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Romance de ficção científica no qual a humanidade é controlada por um supercomputador “UniComp” (Uni). A dor e o sofrimento humano foram erradicados e os instintos agressivos são eliminados por tratamentos de quimioterapia aplicados em massa, transformando o mundo em um sistema sufocante de pura bondade. Li (Quem) luta pela liberdade com um pequeno grupo de cidadãos que começam a questionar o sistema estabelecido.
PRIMEIRA PARTE
CRESCENDO
1
Gigantescos e inexpressivos blocos de concreto branco de uma cidade, circundados por outros menores, davam espaço a uma vasta área de pavimento rosado: praça de recreio onde cerca de duzentas crianças brincavam e faziam ginástica sob a vigilância de uma dúzia de instrutoras de túnica branca. A maioria delas, nuas, morenas e de cabelo escuro, andava de gatinhas por cilindros vermelhos e amarelos, pulando em balanços ou formando grupos de exercícios físicos. À sombra de um recanto destinado a jogos de amarelinha, porém, um círculo fechado de cinco participantes escutava, imóvel, o que um deles falava.
— Eles agarram os bichos, comem e usam a pele deles como roupa — dizia o garoto, que teria mais ou menos oito anos. — E... fazem uma coisa chamada “brigar”. Quer dizer, eles se machucam uns aos outros, de propósito, com as mãos, com pedras, com tudo quanto é coisa. Ninguém se ama nem se ajuda mutuamente.
Os ouvintes estavam de olhos arregalados.
— Mas não dá pra tirar a pulseira — lembrou uma menina, pouco menor que o garoto. — É impossível.
E puxou a sua com o dedo, para mostrar como os aros estavam bem presos.
— Dá, sim. É só ter com o que tirar — retrucou o garoto.
— A gente sempre tira no dia-do-aro, não é?
— Só por um instante.
— Mas se tira, não é?
— Onde é que eles vivem? — perguntou outra.
— Em cima das montanhas — explicou o garoto. — No fundo das grutas. Em tudo quanto é lugar onde não se possa encontrá-los.
— Devem ser doentes — opinou a primeira.
— Claro que são — disse rindo o menino. — E por isso que são considerados incuráveis, isto é, doentes.
O menor de todos, um garotinho de seis anos mais ou menos, perguntou:
— E eles recebem tratamento?
O mais velho olhou-o com desdém.
— Sem pulseira? Morando em gruta?
— Mas como é que ficam doentes? — insistiu o de seis. — Eles recebem tratamento até fugir, não recebem?
— Os tratamentos — retrucou o mais velho — nem sempre fazem efeito.
O de seis encarou-o com firmeza.
— Fazem, sim — teimou.
— Não fazem, não.
— Minha nossa! — exclamou a instrutora, aproximando- se do grupo com duas bolas de vôlei debaixo dos braços. — Por que estão sentados assim tão juntos? De que vocês estão brincando? De “Quem escondeu o coelho”?
As crianças no mesmo instante se separaram, abrindo um círculo maior — com exceção do garotinho de seis anos, que continuou parado, sem se mexer. A instrutora fitou-o com curiosidade.
Duas notas de carrilhão repicaram nos alto-falantes.
— Pro chuveiro e depois se vestir — ordenou.
As crianças saltaram em pé e saíram correndo.
— Pro chuveiro e depois se vestir? — gritou ela para um grupo que jogava bola por perto.
O garotinho de seis anos levantou-se, a cara preocupada e triste. A instrutora agachou-se e examinou-lhe a fisionomia, inquieta.
— Que foi que houve? — indagou.
O menino, cujo olho direito era verde em vez de castanho, olhou para ela e pestanejou.
A instrutora largou as bolas no chão, virou-lhe o pulso para ver a pulseira e depois tomou-o delicadamente pelos ombros.
— O que é que há, Li? — perguntou. — Perdeu o jogo? Tanto faz perder como ganhar, você não sabe?
O garoto anuiu com a cabeça.
— O importante é brincar e fazer exercício, né?
Ele repetiu o gesto, forçando um sorriso.
— Puxa, até que enfim — exclamou a instrutora. — Melhorou muito. Agora não está mais com aquela cara de macaquinho emburrado.
Ele sorriu.
— Pro chuveiro e depois se vestir — mandou, já aliviada. Obrigou-o a virar de costas e deu-lhe uma palmadinha no traseiro. — E ande de uma vez.
O garoto, às vezes chamado de Quem, mas geralmente de Li — seu número era Li RM35M4419 — não pronunciou praticamente nenhuma palavra durante a refeição. Paz, a irmã, em compensação, tagarelou o tempo todo, de modo que os pais não notaram o silêncio dele. Só quando os quatro sentaram-se nas cadeiras de televisão foi que a mãe olhou bem para ele e perguntou:
— Está sentindo alguma coisa, Quem?
— Não — respondeu.
A mãe virou-se para o pai.
— Ele não abriu a boca a noite inteira — comentou.
— Eu estou bem — afirmou Quem.
— Então por que esse silêncio? — insistiu a mãe.
— Psiu... — pediu o pai.
A tela tinha-se iluminado e ele procurava acertar as cores.
Passada a primeira hora de programa, quando as crianças já se iam deitar, a mãe foi até o banheiro e ficou observando Quem enquanto ele escovava os dentes.
— O que foi? — perguntou. — Alguém falou alguma coisa sobre os seus olhos?
— Não — disse ele ruborizando.
— Passa uma água.
— Já passei.
— Passa de novo.
Ele passou água na escova e, levantando-se na ponta dos pés, pendurou-a na prateleira.
— Foi Jesus quem falou. — disse. — Jesus DV. Na hora do recreio.
— Falou o quê? Sobre o seu olho?
— Sobre o meu olho não. Ninguém nunca diz nada do meu olho.
— Sobre o que, então?
Ele encolheu os ombros.
— Sobre membros que... ficam doentes e... largam a Família. Que fogem e tiram a pulseira.
A mãe olhou-o, apreensiva.
— Incuráveis — adivinhou.
Ele sacudiu a cabeça, cada vez mais constrangido com o jeito da mãe e pelo fato dela conhecer a palavra,
— É verdade? — quis saber.
— Não — respondeu ela. — Não é, não. Vou chamar o Beto. Ele lhe explicará.
