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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESTE MUNDO PERFEITO
ESTE MUNDO PERFEITO

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

ESTE MUNDO PERFEITO / Iran Levin

 

 

 

 

QUARTA PARTE

 

REAGINDO


1

 

Ficou ocupadíssimo, como jamais estivera em toda a sua vida: planejava, procurava pessoas e equipamento, viajava, aprendia, explicava, suplicava, inventava, decidia. Sem incluir o trabalho na fábrica, onde Júlia, apesar do tempo livre concedido, empenhava-se em se ressarcir dos seis e cinquenta semanais em consertos de maquinaria e incremento de produção. E à medida que a gravidez de Lilás progredia, multiplicavam-se os afazeres domésticos que lhe competiam. Andava mais exausto do que nunca; mais vivo, também: na véspera completamente farto de tudo e, no dia seguinte, com redobrada convicção — mais lúcido.

O plano, o projeto, aquilo, assemelhava-se a uma máquina que, para ser montada, requeria que ele localizasse ou fabricasse todos os componentes indispensáveis, interdependentes em questão de formato e dimensões.

Antes de tomar uma resolução sobre o tamanho da expedição, precisava ter uma ideia bem nítida do objetivo principal. Para isso, era fundamental obter maiores informações sobre o funcionamento de Uni e seus pontos mais vulneráveis.

Conversou com Lars Newman, o amigo de Ashi que dirigia uma escola. Lars indicou-lhe um homem em Andrait que, por sua vez, recomendou-lhe outro, em Manacor.

— Logo vi que aquelas comportas eram insuficientes pro volume de isolamento que pareciam possuir — disse o homem de Manacor. Chamava-se Newbrook e andava beirando os setenta. Antes de abandonar a Família lecionara numa academia tecnológica. Estava trocando a fralda de uma netinha e aborreceu-se porque ela não ficava quieta.

— Quer parar de se mexer? Bem, supondo que vocês consigam entrar — continuou, dirigindo-se a Quem, — é óbvio que terão que destruir a fonte de energia. O reator ou, o que é mais provável, os reatores.

— Mas eles podem ser substituídos bastante rápido, não podem? — perguntou. — Eu queria deixar Uni sem funcionar muito tempo, o suficiente pra despertar a Família e resolver o que se fará com ele.

— Diabo, pára quieta! — reclamou Newbrook. — A usina de refrigeração, então.

— A usina de refrigeração?

— Exatamente. A temperatura interna das comportas precisa conservar-se perto do zero absoluto. Aumente alguns graus e as grades deixarão... pronto, viu o que você fez?... as grades perderão a supercondutividade. A memória de Uni será destruída.

Levantou a netinha, que estava aos berros, e apoiou-a contra o ombro, batendo-lhe de leve nas costas.

— Psiu, psiu.

— Destruída em caráter permanente?

Newbrook acenou afirmativamente com a cabeça, acalmando a criança que não parava de chorar.

— Mesmo que a refrigeração seja restaurada — explicou,

— todos os dados terão que ser fornecidos novamente. Levará anos.

— E justamente o que eu quero — disse Quem.

A usina de refrigeração.

E a sobressalente, caso houvesse.

Três usinas de refrigeração para deixar fora de combate. Dois homens para cada uma, segundo os seus cálculos: um para colocar os explosivos e o outro para manter os membros à distância.

Seis homens para paralisar a refrigeração de Uni e depois guardar as entradas contra os reforços que ele decerto pediria com seu cérebro dissolvendo-se em murmúrios balbuciantes. Poderiam os seis controlar os elevadores e o túnel? (Papai Jan não havia mencionado outros poços no espaço deixado de reserva?) Mas seis representavam o mínimo, e o mínimo era o que ele queria, porque bastaria que apenas um fosse capturado no trajeto para revelar todo o plano aos médicos e Uni estaria à espera do grupo no túnel. Quanto menor o número de participantes, menor o risco.

Ele e mais cinco.

O rapaz de cabelo amarelo que pilotava a lancha-patrulha do S.I. — Vito Newcome, mas cujo apelido era Dover — ficou pintando a amurada do barco enquanto escutava, e depois, quando Quem mencionou o túnel e as verdadeiras comportas de memória, parou de trabalhar. Acocorado sobre os calcanhares, de brocha caída na mão, levantou a cabeça para Quem. Tinha os olhos espremidos e respingos brancos na barba curta e no peito.

— Tem certeza? — perguntou.

— Absoluta.

— Já era tempo que alguém atacasse de novo aquele filho da luta.

Dover Newcome fitou o polegar, manchado de branco, e limpou-o na coxa da calça.

Quem agachou-se a seu lado.

— Você não quer tomar parte? — perguntou-lhe.

Dover olhou para ele e, depois de breve hesitação, sacudiu a cabeça.

— Quero. Claro que quero.

Ashi respondeu que não, tal como Quem esperava. Convidou-o unicamente porque do contrário, a seu ver, cometeria uma falta de consideração.

— Eu simplesmente acho que não vale a pena arriscar — justificou-se Ashi. — Mas o ajudarei de todas as maneiras ao meu alcance. Júlia já me arrancou uma contribuição e eu prometi dar cem dólares. Caso você precise, posso entrar com uma quantia maior.

— Ótimo. Obrigado, Ashi. Há várias maneiras de você ajudar. Você tem acesso à Biblioteca, não tem? Veja se consegue descobrir algum mapa da região em torno de EUR’001, U ou Pré-U. Quanto maior, melhor. Mapas com detalhes topográficos.

Júlia protestou quando soube que Dover Newcome participaria do grupo.

— Nós precisamos dele aqui, pra lancha — lembrou.

— Quando tudo estiver terminado, não precisarão mais — retrucou Quem.

— Santo Deus. Como é que você se arranja com tanta falta de confiança em si mesmo?

— E fácil — disse Quem. — Tenho uma amiga que reza por mim.

Júlia olhou friamente para ele.

— Não pegue mais ninguém do S.I. — recomendou.

— Tampouco da fábrica. E muito menos alguém cuja família ainda tenha que viver às minhas custas!

— Como é que você se arranja com tão pouca fé? — retrucou Quem.

Entre ambos, ele e Dover falaram com cerca de trinta ou quarenta imigrantes sem encontrar nenhum que quisesse tomar parte no ataque. Copiaram nos arquivos do S.I. os nomes e endereços de homens e mulheres de vinte a quarenta anos que tivessem vindo para Liberdade no espaço dos dois anos precedentes: visitavam sete ou oito por semana. O filho de Lars Newman queria entrar para o grupo, mas tinha nascido em Liberdade, e Quem só queria pessoas criadas no seio da Família, acostumadas a controles e ruas, a caminhar devagar e sorrir de satisfação.

Descobriu em Pollensa uma firma capaz de fabricar bombas de dinamite de espoleta mecânica lenta ou rápida, desde que fossem encomendadas por um ilhéu autorizado. E descobriu outra, em Calvia, que fabricaria seis máscaras contra gases, mas não garantiam que fosse eficaz contra LPK, a menos que lhes fornecesse uma amostra para experiência. Lilás, que trabalhava numa clínica de imigrantes, encontrou um médico que sabia a fórmula do LPK, mas nenhum dos laboratórios da ilha podia fabricá-lo. Lítio era um dos principais elementos da composição, e estava em falta há mais de trinta anos.

Começou a pôr um anúncio semanal de duas linhas no Imigrante, propondo a compra de túnicas, sandálias e sacolas de viagem. Um dia recebeu resposta de uma mulher de Andrait e algumas noites depois foi até lá para examinar duas sacolas e um par de sandálias. As sacolas, além de antiquadas, estavam gastas, mas as sandálias eram boas. A mulher e o marido perguntaram o que pretendia fazer com aquilo. Chamavam-se Newbridge e tinham trinta e poucos anos, morando num porão minúsculo e infecto, cheio de ratos. Quem explicou e os dois quiseram logo entrar para o grupo — chegando mesmo a insistir. Possuíam aspeto perfeitamente normal, o que representava um ponto a seu favor, mas com qualquer coisa de febril, uma tensão permanente, que causou certa impressão desfavorável em Quem.

Procurou-os novamente na semana seguinte, junto com Dover, e desta vez lhe pareceram mais calmos e possivelmente aproveitáveis. Chamavam-se Jack e Ria. Haviam tido dois filhos, falecidos nos primeiros meses de vida. Jack era limpador de esgotos e Ria trabalhava numa fábrica de brinquedos. Disseram gozar de boa saúde e, a julgar pelas aparências, não estavam mentindo.

Quem resolveu aceitá-los — provisoriamente, ao menos — e contou-lhes detalhes do plano em andamento.

— Devíamos explodir aquela porra toda, e não apenas as usinas de refrigeração — opinou Jack.

— Uma coisa precisa ficar bem clara — retrucou Quem. — O chefe da expedição sou eu. Se você não estiver preparado pra cumprir fielmente as minhas ordens, sem discussão, é melhor desistir desde já.

— Não, você tem toda a razão — concordou Jack. — Uma operação dessas só pode ter um chefe. Do contrário a coisa não funciona.

— Mas a gente pode dar sugestões, não pode? — perguntou Ria.

— Quanto mais, melhor — respondeu Quem. — Só que as decisões serão minhas, e vocês devem estar prontos a executá-las.

— Eu estou — afirmou Jack.

— E eu também — disse Ria.

Localizar a entrada do túnel resultou mais difícil do que Quem previra. Conseguiu três mapas em grande escala de Eur central e um, extremamente detalhado e topográfico da “Suíça” na Pré-U, no qual copiou a sede de Uni com o maior cuidado, mas todas as pessoas consultadas — ex-engenheiros e geólogos, construtores de minas locais — afirmaram necessitar de outros dados antes que o curso do túnel pudesse ser projetado com alguma esperança de exatidão. Ashi passou a interessar-se mais pelo problema, gastando às vezes horas inteiras na Biblioteca a copiar referências a “Genebra” e às “Montanhas do Jura” de velhas enciclopédias e obras sobre geologia.

