiro, e não falha do preservativo. Como no caso em que se retira o pênis rápido demais — ela fez uma careta —, causando vazamento, ou em que não se coloca o preservativo direito. E se uma mulher tem unhas compridas... — O olhar no rosto de Holiday fez com que Kylie fizesse uma pausa. — Não que você tenha unhas compridas ou que Burnett não saiba colocar uma camisinha... — Kylie sentiu seu rosto queimar.

Holiday corou junto com Kylie. Então, ainda com a boca cheia do biscoito, a fae ergueu a mão como se quisesse dizer que precisava de um minuto antes de falar.

Kylie, embora envergonhada, se sentia orgulhosa do conhecimento que tinha, e continuou falando enquanto lambia o recheio do biscoito.

— E se um cara carregar um na carteira por muito tempo, ele pode rasgar. E ainda existem as falhas no controle de qualidade. Por alguma razão o preservativo pode ter uma fenda ou um furinho. E você ficaria surpresa se soubesse a quantidade ínfima de esperma que é necessária para engravidar uma garota!

Depois de lamber todo o recheio, Kylie deu uma mordida no biscoito de chocolate e falou com a boca cheia.

— Para não correr riscos, vocês podem comprar preservativos com espermicida, que supostamente ajuda a matar qualquer um desses pequenos espermatozoides que escapar. Mas o uso de preservativos com espermicida o tempo todo pode causar problemas vaginais. Portanto, não se recomenda o uso prolongado.

Holiday engoliu em seco.

— Você... — Ela engoliu novamente, lambendo os dentes para tirar o chocolate — com certeza sabe muito sobre preservativos.

— Eu disse a você, minha mãe deixava panfletos na minha cama cerca de duas vezes por semana. Você não vai acreditar em todas as informações que tenho na cabeça. Eu poderia discorrer sobre todos os diferentes tipos de doenças sexualmente transmissíveis, mas não é algo muito agradável. Eu não quero pensar nisso.

Holiday riu.

— Eu acho que, quando eu tiver um filho, poderei perguntar à sua mãe onde ela consegue tantos panfletos.

— Ah, não faça isso. É algo que mexe com a mente de uma pessoa. Acho que é por isso que eu ainda sou virgem.

Holiday riu.

— É exatamente por isso que eu vou querer que o meu filho receba esses panfletos. — O sorriso dela desapareceu. — Sério, um adolescente não deve ter relações sexuais levianamente.

— É verdade — Kylie disse, pegando o último biscoito e partindo-o ao meio. — Mas ter muita informação não é muito bom, também. — Ela ofereceu uma metade a Holiday, que não hesitou em aceitá-la.

— Obrigada.

— Você tem certeza de que não está grávida? — perguntou Kylie, observando Holiday colocar a metade do biscoito na boca, como se estivesse morrendo de fome. Ou, como se comesse por dois.

— Positivo. — Holiday falou, mastigando o biscoito. — Faes, ou pelo menos as faes da minha família, sempre sabem quando estão grávidas.

Kylie sorriu.

— Não me diga, um dos sinais é que elas ficam famintas e comem a comida das amigas, enquanto estão esperando que elas acordem.

— Não. — Ela fez uma pausa e franziu a testa. — Bem, ficar com fome é um sintoma, mas o mais comum são soluços e arrotos. Tenho uma prima que ficou grávida e soluçou sem parar durante oito meses. Foi triste.

Holiday olhou para o saco de papel, como se desejasse que não estivesse vazio.

— Por que você não põe os sapatos e vamos para o refeitório, afanar mais alguns biscoitos? Depois vamos procurar Burnett e ir à cachoeira. Algo me diz que você talvez precise de um ambiente relaxante.

A ideia de ir à cachoeira provocou uma sensação de calor no corpo de Kylie.

— É, parece muito bom. — Talvez quando ela estivesse lá conseguisse se lembrar do resto do sonho. Deus, ela realmente esperava que não tivesse feito nenhuma besteira com Derek...

Não que ela tivesse medo de ter... ido longe demais — até o fim, queria dizer. Era preciso admitir, como ela dissera para Holiday, os panfletos tinham feito um estrago na cabeça dela. Informação demais de fato poderia não ser uma boa. Ou neste caso particular, poderia ser uma boa.

Então ela percebeu que, se não tivesse sido tão cautelosa com relação a sexo, já podia ter dormido com Lucas. Estava contente por não ter feito isso. A dor encheu seu peito novamente, e ela não pôde deixar de perguntar até que ponto tinha dito a verdade à amiga. Quando a raiva que ela sentia de Lucas passasse, ela conseguiria perdoá-lo?

Será que ele merecia uma segunda chance?

Afastando Lucas da mente, percebeu que ainda não tinha se esquecido de Derek, que voltou a dominar seus pensamentos. Ela se lembrou do beijo do sonho. Será que ela tinha conseguido detê-lo? Ou tinha se deixado levar pelo momento? Droga! Droga! Dar esperança a Derek era uma péssima ideia.

E se ela tinha dado a ele esperança, precisava cortar o mal pela raiz, antes que aquilo causasse danos irreparáveis. O tipo de dano que deixa as pessoas magoadas. E o fato de ela não querer ferir os sentimentos de Derek poderia ter lhe proporcionado um alívio, mas ela não iria deixar sua mente divagar sobre o assunto. Não mesmo!

Kylie pegou os sapatos, calçou-os, e saiu com Holiday. Lembrando-se do celular de Hayden, enfiou-o no bolso.

Na noite anterior, ela tinha pensado em ligar para o avô, mas sem saber o que dizer, ou como dizer, ela desistiu. E, se ligasse, Burnett veria isso como outra traição?

Ela olhou para Holiday.

— Podemos dar uma passada na cabana de Hayden? Preciso devolver o telefone dele. — Quando Holiday olhou para ela com uma expressão confusa, Kylie explicou. — Deixei o meu celular na casa do meu avô. E eu queria ligar para a minha mãe.

— Claro! — disse Holiday.

Elas ainda não tinham cruzado a porta do quarto de Kylie quando Holiday soltou um leve soluço. Em seguida, outro escapou de seus lábios.

Kylie olhou para ela. Holiday colocou a mão sobre os lábios e o pânico transpareceu em seus olhos verdes.

— Isso é o que eu acho que é? — perguntou Kylie. — Foi um soluço?

— Ah, merda! — murmurou Holiday, e soluçou novamente.

Kylie gritou com entusiasmo.

— Será que o bebê será parecido com você ou com Burnett?


Capítulo Quatorze

Hayden não estava na cabana, mas Holiday, ainda meio em pânico por causa dos soluços, concordou em ir até a sala de aula do professor, ver se ele estava lá.

— Tenho certeza de que não é nada — ela disse, dando um tapinha no peito. — É psicossomático. Falamos dos soluços e eles começaram.

Kylie não tinha muita certeza, e pelo visto nem Holiday, que ficava repetindo aquilo como que para convencer a si mesma.

— Você não quer ter filhos? — Kylie perguntou, lembrando-se de que camaleões tinham dificuldade para engravidar.

— Sim, mas... Burnett não está muito feliz com a ideia. Ele diz que cresceu sem pai, então não saberia ser um.

— Acho que ele seria um ótimo pai.

— Eu sei que sim. Provavelmente seria um pouco superprotetor, como a maioria dos vampiros, mas, ainda assim, seria um pai fabuloso.

Pensando em uma vampira que também poderia ser um pouco superprotetora, Kylie perguntou:

— Della já voltou?

— Não, só à noite — disse Holiday. — Mas ela está bem — acrescentou, como se captasse a preocupação de Kylie. — Burnett falou com Steve novamente esta manhã.

Kylie assentiu.

— E Helen está bem?

— Saiu do hospital ontem à tarde. Seus pais queriam que ela ficasse com eles durante um tempo. Só para ter certeza de que está bem. Claro que Jonathon surtou.

— Aposto que sim — Kylie afirmou, lembrando-se de como os dois andavam grudados um no outro o tempo todo.

Holiday e Kylie chegaram à sala de aula de Hayden. Kylie viu alguém se movendo atrás da cortina.

— Ele está aqui.

Holiday concordou em esperar do lado de fora, e Kylie entrou.

Hayden, sozinho na sala, estava sentado à sua mesa, com um telefone na mão.

— Olá! — cumprimentou Kylie.

Hayden olhou para cima e deixou cair o telefone.

— Eu estava prestes a te telefonar para saber se estava bem. E trouxe meu telefone? Por favor, me diga que você não falou com a minha namorada desta vez.

— Não, eu não falei com ninguém, só com a minha mãe.

— E você está bem?

— Sim — Kylie tirou o telefone do bolso. — Eu queria devolver seu telefone. Obrigada por me emprestar.

Ele acenou com a cabeça.

— Você não ligou para o seu avô?

O bom humor de Kylie diminuiu um pouco. Ela negou com a cabeça.

— Eu não sei o que dizer a ele. Vou ligar daqui a um ou dois dias. — Sim, ela estava adiando as coisas, mas decidiu se permitir uma pequena pausa com relação a esse assunto. — Você contou a ele que Burnett já sabe de tudo?

Ele franziu a testa e fez que sim com a cabeça.

— Tive que me arriscar a usar o telefone do escritório, já que o meu estava com você — disse ele.

Ela lhe lançou um olhar de desculpas.

— Meu avô... aceitou bem a notícia?

— Ele não ficou muito feliz. — Hayden fez uma pausa. — Ainda acho que ele não estava planejando tentar impedi-la de ir embora. E ele parecia ansioso para falar com você sobre isso.

— Eu sei. Acredito em você, é só que... Eu sinto que o magoei indo embora, e agora ele deve estar chateado porque eu contei a Burnett sobre você. Pensar que ele está com raiva de mim é... simplesmente demais.

— Eu expliquei as razões que nos obrigaram a contar a Burnett. — Hayden reclinou-se na cadeira, que rangeu.

— Seu avô se preocupa com você. Eu sei que ele pode ser teimoso, mas já perdeu muito nesta vida, o filho, a esposa. Agora, ele está com medo de perder você também.

— Eu sei. E, no entanto... mesmo que eu não pertencesse a Shadow Falls, não poderia viver como eles querem que eu viva. Isolada do mundo.

— Eu sei. Não é fácil. A súbita rigidez em seus ombros revelou a Kylie quanto tinha sido difícil para ele.

— Quantos anos você tinha quando fugiu?

Ele pegou um lápis.

— Como você sabe que eu fugi?

— Eu supus — respondeu Kylie.

Ele hesitou.

— Tinha 17 anos.

— Você já viu seus pais desde então?

Ele negou com a cabeça.

— Seu avô me dá notícia deles e... ele começou a me deixar falar com Jenny quando...

— Quando o quê? — perguntou Kylie.

— Quando ele começou a ficar preocupado com a possibilidade de ela estar planejando fugir.

— Ela está?

— Acho que consegui acalmá-la. Ela só tem que ficar lá mais um ano ou coisa assim. Está quase madura.

— Madura? — perguntou Kylie.

— Sim. Quando o camaleão é capaz de mudar o próprio padrão. A regra é que, se você for embora depois da maturidade, não vai ser excomungado. Eles te olham com desaprovação, mas você pode visitá-los. Mas os anciãos estão tentando fazê-la se casar. É apenas mais um estratagema para tentar fazer com que ela continue a viver no complexo.

Kylie sentiu a dor de Hayden e teve pena de Jenny, também.

— Eles não percebem que assim estão estimulando os jovens a ir embora? É como um daqueles cultos que obrigam as crianças a viver como se estivessem no século XIX.

— Eles acham que a estão protegendo — explicou Hayden. — E talvez antigamente fosse a coisa certa a fazer. Mas as coisas mudaram e eles não conseguem ver isso. Eu dei um jeito de criar uma vida própria e não corro perigo.

Kylie assentiu com a cabeça, mas não pôde deixar de pensar até que ponto ele tinha uma vida boa se era obrigado a esconder sua verdadeira identidade. No entanto, ela supunha que fosse a melhor opção.

— Você vai ficar aqui? — Ela prendeu a respiração, com o coração cheio de esperança.

Ele se recostou na cadeira.

— Burnett ainda não me deu uma resposta.

— Mas, se ele disser que você pode ficar, você vai ficar?

Ele pegou o lápis e o rolou em sua mão. Ela o interrompeu.

— Por favor. Eu ia gostar, se você ficasse. Ainda tenho dúvidas e seria muito bom ter você por perto. E... Eu acho que quero tentar mudar as coisas. Você sabe, ajudar os outros camaleões adolescentes. Eu ainda não contei isso a Holiday ou Burnett, mas só estou esperando o momento certo.

— Vou pensar — disse ele. — Mas deixe-me dizer que o seu amigo Burnett fez com que a ideia de ir embora parecesse bem atraente.

— Ele não é ruim — disse Kylie. — Eu sei que ele pode ser... difícil. Em muitos aspectos, ele me lembra o meu avô. E até você, um pouco.

— Eu não sou tão teimoso. — defendeu-se Hayden. — Ele não tem o direito de me tratar assim.

Kylie poderia argumentar com Hayden que chegar ali e esconder sua identidade não instilara confiança em Burnett, mas o que adiantaria?

— Só prometa que você vai pensar na possibilidade de ficar. Eu realmente preciso de você aqui.

— Vou pensar, mas isso é tudo o que posso prometer.

Depois de outro sanduíche, mais biscoitos de chocolate e Burnett a reboque, Kylie e Holiday foram para a cachoeira. Burnett andava ao lado delas, mas o vampiro não parava de tropeçar, principalmente porque seu foco estava em Holiday, e não onde pisava.

Ela não tinha soluçado de novo, mas ainda estava em pânico. Pelo menos parecia que estava, porque ainda exibia um olhar de susto no rosto. Obviamente, Burnett percebeu o olhar de susto, também.

— Está tudo bem? — ele perguntou pela segunda vez.

— Eu disse a você, é apenas um problema na barriga — Holiday respondeu, e Kylie reconheceu que sua resposta era uma versão da verdade, por isso o seu batimento cardíaco não iria revelar que ela estava mentindo.

— Você precisa ir ao médico? — ele franziu as sobrancelhas e aquele vampiro forte e com pinta de valentão se transformou num sujeito preocupado, de aparência comum e evidentemente apaixonado por Holiday.

Ela ficou emocionada só de olhar para eles. Com a emoção veio um sentimento de realização. A sensação de que ela não só tinha colaborado para que os dois ficassem juntos, mas essa tinha sido parte de uma missão que ela concluíra, e muito bem.

— Não, eu não preciso ir ao médico — respondeu Holiday. — Pelo menos ainda não — ela acrescentou rapidamente para conter outra mentira.

— Provavelmente nervosismo com o casamento — Kylie acrescentou, na esperança de ajudar a afastar a conversa dos problemas na barriga de Holiday antes que ela não conseguisse encontrar outra meia verdade para dizer a Burnett.

Desviando o olhar do casal de mãos dadas, Kylie pôde jurar ter ouvido o murmúrio de água corrente da cachoeira. Ela desacelerou o passo e ajustou os ouvidos para escutar. Sim, era a cachoeira, mas eles provavelmente ainda estavam a quase um quilômetro de distância. Ela respirou fundo, ansiando pela paz que encontraria por trás da mágica coluna d’água — um lugar onde todas as desventuras da vida não pareciam tão ruins. Ou pareciam pelo menos mais fáceis de administrar.

— Nervosismo com o casamento?— Burnett perguntou como se tivesse refletido sobre o comentário de Kylie. — Ela não tem nenhum motivo para ficar nervosa. — Ele quase pareceu ofendido. — Farei tudo que estiver ao meu alcance para ser um bom marido.

— Noivas sempre ficam nervosas — disse Holiday.

— Nervosas com o quê? Não é como se você ainda não conhecesse todas as minhas manias. Ou se eu não conhecesse as suas.

Holiday olhou para ele com uma cara engraçada.

— Que manias eu tenho?

— Você rouba todas as cobertas à noite — Burnett sorriu e olhou com devoção para ela. Kylie tinha visto aquele olhar em seu rosto antes, mas agora ele o ostentava com orgulho. — Mas, falando sério — Burnett continuou —, por que você estaria nervosa?

Kylie reparou que, quando conversavam, era como se ela nem estivesse ali. Eles estavam tão sintonizados um com o outro que tudo o mais desaparecia à volta deles. E ela por acaso não sentira a mesma coisa quando estava com Lucas? Ela afastou o pensamento.

— E se você for muito pé-frio e ficar com medo? — Holiday perguntou, com um tom de provocação na voz.

Kylie lembrou que Blake, o ex-noivo de Holiday, a tinha deixado no altar, depois de dormir com a irmã gêmea dela. Sem dúvida, Holiday tinha suas razões para ficar nervosa com casamentos.

— Eu estou sempre com o pé frio. Sou um vampiro! — disse ele numa voz provocante, quase como se estivesse tentando afastar o ânimo sombrio de Holiday. — E se bem me lembro, você reclamou disso a noite passada. — Ele diminuiu o passo colocou o braço em volta de Holiday. — Casar com você não me assusta nem um pouco. É a melhor coisa que poderia me acontecer. Eu nunca vou abandonar você. Vou ser o primeiro a chegar à igreja.

O coração de Kylie transbordou de emoção ao ouvir as palavras de Burnett.

Kylie ouviu Holiday soltar um suspiro sentimental.

— E é quando você diz coisas como essas que eu sei por que suporto os seus pés frios. — Holiday ficou na ponta dos pés para beijá-lo. Burnett puxou-a para que pudesse aprofundar o beijo.

— Ei! — Kylie disse, sorrindo. — Há uma donzela observando vocês agora.

— Então olhe para o outro lado — Burnett disse a Kylie, e sorriu. — Tenho o direito de beijar a minha noiva.

Kylie riu.

— Sim, mas é melhor tomar cuidado, eles vão revogar sua licença de vampiro se você ficar muito romântico e sentimental.

— Não se preocupe — respondeu Burnett, apertando os olhos como se estivesse falando sério. — Eu ainda posso ser um brutamontes e chutar algum traseiro se for preciso.

Sim, como na noite passada, Kylie pensou. Ela ainda tinha alguns hematomas no seu ego, assim como Hayden Yates, mas não disse nada. No fundo, sabia que Burnett tinha seus motivos para ser rígido com ela e Hayden.

