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ESTE MUNDO PERFEITO / Iran Levin
3
Quem lembrou-se do conselho de Papai Jan e nas semanas seguintes pensou frequentemente em querer algo, querer fazer alguma coisa, tal como Papai Jan aos dez anos queria ajudar na montagem de Uni. Ficava deitado na cama sem dormir, mais ou menos uma hora por noite, examinando os vários serviços que existiam, todas as diferentes classificações que conhecia: superintendente de construções como Papai Jan, técnico de laboratório como o pai, plasmafísico como a mãe, fotógrafo como um amigo do pai — médico, conselheiro, dentista, cosmonauta, ator, músico. Tudo parecia equivaler-se. Mas para que pudesse querer de fato, precisava escolher. Sentia-se insignificante e, no entanto, também importante, as duas coisas ao mesmo tempo.
Uma noite achou que talvez fosse interessante projetar grandes edifícios, que nem os pequenos que costumava construir com um jogo que ganhara muitos anos atrás (o não piscando vermelho no Uni). A ideia lhe veio na véspera de um tratamento, ocasião que segundo Papai Jan oferecia ótima oportunidade para querer coisas. Na noite seguinte, ser desenhista de grandes edifícios em nada se diferenciava de qualquer outra ocupação. Para dizer a verdade, a ideia toda de querer uma determinada classificação parecia boba e Pré-U naquela noite, e logo pegou no sono.
Na véspera do próximo tratamento, pensou novamente em projetar grandes edifícios — edifícios de tudo quanto era espécie de formato, não só dos três permitidos — e pôs-se a imaginar por que motivo o interesse pela ideia desaparecera no mês anterior. Os tratamentos se destinavam a prevenir doenças, acalmar membros que andassem tensos, impedir as mulheres de terem filhos em demasia e os homens de crescer barba no rosto. Por que haveriam de fazê-lo perder interesse por uma ideia interessante? Mas foi exatamente o que fizeram, mês após mês, após mês.
Desconfiava de que pensar em ideias desse tipo talvez fosse uma modalidade de egoísmo. Mas se fosse, era uma modalidade tão insignificante — roubando apenas uma ou duas horas de sono e nunca de aula ou televisão — que não se deu ao trabalho de mencioná-la a Beto NE, assim como não mencionaria um nervosismo passageiro ou um sonho ocasional. Todas as semanas, quando Beto perguntava-lhe se tudo ia bem, respondia que sim: às mil maravilhas, sem problemas. Cuidou para não “pensar em querer” com excessiva frequência e por tempo longo demais, a fim de sempre dormir bastante. E de manhã, ao se lavar, examinava o rosto no espelho para verificar se continuava com boa aparência. Continuava — a não ser, naturalmente, em relação ao olho.
Em 146, Quem e sua família, junto com a maioria dos membros que moravam no mesmo prédio, foram transferidos para AFR71680. O edifício onde ficaram alojados era novo em folha, com corredores de tapetes verdes em vez de cinzentos, telas de televisão bem maiores e mobília toda estofada, embora não ajustável.
Tiveram de se habituar a muita coisa em ’71680. O clima era um pouco mais quente, as túnicas mais leves e menos coloridas. O monotrilho aéreo, velho e vagaroso, estragava tudo a toda hora. E os bolos integrais, embrulhados em papel laminado verde, tinham gosto de sal e não abriam o apetite.
A nova conselheira de Quem e sua família era Maria CZ14L8584. Embora um ano mais velha que a mãe de Quem, parecia bem mais moça.
Depois que Quem se acostumou a viver em ’71680 — a escola, ao menos, não era diferente — retomou seu passatempo de “pensar em querer”. Agora percebia diferenças consideráveis entre as classificações e começou a imaginar a que Uni lhe daria quando chegasse a ocasião. Uni, com seus dois pavimentos de gélidos blocos de aço, sua aridez vazia e retumbante... Pena que Papai Jan não lhe tivesse mostrado o andar no fundo, onde ficavam os membros. Seria bem mais agradável ser classificado por Uni e por alguns membros, em vez de só por Uni. Se por acaso recebesse uma classificação que lhe desagradasse e os membros houvessem tomado parte nela, talvez fosse possível explicar-lhes...
Papai Jan telefonava duas vezes por ano. Ele dizia que pedia outras, mas que só obtinha aquelas. Parecia mais velho, com um sorriso cansado. Uma parte de USA60607 estava sendo reconstruída e ele era o encarregado. Quem gostaria de dizer-lhe que estava procurando querer alguma coisa, mas não podia, com toda a família parada em frente da tela a seu lado. Uma vez, quando o chamado estava quase no fim, ele disse:
— Estou procurando.
Papai Jan então sorriu como antigamente e respondeu:
— Gostei de ver!
Quando terminou o chamado, o pai de Quem perguntou:
— Você está procurando o quê?
— Nada.
— Você deve ter-se referido a alguma coisa — insistiu o pai.
Quem encolheu os ombros.
Ao se encontrar com ele de novo, Maria CZ também quis saber.
— O que é que você quis dizer quando falou pro teu avô que estava procurando? — perguntou ela.
— Nada.
— Li — insistiu Maria, olhando-o com ar de censura. — Você disse que estava procurando. Procurando o quê?
— Procurando não sentir falta dele — explicou. — Quando ele foi transferido pra Usa eu disse que ia sentir saudade e ele me pediu pra procurar não sentir, que todos os membros se pareciam e que de qualquer maneira ele telefonaria sempre que pudesse.
— Ah — fez Maria, continuando a olhá-lo, agora meio insegura. — Por que você não explicou logo?
Quem encolheu os ombros.
— E você sente falta dele?
— Só um pouquinho. Estou procurando não sentir.
O sexo começou, e pensar nisso era ainda melhor do que querer alguma coisa. Embora lhe houvessem ensinado que os orgasmos eram extremamente agradáveis, ele não fazia a mínima ideia do prazer quase insuportável das sensações que se iam acumulando, do êxtase da ejaculação e da satisfação esgotada e incorpórea do momento posterior. Ninguém fazia a menor ideia. Seus próprios colegas de aula não tinham outro assunto e de bom grado se entregariam exclusivamente àquilo. Quem mal conseguia pensar em matemática, eletrônica e astronomia, e muito menos nas diferenças entre as classificações.
Depois de alguns meses, no entanto, todo mundo se acalmou e, já acostumados com o novo prazer, encararam a noite de sábado como uma rotina apropriada ao esquema semanal.
Uma noite de sábado, quando Quem contava quatorze anos, foi de bicicleta com um grupo de amigos a uma esplêndida praia branca a poucos quilômetros ao norte de AFR-71680. Lá todos nadaram — pulando, empurrando-se e jogando-se na espuma das ondas rosadas pela luz do sol poente — fizeram fogueira na areia, sentaram ao redor em cima de cobertores, comeram seus bolos, beberam seus refrigerantes e partiram cocos para saborear os pedaços doces e quebradiços. Um rapaz tocou músicas num gravador, não muito bem, e depois, quando o fogo se desfez em cinzas, o grupo separou-se em cinco casais, cada qual com o seu cobertor.
A garota de Quem era Ana VF, e depois do orgasmo mútuo — o melhor que ele já experimentara, ou pelo menos parecia — encheu-se de ternura por ela, e desejou que houvesse algo que pudesse dar-lhe como expressão desse sentimento, como a linda concha que Karl GG tinha dado a Yin AP, ou o gravador de música de Li OS, arrulhando baixinho agora para a garota com quem decerto estava deitado. Quem não tinha nada para oferecer a Ana; nem concha, nem música. Absolutamente nada, a não ser, talvez, seus pensamentos.
— Você não gostaria de pensar em alguma coisa interessante? — perguntou, deitado de costas, enlaçando-a com o braço.
— Hum, hum — respondeu ela, aninhando-se mais contra ele, a cabeça reclinada em seu ombro e o braço sobre seu peito.
Beijou-lhe a testa.
— Pense nas diversas classificações que existem... — disse.
— Hum, hum?
— E procure resolver a que você escolheria se tivesse de escolher uma.
— Escolher uma? — estranhou ela.
— Exatamente.
— O que é que você quer dizer?
— Escolher uma. Ter. Ser. Que classificação você prefere? Médica, engenheira, conselheira...
Ela apoiou a cabeça na mão e olhou-o de soslaio.
— O que é que você quer dizer?
Ele soltou um leve suspiro.
— Nós seremos classificados, não é?
— Sim.
— Suponhamos que não fossemos. Suponhamos que nós mesmos tivéssemos de nos classificar.
— Que asneira — disse ela, desenhando com o dedo em cima do peito dele.
— É uma ideia interessante.
— Vamos foder de novo — sugeriu ela.
— Espere aí. Pense só em todas as diversas classificações. Suponhamos que nós é que...
— Eu não quero — disse ela, parando de desenhar. — É asneira. E doentio. Nós somos classificados; não tem nada que pensar. Uni sabe o que a gente...
— Ah, Uni que se lute — retrucou Quem. — Faz de conta, só um minuto, que estivéssemos vivendo em...
Ana desvencilhou-se do abraço, deitando-se de bruços, completamente imóvel, a cabeça virada para o outro lado.
— Sinto muito — desculpou-se ele.
— Eu é que sinto — disse ela. — Por sua causa. Você está doente.
— Não estou, não — protestou.
Ela ficou calada.
Ele ergueu o corpo e olhou desesperado para aquelas costas rígidas.
— Falei sem querer — disse. — Desculpe-me.
Ela continuou calada.
— Foi só uma palavra, Ana.
— Você está doente.
— Ah, ódio — exclamou.
— Viu? Eu não disse?
— Ana, olhe. Esqueça isso. Esqueça tudo, ’tá bom? Simplesmente esqueça.
Tentou bolinar-lhe as coxas, mas ela apertou as pernas, impedindo a passagem da mão.
— Ah, Ana. Deixe disso, puxa. Eu pedi desculpa, não pedi? Venha cá, vamos foder de novo. Se você quiser, eu te chupo antes.
Depois de certo tempo, ela afrouxou as coxas e deixou-se bolinar.
Por fim virou-se de frente, soergueu-se e olhou-o nos olhos.
— Você está doente, Li? — perguntou.
— Não — respondeu, com riso forçado. — Claro que não estou.
— Jamais ouvi falar em coisa semelhante. “Nós mesmos nos classificarmos.” De que jeito? Como seria possível saber tanto assim?