Virou as costas e saiu às pressas do banheiro, esquivando-se de Paz, que vinha abotoando o pijama.
— Só mais dois minutos — disse o pai, na sala. — Já estão na cama?
— Um dos meninos falou dos incuráveis pra Quem — disse a mãe.
— Ódio — praguejou o pai.
— Vou chamar o Beto — anunciou a mãe, dirigindo-se ao telefone.
— Já passa das oito.
— Ele virá.
Encostou a pulseira à placa do aparelho e leu em voz alta o número impresso em vermelho no cartão enfiado sob o contorno da tela: “Beto NE20G3018.” Ficou à espera, esfregando com força a palma das mãos.
— Eu sabia que ele estava preocupado com alguma coisa — disse. — Não pronunciou a menor palavra a noite inteira.
O pai levantou-se da cadeira.
— Vou conversar com ele — disse, pondo-se a caminho.
Deixe que Beto se encarrega! — chamou a mãe. — Manda Paz se deitar. Ela ainda está no banheiro!
Vinte minutos depois chegava Beto.
— Está no quarto dele — avisou a mãe.
— Vocês fiquem assistindo ao programa — disse Beto. — Andem de uma vez. Sentem-se.
Sorriu para ambos.
— Não há motivo para preocupações — afirmou. — Sério. Isso é comum.
— É mesmo? — estranhou o pai.
— Lógico — disse Beto. — E continuará sendo daqui a cem anos. As crianças não mudam.
Era o conselheiro mais jovem que já haviam tido: vinte e um anos, recém-saído da Academia. Mas sua conduta não tinha nada de hesitante ou insegura. Pelo contrário, mostrava maior calma e confiança que os de cinquenta anos ou mais. Estavam satisfeitos com ele.
Chegou à porta do quarto e olhou para Quem. Ele estava na cama, com a mão no queixo, apoiado ao cotovelo, lendo um livro de histórias.
— Oi, Li.
— Oi, Beto.
Beto entrou e sentou-se à beira da cama. Largou o telecom- putador no chão, entre os pés, apalpou a testa de Quem e escabelou-o.
— Que que você ’tá lendo? — perguntou.
— A luta de Wood — respondeu, mostrando-lhe a capa do livro de histórias.
Deixou-o cair fechado sobre as cobertas e pôs-se a traçar com o dedo o grande W amarelo de Wood.
— Soube que alguém andou lhe contando bobagens sobre os incuráveis.
— É bobagem, então — retrucou, sem desviar o olhar do dedo que se movia.
— E sim, Li — afirmou Beto. — Já foi verdade, há muito tempo, mas agora não é mais. Agora é pura bobagem.
Quem permaneceu calado, traçando o W no sentido inverso.
— A medicina e a química nunca estiveram tão adiantadas como hoje — continuou Beto, observando-o. Há cinquenta anos, mais ou menos, depois da Unificação, alguns membros às vezes adoeciam e pensavam que não eram mais membros. Então fugiam pra viver sozinhos em lugares que a Família não utilizava, ilhas estéreis, cume de montanhas e assim por diante.
— E tiravam as pulseiras?
— Acho que sim — disse Beto. —·Elas não tinham muita serventia em lugares daquele tipo, não é mesmo? Não havia controles onde encostá-las.
— Jesus contou que eles faziam uma coisa chamada “brigar”.
Beto virou-se para o outro lado e depois olhou de novo para ele,
— “Agir agressivamente” é uma definição mais simpática — explicou. — Sim, eles faziam isso.
Quem ergueu os olhos.
— Mas já morreram? — perguntou.
— Sim, todos — respondeu Beto. — Não sobrou nenhum. — Alisou-lhe o cabelo. — Faz muito, muito tempo. Hoje ninguém fica mais assim.
— É que hoje a medicina e a química estão mais adiantadas — disse Quem. — Os tratamentos fazem efeito.
— Tem razão — concordou Beto. — E não se esqueça de que naquela época havia cinco computadores diferentes. Quando um membro adoecia e abandonava seu continente, perdia todo o contato.
— Meu avô ajudou a montar o UniComp.
— Eu sei, Li. Portanto, a próxima vez que alguém lhe falar nos incuráveis, lembre-se de duas coisas: primeira, hoje os tratamentos são mais eficazes que antigamente e, segunda, nós contamos com o UniComp pra cuidar de nós em todos os recantos da Terra. ‘Tá bom?
— ‘Tá — respondeu Quem, sorrindo.
— Vejamos o que ele diz sobre você.
Beto apanhou o telecomputador e abriu-o em cima dos joelhos.
Quem sentou na cama e aproximou-se, arregaçando a manga do pijama para mostrar a pulseira.
— Você acha que vou receber tratamento extra? — perguntou.
— Se for preciso, sim. Quer ligar?
— Eu? — admirou-se Quem. — Posso?
— Evidente.
Quem colocou o polegar e o indicador cautelosamente no botão do telecomputador. Ao ligá-lo, pequenas luzes se acenderam: uma azul, duas amarelas. Sorriu ao vê-las.
Observando-o, Beto também sorriu e disse:
— Encoste.
Quem encostou a pulseira na placa do receptor. A luz azul contígua ficou vermelha.
Beto bateu de leve nas teclas de recepção. Quem seguiu os movimentos ágeis de seus dedos. Beto continuou batendo e finalmente calcou o botão das respostas. Uma linha de símbolos verdes brilhou na tela, acompanhada por outra, inferior. Beto examinou os símbolos. Quem não tirava os olhos de cima dele.
Beto olhou-o de soslaio e sorriu.
— Amanhã às 12h25m — disse.
— Que bom! — exclamou Quem. — Obrigado!
— Agradeça a Uni — corrigiu Beto, desligando o telecomputador e fechando a tampa. — Quem lhe falou nos incuráveis? Jesus do quê?
— DV33-nao-sei-que-mais — respondeu Quem. — Ele mora no vigésimo quarto andar.
Beto prendeu os fechos do telecomputador com um estalo.
— No mínimo ele anda tão preocupado quanto você.
— Não dava pra ele também receber tratamento extra?
— Se for o caso. Vou prevenir o conselheiro dele. Agora pra cama, irmão. Amanhã você tem aula.
Beto apanhou o livro de histórias e largou-o sobre a mesa de cabeceira.