Em duas noites de luar consecutivas, Quem e Dover saíram na lancha do S.I., indo até a ponta ocidental de EUR91766 para esperar a passagem dos batelões de cobre. Obedeciam, segundo constataram, a intervalos exatos de quatro horas e vinte e cinco minutos. Cada silhueta baixa e plana avançava com firmeza rumo a noroeste, desenvolvendo trinta quilômetros por hora, deixando um rastro de ondas que deixava a lancha oscilando durante vários minutos. Três horas depois, voltavam da direção oposta, mais altos à tona d’água, vazios.

Dover calculou que os batelões que se dirigiam a Eur, caso sempre mantivessem velocidade e rumo idênticos, alcançariam EUR91772 em pouco mais de seis horas.

Na segunda noite a lancha encostou num batelão e Dover diminuiu a marcha para equiparar as duas velocidades enquanto Quem subia a bordo. Ele andou de batelão durante algum tempo, comodamente sentado sobre a compacta carga achatada de lingotes de cobre em treliças de madeira, e depois desceu de novo para a lancha.

Lilás descobriu outro homem para o grupo, um assistente da clínica chamado Lars Newstone, cujo apelido era Buzz. Tinha trinta e seis anos, a mesma idade de Quem, e era mais alto que o normal: um homem tranquilo e aparentemente capaz. Fazia nove anos que vivia na ilha, três dos quais trabalhando na clínica, período em que assimilara certo cabedal de conhecimentos médicos. Estava casado, porém separado da mulher. Queria juntar-se ao grupo, disse, porque sempre achara que “alguém precisava fazer alguma coisa, ou pelo menos tentar”.

— É um erro — disse — deixar que Uni fique dono do mundo sem sequer tentar reavê-lo.

— Ele é ótimo, justamente o homem de que precisamos — comentou Quem com Lilás depois que Buzz foi embora. — Quem me dera contar com mais dois iguais a ele em vez dos Newbridges. Obrigado.

Lilás conservou-se calada, lavando xícaras na pia. Quem aproximou-se, pegou-a pelos ombros e beijou-lhe os cabelos. Estava no sétimo mês de gravidez, enorme e constrangida.

Em fins de março Júlia ofereceu um jantar no qual Quem, que a essa altura já se achava trabalhando há quatro meses na ideia, apresentou o plano aos convidados — ilhéus abastados — que podiam contribuir, segundo ela, quinhentos dólares no mínimo por cabeça. Forneceu-lhes cópias de uma lista preparada de antemão, contendo o custo total do empreendimento, e mostrou o seu mapa da “Suíça”, com o túnel desenhado na posição aproximada.

Não se mostraram tão receptivos quanto imaginara.

— Três mil e seiscentos pra explosivos? — admirou-se um.

— Exatamente, seu moço — disse Quem. — Se alguém souber onde se consegue por menos preço, gostaria muito que me informasse...

— Que negócio é este, “reforço de sacolas”?

— E pras sacolas que teremos de carregar. Elas não foram feitas pra cargas pesadas. Nós vamos ter que desmanchá-las e fazer tudo de novo com estrutura metálica.

— Mas vocês têm licença pra comprar armas e bombas?

— Quem vai comprar sou eu — explicou Júlia, — e ficarão em minha propriedade até a data da partida da expedição. Eu tenho autorização.

— Quando tencionam ir?

— Por enquanto ainda não sei — respondeu Quem. — As máscaras contra gases só estarão prontas três meses depois do dia da encomenda. E ainda precisamos achar mais um homem e passar por uma fase de treinamento. Espero que se vá em julho ou agosto.

— Tem certeza de que é aqui mesmo que se localiza o túnel?

— Não, nós continuamos fazendo pesquisas. Isso é apenas uma aproximação.

Cinco convidados se escusaram e sete preencheram cheques que atingiram apenas a dois mil e seiscentos dólares — menos da quarta parte dos onze mil necessários.

— Safados cachorros — disse Júlia.

— Em todo caso, já é alguma coisa — retrucou Quem. — Podemos começar as encomendas. E contratar o Capitão Gold.

— Dentro de poucas semanas oferecerei outro jantar — declarou Júlia. — Que é que você tinha que estava tão nervoso? É preciso falar com mais convicção!

O bebê nasceu. Era menino e recebeu o nome de Jan. Tinha os dois olhos castanhos.

Nas noites de domingo e quarta-feira, num sótão desocupado da fábrica de Júlia, Quem, Dover, Buzz, Jack e Ria praticavam diversas modalidades de luta. O professor, oficial do exército, era o Capitão Gold, sujeito baixinho e sorridente que evidentemente antipatizava com o grupo e parecia ter prazer em fazê-los surrarem-se e derrubarem-se mutuamente sobre as ralas esteiras estendidas no chão.

— Dá nele! Dá nele! Dá nele! — mandava, pulando por todos os cantos, na frente deles, de camiseta e calças de campanha. — Dá nele! Assim, oh! Isto é que é dar, e não isto! Assim parece até que está abanando pra alguém! Santo Deus, vocês não têm mesmo jeito, seus ferrinhos! Anda, Olho-Verde, dá nele!

Quem fechou o punho contra Jack e quando viu estava no ar, caindo de costas em cima de esteira.

— Boa! — gritou o Capitão Gold. — Agora, sim, parece coisa de gente! Levanta, Olho Verde, ninguém matou você! Eu não falei que era pra ficar agachado?

Jack e Ria aprendiam logo. Buzz era mais lento.

Júlia ofereceu novo jantar. Quem falou com maior convicção e arrecadaram três mil e cem dólares.

O bebê adoeceu — teve febre e infecção intestinal — mas logo melhorou, adquirindo aspeto robusto e alegre, sugando faminto os seios de Lilás. A mãe mostrava-se mais carinhosa do que nunca, encantada com o filho e interessada em ouvir Quem discorrer sobre a arrecadação de fundos e a efetivação progressiva do plano.

Quem achou o sexto homem: um operário de granja, perto de Santany, chegado de Afri pouco antes dele e de Lilás. Tinha quarenta e três anos, bastante mais velho que o tipo que Quem procurava, mas era forte e ágil, e certo de que Uni podia ser derrotado. Trabalhara em cromatomicrografia no seio da Família e chamava-se Morgan Newmark, embora continuasse atendendo peto nome anterior: Karl.

— Creio que agora até eu seria capaz de descobrir o maldito túnel — disse Ashi, entregando a Quem vinte páginas de anotações copiadas de livros na Biblioteca.

Quem mostrou-as, junto com os mapas, a cada uma das pessoas consultadas anteriormente. Três se prontificaram a traçar uma planta do curso mais provável do túnel. E, como era de prever, apresentaram três lugares diferentes para a entrada da galeria. Duas distavam um quilômetro entre si, e a terceira ficava seis quilômetros mais longe.

— A falta de melhor, isto já basta — comentou Quem com Dover.

A firma que estava fabricando as máscaras contra gases faliu — sem devolver os oitocentos dólares de sinal, pagos por Quem — e tiveram de procurar outra.

Quem voltou a falar com Newbrook, o ex-professor da academia tecnológica, sobre o tipo de usinas de refrigeração que Uni provavelmente possuía. Júlia ofereceu outro jantar e Ashi deu uma festa. Arrecadaram mais três mil dólares. Buzz brigou com um bando de ilhéus e, apesar de assombrá-los com seus conhecimentos pugilísticos, quebrou duas costelas e fraturou a tíbia. Todos começaram a procurar um substituto para ele, caso não pudesse participar da expedição.

Uma noite Lilás acordou Quem.

— Que foi que houve? — perguntou ele.

— Quem?

— Sim, o que é?

Ouviu a respiração de Jan, dormindo no berço.

— Se você tiver razão, e esta ilha for uma prisão onde Uni nos largou...

— Sim?

— E já partiram ataques daqui antes...

— Que é que tem?

Ela permaneceu em silêncio — podia vê-la, deitada de costas com os olhos abertos — e por fim disse:

— Uni não poria outras pessoas aqui, membros “sadios”, pra preveni-lo contra novos ataques?

Ele olhou para ela e não respondeu.

— Quem sabe até... pra participar das expedições? — insistiu. — E providenciar “ajuda” pra todo mundo em Eur?

— Não — protestou, sacudindo a cabeça. — É... não. Eles teriam de fazer tratamento, não teriam? Pra continuar “sadios”.

— De fato — concordou.

— Você pensa que existe algum centro médico escondido na ilha? — perguntou, sorrindo.

— Então? Tenho certeza de que não há nenhum... espion aqui. Antes de recorrer a tais extremos, Uni simplesmente mataria os incuráveis da maneira que você e Ashi sugeriram.

— Como é que você sabe?

— Lilás, não há espions — afirmou. — Você está apenas querendo preocupar-se a toa. Agora durma, ande. Não demora Jan se acorda. Durma de uma vez.

Beijou-a e ela se virou para o outro lado. Passando certo tempo, parecia adormecida.

Ele se manteve acordado.

Não podia ser. Precisariam de tratamentos...

A quantas pessoas tinha revelado o plano, falando sobre o túnel, as verdadeiras comportas de memória? Nem dava para contar. Centenas! E cada uma, na certa, passara adiante...

Chegara até a pôr anúncio no Imigrante: Compram-se sacolas, túnicas, sandálias...

Alguém que fazia parte do grupo? Não. Dover?... impossível. Buzz?... não, nunca. Jack ou Ria?... não. Karl? Realmente ainda não conhecia Karl bem a fundo — era simpático, conversador, bebia além da conta, mas não a ponto de causar preocupações — não, Karl não podia ser senão o que aparentava, trabalhando numa granja nos cafundós do Judas...

Júlia? Estava ficando maluco. Cristo e Wei! Deus do céu!

Lilás andava apenas se inquietando à toa, mais nada.

Não podia haver nenhum espion, nenhuma pessoa por ali que apoiasse Uni às escondidas, porque nesse caso precisaria de tratamentos para continuar naquela condição.

Levaria o plano a cabo, a despeito de tudo.

Adormeceu.

As bombas chegaram: feixes de leves cilindros marrons, amarrados em torno de um preto, no meio. Foram guardados num galpão atrás da fábrica. Cada um tinha uma alça metálica, azul ou amarela, colada a um lado. As azuis era espoletas de trinta segundos, as amarelas, de quatro minutos.