— É apenas uma ideia que de vez em quando me ocorre — explicou. — Muito raro. Pra ser franco, praticamente nunca.
— Que ideia mais... engraçada. Parece... sei lá... Pré-U.
— Não vou pensar mais nisso — prometeu, de mão direita erguida. A pulseira deslizou pelo braço. — Pelo Amor da Família — jurou. — Agora vem. Deite aqui, que eu te chupo.
Ela deitou de costas no cobertor, com cara apreensiva.
No outro dia de manhã, às dez e cinco, Maria CZ telefonou-lhe pedindo que fosse falar com ela.
— Quando? — perguntou Quem.
— Agora.
— Está bem. Desço em seguida.
— Por que ela quer falar com você num domingo? — quis saber a mãe.
— Sei lá — respondeu Quem.
Mas sabia, sim. Ana VF tinha telefonado à conselheira dela.
Desceu as escadas-rolantes, sucessivamente, tentando adivinhar o que Ana teria contado e o que ele diria. De repente sentiu vontade de chorar e confessar a Maria que ele era doente, egoísta e mentiroso. Os membros que subiam as escadas-rolantes pareciam calmos, sorridentes, satisfeitos, em harmonia com a música alegre dos alto-falantes. Só ele sentia-se culpado e infeliz.
Os escritórios de conselho estavam estranhamente quietos. Os membros e os conselheiros confabulavam em alguns cubículos. Mas na maioria estavam vazios, com as escrivaninhas em ordem, as poltronas desocupadas. Num cubículo, um membro de túnica verde consertava o telefone com uma chave de fenda.
Trepada em cima da cadeira, Maria estendia uma tira de enfeite de Natal sobre a parte superior da moldura de Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Havia mais enfeites sobre a escrivaninha, um rolo vermelho e outro verde. O telecomputador de Maria estava aberto, com um recipiente de chá ao lado.
— Li? — perguntou, de costas. — Você veio depressa. Sente-se.
Quem sentou-se. Fileiras de símbolos verdes cintilavam na tela do telecomputador. O botão de respostas estava preso por um pesa-papéis, lembrança de RUS81655.
— Fique aí — disse Maria para a tira de enfeite.
Desceu para olhar. Tinha ficado.
Virou a cadeira de frente e sorriu para Quem, enquanto puxava-a para o seu lado e sentava-se. Olhou para a tela do telecomputador ao mesmo tempo que apanhava o recipiente de chá e bebia. Largou-o em cima da mesa, encarou Quem e sorriu.
— Um membro me disse que você precisa de auxílio. A moça que você fodeu ontem à noite. Ana — olhou a tela de relance — VF35H6143.
Quem sacudiu a cabeça.
— Eu falei uma palavra feia.
— Duas — corrigiu Maria. — Mas isso não tem maior importância. Pelo menos relativamente. O que importa são outras coisas que você disse. Por exemplo, resolver a classificação que você escolheria se não dispuséssemos do UniComp pra executar esse trabalho.
Quem desviou o olhar para os rolos vermelho e verde de tiras de Natal.
— Você pensa nisso muito seguido, Li? — perguntou Maria.
— Só de vez em quando — respondeu. — Na hora de folga ou de noite. Nunca na escola ou durante a televisão.
— De noite também conta — disse Maria. — Você devia estar dormindo.
— Quando foi que começou? — perguntou ela.
— Não sei. Há alguns anos. Em Eur.
— O seu avô... — insinuou.
Ele fez que sim com a cabeça.
Ela fitou a tela e depois Quem, pesarosa.
— Nunca lhe ocorreu que “resolver” e “escolher” são manifestações egoístas? Atos de egoísmo?
— Achei que talvez — disse Quem, contemplando a beira da escrivaninha, esfregando a ponta do dedo nela.
— Ah, Li — fez Maria. — Pra que que eu estou aqui? Pra que servem os conselheiros? Pra nos ajudar, não é mesmo?
Ele sacudiu a cabeça.
— Por que você não me falou? Ou pro seu conselheiro em Eur? Por que esperou tanto tempo, perdendo sono e preocupando essa Ana?
Quem encolheu os ombros, observando a ponta do dedo a esfregar a beira da escrivaninha, a unha suja.
— Era... interessante, por assim dizer.
— “Interessante, por assim dizer” — arremedou Maria.
— Talvez também fosse interessante, por assim dizer, pensar na espécie de confusão Pré-U que teríamos se realmente escolhêssemos as nossas classificações. Já pensou?
— Não.
— Pois então pense. Pense em cem milhões de membros resolvendo ser artistas de televisão, sem que nem um deles se resolvesse a trabalhar num crematório.
Quem ergueu os olhos para ela.
— Eu estou muito doente? — perguntou.
— Não — respondeu Maria, — mas talvez terminasse desse jeito se não fosse o auxílio de Ana. — Tirou o pesa-papéis de cima do botão de respostas do telecomputador e os símbolos verdes desapareceram da tela. — Encoste a pulseira.
Quem encostou a pulseira na placa do controle e Maria começou a bater nas teclas de recepção,
— Você recebeu centenas de testes desde o primeiro dia que foi para o colégio — disse ela, — e o UniComp sempre forneceu o resultado de cada um deles.
Seus dedos corriam pelas doze teclas pretas.
— Você teve centenas de entrevistas com conselheiros — continuou, — e o UniComp está a par de todas. Ele sabe quais são os serviços que devem ser feitos e quem está encarregado de fazê-los. Ele sabe de tudo. Ora, quem fará a melhor classificação, a mais eficiente: você ou o UniComp?
— O UniComp, Maria. Isso eu sei... Eu não queria mesmo fazer isso sozinho. Apenas... apenas fiquei pensando como seria se, mais nada.
Maria acabou de bater e apertou o botão de respostas. Os símbolos verdes apareceram na tela.
— Vá pra sala de tratamento — disse Maria.
Quem saltou em pé.
— Obrigado.
— Agradeça a Uni — corrigiu Maria, desligando o telecomputador.
Fechou a tampa e os ferrolhos com um estalido.
Quem hesitou.
— Eu vou ficar bom? — perguntou,
— Perfeito — prometeu Maria com um sorriso tranquilizador.
— Desculpe obrigá-la a vir num domingo — disse Quem.
— Não precisa se desculpar. Ao menos uma vez na vida vou aprontar minha decoração de Natal antes do dia vinte e quatro de dezembro.
Quem saiu dos escritórios de conselho e dirigiu-se à sala de tratamento. Só havia um aparelho funcionando, mas apenas três membros na fila. Quando chegou a sua vez, enfiou o braço bem no fundo da abertura revestida de borracha. Sentiu com alívio o contato do controle e a agradável tepidez do disco de infusão. Queria que aquela cócega-zumbido-ferroada durasse o máximo possível, curando-o por completo e para sempre, mas foi ainda mais curta que de costume. Ficou preocupado que pudesse ter ocorrido uma quebra de comunicação entre o controle e Uni ou alguma deficiência de produtos químicos dentro do próprio aparelho. Numa calma manhã de domingo sabe lá se o serviço não era feito de maneira negligente?
Parou de se preocupar, entretanto, e subindo as escadas- rolantes sentiu-se muito melhor em relação a tudo — a si mesmo, a Uni, à Família, ao mundo, ao universo.
A primeira coisa que fez ao chegar ao apartamento foi telefonar para agradecer a Ana.
Aos quinze anos foi classificado como 663D — taxonomista genético de quarta classe — e transferido para RUS41500, na Academia de Ciências Genéticas. Aprendeu genética elementar, técnicas de laboratório e teoria de modulação e transplante. Patinou no gelo, jogou futebol, visitou o Museu Pré-U e o Museu dos Progressos da Família. Teve uma namorada Ana, de Jap, e depois outra chamada Paz, de Aus. No dia 15 de outubro de 151, quinta-feira, junto com todo o pessoal da Academia, ficou sentado até as quatro da manhã assistindo ao lançamento do Altaira, depois dormiu e vadiou metade do dia que era feriado.
Uma noite, inesperadamente, os pais telefonaram.
— Temos más notícias — disse a mãe. — Papai Jan morreu hoje de manhã.
A tristeza que o invadiu com certeza se refletiu em sua fisionomia.
— Ele tinha sessenta e dois anos, Quem — disse a mãe.
— Chegara ao fim da vida.
— Ninguém vive eternamente — sentenciou o pai.
— Sim — concordou Quem. — Nem me lembrava de que ele já era tão velho. Como vão vocês? Paz ainda não foi classificada?
Quando acabaram de falar, saiu para dar um passeio, embora estivesse chovendo e fossem quase dez horas da noite. Entrou no parque. Todo mundo vinha voltando.
— Seis minutos — preveniu um membro, sorrindo-lhe.
Pouco estava ligando. Queria molhar-se na chuva, ficar encharcado. Não sabia por que, mas queria.
Sentou-se num banco e esperou. O parque estava deserto, não havia mais ninguém. Pensou em Papai Jan a falar coisas que significavam o contrário do que ele dizia e, depois, a explicar o que realmente queria dizer, lá embaixo no interior do Uni, enrolado no cobertor azul.
Nas costas do banco no lado oposto do passeio alguém tinha escrito a giz vermelho um ABAIXO UNI em letra irregular. Um outro — ou talvez o mesmo membro doente, de vergonha — riscara tudo com giz branco. Começou a chover e as letras foram-se apagando: giz branco, giz vermelho, manchando de cor-de-rosa o encosto do banco.
Quem levantou o rosto para o céu e manteve-o firme sob a chuva, procurando sentir uma tristeza tão grande que acabou chorando.
4
No inicio de seu terceiro e último ano na Academia, Quem tomou parte numa complicada troca de cubículos de dormitório que se destinava a deixar todos os interessados mais perto de seu namorado ou namorada. Mediante o novo arranjo de coisas, ele ficou a dois cubículos de distância de uma tal de Yin DW. Do outro lado do corredor havia um membro mais baixo que o normal, chamado Karl WL, que geralmente andava com um bloco de desenho de capa verde e que, apesar de sempre pronto a responder comentários, raramente puxava conversa por conta própria.
Esse Karl WL tinha um olhar extraordinariamente concentrado, como se estivesse na pista de soluções para perguntas difíceis. Certa vez Quem percebeu que ele escapulia da sala logo no começo da primeira hora de televisão, só voltando no fim da segunda. E uma noite no dormitório, depois de se apagarem as luzes, viu um leve clarão filtrando-se por baixo do cobertor da cama de Karl.