Quem deitou-se, aninhando-se sorridente no travesseiro. Beto levantou-se, apagou a luz, escabelou-o novamente, curvou- se e beijou-lhe a nuca.
— Até sexta — disse Quem.
— Boa noite, Beto.
Os pais levantaram-se apreensivos quando Beto entrou na sala.
— Ele está bem — disse Beto. — Praticamente já adormeceu. Amanhã, à hora do almoço, receberá tratamento extra, provavelmente um pouco de tranquilizante.
— Puxa, que alívio — exclamou a mãe.
— Obrigado, Beto — agradeceu o pai.
— Agradeça a Uni — corrigiu Beto. Dirigiu-se ao telefone. — Vou ver se consigo auxílio pro outro garoto, o que tocou no assunto com ele...
E encostou a pulseira à placa do telefone.
No dia seguinte, à hora do almoço, Quem desceu três andares pela escada rolante, da escola até o centro médico. Ao encostar a pulseira ao controle da entrada do centro, apareceu um; sim verde piscando no mostrador, outro à porta do departamento de terapia e, por fim, um terceiro à entrada da sala de tratamento. Dos quinze aparelhos, quatro estavam funcionando, de modo que a fila era relativamente longa. Não tardou, porém, a subir os degraus reservados às crianças e a meter o braço, com a manga bem arregaçada, pelo orifício revestido de borracha. Conservou-o imóvel, feito gente grande, enquanto o controle interno localizava e apertava a pulseira, e o disco de infusão, morno e macio, roçava na parte mais sensível do braço. Dentro do aparelho, motores zumbiam, líquidos escoavam. A luz azul lá em cima ficou vermelha e o disco de infusão fez cócega, zumbiu e picou o braço. Depois a luz passou a azul outra vez.
Mais tarde, no mesmo dia, no pátio de recreio, Jesus DV, o garoto que falara nos incuráveis, procurou-o para agradecer- lhe.
— Agradeça a Uni — corrigiu Quem. — Recebi tratamento extra. Você também?
— Sim — disse Jesus. — Tal como os outros garotos e Beto UT. Foi ele quem tinha me contado.
— Fiquei meio assustado — disse Quem, — só de pensar nos membros que ficavam doentes e fugiam.
— Eu também — disse Jesus. — Mas isso não acontece mais. Faz muito, muito tempo.
— Hoje os tratamentos são melhores do que naquela época — disse Quem.
— E contamos com UniComp pra cuidar de nós em todos os recantos da Terra.
— Tem razão — disse Quem.
Chegou a instrutora e enxotou-os para um círculo que brincava de passar bola, círculo enorme, de cinquenta ou sessenta meninos e meninas separados a curta distância, ocupando quase a metade do agitado pátio de recreio.
2
Fora o avô que lhe dera o apelido de Quem. Chamava a família inteira por apelidos que nada tinham a ver com os nomes verdadeiros: sua filha, a mãe de Quem, era Suzu em vez de Ana. O pai de Quem era Miguel em vez de Jesus — e não gostou da ideia. Paz era Salgueirinha, que se recusava terminantemente a aceitar.
— Não: Não me chame assim! Meu nome é Paz! Paz KD37T5002!
Papai Jan era bizarro. De aspecto, naturalmente. Todo avô tem alguns centímetros a mais ou a menos, orelhas enormes, nariz adunco. Papai Jan era, simultaneamente, mais alto e moreno que o normal, com olhos grandes, salientes, e duas mechas ruivas na cabeleira grisalha. Mas não era diferente só no aspeto — na maneira de falar também. Isso é o que tinha realmente de estranho. Andava sempre dizendo coisas de modo veemente e entusiástico, e no entanto causava em Quem a nítida sensação de pensar exatamente o oposto do que afirmava. Na questão de nomes por exemplo.
Ótimo! Formidável! — Dizia. — Quatro nomes para meninos e quatro para meninas! Assim acabam-se os problemas, fica tudo parecido! De um jeito ou doutro, todo mundo chamaria os filhos de Cristo, Marx, Wood ou Wei, não é mesmo?
— É — concordou Quem.
— Evidente! — continuou Papai Jan. — E se Uni dá quatro nomes para meninos, também tem de dar quatro para meninas, certo? É óbvio! Escute.
Deteve Quem e, agachando-se, encarou-o bem de frente, os olhos salientes e irrequietos, como se fosse soltar uma risada. Era feriado e os dois iam assistir à parada do Dia da Unificação, do Aniversário de Wei, ou seja lá o que fosse. Quem tinha sete anos.
— Escute, Li RM35M26J449988WXYZ — troçou Papai Jan. — Olhe, vou-lhe contar uma coisa fantástica, incrível. No meu tempo... está ouvindo?... no meu tempo havia mais de vinte nomes diferentes só para meninos! Você é capaz de acreditar? Pelo Amor da Família, é a pura verdade. Havia Jan, João Amu e Lev. Niga e Miguel! Tônio! E no tempo de meu pai eram ainda mais numerosos, quarenta ou cinquenta, talvez! Não é ridículo? Pra que tantos nomes diferentes se os próprios membros são exatamente iguais e permutáveis? Já ouviu falar em coisa mais besta?
E Quem, confuso, acenou com a cabeça, sentindo que Papai Jan queria dizer o contrário; que de certo modo não era besta nem ridículo haver quarenta ou cinquenta nomes diferentes só para meninos.
— Espie só! — disse Papai Jan, tomando-o pela mão e seguindo adiante pelo Parque da Unidade até a parada do Aniversário de Wei. — Exatamente iguais! Não é formidável? Cabelos, olhos, pele, corpo, tudo idêntico. Meninos e meninas, uns iguais aos outros. Que nem ervilha em vagem. Que ótimo, hem? Uma positiva maravilha.
Com aquele olho verde, nada igual aos outros, Quem corou.
— Que quer dizer “ervilha-em-vagem”? — perguntou.
— Sei lá — respondeu Papai Jan. — Coisas que os membros comiam antigamente, antes dos bolos integrais. Sharya vivia falando nisso.
Papai Jan era superintendente de construções em EUR55131, a vinte quilômetros de ’55128, onde Quem morava com a família. Vinha de carro visitá-los nos domingos e feriados. Sharya, a esposa, morrera afogada no naufrágio de um navio de turismo em 135, no mesmo ano do nascimento de Quem. E ele não tornara a casar.