Experimentaram uma numa pedreira de mármore, à noite. Calçaram-na numa fenda e puxaram a alça azul da espoleta, com cinquenta metros de arame, por trás de uma pilha de blocos cortados. A explosão foi tremenda e no lugar da fenda abriu-se um buraco do tamanho de uma porta, de onde caíam pedras, em nuvens de pó.

Todos — com exceção de Buzz — excursionaram a pé pelas montanhas, levando as sacolas cheias de pedras. O Capitão Gold ensinou-lhes a carregar um revólver e focar um raio laser, a sacar, fazer mira e atirar — em pranchas escoradas à parede dos fundos da fábrica.

— Você não ia oferecer outro jantar? — perguntou Quem a Júlia.

— Sim, daqui a uma ou duas semanas — respondeu.

Mas não ofereceu. Nunca mais falou em dinheiro, e ele tampouco.

Passou algum tempo em companhia de Karl e certificou-se de que não era um espion.

A perna de Buzz sarou quase por completo: insistiu que estaria em condições de ir junto.

As máscaras contra gases chegaram, assim como o resto das armas, ferramentas, sapatos, navalhas, revestimentos plásticos, sacolas reformadas, relógios, rolos de arame grosso, balsa pneumática, pá, bússolas e binóculos.

— Experimente me dar um soco — sugeriu o Capitão Gold.

Quem deu e partiu-lhe o lábio.

Demorou até novembro, quase um ano, para aprontar tudo, e então Quem resolveu adiar a partida para o Natal, aproveitando o feriado para chegar a ’001: as estradas de bicicletas e as ruas, carroportos e aeroportos estariam no auge do movimento, os membros andariam com um passo um pouco mais rápido que o normal e mesmo um “sadio” poderia distrair-se esquecendo de tocar na placa de um controle.

No domingo anterior à data marcada, levaram ao sótão tudo o que havia no galpão, enchendo as sacolas — inclusive as que ficariam por dentro — que esvaziariam ao atracar em terra firme. Júlia estava presente, bem como John, o filho de Newman, que devia trazer de volta a lancha do S.I., e Nella, a namorada de Dover — moça de vinte e dois anos, com o cabelo amarelo como o dele, entusiasmadíssima com os preparativos. Ashi compareceu, e o Capitão Gold também.

— Vocês todos são uns doidos varridos — disse o Capitão.

— Cai fora, safado — respondeu Buzz.

Quando terminaram, com as sacolas completamente enroladas em invólucros plásticos e amarradas, Quem pediu aos que não tomariam parte na expedição para que se retirassem. Depois reuniu o grupo num círculo em cima das esteiras.

— Pensei muito sobre o que se deve fazer se um de nós for capturado — disse, — e optei pela seguinte solução: caso alguém seja preso, mesmo que seja apenas um elemento do grupo, todos os restantes regressarão imediatamente à ilha.

Olharam para ele.

— Depois de tanto esforço? — estranhou Buzz.

— Sim. Se um de nós for submetido a tratamento, revelará ao médico que pretendemos entrar pelo túnel, e aí então não teremos mais nenhuma chance de êxito. Portando o melhor é voltar, rápida e discretamente, procurando uma lancha na praia. Pra dizer a verdade, quero ver se localizo uma assim que atracarmos, antes de iniciar o trajeto.

— Cristo e Wei! — exclamou Jack. — Evidentemente, se

três ou quatro fossem capturados, mas um?

— Minha decisão é essa — afirmou Quem. — É a mais acertada.

— E se você for preso? — perguntou Ria.

— Então a chefia passará a Buzz — respondeu Quem, — e quem resolve é ele. Mas por enquanto fica decidido o seguinte: se alguém for capturado, todo mundo recua.

— Portanto que ninguém se deixe pegar — disse Karl.

— Justo — retrucou Quem, levantando-se. — É só — declarou. — Tratem de dormir bastante. Até quarta às sete.

— Dia de Wood — corrigiu Dover.

— Dia de Wood, dia de Wood, dia de Wood — disse Quem. — Até o dia de Wood, às sete.


Beijou Lilás como se fosse sair para tratar de um assunto qualquer e tomasse voltar dentro de poucas horas.

— Tchau, amor — disse.

Ela abraçou-se nele, encostando-lhe o rosto e não disse nada.

Beijou-a de novo, desvencilhou-se de seus braços e aproximando-se do berço. Jan estava entretido em alcançar um pacote vazio de cigarros, pendurado num cordão. Quem beijou-lhe a face e deu-lhe adeus.

Lilás chegou perto e ele a beijou. Abraçaram-se e beijaram- se, e depois ele saiu, sem virar-se para trás.

Ashi esperava lá em baixo, de monociclo. Levou Quem ao cais, em Pollensa.

Todos se achavam no escritório do S.I. às sete menos um quarto e enquanto um cortava o cabelo do outro, o caminhão chegou. John Newman, Ashi e um homem da fábrica levaram as sacolas e a balsa até a lancha, e Júlia distribuiu sanduíches e café. Os homens cortaram a barba e escanhoaram bem o rosto.

Colocaram as pulseiras e os aros fechados que pareciam semelhantes aos normais. A de Quem dizia Jesus AY 31G6912.

Despediu-se de Ashi e beijou Júlia.

— Faça a sua sacola e prepare-se pra conhecer o mundo — disse ele.

— Tome cuidado — recomendou ela. — E procure rezar.

Entrou na lancha sentou-se sobre o tombadilho na frente das sacolas, em companhia de John Newman e dos outros — Buzz e Karl, Jack e Ria: todos tinham um aspecto estranho de membros da Família com aquele cabelo cortado e aquelas caras iguais, imberbes.

Dover ligou o motor e pôs-se ao largo do porto, virando depois em direção à suave claridade alaranjada que se erguia do lado de ‘91766.


2

 

A pálida luz que precede o raiar do dia, abandonaram furtivamente o batelão e empurraram por diante a balsa carregada de sacolas. Três empurravam e três nadavam rentes, observando o recorte escuro dos altos penhascos. Avançaram aos poucos, mantendo-se a uma distância de cerca de cinquenta metros da costa. De dez em dez minutos mais ou menos, trocavam de lugar: os que tinham estado nadando, empurravam e os que tinham estado empurrando, nadavam.

Quando já se encontravam à altura de *91772, desviaram a balsa em direção à praia. Guardaram-na numa pequena enseada de areia rodeada por imponentes escarpas rochosas, descarregaram as sacolas e as desembrulharam. Abriram as internas e vestiram túnicas. Puseram armas, relógios, bússolas e mapas nos bolsos. Depois .cavaram um buraco e esconderam dentro as duas sacolas vazias, todos os invólucros plásticos, a balsa sem ar, as roupas que usavam em Liberdade e a pá utilizada para escavar. Encheram o buraco de terra, eliminaram os vestígios e, de sacolas a tiracolo e sandálias na mão, começaram a caminhar em fila única pela estreita faixa de areia. O céu clareou e suas sombras se projetaram sobre a base rochosa dos penhascos, deslizando para frente e para trás. Karl, quase no fim da fila, pôs-se a assobiar Uma Forte Família. O resto do grupo sorriu e Quem, que vinha à dianteira, também aderiu ao assobio. Alguns dos outros fizeram o mesmo.

Não tardou muito, acharam uma lancha — uma velha lancha azul, emborcada de lado, à espera de incuráveis que se considerariam felizes. Quem virou-se e andando de costas disse:

— Cá está ela, se a gente precisar.

— Não vai ser preciso — retrucou Dover.

Depois de Quem virar-se de novo para a frente, quando já tinham passado adiante, Jack pegou uma pedra, jogou na lancha, mas errou.

Durante o percurso mudaram as sacolas de ombro. Em menos de uma hora chegaram a um controle que fazia face ao lado oposto.

— Nada como estar em casa — ironizou Dover.

Ria soltou um suspiro.

— Oi, Uni — disse Buzz, — como vai?

E bateu de teve na parte de cima do controle ao passar por ele.

Já caminhava sem mancar. Quem voltava-se de vez em quando para verificar.

A faixa de areia começou a alargar-se e chegaram a uma cesta de lixo, seguida por outras. Depois surgiram plataformas de salva-vidas, alto-falantes e um relógio — 6h54m — Quinta 25 Dez 171 A.U. — e uma escada que subia em ziguezague pelo penhasco com enfeites vermelhos e verdes enroscados em diversos pilares da grade.

Largaram as sacolas e as sandálias, tiraram as túnicas e estenderam tudo no chão. Deitaram-se em cima e descansaram ao crescente calor do sol. Quem lembrou coisas que achava que deviam dizer quando falassem com a Família posteriormente. Discutiram o assunto, conjeturando sobre até que ponto a interrupção de Uni afetaria as transmissões de televisão e quanto tempo levaria para serem normalizadas.

Karl e Dover pegaram no sono.

Quem ficou estendido de olhos fechados, pensando em certos problemas que a Família teria que enfrentar quando despertasse, e nas várias maneiras de solucioná-los.

“Cristo, que nos ensinou” — começaram os alto-falantes às oito horas. Dois salva-vidas de gorro vermelho e óculos escuros vieram descendo os degraus em ziguezague. Um deles chegou à plataforma perto do grupo.

— Feliz Natal — disse.

— Feliz Natal — responderam em coro.

— Querendo, já podem entrar n’água — avisou, subindo à plataforma.

Quem, Jack e Dover levantaram-se e dirigiram-se ao mar. Nadaram um pouco, observando os membros que desciam a escada, e depois saíram, tornando a deitar-se na areia.

Quando havia trinta e cinco ou quarenta membros na praia, às 8h22m, os seis se levantaram e começaram a vestir as túnicas e pôr as sacolas no ombro.

Quem e Dover foram os primeiros a subir a escada. Sorriam e davam “Feliz Natal” aos membros que vinham descendo e fingiram facilmente que tocavam no controle ao alto. Os únicos membros nas proximidades estavam na cantina, de costas para eles.

Esperaram junto de um chafariz até que Jack e Ria subissem e depois Buzz e Karl.