Outra noite — era sábado, praticamente domingo de madrugada — quando Quem saía discretamente do cubículo de Yin DW para entrar no seu, viu Karl sentado no dele. Estava na beirada cama, de pijama, empunhando o bloco de lado, na direção de uma lanterna no canto da escrivaninha e trabalhando nele com movimentos bruscos e enérgicos da mão. A lente da lanterna achava-se dissimulada de um jeito que só permitia a passagem de um pequeno raio de luz.
Quem aproximou-se e perguntou:
— Sem garota esta semana?
Karl, sobressaltado, fechou o bloco. Tinha um pedaço de carvão entre os dedos.
— Desculpe se o assustei — disse Quem.
— Não tem importância — retrucou Karl, a tênue claridade revelando apenas uma fração do queixo e das faces. — Acabei cedo. Paz KG. Você não quis passar a noite toda com Yin?
— Ela está roncando — explicou.
Karl fez um ruído de quem acha graça.
— Eu já ia dormir — disse.
— Que que você estava fazendo?
— Uns diagramas de genes, mais nada — respondeu Karl.
Abriu a capa do bloco e mostrou a primeira página. Quem chegou perto, curvou-se e olhou: perfis transversais de genes no local B3, cuidadosamente desenhados e sombreados, feitos a lápis.
— Estava experimentando fazer com carvão — disse Karl, — mas não dá certo.
Fechou o bloco, largou o carvão em cima da escrivaninha e apagou a lanterna.
— Durma bem.
— Obrigado — agradeceu Quem. — Você também.
Dirigiu-se a seu cubículo, tateando às cegas até a cama e perguntando-se se Karl estivera de fato desenhando diagramas de genes. Não lhe parecia que carvão fosse apropriado para aquilo. Provavelmente devia consultar seu conselheiro, Li YB, sobre a reserva de Karl e seu ocasional comportamento, pouco condizente a um membro. Mas resolveu esperar até certificar-se de que Karl precisava de auxílio e assim não perder o tempo de Li YB, o de Karl e o seu. Não havia necessidade de ser alarmista.
Algumas semanas mais tarde comemorou-se o Aniversário de Wei e depois da parada Quem, junto com cerca de uma dúzia de estudantes, foi passar a tarde no Parque de Diversões. Remaram durante algum tempo e por fim ficaram perambulando pelo jardim zoológico. Enquanto se aglomeravam ao redor de um chafariz, Quem avistou Karl WL sentado na amurada defronte ao cercado de cavalos, com o bloco no colo e desenhando. Pediu licença aos companheiros e dirigiu-se a ele.
Karl, ao notar a sua aproximação, sorriu-lhe e fechou o bloco.
— Que grande parada, hem? — disse.
— Realmente, uma verdadeira maravilha — concordou Quem. — Você está desenhando cavalos?
— Um pouco.
— Posso ver?
Karl olhou-o nos olhos por um momento e depois respondeu:
— Claro, por que não?
Folheou o lado inferior do bloco e, abrindo-o parcialmente, virou a parte de cima e deixou Quem admirar um garanhão visto pela retaguarda. Os traços de carvão, pretos e vigorosos, enchiam a página. Músculos saltavam das ancas lustrosas. O olho era selvagem e vivo. As patas dianteiras fremiam. A vitalidade, a força do desenho surpreenderam Quem. Jamais tinha visto um retrato de cavalo que fosse comparável. Procurou palavras, mas só pôde exclamar:
— Isto é... sensacional, Karl! Uma verdadeira maravilha!
— Não está fiel — disse Karl.
— Está, sim!
— Não está, não. Se estivesse, eu teria entrado pra Academia de Arte.
Quem olhou os cavalos de verdade no cercado e comparou de novo com o desenho de Karl. Então notou a maior grossura das patas, a menor largura do peito.
— Tem razão — disse, contemplando outra vez o desenho.
— Não está fiel. Mas... de certo modo, está melhor do que se estivesse.
— Obrigado — agradeceu Karl. — Era isso mesmo que eu queria. Ainda não aprontei.
Quem olhou para ele.
— Não tem mais?
Karl virou a página precedente e mostrou-lhe um leão sentado, orgulhoso e atento. No canto inferior, do lado direito da página, havia um A no meio de um círculo.
— Formidável! — exclamou Quem.
Karl virou outras páginas: dois veados, um macaco, uma águia em pleno vôo, dois cachorros se cheirando, um leopardo pronto a dar o bote.
Quem soltou uma risada.
— Porra, você fez o zoológico completo!
— Não fiz, não — protestou Karl.
Todos os desenhos tinham no canto o A no meio do círculo.
— Pra que isso? — quis saber Quem.
— Os pintores antigamente assinavam os quadros. Pra mostrar de quem era a obra.
— Eu sei — disse Quem, — mas por que um A?
— Ah — fez Karl, e virou as páginas uma por uma. — E a inicial de Ashi — explicou. — A minha irmã me chama assim.
Chegou no cavalo, acrescentou um traço de carvão à barriga e olhou os cavalos no cercado com aquele seu olhar de concentração, que agora tinha uma finalidade e um motivo.
— Eu também tenho apelido — disse Quem. — Quem. Foi meu avô quem botou em mim.
— Quem?
— Quer dizer, “Quem sai aos seus não degenera”. Parece que saí ao avô do meu avô.
Quem observou Karl aperfeiçoar os traços das patas traseiras do cavalo e depois abandonou seu lugar.
— Acho melhor voltar pro meu grupo — disse. — Isso aí está uma maravilha. E uma pena que não te tenham classificado como pintor.
Karl olhou para ele.
— Mas não me classificaram. Portanto só desenho nos domingos e feriados e durante a hora de folga. Nunca deixo que atrapalhe meu trabalho ou qualquer outra coisa que eu deva fazer.
— O.K. Até logo mais no dormitório.
Naquela noite, depois da televisão, Quem voltou para o seu cubículo e encontrou o desenho do cavalo em cima da escrivaninha.
— Quer pra você? — perguntou Karl do cubículo dele.
— Quero, sim. Obrigado. É sensacional!
O desenho tinha ainda mais vitalidade e força do que antes. No canto estava o A-no-meio-do-círculo.
Quem pregou-o ao quadro de boletins atrás da escrivaninha e, quando terminou, Yin DW entrou no cubículo, trazendo um exemplar de Universo que havia levado emprestado.
— Onde você conseguiu isso? — perguntou ela.
— Foi Karl WL quem fez.
— Está muito bonito, Karl — disse Yin. — Você desenha bem.
Karl estava vestindo o pijama.
— Obrigado. Que bom que você gostou.
— A proporção está toda errada — cochichou Yin para Quem. — Em todo caso, deixe aí. Você foi amável em pendurá-lo.
De vez em quando, durante a hora de folga, Quem e Karl visitavam juntos o Pré-U. Karl fez esboços do mastodonte e do bisão, dos homens das cavernas vestidos com peles de animais, dos soldados e marinheiros em seus inúmeros uniformes diferentes. Quem perambulava entre primitivos automóveis, máquinas de ditar, cofres, abotoaduras e “aparelhos” de televisão. Examinava as maquetes e retratos de prédios antigos; as torres e contrafortes das igrejas, os torreões dos castelos, as casas grandes e pequenas, com janelas e portas providas de fechadura. Achou que as janelas deviam ter certas vantagens. Seria agradável, a gente devia sentir-se mais importante, vendo o mundo do próprio quarto ou do local de trabalho. E à noite, do lado de fora, uma casa com uma série de janelas iluminadas certamente seria atraente, até mesmo bonita.
Uma tarde Karl entrou no cubículo de Quem e ficou parado junto da escrivaninha com as mãos crispadas à altura das coxas. Levantando os olhos, Quem julgou que ele estivesse atacado de febre ou coisa pior: tinha o rosto congestionado e os olhos espremidos numa expressão estranha. Mas não, estava tomado de raiva, de uma raiva como Quem jamais vira igual, tão intensa que, procurando falar, parecia torná-lo incapaz de mover os lábios.
— O que foi? — perguntou Quem, ansioso.
— Li — disse Karl. — Escute. Você pode fazer-me um favor?
— Lógico! Que dúvida!
Karl curvou-se para ele e cochichou:
— Peça um bloco pra mim, sim? Acabei de pedir um e me negaram. Quinhentos blocos de merda, uma pilha desta altura, e tive que devolver!
Quem olhou para ele.
— Peça um, sim? — insistiu Karl. — Todo mundo pode tentar um pouco de desenho nas horas vagas, não pode? Vai lá embaixo, O.K.?
— Karl... —começou Quem, penosamente.
Karl olhou para ele, arrefecendo a raiva, e endireitou o corpo.
— Não — disse. — Não, eu... eu só perdi a calma, mais nada. Desculpe. Desculpe, irmão. Esqueça.
Bateu no ombro de Quem.
— Agora já passou. Daqui a uma semana, mais ou menos, eu peço de novo. De qualquer maneira, acho que ando desenhando demais. Uni sabe o que faz.
E saiu pelo corredor, rumo ao banheiro.
Quem virou-se para a escrivaninha e apoiando-se aos cotovelos segurou a cabeça, todo trêmulo.
Isso foi na terça-feira. As entrevistas semanais de Quem com o conselheiro eram no dia-de-Wood, às 10h40m da manhã. Dessa vez resolveu falar sobre a doença de Karl para Li YB. Já não se tratava mais de ser alarmista. Havia sido, de fato, irresponsável esperando tanto tempo assim. Devia ter dito logo alguma coisa ao se manifestar o primeiro sintoma, quando Karl escapuliu da sala de televisão (para desenhar, naturalmente) ou mesmo quando reparou na expressão extraordinária do seu olhar. Por que ódio tinha esperado? Podia já ouvir a voz suave de Li YB a repreendê-lo: “Você não tem sido um guarda muito zeloso do seu irmão, Li.”
No dia-de-Wood, de manhã cedo, todavia, resolveu apanhar algumas Túnicas e o novo Geneticista. Dirigiu-se ao centro" de abastecimento e percorreu os corredores. Pegou um Geneticista e um pacote de túnicas, caminhou mais um pouco e chegou à seção de suprimentos de pintura. Viu a pilha de blocos de desenho de capa verde. Quinhentos era exagero, mas havia uns setenta ou oitenta e ninguém parecia ter pressa em pedi-los.