Os outros avós de Quem, a mãe e o pai de seu pai, viviam em MEX10405 e a única vez que os via era quando telefonavam nas datas de aniversário. Também eram bizarros. Mas não tanto como Papai Jan.
Gostava da escola, dos jogos. E do Museu da Pré-U, embora certas peças do mostruário fossem um pouco assustadoras — as “espadas” e as “pistolas”, por exemplo, e a “cela de prisão”, com seu “sentenciado” de roupa listrada, sentado imóvel no catre com a cabeça entre as mãos, em eterno desconsolo. Quem sempre olhava para ele — nem que tivesse de escapulir do resto dos colegas para isso — e depois saía correndo.
Gostava também de sorvete, brinquedos e livros de histórias. Uma vez, ao encostar a pulseira e o rótulo de um brinquedo no controle de um centro de fornecimento, o mostrador piscou um não vermelho e ele teve de pôr o brinquedo, um jogo de construção, na caixa de devolução. Não podia compreender o motivo da recusa de Uni. O dia era apropriado e o brinquedo pertencia à categoria certa.
— Deve haver uma razão, meu bem — disse-lhe o membro parado atrás dele. — Procura teu conselheiro e pergunta.
Ele foi procurar e descobriu que o brinquedo lhe estava sendo retirado apenas por alguns dias, não tinha sido negado por completo. Andara bulindo com um controle qualquer, encostando a pulseira nele uma porção de vezes, e agora aprendia que isso não se faz. Aquele não vermelho intermitente era o primeiro que recebia em sua vida para um pedido que lhe interessava e não apenas por ter entrado na sala de aula errada ou chegado ao centro médico em dia que não estava marcado. Ficou magoado e triste.
Gostava de aniversários, do Nascimento de Cristo, do Nascimento de Marx, do Dia da Unificação e dos Aniversários de Wood e Wei. E ainda mais, por serem esporádicos, dos dias-dos- aros. Cada aro novo brilhava mais que os anteriores e continuava brilhando durante muito tempo, até que um belo dia lembrava-se de olhar e constatava que só tinha aros velhos, todos iguais e indiferenciáveis. Que nem ervilha-em-vagem.
Na primavera de 145, quando tinha dez anos, Quem ganhou, junto com os pais e Paz, uma viagem a EUR00001 para ver o UniComp. O percurso de um carroporto a outro levava mais de uma hora. Era a viagem mais comprida que se lembrava de ter feito, embora, segundo os pais, tivesse voado de Mex a Eur com um ano e meio, e de EUR20140 a ’55128 poucos meses depois. A excursão ao UniComp foi num domingo de abril, em companhia de um casal já cinquentão (bizarros avós de alguém, ambos mais claros que o normal, ela com o cabelo cortado de modo irregular) e de outra família, cujos filhos eram um ano mais velhos que Quem e Paz. O outro pai guiou o carro desde o desvio de EUR00001 até o carroporto nas proximidades do UniComp. Quem assistiu com interesse ao homem manobrar a alavanca e os botões do carro. Sentiu uma impressão engraçada ao andar novamente devagar sobre rodas depois de deslizar pelos ares.
Tiraram fotografias defronte à cúpula de mármore branco do UniComp — mais branca e bonita do que nos filmes e na televisão, assim como as montanhas cobertas de neve ao fundo eram mais majestosas, o Lago de Fraternidade Universal mais azul e mais vasto — e depois entraram na fila, encostaram as pulseiras no controle de ingresso e chegaram ao curvo saguão azul e branco. Sorridente, um membro de azul claro indicou-lhe a fila do elevador. Entraram nela, e Papai Jan aproximou-se, deliciado com a surpresa da Família.
— O que é que o senhor está fazendo aqui? — perguntou o pai de Quem enquanto Papai Jan beijava a mãe.
Tinham-lhe anunciado a viagem concedida e ele não fizera a menor menção de ter feito o mesmo pedido.
Papai Jan beijou o pai de Quem.
— Ah, eu simplesmente resolvi fazer uma surpresa pra vocês, mais nada — explicou. — Queria contar pra este meu amigo aqui — pousou a mão grande no ombro do neto — um pouco mais a respeito de Uni do que os fones contam. Como vai, Quem?
Abaixou-se e beijou o rosto do neto que, assombrado de ser a causa da presença de Papai Jan, retribuiu o beijo.
— Olá, Papai Jan.
— Como vai, Paz KD37T5002? — saudou Papai Jan muito sério, beijando a garota.
Ela deu-lhe um beijo e disse olá.
— Quando foi que o senhor pediu a viagem? — perguntou o pai.
— Poucos dias, antes de vocês — respondeu Papai Jan, sempre com a mão pousada no ombro de Quem.
A fila adiantou-se alguns metros e eles todos seguiram-na.
— Mas o senhor esteve aqui há apenas cinco ou seis anos, não foi? — comentou a mãe.
— Uni sabe quem o montou — disse Papai Jan, sorridente.
— Nós gozamos de regalias especiais.
— Não é verdade — retrucou o pai. — Ninguém goza de regalias especiais.
— Bom, seja como for, cá estou eu — disse Papai Jan, voltando o sorriso para o neto. — Não é?
— É — concordou Quem, sorrindo para o avô.
Papai Jan, quando moço, ajudara na montagem do UniComp. Tinha sido o seu primeiro serviço.
No elevador cabiam cerca de trinta membros e em vez de música havia uma voz masculina — “Bom dia, irmãos e irmãs. Bem-vindos à sede do UniComp” — voz afável, amiga, que Quem conhecia da televisão. — “Como vêem, o elevador já partiu” — disse, — “e agora estamos descendo à velocidade de vinte e dois metros por segundo. Dentro de pouco mais de três minutos e meio atingiremos a profundidade de cinco quilômetros, onde se encontra o Uni.” Depois forneceu estatísticas sobre as dimensões do abrigo do UniComp e a espessura das paredes, declarando-o infenso a quaisquer distúrbios naturais ou provocados pelo homem. Quem tinha ouvido essa informação anteriormente, no colégio e na televisão, mas agora, ao entrar naquele abrigo, ao atravessar aquelas paredes, prestes a ver o UniComp, transformava-se numa sensação inédita e empolgante. Escutou com a máxima atenção, de olho fixo no orifício por onde saía a voz do locutor, acima da porta do elevador. A mão de Papai Jan continuava apoiada em seu ombro, como se quisesse contê-lo. — “Chegamos” — anunciou a voz. — “Aproveitem a visita, sim?” O elevador pousou delicadamente no fundo do poço. A porta se abriu de par em par.