Dirigiram-se ao posto de bicicletas, onde havia vinte ou vinte e cinco enfileiradas nos lugares mais à mão. Tiraram as seis últimas, colocaram as sacolas nas cestas, montaram e pedalaram até o início da estrada destinada exclusivamente a ciclistas. Ali esperaram, sorrindo e conversando, que cessasse o trânsito de bicicletas e carros. Depois cruzaram em grupo pelo controle, encostando as pulseiras na parte lateral, para a eventualidade de estarem sendo observados a distância por alguém.

Rumaram a EUR91770 individualmente e aos pares, deixando bastante espaço de intervalo entre si na estrada. Quem ia à frente, com Dover logo atrás. Olhou os ciclistas que se aproximavam e os carros esporádicos que passavam chispando. Havemos de conseguir, pensou. Nós havemos de conseguir.


Entraram separados no aeroporto, reunindo-se perto do quadro de horários de vôo. Os membros aglomeravam-se ao redor deles. A sala de espera, toda enfeitada de vermelho e verde, estava apinhada de gente e o burburinho era tão grande que mal se escutava a música de Natal. Do outro lado das vidraças, aviões imensos giravam e avançavam pesadamente, tomando passageiros em três escadas rolantes ao mesmo tempo, desembarcando filas de membros, num contínuo vaivém entre as pistas.

Eram 9h35m. O próximo vôo para EUR0001 partiria às 11h48m.

— Não me agrada essa ideia de permanecer muito tempo aqui — disse Quem. — Ou o batelão usou energia extra ou então chegou atrasado, e se a diferença ficou manifesta, é bem capaz que Uni perceba o motivo.

— Então vamos tomar logo o primeiro avião — sugeriu Ria, — pra chegar o mais perto possível de ’001 e depois completar o percurso de bicicleta.

— Se a gente espera mais um pouco, chega mais rápido — discordou Karl. — Isto aqui até que não é tão ruim como esconderijo.

— Não — retrucou Quem, consultando o quadro de vôo, — vamos no... das 10h6m pra ’00020. Não tem outro mais cedo e dista apenas cinquenta quilômetros de ’001. Venha, o portão é aquele lá.

Abriram caminho no meio da multidão até a porta giratória no canto da sala e agruparam-se em torno do controle. A porta se abriu, dando passagem a um membro de túnica cor de laranja. Pedindo desculpas, estendeu o braço entre Quem e Dover para tocar no controle — sim, piscou a luz — e seguiu adiante.

Quem tirou disfarçadamente o relógio do bolso e comparou- o com o da parede.

— É a pista seis — disse. — Se houver mais de uma escada rolante, entrem na fila da parte de trás do avião. E façam questão de ficar quase por último, deixando no mínimo seis membros à retaguarda. Vem, Dover.

Pegou-o pelo braço e os dois atravessaram a porta, entrando na área de depósito.

— Vocês não deviam estar aqui — avisou um membro de túnica cor de laranja que estava parado ali.

— Uni autorizou — respondeu Quem. — Trabalhamos nos planos de aeroporto.

— Três-trinta-e-sete-A — explicou Dover.

— Este pavilhão vai ser ampliado no ano que vem — disse Quem.

— Agora entendo o que você queria dizer a respeito do teto — comentou Dover, olhando para cima.

— Sim — confirmou Quem. — Ele podia facilmente ganhar mais um metro de altura.

— Metro e meio — corrigiu Dover.

— A não ser que oi condutos compliquem tudo — disse Quem.

O membro afastou-se e saiu pela porta.

— É, os condutos — observou Dover. — Problema sério.

— Deixe eu lhe mostrar aonde eles vão — continuou Quem. — É muito interessante.

— Se é.

Entraram na área em que os membros de túnica cor de laranja aprontavam os bolos e recipientes de bebida, trabalhando mais depressa do que era costume entre os membros.

— Três-trinta-e-sete A? — perguntou Quem.

— Por que não? — retrucou Dover, apontando para o teto enquanto se separavam para dar passagem a um membro empurrando carrinho. — Está vendo a direção que os condutos tomam?

— Teremos que modificar a instalação toda. Aqui também.

Fingiram tocar no controle e passaram à sala onde havia túnicas penduradas em ganchos. Não encontraram ninguém. Quem fechou a porta e mostrou o armário onde eram guardadas as de cor de laranja.

Vestiram-nas por cima das amarelas e colocaram biqueiras nas sandálias. Rasgaram o fundo dos bolsos das de cor de laranja para poderem enfiar a mão nos das que ficaram por baixo.

Surgiu um membro de branco.

— Olá — saudou. — Feliz Natal.

— Feliz Natal — responderam.

— Mandaram-me lá de ’765 pra ajudar aqui — explicou.

Tinha uns trinta anos.

— Ótimo, estávamos mesmo precisando — disse Quem.

O membro, abrindo a túnica, olhou para Dover, que fechava a sua.

— Por que você deixou a outra por baixo? — estranhou.

— Assim esquenta mais — respondeu Quem, aproximando-se.

Virou-se para Quem, intrigado.

— Esquenta mais? Pra que você quer esquentar-se mais?

— Desculpe, irmão — disse Quem, dando-lhe um soco no estômago.

Ele se curvou para a frente, com um gemido, e Quem desfechou-lhe outro no queixo. O membro endireitou o corpo e caiu para trás. Dover pegou-o por baixo dos braços e estendeu-o no chão. Ficou de olhos fechados, como se estivesse dormindo.

Quem, examinando-o, exclamou:

— Cristo e Wei, o negócio dá certo.

Os dois rasgaram uma série de túnicas e amarraram os pulsos e os tornozelos do membro, atando uma manga entre os seus dentes. Depois ergueram-no e colocaram-no dentro do armário onde era guardada a cera de soalho.

De 9h51m7 o relógio passou a 9h52m.

Embrulharam as sacolas em túnicas cor de laranja, saíram da sala e passaram pelos membros que lidavam com os recipientes de bolo e bebida. Na área de depósito descobriram uma caixa de papelão com toalhas pelo meio e puseram dentro as sacolas embrulhadas. Carregando-a entre ambos, cruzaram o portão e acharam-se no campo.

Havia um avião em frente à pista seis, enorme, desembarcando membros por duas escadas rolantes. Outros membros, de laranja, aguardavam ao pé de cada uma das duas com um carrinho de recipientes.

Afastaram-se do avião, rumo à esquerda. Atravessaram o campo em sentido diagonal, sempre carregando a caixa de papelão, desviaram-se de um caminhão de manutenção que andava devagar e aproximaram-se dos hangares que ficavam num pavilhão de telhado plano e estendia-se até as pistas de decolagem.

Entraram num deles. Continha um avião menor, com membros de laranja por baixo, retirando do bojo uma caixa preta quadrada. Quem e Dover continuaram até os fundos do hangar, onde havia uma porta na parede lateral. Dover abriu-a, espiou lá dentro e fez sinal com a cabeça para Quem.

Os dois entraram e fecharam a porta. Era um almoxarifado: prateleiras de ferramentas, filas de engradados de madeira, tonéis pretos de metal com marca Óleo Lub SG.

— Até parece de encomenda — comentou Quem, enquanto largavam a caixa no chão.

Dover escondeu-se atrás da porta. Tirou o revólver e segurou-o pelo cano.

Agachando-se, Quem desembrulhou uma sacola, abriu-a e retirou uma bomba com alça amarela de quatro minutos.

Separou dois tonéis de óleo e colocou a bomba no chão no meio, com a alça presa pelo esparadrapo virada para cima. Puxou o relógio do bolso e olhou a hora.

— Quanto tempo? — perguntou Dover.

— Três minutos.

Voltou à caixa de papelão. Sempre de relógio em punho, correu o fecho da sacola, tomou a embrulhá-la e fechou as tampas da caixa.

— Tem alguma coisa que se aproveite? — perguntou Dover, acenando com a cabeça para as prateleiras de ferramentas.

Quem aproximou-se de uma delas. A porta do almoxarifado se abriu e entrou um membro de túnica laranja — uma mulher.

— Olá — saudou Quem, apanhando uma ferramenta e guardando o relógio no bolso.

— Olá — disse ela, dirigindo-se ao lado oposto da prateleira.

Olhou de relance para Quem.

— Quem é você? — indagou.

— Li RP — respondeu. — Mandaram-me lá de 765 pra ajudar aqui.

Apanhou outra ferramenta na prateleira: um par de compassos.

— Não está tão ruim como no Natal de Wei — observou ela.

Surgiu outro membro à porta.

— Já encontramos, Paz — avisou. — Estava com Li.

— Eu perguntei a ele e ele respondeu que não estava — disse ela.

— Pois estava — disse o outro membro, desaparecendo.

Ela saiu atrás dele.

— Ele foi o primeiro a quem eu perguntei.

Quem ficou parado, olhando a porta que se fechava lentamente. Dover, escondido no canto, olhou para ele e empurrou-a até o fim, de mansinho. Quem olhou para Dover e depois para a mão que segurava as ferramentas: estava trêmula. Largou as ferramentas, respirou fundo e mostrou a mão a Dover, que sorriu e observou:

— Muito pouco próprio de membro.

Quem tomou fôlego e tirou o relógio do bolso.

— Menos de um minuto — avisou, indo até os tonéis e agachando-se.

Puxou o esparadrapo da alça da bomba.

Dover guardou o revólver no bolso — o da túnica por baixo — e ficou imóvel com a mão na maçaneta.

Quem, controlando o relógio e segurando a alça da espoleta disse:

— Dez segundos.

Esperou, esperou, esperou — e finalmente puxou a alça para cima e pôs-se em pé enquanto Dover abria a porta. Levantaram a caixa de papelão, tirando-a do almoxarifado e fechado imediatamente a porta.

Percorreram o hangar com a caixa — “Calma, devagar”, dizia Quem — e atravessaram o campo em direção ao avião em frente à pista seis. Membros faziam fila nas escadas rolantes e subiam.

— O que é isso? — perguntou um membro de túnica laranja com uma prancheta na mão, caminhando ao lado de ambos.