Afastou-se, pensando que na certa estava perdendo o juízo. Entretanto, se Karl precisava prometer que não ia desenhar quando não devia...
Voltou de novo — “Todo mundo pode tentar- um pouco de desenho nas horas vagas, não pode?" — tirou um bloco e um pacote de carvão. Foi para a fila de saída mais curta, o coração batendo no peito, as mãos trêmulas. Respirou o mais fundo possível — uma, duas, três vezes.
Encostou a pulseira no controle e o rótulo das túnicas, do Geneticista, do bloco e do carvão. Recebeu sim para tudo. Cedeu lugar ao membro seguinte.
Regressou ao dormitório, lá em cima. O cubículo de Karl estava vazio, a cama desfeita. Dirigiu-se ao seu, pondo as túnicas na prateleira e o Geneticista em cima da escrivaninha. Com a mão ainda trêmula, escreveu na primeira página do bloco: Só na hora de folga. Você tem de me prometer. Depois colocou o bloco e o carvão sobre a cama, sentou-se à escrivaninha e concentrou-se no Geneticista.
Karl veio, foi para o seu cubículo e começou a arrumar a cama.
— Isso aí é seu? — perguntou Quem.
Karl olhou para o bloco e o carvão em cima da Cama de Quem.
— Meus não são — disse Quem.
— Ah, é. Obrigado — agradeceu Karl, entrando no cubículo de Quem para apanhá-los. — Muito obrigado.
— Você deve botar o seu número na primeira página — aconselhou Quem, — se pretende deixá-lo aí pelos cantos desse jeito.
Karl foi para o seu cubículo, abriu o bloco e olhou a primeira página. Virou-se para Quem, sacudiu a cabeça levantou a mão direita e fez com a boca:
— Pelo Amor da Família.
Desceram juntos para a aula.
— Pra que você teve que desperdiçar uma página? — perguntou Karl.
Quem sorriu.
— Fora de brincadeira — insistiu Karl. — Não sabe que pra escrever bilhete a gente usa um pedaço de papel qualquer?
— Por Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou Quem.
Em dezembro daquele ano de 152 chegaram as aterradoras notícias da Morte Cinzenta, assolando todas as colônias marcianas, salvo uma única exceção, e arrasando-as por completo no curto espaço de nove dias. Na Academia de Ciências Genéticas, bem como em todas as instituições da Família, fez-se impotente silêncio, seguido de luto e, por fim, de uma resolução em massa para auxiliar a Família a superar o tremendo revés sofrido. Todos se entregaram com mais afinco e denodo ao trabalho. A hora de folga ficou reduzida à metade. Havia aula aos domingos e apenas meio turno feriado no Natal. Somente a Genética poderia criar novas forças nas gerações vindouras. Cada qual se apressava para concluir o período de treinamento e receber seu primeiro serviço verdadeiro. Em todas as paredes viam-se cartazes em preto e branco: MARTE OUTRA VEZ.
A nova disposição durou vários meses. Antes da data do Nascimento de Marx não houve nenhum feriado de dia inteiro e mesmo assim ninguém soube o que fazer com ele. Quem, Karl e suas namoradas remaram até uma das ilhas do lago do Parque de Diversões e tomaram banho de sol numa grande rocha achatada. Karl desenhou o retrato da namorada. Era a primeira vez, pelo menos que Quem soubesse, que ele desenhava uma pessoa viva.
Em junho Quem pediu outro bloco para Karl.
Terminado o treinamento de ambos, com antecedência de cinco semanas, receberam suas missões: Quem iria para um laboratório de pesquisas genéticas de vírus em USA90058, Karl para o Instituto de Enzimologia em JAP50319.
Na véspera da partida da Academia, arrumaram suas sacolas de viagem. Karl retirou blocos de capa verde das gavetas da escrivaninha — uma dúzia de uma, meia dúzia de outra, mais blocos das restantes. Atirou-os numa pilha em cima da cama.
— Você não vai conseguir meter tudo isso dentro da sacola — avisou Quem.
— Nem pretendo — disse Karl. — Já estão cheios. Não preciso deles.
Sentou-se na cama e folheou um dos blocos, rasgando um que outro desenho.
— Posso ficar com alguns? — perguntou Quem.
— Lógico — respondeu Karl, atirando-lhe o bloco.
Era quase tudo esboços feitos no Museu Pré-U. Quem tirou um que mostrava um homem em cota de malha carregando uma besta no ombro, e outro de um macaco se coçando.
Karl juntou a maioria dos blocos e saiu pelo corredor, rumo à lixeira. Quem largou o bloco em cima da cama de Karl e pegou outro.
Neste, um homem e uma mulher nus estavam parados em pé no meio de um parque defronte aos edifícios brancos de uma cidade. Eram mais altos que o normal, belos e estranhamente dignos. A mulher era bastante diferente do homem, não só genitalmente como também pelo cabelo mais comprido, os seios protuberantes e a sinuosidade mais suave do conjunto. O desenho era sensacional, mas tinha qualquer coisa de perturbador que Quem não conseguiu definir bem.
Examinou outras páginas, outros homens e mulheres. Os quadros ficavam cada vez mais seguros e vigorosos, feitos com economia e ousadia de traços. Karl jamais fizera melhores desenhos, mas todos apresentavam aquele algo inquietante, uma falta de qualquer coisa, um desequilíbrio que desconcertava Quem.
De repente sentiu um calafrio.
Eles não usavam pulseiras.
Passou todos de novo em revista, com um aperto no estômago. Nada de pulseiras. Nenhum deles usava. E não havia possibilidade de que os desenhos estivessem inacabados: no canto de cada um deles via-se o A no meio-de-um-círculo.
Largou o bloco e foi sentar-se na cama. Ficou observando Kart voltar, recolher os blocos restantes e, com um sorriso, levá-los embora.
Houve baile no salão, mas durou pouco e foi discreto por causa de Marte. Mais tarde Quem retirou-se com a namorada para o seu cubículo.
— O que é que você tem? — perguntou ela.
— Nada.
Karl também lhe fez a mesma pergunta no outro dia de manha, enquanto dobravam os cobertores.
— O que é que você tem, Li?
— Nada.
— Está com pena de ir embora?
— Um pouco.
— Eu também. Olhe, me dê aqui os seus lençóis pra eu ir jogar lá na lixeira.
— Qual é o número dele? — perguntou Li YB.
— Karl WL35S7497 — disse Quem.
Li YB anotou.
— E qual é propriamente o problema?
Quem esfregou as mãos nas coxas.
— Ele desenhou uns retratos dos membros — respondeu.
— Agindo agressivamente?
— Não, não — disse Quem. — Apenas parados em pé, sentados, fodendo, brincando com crianças.
— E daí?
Quem fitou a tampa da escrivaninha.
— Eles não usam pulseiras.
Li YB ficou calado. Quem olhou-o: estava com os olhos fixos nele.
— São muitos? — perguntou Li YB depois de uma pausa.
— Blocos inteiros.
— E nenhuma pulseira?
— Nenhuma.
Li YB prendeu a respiração e depois soltou-a entre os dentes, numa série de rápidos assobios. Contemplou seu bloco de notas.
— KWL35S7497—disse.
Quem confirmou com a cabeça.
Rasgou o desenho do homem com a besta: era agressivo. E fez o mesmo com o do macaco. Levou os pedaços até a lixeira e jogou tudo lá dentro.
Guardou na sacola de viagem as poucas coisas restantes — a tesoura, a escova de dentes e a moldura com a fotografia de seus pais e Papai Jan — e fechou o trinco.
A namorada de Karl passou pelo cubículo com a sacola de viagem a tiracolo.
— Onde está o Karl? — perguntou ela.
No centro médico.
— Ah — fez ela. — Diz pra ele que eu vim me despedir, 'tá bom?
— ‘Tá.
Beijaram-se no rosto.
— Adeus — disse ela.
— Adeus.
Ela foi-se embora pelo corredor. Alguns outros estudantes, que não eram mais estudantes, passaram pelo cubículo. Sorriram e despediram-se de Quem.
Relanceou os olhos pelo cubículo vazio. O retrato do cavalo continuava pendurado no quadro de boletins. Aproximou- se e contemplou-o. Lá estava o garanhão visto pela retaguarda, tão vivo e selvagem. Por que Karl não se contentara com os animais do zoológico? Pra que inventara de desenhar figuras humanas?
Quem aos poucos foi tendo uma sensação cada vez mais forte: a sensação de que havia cometido um erro ao contar a Li YB a respeito dos desenhos de Karl, embora soubesse naturalmente que tinha agido certo. Como poderia estar errado em ajudar um irmão doente? Não contar é que seria cometer erro, permanecer calado como havia feito antes, deixando que Karl continuasse desenhando membros sem pulseiras e ficando cada vez mais doente. Com o correr do tempo, talvez chegasse até a desenhar membros agindo agressivamente. Lutando.
Claro que tinha feito bem.
No entanto a sensação de que cometera um erro continuava, aumentando sem parar, transformando-se irracionalmente em sentimento de culpa.
Alguém aproximou-se e ele girou nos calcanhares, pensando que fosse Karl que viesse agradecer-lhe. Não era; era apenas alguém que passava pelo cubículo, indo embora.
Mas eis o que ia acontecer: Karl voltaria do centro médico e diria: — “Obrigado por me ajudar, Li. Eu estava doente mesmo, mas agora já estou muito melhor”, e ele responderia:
— “Não agradeça a mim, irmão; agradeça a Uni”, ao que Karl retrucaria: — “Não, não”, insistindo em apertar-lhe a mão.
De repente não quis mais ficar ali, para não receber os agradecimentos de Karl por tê-lo ajudado: pegou a sacola e correu porta afora estacando repentinamente, inseguro, e voltando às pressas. Tirou o retrato do cavalo do quadro, abriu a sacola em cima da escrivaninha, enfiou o desenho entre as páginas de um caderno, fechou a sacola e saiu.
Precipitou-se escadas-rolantes abaixo, desculpando-se ao passar adiante de outros membros, com medo de que Karl viesse em seu encalço. Desceu correndo até o último pavimento, onde ficava a estação do monotrilho aéreo, e entrou na longa fila do aeroporto. Manteve-se de cabeça imóvel, sem virar-se para trás. .
Finalmente chegou ao controle. Enfrentou-o por um momento e depois encostou a pulseira. Sim, piscou a luz verde.