Seus pensamentos voltaram para a conversa com Hayden, mas a calma da cachoeira já lhe dera uma sensação de paz e ela foi capaz de deixar as preocupações de lado. Ela olhou para os dois pombinhos caminhando de mãos dadas. Talvez não fosse apenas a cachoeira que despertasse essa sensação de bem-estar, Kylie admitiu. Estar de volta a Shadow Falls e entre amigos era bom demais!

Quase no mesmo instante, o som da cachoeira ficou mais alto e um sentimento de serenidade se espalhou dentro dela. Kylie tinha que admitir que a cachoeira definitivamente estava contribuindo para a sensação mágica de bem-estar. E depois de tudo o que tinha acontecido nas últimas 24 horas, ela queria se agarrar a essa magia. Esquecer que ver Holiday e Burnett a fazia se lembrar de que amava alguém, também. Esquecer que Lucas a tinha traído. Esquecer que havia topado com Mario. Esquecer que ela provavelmente tinha magoado o avô ao ir embora sem dizer adeus.

Ah, sim, ela queria a calma que acompanhava aquele lugar abençoado, um lugar que banhava o espírito das pessoas com tranquilidade. Que oferecia uma sensação de bem-estar.

E coragem.

Uma voz ecoou em sua mente. Kylie parou de andar. A voz de alguma forma parecia significar alguma coisa, algo mais do que apenas enfrentar suas tribulações habituais. Como se a voz soubesse algo que ela não sabia.

Por que eu iria precisar de coragem?

Se não fosse pela tranquilidade, Kylie podia ter começado a entrar em pânico com a leve intrusão em sua cabeça. As palavras não vinham com o calafrio que ela costumava sentir quando um fantasma a visitava. Não que Kylie não tivesse ouvido a voz antes; ela tinha, várias vezes. No passado, tentara se convencer de que era seu subconsciente. Mas, desta vez, parecia mais do que isso.

O som calmo da cachoeira ficou mais forte e diminuiu suas preocupações. Ela não queria se preocupar com a voz, ou mesmo com a razão de precisar de coragem. Ela acelerou o ritmo.

Cinco minutos depois, chegaram à entrada da cachoeira. O ambiente sereno a envolveu. Até mesmo as folhas das árvores pareciam sussurrar suas saudações. A água cascateando do penhasco acima enchia o ar com uma doce umidade. A brisa leve, transportando minúsculas gotinhas de água, perfumava o ar com o aroma de alguma flor distante e ervas naturais.

A costumeira expressão severa de Burnett dissolveu-se em algo mais pacífico. Ele parou na orla das árvores e concordou em esperar ali, permitindo que elas tivessem sua experiência particular na cachoeira. Retirando os sapatos e enrolando as pernas da calça jeans, Holiday e Kylie caminharam através da parede de água em cascata.

Lá dentro, demorou um segundo para os olhos de Kylie se ajustarem à pouca luz. Não estava completamente escuro ali, mas apenas uma réstia de luz infiltrava-se na caverna atrás da cachoeira. Sombras iridescentes nas cores do arco-íris tremulavam nas paredes rochosas.

Água fria escorria do cabelo de Kylie e molhava suas costas, mas a sensação de frio em sua pele parecia refrescante, como caminhar através de um dispersor num dia quente.

Ambas, Kylie e Holiday, se sentaram nas pedras lisas, bem à beira da água. Nenhuma das duas falou durante vários minutos. A reverência que preenchia o espaço parecia exigir um momento de silêncio.

A tranquilidade do lugar afastou as preocupações de Kylie.

Depois de alguns minutos, Holiday perguntou:

— Você vai empreender uma nova busca?

No momento em que a pergunta chegou até Kylie, a necessidade de uma orientação bateu fundo dentro dela.

— Será que eu realmente concluí a minha outra busca?

A pergunta não era dirigida apenas a Holiday, mas a si mesma.

— Você sabe de que espécie você é, e já conhece a maioria dos seus poderes. Não era essa a sua busca?

— Sim, mas eu ainda não sei controlar completamente os meus poderes. — Ela fez uma pausa. — E eu não sei tudo. — A necessidade inexplicável dentro dela permanecia e um desejo intenso de ter um plano encheu seu peito. Ela tinha que saber onde colocar o seu foco. Precisava de uma nova busca.

O fluxo da cachoeira pareceu ficar um pouco mais interno. Kylie olhou para cima e depois de volta para Holiday.

— Você está certa. Eu tenho que descobrir qual é a minha busca. Como vou fazer isso? Como é que eu descobri da primeira vez?

Ela se virou para Holiday, não em pânico, mas ansiosa para começar.

— Bem, você precisa perguntar a si mesma o que é mais importante para você agora. Geralmente nossas buscas acabam sendo aquilo que mais pesa no nosso coração ou na nossa consciência, ou então todas aquelas listas mentais do que temos que fazer e ignoramos.

Kylie respirou mais uma vez um pouco da calma do lugar e olhou para a líder do acampamento.

— Ok, eu sei uma coisa, e ia falar com você sobre isso, mas ainda não tive uma chance de pensar a respeito.

— O que é? — perguntou Holiday.

— Os camaleões adolescentes, eles... os anciãos praticamente os proíbem de sair do complexo. Eles têm muito pouco contato com o mundo exterior. Não têm permissão para ter telefones celulares ou computadores. Não quero dizer que sejam maltratados. É só que os anciãos estão presos a essa mentalidade de quando eram perseguidos. Eles acham que a única maneira de permanecer em segurança é se escondendo. Eles têm uma política rigorosa de que até que o camaleão possa controlar e ocultar o seu verdadeiro padrão, ele não deve sair pelo mundo. — De repente, Kylie percebeu uma coisa. — Eles são como os lobisomens. Com todas as suas crenças retrógradas.

— Parece que são mesmo — Holiday fez uma pausa e olhou para a água. — Essa é uma tarefa e tanto! — Sua expressão revelava que ela estava medindo os prós e os contras. — É difícil mudar as crenças motivadas por um medo justificado.

— Eu sei — disse Kylie. — Mas tem que haver uma maneira, não é?

— É, com certeza vale a pena tentar. É uma boa missão.

O que mais? A voz dentro dela disse. A mesma voz de antes.

Mas, como antes, a voz não a assustou. Era uma pergunta que ela estava prestes a fazer por si mesma.

Kylie puxou os joelhos para cima e colocou os braços ao redor dos tornozelos.

— Tem outra coisa. — E o coração dela procurou saber o que era, mas não conseguiu.

— O quê? — Holiday perguntou, e respirou como se tentando absorver a calma do lugar.

— Eu não tenho certeza. — Suas palavras não tinham deixado completamente seus lábios quando as luzes bruxuleantes da caverna começaram a girar e, em seguida, passaram a se mover como se estivessem dançando em cima da água.

A respiração de Kylie ficou presa na garganta enquanto as diferentes cores tremulantes formavam um círculo. No entanto, mesmo com o movimento da luz, a água parecia totalmente parada, e a superfície mais abaixo se tornou cristalina. O círculo de luz apareceu e enquadrou um objeto embaixo d’água. De repente, o que quer que estivesse submerso veio até a superfície com um leve barulho de água se espalhando e começou a flutuar em direção à borda.

Apavorada, Kylie recuou alguns centímetros, ainda sentada na pedra. Ela se sentiu um pouco menos covarde quando Holiday fez o mesmo.

O objeto — flutuando sobre a superfície da água e movendo-se como que com um objetivo — estava a cerca de um metro da borda quando Kylie conseguiu identificar o que era. Ah, meu Deus, o que aquilo significava?


Capítulo Quinze

Ainda sentada, Kylie virou-se para os lados, procurando o fantasma e tentando sentir o frio. Não sentiu nenhum frio na caverna. Nenhum fantasma, tampouco. Nenhum que Kylie pudesse sentir, pelo menos.

Mas a espada, agora avançando na direção de Kylie, tinha que ser do fantasma, certo? Ele não fazia outra coisa senão carregá-la por todos os lugares, na última semana e meia.

— De onde veio isso? — perguntou Holiday, a voz cheia de preocupação.

Kylie não conseguia tirar os olhos da arma, à medida que ela se aproximava lentamente.

— De dentro d’água.

— Eu sei, eu vi, mas...

— Acho que tem algo a ver com o fantasma — disse Kylie.

Holiday franziu a testa.

— Você quer dizer aquele que carrega cabeças degoladas por aí?

Kylie assentiu.

— É isso aí.

— Por que você acha que é esse fantasma? — perguntou Holiday.

— Eu não estou completamente certa, mas acho que se parece com a espada dela. Sem todo aquele sangue, é claro.

— Mas que inferno! — exclamou Holiday. — No que você foi se meter?

— Não sei. Mas não foi por vontade própria. — Kylie mordeu o lábio. Se não fosse o ambiente tranquilo da cachoeira, ela fugiria dali correndo.

Holiday pegou a espada. Virou-a nas mãos.

— Parece de verdade. E é antiga. Você realmente acha que é a mesma espada? — Ela balançou a cabeça com perplexidade. — Fantasmas não podem entregar coisas assim.

— Parece com ela. Quer dizer, não sou nenhuma especialista em espadas. — Kylie pegou a arma e, assim que a tocou, a espada começou a brilhar. Ela atirou-a no chão e deu um pulo para trás. — Por que ela fez isso?

— Eu não sei — Holiday respondeu, olhando para a espada.

— Você aprendeu alguma coisa sobre camaleões que fazem armas brilharem?

— Não.

— Tem certeza?

— Acho que eu me lembraria disso.

— Tudo bem — disse ela, ainda pensando. Ela lançou para a espada outro olhar perplexo e, em seguida, olhou para Kylie. — O que acha de irmos embora?

— Tudo bem. — Kylie se levantou e viu Holiday estender o braço para pegar a espada. — Espere. Não podemos deixá-la aqui?

Holiday levantou-se e olhou para Kylie.

— Acho que não. Eu acho que ela foi feita para você.

— Sabe, eu estava com medo que você dissesse isso. Mas como você sabe que não é para você?

— Porque ela não brilhou quando eu a peguei.

Kylie fez uma careta.

— Estou farta de todas essas coisas estranhas acontecendo comigo.

Holiday suspirou.

— Se isso faz você se sentir melhor, eu também não gosto disso.

— Bem, então somos duas. — Kylie mordeu o lábio novamente, preocupada.

Holiday deu um meio sorriso.

— Nós vamos descobrir esse mistério. Quando voltarmos ao escritório vou fazer uma pesquisa e ver se consigo encontrar algo sobre isso. E vamos falar com Hayden, também. — Ela pegou a espada cuidadosamente, mantendo a ponta afiada para baixo. — Vamos encontrar a resposta.

Sim, Kylie pensou, mas tinha a nítida sensação de que, se encontrassem a resposta, ela poderia não gostar dela.

* * *

Kylie, Holiday e Burnett, com a espada a tiracolo, encontraram Hayden em sua cabana. Ele não tinha nenhuma explicação para a espada. Nem mesmo um bom palpite.

Burnett pediu que ele pegasse a espada para ver se ela brilharia com ele. Isso não aconteceu. Então, como Burnett não tinha visto a espada brilhar antes, ele pediu para Kylie pegá-la. Com cuidado.

Como se ela não fosse ter cuidado ao pegar algo que parecia ter sido usado para decapitar centenas de vítimas.

No momento em que ela fechou os dedos em torno do cabo da espada, o ferro ficou quente contra sua palma e, tal como antes, começou a brilhar. Lembrava um daqueles brinquedos fosforescentes que se comprava em parques temáticos.

— Chega? — Kylie perguntou, ansiosa para largar a espada.

— Tudo bem — Burnett respondeu, e pareceu perplexo. Não era uma expressão que se via no rosto do vampiro com muita frequência. Ele pegou a espada e esperou para ver se ela iria brilhar, e até pareceu um pouco desapontado quando isso não aconteceu. Colocando-a de volta na mesa da cozinha de Hayden, ele fitou a testa de Kylie para verificar seu padrão.

No caminho para a cabana, ele tinha imaginado que Kylie provavelmente havia se transformado em bruxa e perdido o controle de seus poderes, assim como no dia em que arremessou um peso de papel nele, machucando-o. Embora Kylie quase desejasse que tudo fosse assim tão simples, ela não se convenceu disso. Ela não andara pensando em conjurar uma espada.

— Eu não sou uma bruxa, sou? — ela perguntou a Burnett.

— Não — ele disse, e encolheu os ombros.

— Eu já disse — falou Holiday. — Verifiquei o padrão dela assim que a espada começou a brilhar. Por mais insano que pareça, não tenho certeza de que é Kylie quem está fazendo isso. Acho que é a espada.

— Você acha que a espada está possuída? — perguntou Hayden.

— O que você disse? — perguntou Kylie. — Espadas podem ser possuídas? Tudo bem... isso parece muito estranho para mim. — Ela começou a tirar a poeira das mãos para se livrar de qualquer germe possuído.

— Não, eu não acho que ela esteja possuída. — Holiday tocou Kylie para acalmá-la. — Eu só acho que, por algum motivo, ela reage a Kylie. Há alguma conexão entre ela e a espada.

— Isso é estranhíssimo! — disse Hayden. — Eu poderia perguntar ao avô de Kylie sobre isso. Talvez ele saiba algo que eu não sei.

Burnett franziu a testa com a menção ao avô de Kylie, mas concordou com a cabeça, e ela o viu se esforçar para não demonstrar o seu descontentamento. — Eu agradeceria. — Ele até parecia grato. — Será que você poderia me procurar e contar tudo, logo que souber de alguma coisa?

Hayden assentiu.

— É claro.

Quando eles iam sair, Burnett ofereceu a mão a Hayden. O professor não hesitou em apertá-la. Kylie teve a sensação de que todo o episódio da espada poderia ter ajudado a convencer Burnett de que Hayden precisava ficar. Mesmo que Hayden não tivesse as respostas, ela podia ver que Burnett gostava de ter uma pessoa para ajudá-lo com algo sobre o qual ele não tinha muito conhecimento.

Talvez, Kylie pensou, a espada não fosse uma coisa ruim, afinal de contas. Mas cada vez que olhava para a arma ao lado de Burnett, lembrava-se do espírito, na noite anterior, carregando uma espada sangrenta e a cabeça decepada.

E ela começou a se preocupar mais uma vez com a possibilidade de que aquela história toda pudesse levar a mais derramamento de sangue.

Eles deixaram a espada no escritório de Holiday e, em seguida, todos se dirigiram ao refeitório para o jantar. Quando pisaram na varanda, Kylie foi vista pela primeira vez pelos outros alunos de Shadow Falls e cumprimentada por vários campistas. Perry veio correndo e a abraçou com força, girando-a duas vezes. Quando ele colocou os pés dela de volta no chão, Kylie estava tonta e feliz. Ele agarrou os braços dela para ampará-la. Kylie ainda não tinha percebido quanto tinha sentido falta do metamorfo até que ele riu e despertou uma agradável sensação de déjà-vu dentro dela.

— Ei, você está agarrando a minha melhor amiga? — A voz de Miranda ecoou atrás de Perry.

Perry soltou Kylie e deu a Miranda um sorriso por cima do ombro.

— Só um pouquinho — disse ele, olhado novamente para Kylie. — Cara, como nós sentimos a sua falta! Miranda estava me deixando louco de tanto reclamar da solidão.

— Eu também senti falta de todo mundo — disse Kylie, com sinceridade.

Logo em seguida, um grupo de lobisomens passou. Kylie primeiro reconheceu Clara, a meia-irmã de Lucas. Ela encontrou o olhar de Kylie e sua postura de repente pareceu expressar contrariedade. Ok, então nem todo mundo tinha ficado feliz em revê-la. Ela podia dormir com isso. Mas, então, por trás de Clara, outra pessoa entrou em seu campo de visão, e Kylie deu de cara com Fredericka.

Ela não sorriu, mas também não fez cara feia, e então ofereceu a Kylie um ligeiro aceno de cabeça. Um aceno de boas-vindas, talvez até querendo dizer “que bom te ver”. Kylie retribuiu o gesto e até mesmo ofereceu um leve sorriso.

Para Fredericka, aquele ligeiro cumprimento provavelmente era uma expressão de afeto maior do que o abraço efusivo de Perry. Especialmente depois que Clara lançou para Fredericka um olhar descontente com a atitude da loba e Fredericka simplesmente deu de ombros.

Kylie respirou fundo. Era bom saber que, embora pudesse não ter feito mais amigos em Shadow Falls, tinha conseguido perder uma inimiga.

Miranda se inclinou para se aproximar mais da amiga.

— Você acabou de fazer o que eu acho que fez? Você sorriu para aquela bruaca?

— Eu já te disse, a gente já se entendeu — disse Kylie.

— O que é uma coisa boa — Holiday acrescentou. — E acho que existe mais gente precisando se entender aqui.

— E eu acho que Della está certa — Miranda murmurou. — Kylie é simplesmente boazinha demais. — Ignorando a carranca de Holiday, a bruxa olhou para Burnett. — Falando nisso... Della não voltou ainda?

— Ela vai chegar a qualquer momento — Burnett respondeu enquanto se dirigiam ao refeitório.

Quando atravessaram a porta, a conversa que enchia o grande salão se aquietou como se alguém tivesse baixado o volume. Cabeças se viraram. O único som no grande espaço era o dos garfos sendo colocados nos pratos. Então, ao mesmo tempo, pelo menos cinquenta pares de olhos fixaram-se na testa de Kylie para verificar o seu padrão. Kylie deteve o passo assim que entrou no salão, sentindo-se, com contrariedade, o centro das atenções.

Holiday passou a mão nas costas de Kylie.

— Você quer que eu faça alguma coisa? — ela sussurrou.

— Não — Kylie murmurou, determinada a travar suas próprias batalhas. Além disso, ela queria estar ali, estava em sua casa, e Deus do céu!, ela não ia esconder o seu padrão. Mais cedo ou mais tarde, eles iriam se acostumar com ela. Não iriam? Um dia parariam de olhar e a acertariam como um dos seus.

— Bem, eu vou fazer alguma coisa — resmungou Perry, colocando-se na frente. — Vocês querem olhar para alguma coisa? — ele gritou. — Bem, olhem para isto! — Perry ficou de costas, inclinou o tronco para a frente, baixou as calças e mostrou o traseiro para cada um dos cinquenta pares de olhos.

— Perry! — Holiday gritou, com riso na voz. Burnett deixou escapar uma risada, mas depois fechou a boca quando viu as sobrancelhas arqueadas de Holiday diante da sua demonstração aberta de humor.