Noutro saguão, menor que o do andar térreo, havia outro membro sorridente, de túnica azul claro e outra fila, essa dupla, estendendo-se até a frente de uma porta que comunicava com um vestíbulo mal iluminado.
— Estamos aqui! — gritou Quem.
— Não é preciso que todo mundo fique junto — retrucou Papai Jan.
Tinham-se afastado dos pais de Quem e Paz, que se achavam bem mais adiantados na fila e viravam-se para ambos com um olhar interrogativo — isto é, os pais; Paz era pequena demais pra que pudessem vê-la. O membro que precedia Quem voltou-se para ele e ofereceu-se para ceder-lhes o lugar, mas Papai Jan disse:
— Não, tanto faz. Obrigado, irmão.
Acenou com a mão para os pais de Quem e sorriu. O garoto fez o mesmo. Os pais também sorriram, depois viraram-se e seguiram a fila.
Papai Jan olhou ao redor, os olhos salientes brilhando, o sorriso ainda nos lábios. Palpitava as narinas ao respirar.
— Com que então você vai finalmente ver o UniComp. Está vibrando?
— E como! — respondeu Quem.
A fila prosseguiu.
— Não é pra menos — disse Papai Jan. — Que maravilha! Uma experiência única na vida. Ver a máquina que há de te classificar, determinar o que você fará no futuro, decidir o lugar da tua moradia e se você vai casar ou não com a moça de quem gosta. E se casar, se terá filhos ou não, os nomes que eles vão receber, se porventura nascerem... Claro que você tem de estar vibrando. Qualquer um estaria.
Quem olhou apreensivo para o avô.
Sempre sorridente, Papai Jan bateu-lhe nas costas ao chegar a sua vez de entrar no vestíbulo.
— Ande logo — disse. — Vá olhar o mostruário, veja o Uni, olhe tudo! Está tudo aí pra você ver. Olhe bem!
Ele deparou com uma prateleira cheia de fones, como num museu. Tirou um par e colocou nos ouvidos. O estranho procedimento de Papai Jan o intimidava e arrependia-se de não ter seguido os pais e Paz. Papai Jan apanhou outro par.
— Que novidades interessantes será que vou escutar? — comentou, rindo sozinho.
Quem virou-lhe as costas.
O nervosismo e a sensação de desassossego se dissiparam por completo ao enfrentar uma parede que cintilava e ondulava com mil mini lâmpadas faiscantes. A voz do elevador, através dos fones, descrevia com o auxílio das luzes o modo do UniComp receber, por sua cadeia de retransmissão do mundo inteiro, os impulsos de microondas dos inúmeros controles, telecomputadores e dispositivos telecontrolados — como ele computava esses impulsos, suprimindo respostas à cadeia de retransmissão e às fontes de consulta.
Lógico que estava vibrando. Podia haver algo mais rápido, mais inteligente, mais ubíquo do que Uni?
A próxima extensão da parede mostrava o funcionamento das comportas de memória: um raio de luz incidia sobre uma placa metálica entrelaçada, iluminando-lhe certas partes, enquanto outras permaneciam no escuro. A voz mencionou raios eletrônicos e circuitos supercondutores, setores carregados e descarregados, que se tornavam portadores dos sins-ou-nãos dos diferentes componentes de informação. Segundo a voz, o UniComp selecionava os componentes relevantes de cada pergunta que lhe era dirigida...
Ele não compreendia nada, o que só servia para tomar mais maravilhoso o fato de que Uni conhecesse tudo o que era possível conhecer e de modo tão miraculoso, tão in-compreensível!
A extensão seguinte da parede era toda de vidro. E lá estava o UniComp: uma carreira dupla de volumes metálicos de diversas cores, semelhantes a aparelhos de tratamento, porém mais baixos e menores, uns cor-de-rosa, outros marrons ou alaranjados. E no meio deles, na ampla sala delicadamente iluminada, dez ou doze membros de túnica azul claro sorriam e conversavam entre si enquanto verificavam medidores e indicadores dos trinta e tantos aparelhos, anotando os resultados em pranchas revestidas de plástico azul claro. Ao fundo, penduradas à parede, viam-se uma cruz e uma foice de ouro, ao lado de um relógio que marcava 11,08 Dom 12 de Abril 145 A.U. Quem começou a ouvir música, cada vez mais forte: Para o Alto, para o A, tocada por enorme orquestra, de modo tão comovente e majestoso, que encheu os olhos de lágrimas de orgulho e felicidade.
Poderia ficar ali horas a fio, observando a atividade daqueles membros alegres e aquelas comportas de memória que brilhavam de maneira tão impressionante, a escutar Para o Alto, para o Alto e depois Uma Forte Família. Mas a música foi diminuindo de volume (quando 11h10m passou a 11h11m) e a voz, decerto cônscia do que ele estava sentindo, lembrou-lhe delicadamente que outros membros também esperavam sua vez, pedindo-lhe que fizesse o favor de se encaminhar ao próximo mostruário, no fundo do corredor. Virou-se relutante da parede envidraçada do UniComp, junto com outros membros que choravam pelo canto dos olhos, sorrindo e sacudindo a cabeça. Sorriu-lhes e eles retribuíram.
Papai Jan tomou-o pelo braço e puxou-o para o lado oposto do vestíbulo, perto de uma porta onde havia um controle.
— Como é, gostou? — perguntou-lhe.
Quem mostrou que sim.
— Aquilo não é o Uni — disse Papai Jan.
Quem olhou para ele.
Papai Jan tirou-lhe os fones dos ouvidos.
— Aquilo não é o Uni! — repetiu, cochichando com veemência. — Essas caixas cor-de-rosa e laranja que estão lá dentro não são verdadeiras! São de brinquedo, para a Família vir ver e sentir-se reconfortada!
Aproximou os olhos esbugalhados: partículas de saliva borrifaram o nariz e o rosto de Quem.