Cruzou o portão às pressas.
CONTINUA
3
Quem lembrou-se do conselho de Papai Jan e nas semanas seguintes pensou frequentemente em querer algo, querer fazer alguma coisa, tal como Papai Jan aos dez anos queria ajudar na montagem de Uni. Ficava deitado na cama sem dormir, mais ou menos uma hora por noite, examinando os vários serviços que existiam, todas as diferentes classificações que conhecia: superintendente de construções como Papai Jan, técnico de laboratório como o pai, plasmafísico como a mãe, fotógrafo como um amigo do pai — médico, conselheiro, dentista, cosmonauta, ator, músico. Tudo parecia equivaler-se. Mas para que pudesse querer de fato, precisava escolher. Sentia-se insignificante e, no entanto, também importante, as duas coisas ao mesmo tempo.
Uma noite achou que talvez fosse interessante projetar grandes edifícios, que nem os pequenos que costumava construir com um jogo que ganhara muitos anos atrás (o não piscando vermelho no Uni). A ideia lhe veio na véspera de um tratamento, ocasião que segundo Papai Jan oferecia ótima oportunidade para querer coisas. Na noite seguinte, ser desenhista de grandes edifícios em nada se diferenciava de qualquer outra ocupação. Para dizer a verdade, a ideia toda de querer uma determinada classificação parecia boba e Pré-U naquela noite, e logo pegou no sono.
Na véspera do próximo tratamento, pensou novamente em projetar grandes edifícios — edifícios de tudo quanto era espécie de formato, não só dos três permitidos — e pôs-se a imaginar por que motivo o interesse pela ideia desaparecera no mês anterior. Os tratamentos se destinavam a prevenir doenças, acalmar membros que andassem tensos, impedir as mulheres de terem filhos em demasia e os homens de crescer barba no rosto. Por que haveriam de fazê-lo perder interesse por uma ideia interessante? Mas foi exatamente o que fizeram, mês após mês, após mês.
Desconfiava de que pensar em ideias desse tipo talvez fosse uma modalidade de egoísmo. Mas se fosse, era uma modalidade tão insignificante — roubando apenas uma ou duas horas de sono e nunca de aula ou televisão — que não se deu ao trabalho de mencioná-la a Beto NE, assim como não mencionaria um nervosismo passageiro ou um sonho ocasional. Todas as semanas, quando Beto perguntava-lhe se tudo ia bem, respondia que sim: às mil maravilhas, sem problemas. Cuidou para não “pensar em querer” com excessiva frequência e por tempo longo demais, a fim de sempre dormir bastante. E de manhã, ao se lavar, examinava o rosto no espelho para verificar se continuava com boa aparência. Continuava — a não ser, naturalmente, em relação ao olho.
Em 146, Quem e sua família, junto com a maioria dos membros que moravam no mesmo prédio, foram transferidos para AFR71680. O edifício onde ficaram alojados era novo em folha, com corredores de tapetes verdes em vez de cinzentos, telas de televisão bem maiores e mobília toda estofada, embora não ajustável.
Tiveram de se habituar a muita coisa em ’71680. O clima era um pouco mais quente, as túnicas mais leves e menos coloridas. O monotrilho aéreo, velho e vagaroso, estragava tudo a toda hora. E os bolos integrais, embrulhados em papel laminado verde, tinham gosto de sal e não abriam o apetite.
A nova conselheira de Quem e sua família era Maria CZ14L8584. Embora um ano mais velha que a mãe de Quem, parecia bem mais moça.
Depois que Quem se acostumou a viver em ’71680 — a escola, ao menos, não era diferente — retomou seu passatempo de “pensar em querer”. Agora percebia diferenças consideráveis entre as classificações e começou a imaginar a que Uni lhe daria quando chegasse a ocasião. Uni, com seus dois pavimentos de gélidos blocos de aço, sua aridez vazia e retumbante... Pena que Papai Jan não lhe tivesse mostrado o andar no fundo, onde ficavam os membros. Seria bem mais agradável ser classificado por Uni e por alguns membros, em vez de só por Uni. Se por acaso recebesse uma classificação que lhe desagradasse e os membros houvessem tomado parte nela, talvez fosse possível explicar-lhes...
Papai Jan telefonava duas vezes por ano. Ele dizia que pedia outras, mas que só obtinha aquelas. Parecia mais velho, com um sorriso cansado. Uma parte de USA60607 estava sendo reconstruída e ele era o encarregado. Quem gostaria de dizer-lhe que estava procurando querer alguma coisa, mas não podia, com toda a família parada em frente da tela a seu lado. Uma vez, quando o chamado estava quase no fim, ele disse:
— Estou procurando.
Papai Jan então sorriu como antigamente e respondeu:
— Gostei de ver!
Quando terminou o chamado, o pai de Quem perguntou:
— Você está procurando o quê?
— Nada.
— Você deve ter-se referido a alguma coisa — insistiu o pai.
Quem encolheu os ombros.
Ao se encontrar com ele de novo, Maria CZ também quis saber.
— O que é que você quis dizer quando falou pro teu avô que estava procurando? — perguntou ela.
— Nada.
— Li — insistiu Maria, olhando-o com ar de censura. — Você disse que estava procurando. Procurando o quê?
— Procurando não sentir falta dele — explicou. — Quando ele foi transferido pra Usa eu disse que ia sentir saudade e ele me pediu pra procurar não sentir, que todos os membros se pareciam e que de qualquer maneira ele telefonaria sempre que pudesse.
— Ah — fez Maria, continuando a olhá-lo, agora meio insegura. — Por que você não explicou logo?
Quem encolheu os ombros.
— E você sente falta dele?
— Só um pouquinho. Estou procurando não sentir.
O sexo começou, e pensar nisso era ainda melhor do que querer alguma coisa. Embora lhe houvessem ensinado que os orgasmos eram extremamente agradáveis, ele não fazia a mínima ideia do prazer quase insuportável das sensações que se iam acumulando, do êxtase da ejaculação e da satisfação esgotada e incorpórea do momento posterior. Ninguém fazia a menor ideia. Seus próprios colegas de aula não tinham outro assunto e de bom grado se entregariam exclusivamente àquilo. Quem mal conseguia pensar em matemática, eletrônica e astronomia, e muito menos nas diferenças entre as classificações.
Depois de alguns meses, no entanto, todo mundo se acalmou e, já acostumados com o novo prazer, encararam a noite de sábado como uma rotina apropriada ao esquema semanal.
Uma noite de sábado, quando Quem contava quatorze anos, foi de bicicleta com um grupo de amigos a uma esplêndida praia branca a poucos quilômetros ao norte de AFR-71680. Lá todos nadaram — pulando, empurrando-se e jogando-se na espuma das ondas rosadas pela luz do sol poente — fizeram fogueira na areia, sentaram ao redor em cima de cobertores, comeram seus bolos, beberam seus refrigerantes e partiram cocos para saborear os pedaços doces e quebradiços. Um rapaz tocou músicas num gravador, não muito bem, e depois, quando o fogo se desfez em cinzas, o grupo separou-se em cinco casais, cada qual com o seu cobertor.
A garota de Quem era Ana VF, e depois do orgasmo mútuo — o melhor que ele já experimentara, ou pelo menos parecia — encheu-se de ternura por ela, e desejou que houvesse algo que pudesse dar-lhe como expressão desse sentimento, como a linda concha que Karl GG tinha dado a Yin AP, ou o gravador de música de Li OS, arrulhando baixinho agora para a garota com quem decerto estava deitado. Quem não tinha nada para oferecer a Ana; nem concha, nem música. Absolutamente nada, a não ser, talvez, seus pensamentos.
— Você não gostaria de pensar em alguma coisa interessante? — perguntou, deitado de costas, enlaçando-a com o braço.
— Hum, hum — respondeu ela, aninhando-se mais contra ele, a cabeça reclinada em seu ombro e o braço sobre seu peito.
Beijou-lhe a testa.
— Pense nas diversas classificações que existem... — disse.
— Hum, hum?
— E procure resolver a que você escolheria se tivesse de escolher uma.
— Escolher uma? — estranhou ela.
— Exatamente.
— O que é que você quer dizer?
— Escolher uma. Ter. Ser. Que classificação você prefere? Médica, engenheira, conselheira...
Ela apoiou a cabeça na mão e olhou-o de soslaio.
— O que é que você quer dizer?
Ele soltou um leve suspiro.
— Nós seremos classificados, não é?
— Sim.
— Suponhamos que não fossemos. Suponhamos que nós mesmos tivéssemos de nos classificar.
— Que asneira — disse ela, desenhando com o dedo em cima do peito dele.
— É uma ideia interessante.
— Vamos foder de novo — sugeriu ela.
— Espere aí. Pense só em todas as diversas classificações. Suponhamos que nós é que...
— Eu não quero — disse ela, parando de desenhar. — É asneira. E doentio. Nós somos classificados; não tem nada que pensar. Uni sabe o que a gente...
— Ah, Uni que se lute — retrucou Quem. — Faz de conta, só um minuto, que estivéssemos vivendo em...
Ana desvencilhou-se do abraço, deitando-se de bruços, completamente imóvel, a cabeça virada para o outro lado.
— Sinto muito — desculpou-se ele.
— Eu é que sinto — disse ela. — Por sua causa. Você está doente.
— Não estou, não — protestou.
Ela ficou calada.
Ele ergueu o corpo e olhou desesperado para aquelas costas rígidas.
— Falei sem querer — disse. — Desculpe-me.
Ela continuou calada.
— Foi só uma palavra, Ana.
— Você está doente.
— Ah, ódio — exclamou.
— Viu? Eu não disse?
— Ana, olhe. Esqueça isso. Esqueça tudo, ’tá bom? Simplesmente esqueça.
Tentou bolinar-lhe as coxas, mas ela apertou as pernas, impedindo a passagem da mão.
— Ah, Ana. Deixe disso, puxa. Eu pedi desculpa, não pedi? Venha cá, vamos foder de novo. Se você quiser, eu te chupo antes.
Depois de certo tempo, ela afrouxou as coxas e deixou-se bolinar.
Por fim virou-se de frente, soergueu-se e olhou-o nos olhos.
— Você está doente, Li? — perguntou.
— Não — respondeu, com riso forçado. — Claro que não estou.
— Jamais ouvi falar em coisa semelhante. “Nós mesmos nos classificarmos.” De que jeito? Como seria possível saber tanto assim?