— Não fique mostrando a bunda, Perry! — repreendeu-o Burnett, a voz profunda como se ainda estivesse tentando não rir. — As pessoas estão tentando comer.

Todos na sala começaram a rir, até mesmo Kylie. Não havia ninguém como Perry para transformar um momento estranho numa completa piada. Kylie olhou para Miranda, que revirou os olhos, mas o orgulho brilhava por trás deles. E ela devia mesmo ficar orgulhosa. Embora mostrar o traseiro pudesse parecer uma atitude extrema, Perry tinha feito aquilo com boas intenções, para pôr fim a um momento de constrangimento e fazer Kylie se sentir melhor. E ele tinha conseguido.

Já com as calças no lugar, Perry virou-se e piscou para Kylie. Quando eles se aproximavam do balcão de comida, Kylie se inclinou para Miranda e disse:

— Perry é um defensor.

Miranda revirou os olhos novamente com humor.

— Eu sei. — Ela sorriu. — E ele tem um bumbum bem bonito, não acha?

Kylie riu novamente.

— Eu não vi o bumbum, é o coração dele que me encanta.

Enquanto Kylie esperava na fila para pegar seu hambúrguer com batatas fritas — que, realmente, tinha um aroma maravilhoso —, várias pessoas se aproximaram para dar as boas-vindas: Mandy, uma das amigas bruxas de Miranda; Chris, o vampiro; e Jonathon, que parecia deprimido, obviamente, sem a companhia de Helen.

— Como está Helen? — perguntou Kylie, que de repente sentiu uma pontada de culpa, ao lembrar que provavelmente era por causa dela que Helen tinha sido atacada. — Eu sinto muito pelo que aconteceu.

— Não foi culpa sua — disse ele, empurrando-a de leve com o ombro. — Mas se eu tiver uma chance de colocar as mãos no idiota que a feriu, ele vai se arrepender.

— Ela está bem mesmo? — perguntou Kylie.

— Sim, ela está bem. Os pais dela disseram que Helen pode estar de volta daqui a uma semana.

— Que bom! — exclamou Kylie.

— Bom? É uma eternidade! Uma semana inteira. Sete dias. Vou enlouquecer. Ela é como uma droga para mim. Eu não estou acostumado a ficar sem ela. — Ele então se afastou, com um ar acabrunhado.

Kylie ficou observando-o se afastar. Sua postura era a de um rapaz infeliz e derrotado. Então ela teve um vislumbre de como se sentia quando Lucas se afastava do acampamento. Solitária, vazia. Longe do que dava sustentação à sua vida.

Tentando afastar o pensamento, ela sentiu os pelos da nuca se arrepiarem e fazerem cócegas na sua pele. Tentando ser discreta, mas com receio de saber exatamente quem estava olhando, ela olhou por cima do ombro, na direção da mesa onde estavam os lobisomens. Como ela esperava, ele estava sentado lá, observando-a com seus grandes olhos azuis. Olhos que expressavam um triste pedido de desculpas. O coração de Kylie foi parar na boca do estômago.

Será que a raiva que sentia dele um dia diminuiria o suficiente para perdoá-lo? A pergunta latejava dolorosamente em seu peito a cada batida de seu coração.

Ela desviou o olhar e disparou pelo refeitório, chocando-se de frente com um peito largo — um peito largo e muito familiar. O mesmo no qual ela tinha se aconchegado na noite anterior, durante um sonho lúcido. Quando ela olhou para o rosto de Derek, seu cérebro decidiu que aquele era o momento perfeito para ela se lembrar de tudo o que tinha acontecido. Todas as peças que faltavam no quebra-cabeça da noite anterior pipocaram em sua mente.

O beijo.

Os braços dele em torno dela.

A maneira carinhosa como ele a segurava.

Ah, droga!


Capítulo Dezesseis

Kylie tinha tentado impedir o beijo, mas não foi rápida o suficiente. E então ela descansou a cabeça em seu peito e chorou, porque estava se sentindo completamente confusa.

Ele a estreitou em seus braços e deixou-a chorar. Tinha sido catártico e calmante.

E errado.

Errado por causa do que ela viu refletido nos olhos dele. Otimismo. Esperança de que eles pudessem voltar a ficar juntos como antes, quando a tristeza dela com relação a Lucas tivesse passado.

Esse pensamento trouxe uma epifania, uma dessas constatações surpreendentes que geralmente causam uma reviravolta na vida de uma pessoa. E, sim, ela sentiu essa reviravolta, mas também sentiu... uma onda de perguntas e uma necessidade de compreender.

Derek também a enganara, tinha realmente dormido com Ellie, ao contrário do que Lucas tinha feito ou o que ela achava que ele tinha feito. E, embora ela tivesse sido magoada por Derek e se sentido traída, a tristeza que a atitude de Lucas lhe causava parecia muito maior. Por quê?

Será que isso revelava quanto ela gostava de Derek, que perdoá-lo era muito mais fácil? Ou será que tinha mais a ver com a profundidade de seus sentimentos por Lucas? Com o fato de os seus sentimentos por Lucas serem mais verdadeiros?

— Você está bem? — Derek perguntou, olhando para ela.

Ela assentiu.

— Só estou com fome — ela mentiu, e foi andando na frente dele, para que não tivesse que encará-lo ou encarar a mentira que tinha acabado de contar.

Ele se inclinou e sussurrou em seu ouvido.

— Você não está com raiva de mim, está?

Ela considerou a pergunta, e a resposta veio. Eu não estou com raiva de você, é de mim mesma que estou com raiva.

Ela tinha sido fraca. Deveria ter colocado um fim naquele sonho lúcido antes que ele tivesse começado. E ela poderia ter feito isso. Então, por que não fez?

— Não, eu não estou com raiva de você — ela sussurrou de volta. — Eu estou apenas... — Percebendo que eles estavam cercados de ouvidos vampirescos, que podiam ouvir todos os tipos de segredos, ela disse: — Vamos conversar mais tarde.

— Tudo bem — disse ele. — Sou sua sombra esta noite, portanto, vamos ter tempo de sobra.

Kylie franziu a testa. Talvez ela precisasse adicionar Derek à lista de Burnett de quem não devia lhe servir de sombra... Pelo menos até que ela resolvesse seus sentimentos.

Com uma bandeja de comida na mão, Kylie dirigiu-se para a mesa onde Miranda e Perry estavam. Ela se sentou e olhou para Perry, novamente com um sentimento de gratidão.

— Obrigada — disse ela.

— Sempre que precisar de mim para mostrar a bunda, pode chamar — disse ele, sorrindo.

Kylie ouviu alguém se sentando ao lado dela e preocupou-se novamente com a possibilidade de encorajar Derek. Pegando uma batata frita, ela olhou para a frente, tentando ignorar o fae tanto quanto possível. Seu olhar se deslocou pelo salão, detendo-se na mesa dos lobisomens e nas carrancas que viu no rosto dos quatro sentados lá. Carrancas de todos, menos de...

Lucas.

Um certo aroma amadeirado da pessoa sentada ao seu lado de repente encheu seus sentidos. A batata escorregou de seus dedos. Lentamente, ela virou a cabeça para confirmar seu erro.

Erro confirmado. Sua respiração ficou suspensa.

Não era Derek sentado ao lado dela. Era Lucas.

Voltando o olhar para o prato de comida, ela fitou o hambúrguer, que de repente não tinha mais o mesmo cheiro apetitoso.

— Você não devia estar com a sua matilha? — ela sussurrou, sem olhar para ele.

— Na verdade — disse ele, inclinando-se mais para perto. Tão perto que seu ombro roçou no dela. A dor emocional provocada por esse leve toque foi direito ao seu coração. — Eu estou exatamente onde deveria estar — Lucas sussurrou.

Ela se afastou alguns centímetros, ao mesmo tempo que uma bandeja bateu na mesa à sua frente. Uma batida um pouco alta demais. Suspeitava que o dono da bandeja pudesse ser um fae contrariado. Um olhar confirmou isso. Derek se deixou cair no banco, encarando Lucas como se o lobisomem estivesse invadindo o seu espaço.

Ah, e essa agora?, pensou Kylie. Ela considerou a coisa certa a fazer, fugir dali, sabendo que as pessoas estavam provavelmente observando para ver o que ela faria. Ficar e esperar que nenhum drama surgisse entre o lobisomem e o fae, e tentar minimizar todas as fofocas.

Sentindo-se forçada a fingir que estava tudo bem, ela pegou o hambúrguer e cravou os dentes no pão branco macio. Embora ela não estivesse pensando no gosto que ele tinha, seu estômago deve ter aprovado, porque roncou de prazer no momento em que o primeiro bocado percorreu seu trajeto até o órgão vazio. Ela nem deu tempo ao seu estômago de pedir uma segunda mordida. Dessa vez, o sabor do pão levemente adocicado, misturado com o queijo e a carne lambuzada de ketchup picante, foi aprovado pelo seu paladar. Ela realmente não tinha comido direito desde que deixara Shadow Falls.

Derek, provavelmente captando seu desejo de evitar o caos, pegou seu hambúrguer e começou a comer. Lucas fez o mesmo. A tensão se dissipou, mas não por muito tempo.

— Quem está a fim de um jogo de basquete depois do jantar? — perguntou Perry.

Algumas vozes concordaram com um sim. Kylie achava que tanto Derek quanto Lucas iam entrar na conversa, mas não sabia ao certo. Ela fez o possível para se concentrar na comida e evitar contato visual com qualquer um dos dois.

Então Derek acrescentou:

— Mas vai ter que ser um jogo curto. Eu sou sombra de Kylie esta noite.

Foi mais pelo jeito como ele disse, do que pelo que disse, que ficou claro que seu objetivo era contrariar Lucas. E funcionou. Lucas deu um rápido empurrão na sua bandeja e ela voou sobre a mesa e se chocou contra a de Derek, fazendo as batatas fritas se espalharem pelo seu colo.

— Pode desistir — disse Lucas. — A gente vai voltar em muito pouco tempo.

— Tem certeza disso? — perguntou Derek.

— Parem! — exigiu Kylie.

— Tenho — rosnou Lucas, como se não a tivesse ouvido. — Olha só, eu não dormi com ninguém enquanto estava com ela, como alguém aqui.

— Tá, mas eu não fiquei noivo pelas costas dela — contra-atacou Derek.

— Nem eu — respondeu Lucas. — O noivado nunca chegou a acontecer porque eu não assinei os papéis após a cerimônia.

O quê? Kylie olhou para ele, chocada. Ela supusera...

— E como vai entrar para o Conselho? — ela perguntou.

— Você é mais importante — falou ele. — Eu já te disse isso.

Não, ele não tinha lhe dito isso. Não de verdade. E ele tampouco tinha dito a ela que desistira do noivado.

— Eu disse que foi um erro. Que... — Ele hesitou apenas um segundo. — Que eu te amo.

Ela não deixou de notar quanto tinha sido difícil para ele falar sobre seus sentimentos publicamente, e com certeza todos os ouvidos do salão estavam se esforçando para ouvir, mas Lucas tinha feito isso. Ele lhe dissera que a amava na frente de todos.

E isso a deixou muito irritada. Ela tinha apreciado muito mais a exposição do traseiro de Perry.

— E você não podia ter descoberto isso antes?!

Ela deixou cair o hambúrguer, empurrou a própria bandeja e saiu do refeitório. Enquanto fazia isso, ouviu seus próprios passos ecoando no chão de ladrilhos. O que significava que todos no salão, todo o acampamento, estavam a par da sua revolta pessoal. Mas que ótimo! Ótimo mesmo!

* * *

Kylie já estava do lado de fora quando ouviu alguém a seguindo. Pensando que era Derek, e preparada para mandá-lo embora, ela se virou subitamente e Miranda chocou-se contra ela.

— Desculpe! — disse Miranda.

Kylie piscou para conter o que parecia ser um início de choro.

— Está tudo bem. Você não precisava vir atrás de mim. Fique lá com Perry e termine o seu jantar.

— Eu precisava, sim — contestou Miranda.

— Não, você não precisava.

— Sim, precisava. — Miranda assentiu. — Primeiro, porque você é uma das minhas melhores amigas e, segundo, porque... Burnett me disse pra vir. Mas eu teria vindo de qualquer maneira por causa da primeira coisa. — Ela abraçou Kylie. — Você quer que eu peça a Perry para mostrar a bunda novamente?

Kylie se afastou do abraço, riu, e secou as lágrimas.

— Eu não acho que eles iam aguentar ver aquilo duas vezes.

Miranda deu uma risadinha.

— Está brincando?! É uma bundinha linda!

Elas caminharam de volta para a cabana e Miranda falou sobre Perry. Falou um bocado sobre Perry. Como se não fosse mais parar. Não que Kylie se importasse; ela preferia ouvir Miranda falando de Perry sem parar ao silêncio que experimentara o tempo todo enquanto estava na casa do avô. E daí que Miranda falava um pouco demais? Kylie ainda a amava e adorava ficar com ela.

Eles chegaram à cabana, entraram, e ambas voltaram o olhar para a porta de Della. A porta estava fechada. E isso só podia significar uma coisa. Della estava em casa.

Gritando, ambas dispararam para o quarto da vampira.

Della estava de pé, completamente nua, no meio do quarto, com o sutiã nas mãos.

— Suas malucas! Vocês não sabem o que significa uma porta fechada? Agora, virem-se enquanto eu me visto.

— Nós não estamos nem aí se você está nua. Estamos tão felizes em vê-la! — disse Miranda.

— É verdade! — disse Kylie.

— Sim, mas vocês não deviam me ver pelada. Vão ficar gozando da minha cara por causa dos meus peitos pequenos. Agora se virem!

— Eles não são tão pequenos — disse Miranda, dando uma boa olhada em Della.

— Virem-se! — Della rosnou, usando uma mão e o braço para cobrir os seios e a outra para esconder os pelos pubianos.

— Não tão rápido — disse Miranda, apontando o dedo para ela. — Primeiro você tem algumas explicações para dar, mocinha!

— Mocinha? Eu não sou nenhuma mocinha. E explicar o quê? — ela perguntou, mas estava sorrindo, obviamente, tão feliz em vê-las quanto as amigas.

— Não são os seus peitos pequenos que você devia esconder. É esse chupão abaixo do ombro.

Della deslocou a mão para cima dos seios e escondeu a marca abaixo do pescoço.

— Não é um chupão. — Virando-se, ela pegou o roupão da cama e enfiou os braços.

— Sério? — perguntou Miranda.

— Parecia um chupão. — Kylie deu uma risadinha, superfeliz que as três estivessem juntas novamente. Ela nem sequer se importava se iam começar a brigar ou ameaçar arrancar os membros umas das outras. Só estar ali com aquelas duas... era o suficiente para dar um gostinho de lar à cabana.

— Quando algo se parece com um chupão e cheira como um chupão, é um chupão — Miranda concluiu.

— Chupões não têm cheiro — Della contra-atacou.

— Você sabe o que quero dizer. Além disso, eu sei reconhecer um chupão quando vejo um. — Ela puxou a camiseta para expor uma marca cor-de-rosa acima do seio direito.

Kylie riu e então suspirou.

— Sério, vocês duas são péssimos exemplos para mim. Não sei se posso ficar na mesma cabana que vocês. Podem acabar com a minha reputação.

— Ah, por favor! — disse Della. — Você já colocou bastante ação na sua vida desde que chegou aqui.

— Não é verdade — disse Kylie.

— Você já ficou com três caras diferentes desde que chegou a Shadow Falls!

— Três? Eu não!

— Está se esquecendo de que Trey veio até aqui.

— Ah, qual é? Trey não conta. Além disso, eu nunca fiquei com um chupão.

— Ah, coitadinha — disse Della. — Sabia que você pode produzir um com um aspirador de pó? Eu provoquei o meu primeiro chupão na sexta série e disse a todos que quem tinha causado aquilo era um aluno do oitavo ano. Foi demais!

Kylie revirou os olhos.

— Não posso acreditar que você deu uns amassos com um aspirador de pó!

— Fiz isso e foi melhor do que com o meu primeiro namorado. Ele era péssimo em produzir chupões.

Kylie e Miranda começaram a rir. Então Della ficou sombria.

— Nossa, é tão bom estar de volta! — Ela pulou em sua cama e saltou duas vezes. Em seguida, Miranda e Kylie pularam também em cima da cama com ela.

— Então, você não vai explicar o chupão? — perguntou Miranda, pegando um dos travesseiros de Della e abraçando-o.

— Não — disse Della. — Nada de falar em chupões.

— Pelo menos vai nos dizer quem provocou este? — Miranda insistiu.

— Tudo bem. Eu vou dizer. — Ela parou de sorrir e limpou a garganta. — Eu recorri ao meu velho e bom aspirador de pó. E fizemos uma viagem ao passado. Foi tão romântico... — disse ela, sorrindo.

Aquele sorriso não enganou Kylie. Ela viu algo nos olhos de Della. Um lampejo de dor. Della realmente não queria falar a respeito.

— Foi o aspirador de pó chamado Steve? — perguntou Miranda.

Della franziu a testa.

— Esqueça o chupão.

— Mas isso não é justo, nós contamos tudo uma para a outra — disse Miranda.

— Não faz mal — disse Kylie, apreciando a brincadeira fácil e não querendo perder o clima leve. — Que tal falarmos de mim vendo a bunda de Perry?

— Você disse que não tinha visto! — disse Miranda.

— Espere aí. O que você disse? — perguntou Della, e olhou para Kylie. — Você viu a bunda de Perry?

— Só um vislumbre rápido — disse Kylie. — Mas eu acho que todo mundo teve tempo para dar uma boa olhada.

— Na bunda de Perry? — perguntou Della.

Miranda assentiu com a cabeça e, em seguida, contou a história sobre como o heroico Perry fora ao socorro de Kylie baixando as calças.

Della sorriu de orelha a orelha.

— Eu sabia que gostava daquele metamorfo.

— Ele é um amor, não é? — Miranda suspirou com um olhar sonhador.

— E como vão as coisas com você? — Della perguntou a Kylie. — Já chutou o traseiro de Lucas e decidiu perdoá-lo? Ele está parecendo um filhote de cachorro que perdeu seu único brinquedo de mastigar.

Kylie fez uma careta.

— Não vamos falar sobre isso.

Miranda deu um pinote na cama.

— Você devia estar no refeitório para ver. Derek e Lucas se sentaram com ela. Eu juro, pensei que eles iam se atracar. E, depois, Lucas disse a Kylie que a amava, bem na frente de todo mundo. Foi tããão romântico...