— Ele está lá embaixo! — disse. — Há três andares abaixo deste, e é lá que ele está! Você quer ver? Quer ver o verdadeiro UniComp?
Quem, sem saber que atitude tomar, ficou olhando para ele.
— Você quer, Quem? — perguntou Papai Jan. — Quer ver? Eu posso mostrar-lhe.
Quem concordou com a cabeça.
Papai Jan soltou-lhe o braço e endireitou o corpo. Olhou ao redor e sorriu.
— Muito bem — disse. — Vamos por aqui.
E pegando o neto pelo ombro, encaminhou-o de volta pelo mesmo percurso por onde tinham vindo, passando pela parede envidraçada, cheia de membros curiosos, pelo raio de luz cintilante das comportas de memória e pelas carreiras ondulantes de mini lâmpadas — “com licença por favor” — e pela fila de membros recém-chegados, até atingir outra parte inferior do saguão, mais escura e vazia, onde um telecomputador descomunal jazia abandonado, arrancado do mostruário da parede, e duas padiolas azuis se achavam lado a lado, sob uma pilha de travesseiros e cobertores.
Havia uma porta no canto, com controle, mas ao se aproximarem dela Papai Jan fez Quem baixar o braço.
— O controle — explicou Quem.
— Não — disse Papai Jan.
— Não é aqui que a gente tem de...
— É.
Quem olhou para Papai Jan, que se limitou a empurrá-lo para diante, depois de abrir a porta e obrigá-lo a entrar primeiro, passando logo em seguida, enquanto a porta se fechava lentamente com um chiado.
Todo trêmulo, Quem fitou o avô.
— Não precisa ter medo — disse Papai Jan com rispidez. Depois, já afável, pegou a cabeça do neto entre as mãos e repetiu:
— Não precisa ter medo. Não vai lhe acontecer nada. Já fiz isso uma porção de vezes.
— Nós não pedimos — protestou Quem, ainda trêmulo.
— Não faz mal — afirmou Papai Jan. — Olhe: a quem pertence o UniComp?
— Pertence?
— De quem ele é? Ele é o computador de quem?
— De... toda a Família.
— E você é membro da Família, não é?
— Sou...
— Pois então. Ele também lhe pertence, não é? Pertence a você, e não vice-versa. Não é você que pertence a ele.
— Não, nós temos que pedir as coisas! — disse Quem.
— Quem, por favor, confie em mim — insistiu Papai Jan. — Nós não vamos tirar nada, nem tocar em alguma coisa. Vamos apenas olhar. Foi por isso que eu vim cá hoje, pra lhe mostrar o verdadeiro UniComp. Você não quer vê-lo, não?
— Quero — admitiu Quem, após leve hesitação.
— Então não fique preocupado. Não precisa ter medo.
Papai Jan olhou-o bem nos olhos para tranquilizá-lo. Depois soltou-lhe a cabeça e tomou-o pela mão.
Estavam num patamar, diante de uma escada. Desceram quatro ou cinco lances de degraus — o frio aumentando cada vez mais — até que Papai Jan parou e deteve Quem.
— Espere aqui — mandou. — Eu já volto. Não vá embora.
Quem ficou olhando Papai Jan subir outra vez ao patamar, abrir a porta, espiar, e depois sair às pressas. A porta voltou a fechar-se.
Quem começou a tremer novamente. Tinha passado por um controle sem tocar a pulseira e agora achava-se sozinho numa escada silenciosa e fria — sem que Uni soubesse onde ele estava!
A porta tornou a se abrir e Papai Jan apareceu com cobertores azuis.
— Faz muito frio — explicou.
Enrolados nos cobertores, caminharam lado a lado por um corredor inclinado que mal permitia a passagem dos dois entre paredes de aço que se estendiam à sua frente, convergindo para uma parede transversal ao longe, e que se erguiam a meio metro de distância do teto de uma alvura cintilante. Não eram propriamente paredes, mas uma série de gigantescos blocos de aço enfileirados, embaciados de frio e numerados à altura dos olhos por algarismos pretos estampados em baixo relevo: H46, H48 de um lado, H49, H51 do outro. O corredor tinha vinte ou mais ramificações: estreitas fendas paralelas abertas entre séries de blocos metálicos de ponta a ponta, interrompidas regularmente pelas fendas entrecruzadas de quatro corredores transversais ligeiramente mais largos.
Caminharam pelo corredor expelindo o bafo de respiração pelas narinas, deixando às suas pegadas manchas efêmeras como sombras. Os ruídos que faziam — o farfalhar das túnicas de paplão, a batida da sola das sandálias — era o único som que se escutava, reproduzido pelo eco.
— É então? — perguntou Papai Jan, fitando Quem.
Quem apertou mais o cobertor em torno do corpo.
— Não é tão bom como lá em cima — respondeu.
— De fato. Aqui embaixo não há membros moços e bonitos, de lápis e prancha na mão. Nem lâmpadas quentes ou amáveis máquinas cor-de-rosa. Aqui embaixo está tudo sempre vazio, ano após ano. Vazio, gélido e triste. Horrível.
Estacaram no cruzamento de dois corredores. Fendas de aço estendiam-se a perder de vista numa e noutra direção, numa terceira e numa quarta. Papai Jan sacudiu a cabeça e fez uma carranca.
— Está tudo errado — disse. — Não me pergunte como nem por que, mas está. Planos mortos, feitos por membros mortos. Ideias mortas, decisões mortas.
— Por que faz tanto frio assim? — indagou Quem, olhando o bafo da respiração do avô.
— Porque está tudo morto — respondeu Papai Jan, sacudindo logo a cabeça. — Não, eu não sei — continuou, — Eles só funcionam com um frio de rachar. Não sei. Tudo o que eu sabia era que tinha de colocar as coisas em seus devidos lugares sem estragar nada.
Percorreram juntos outro corredor: R20, R22, R24.
— Quantos são ao todo? — perguntou Quem.
— Mil duzentos e quarenta neste andar, mil duzentos e quarenta no inferior. E isso só por enquanto. Há o dobro de espaço reservado, à espera, atrás daquela parede do lado leste, pra quando a Família aumentar. Outros poços de elevador, outro sistema de ventilação já no lugar...
Desceram ao pavimento inferior, quase idêntico ao de cima. A única diferença eram as colunas de aço em dois cruzamentos e os algarismos vermelhos, e não pretos, das comportas de memória. Passaram por J65, J63, J61.