— Mandaram-nos trazer pra cá — explicou Quem.

— Karl? — chamou outro membro do lado oposto do que trazia a prancheta.

Ele parou e se virou.

— Que é?

Quem e Dover continuaram andando.

Trouxeram a caixa de papelão até a escada rolante da parte de trás do avião e largaram no chão. Quem colocou-se diante do controle, olhando o regulador da escada. Dover esgueirou-se pela fila e postou-se atrás do controle. Os membros passavam entre os dois, encostavam as pulseiras no controle que piscava a luz verde e depois pisavam nos degraus.

Um membro de túnica laranja chegou-se a Quem e disse;

— Eu estou nesta escada.

— Karl acabou de me pedir pra vir pra cá — respondeu Quem. — Mandaram-me lá de ’765 pra ajudar aqui.

— Que foi que houve? — perguntou o membro da prancheta, aproximando-se. — Por que vocês estão em três aqui?

— Eu pensei que estava nesta escada — disse o outro membro.

O ar estremeceu e uma forte explosão partiu dos hangares.

Uma coluna preta, ampla e cada vez maior, pairou sobre o pavilhão, misturada a rolos de fogo. Desabou uma chuva negra e amarelada sobre o telhado e o campo, e membros de túnica laranja saíram correndo dos hangares, disparando e depois diminuindo o passo para se virar e olhar a coluna de labaredas no telhado.

O membro da prancheta arregalou os olhos e precipitou- se naquela direção. O outro correu atrás.

Os membros da fila ficaram imóveis, olhando para o lado dos hangares. Quem e Dover pegaram alguns pelo braço e empurraram por diante.

— Não parem — diziam. — Continuem subindo, por favor. Não há perigo. O avião está esperando. Toquem no controle e pisem no degrau. Continuem subindo, por favor.

Encaminharam os membros a passar pelo controle e subir a escada. Um deles era Jack.

— Que beleza — comentou, olhando por cima do ombro de Quem ao fingir que tocava no controle.

Depois foi a vez de Ria, que parecia tão empolgada como na primeira vez que Quem a tinha visto. E Karl, amedrontado e lúgubre. E Buzz, todo sorridente. Dover pisou na escada logo em seguida. Quem confiou-lhe uma sacola embrulhada e virou-se para os outros membros da fila, os últimos sete ou oito, que estavam parados, contemplando os hangares.

— Continuem subindo, por favor — pediu. — O avião está esperando. Irmã!

— Não há motivo para pânico — disse uma voz de mulher pelo alto-falante. — Ocorreu um acidente nos hangares, mas já está tudo em ordem.

Quem apressou os membros a subir a escada.

— Toquem no controle e pisem no degrau — pediu. — O avião está esperando.

— Membros passageiros, queiram retomar seus lugares na fila — disse a voz. — Os membros que estiverem entrando a bordo dos aviões, continuem a fazê-lo. O serviço não sofrerá interrupção.

Quem fingiu tocar no controle e pisou no degrau atrás do último membro. Subindo a escada com a sacola embrulhada debaixo do braço, olhou de relance para os hangares: a coluna estava preta e enfumaçada mas não se via mais fogo. Virou-se de frente novamente, para as túnicas azul claro.

— Todos os funcionários, com exceção dos quarenta-e-sete e quarenta-e-nove, retomem às suas ocupações — disse a voz de mulher. — Todos os funcionários, com exceção dos quarenta-e-sete e quarenta-e-nove, retomem às suas ocupações. A situação já está normalizada.

Quem entrou no avião e a porta começou a baixar às suas costas.

— O serviço não sofrerá interrupção...

Os membros se achavam de pé, confusos, olhando os lugares tomados.

— Há passageiros extras devido ao feriado — explicou Quem. — Passem lá pra frente e peçam aos membros com filhos pra porem as crianças no colo. Não há outra solução.

Os membros avançaram pelo corredor, olhando para todos os lados do avião.

Os cinco ocupavam a última fileira, junto à dispensa. Dover retirou a sacola embrulhada do assento do corredor e Quem sentou-se.

— Nada mau — disse Dover.

— Ainda não levantamos vôo — retrucou Quem.

Havia burburinho a bordo: os recém-chegados comentavam a explosão com os primeiros que tinham embarcado, espalhando a notícia de fila em fila. O relógio marcava 10h6m, mas o avião não saía do mesmo lugar.

De 10h6m passou a 10h7m.

Os seis se entreolharam e depois viraram a cabeça para a frente, com jeito normal.

O avião se mexeu. Girou levemente para o lado e depois tomou impulso. Começou a acelerar. As luzes diminuíram e as telas de televisão se iluminaram.

Assistiram à Vida de Cristo e A Família no Trabalho, que já era bem velho. Tomaram chá e refrigerante, mas não conseguiram comer: não havia bolos a bordo, por causa da hora, e embora tivessem queijo embrulhados em papel laminado, podiam ser vistos pelos membros que saíssem da despensa. Quem e Dover suavam com as túnicas duplas. Karl cochilava a cada instante, e Ria e Buzz, que o ladeavam, cutucavam-no para mantê-lo acordado e atento.

A viagem demorou quarenta minutos.

Quando o sinal de localização indicou EUR00020, Quem e Dover levantaram-se do assento e ficaram em pé na despensa, comprimindo os botões e deixando escorrer chá e refrigerante pelo cano de esgoto. O avião pousou, deslizou e parou, e os membros começaram a fazer fila para descer. Depois que algumas dezenas passaram pela porta mais próxima, Quem e Dover tiraram os recipientes vazios da despensa, largaram no chão, levantaram as tampas, e Buzz colocou uma sacola embrulhada dentro de cada um deles. Depois Buzz, Karl, Ria e Jack se levantaram e os seis se dirigiram à saída. Quem apoiando um recipiente contra o peito, pediu:

— Querem dar licença, por favor?

Um membro de certa idade cedeu-lhe passagem. Os outros vieram logo atrás. Dover, carregando o segundo recipiente, disse ao membro idoso:

— É melhor esperar até que eu deixe a escada livre.

O membro concordou com um aceno de cabeça, um tanto atônito.

Ao pé da escada rolante Quem encostou o pulso no controle e imediatamente cobriu-o com o corpo, impedindo a visão dos membros na sala de espera, Buz, Karl, Ria e Jack passaram por ele, fingindo encostar a pulseira. Dover debruçou-se no controle e fez sinal com a cabeça para o membro que aguardava lá em cima.

Os quatro rumaram para a sala de espera e Quem e Dover atravessaram o campo até o portão, entrando na área de depósito. Largando os recipientes por terra, retiraram as sacolas e esguei- raram-se entre duas fileiras de engradados. Descobriram um espaço livre perto da parede, onde despiram as túnicas cor de laranja e descalçaram as biqueiras das sandálias.

Deixaram a área de depósito pela porta giratória, de sacolas no ombro. Os outros os esperavam ao redor do controle. Saíram aos pares do aeroporto — estava quase tão apinhado de gente quanto o de ’91770 — e reuniram-se de novo no posto de bicicletas.

Ao meio-dia achavam-se ao norte de ’00018. Comeram suas bolas de queijo entre a estrada de ciclistas e o Rio da Liberdade, num vale cercado de montanhas que se erguiam a impressionantes altitudes franjeadas de neve. Enquanto comiam, examinaram os mapas. Ao cair da noite, segundo seus cálculos, chegariam a um parque a poucos quilômetros da entrada do túnel.

Pouco depois das três horas, quando se aproximavam de ’00013. Quem notou uma ciclista adolescente que vinha na direção oposta, olhando para os rostos do grupo que seguia rumo ao norte — inclusive seu, ao se cruzarem — com uma expressão preocupada, de membro “querendo-ajudar”. Passado um instante, avistou outra ciclista olhando para eles do mesmo modo ligeiramente nervoso. Era uma mulher de idade que levava flores na cesta. Sorriu-lhe ao cruzar por ela e depois não se virou para trás. Nem a estrada, nem a rodovia paralela apresentavam sinais de anormalidade. A algumas centenas de metros mais adiante, ambas dobravam à direita e desapareciam nos fundos de uma usina elétrica.

Pedalou sobre a relva, parou e, olhando à retaguarda, acenou aos companheiros à medida que surgiam.

Empurraram as bicicletas bem para longe da estrada. Achavam-se no último trecho de vegetação antes da cidade: uma extensão de relva seguida por mesas de piquenique e um arvoredo que encobria uma pequena elevação no terreno.

— Parando de meia em meia hora jamais chegaremos — disse Ria.

Sentaram na relva.

— Acho que estão examinando as pulseiras logo adiante — disse Quem. — Telecomputadores e túnicas de cruz vermelha. Notei dois membros que vinham de lá com jeito de quem procura localizar alguém doente. Estavam com aquela cara de “será-que-posso-ajudar?”

— Que ódio — exclamou Buzz.

— Cristo e Wei, Quem — disse Jack, — se vamos começar a nos preocupar com as expressões faciais dos membros, seria preferível voltar logo pra casa.

Quem olhou para ele.

— Um exame de pulseiras não é tão implausível assim, não é? — retrucou. — A esta altura Uni já deve saber que a explosão em ’91770 não foi acidente, e é capaz de ter adivinhado exatamente o motivo. Este é o caminho mais curto de ’020 a Uni... e vamos chegar à primeira curva abrupta dentro de uns doze quilômetros.

— Está certo, então eles estão examinando as pulseiras — disse Jack. — Pra que ódio andamos armados?

— É — apoiou Ria.

— Se formos abrir caminho a bala, teremos todos os ciclistas no nosso encalço — retrucou Dover.

— Nesse caso, a gente atira uma bomba pra trás — sugeriu Jack. — Precisamos andar depressa, em vez de ficar de rabo sentado como se estivéssemos jogando xadrez. De qualquer modo esses pamonhas já são mesmo uns mortos-vivos: que diferença faz se a gente liquida meia dúzia? Nós vamos salvar todo o resto, não vamos?

— As armas e as bombas são pra quando for necessário — disse Quem, — e não pra quando se pode deixar de usá-las.

Virou-se para Dover.