O peito de Kylie ficou pesado.

— Não foi romântico. Foi... triste.

— Triste descreve muito bem como ele ficou quando você saiu do refeitório — disse Miranda. — Foi como se alguém tivesse arrancado a alegria dele.

— Não quero falar sobre isso — disse Kylie.

— Então você ainda está brava com ele? — perguntou Della. — Não culpo você.

Kylie lançou a Della um olhar severo.

— Ei... Eu respeitei sua vontade de não falar sobre o chupão. Agora você tem que respeitar a minha.

Miranda reclinou-se para a frente e resmungou.

— Isso não é justo! Eu conto tudo a vocês. Não escondo nada.

— Acredite em mim, eu sei — disse Della. — Eu sei mais sobre o seu relacionamento com Perry do que a lei permite.

— Não comece com isso. — Miranda fez uma careta.

— Por que não vamos pegar uma Coca Diet? — Kylie ofereceu antes que as duas começassem a brigar com força total.

As três saltaram da cama e foram para a cozinha. No momento Kylie queria esquecer todos os seus problemas. Só queria se sentar à mesa da cozinha e rir um pouco mais. Rir com as amigas, contar algumas histórias engraçadas e se lembrar de que, não importava os desafios que a vida lhes reservava, estaria tudo bem, desde que tivessem umas às outras.

Della chegou à cozinha primeiro.

— Que diabos é isso? — ela murmurou.

No momento em que Kylie viu o que repousava sobre a mesa da cozinha, percebeu que esquecer seus problemas não ia ser tão fácil.

— Merda!... — Kylie murmurou. — Alguém pode, por favor, ligar para Burnett e Holiday e dizer para virem aqui o mais rápido possível?


Capítulo Dezessete

— Como isso chegou aqui? — perguntou Holiday, parada a poucos metros da mesa da cozinha e olhando para a espada com descrença.

— Diga-me você e então nós duas saberemos. — Kylie apertou as mãos com preocupação. — Como... como isso pode acontecer?

— Como?! — Burnett berrou. — É óbvio. Alguém trouxe isto até aqui para fazer uma brincadeira com você, mas eu não estou rindo e ninguém vai rir quando eu pegar quem foi o otário! — A cara feia de Burnett se aprofundou e virou uma carranca. — Tirar algo do escritório de Holiday para trazer aqui só de gozação é querer mexer com fogo. — Ele olhou para Kylie. — A quem mais você contou sobre a espada?

— A ninguém — disse Kylie. — Não contei a ninguém. A ninguém mesmo. Estive tentando nem pensar nisso. Então não pode ser uma brincadeira.

— Ela está dizendo a verdade — murmurou Della. — Ela não nos contou. E ela nos conta tudo. Ou contava. — Della olhou para Kylie de cara feia.

— Ela não nos conta tudo — Miranda acrescentou. — Assim como algumas pessoas com chupões não nos contam tudo.

Della fez uma careta para Miranda e, em seguida, olhou para Kylie.

— Francamente, eu gostaria muito de saber por que estamos fazendo tanta tempestade em copo d’água. É apenas uma espada.

Burnett continuou a olhar para Kylie como se ainda estivesse refletindo.

— Então, como você acha que a espada chegou aqui?

Kylie deu de ombros.

— Eu não sei, mas talvez tenha sido da mesma maneira que chegou à cachoeira. Magia, vodu, ou por quem quer que a tenha deixado lá.

— Você achou esta espada na cachoeira? — perguntou Miranda. — Quem a teria deixado lá? Parece uma antiguidade e isso geralmente significa que vale um bocado de dinheiro.

— Eu também não sei — Kylie disse a Miranda. — Mas o que eu sei é que eu realmente não gosto disso. Então, basta tirar esta coisa daqui. Com delicadeza e segurança. E talvez colocá-la em outro lugar mais seguro neste momento. Como num cofre.

— Uau! — exclamou Miranda.

— Uau o quê?— Burnett perguntou ao mesmo tempo que Kylie falava.

Miranda apontou para a espada.

— Ela tem uma aura!

— A espada tem uma aura? — Holiday se aproximou de Miranda, parecendo intrigada. Kylie deu mais um passo para trás, porque ela não estava nada intrigada.

— Que tipo de aura? — Holiday perguntou à bruxa.

— Talvez Hayden estivesse certo. A espada está possuída — disse Burnett.

— Espere! Objetos inanimados podem mesmo ser possuídos? — Kylie cruzou os braços, não de frio, mas porque estava assustada.

— Não — disse Della.

Miranda revirou os olhos para a vampira.

— Claro que podem.

— Sério? — perguntou Della. — Que legal!

— Não é legal! — Kylie estalou.

Miranda olhou para a espada.

— É preciso uma bruxa ou um demônio poderoso para possuir um objeto. Mas eu não acho que seja isso que está acontecendo.

— Por que não? — perguntou Holiday.

— Você disse que ela tinha uma aura? — Burnett perguntou.

— Sim — respondeu Miranda, parecendo orgulhosa por ser a única de posse daquela informação.

— Mas só porque um objeto tem uma aura isso não significa que ele esteja possuído. Algumas coisas, como armas e tal, têm aura porque as emoções são absorvidas pela matéria física durante um ataque.

— Então, essa coisa já matou um monte de gente? — perguntou Kylie, lembrando-se da espada do fantasma e da cabeça que ela tão orgulhosamente mostrara para Kylie.

— Provavelmente, mas eu não acho que ela esteja possuída. Normalmente, quando algo está possuído, é completamente do mal.

— Então, que tipo de aura ela tem? — perguntou Kylie.

— Só um pouco ruim — disse Miranda, contradizendo a si mesma.

— Que adorável! — Della esfregou as mãos.

Kylie gemeu e fixou o olhar em Miranda.

— Mas você acabou de dizer...

— Eu disse que algo que está possuído é completamente do mal. — Miranda tornou a fitar a espada. — Isso é só... Ok, não é de fato do mal. Mas eu posso sentir que tirou vidas. Muitas vidas. Mas a maior parte da aura irradia justiça e... — Ela inclinou a cabeça para o lado e se concentrou na espada, como se estivesse tentando ler o seu padrão sobrenatural. O cabelo, com listras cor-de-rosa, pretas e verde-limão, cobriu como uma cortina a lateral do seu rosto.

— E isso parece loucura, mas é também... coragem.

— Coragem? — Kylie se lembrou da voz que ouvira a caminho da cachoeira. — Como assim, coragem? Pergunte a ela o que isso significa.

Miranda riu.

— Auras não respondem a perguntas. Estou apenas dizendo o que ela parece irradiar.

— Como é que você sabe o que ela irradia? — perguntou Della.

— As cores, a intensidade das cores, e como elas se movem e se misturam. É como interpretar um anel do humor.

— Eu gostaria de ver auras — disse Della a Miranda. — Será que você pode me emprestar o dom de vê-las?

— Não — disse Miranda. — Não mais do que você pode me emprestar a sua capacidade de voar.

Kylie continuava a olhar para a espada, lembrando-se da espada que o fantasma carregava.

— Eu ainda acho que isso tem alguma coisa a ver com o fantasma. Ele poderia tê-la trazido aqui.

— Ah, droga! Por acaso tem um fantasma aqui agora? — perguntou Della.

— Não agora — Holiday respondeu a Della e em seguida olhou para Kylie.

— Os fantasmas não podem transportar objetos materiais.

— Não é verdade. Eu tive um que jogou o meu telefone da minha mesa de cabeceira — contou Kylie.

— Sim, eles podem gerar energia suficiente para deslocar algo pequeno, e podem brincar com aparelhos eletrônicos, mas não podem mover fisicamente um objeto de um lugar para outro. Isso exigiria uma enorme quantidade de energia. É impossível.

— Bem, isso me faz sentir um pouco melhor — disse Della.

Holiday se aproximou da mesa.

— Mas não faz sentido.

— Eu sei — disse Kylie. — E esse parece ser o tema musical da minha vida agora. Nada faz sentido.

Burnett levou a espada embora. Ele se recusava a deixar Holiday tocá-la, com receio de que o objeto de repente criasse vida. Justamente quando eles iam embora, Kylie ouviu um leve soluço vindo de Holiday.

A fae mordeu o lábio e seus olhos se voltaram para Kylie. Apesar de estar chocada com o fato de ter encontrado a espada em sua mesa, ela lançou a Holiday um sorriso compreensivo. Ela sabia que a amiga estava em pânico com a possibilidade de estar grávida.

Não que Kylie visse isso como uma coisa ruim. Seria legal conhecer uma criança que fosse uma mistura de Burnett e Holiday.

Quando Holiday e Burnett estavam fora da cabana, Della e Miranda se viraram para Kylie. Della falou primeiro.

— Ok... sente-se e explique por que você não nos contou sobre a espada, e depois nos diga o que mais você está escondendo.

Kylie ia começar a lembrar Della de que ela tinha seus próprios segredos, como quem lhe tinha provocado o chupão, por exemplo, mas de repente percebeu que não se incomodava em contar aquilo às amigas. Na verdade, poderia ajudar se ela falasse a respeito. Não que ela tivesse mantido segredo das amigas de propósito. Só não tinha falado nada antes porque não queria pensar no assunto.

Ela foi para a cozinha, olhando em volta para se certificar de que a espada não tinha reaparecido como num passe de mágica. Vendo a mesa vazia, ela se deixou cair numa cadeira, com um suspiro desanimado.

Della foi até a geladeira, pegou três refrigerantes diet e passou-os para as amigas. O estalido das latas sendo abertas ecoou na pequena cozinha. Então Kylie começou a falar. Entre goles do refrigerante gasoso deslizando pela sua garganta, ela lhes contou tudo. Desde o que acontecera na casa do avô, até a maneira como os camaleões adolescentes eram tratados. Contou que tinha fugido no meio da noite porque alguém tinha planos para raptá-la. Então revelou a parte mais difícil: o aparecimento de Mario e o fato de ela quase ter matado Lucas.

— Bem, nada acontece à toa — disse Della. — Lucas meio que merecia isso. Aposto que foi uma sensação boa apertar o pescoço dele...

— Não, não foi — Kylie insistiu.

— Espere! — disse Miranda. — Antes de começarmos a falar sobre a questão do Lucas, você não chegou à parte da espada. — Ela tomou um grande gole de Coca Diet e continuou a olhar Kylie sobre a borda da lata.

Kylie começou a contar sobre a sua visita à cachoeira com Holiday.

— E esse fantasma? — perguntou Della, olhando em volta. — Você vai nos apavorar de novo com esse papo de visão? Quer dizer, como da última vez que você viu um fantasma durante a aula e eu tive que quebrar a porta do armário da sala da senhorita Cane. Aquilo realmente me assustou. Eu juro, agora cada vez que ela me vê, tem que me lembrar... “Sabe, eu tinha a chave daquela porta...” Mas, caramba!, você estava gritando feito louca lá dentro.

— Espero não apavorar você de novo. — Kylie fez uma careta. — E eu peço desculpas antecipadamente se fizer isso outra vez. Mas eu não tenho controle sobre isso. Sério, se qualquer uma de vocês ficasse presa numa cova com três garotas mortas, eu aposto que iria surtar um pouco também.

— Ah, droga, pode apostar, eu ia surtar. Ia ficar chutando a bunda daquelas garotas mortas.

Della colocou o refrigerante na mesa com força demais e a lata amassou um pouco.

— Eu não sei como você aguenta isso. Deve ser um saco.

— É — admitiu Kylie, desenhando círculos nas gotículas condensadas na lata de refrigerante. — Às vezes é meio chato ser eu.

— Falando nisso... — Miranda olhou para Della. — Você quer contar agora sobre o chupão?

Della revirou os olhos.

— Não há nada pra contar. Simplesmente aconteceu.

— Aconteceu o quê? — perguntou Miranda. — Por acaso você...? Você sabe...

— Não! — Della negou. — Eu não fiz... “você sabe”. Nós apenas ficamos juntos. E depois eu comecei a preferir que não tivesse acontecido. E não vai acontecer outra vez.

— Com quem foi que aconteceu? — perguntou Kylie, entrando na conversa e, provavelmente, aborrecendo Della. Mas, se ela estava ficando com Steve, então talvez, apesar do que a vampira tinha dito, aquilo levasse a alguma coisa.

Della franziu a testa.

— Se eu contar, vocês vão jurar pelas suas vidas que não vão dizer nada? Porque, se vocês falarem alguma coisa, eu vou ter que matá-las e depois vou me sentir muito mal. Pelo menos por um tempo.

— Eu juro que não vou contar a ninguém — disse Miranda.

— Eu também. — Kylie se inclinou para a frente, deixando seus próprios problemas de lado para se concentrar nos de Della.

Della reclinou-se em sua cadeira.

— Foi Steve.

— Certo — disse Kylie.

— Eu sabia que você gostava dele! — Miranda esfregou as mãos. — Detalhes, queremos detalhes!

Della colocou as duas mãos sobre a mesa e inclinou-se para a frente, fitando-as com um olhar irritado e mostrando um pouco as suas presas.

— Eu não dou detalhes, lembra?

— Ok, sem detalhes — disse Kylie. — Mas explique por que foi um erro. E por que isso não vai acontecer novamente. Porque, quero dizer, obviamente foi bom.

— Porque... Eu não disse que foi bom!

— Ah, por favor! — disse Miranda. — Você tem um chupão, então vocês devem ter se empolgado para ter chegado tão longe. — Miranda olhou para Kylie, pedindo apoio. — Certo, Kylie?

Kylie apoiou os cotovelos sobre a mesa.

— Como não sou uma especialista em chupões, não sei ao certo, mas parece que sim. — Ela olhou para Della. — Então você não ficou empolgada?

Della soltou um rosnado baixo.

— Ok, eu posso ter me empolgado por alguns segundos.

— É preciso mais do que alguns segundos para conseguir um chupão. — Miranda se remexeu na cadeira, obviamente adorando que Della finalmente estivesse falando.

— Você é tão insistente! — reclamou Della.

— Quanto tempo demora para se conseguir um chupão? — perguntou Kylie.

Miranda pegou o refrigerante diet.

— Um minuto, talvez alguns segundos a mais ou a menos, dependendo da força com que o cara suga.

— Não dói? — perguntou Kylie, tentando imaginar alguém chupando a pele por tanto tempo.

— Não — Miranda e Della responderam ao mesmo tempo.

— É uma sensação boa. — Miranda sorriu para Della. — Não é?

— Acho que sim. — Della revirou os olhos como se odiasse admitir que gostava de alguma coisa, mas, em seguida, a vampira sorriu. — Você quer que eu te apresente ao meu aspirador de pó?

— Ah, que aspirador de pó o quê! — disse Miranda. — Kylie deveria ir atrás de Steve. Quero dizer, ela está chateada tanto com Derek quanto com Lucas, e Steve está disponível porque você não está mais na dele, e ele, obviamente, sabe como dar um chupão.

Della fez uma careta para Miranda.

— Eu não acho.

Miranda remexeu seu bumbum na cadeira novamente.

— Porque você ainda gosta dele. Porque quer que ele te dê outro chupão. Admita. Apenas admita.

— Você é detestável! — disse Della.

— Sim, ela é. — Kylie arqueou uma sobrancelha para Della. — Mas a bruxa tem seus motivos.

— Bem, ela pode guardar seus motivos para si mesma! — Della pegou sua latinha e esmagou-a com a mão. E então os olhos de Della se arregalaram.

— Merda!

— O quê? — perguntou Kylie.

— Ela está de volta... — disse a vampira num tom de voz monótono e assustador.

— O que está de volta? — perguntou Kylie, mas com receio de que soubesse a resposta. Ela se virou e viu a espada sobre o sofá.

* * *

Kylie não queria chamar Burnett e Holiday de novo, mas Della se recusou a dormir com uma espada possuída dentro da cabana. Miranda, que disse novamente a Della que a espada não estava possuída, não se importava, de qualquer maneira.

Respeitando os sentimentos de Della, e compreendendo-os perfeitamente, Kylie pegou emprestado o telefone de Della e chamou Burnett e Holiday.

Antes de Holiday e Burnett deixarem a cabana com a espada mais uma vez, o vampiro lhes deu uma ordem:

— Isso fica entre nós. Nenhuma de vocês vai dar um pio sobre isto aqui, entendido?

— Por quê? — perguntou Kylie, sem saber por que ele via aquilo como uma espécie de segredo.

— Eu já estou dando explicações demais para a UPF. E isso só faz com que fiquem mais ansiosos para levá-la para testes. É melhor abafar o caso até descobrirmos alguma coisa.

Se descobrirmos, Kylie pensou, mas não disse nada.

Quando Burnett e Holiday saíram, Kylie seguiu-os até a varanda. Holiday se inclinou e sussurrou:

— Nós estamos levando a espada, mas, se ela já voltou duas vezes, não tenho certeza de que não vá simplesmente voltar outra vez.

— Eu sei — e era justamente esse o motivo de Kylie não querer chamá-los dessa vez. Ela só esperava que, se a espada voltasse, seguisse direto para o seu quarto e não perturbasse Della. Mesmo sentindo um calafrio percorrer sua espinha ao pensar na possibilidade de dormir no mesmo cômodo que uma espada com uma aura, era melhor do que ver Della surtando e fazer Burnett e Holiday voltarem.

Kylie só esperava que Miranda estivesse certa e a espada não fosse uma arma projetada para fazer o mal.


Capítulo Dezoito

— Ok, em primeiro lugar na agenda... — disse Chris, o vampiro líder, na manhã seguinte, ao se preparar para anunciar os parceiros da Hora do Encontro, na qual os campistas eram separados em pares, apenas para promover a harmonia entre as espécies. Chris segurou a sua cartola em frente a ele, como se quisesse acrescentar mais dramaticidade ao momento.

Kylie estava em pé, entre Della e Miranda, e de braço dado com Miranda estava Perry. Mais cedo, Miranda tinha flagrado Nikki, a metamorfa que dava em cima de Perry, acenando para ele, e desde então a bruxinha não saía da cola de Perry.

Kylie também tinha visto o dedo mindinho de Miranda em ação. Se Nikki soubesse o que era bom para ela, desistiria de Perry. Kylie não acreditava que Miranda faria algo realmente terrível, além de causar espinhas, é claro, mas considerando que Socks tinha passado meses no corpo de um gambá, qualquer magia de Miranda podia acabar se tornando acidentalmente uma tragédia.