— A maior escavação aberta até hoje — anunciou Papai Jan. — A maior obra de todos os tempos: montar um computador que tornasse obsoletos os cinco antigos. Quando eu tinha a sua idade, todas as noites havia noticiário a respeito. Calculei que, ao chegar aos vinte anos não seria tarde demais para ajudar, desde que obtivesse a classificação necessária. Então pedi.
— O senhor pediu?
— Exato — afirmou Papai Jan, sorrindo e acenando afirmativamente com a cabeça. — Na época foi um fato inédito. Pedi à minha conselheira pra que ela consultasse Uni... só que não era Uni, era EuroComp... seja como for, eu pedi a ela. Ela consultou e, por Cristo, Marx, Wood e Wei, consegui... 042C: operário de construção, terceira classe. E me destacaram logo pra cá — olhou em torno, ainda sorrindo, com o olhar iluminado. — Pretendiam trazer estes volumes aqui pra baixo, um a um, pelos elevadores — disse, e riu. — Passei uma noite inteira acordado e calculei que o trabalho poderia ser feito com oito meses a menos que abríssemos um túnel pelo outro lado do Monte Amor — indicou com o polegar por cima do ombro — e os trouxéssemos em cima de rodas. EuroComp não tinha pensado nessa solução tão simples. Ou talvez não estivesse com muita pressa de arquivar sua memória para sempre!
E deu outra risada. Quando terminou de rir, Quem, que o observava, notou pela primeira vez que já estava com o cabelo inteiramente grisalho. As mechas ruivas de alguns anos atrás haviam desaparecido por completo.
— E cá estão eles — prosseguiu, — todos nos respectivos lugares, graças ao meu túnel, e funcionando há oito meses a mais do que estariam se tivessem preferido a ideia anterior.
À medida que avançavam, contemplava as comportas como se lhe causassem asco.
— O senhor... não gosta do UniComp? — perguntou Quem.
Papai Jan ficou um instante calado.
— Não, não gosto — respondeu, pigarreando. — Não dá pra discutir com ele, não se pode explicar nada pra ele...
— Mas ele sabe tudo — estranhou Quem. — O que é que há pra explicar ou discutir?
Separaram-se para passar por uma coluna quadrada de aço e depois continuaram lado a lado.
— Sei lá — disse Papai Jan. — Não sei.
Prosseguiu andando, de cabeça baixa, testa franzida, enrolado no cobertor.
— Escute — perguntou, — existe alguma qualificação que você queira mais que qualquer outra? Algum serviço para o qual se sinta especialmente talhado?
Vacilante, Quem olhou para Papai Jan e encolheu os ombros.
— Não — respondeu. — Eu quero a que me couber, a que estiver certa pra mim. E os serviços que me indicarem, que a Família precisar que eu faça. De qualquer maneira, só existe um mesmo: ajudar a espalhar...
— Ajudar a espalhar a Família por todo o universo. Eu sei. Por todo o universo unificado pelo UniComp. Venha — disse, — vamos voltar lá pra cima. Não aguento mais este frio filho-da-luta.
Quem encabulou.
— Não tem outro pavimento? — perguntou. — O senhor disse que...
— Não dá — respondeu Papai Jan. — Lá existem controles e membros por tudo quanto é canto. Veriam logo que não encostamos as pulseiras e correriam a nos “ajudar”. Seja como for, não há nada de especial pra ver: o equipamento de recepção e transmissão e as usinas de refrigeração.
Dirigiram-se à escada. Quem sentiu-se decepcionado. Papai Jan se aborrecera com ele por algum motivo e, o que era pior, não procedera direito, querendo discutir com Uni, não encostando a pulseira no controle e falando palavrão.
— O senhor devia consultar seu conselheiro — disse, ao começarem a subir os degraus. — A respeito de querer discutir com Uni.
— Eu não quero discutir com Uni — retrucou Papai Jan.
— Quero apenas estar em posição de discutir com ele se me der vontade.
Quem não conseguia entender de jeito nenhum.
— Em todo caso, o senhor devia falar. Talvez recebesse tratamento extra.
— No mínimo receberia — disse Papai Jan e, depois de uma pausa: — Está bem. Falarei.
— Uni sabe tudo o que há pra saber — afirmou Quem.
Completando o segundo lance de escada, pararam no patamar externo do saguão de mostruário e dobraram os cobertores. Papai Jan ficou pronto antes e observou Quem terminando de dobrar o dele.
— Pronto — disse Quem, batendo de leve na trouxa contra o peito.
— Sabe por que lhe botei o apelido de Quem?
— Não.
— Há um velho ditado: “Quem sai aos seus não degenera”. Significa que o filho sempre sai aos pais ou aos avós.
— Ah.
— Eu não quis dizer que você tivesse saído a seu pai ou mesmo a mim — explicou Papai Jan, — mas que tinha saído ao meu avô. Por causa do seu olho. Ele também tinha um que era verde.
Quem mudou de posição, louco para que Papai Jan parasse de falar e pudessem voltar para onde deviam.
— Sei que você não gosta de tocar nesse assunto — continuou Papai Jan, — mas não tem do que se envergonhar. Ser um pouco diferente dos outros não é tão terrível assim. Você não imagina como antigamente os membros eram diferentes entre si. O seu tataravô foi homem de grande coragem e capacidade. Chamava-se Hanno Rybeck... naquele tempo o nome e os números vinham separados... e ele foi um cosmonauta que ajudou a construir a primeira colônia em Marte. Portanto não se envergonhe de ter herdado o olho dele. Hoje em dia combatem os genes, desculpe a expressão, mas é bem capaz que tenham deixado escapar alguns dos teus. Talvez você tenha herdado mais do que um olho verde. Talvez tenha herdado também um pouco da bravura e da capacidade de meu avô.
Ia abrir a porta mas virou-se para olhar novamente o neto.
— Trate de querer alguma coisa, Quem — aconselhou.
— Experimente um ou dois dias antes do teu próximo tratamento. E quando é mais fácil. Querer coisas, preocupar-se com elas...
Ao sair do elevador para o saguão do andar térreo, encontraram os pais e Paz à sua espera.
— Onde vocês andavam? — perguntou o pai.