— Dá uma volta, ali pelo mato — pediu-lhe, — e vê se enxerga o que está depois da curva.

— O.K. —concordou Dover.

Levantou-se, cruzou o gramado, juntou alguma coisa do chão, jogou dentro de uma cesta de lixo e penetrou no arvoredo. A túnica amarela se transformou em pontinhos esparsos desaparecendo elevação acima.

Deixaram de observá-lo. Quem tirou o mapa do bolso.

— Merda — disse Jack.

Quem não fez comentários. Examinava o mapa.

Buzz esfregou a perna e de repente afastou a mão.

Jack arrancava pedaços de relva do chão. Ria, sentada a seu lado, observava-o.

— Que é que você sugere — perguntou Jack, — se eles estiverem examinando as pulseiras?

Quem tirou os olhos de cima do mapa e, depois de uma pausa, respondeu:

— Recuaremos um pouco, atalhando pelo leste e fazendo uma volta.

Jack arrancou mais relva e depois arremessou longe.

— Vem — disse a Ria, pondo-se em pé.

Ela se levantou de um salto, os olhos brilhando.

— Aonde vocês vão? — perguntou Quem.

— Aonde tínhamos planejado — respondeu Jack, olhando-o com firmeza. — ao parque perto do túnel. Esperaremos por vocês até clarear o dia.

— Sentem-se, todos os dois — ordenou Karl.

— Vocês irão, mas junto conosco e quando eu achar que se deve ir — retrucou Quem. — Vocês concordaram com isso no começo.

— Mudei de ideia — disse Jack. — Pra mim é tão desagradável receber ordens de você quanto de Uni.

— Esses dois vão estragar tudo — disse Buzz.

— Vocês é que vão! — revidou Ria. — Parando, recuando, fazendo voltas... quando se quer fazer uma coisa a gente faz logo!

— Sentem aí e esperem até que Dover venha — ordenou Quem.

Jack sorriu.

— Vai-me obrigar? — perguntou. — Logo aqui, bem na frente da Família?

Fez sinal para Ria e os dois pegaram as bicicletas, firmando as sacolas nas cestas.

Quem se levantou e guardou o mapa no bolso.

— Não podemos dividir o grupo pelo meio deste jeito — disse. — Pare um pouco pra refletir, Jack. Como vamos saber se...

— Você é quem gosta de parar pra refletir — retrucou Jack. — Eu prefiro entrar logo no túnel.

E virou as costas, dando impulso à bicicleta. Ria empurrava a sua ao lado dele. Dirigiram-se à estrada.

Quem deu um passo atrás dos dois e estacou, de queixo tenso, os punhos cerrados. Sentiu vontade de gritar, de tirar o revólver do bolso e forçá-los a voltar — mas havia ciclistas passando, membros disseminados por perto, sobre a relva.

— Não há nada que você possa fazer, Quem — disse Karl.

— Os filhos da luta — exclamou Buzz.

À beira da estrada, Jack e Ria montaram nas bicicletas. Jack abanou para o grupo.

— Até logo! — gritou. — A gente se vê na sala da televisão!

Ria também abanou e os dois foram embora, pedalando.

Buzz e Karl abanaram para eles.

Quem arrancou bruscamente a sacola de sua bicicleta e colocou-a a tiracolo. Tirou outra e jogou-a ao colo de Buzz.

— Karl, você fique aqui — disse. — Venha comigo, Buzz.

Entrou no mato, dando-se conta de que estava caminhando depressa demais, encolerizado, comportando-se de modo anormal, mas pensou Lute-se! Subiu a elevação de terreno na direção tomada por Dover. Que fossem PRO INFERNO!

Buzz alcançou-o.

— Cristo e Wei — exclamou, — não jogue as sacolas assim!

— Que vão pro inferno! — respondeu Quem. — Percebi logo à primeira vista que aqueles dois não valiam nada! Mas fechei os olhos porque estava tão desesperado... diabos me levem! A culpa é minha. Exclusivamente minha.

— Talvez não haja exame de pulseiras e eles fiquem à nossa espera no parque — alvitrou Buzz.

Apareceram lampejos amarelos entre as árvores: Dover vinha descendo. Parou, enxergou-os e aproximou-se.

— Você tinha razão — disse. — Médicos na estrada, médicos no ar...

— Jack e Ria foram na frente — avisou Quem.

Dover arregalou os olhos.

— E você deixou?

— Por acaso podia impedir? — retrucou Quem. Pegou Dover pelo braço e virou-o de costas. — Mostre o caminho.

Dover conduziu-os rapidamente elevação acima pelo meio das árvores.

— Nunca que conseguirão passar — disse. — Tem um centro médico inteiro e barreiras pra impedir que as bicicletas dêem meia volta.

Emergiram do arvoredo, deparando com um declive de rochas. Buzz chegou por último, afobado.

— Abaixem-se, senão eles enxergam a gente — aconselhou Dover.

Deitaram-se de bruços e rastejaram declive acima. Lá do alto avistava-se a cidade, ’00013, com seus edifícios brancos recortados nítidos à luz do sol, a rede de monotrílhos entrelaçados e faiscantes, a orla das rodovias rutilante de carros. O rio descrevia uma curva e continuava rumo ao norte, azul e estreito, sulcado por vagarosas lanchas de turismo e uma longa fileira de barcas passando sob as pontes.

Ao pé do declive via-se uma meia concha de paredes de pedra, cujo pavimento formava uma praça semicircular onde se bifurcava a estrada de ciclistas: descia do norte, por trás da usina elétrica, desviando-se a certa altura para cruzar a rodovia de carros vertiginosos e penetrar na cidade por uma ponte. O outro braço cortava a praça na parte central, acompanhando a margem oriental do rio sinuoso até reencontrar a rodovia paralela. Antes de se bifurcar, uma série de barreiras dividia em três filas os ciclistas que se aproximavam, cada uma forçada a desfilar perante um grupo de membros de cruz vermelha na túnica, parados junto a ura pequeno controle de aspecto insólito. Três membros, munidos de equipamento contra a lei da gravidade, pairavam no ar, de rosto virado para baixo, sobre cada grupo. Dois carros e um helicóptero ocupavam o canto mais próximo da praça, enquanto outros membros de cruz vermelha na túnica, parados junto à fila de ciclistas que deixava a cidade, os apressavam a seguir viagem quando diminuíam a marcha para observar os que tocavam nos controles.

— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou Buzz.

Quem, de olho naquela cena, puxou o fecho da sacola.

— Eles devem estar nalgum ponto da fila — opinou.

Achou os binóculos, colocou-os em posição e acertou o foco.

— Estão, sim — confirmou Dover. — Está vendo as sacolas nas cestas?

Quem percorreu a fila e localizou Jack e Ria. Os dois pedalavam devagar, lado a lado, em pistas flanqueadas por barreiras de madeira. Jack olhava em frente e movia os lábios. Ria acenava com a cabeça. Guiavam apenas com a mão esquerda. Mantinham a direita no bolso.

Quem passou os binóculos a Dover e virou-se para a sua sacola.

— Temos que ajudá-los a passar pelo controle — disse. — Se conseguirem alcançar a ponte, talvez possam sumir na cidade.

— Eles vão começar a atirar quando chegarem aos controles — opinou Dover.

Quem entregou a Buzz uma bomba de alça azul.

— Puxe o esparadrapo e atire quando eu mandar — disse,

— Faça pontaria contra o helicóptero: dois coelhos de uma só cajadada.

— Atire antes que comecem o tiroteio — recomendou Dover.

Quem pegou de novo os binóculos e procurou Jack e Ria até encontrá-los outra vez. Esquadrinhou as filas na frente deles: havia cerca de quinze bicicletas entre os dois e os grupos nos controles.

— Eles têm balas ou raios laser? — perguntou Dover.

— Balas — respondeu Quem. — Não se preocupe, eu calculo direito o tempo.

Observou as filas de bicicletas avançando lentamente, graduando-se a velocidade.

— De um jeito ou doutro, provavelmente vão começar a disparar disse Buzz. — Só pra se divertir. Você reparou no olhar de Ria?

— Prepare-se — pediu Quem. Esperou até que Jack e Ria ficassem a cinco bicicletas de distância dos controles. — Agora — disse.

Buzz puxou a alça e atirou a bomba furtivamente de lado. Ela bateu numa pedra, saiu rolando caiu de uma saliência e foi pousar perto do lado do helicóptero.

— Volte pra cá — mandou Quem.

Espiou outra vez pelos binóculos. Jack e Ria estavam a duas bicicletas dos controles, com ar tenso mas confiante. Recuou de novo entre Buzze Dover.

— Parece até que estão indo pra uma festa — comentou.

Esperaram, de rosto colado às pedras. A bomba explodiu e o declive estremeceu. Lá embaixo saltou metal para tudo quanto foi lado. Fez-se silêncio e espalhou-se pelo ar o cheiro acre do explosivo. Depois ouviram-se vozes, primeiro em murmúrio e por fim mais alto.

— Aqueles dois! —gritou alguém.

Debruçaram-se à beira do declive..

Duas bicicletas corriam rumo à ponte. Todas as outras estavam imóveis, os ciclistas apoiando um pé no chão, de frente para o helicóptero — emborcado e fumegante — e agora voltados para as duas bicicletas que ganhavam velocidade e para os membros de cruz vermelha na túnica que corriam atrás. Os três membros no ar mudaram de direção e voaram para a ponte.

Quem levantou os binóculos — e viu as costas curvadas de Ria e Jack pouco mais adiante. Pedalavam velozmente em terreno absolutamente plano, parecendo encontrar dificuldade em afastar-se com maior rapidez. Formou-se um nevoeiro brilhante, cobrindo-os parcialmente.

Ao alto, pairava um membro apontado para baixo um cilindro que expelia denso gás branco.

— Ele conseguiu pegá-los! — exclamou Dover.

Ria parou, montada na bicicleta. Jack olhou para ela por cima do ombro.

— Ria, Jack não — retrucou Quem.

Jack parou e virou-se para o alto, de arma em punho. Desfechou dois tiros.

O membro no ar claudicou (trek e treck, soaram os tiros) deixando cair das mãos o cilindro que expelia gás branco.