— É apenas uma ideia que de vez em quando me ocorre — explicou. — Muito raro. Pra ser franco, praticamente nunca.
— Que ideia mais... engraçada. Parece... sei lá... Pré-U.
— Não vou pensar mais nisso — prometeu, de mão direita erguida. A pulseira deslizou pelo braço. — Pelo Amor da Família — jurou. — Agora vem. Deite aqui, que eu te chupo.
Ela deitou de costas no cobertor, com cara apreensiva.
No outro dia de manhã, às dez e cinco, Maria CZ telefonou-lhe pedindo que fosse falar com ela.
— Quando? — perguntou Quem.
— Agora.
— Está bem. Desço em seguida.
— Por que ela quer falar com você num domingo? — quis saber a mãe.
— Sei lá — respondeu Quem.
Mas sabia, sim. Ana VF tinha telefonado à conselheira dela.
Desceu as escadas-rolantes, sucessivamente, tentando adivinhar o que Ana teria contado e o que ele diria. De repente sentiu vontade de chorar e confessar a Maria que ele era doente, egoísta e mentiroso. Os membros que subiam as escadas-rolantes pareciam calmos, sorridentes, satisfeitos, em harmonia com a música alegre dos alto-falantes. Só ele sentia-se culpado e infeliz.
Os escritórios de conselho estavam estranhamente quietos. Os membros e os conselheiros confabulavam em alguns cubículos. Mas na maioria estavam vazios, com as escrivaninhas em ordem, as poltronas desocupadas. Num cubículo, um membro de túnica verde consertava o telefone com uma chave de fenda.
Trepada em cima da cadeira, Maria estendia uma tira de enfeite de Natal sobre a parte superior da moldura de Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Havia mais enfeites sobre a escrivaninha, um rolo vermelho e outro verde. O telecomputador de Maria estava aberto, com um recipiente de chá ao lado.
— Li? — perguntou, de costas. — Você veio depressa. Sente-se.
Quem sentou-se. Fileiras de símbolos verdes cintilavam na tela do telecomputador. O botão de respostas estava preso por um pesa-papéis, lembrança de RUS81655.
— Fique aí — disse Maria para a tira de enfeite.
Desceu para olhar. Tinha ficado.
Virou a cadeira de frente e sorriu para Quem, enquanto puxava-a para o seu lado e sentava-se. Olhou para a tela do telecomputador ao mesmo tempo que apanhava o recipiente de chá e bebia. Largou-o em cima da mesa, encarou Quem e sorriu.
— Um membro me disse que você precisa de auxílio. A moça que você fodeu ontem à noite. Ana — olhou a tela de relance — VF35H6143.
Quem sacudiu a cabeça.
— Eu falei uma palavra feia.
— Duas — corrigiu Maria. — Mas isso não tem maior importância. Pelo menos relativamente. O que importa são outras coisas que você disse. Por exemplo, resolver a classificação que você escolheria se não dispuséssemos do UniComp pra executar esse trabalho.
Quem desviou o olhar para os rolos vermelho e verde de tiras de Natal.
— Você pensa nisso muito seguido, Li? — perguntou Maria.
— Só de vez em quando — respondeu. — Na hora de folga ou de noite. Nunca na escola ou durante a televisão.
— De noite também conta — disse Maria. — Você devia estar dormindo.
— Quando foi que começou? — perguntou ela.
— Não sei. Há alguns anos. Em Eur.
— O seu avô... — insinuou.
Ele fez que sim com a cabeça.
Ela fitou a tela e depois Quem, pesarosa.
— Nunca lhe ocorreu que “resolver” e “escolher” são manifestações egoístas? Atos de egoísmo?
— Achei que talvez — disse Quem, contemplando a beira da escrivaninha, esfregando a ponta do dedo nela.
— Ah, Li — fez Maria. — Pra que que eu estou aqui? Pra que servem os conselheiros? Pra nos ajudar, não é mesmo?
Ele sacudiu a cabeça.
— Por que você não me falou? Ou pro seu conselheiro em Eur? Por que esperou tanto tempo, perdendo sono e preocupando essa Ana?
Quem encolheu os ombros, observando a ponta do dedo a esfregar a beira da escrivaninha, a unha suja.
— Era... interessante, por assim dizer.
— “Interessante, por assim dizer” — arremedou Maria.
— Talvez também fosse interessante, por assim dizer, pensar na espécie de confusão Pré-U que teríamos se realmente escolhêssemos as nossas classificações. Já pensou?
— Não.
— Pois então pense. Pense em cem milhões de membros resolvendo ser artistas de televisão, sem que nem um deles se resolvesse a trabalhar num crematório.
Quem ergueu os olhos para ela.
— Eu estou muito doente? — perguntou.
— Não — respondeu Maria, — mas talvez terminasse desse jeito se não fosse o auxílio de Ana. — Tirou o pesa-papéis de cima do botão de respostas do telecomputador e os símbolos verdes desapareceram da tela. — Encoste a pulseira.
Quem encostou a pulseira na placa do controle e Maria começou a bater nas teclas de recepção,
— Você recebeu centenas de testes desde o primeiro dia que foi para o colégio — disse ela, — e o UniComp sempre forneceu o resultado de cada um deles.
Seus dedos corriam pelas doze teclas pretas.
— Você teve centenas de entrevistas com conselheiros — continuou, — e o UniComp está a par de todas. Ele sabe quais são os serviços que devem ser feitos e quem está encarregado de fazê-los. Ele sabe de tudo. Ora, quem fará a melhor classificação, a mais eficiente: você ou o UniComp?
— O UniComp, Maria. Isso eu sei... Eu não queria mesmo fazer isso sozinho. Apenas... apenas fiquei pensando como seria se, mais nada.
Maria acabou de bater e apertou o botão de respostas. Os símbolos verdes apareceram na tela.
— Vá pra sala de tratamento — disse Maria.
Quem saltou em pé.
— Obrigado.
— Agradeça a Uni — corrigiu Maria, desligando o telecomputador.
Fechou a tampa e os ferrolhos com um estalido.
Quem hesitou.
— Eu vou ficar bom? — perguntou,
— Perfeito — prometeu Maria com um sorriso tranquilizador.
— Desculpe obrigá-la a vir num domingo — disse Quem.
— Não precisa se desculpar. Ao menos uma vez na vida vou aprontar minha decoração de Natal antes do dia vinte e quatro de dezembro.
Quem saiu dos escritórios de conselho e dirigiu-se à sala de tratamento. Só havia um aparelho funcionando, mas apenas três membros na fila. Quando chegou a sua vez, enfiou o braço bem no fundo da abertura revestida de borracha. Sentiu com alívio o contato do controle e a agradável tepidez do disco de infusão. Queria que aquela cócega-zumbido-ferroada durasse o máximo possível, curando-o por completo e para sempre, mas foi ainda mais curta que de costume. Ficou preocupado que pudesse ter ocorrido uma quebra de comunicação entre o controle e Uni ou alguma deficiência de produtos químicos dentro do próprio aparelho. Numa calma manhã de domingo sabe lá se o serviço não era feito de maneira negligente?
Parou de se preocupar, entretanto, e subindo as escadas- rolantes sentiu-se muito melhor em relação a tudo — a si mesmo, a Uni, à Família, ao mundo, ao universo.
A primeira coisa que fez ao chegar ao apartamento foi telefonar para agradecer a Ana.
Aos quinze anos foi classificado como 663D — taxonomista genético de quarta classe — e transferido para RUS41500, na Academia de Ciências Genéticas. Aprendeu genética elementar, técnicas de laboratório e teoria de modulação e transplante. Patinou no gelo, jogou futebol, visitou o Museu Pré-U e o Museu dos Progressos da Família. Teve uma namorada Ana, de Jap, e depois outra chamada Paz, de Aus. No dia 15 de outubro de 151, quinta-feira, junto com todo o pessoal da Academia, ficou sentado até as quatro da manhã assistindo ao lançamento do Altaira, depois dormiu e vadiou metade do dia que era feriado.
Uma noite, inesperadamente, os pais telefonaram.
— Temos más notícias — disse a mãe. — Papai Jan morreu hoje de manhã.
A tristeza que o invadiu com certeza se refletiu em sua fisionomia.
— Ele tinha sessenta e dois anos, Quem — disse a mãe.
— Chegara ao fim da vida.
— Ninguém vive eternamente — sentenciou o pai.
— Sim — concordou Quem. — Nem me lembrava de que ele já era tão velho. Como vão vocês? Paz ainda não foi classificada?
Quando acabaram de falar, saiu para dar um passeio, embora estivesse chovendo e fossem quase dez horas da noite. Entrou no parque. Todo mundo vinha voltando.
— Seis minutos — preveniu um membro, sorrindo-lhe.
Pouco estava ligando. Queria molhar-se na chuva, ficar encharcado. Não sabia por que, mas queria.
Sentou-se num banco e esperou. O parque estava deserto, não havia mais ninguém. Pensou em Papai Jan a falar coisas que significavam o contrário do que ele dizia e, depois, a explicar o que realmente queria dizer, lá embaixo no interior do Uni, enrolado no cobertor azul.
Nas costas do banco no lado oposto do passeio alguém tinha escrito a giz vermelho um ABAIXO UNI em letra irregular. Um outro — ou talvez o mesmo membro doente, de vergonha — riscara tudo com giz branco. Começou a chover e as letras foram-se apagando: giz branco, giz vermelho, manchando de cor-de-rosa o encosto do banco.
Quem levantou o rosto para o céu e manteve-o firme sob a chuva, procurando sentir uma tristeza tão grande que acabou chorando.
4
No inicio de seu terceiro e último ano na Academia, Quem tomou parte numa complicada troca de cubículos de dormitório que se destinava a deixar todos os interessados mais perto de seu namorado ou namorada. Mediante o novo arranjo de coisas, ele ficou a dois cubículos de distância de uma tal de Yin DW. Do outro lado do corredor havia um membro mais baixo que o normal, chamado Karl WL, que geralmente andava com um bloco de desenho de capa verde e que, apesar de sempre pronto a responder comentários, raramente puxava conversa por conta própria.
Esse Karl WL tinha um olhar extraordinariamente concentrado, como se estivesse na pista de soluções para perguntas difíceis. Certa vez Quem percebeu que ele escapulia da sala logo no começo da primeira hora de televisão, só voltando no fim da segunda. E uma noite no dormitório, depois de se apagarem as luzes, viu um leve clarão filtrando-se por baixo do cobertor da cama de Karl.