Kylie olhou ao redor, procurando não uma pessoa, mas uma certa espada. Ela não tinha aparecido na noite passada. O que fora um alívio. Talvez apenas um feliz acaso. Ela realmente não acreditava em acasos, mas queria que fosse.

— Ok — disse Chris —, vamos ver quem vai primeiro — continuou ele — Parafraseando Chris: — Vamos ver quem paga em sangue para passar uma hora com alguém. — Um dia, Kylie considerou a coisa toda estranha, mas agora ela entendia que essa era apenas uma maneira de fornecer sangue, a principal nutrição dos vampiros. Eles precisavam de sangue e esta era apenas uma forma de fazer com que as pessoas doassem meio litro.

Ainda era embaraçoso ser uma pessoa por quem alguém pagou sangue para passar uma hora.

E, caramba!, o olhar de Chris colidiu diretamente com Kylie.

Outra vez, não!

Ah, mas que ótimo! Quem tinha sido dessa vez? Ela olhou ao redor para ver se via Derek ou Lucas. Ambos estavam em lados opostos da multidão, um observando o outro com um olhar de acusação. Certo... então, se não tinha sido nenhum dos dois, quem era?

— Eu teria cuidado, Kylie — disse Chris. — Estou começando a pensar que Fredericka sente alguma coisa por você...

Kylie por acaso estava olhando para Lucas quando Chris fez o anúncio. O choque enrijeceu o semblante do lobisomem, seguido por um olhar feroz de proteção. Os olhos dele percorreram a multidão aparentemente procurando Fredericka. Quando seu olhar a localizou do outro lado do círculo, a cara feia de Lucas se aprofundou.

A menina fez uma careta em resposta e começou a caminhar em direção a Kylie. Caminhava com um senso de propósito.

Kylie ouviu o rosnado de Lucas e observou-o caminhar até ela com o mesmo senso de propósito.

Que beleza! Agora, ela tinha dois lobisomens furiosos caminhando em sua direção.

— Você quer que eu faça alguma coisa a respeito? — perguntou Della.

— Não — disse Kylie.

— Você quer que eu mostre a bunda outra vez, na frente de todo mundo? — perguntou Perry.

— Não — respondeu Kylie e, apenas para se assegurar, afastou-se vários metros dos amigos para que ninguém se sentisse tentado a começar uma briga ou arriar as calças.

Os dois lobisomens chegaram ao mesmo tempo. Um pela esquerda de Kylie, o outro pela direita.

— Você não tem que fazer isso — Lucas sibilou, obviamente falando com Kylie. — Eu vou pagar pelo sangue dela. Mas você também não tem que ir comigo.

Kylie desviou o olhar de Lucas e fitou Fredericka.

A mágoa brilhava nos olhos da loba.

— Se Kylie não quiser ir, não precisa. E eu ainda vou pagar com o meu sangue. Não preciso que você me pague.

— Tudo bem — Kylie murmurou, sentindo os olhares ávidos de todo o mundo ao redor. Um leve formigamento correu pelas suas pernas e pulsou em seus joelhos. Seu coração deu um salto quando ela reconheceu seu impulso de ficar invisível. Ela se concentrou muito para conseguir refreá-lo. A última coisa que queria era desaparecer diante dos olhos de todos os outros campistas e tornar-se uma aberração ainda maior.

Lucas rosnou para Fredericka:

— Se encostar um dedo nela, você está fora da alcateia. Já cansei de inventar desculpas para você.

As emoções de Kylie oscilavam entre um e outro. Ela sentia pena de Fredericka, por ter que enfrentar a ira de Lucas. Pena dela por ver a lealdade de Lucas por Kylie e não por ela própria — alguém da sua mesma espécie. Ter que enfrentar isso em público era muito duro para a sua alma de lobisomem. Mais difícil ainda porque ela amava Lucas.

Mas a compaixão por Fredericka não era tudo que Kylie sentia. Sentia-se... chocada. Essa era a primeira vez que ele ficava ao lado dela e contra a sua própria espécie.

Ah, ele tinha dito milhares de vezes que faria isso, mas nunca suas ações haviam provado. Não até agora. Essa constatação tinha um sabor agridoce. Ela não queria se sentir amada por ele depois de traída. Não queria se sentir culpada por ele estar sofrendo.

Mas ela se sentia.

A culpa, essa emoção tão amarga, aumentou dentro dela e fez seu peito ficar pesado. Mas por quê? Era culpa de alguém quando não se conseguia perdoar uma pessoa por um erro cometido?

Ele olhou-a de novo, a dor visível em seus olhos azul-escuros, e em seguida começou a se afastar, deixando-a em meio a uma nuvem de dor e a consciência de que, mais uma vez, todos os alunos estavam a par da sua vida particular.

Fredericka observou-o se afastar e depois olhou para ela. Kylie viu um véu obscurecer as emoções da moça enquanto ela tentava esconder a própria dor. Ela engoliu em seco, como se estivesse tentando desfazer um nó doloroso, então baixou a cabeça e falou.

— Eu disse a ele que tinha feito as pazes com você, mas ele não acreditou em mim.

Kylie anuiu, e sentiu que Fredericka estava tão desconfortável quanto ela por servir de entretenimento para os outros alunos, então, começou a andar. Fredericka seguiu-a.

Quando os outros já não podiam mais ouvi-las, Fredericka disse:

— Aonde você quer ir?

— Tanto faz — disse Kylie.

Kylie ouviu asas batendo acima delas e lembrou que Perry era sua sombra.

— Nós vamos ter companhia — disse Kylie. — A minha sombra. — Ela apontou para cima.

— É, eu percebi — disse Fredericka. — Você acha que ele pode nos ouvir lá de cima?

— Quem sabe? — disse Kylie. — Eu não sei como é a audição de um pássaro pré-histórico.

— Então vamos fingir que ele não pode ouvir — disse Fredericka.

— Tudo bem. — E a pergunta que não queria calar transbordou em seu peito. — Lucas sabe que foi você quem me contou?

— Sim, ele sabe. — Fredericka hesitou. — Ele acha que eu contei a você para que brigassem.

Kylie se lembrou de Fredericka negando isso uma vez antes, mas...

— E ele está certo?

A mágoa brilhou nos olhos dela.

— Você também não acredita em mim? — Ela deu alguns passos sem falar. — Eu não sou burra. Eu sabia que, se o impedisse de noivar com Monique, ele voltaria para você para sempre.

— Mas você também admitiu que o ama e que já tentou nos separar antes.

— E finalmente me dei conta de quanto estava sendo patética. Ele não me ama. Ele ama você. Sempre foi e sempre será assim. Foi um remédio amargo, mas eu engoli.

Kylie inspirou e percebeu que acreditava na garota.

— Ok, então por que você pagou com sangue para me ver de novo?

— Por duas razões — disse a loba.

— E quais são? — perguntou Kylie.

— Ouvi dizer que você é boa em... dar às pessoas conselhos sobre relacionamentos.

Kylie fitou a garota, boquiaberta.

— Você quer conselhos sobre como ter Lucas de volta?

Fredericka fez uma cara engraçada.

— Não! Eu te disse, eu já saí dessa.

Kylie se lembrou do que Miranda tinha lhe contado.

— Por favor, me diga que não é o novo professor, o senhor Cannon.

Fredericka pareceu chocada.

— Como é que você sabe sobre mim e Cary?

Cary? Então, eles já estão chamando um ao outro pelo primeiro nome?

— Há boatos de que você está a fim dele.

A loba franziu a testa.

— Eu não achava que fosse... tão óbvio.

— Bem, achou errado. E deixe-me dizer uma coisa, não é uma boa ideia. Ele é seu professor.

— Ele tem 20 anos. É um garoto genial que terminou a faculdade com 19 anos. E eu vou fazer 18 no próximo mês. Não temos nem dois anos de diferença.

Kylie podia ouvir as asas de Perry batendo ao sabor da brisa. Ela desviou os olhos e, pelo bem de Fredericka, esperou que ele não estivesse ouvindo.

— Tudo bem, não é por causa da idade. É porque ele é seu professor.

— Eu não vejo qual é a importância disso.

Kylie soltou um suspiro.

— É importante se ele não quer ser feito em pedacinhos. Burnett já ameaçou mandar Hayden Yates embora por muito menos do que isso quando...

— Você e o senhor Yates tinham um caso? — Os olhos de Fredericka se arregalaram. — Eu pensei que você amasse...

— Não! Burnett pensou que estávamos tendo um caso.

— Por que ele achou isso? — Fredericka fez outra cara engraçada.

Kylie percebeu que ela não deveria ter tocado no assunto.

— É uma longa história. A questão é que Burnett ficará muito aborrecido se esse novo professor der em cima de você.

— Por que você não deixa que eu me preocupe com Burnett e Cary e simplesmente me diz como... faço isso dar certo entre nós, do mesmo jeito que já disse para outras pessoas?

Kylie suspirou.

— Por que todo mundo fica dizendo que eu sou uma boa conselheira? Você não vê que os meus próprios relacionamentos são um desastre? Se eu fosse boa nisso, acha que eu estaria nessa confusão em que estou agora?

Fredericka deu de ombros.

— Mas todo mundo que procurou você com problemas diz que você consertou as coisas. Perry e aquela sua amiguinha bruxa. Helen e Jonathon. Burnett e Holiday.

— Como você sabe que eles não teriam consertado as coisas por si mesmos?

Fredericka franziu a testa.

— Todos elogiam você.

Kylie balançou a cabeça.

— Olha, eu não acho que você e o professor seja uma boa ideia.

— Então você não vai me ajudar? — perguntou Fredericka. — Mesmo depois de eu tê-la ajudado com Lucas e o poupado de ter que passar a vida com alguém que ele não amava?

Kylie exalou o ar.

— Ok, aqui vai meu conselho. Vá falar com Holiday, conte a ela sobre seus sentimentos e...

— Ela vai dizer que não! Ela nem gosta de mim.

— Ah, está enganada, ela gosta, sim. Com todos os problemas que você causou, ela teria chutado sua bunda há muito tempo se não gostasse. E se você está preocupada com a possibilidade de ela não concordar, por que não começa dizendo que você gosta de alguém apenas dois anos mais velho e vê o que ela diz, antes de contar quem é. Leve-a a dizer que não é uma coisa tão ruim assim e, em seguida, solte a bomba sobre ele ser um professor.

— Você realmente acha que ela vai me ouvir?

— Vai ouvir, sim. Se ela vai dizer ou não para você não fazer isso, é outra história. Mas ela é a pessoa mais justa que eu conheço.

— Ok. — Fredericka parecia estar pensando. — Agora, o que dizer a Cary? Como posso fazê-lo...?

— Prestar atenção em você?

— Não, prestar atenção ele já prestou. Eu sei que ele está atraído por mim, só que está colocando obstáculos, provavelmente pela mesma razão que você. Ele é professor e eu sou sua aluna.

— Então por que não diz a ele que você entende que isso é difícil, mas realmente gosta dele, e que pelo menos gostaria que fossem amigos até...

— Eu não quero que sejamos apenas amigos.

— Tudo bem, mas vocês começam sendo amigos e, quando você tiver sinal verde de Holiday, então vocês dois podem... correr pela floresta e deixar as coisas ficarem mais quentes... ou fazer o que vocês quiserem. Você não vai ficar na escola por mais de nove meses. Assim, o pior que pode acontecer é vocês travarem uma amizade e depois levá-la ao próximo nível quando você estiver fora da escola.

Ela começou a balançar a cabeça como se concordasse com Kylie.

— Droga, eu esperei dois anos por Lucas, poderia facilmente esperar nove meses pelo Cary, se fosse preciso. — Ela sorriu. — Viu? Você é mesmo boa nisso. Obrigada — disse Fredericka com sinceridade.

— Bom, vamos voltar? Eu acho que Perry está ficando impaciente.

— Não, há outra coisa.

— Que coisa? — perguntou Kylie.

— Você precisa perdoar Lucas.

— Olha, você pediu meu conselho, eu não pedi o seu. — Ela começou a se mover mais rápido até a trilha que levava à sua cabana. Uma corrida rápida e agradável.

Fredericka acompanhou seu ritmo, passo a passo.

— Ele ama você. Você não entendeu por que ele desistiu de ficar noivo? Desistiu de tanta coisa por você! Talvez até da sua própria alcateia.

Kylie deu uma parada abrupta e enfrentou a loba.

— Por que você me contou isso? Por que não o deixou ficar noivo? Que maldição! Ele não deveria ter feito isso! — E logo em seguida, Kylie aceitou que essa era parte da sua angústia com relação a Lucas. Ela não queria admitir isso. Ela nem sequer se permitia realmente olhar isso a fundo. Mas ela estava lá, a verdade, logo abaixo de toda a traição que sentia. Lucas tinha renunciado a tudo por ela. Seus sonhos. Suas buscas. Mesmo que ela o perdoasse, mais cedo ou mais tarde, ele iria odiá-la por isso.

— Por quê? — Fredericka jogou a pergunta de volta para ela. — Porque, sua tonta, se tivesse ido até o fim, ele teria perdido você. E acredite ou não, você é mais importante para ele do que entrar para o Conselho. É você o que mais importa para ele.

Kylie chegou um pouco tarde para a primeira aula, com Perry logo atrás dela. Ela se sentou na cadeira vazia em frente a Della. Colocou seu livro sobre a carteira e abriu-o, fingindo ler.

Ela sentiu os olhos de Lucas sobre ela. E o ignorou. Ou tentou. Seu coração disparou no segundo em que percebeu o olhar de Lucas sobre ela.

Ela tinha muito em que pensar. Mas, caramba!, ainda estava tão confusa!

E com muita raiva dele.

Mas ainda tão apaixonada por ele que mal conseguia respirar.

— Senhorita Galen, é muito bom tê-la de volta com a gente — disse a professora.

Senhorita Galen? Kylie ergueu os olhos, mas não falou nada. Só acenou com a cabeça em agradecimento. Ela esperava que a professora se contentasse com isso. Voltou a se concentrar na página do livro de inglês, pois não queria olhar ninguém nos olhos. Nem Derek, que estava sentado a três lugares de distância dela e a estudava com um ar de preocupação, porque podia captar seu estado emocional.

Então, ela sentiu Della inclinar-se atrás dela.

— O que há de errado? — a vampira sussurrou. — Eu preciso morder alguma bunda de loba depois da aula?

— Não.

— Seu rosto está todo manchado. E isso significa que estava chorando. O que está acontecendo?

— Alergia — Kylie murmurou, e desejou não ter vindo à aula. Seria tarde demais? Tarde demais para simplesmente se levantar e sair?

— Você devia saber que não consegue mentir para mim — Della sussurrou.

Kylie apertou o maxilar e sussurrou de volta:

— E você devia saber que é melhor parar de fazer perguntas que me obrigam a mentir!

— Tudo bem — disse Della. — Vamos fazer de conta que essa conversa está fazendo a senhorita Galen ficar muito irritada.


Capítulo Dezenove

O dia de Kylie não tinha ficado muito melhor. Nem muito pior, tampouco. Ela descobriu que tinha coisas pelas quais ser grata.

Nana costumava dizer que sempre que a gente começa a sentir que o mundo está cobrando seu quinhão, devemos cobrar de volta, contando nossas bênçãos.

E o item número um da lista de bênção de Kylie era estar de volta a Shadow Falls. Mesmo com todos os problemas, ela pertencia a esse lugar. A cada hora, mais ou menos, ela se lembrava de como se sentira quando estava na casa do avô. E embora sentisse falta dele, e até mesmo da tia-avó, não tinha se esquecido do sentimento incômodo de estar lá, a sensação de estar no lugar errado.

O item número dois na lista era a espada não ter decidido aparecer num passe de mágica novamente. Claro, ela poderia estar esperando na cabana agora mesmo, mas Kylie estava grata por não ter que explicar isso a ninguém no momento. E, por último, mas não menos importante, em sua lista estava o fato de Mario parecer ter voltado para a sua toca imunda e limosa.

Pelo menos Kylie não conseguia senti-lo, e Miranda concordava que não parecia haver nenhum estranho por perto. Parte de Kylie queria acreditar que ele não voltaria mais, mas parte dela ainda queria acreditar em Papai Noel também.

Mario voltaria. A pergunta era: ela estaria pronta? Kylie não tinha ideia de como poderia se preparar para enfrentar alguém tão poderoso e cruel.

Esperando o último sinal tocar e as aulas acabarem para que pudesse deixar a aula de História, ela olhou para Cary Cannon. Ele apontava para o trabalho escrito na lousa. A camisa branca engomada estava esticada sobre o peito largo.

Ela precisava dar razão a Fredericka, pois o professor era um colírio para os olhos. Se ele trocasse a gravata e a calça social por uma camiseta e uma calça jeans, ia parecer um estudante, e não um professor. Alto, moreno, com olhos negros, ele tinha uma ótima aparência. E ensinava melhor ainda. Obviamente, tinha uma paixão pela História, porque isso transparecia em suas aulas. Para um lobisomem, ele era surpreendentemente amigável. Provavelmente algo que ele tinha aprendido na escola.

Kylie tinha visto o professor desviar os olhos para Fredericka pelo menos uma dúzia de vezes. O que demonstrava a Kylie que a paixão não era unilateral. Ela esperava que não, pelo bem de Fredericka, pelo menos.

Três minutos depois, a aula acabou e Kylie saiu da classe. Della, sua sombra oficial, caminhava ao seu lado. Kylie não tinha colocado um pé para fora da porta quando alguém a pegou pelo braço. Ela quase gritou, mas o calor do toque lhe deu a certeza de que era Holiday antes mesmo de olhar para trás.

— Ei... — Holiday olhou para Della. — Eu preciso de Kylie por um instante.

— Ok. Você vai levá-la até a cabana mais tarde? Ou preciso encontrá-la em algum lugar?

— Vou levá-la até a cabana.

Della pareceu um pouco preocupada ao se ver obrigada a abrir mão dos seus deveres como sombra.

E ela não era a única.

— O que há de errado? — Kylie perguntou quando Della não podia mais ouvir.

— Não há nada (soluço)... errado. Só que — ela apontou para a boca. — Na verdade, eu tenho algumas coisas para discutir com você, mas primeiro o mais importante. — Ela soltou um profundo suspiro, como se para dar uma má notícia. — Eu contei uma mentira a Burnett. E preciso que você me apoie.

— Você quer que eu minta para um vampiro? — perguntou Kylie. — Uau, você não está pedindo muito, não?