Para fugir da ponte os membros pedalavam em ambas as direções, correndo de olhos arregalados sobre as calçadas laterais.

Ria sentou-se ao lado da bicicleta. Virou a cabeça: tinha o rosto úmido e brilhante. Parecia aflita. Túnicas com cruzes vermelhas toldaram a visão que tinham dela.

Jack olhava fixamente, de arma em punho. Sua boca abriu-se ao máximo, redonda, fechou-se e tomou a se abrir no meio do brilhante nevoeiro. (Ria!"— ouviu Quem, baixo e distante.) Jack ergueu o revólver (Ria!) e disparou três vezes.

Outro membro pairando no ar (trek, trek, trek) claudicou e deixou cair o cilindro. A calçada embaixo começou a se tingir de vermelho.

Quem tirou os binóculos.

— A máscara contra gases! — sussurrou Buzz, também de binóculos.

Dover escondera o rosto entre os braços.

Quem soergueu o corpo e olhou sem os binóculos: na estreita ponte deserta um ciclista de azul claro avançava vacilante ao longe, já na metade, perseguido por um membro no ar a curta distância.

Os outros dois, mortos ou moribundos, rodopiavam lentamente no ar, à deriva. Os de cruz vermelha na túnica tinham formado agora uma fila da largura da ponte, um deles ajudando a levantar uma mulher de amarelo ao lado de uma bicicleta caída, tomando-a pelos ombros e levando-a de volta à praça.

O ciclista parou e olhou a fila de membros de cruz vermelha na túnica, depois virou-se e curvou-se sobre a parte da frente da bicicleta. O membro no ar aproximou-se rápido e fez pontaria com a arma: uma grossa pluma branca emergiu dela e envolveu o ciclista.

Quem pôs os binóculos.

Jack, com o rosto coberto pela máscara cinzenta contra gases, apoiado do lado esquerdo no meio do nevoeiro brilhante, colocava uma bomba na ponte. Depois saiu pedalando, derrapou, escorregou e caiu. Ergueu-se sobre um braço, com a bicicleta imóvel entre as pernas. A sacola, arremessada fora da cesta, estava ao lado da bomba.

— Oh Cristo e Wei — exclamou Buzz.

Quem tirou os binóculos, olhou para a ponte e depois começou a enrolar, bem firme, pelo meio, a alça de enfiar no pescoço.

— Quantos? — perguntou Dover, fitando-o.

— Três — respondeu Quem.

A explosão foi luminosa, violenta e demorada. Quem viu Ria afastando-se da ponte, conduzida pelo membro de cruz vermelha na túnica. Ela não se virou para trás.

Dover, agora ajoelhado e contemplando a cena, voltou-se para Quem.

—A sacola inteira dele — explicou Quem. — Ele estava bem ao lado.

Guardou os binóculos na sacola e puxou o fecho.

— Temos de dar o fora daqui. Guarde os seus, Buzz. Venham.

Pretendia não olhar mais para baixo, mas antes de abandonar o declive não resistiu e olhou.

O meio da ponte estava negro e entulhado de pedras. As partes laterais tinham desmoronado. Uma roda de bicicleta jazia no chão fora da área enegrecida, além de outras coisas menores, rumo às quais os membros de cruz vermelha na túnica adiantavam-se lentamente. Farrapos azuis claros espalhavam-se sobre a ponte e flutuavam nas águas do rio.


Reuniram-se de novo a Karl e contaram-lhe o que tinha acontecido. Os quatro montaram nas bicicletas e pedalaram alguns quilômetros em direção ao sul, entrando no parque. Descobriram um riacho, saciaram a sede e se lavaram.

— E agora, vamos voltar? — perguntou Dover.

— Não — disse Quem, — todos não.

Olharam para ele.

— Eu disse que voltaríamos — explicou, — porque se alguém fosse capturado, eu queria que ele acreditasse e confessasse isso quando o interrogassem. Como provavelmente Ria está fazendo neste momento.

Pegou o cigarro que passava de mão em mão, malgrado o risco do cheiro do fumo chegar até longe, deu uma tragada e entregou-o a Buzz.

— Um de nós vai voltar — continuou. — Pelo menos espero que seja apenas um... pra soltar uma bomba ou duas daqui até a costa, tomar a lancha e dar a impressão de que nos mantivemos fiéis ao plano. Os outros se esconderão no parque, procurando uma maneira de se aproximar o mais possível de ’001 e localizar o túnel dentro de duas semanas no máximo.

— Boa — apoiou Dover.

— Nunca vi cabimento numa desistência tão fácil assim — concordou Buzz.

— Será que dá pra fazer tudo com três? — perguntou

Karl.

— A gente só descobre tentando — retrucou Quem. — E em seis, será que daria? Talvez pudesse ser feito por um e talvez nem por doze. Mas depois de chegar até aqui, raios me partam se não hei de descobrir.

— Conte comigo — disse Karl. — Perguntei por perguntar.

— Comigo também — disse Buzz.

— E comigo idem — disse Dover.

— Ótimo — exclamou Quem. — Três têm melhores possibilidades do que um, quanto a isso eu tenho certeza. Karl, quem vai voltar é você.

Karl olhou para ele.

— Por que logo eu? — perguntou.

— Porque você tem quarenta e três anos. Desculpe, irmão, mas não me ocorre nenhum outro critério válido pra decisão.

— Quem — interveio Buzz, — creio que é melhor lhe avisar: a minha perna está doendo muito há várias horas. Pra mim, tanto faz voltar como continuar, mas... bem, achei que você devia saber.

Karl passou o cigarro a Quem. Estava reduzido a uns dois centímetros. Esmigalhou-o no chão.

— Está certo, Buzz, então é melhor você voltar — disse.

— Mas antes faça a barba. Convém que todos se barbeiem, pra eventualidade de se encontrar alguém.

Barbearam-se e depois Quem e Buzz traçaram um caminho para Buzz chegar ao lado mais perto da costa, a cerca de trezentos quilômetros de distância. Ele jogaria uma bomba no aeroporto em ’00015 e outra quando se encontrasse já próximo ao mar. Guardou mais duas, para qualquer imprevisto, e entregou as outras a Quem.

— Tendo sorte, você estará numa lancha amanhã de noite — disse Quem. — Tome cuidado pra que ninguém veja você sair nela. Diga a Júlia, e a Lilás também, que ficaremos escondidos por duas semanas no mínimo, talvez mais.

Buzz apertou a mão de todos, desejou-lhes felicidades, tomou a bicicleta e partiu.

— Vamos ficar aqui mesmo provisoriamente, nos revezando pra dormir um pouco — disse Quem. — Hoje à noite iremos buscar bolos e túnicas na cidade.

— Bolos — suspirou Karl.

— Serão duas semanas bem longas — comentou Dover.

— Não serão, não — retrucou Quem. — Isso foi para o caso que ele fosse capturado. Seguiremos com o plano dentro de quatro ou cinco dias.

Cristo e Wei — exclamou Karl, sorrindo. — Como você é precavido, hem?


CONTINUA

QUARTA PARTE

 

REAGINDO


1

 

Ficou ocupadíssimo, como jamais estivera em toda a sua vida: planejava, procurava pessoas e equipamento, viajava, aprendia, explicava, suplicava, inventava, decidia. Sem incluir o trabalho na fábrica, onde Júlia, apesar do tempo livre concedido, empenhava-se em se ressarcir dos seis e cinquenta semanais em consertos de maquinaria e incremento de produção. E à medida que a gravidez de Lilás progredia, multiplicavam-se os afazeres domésticos que lhe competiam. Andava mais exausto do que nunca; mais vivo, também: na véspera completamente farto de tudo e, no dia seguinte, com redobrada convicção — mais lúcido.

O plano, o projeto, aquilo, assemelhava-se a uma máquina que, para ser montada, requeria que ele localizasse ou fabricasse todos os componentes indispensáveis, interdependentes em questão de formato e dimensões.

Antes de tomar uma resolução sobre o tamanho da expedição, precisava ter uma ideia bem nítida do objetivo principal. Para isso, era fundamental obter maiores informações sobre o funcionamento de Uni e seus pontos mais vulneráveis.

Conversou com Lars Newman, o amigo de Ashi que dirigia uma escola. Lars indicou-lhe um homem em Andrait que, por sua vez, recomendou-lhe outro, em Manacor.

— Logo vi que aquelas comportas eram insuficientes pro volume de isolamento que pareciam possuir — disse o homem de Manacor. Chamava-se Newbrook e andava beirando os setenta. Antes de abandonar a Família lecionara numa academia tecnológica. Estava trocando a fralda de uma netinha e aborreceu-se porque ela não ficava quieta.

— Quer parar de se mexer? Bem, supondo que vocês consigam entrar — continuou, dirigindo-se a Quem, — é óbvio que terão que destruir a fonte de energia. O reator ou, o que é mais provável, os reatores.

— Mas eles podem ser substituídos bastante rápido, não podem? — perguntou. — Eu queria deixar Uni sem funcionar muito tempo, o suficiente pra despertar a Família e resolver o que se fará com ele.

— Diabo, pára quieta! — reclamou Newbrook. — A usina de refrigeração, então.

— A usina de refrigeração?

— Exatamente. A temperatura interna das comportas precisa conservar-se perto do zero absoluto. Aumente alguns graus e as grades deixarão... pronto, viu o que você fez?... as grades perderão a supercondutividade. A memória de Uni será destruída.

Levantou a netinha, que estava aos berros, e apoiou-a contra o ombro, batendo-lhe de leve nas costas.

— Psiu, psiu.

— Destruída em caráter permanente?

Newbrook acenou afirmativamente com a cabeça, acalmando a criança que não parava de chorar.

— Mesmo que a refrigeração seja restaurada — explicou,

— todos os dados terão que ser fornecidos novamente. Levará anos.

— E justamente o que eu quero — disse Quem.

A usina de refrigeração.

E a sobressalente, caso houvesse.

Três usinas de refrigeração para deixar fora de combate. Dois homens para cada uma, segundo os seus cálculos: um para colocar os explosivos e o outro para manter os membros à distância.