Outra noite — era sábado, praticamente domingo de madrugada — quando Quem saía discretamente do cubículo de Yin DW para entrar no seu, viu Karl sentado no dele. Estava na beirada cama, de pijama, empunhando o bloco de lado, na direção de uma lanterna no canto da escrivaninha e trabalhando nele com movimentos bruscos e enérgicos da mão. A lente da lanterna achava-se dissimulada de um jeito que só permitia a passagem de um pequeno raio de luz.
Quem aproximou-se e perguntou:
— Sem garota esta semana?
Karl, sobressaltado, fechou o bloco. Tinha um pedaço de carvão entre os dedos.
— Desculpe se o assustei — disse Quem.
— Não tem importância — retrucou Karl, a tênue claridade revelando apenas uma fração do queixo e das faces. — Acabei cedo. Paz KG. Você não quis passar a noite toda com Yin?
— Ela está roncando — explicou.
Karl fez um ruído de quem acha graça.
— Eu já ia dormir — disse.
— Que que você estava fazendo?
— Uns diagramas de genes, mais nada — respondeu Karl.
Abriu a capa do bloco e mostrou a primeira página. Quem chegou perto, curvou-se e olhou: perfis transversais de genes no local B3, cuidadosamente desenhados e sombreados, feitos a lápis.
— Estava experimentando fazer com carvão — disse Karl, — mas não dá certo.
Fechou o bloco, largou o carvão em cima da escrivaninha e apagou a lanterna.
— Durma bem.
— Obrigado — agradeceu Quem. — Você também.
Dirigiu-se a seu cubículo, tateando às cegas até a cama e perguntando-se se Karl estivera de fato desenhando diagramas de genes. Não lhe parecia que carvão fosse apropriado para aquilo. Provavelmente devia consultar seu conselheiro, Li YB, sobre a reserva de Karl e seu ocasional comportamento, pouco condizente a um membro. Mas resolveu esperar até certificar-se de que Karl precisava de auxílio e assim não perder o tempo de Li YB, o de Karl e o seu. Não havia necessidade de ser alarmista.
Algumas semanas mais tarde comemorou-se o Aniversário de Wei e depois da parada Quem, junto com cerca de uma dúzia de estudantes, foi passar a tarde no Parque de Diversões. Remaram durante algum tempo e por fim ficaram perambulando pelo jardim zoológico. Enquanto se aglomeravam ao redor de um chafariz, Quem avistou Karl WL sentado na amurada defronte ao cercado de cavalos, com o bloco no colo e desenhando. Pediu licença aos companheiros e dirigiu-se a ele.
Karl, ao notar a sua aproximação, sorriu-lhe e fechou o bloco.
— Que grande parada, hem? — disse.
— Realmente, uma verdadeira maravilha — concordou Quem. — Você está desenhando cavalos?
— Um pouco.
— Posso ver?
Karl olhou-o nos olhos por um momento e depois respondeu:
— Claro, por que não?
Folheou o lado inferior do bloco e, abrindo-o parcialmente, virou a parte de cima e deixou Quem admirar um garanhão visto pela retaguarda. Os traços de carvão, pretos e vigorosos, enchiam a página. Músculos saltavam das ancas lustrosas. O olho era selvagem e vivo. As patas dianteiras fremiam. A vitalidade, a força do desenho surpreenderam Quem. Jamais tinha visto um retrato de cavalo que fosse comparável. Procurou palavras, mas só pôde exclamar:
— Isto é... sensacional, Karl! Uma verdadeira maravilha!
— Não está fiel — disse Karl.
— Está, sim!
— Não está, não. Se estivesse, eu teria entrado pra Academia de Arte.
Quem olhou os cavalos de verdade no cercado e comparou de novo com o desenho de Karl. Então notou a maior grossura das patas, a menor largura do peito.
— Tem razão — disse, contemplando outra vez o desenho.
— Não está fiel. Mas... de certo modo, está melhor do que se estivesse.
— Obrigado — agradeceu Karl. — Era isso mesmo que eu queria. Ainda não aprontei.
Quem olhou para ele.
— Não tem mais?
Karl virou a página precedente e mostrou-lhe um leão sentado, orgulhoso e atento. No canto inferior, do lado direito da página, havia um A no meio de um círculo.
— Formidável! — exclamou Quem.
Karl virou outras páginas: dois veados, um macaco, uma águia em pleno vôo, dois cachorros se cheirando, um leopardo pronto a dar o bote.
Quem soltou uma risada.
— Porra, você fez o zoológico completo!
— Não fiz, não — protestou Karl.
Todos os desenhos tinham no canto o A no meio do círculo.
— Pra que isso? — quis saber Quem.
— Os pintores antigamente assinavam os quadros. Pra mostrar de quem era a obra.
— Eu sei — disse Quem, — mas por que um A?
— Ah — fez Karl, e virou as páginas uma por uma. — E a inicial de Ashi — explicou. — A minha irmã me chama assim.
Chegou no cavalo, acrescentou um traço de carvão à barriga e olhou os cavalos no cercado com aquele seu olhar de concentração, que agora tinha uma finalidade e um motivo.
— Eu também tenho apelido — disse Quem. — Quem. Foi meu avô quem botou em mim.
— Quem?
— Quer dizer, “Quem sai aos seus não degenera”. Parece que saí ao avô do meu avô.
Quem observou Karl aperfeiçoar os traços das patas traseiras do cavalo e depois abandonou seu lugar.
— Acho melhor voltar pro meu grupo — disse. — Isso aí está uma maravilha. E uma pena que não te tenham classificado como pintor.
Karl olhou para ele.
— Mas não me classificaram. Portanto só desenho nos domingos e feriados e durante a hora de folga. Nunca deixo que atrapalhe meu trabalho ou qualquer outra coisa que eu deva fazer.
— O.K. Até logo mais no dormitório.
Naquela noite, depois da televisão, Quem voltou para o seu cubículo e encontrou o desenho do cavalo em cima da escrivaninha.
— Quer pra você? — perguntou Karl do cubículo dele.
— Quero, sim. Obrigado. É sensacional!
O desenho tinha ainda mais vitalidade e força do que antes. No canto estava o A-no-meio-do-círculo.
Quem pregou-o ao quadro de boletins atrás da escrivaninha e, quando terminou, Yin DW entrou no cubículo, trazendo um exemplar de Universo que havia levado emprestado.
— Onde você conseguiu isso? — perguntou ela.
— Foi Karl WL quem fez.
— Está muito bonito, Karl — disse Yin. — Você desenha bem.
Karl estava vestindo o pijama.
— Obrigado. Que bom que você gostou.
— A proporção está toda errada — cochichou Yin para Quem. — Em todo caso, deixe aí. Você foi amável em pendurá-lo.
De vez em quando, durante a hora de folga, Quem e Karl visitavam juntos o Pré-U. Karl fez esboços do mastodonte e do bisão, dos homens das cavernas vestidos com peles de animais, dos soldados e marinheiros em seus inúmeros uniformes diferentes. Quem perambulava entre primitivos automóveis, máquinas de ditar, cofres, abotoaduras e “aparelhos” de televisão. Examinava as maquetes e retratos de prédios antigos; as torres e contrafortes das igrejas, os torreões dos castelos, as casas grandes e pequenas, com janelas e portas providas de fechadura. Achou que as janelas deviam ter certas vantagens. Seria agradável, a gente devia sentir-se mais importante, vendo o mundo do próprio quarto ou do local de trabalho. E à noite, do lado de fora, uma casa com uma série de janelas iluminadas certamente seria atraente, até mesmo bonita.
Uma tarde Karl entrou no cubículo de Quem e ficou parado junto da escrivaninha com as mãos crispadas à altura das coxas. Levantando os olhos, Quem julgou que ele estivesse atacado de febre ou coisa pior: tinha o rosto congestionado e os olhos espremidos numa expressão estranha. Mas não, estava tomado de raiva, de uma raiva como Quem jamais vira igual, tão intensa que, procurando falar, parecia torná-lo incapaz de mover os lábios.
— O que foi? — perguntou Quem, ansioso.
— Li — disse Karl. — Escute. Você pode fazer-me um favor?
— Lógico! Que dúvida!
Karl curvou-se para ele e cochichou:
— Peça um bloco pra mim, sim? Acabei de pedir um e me negaram. Quinhentos blocos de merda, uma pilha desta altura, e tive que devolver!
Quem olhou para ele.
— Peça um, sim? — insistiu Karl. — Todo mundo pode tentar um pouco de desenho nas horas vagas, não pode? Vai lá embaixo, O.K.?
— Karl... —começou Quem, penosamente.
Karl olhou para ele, arrefecendo a raiva, e endireitou o corpo.
— Não — disse. — Não, eu... eu só perdi a calma, mais nada. Desculpe. Desculpe, irmão. Esqueça.
Bateu no ombro de Quem.
— Agora já passou. Daqui a uma semana, mais ou menos, eu peço de novo. De qualquer maneira, acho que ando desenhando demais. Uni sabe o que faz.
E saiu pelo corredor, rumo ao banheiro.
Quem virou-se para a escrivaninha e apoiando-se aos cotovelos segurou a cabeça, todo trêmulo.
Isso foi na terça-feira. As entrevistas semanais de Quem com o conselheiro eram no dia-de-Wood, às 10h40m da manhã. Dessa vez resolveu falar sobre a doença de Karl para Li YB. Já não se tratava mais de ser alarmista. Havia sido, de fato, irresponsável esperando tanto tempo assim. Devia ter dito logo alguma coisa ao se manifestar o primeiro sintoma, quando Karl escapuliu da sala de televisão (para desenhar, naturalmente) ou mesmo quando reparou na expressão extraordinária do seu olhar. Por que ódio tinha esperado? Podia já ouvir a voz suave de Li YB a repreendê-lo: “Você não tem sido um guarda muito zeloso do seu irmão, Li.”
No dia-de-Wood, de manhã cedo, todavia, resolveu apanhar algumas Túnicas e o novo Geneticista. Dirigiu-se ao centro" de abastecimento e percorreu os corredores. Pegou um Geneticista e um pacote de túnicas, caminhou mais um pouco e chegou à seção de suprimentos de pintura. Viu a pilha de blocos de desenho de capa verde. Quinhentos era exagero, mas havia uns setenta ou oitenta e ninguém parecia ter pressa em pedi-los.