— Não, não vou pedir para você mentir. — Holiday colocou todo o seu cabelo para a frente e torceu-o em um nó. — Ele não vai te perguntar nada. Só preciso que você confirme uma coisa.

— Não entendo.

— Ok, vou te contar o que aconteceu. Eu disse a Burnett que precisava dar um pulinho na farmácia e ele me disse que compraria tudo que eu precisasse. Então eu comecei aquela história de que havia dito a você que não era uma prisioneira aqui e que eu achava que você gostaria de sair de vez em quando. Eu disse que você não tinha me dito isso de fato, mas eu tinha a sensação de que você precisava de algo da farmácia, alguns absorventes ou algo assim.

Kylie engasgou.

— Você disse a Burnett que eu precisava de absorventes?

— Não, eu disse a ele que você não tinha dito isso, mas eu tinha a sensação de que podia estar precisando. E, felizmente, não era uma mentira, porque Miranda me disse que, enquanto você estava fora, ela teve que pegar emprestados alguns dos seus.

— Ok... — Kylie disse, ainda sem entender o que estava realmente acontecendo. — Então...

— Então, eu preciso que você venha com Burnett e eu, e quando você for comprar os absorventes, eu preciso que você também... (soluço)... compre um teste de gravidez.

— Ah, entendi. Mas e se ele perguntar... Espere. Ele não vai perguntar o que eu comprei porque acha que eu comprei absorventes, e os homens não querem saber dessa conversa de absorventes.

— Viu? Eu sabia que você ia entender — disse Holiday.

— Muito inteligente da sua parte — disse Kylie.

— É preciso ser inteligente para lidar com um vampiro.

Elas começaram a andar.

— Mas espere aí. — Kylie parou. — Que tipo de teste eu compro?

— Eu não sei, nunca comprei um... (soluço)... mas compre dois deles. De tipos diferentes. Algo que pareça dar o resultado mais exato. Eu vou levar Burnett comigo para me ajudar a escolher algo para os soluços.

Kylie tentou pensar.

— Como vou saber que teste de gravidez dá o resultado mais exato?

— Basta comprar dois, mas não dos mais baratos. — Holiday suspirou enquanto percorriam o caminho de volta para o escritório.

— Aqui. — Holiday entregou a Kylie algumas notas e a garota enfiou-as no bolso junto com sua pequena carteira. — Agora que já cuidamos disso, deixe-me lhe dizer outra coisa.

Ah, sim, as outras coisas.

— O que é? — perguntou Kylie, de repente apreensiva.

— Seu padrasto ligou. Você precisa retornar a ligação.

— Tudo bem — disse Kylie. — Posso usar seu telefone?

— Claro. — Holiday colocou a mão no bolso e entregou a Kylie seu celular. — E mais uma coisa...

— Tem mais? — perguntou Kylie.

— Sim. Amanhã você vai receber visitas. Se quiser.

— Visitas? Quem? — Kylie enfiou o telefone no bolso.

— Os Brightens. Os pais adotivos de seu verdadeiro pai. Eles já voltaram da Irlanda e pegaram todas as mensagens. Estão ansiosos para conhecê-la.

Calafrios percorreram os braços de Kylie.

— Eu já tinha quase desistido de encontrá-los.

— Bem, eles vão estar aqui amanhã, às duas horas, se você concordar.

Kylie engoliu em seco.

— Sim, claro que eu quero conhecê-los. — E de repente, Kylie começou a sentir falta do pai novamente. Mais do que isso, ela podia jurar que tinha sentido um toque frio. Um toque que lembrava o dele.

E, nossa!, ela bem que precisava de uma visita dele agora.

Quando elas chegaram ao escritório, Hayden e Burnett estavam ali, de pé, ao lado da máquina de café — sem conversar. O silêncio constrangedor era um sinal de que eles tinham suspendido a conversa quando ouviram as duas chegando. Ou seja, eles estavam guardando segredos.

Isso decepcionou Kylie, porque, afinal de contas, os segredos deviam ser sobre ela, não é? Ela quase chamou a atenção deles por isso, mas percebeu que uma discussão podia atrasar a ida até a cidade. E Holiday precisava dela. Então Kylie deixou de lado a frustração, prometendo a si mesma que retornaria aquela história depois, ressuscitaria tudo e trataria do assunto com força total.

Holiday desviou o olhar para Kylie como se tivesse percebido o tumulto emocional acontecendo dentro dela. Depois de alguns cumprimentos desconfortáveis, Holiday olhou para Burnett.

— Você está pronto?

Na ida para a cidade, Holiday dirigiu e soluçou durante todo o caminho.

Burnett mostrou-se inquieto por causa dos soluços e manteve os dois olhos abertos, como se estivesse preocupado com a possibilidade de Mario aparecer.

— Precisamos ligar para o médico — disse Burnett a Holiday, quando ela soltou outro soluço.

— Eu vou tomar um pouco de antiácido ou algo assim — disse Holiday.

Quando eles entraram na farmácia, Kylie dirigiu-se ao corredor de artigos femininos. Burnett foi atrás dela, mas quando a viu parar na prateleira de absorventes, ele se virou.

Kylie viu Holiday puxá-lo com ela para outro corredor.

Soltando um profundo suspiro, Kylie passou os olhos pelos testes de gravidez. Apressadamente, examinou as diferentes embalagens, mas se sentiu perdida. Havia inúmeros tipos, cada um fazendo uma promessa diferente. Percebendo que não teria tempo para ler todas as embalagens, pegou dois e, em seguida, só para ter certeza de que não erraria, pegou mais um. Certificando-se de que ninguém estava olhando, ela disparou para o caixa da farmácia para pagar pelos testes. Foi só quando ela viu um homem mais velho atrás do balcão que Kylie percebeu quanto aquilo ia ser difícil.

O homem, um senhor com ar de pregador evangélico, ia pensar que os testes eram para ela. Ah, mas que ótimo! Ela engoliu em seco, morta de constrangimento. Então, pensando em Holiday, colocou as três caixas sobre o balcão.

O vendedor olhou para a compra, em seguida, ergueu os olhos. Kylie podia ver o julgamento em seus velhos olhos cinzentos, como uma carranca marcando seu rosto. Que maravilha! Ela estava sendo julgada por estar grávida, embora ainda fosse virgem.

— Você sabe como usá-los? — ele perguntou com um tom de voz muito condescendente.

Kylie sentiu seu rosto corar.

— Eu... vou ler as instruções.

— Você gostaria que a minha assistente, Ângela, falasse com você sobre... alguma coisa?

Como sexo seguro? Kylie apostava que era nisso que ele estava pensando.

— Não — ela deixou escapar. Mas, como o homem não parava de olhá-la, ela acrescentou: — Obrigada.

Ele passou os itens lentamente. O coração de Kylie batia no ritmo do embaraço. Ela abriu a boca para dizer que eram para uma amiga, mas qual era a chance de ele acreditar?

— São quarenta e dois dólares e noventa e seis centavos.

Kylie pegou as notas que Holiday lhe dera.

— Merda — Kylie murmurou, quando viu que não tinha o suficiente.

— Como disse? — o velhinho perguntou, agora não só ofendido por ela estar grávida, mas por causa da sua linguagem.

E ele tinha razão de estar ofendido — pela linguagem dela. Ela sabia que não devia falar palavrões em público. Mas, convenhamos, a opinião do homem sobre ela já era péssima, um palavrãozinho não ia deixá-la muito pior. Mas, ainda assim, ela se desculpou.

— Você vai levar ou não?

Ela assentiu com a cabeça.

— Sim, é que... Eu não acho que precise dos três. Vou levar apenas dois.

Franzindo a testa, ele olhou para as caixas.

— Qual deles quer devolver?

Ela respirou fundo, percebendo que uma hora ela tinha que parar de fazer aquilo.

Então, lembrando-se do cartão de crédito da mãe, para usar apenas em caso de emergências, ela tirou o telefone de Holiday do bolso e, em seguida, a pequena carteira.

— Não se preocupe, vou levar todos.

Colocando o cartão no balcão, ela mordeu o lábio. Não tinha certeza se esse era o tipo de emergência a que a mãe se referia, mas se afastar do olhar reprovador daquele homem lhe pareceu mais importante.

Ele analisou o cartão com cuidado.

Maldição! Agora ele estava suspeitando do cartão de crédito.

— É meu! — disse Kylie. — Eu juro.

Ele não parecia convencido.

— Pode me mostrar um documento?

Ela ouviu Burnett e Holiday em algum lugar, nos corredores atrás dela. Mordendo o lábio, ela abriu a carteira e deu ao homem sua carteira de motorista. Ela nunca tinha visto alguém levar tanto tempo para examinar um documento.

O medo de colocar a amiga em maus lençóis fez com que seu estômago se contraísse.

— Estou com um pouco de pressa — disse Kylie.

Finalmente, ele largou a carteira de motorista e terminou a transação. Ela ouviu alguém se mexer atrás dela e seu coração se contraiu. Olhou para baixo para ver os sapatos, rezando para que não fossem os tênis de Burnett.

Não era Burnett. Um par de sapatos, do tipo que os executivos usavam, adornavam os pés do homem que estava atrás dela. Graças a Deus!

O caixa empurrou um recibo para ela.

— Você gostaria de levar alguns panfletos informativos? — ele perguntou.

— Tudo bem. — Kylie assinou o recibo e, em seguida, observou-o colocar alguns panfletos sobre sexo em sua sacola, junto com os testes de gravidez.

Mal sabia ele que os panfletos já eram ultrapassados. Ela tinha lido aqueles havia mais de um ano.

Quando, finalmente, ele entregou a sacola a Kylie, ela se virou para sair, mas estacou quando viu o rosto do homem em pé atrás dela.

— Ah, merda! — exclamou Kylie novamente.


Capítulo Vinte

Santo Deus! De todas as pessoas no mundo que podiam testemunhar a compra dos três testes de gravidez, essa era definitivamente a pior!

— São para uma amiga — Kylie deixou escapar.

— O quê? — o avô perguntou, com a testa enrugada de preocupação ao olhar para a sacolinha branca da neta. Ok, então ele obviamente não tinha visto suas compras. Mas, agora, ele provavelmente pensava que ela comprara preservativos ou algo assim. E pelo tamanho do volume na sacola, devia achar que pretendia fazer um estoque.

De repente, Kylie percebeu uma preocupação maior do que o avô pensar que ela estava comprando camisinhas. Se Burnett o visse, seria o inferno.

— O que o senhor está fazendo aqui? — O olhar nervoso de Kylie vasculhou os arredores, enquanto ela rezava para não ver Holiday e Burnett. Ela não viu.

— Eu queria dar isso a você — ele puxou o celular de Kylie do bolso da camisa. — E ter certeza de que você acreditou que eu não estava por trás daquele plano para impedi-la de ir embora. Dei minha palavra a Burnett. E não faço isso levianamente. Vou embora agora.

Sem poder se conter, Kylie se aproximou para dar um abraço no avô e se agarrou a ele por uma fração de segundo a mais do que deveria.

Então, quando se afastou, viu Burnett correndo pelo corredor na direção dela.

Felizmente, o avô se desvaneceu no ar.

— Que diabos foi isso? — o caixa disse atrás dela.

— É por isso que você queria vir aqui! — Burnett gritou.

— Algum problema? — perguntou o caixa, e depois acrescentou: — Você viu...

— Está tudo bem — disse Kylie, acenando para o caixa.

— Eu não diria que está tudo bem — disse Burnett. — Estou cansado dessas mentiras!

— Devo chamar a polícia? — perguntou o caixa.

— Não! — disseram Burnett e Kylie ao mesmo tempo.

Burnett levou-a pelo braço e começou a conduzi-la para fora da farmácia.

— Você está bem, moça? — o caixa perguntou, de detrás do balcão.

— Estou bem. — Kylie olhou para trás. — Ele é meu amigo. — Embora ele não estivesse agindo de acordo.

— O que aconteceu? — Holiday veio correndo.

— Vamos sair daqui antes. — Fervendo, o vampiro olhou para Kylie com os olhos brilhantes de raiva.

Burnett as levou até o carro de Holiday estacionado bem em frente à loja.

— O que aconteceu? — Holiday olhou para Kylie porque, obviamente, ela sabia que Burnett estava sendo irracional.

Ela acionou a chave para destrancar o carro uma fração de segundo antes de Burnett abrir a porta de trás. O vampiro furioso fez um gesto para Kylie entrar.

Kylie hesitou, sem saber o que dizer. Ela sabia que Burnett estava furioso porque o avô tinha aparecido, mas isso não era culpa dela.

Ela afastou o ombro.

— Se você me deixar explicar...

— Entre no carro! — ele ordenou.

Agora com raiva dele por ser tão pouco razoável, ela se atirou no banco de trás. Burnett estendeu o braço e pegou a sacola das mãos dela. Em seguida, bateu a porta do carro.

Ah, mas que inferno! Aquilo não estava indo bem.

Kylie olhou pela janela. Burnett contornou o carro e acenou para Holiday entrar pelo lado do passageiro.

Tão logo Holiday entrou, ela se virou para olhar para Kylie com uma interrogação no olhar.

— Meu avô estava lá — disse Kylie.

— Ela mentiu pra você! — Burnett disse com severidade. — Ela não precisa de nenhuma droga de absorvente! Foi só um truque para ver o avô! — Ele balançou a sacola para ela.

— Não foi um truque! — Kylie inclinou-se e segurou a parte de trás do assento do passageiro.

— Ela não mentiu! — Holiday se inclinou para apertar com a mão o braço de Burnett. Sem dúvida para acalmar o vampiro.

Tudo em que Kylie conseguia pensar era que precisava de um toque também. Porque bem agora toda a raiva que estava sentindo do vampiro por guardar segredos dela voltou, acrescida da raiva por ser acusada injustamente.

— Eu não sabia que ele ia estar aqui — justificou-se Kylie, a voz uma oitava acima.

— Ela não poderia saber que ele estaria aqui — defendeu-a Holiday.

A ferocidade na expressão de Burnett diminuiu, mas não o suficiente para Kylie ficar feliz.

Ele olhou para Holiday.

— Ela pediu para vir aqui e você espera que eu acredite que é mera coincidência ele aparecer?

— Eu não disse a ele que estava vindo para cá. — Kylie se reclinou de volta no banco e cruzou as mãos sobre o peito, enquanto todo o incidente a fazia se lembrar de quando era criança e brigava com os pais dentro do carro.

— Espere — disse Holiday. — Você disse a Hayden onde estávamos indo?

A ruga entre os olhos de Burnett se aprofundou.

— Você acha que ele disse...

— Você nem precisava ficar tão furioso! — Kylie estourou. — Tudo o que o meu avô queria fazer era me dar o meu celular e me dizer que não estava por trás do plano de me raptar. E você descarrega toda essa sua ira de vampiro em cima de mim!

— Eu fiquei irritado porque você já mentiu para mim várias vezes!

Burnett balançou a sacola para dar ênfase. Sacudiu com força.

Kylie prendeu a respiração, temendo o pior. Então, o pior aconteceu.

Quase em câmera lenta. O saco rasgou e os três testes de gravidez, junto com o panfleto sobre sexo seguro e gonorreia caíram no banco, entre Holiday e Burnett.

Burnett olhou para baixo, arquejou, e então olhou para Kylie.

— Pelo amor de Deus! — ele murmurou.

— Espere! — Holiday falou, e então arrotou. Muito alto.

Burnett ignorou Holiday e olhou para Kylie.

— Se você tem idade suficiente para fazer sexo, tem idade suficiente para saber usar proteção!

Kylie abriu a boca para falar, mas não tinha ideia do que dizer. Então ela só desatou a falar.

— Eu sei tudo sobre preservativos!

Ele fez uma cara mais feia ainda.

— Então por que diabos você está nessa situação?!

— Espere, Burnett — disse Holiday. — Você não está entendendo. Kylie não está nessa situação.

Burnett estava muito concentrado em fazer da vida de Kylie um inferno para ouvir a confissão de Holiday.

— Na verdade, os preservativos são apenas 80% eficazes na prevenção da gravidez — Kylie disse, ainda fervendo.

— Se você usá-los direito, eles funcionam! Falei com Lucas sobre isso há algumas semanas. Eu bem que disse a ele que devia ser cuidadoso.

— Burnett! — Holiday repreendeu.

Ah, mas Kylie só queria que a amiga calasse a boca e deixasse o vampiro falar mais um pouco. E ela decidiu deixar o vampiro em maus lençóis.

— Eu não os comprei para mim — disse Kylie. — Comprei para uma amiga.

— Você não está... grávida?

— A não ser que esses panfletos não falem a verdade e você possa engravidar sentada num vaso sanitário. Eu já disse, eles são para uma amiga.

Os olhos de Burnett se arregalaram.

— Miranda? Merda! Eu tive a mesma maldita conversa com Perry.

— Às vezes, isso simplesmente acontece — disse Kylie, muito mais calma agora que já tivera uma prévia da reprimenda do vampiro.

— Simplesmente acontece? — cuspiu Burnett. — Você está gozando com a minha cara? Se você faz sexo, tem que usar proteção. É simples assim. Essa merda não acontece simplesmente! É puro descuido! É irresponsabilidade! É imperdoável!

— Burnett! — Holiday revirou os olhos para Kylie e franziu a testa. A fae sabia exatamente o que a garota tinha em mente agora.

Mas Kylie ainda não tinha acabado.

— Talvez devêssemos baixar uma regra em Shadow Falls. Qualquer macho que engravidasse uma garota deveria ser castrado.

— Chega! — mandou Holiday.

— Na verdade, não seria má ideia... — ele rosnou.

— Burnett! — Holiday disse em uma voz severa. — Cale a boca antes que se coloque numa situação mais constrangedora ainda. — Quando o vampiro olhou para Holiday, ela continuou: — Kylie não comprou os testes de gravidez para Miranda. Ela os comprou para mim.

Kylie se reclinou contra o banco novamente, apreciando um pouco mais do que deveria o ar de descrença no rosto do vampiro.

— Quer que eu indique um bom médico para... plic... plic... — ela perguntou com ironia, imitando uma tesoura com os dedos — ... agendar a sua cirurgia?


Capítulo Vinte e Um

O problema da “doce vingança” foi que, em retrospecto, ela nem chegou a ser tão doce.

Burnett ficou... atordoado. Ele se virou e ligou o carro. Voltou para Shadow Falls sem dizer uma palavra. Holiday ficou ali sentada ao lado dele, soluçando e com cara de quem ia chorar. Obviamente, a reação de Burnett não foi exatamente a que Holiday esperava.