— Estamos esperando há horas! — reclamou Paz, empunhando uma miniatura alaranjada de comporta de memória (imitação, naturalmente).
— Fomos olhar o Uni — explicou Papai Jan.
— Esse tempo todo? — estranhou o pai de Quem.
— Exato.
— Mas vocês deviam seguir a fila e deixar lugar para os outros membros.
— Você talvez, Miguel — retrucou Papai Jan com um sorriso. — Os meus fones me disseram: “Jan, amigo velho, que prazer revê-lo! Você e o seu neto podem ficar olhando o tempo que quiserem!”
Sem sorrir, o pai de Quem virou-lhe as costas.
Dirigiram-se à cantina, onde pediram bolos e refrigerantes — menos Papai Jan, que não tinha fome — e levaram tudo para o recanto de piqueniques, atrás da cúpula. Papai Jan apontou para o Monte Amor, contando mais coisas sobre a abertura do túnel para Quem, que muito surpreenderam o pai do garoto — um túnel para trazer trinta e seis comportas de memória de tamanho regular. Papai Jan então explicou que havia ainda mais comportas num andar inferior, porém não disse quantas nem de que tamanho eram, ou se estavam muito frias e tristes. Quem tampouco. Sentiu uma sensação estranha ao perceber que havia algo que ele e o avô sabiam e não queriam partilhar com ninguém. Tomava-os diferentes dos outros e idênticos entre si — peio menos até certo ponto...
Ao terminar o almoço, rumaram para o carroporto e entraram na fila de pedidos. Papai Jan permaneceu junto até aproximarem-se dos controles. Depois foi embora, explicando que ia esperar para voltar para casa em companhia de dois amigos de Curva-do-Rio que haviam ficado de visitar Uni no fim da tarde. “Curva-do-Rio” era o apelido que pusera em ’55131, onde morava.
Na primeira ocasião em que encontrou Beto NE, seu conselheiro, Quem falou de Papai Jan: que não gostava de Um e queria discutir e explicar coisas a ele.
— Isso às vezes acontece com membros da idade do seu avô — comentou Beto, sorrindo. — Não há motivo pra preocupações, Li.
— Mas não daria pra você falar com Uni? — perguntou Quem. — Talvez ele pudesse receber tratamento extra, ou outro mais forte.
— Li — disse Beto, debruçando-se à escrivaninha, — os diferentes produtos químicos que recebemos em nossos tratamentos são muito preciosos e difíceis de fabricar. Se os membros mais idosos recebessem toda a quantidade que às vezes precisam, não sobraria bastante para os jovens, que são realmente mais importantes pra Família. E para fabricar em quantidade suficiente que atendesse a todos, teríamos talvez que descuidar de serviços mais vitais. Uni sabe o que tem de ser feito, o estoque que existe de tudo e as necessidades de cada um de nós. Seu avô é apenas um pouco excêntrico, como também seremos depois de completar cinquenta anos.
— Ele usa aquele palavrão — disse Quem: — Filho- da-l...a.
— Os membros idosos às vezes também ficam desbocados — explicou Beto. — Mas falam por falar. As palavras, em si, não são feias. As ações que os chamados palavrões representam é que são obscenas. Membros que nem o teu avô usam só as palavras, não as ações. Não fica muito bonito, mas não é caso de doença. E quanto a você? Algum problema? Vamos deixar por enquanto o teu avô pro conselheiro dele.
— Não, nenhum problema — respondeu Quem, lembrando-se que passara por um controle sem encostar a pulseira e que estivera onde Uni não tinha dado permissão para ir e que agora não queria contar nada a Beto. — De espécie alguma — afirmou. — Vai tudo às mil maravilhas.
— Muito bem — disse Beto. — Encoste a pulseira. Então até sexta, ’tá bom?
Mais -ou menos uma semana depois, Papai Jan foi transferido para USA60607. Quem, junto com os pais e Paz, foi ao aeroporto de EUR55130 despedir-se do avô.
Na sala de espera, enquanto os pais e Paz espiavam pela vidraça o embarque de membros no avião, Papai Jan puxou Quem para o lado e ficou olhando-o com um sorriso afetuoso.
— Quem do olho verde — disse (Quem franziu a testa, mas logo procurou disfarçar) — foi você quem pediu tratamento extra pra mim, não foi?
— Foi. Como é que o senhor soube?
— Ah, eu adivinhei, mais nada — respondeu Papai Jan. — Cuide-se bem, Quem. Lembre a quem você saiu e o que eu falei sobre tratar de querer algo.
— Vou lembrar.
— Os últimos já estão entrando — avisou o pai de Quem.
Papai Jan despediu-se de todos com beijos e reuniu-se aos membros na fila. Quem aproximou-se da vidraça e ficou olhando. Viu Papai Jan caminhar fá fora na escuridão cada vez maior, em direção ao avião: aquela silhueta extraordinariamente alta levando pela mão, na ponta do braço comprido e fino, a sacola de viagem. Ao pé da escada-rolante ele se voltou e acenou — Quem fez o mesmo, esperando que Papai Jan pudesse enxergá-lo — depois virou as costas de novo e encostou no controle o pulso da mão que segurava a sacola. A resposta verde cintilou no crepúsculo, ao longe, ele pisou na escada-rolante e foi levado suavemente para cima.
No carro, durante o regresso, Quem permaneceu calado, imaginando a falta que ia sentir de Papai Jan e de suas visitas aos domingos e feriados. Que estranho. Ele era um membro idoso tão bizarro e diferente. Mas de repente percebeu que era justamente por causa disso que sentiria a sua falta. Por ele ser bizarro e diferente. Porque ninguém podia substituí-lo.
— Que foi que houve, Quem? — perguntou a mãe.
— Vou sentir saudade de Papai Jan — respondeu.
— Eu também — disse ela, — mas de vez em quando poderemos vê-lo pelo Videofone.
— Ainda bem que ele foi-se embora — disse o pai de Quem.
— Eu não queria que ele fosse — retrucou o garoto.
— Eu queria que ele fosse transferido de volta pra cá.
— É pouco provável que ele seja — disse o pai, — e ainda bem. Era uma péssima influência pra você.
— Miguel — censurou a mãe.
— Já vem você com essa bobagem — replicou o pai de Quem. — Meu nome é Jesus, e o dele é Li,
E o meu é Paz — disse Paz.