Afastou-se, pensando que na certa estava perdendo o juízo. Entretanto, se Karl precisava prometer que não ia desenhar quando não devia...
Voltou de novo — “Todo mundo pode tentar- um pouco de desenho nas horas vagas, não pode?" — tirou um bloco e um pacote de carvão. Foi para a fila de saída mais curta, o coração batendo no peito, as mãos trêmulas. Respirou o mais fundo possível — uma, duas, três vezes.
Encostou a pulseira no controle e o rótulo das túnicas, do Geneticista, do bloco e do carvão. Recebeu sim para tudo. Cedeu lugar ao membro seguinte.
Regressou ao dormitório, lá em cima. O cubículo de Karl estava vazio, a cama desfeita. Dirigiu-se ao seu, pondo as túnicas na prateleira e o Geneticista em cima da escrivaninha. Com a mão ainda trêmula, escreveu na primeira página do bloco: Só na hora de folga. Você tem de me prometer. Depois colocou o bloco e o carvão sobre a cama, sentou-se à escrivaninha e concentrou-se no Geneticista.
Karl veio, foi para o seu cubículo e começou a arrumar a cama.
— Isso aí é seu? — perguntou Quem.
Karl olhou para o bloco e o carvão em cima da Cama de Quem.
— Meus não são — disse Quem.
— Ah, é. Obrigado — agradeceu Karl, entrando no cubículo de Quem para apanhá-los. — Muito obrigado.
— Você deve botar o seu número na primeira página — aconselhou Quem, — se pretende deixá-lo aí pelos cantos desse jeito.
Karl foi para o seu cubículo, abriu o bloco e olhou a primeira página. Virou-se para Quem, sacudiu a cabeça levantou a mão direita e fez com a boca:
— Pelo Amor da Família.
Desceram juntos para a aula.
— Pra que você teve que desperdiçar uma página? — perguntou Karl.
Quem sorriu.
— Fora de brincadeira — insistiu Karl. — Não sabe que pra escrever bilhete a gente usa um pedaço de papel qualquer?
— Por Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou Quem.
Em dezembro daquele ano de 152 chegaram as aterradoras notícias da Morte Cinzenta, assolando todas as colônias marcianas, salvo uma única exceção, e arrasando-as por completo no curto espaço de nove dias. Na Academia de Ciências Genéticas, bem como em todas as instituições da Família, fez-se impotente silêncio, seguido de luto e, por fim, de uma resolução em massa para auxiliar a Família a superar o tremendo revés sofrido. Todos se entregaram com mais afinco e denodo ao trabalho. A hora de folga ficou reduzida à metade. Havia aula aos domingos e apenas meio turno feriado no Natal. Somente a Genética poderia criar novas forças nas gerações vindouras. Cada qual se apressava para concluir o período de treinamento e receber seu primeiro serviço verdadeiro. Em todas as paredes viam-se cartazes em preto e branco: MARTE OUTRA VEZ.
A nova disposição durou vários meses. Antes da data do Nascimento de Marx não houve nenhum feriado de dia inteiro e mesmo assim ninguém soube o que fazer com ele. Quem, Karl e suas namoradas remaram até uma das ilhas do lago do Parque de Diversões e tomaram banho de sol numa grande rocha achatada. Karl desenhou o retrato da namorada. Era a primeira vez, pelo menos que Quem soubesse, que ele desenhava uma pessoa viva.
Em junho Quem pediu outro bloco para Karl.
Terminado o treinamento de ambos, com antecedência de cinco semanas, receberam suas missões: Quem iria para um laboratório de pesquisas genéticas de vírus em USA90058, Karl para o Instituto de Enzimologia em JAP50319.
Na véspera da partida da Academia, arrumaram suas sacolas de viagem. Karl retirou blocos de capa verde das gavetas da escrivaninha — uma dúzia de uma, meia dúzia de outra, mais blocos das restantes. Atirou-os numa pilha em cima da cama.
— Você não vai conseguir meter tudo isso dentro da sacola — avisou Quem.
— Nem pretendo — disse Karl. — Já estão cheios. Não preciso deles.
Sentou-se na cama e folheou um dos blocos, rasgando um que outro desenho.
— Posso ficar com alguns? — perguntou Quem.
— Lógico — respondeu Karl, atirando-lhe o bloco.
Era quase tudo esboços feitos no Museu Pré-U. Quem tirou um que mostrava um homem em cota de malha carregando uma besta no ombro, e outro de um macaco se coçando.
Karl juntou a maioria dos blocos e saiu pelo corredor, rumo à lixeira. Quem largou o bloco em cima da cama de Karl e pegou outro.
Neste, um homem e uma mulher nus estavam parados em pé no meio de um parque defronte aos edifícios brancos de uma cidade. Eram mais altos que o normal, belos e estranhamente dignos. A mulher era bastante diferente do homem, não só genitalmente como também pelo cabelo mais comprido, os seios protuberantes e a sinuosidade mais suave do conjunto. O desenho era sensacional, mas tinha qualquer coisa de perturbador que Quem não conseguiu definir bem.
Examinou outras páginas, outros homens e mulheres. Os quadros ficavam cada vez mais seguros e vigorosos, feitos com economia e ousadia de traços. Karl jamais fizera melhores desenhos, mas todos apresentavam aquele algo inquietante, uma falta de qualquer coisa, um desequilíbrio que desconcertava Quem.
De repente sentiu um calafrio.
Eles não usavam pulseiras.
Passou todos de novo em revista, com um aperto no estômago. Nada de pulseiras. Nenhum deles usava. E não havia possibilidade de que os desenhos estivessem inacabados: no canto de cada um deles via-se o A no meio-de-um-círculo.
Largou o bloco e foi sentar-se na cama. Ficou observando Kart voltar, recolher os blocos restantes e, com um sorriso, levá-los embora.
Houve baile no salão, mas durou pouco e foi discreto por causa de Marte. Mais tarde Quem retirou-se com a namorada para o seu cubículo.
— O que é que você tem? — perguntou ela.
— Nada.
Karl também lhe fez a mesma pergunta no outro dia de manha, enquanto dobravam os cobertores.
— O que é que você tem, Li?
— Nada.
— Está com pena de ir embora?
— Um pouco.
— Eu também. Olhe, me dê aqui os seus lençóis pra eu ir jogar lá na lixeira.
— Qual é o número dele? — perguntou Li YB.
— Karl WL35S7497 — disse Quem.
Li YB anotou.
— E qual é propriamente o problema?
Quem esfregou as mãos nas coxas.
— Ele desenhou uns retratos dos membros — respondeu.
— Agindo agressivamente?
— Não, não — disse Quem. — Apenas parados em pé, sentados, fodendo, brincando com crianças.
— E daí?
Quem fitou a tampa da escrivaninha.
— Eles não usam pulseiras.
Li YB ficou calado. Quem olhou-o: estava com os olhos fixos nele.
— São muitos? — perguntou Li YB depois de uma pausa.
— Blocos inteiros.
— E nenhuma pulseira?
— Nenhuma.
Li YB prendeu a respiração e depois soltou-a entre os dentes, numa série de rápidos assobios. Contemplou seu bloco de notas.
— KWL35S7497—disse.
Quem confirmou com a cabeça.
Rasgou o desenho do homem com a besta: era agressivo. E fez o mesmo com o do macaco. Levou os pedaços até a lixeira e jogou tudo lá dentro.
Guardou na sacola de viagem as poucas coisas restantes — a tesoura, a escova de dentes e a moldura com a fotografia de seus pais e Papai Jan — e fechou o trinco.
A namorada de Karl passou pelo cubículo com a sacola de viagem a tiracolo.
— Onde está o Karl? — perguntou ela.
No centro médico.
— Ah — fez ela. — Diz pra ele que eu vim me despedir, 'tá bom?
— ‘Tá.
Beijaram-se no rosto.
— Adeus — disse ela.
— Adeus.
Ela foi-se embora pelo corredor. Alguns outros estudantes, que não eram mais estudantes, passaram pelo cubículo. Sorriram e despediram-se de Quem.
Relanceou os olhos pelo cubículo vazio. O retrato do cavalo continuava pendurado no quadro de boletins. Aproximou- se e contemplou-o. Lá estava o garanhão visto pela retaguarda, tão vivo e selvagem. Por que Karl não se contentara com os animais do zoológico? Pra que inventara de desenhar figuras humanas?
Quem aos poucos foi tendo uma sensação cada vez mais forte: a sensação de que havia cometido um erro ao contar a Li YB a respeito dos desenhos de Karl, embora soubesse naturalmente que tinha agido certo. Como poderia estar errado em ajudar um irmão doente? Não contar é que seria cometer erro, permanecer calado como havia feito antes, deixando que Karl continuasse desenhando membros sem pulseiras e ficando cada vez mais doente. Com o correr do tempo, talvez chegasse até a desenhar membros agindo agressivamente. Lutando.
Claro que tinha feito bem.
No entanto a sensação de que cometera um erro continuava, aumentando sem parar, transformando-se irracionalmente em sentimento de culpa.
Alguém aproximou-se e ele girou nos calcanhares, pensando que fosse Karl que viesse agradecer-lhe. Não era; era apenas alguém que passava pelo cubículo, indo embora.
Mas eis o que ia acontecer: Karl voltaria do centro médico e diria: — “Obrigado por me ajudar, Li. Eu estava doente mesmo, mas agora já estou muito melhor”, e ele responderia:
— “Não agradeça a mim, irmão; agradeça a Uni”, ao que Karl retrucaria: — “Não, não”, insistindo em apertar-lhe a mão.
De repente não quis mais ficar ali, para não receber os agradecimentos de Karl por tê-lo ajudado: pegou a sacola e correu porta afora estacando repentinamente, inseguro, e voltando às pressas. Tirou o retrato do cavalo do quadro, abriu a sacola em cima da escrivaninha, enfiou o desenho entre as páginas de um caderno, fechou a sacola e saiu.
Precipitou-se escadas-rolantes abaixo, desculpando-se ao passar adiante de outros membros, com medo de que Karl viesse em seu encalço. Desceu correndo até o último pavimento, onde ficava a estação do monotrilho aéreo, e entrou na longa fila do aeroporto. Manteve-se de cabeça imóvel, sem virar-se para trás.
Finalmente chegou ao controle. Enfrentou-o por um momento e depois encostou a pulseira. Sim, piscou a luz verde.
Cruzou o portão às pressas.