Ou talvez, Kylie percebeu, tivesse sido exatamente o que a fae mais temia. Ela se lembrou de Holiday lhe dizendo que Burnett não tinha certeza se queria ser pai. Kylie subitamente quis pedir desculpas por anunciar o fato daquele jeito tão... desastroso, mas o momento não parecia adequado.

Depois de estacionar o carro, Burnett viu Perry enquanto atravessavam o portão e o chamou, pedindo que acompanhasse Kylie até a cabana.

— O que aconteceu? — perguntou Perry, observando Kylie e, em seguida, olhando para trás, enquanto o vampiro ia embora. — Eu nunca vi Burnett assim... tão atordoado. É como se as luzes estivessem acesas, mas não tivesse ninguém em casa...

— Não é nada — respondeu Kylie, com vontade de chorar e bater em si mesma por ter sido tão insensível.

Assim que Kylie voltou para a cabana, foi direto para o quarto. Mas Della atravessou a sala e bloqueou a porta.

— O que foi? — perguntou Della. — Primeiro você chega chorando na classe, então Holiday começa a agir de modo estranho e agora você chega parecendo um cachorrinho que levou um chute do dono. E não me diga que não é da minha conta; eu sou sua amiga, o que me dá todo o direito do mundo para me meter na sua vida.

Kylie deu um abraço em Della.

— Eu te amo.

— Ok... Eu... Eu não estava tentando ser sentimental — disse Della, afastando a amiga.

— Eu sei, mas você foi. Infelizmente, eu não posso... falar sobre isso agora. Preciso fazer alguns telefonemas.

Ela fez um sinal para Della se afastar da porta. A vampira obedeceu a contragosto.

O primeiro telefonema de Kylie foi para avisar Hayden de que Burnett talvez estivesse a caminho e chegaria em pé de guerra.

— Por quê? Que diabos eu fiz dessa vez? — perguntou Hayden.

— Meu avô apareceu na farmácia. Suponho que você tenha contado onde eu estava.

— Ah, droga! Eu mencionei que você estaria, mas... Nunca pensei que ele fosse lá. Acho que vou começar a fazer as malas — ele murmurou.

— Não — pediu Kylie. — Por favor. Apenas explique que você não sabia que ele iria. Só para... acalmar Burnett. Diga qualquer coisa. Mas... não vá embora. Eu preciso de você aqui. E... não seja duro demais com ele. Ele... ele está passando por um dia difícil.

— O que aconteceu? — perguntou Hayden.

— Ele teve que me aturar — justificou Kylie.

— Ah, isso deve ter sido bem difícil — Hayden provocou, mas Kylie não estava com humor para piadinhas.

Ao desligar o telefone, ligou para o padrasto. Ela conversou com ele uns bons cinco minutos, assegurando que estava bem e que tinha perdido o celular, mas agora o reencontrara e lamentava não ter atendido as ligações dele.

Kylie poderia dizer pelo seu tom de voz que ele tinha ficado chateado ao saber que a mãe dela estava em Londres. Ou talvez não fosse só a voz dele lhe dizendo isso, mas suas palavras.

— Caramba! Ela devia ter me contado que ia sair do país!

— Com certeza ela apenas se esqueceu — mentiu Kylie, sem saber mais o que dizer.

Ao desligar, Kylie de repente sentiu seu bolso esquerdo vibrar. Ah, droga! Tinha se esquecido completamente de que ainda estava com o telefone de Holiday.

Ao pegar o telefone, viu que era Burnett enviando uma mensagem a Holiday. Sua intuição lhe dizia que Holiday precisava lê-la. Ela correu para fora do quarto e gritou para Della.

— Vamos sair!

Sabendo que Della iria alcançá-la, Kylie abriu a porta da frente. Em questão de segundos, a amiga estava ao seu lado.

— Para onde estamos indo?

— Para o escritório. Preciso falar com Holiday.

— E você ainda não vai me dizer o que está acontecendo...

— Sinto muito. — Kylie apressou o passo.

Ela pediu para Della esperar do lado de fora. A vampira revirou os olhos, mas não disse nada. Quando Kylie entrou no escritório, a porta de Holiday estava fechada. Ela bateu.

— Quem é? — perguntou Holiday, e Kylie sentiu que a fae estava esperando que fosse Burnett.

— Sou eu. — Kylie abriu a porta.

Holiday estava de pé atrás de sua mesa. Ela suspirou. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. A fae não ficava muito mais bonita do que Kylie ao chorar.

— Eu sinto muito. — A culpa causou um nó na garganta de Kylie.

— Não é culpa sua.

— É, sim. Ele não devia ter ouvido a notícia daquele jeito. Eu estava tão...

— Furiosa — Holiday terminou a frase por ela. — E você tinha o direito de estar. Ele foi precipitado. Tem de fato o hábito de fazer isso. — A voz dela tremeu.

Kylie viu as caixas dos testes de gravidez no lixo.

— Você fez os testes?

Ela assentiu.

— E então?

Ela confirmou com a cabeça.

— Todos os três deram positivo. Qual é a chance de estarem errados?

— Burnett sabe? — perguntou Kylie.

Holiday balançou a cabeça.

— Ele nem entrou no escritório. Não disse uma palavra. Entrou no carro e saiu.

— Espere. Ele disse alguma coisa. — Kylie puxou do bolso o telefone de Holiday. — Você recebeu uma mensagem dele. Foi por isso que vim aqui. Achei que poderia ser importante.

Holiday pegou o telefone e apertou alguns botões quase em pânico.

Lágrimas encheram seus olhos e ela colocou uma mão sobre os lábios trêmulos.

— É uma reação boa ou ruim? — perguntou Kylie.

Holiday ergueu os olhos cheios de lágrimas, mas com um sorriso.

— Ele escreveu: “Estou na floricultura, tentando descobrir qual flor quer dizer: sou um idiota, por favor me perdoe”. — Ela suspirou. — Ele é um idiota! — Ela soluçou.

— Mas sou o seu idiota! — Burnett disse da porta.

Kylie olhou para trás e viu Burnett entrar carregando o maior e mais estranho buquê de flores que ela já vira. Holiday desabou na cadeira. Algumas lágrimas escorriam pelo rosto dela.

Ele passou por Kylie e colocou as flores na mesa de Holiday, praticamente ocupando toda a superfície da mesa.

— Você não disse que tipo de flor eu devia comprar, então trouxe um pouco de tudo.

Os olhos de Burnett se desviaram para o cesto de lixo, onde ele obviamente viu as embalagens dos testes de gravidez. Ele olhou para Holiday.

— Estamos esperando um bebê?

Ela assentiu com a cabeça e enxugou o rosto.

— Me perdoe — disse ele com pura emoção na voz. — Eu só estou com medo. Não tive pai e a maioria dos meus pais adotivos não era o que você chamaria de bom exemplo. Mas então percebi que você vai ser uma mãe tão maravilhosa, que não tem importância se eu não for um pai tão bom assim.

— Você vai ser um ótimo pai — Holiday soluçou.

— Mas se eu não for, você vai me colocar nos eixos, não vai?

Ela concordou com a cabeça.

— Pode apostar que vou.

Kylie sorriu e começou a recuar. Ela estava quase na porta quando Burnett se virou.

— Eu lhe devo um pedido de desculpas, também.

Kylie assentiu.

— E eu te devo um.

Burnett sorriu.

— Aceito.

— Mas sem mais segredos — disse Kylie. — Mesmo entre você e Hayden. Se eles me envolvem, eu quero saber.

Ele suspirou.

— Combinado. Agora que praticamente tudo ficou esclarecido, você pode sair para que eu possa beijar a mãe do meu filho e não me preocupar em ofender seus olhos de donzela?

— Capriche no beijo. — Kylie sorriu e começou a sair.

— Kylie? — chamou Holiday.

Kylie se voltou.

— Os Brightens ligaram enquanto estávamos fora. Eles ainda estão pretendendo vir amanhã. Eu só queria lembrá-la.

Kylie acenou com a cabeça e saiu, tentando descobrir o que iria dizer aos Brightens.

Ela mal tinha colocado um pé para fora da varanda quando Della correu até ela e gritou.

— Holiday está grávida?

Kylie cobriu a boca da vampira com a palma da mão e franziu a testa.

— Você não deveria estar escutando a conversa.

— Eu não tive intenção. — Della bufou atrás dos dedos de Kylie. — A voz de Burnett apenas foi carregada pelo vento.

— Certo. — Kylie desviou os olhos para Della, em descrença.

Della gritou novamente.

— Isso é muito legal!

Kylie, afastando a preocupação com os Brightens, de repente sentiu vontade de gritar também.

— O que é legal? — perguntou Miranda, subindo pela trilha.

Della olhou para Kylie.

— Nós temos que dizer a Miranda. Só para ela.

— É isso aí, vocês têm que me dizer — Miranda gritou. — Não sei o que é, mas quero saber.

Kylie arquejou.

— Ok, mas você não pode contar a ninguém.

— Não vou contar a ninguém — disse Miranda. — O que é? — Ela esfregou as mãos, animada para saber o segredo.

Della afastou-as do escritório, e as três ficaram sob algumas árvores ao lado da trilha.

— Adivinhe quem está grávida? — Della cochichou.

Miranda olhou feito boba para Kylie.

— Mas você disse que nunca tinha transado!

— Eu, não! — defendeu-se Kylie. — Holiday.

O queixo de Miranda caiu.

— Oh, meu Deus! Nós vamos ter um bebê Burnett correndo por aí? Isso é legal mesmo! — concordou, com um sorriu de orelha a orelha.

— Eu sei. — Kylie de repente não conseguia parar de sorrir.

Ou não podia até que alguém deixou cair da árvore em cima dela uma cabeça decepada, bem sobre o seu pé. Kylie gritou e chutou a cabeça, que rolou uns bons dois metros de distância. Ela gritou novamente quando viu os olhos da cabeça balançando e olhando para ela.

Na manhã seguinte, Kylie se levantou e foi se sentar em frente ao computador para checar seus e-mails antes de tomar o café da manhã com Della e Miranda. Ela se sentou ali e ficou olhando para a tela preta do computador quase em transe. Não tinha tido nenhum sonho, nem visto nenhuma cabeça decepada caindo de árvores nem recebido visitas de espadas. Ela nem tinha dormido ainda. O que a mantinha de pé eram todos os seus outros problemas. A maioria deles questões do coração.

Ela ficou acordada um tempo pensando no encontro que teria naquele dia com os pais adotivos de Daniel, perguntando-se o que deveria dizer, ou não dizer. Ela tinha se afeiçoado ao seu verdadeiro avô, mas ele não fora o homem que criara seu pai. Não tinha lhe ensinado a andar de bicicleta ou a jogar beisebol. Ele na verdade não conhecera o próprio filho, mas essas pessoas, sim. O que elas diriam sobre seu pai? Será que o haviam amado, sentido falta dele desde que fora levado tão precocemente desta vida?

Isso fez com que começasse a sentir a falta do pai. Então, pegou as fotos dele e passou uma boa hora só olhando para elas, falando com ele. Sim, ela falava com o pai como se ele estivesse ali, ouvindo cada palavra que dizia. Ela lhe contou sobre suas missões. Como queria encontrar uma maneira de ajudar todos os outros camaleões adolescentes. Agora só faltava descobrir como fazer isso. Ela lhe contou sobre Mario, como ela se sentia no fundo, agora que tinha que enfrentá-lo. Pessoalmente.

Confessou ao pai quanto isso realmente a assustava. Tinha medo por causa da maldade que emanava do homem, e porque ela não achava que tivesse o poder necessário para enfrentá-lo e vencer.

Algumas vezes durante a conversa, ela podia jurar que sentia o pai perto dela, uma espécie de leve calafrio que ela conhecia bem — e que a aquecia por dentro. Um calafrio que lhe sussurrava que ela não estaria sozinha, nem ao enfrentar Mario, nem durante a visita dos avós. Então ela tornou a ouvir as palavras que ele lhe dissera não muito tempo atrás. Mas logo. Em breve, vamos descobrir isso juntos.

Seria seu destino enfrentar Mario e ser derrotada? Será que ela iria se juntar ao pai do outro lado?

Colocou as fotos de volta no envelope, o coração batendo um pouco mais rápido, e mais uma vez se lembrou de Holiday falando que ela não achava que era isso que o pai queria dizer. Meu Deus, Kylie esperava que não! Não estava pronta para deixar este mundo.

Quando parou de se preocupar com a mensagem de Daniel — preferindo acreditar em Holiday, ou pelo menos tentar acreditar — e com o encontro com os avós, ela começou a ficar obcecada com o que Fredericka lhe dissera. Era por causa de Kylie que Lucas provavelmente não iria entrar no Conselho dos lobisomens. Ela sabia que não era culpa dela — ele tinha se metido naquela confusão —, mas a culpa ainda espicaçava a sua consciência. Era difícil sentir tanta raiva e culpa ao mesmo tempo pela mesma pessoa. Como iria lidar com aquilo? Ela não sabia.

Kylie também tinha que se entender com Derek. Cortar o mal pela raiz antes que as coisas ficassem fora de controle, se é que já não estavam. Lembrou-se do almoço do dia anterior, motivo pelo qual Kylie tinha ficado na cabana e pedido para Miranda lhe trazer algumas fatias de pizza para o jantar. Ah, seu velho truque para evitar as pessoas ainda estava em boas condições de funcionamento! Ela devia ficar orgulhosa... “Vai sonhando”, disse a si mesma...

Mas, honestamente, ela sabia que não deveria nem poderia continuar evitando Derek.

O garoto merecia saber a verdade. Agora, se ela pudesse descobrir qual era exatamente essa verdade, ela lhe diria. Espere aí! Ela sabia qual era, não sabia? Ou, pelo menos sabia parte dela. Ela não tinha admitido que amava Lucas? Ainda o amava, apesar do que ele tinha feito. Então por que tinha deixado que Derek a beijasse no sonho lúcido?

Seria porque no fundo ela ainda sentia alguma coisa por Derek? Ou será que só temia perder Lucas e não queria ficar sem ninguém? Ou talvez fosse porque estava com raiva de Lucas e de alguma forma se sentira vingada ao beijar Derek... Ou seria porque ela era simplesmente uma grande idiota?

Perguntas.

Nenhuma resposta.

— Nós vamos tomar café? — perguntou Della.

— Vamos — murmurou Kylie, olhando para a tela preta do computador. — Estou só verificando meus e-mails.

Della soltou uma risada sarcástica.

— Acho que seria bom ligar o computador primeiro. Ou será que seus poderes agora permitem que você leia seus e-mails com o computador desligado?

Kylie ligou o computador e olhou por cima do ombro para franzir a testa para Della.

— Você não se lembra da regra? Não pode bancar a sabichona antes do café da manhã. Eu preciso de energia para lidar com isso.

Miranda entrou na sala.

— Eu, pessoalmente, acho que ela devia esperar até depois do almoço. Isso nos dá duas refeições para lidar com suas piadinhas sem graça.

— Vocês duas se acham tão engraçadas... — contra-atacou Della.

— Somos engraçadas — respondeu Miranda.

— Uma verdadeira dupla de comediantes. — Kylie abriu sua caixa de e-mails para fazer uma verificação rápida. Um era de seu padrasto.

Iria responder mais tarde.

Um de... Sara.

Droga, ela não pensava na sua antiga melhor amiga havia quase duas semanas! Engraçado como uma pessoa podia ser tão importante na nossa vida e depois... passarmos um longo período de tempo sem sequer pensar nela.

Não era culpa de ninguém. A vida leva as pessoas em direções diferentes.

Kylie tinha lido em alguma revista adolescente que normalmente acontecia isso depois da formatura no colegial. Ela achava que tinha seguido um caminho diferente na vida um pouco mais cedo do que o resto dos adolescentes. Mesmo assim era triste.

Um buraco pareceu se abrir em seu peito. Um lugar que antes costumava ser ocupado por Sara.

Ela clicou no e-mail de Sara, rezando para que não fossem más notícias, como, por exemplo: o câncer ter voltado ou ela achar que estava grávida novamente, ou ter decidido ir para um convento e tornar-se freira. Com Sara, tudo era possível.

 

Olá... Cortei o cabelo. Achei que você talvez quisesse ver. Não ria. Estou me sentindo corajosa agora que sobrevivi a um câncer. Aposto que a sua amiga Miranda vai aprovar. Me ligue quando tiver uma chance.

 

Sabendo que Della e Miranda estavam esperando, Kylie abriu a foto apenas para dar uma espiada. Quando a imagem de Sara, com o cabelo cor-de-rosa, curto e espetado, encheu a tela, um sorriso deslizou pelos lábios de Kylie.

Ela ouviu pés se arrastando atrás dela.

— Estou indo! — gritou, pensando que a qualquer minuto Della iria reclamar. Kylie pegou o telefone e a carteira, mas logo que se levantou, outro e-mail chegou. Era da mãe, que deveria ter retornado da Inglaterra pela manhã. Obviamente, ela já estava em casa.

— Sério? Eu não vejo você se movendo... — disse Della, com sarcasmo.

Ok, o e-mail da mãe teria que esperar, também.

Ao encontrá-las na porta, Kylie olhou para suas duas melhores amigas e sentiu uma onda de tristeza. Não pelo presente, mas pelo que poderia acontecer no futuro.

— Prometem uma coisa? — disse Kylie.

— O quê? — elas perguntaram ao mesmo tempo.

— Quando a gente se formar, não vamos perder contato. Precisamos ir as três para a mesma faculdade. Estou falando sério. Holiday estava falando sobre pegarmos o formulário de algumas faculdades, e precisamos preencher os das mesmas faculdades. E poderíamos alugar um apartamento juntas.

— Poderíamos nos tornar lésbicas e formar um triângulo amoroso — disse Della, rindo.

— Lamento muito — disse Miranda, rindo também. — Eu já vi você pelada e não senti nenhuma atração.

— Por causa dos meus peitinhos minúsculos, não é? — Della perguntou, sorrindo.

Riram ao longo de todo o caminho para o refeitório.

* * *

Derek e Lucas não apareceram para o café da manhã, o que Kylie achou ótimo. O fato de haver menos tensão no ar devia abrir o apetite, porque ela comeu seus ovos mexidos com bacon em tempo recorde. Seu celular tocou justamente quando ela estava prestes a empurrar a bandeja. Quando viu o número do padrasto, decidiu retornar a ligação um pouco mais tarde. Ela não achava que ele conseguiria amenizar tão cedo a dor que sentia em relação à mãe dela. Então o telefone apitou, alertando para a chegada de uma mensagem. Não poderia ser o padrasto dela, pois ele não mandava mensagens. Kylie esperou um segundo antes de verificar quem era. Duas palavras apareceram.

Saudade. Lucas.

Sinto saudade, também, ela pensou, mas não mandou nenhuma mensagem de volta. A emoção sussurrava em seu peito.

O som de outra bandeja sendo colocada sobre a mesa fez Kylie levantar o olhar.

Steve, o metamorfo gostosão, que tinha deixado um chupão logo abaixo da clavícula esquerda de Della, sentou-se ao lado da vampirinha.

Della ficou completamente imóvel, paralisada, e fulminou com o olhar o seu café da manhã intocado. Se olhares pudessem matar, aquele café da manhã já estaria carbonizado.

— Bom dia! — cumprimentou Steve.

— Você tem que ir embora — disse Della sem olhar para ele.

— Por quê? — ele perguntou.

Della hesitou.

— Porque eu sou a sombra de Kylie e não posso me distrair.

Essa era a desculpa mais esfarrapada que Kylie já tinha ouvido e, pela expressão de Steve, ele achava o mesmo.

— Então, eu sou uma distração para você, hein? — disse ele, inclinando-se na direção dela, com um meio sorriso nos lábios.

— Vá embora! — Ela olhou para cima, com os olhos esverdeados de pura raiva.

O meio sorriso desapareceu dos olhos do metamorfo e ele se levantou, pegou sua bandeja e foi se sentar à mesa dos membros da sua espécie.

— Isso não foi nem um pouco educado — disse Kylie.

— Eu sei — disse Della. — Não sei por que ele age dessa forma.

— Eu estava falando de você! — Kylie inclinou-se e fez uma cara feia para Della.

— Sim, e disse uma mentira também — acrescentou Perry, sentado duas cadeiras mais adiante. — Eu sou a sombra de Kylie agora.

Della fez uma careta e se levantou.

— Você já acabou de comer?

Poucos minutos depois, eles caminharam do lado de fora, para o local onde seria anunciada a Hora do Encontro — Della de um lado de Kylie e Miranda e Perry do outro. Kylie de repente se pegou olhando em volta, à procura de Derek ou Lucas. Nenhum dos dois tinha aparecido ainda. Mas então ela sentiu os pelos da nuca se arrepiarem. Olhando para trás, viu Derek em pé a alguns metros, às suas costas. Seus olhos verdes se encontraram com os dela e Kylie se lembrou novamente do beijo no sonho.

— Ok — disse Chris, chamando a atenção de Kylie para a frente. — O primeiro par de hoje... — Ele puxou um pedaço de papel de sua cartola, que sempre pareceu uma idiotice para Kylie, mas Chris obviamente adorava.

Ela se perguntava se Chris por acaso queria ser mágico, quando criança. Lendo o papel, o vampiro chefe desviou os olhos para o grupo de alunos. O coração de Kylie acelerou quando o olhar dele chegou perto dela e começou a se mover mais devagar. De novo não! Quem teria sido dessa vez?

Então os olhos dele passaram por Kylie, por Miranda, e pararam. Por alguma razão maluca, Kylie teve um mau pressentimento. O sorriso furtivo nos lábios de Chris foi a prova de que ela estava certa.

— Perry, amigo velho — disse Chris. — Você vai ter o prazer de passar uma hora com Nikki.


Capítulo Vinte e Dois

O pressentimento ruim não só estava exato, como era um eufemismo.

Não era apenas ruim, era na verdade pavoroso!

O olhar de Kylie se desviou da expressão chocada de Perry e se fixou em Miranda.

A bruxinha ficou dura como uma pedra. A única coisa que se movia nela eram os olhos, enquanto examinava a multidão, obviamente à procura de Nikki.

E, quando os olhos de Miranda pararam de se mover — o que significava que tinham encontrado a culpada —, seu olhar se encheu de ciúmes. E de repente outra parte do corpo da bruxa começou a se mover: o dedo mindinho.

— Não! — Kylie deixou escapar, mas era tarde demais. A loira e bonita Nikki desapareceu e em pé, no mesmo lugar, surgiu um aturdido e furioso canguru.

Ah, mas Miranda não tinha terminado ainda. Seu mindinho continuou a se mexer.

Kylie engasgou quando espinhas começaram a aparecer no pobre marsupial de um metro e meio. Kylie podia ouvir a ameaça favorita de Miranda em sua mente.

Vou lhe causar o pior caso de acne que você já viu.

Miranda estava certa. Kylie nunca tinha visto espinhas tão inflamadas! Claro que ela também nunca tinha visto um canguru com espinhas...

Todos na multidão começaram a uivar de tanto rir. Embora Nikki fosse a causadora de tudo aquilo, Kylie sentiu pena dela. E, francamente, se Miranda não estivesse verde de ciúmes, ela acharia engraçado também.

Kylie agarrou o braço de Miranda, inclinou-se e sussurrou:

— Ela não devia ter feito isso, mas... transforme Nikki em gente outra vez. Traga a garota de volta agora, antes que você se esqueça de como quebrar o feitiço!

Miranda franziu a testa, mas Kylie viu a lógica prevalecer no cérebro da amiga. Ela mordeu o lábio, apontou o dedo mindinho, murmurou algumas coisas e puf, Nikki apareceu num passe de mágica, não na forma de canguru, mas de uma metamorfa morta de vergonha e de raiva.

O riso da multidão deve ter aumentado seu constrangimento. Em vez de se transformar em algo feroz e partir a bruxinha em duas, lágrimas encheram os olhos de Nikki e ela saiu correndo.

Perry olhou ao redor e encarou Miranda.

— Por que você fez isso?

Merda!, Kylie pensou, sabendo que Perry tinha dito a coisa errada.

Miranda, já com uma expressão de remorso, franziu a testa para ele.

— Você está do lado dela? Ela está tentando roubar você de mim e agora você está do lado dela!

— Não, eu não estou... Mas isso foi uma burrice e tanto! — disse ele.

Ah, merda!, Kylie pensou outra vez. Miranda não gostou nada da palavra que ele usou.

O rosto da bruxa ficou vermelho e lágrimas encheram seus olhos.

— Burrice? — perguntou rispidamente. — Tudo bem, se eu sou burra, por que você não corre atrás de Nikki e vai consolá-la? Porque ela pode ficar com você, se é o que você quer!

— O que está acontecendo? — Holiday veio correndo do refeitório.

Enquanto várias pessoas começavam a contar a Holiday o que estava acontecendo, Miranda saiu correndo.

Kylie virou-se para Perry, que ficou ali olhando Miranda se afastar, magoadíssima.

— Ei! — chamou Kylie. Quando Perry não respondeu, ela deu um bom puxão na manga dele. — Não fique aí parado. Vá atrás dela e diga que você sente muito.

— O que eu fiz? — ele perguntou.

— Primeiro você a chamou de burra. Como ela é disléxica, odeia essa palavra. Em segundo lugar, goste você ou não, parecia que você estava tomando o partido de Nikki.

— Não, eu disse que o que ela fez foi burrice. E foi mesmo. — Perry olhou para Holiday. — Ela vai levar a maior bronca de Holiday. Por que diabos Miranda tinha que fazer aquilo?

— Provavelmente, pela mesma razão que um metamorfo certa vez se transformou num grande urso e num leão gigante e tentou rasgar outro metamorfo ao meio por beijar alguém. Porque ela está com ciúmes. Você não se lembra de como é sentir ciúmes?

Perry fez uma careta.

— Sim, eu me lembro. — A culpa escureceu os olhos de Perry. — Merda. Eu arruinei tudo, não foi? — Ele passou a mão pelos cabelos loiros. — Mas eu não estava tomando o partido de Nikki. Eu só não queria que Miranda ficasse em apuros.

— Então vá dizer isso a ela. Explique o que você quis dizer. E aí faça a você mesmo e a Nikki um favor e diga a ela para desistir de você.

— Eu... não incentivei essa garota nem um pouco.

— Mas você disse a ela que está com Miranda e que simplesmente não vai rolar nada entre vocês dois? Porque, obviamente, ela ainda acha que vocês têm uma chance. E não é justo que Miranda tenha que aturar essa confusão, e não é justo que Nikki tenha esperança quando não deveria. Agora vá e conserte essa encrenca em que se meteu antes que seja tarde demais.

Logo em seguida o conselho de Kylie para Perry se virou contra ela. Porque esse era justamente o conselho que ela precisava ouvir também. Perry não era o único que tinha que consertar as coisas. Ela tinha que falar com Derek. Tinha que ser sincera com relação ao que sentia.

— Eu não posso ir — disse Perry. — Sim, você pode, ou vai se arrepender.

— Não, eu não posso. Sou sua sombra. Burnett vai me matar se eu largar você.

Kylie gemeu. Ela se virou e viu que Derek estava andando na direção deles. Ela o agarrou pelo braço e o puxou até que ele ficasse na frente de Perry.

— Você não é mais a minha sombra. Derek é que é.

— Ótimo! — Derek sorriu e ela sabia que ele estava interpretando mal a intenção dela.

Perry balançou a cabeça.

— Mas Burnett...

— Burnett não vai ficar bravo. Vou explicar tudo a ele. Agora vá antes que seja tarde demais e Miranda decida não perdoá-lo. Vá! — Ela deu um empurrão no metamorfo.

Perry se transformou em pássaro e saiu voando. Kylie espanou algumas faíscas do seu braço, e em seguida olhou para Derek.

— Vamos — mandou Kylie.

— Aonde? — O olhar com que ele a fitou veio acompanhado de um sorriso sexy.

— Conversar — explicou ela. — Temos que conversar.

— E a Hora do Encontro? — ele perguntou.

Ela soltou um suspiro profundo.

— Esqueça a Hora do Encontro. Você vai vir comigo! — Ela o pegou pelo braço e começou a arrastá-lo.

E, é claro, foi nesse momento que Lucas se aproximou.

Seus olhos azuis encontraram os dela. Ela viu o jeito como ele a olhou. Kylie sentiu o estranho impulso de parar e explicar, mas, quando tentou pensar no que diria ou no motivo por que achava que ele merecia uma explicação, tudo pareceu muito difícil.

Então, ela simplesmente fitou os olhos dele como se pedisse desculpas e se voltou para Derek, que ela arrastava atrás de si. Mais tarde ela cuidaria de Lucas. Como iria fazer isso, não tinha a menor ideia.

— Você quer ir para a pedra? — perguntou Derek, agora andando ao seu lado.

— Não. — O olhar magoado nos olhos de Lucas continuou ecoando em seu coração.

Ele a magoara, mas magoá-lo, mesmo sem intenção, deixava o peito dela apertado de arrependimento.

— Por que não? — Derek perguntou.

— Porque nós temos que conversar, e eu acho que você sabe do que se trata.

Por um segundo, ela desejou que não fosse assim. Seria tão fácil se ela simplesmente escolhesse Derek. Ele não tinha uma alcateia que tentasse afastá-los. Ele não tinha desistido de sua busca e não iria culpá-la um dia por isso.

Mas, por mais que quisesse, ela não conseguia fazer seu coração tomar o rumo mais fácil.

Seu coração, obviamente, queria Lucas. Se ela daria ou não o que ele queria era outra história. Mas ela também não podia dar a Derek o que ele queria. Simplesmente não estava certo.

Ele suspirou, frustrado.

— Por que eu tenho um pressentimento de que isso não vai acabar bem?

Ela o fitou.

— Pode não acabar do jeito que você quer, mas é a coisa certa a fazer.

— Não tenho tanta certeza — disse ele.

Ela o levou para a cabana e, em seguida, lembrando-se de que Miranda e Perry poderiam estar lá dentro resolvendo os seus próprios problemas, ela se sentou no degrau da varanda e fez um gesto para que ele fizesse o mesmo.

Dando uma rápida olhada na porta, Kylie torceu para que Perry tivesse conseguido acalmar Miranda. Droga, talvez eles estivessem lá dentro numa sessão de amassos!

Respirando fundo, ela enfrentou Derek.

— Você sabe como eu me sinto. Por que você está tentando se convencer de que não é verdade?

— O que não é verdade? Admita, Kylie. Você me ama também — disse ele.

Ela puxou uma perna até o peito e abraçou-a.

— Tá, eu não vou mentir, mas não é o tipo de amor que eu sinto por Lucas. E eu sei que você sabe disso, porque você sente o que eu sinto.

— Mas, se reatarmos o namoro, poderíamos corrigir isso.

Ela balançou a cabeça.

— Você não merece isso.

— Não merece o quê? — perguntou ele. — Eu quero você de volta. Você acha que eu não seria feliz?

— Não, de verdade — disse ela. — Não poderia ser. Você merece alguém que seja tão louco por você quanto você é por essa pessoa. Você não merece alguém... que gosta de outra pessoa.

Ela mordeu o lábio e percebeu outra razão por que tinha sentimentos tão fortes com relação a isso.

— Foi isso que aconteceu com meu pai e minha mãe. Ela amava meu verdadeiro pai. Ela gostava do meu padrasto, mas sempre soube que amava mais meu pai. Até a minha mãe admite que essa é provavelmente parte da razão por que ele acabou traindo-a. Ela não consegue perdoá-lo, mas sabe que, em parte, a culpa é dela.

Derek ficou ali sentado em silêncio e então a olhou com uma expressão séria.

— Então você vai aceitar Lucas de volta. Vai perdoá-lo por sair daqui e ficar noivo de outra pessoa.

Ela apertou mais a própria perna.

— Ele não ficou noivo de fato. Voltou atrás antes de chegar a esse ponto.

A cara feia de Derek aumentou.

— Só porque você apareceu, porque descobriu o seu segredinho sujo.

— Sei disso. E não sei o que vou fazer. Ainda não o perdoei, mas também não deixei de amá-lo.

— Mas, se você me der uma chance, talvez volte a me amar também. Acho que você estava realmente apaixonada por mim um tempo atrás. A gente poderia voltar a sentir o mesmo que sentíamos naquele tempo.

— Nós? — Ela suspirou, percebendo o que ele disse. — Veja, nem você sente mais a mesma coisa também.

— Eu não quis dizer... — Ele balançou a cabeça.

— Sim, você quis — disse ela. — Derek, eu acho que nós fomos apaixonados um pelo outro — ela admitiu. — E eu não quero te magoar, Derek. Eu realmente me preocupo com você e eu ainda te amo, só que não... dessa maneira. E acho que acontece o mesmo com você.

Ele olhou para as árvores, e ela sentiu que ele precisava de alguns segundos para colocar os sentimentos em ordem. Ela o viu engolir e sentiu sua dor.

Ele inspirou.

— Mas o que tínhamos era tão incrível...

— Eu sei e sinto muito. — Ela sentiu a voz tremer de emoção. Magoá-lo era tão difícil!

Ele olhou para Kylie e ela viu honestidade, preocupação genuína em seu olhar. E Derek não era sempre assim? Ele era um grande cara! E só por isso, merecia alguém que o adorasse, que o amasse mais do que a qualquer outra pessoa.

— Você não fez nada para ter que se desculpar — disse ele. — Não mesmo. Se alguém teve culpa nisso, fui eu quando fiquei com medo e fiz o que fiz. Ou talvez seja apenas o destino. Como as coisas devem ser.

Ela concordou com a cabeça.

— Quero uma coisa de você — disse ele. — Uma promessa.

— O quê? — ela perguntou, sabendo que faria tudo por ele, se fosse possível.

— Não deixe de ser minha amiga. Não me evite, porque acha que o clima pode ficar estranho. Quando precisar de alguma coisa, não hesite em me procurar. Consigo aceitar que não podemos ser namorados, mas não quero perdê-la como amiga e não estou dizendo isso só por dizer. Estou falando sério.

Ela assentiu.

— Prometo. — As lágrimas encheram os olhos dela.

— E quando você voltar para Lucas, faça-o entender que eu ainda gostaria de fazer parte da sua vida, como amigo.

— Eu te disse, eu não sei se vamos voltar...

Ele estendeu a mão e secou uma lágrima que escorria pelo rosto dela.

— Sim, você vai. Porque, quando você ama alguém, você perdoa.

A respiração de Kylie tremeu.

— Como você está me perdoando agora? — E outra lágrima escorreu.

— Eu já disse, você não fez nada que eu tenha que perdoar. Mas se fizesse alguma coisa, sim, eu te perdoaria.

Ela inspirou e olhou para o próprio pé.

— Mesmo que fosse por minha causa que você não conseguisse realizar a única coisa que sempre quis na vida?

— Não estou entendendo — disse Derek.

— Desculpe. Só estou pensando em voz alta.

— Está falando de Lucas? — perguntou Derek.

Kylie acenou com a cabeça e percebeu quanto estava sendo insensível.

— Me desculpe — ela repetiu.

— Não se desculpe. — Ele soltou o ar dos pulmões. — Isso é o que eu estou falando para você não fazer. Eu quero que você converse comigo. — Ele entrelaçou as mãos. — Olhe, não me agrada ter que dizer isso, mas Lucas realmente ama você. Eu posso sentir. E ele está sofrendo como o diabo agora. Não importa o que seja, se você acha que ele não vai te perdoar, bem, você está errada.

Ela passou a mão pela perna antes de falar.

— Por minha causa ele não vai entrar no Conselho dos lobisomens. Não vai conseguir mudar todas as coisas que queria mudar no seu próprio povo. Sua própria alcateia provavelmente vai destituí-lo. Mais cedo ou mais tarde...

— Mas ele te escolheu, Kylie. Ele fez essa escolha. Você não forçou a barra.

Kylie negou com a cabeça, mas olhou-o nos olhos.

— Talvez tenha sido a escolha errada.

Ele se inclinou e roçou o ombro dela com carinho.

— Aposto que ele não pensa assim.

Ela balançou a cabeça.

— Ser um lobisomem significa tudo para ele.

O telefone de Kylie apitou avisando da chegada de uma mensagem; um segundo depois, o celular de Derek fez o mesmo. Ela puxou o dela do bolso e viu o nome de Burnett na tela. Ela olhou para Derek, que olhou para ela ao mesmo tempo.

— Uma mensagem de Burnett — disse Derek.

— Ah, merda! — disse Kylie, apertando o botão para ler a mensagem.

Venha para o escritório agora!, dizia a mensagem de Burnett.

Santo Deus!, Kylie pensou. O que poderia estar acontecendo agora?

 

 

 


C O N T I N U A