Seis homens para paralisar a refrigeração de Uni e depois guardar as entradas contra os reforços que ele decerto pediria com seu cérebro dissolvendo-se em murmúrios balbuciantes. Poderiam os seis controlar os elevadores e o túnel? (Papai Jan não havia mencionado outros poços no espaço deixado de reserva?) Mas seis representavam o mínimo, e o mínimo era o que ele queria, porque bastaria que apenas um fosse capturado no trajeto para revelar todo o plano aos médicos e Uni estaria à espera do grupo no túnel. Quanto menor o número de participantes, menor o risco.

Ele e mais cinco.

O rapaz de cabelo amarelo que pilotava a lancha-patrulha do S.I. — Vito Newcome, mas cujo apelido era Dover — ficou pintando a amurada do barco enquanto escutava, e depois, quando Quem mencionou o túnel e as verdadeiras comportas de memória, parou de trabalhar. Acocorado sobre os calcanhares, de brocha caída na mão, levantou a cabeça para Quem. Tinha os olhos espremidos e respingos brancos na barba curta e no peito.

— Tem certeza? — perguntou.

— Absoluta.

— Já era tempo que alguém atacasse de novo aquele filho da luta.

Dover Newcome fitou o polegar, manchado de branco, e limpou-o na coxa da calça.

Quem agachou-se a seu lado.

— Você não quer tomar parte? — perguntou-lhe.

Dover olhou para ele e, depois de breve hesitação, sacudiu a cabeça.

— Quero. Claro que quero.

Ashi respondeu que não, tal como Quem esperava. Convidou-o unicamente porque do contrário, a seu ver, cometeria uma falta de consideração.

— Eu simplesmente acho que não vale a pena arriscar — justificou-se Ashi. — Mas o ajudarei de todas as maneiras ao meu alcance. Júlia já me arrancou uma contribuição e eu prometi dar cem dólares. Caso você precise, posso entrar com uma quantia maior.

— Ótimo. Obrigado, Ashi. Há várias maneiras de você ajudar. Você tem acesso à Biblioteca, não tem? Veja se consegue descobrir algum mapa da região em torno de EUR’001, U ou Pré-U. Quanto maior, melhor. Mapas com detalhes topográficos.

Júlia protestou quando soube que Dover Newcome participaria do grupo.

— Nós precisamos dele aqui, pra lancha — lembrou.

— Quando tudo estiver terminado, não precisarão mais — retrucou Quem.

— Santo Deus. Como é que você se arranja com tanta falta de confiança em si mesmo?

— E fácil — disse Quem. — Tenho uma amiga que reza por mim.

Júlia olhou friamente para ele.

— Não pegue mais ninguém do S.I. — recomendou.

— Tampouco da fábrica. E muito menos alguém cuja família ainda tenha que viver às minhas custas!

— Como é que você se arranja com tão pouca fé? — retrucou Quem.

Entre ambos, ele e Dover falaram com cerca de trinta ou quarenta imigrantes sem encontrar nenhum que quisesse tomar parte no ataque. Copiaram nos arquivos do S.I. os nomes e endereços de homens e mulheres de vinte a quarenta anos que tivessem vindo para Liberdade no espaço dos dois anos precedentes: visitavam sete ou oito por semana. O filho de Lars Newman queria entrar para o grupo, mas tinha nascido em Liberdade, e Quem só queria pessoas criadas no seio da Família, acostumadas a controles e ruas, a caminhar devagar e sorrir de satisfação.

Descobriu em Pollensa uma firma capaz de fabricar bombas de dinamite de espoleta mecânica lenta ou rápida, desde que fossem encomendadas por um ilhéu autorizado. E descobriu outra, em Calvia, que fabricaria seis máscaras contra gases, mas não garantiam que fosse eficaz contra LPK, a menos que lhes fornecesse uma amostra para experiência. Lilás, que trabalhava numa clínica de imigrantes, encontrou um médico que sabia a fórmula do LPK, mas nenhum dos laboratórios da ilha podia fabricá-lo. Lítio era um dos principais elementos da composição, e estava em falta há mais de trinta anos.

Começou a pôr um anúncio semanal de duas linhas no Imigrante, propondo a compra de túnicas, sandálias e sacolas de viagem. Um dia recebeu resposta de uma mulher de Andrait e algumas noites depois foi até lá para examinar duas sacolas e um par de sandálias. As sacolas, além de antiquadas, estavam gastas, mas as sandálias eram boas. A mulher e o marido perguntaram o que pretendia fazer com aquilo. Chamavam-se Newbridge e tinham trinta e poucos anos, morando num porão minúsculo e infecto, cheio de ratos. Quem explicou e os dois quiseram logo entrar para o grupo — chegando mesmo a insistir. Possuíam aspeto perfeitamente normal, o que representava um ponto a seu favor, mas com qualquer coisa de febril, uma tensão permanente, que causou certa impressão desfavorável em Quem.

Procurou-os novamente na semana seguinte, junto com Dover, e desta vez lhe pareceram mais calmos e possivelmente aproveitáveis. Chamavam-se Jack e Ria. Haviam tido dois filhos, falecidos nos primeiros meses de vida. Jack era limpador de esgotos e Ria trabalhava numa fábrica de brinquedos. Disseram gozar de boa saúde e, a julgar pelas aparências, não estavam mentindo.

Quem resolveu aceitá-los — provisoriamente, ao menos — e contou-lhes detalhes do plano em andamento.

— Devíamos explodir aquela porra toda, e não apenas as usinas de refrigeração — opinou Jack.

— Uma coisa precisa ficar bem clara — retrucou Quem. — O chefe da expedição sou eu. Se você não estiver preparado pra cumprir fielmente as minhas ordens, sem discussão, é melhor desistir desde já.

— Não, você tem toda a razão — concordou Jack. — Uma operação dessas só pode ter um chefe. Do contrário a coisa não funciona.

— Mas a gente pode dar sugestões, não pode? — perguntou Ria.

— Quanto mais, melhor — respondeu Quem. — Só que as decisões serão minhas, e vocês devem estar prontos a executá-las.

— Eu estou — afirmou Jack.

— E eu também — disse Ria.

Localizar a entrada do túnel resultou mais difícil do que Quem previra. Conseguiu três mapas em grande escala de Eur central e um, extremamente detalhado e topográfico da “Suíça” na Pré-U, no qual copiou a sede de Uni com o maior cuidado, mas todas as pessoas consultadas — ex-engenheiros e geólogos, construtores de minas locais — afirmaram necessitar de outros dados antes que o curso do túnel pudesse ser projetado com alguma esperança de exatidão. Ashi passou a interessar-se mais pelo problema, gastando às vezes horas inteiras na Biblioteca a copiar referências a “Genebra” e às “Montanhas do Jura” de velhas enciclopédias e obras sobre geologia.

Em duas noites de luar consecutivas, Quem e Dover saíram na lancha do S.I., indo até a ponta ocidental de EUR91766 para esperar a passagem dos batelões de cobre. Obedeciam, segundo constataram, a intervalos exatos de quatro horas e vinte e cinco minutos. Cada silhueta baixa e plana avançava com firmeza rumo a noroeste, desenvolvendo trinta quilômetros por hora, deixando um rastro de ondas que deixava a lancha oscilando durante vários minutos. Três horas depois, voltavam da direção oposta, mais altos à tona d’água, vazios.

Dover calculou que os batelões que se dirigiam a Eur, caso sempre mantivessem velocidade e rumo idênticos, alcançariam EUR91772 em pouco mais de seis horas.

Na segunda noite a lancha encostou num batelão e Dover diminuiu a marcha para equiparar as duas velocidades enquanto Quem subia a bordo. Ele andou de batelão durante algum tempo, comodamente sentado sobre a compacta carga achatada de lingotes de cobre em treliças de madeira, e depois desceu de novo para a lancha.

Lilás descobriu outro homem para o grupo, um assistente da clínica chamado Lars Newstone, cujo apelido era Buzz. Tinha trinta e seis anos, a mesma idade de Quem, e era mais alto que o normal: um homem tranquilo e aparentemente capaz. Fazia nove anos que vivia na ilha, três dos quais trabalhando na clínica, período em que assimilara certo cabedal de conhecimentos médicos. Estava casado, porém separado da mulher. Queria juntar-se ao grupo, disse, porque sempre achara que “alguém precisava fazer alguma coisa, ou pelo menos tentar”.

— É um erro — disse — deixar que Uni fique dono do mundo sem sequer tentar reavê-lo.

— Ele é ótimo, justamente o homem de que precisamos — comentou Quem com Lilás depois que Buzz foi embora. — Quem me dera contar com mais dois iguais a ele em vez dos Newbridges. Obrigado.

Lilás conservou-se calada, lavando xícaras na pia. Quem aproximou-se, pegou-a pelos ombros e beijou-lhe os cabelos. Estava no sétimo mês de gravidez, enorme e constrangida.

Em fins de março Júlia ofereceu um jantar no qual Quem, que a essa altura já se achava trabalhando há quatro meses na ideia, apresentou o plano aos convidados — ilhéus abastados — que podiam contribuir, segundo ela, quinhentos dólares no mínimo por cabeça. Forneceu-lhes cópias de uma lista preparada de antemão, contendo o custo total do empreendimento, e mostrou o seu mapa da “Suíça”, com o túnel desenhado na posição aproximada.

Não se mostraram tão receptivos quanto imaginara.

— Três mil e seiscentos pra explosivos? — admirou-se um.

— Exatamente, seu moço — disse Quem. — Se alguém souber onde se consegue por menos preço, gostaria muito que me informasse...

— Que negócio é este, “reforço de sacolas”?

— E pras sacolas que teremos de carregar. Elas não foram feitas pra cargas pesadas. Nós vamos ter que desmanchá-las e fazer tudo de novo com estrutura metálica.

— Mas vocês têm licença pra comprar armas e bombas?

— Quem vai comprar sou eu — explicou Júlia, — e ficarão em minha propriedade até a data da partida da expedição. Eu tenho autorização.

— Quando tencionam ir?

— Por enquanto ainda não sei — respondeu Quem. — As máscaras contra gases só estarão prontas três meses depois do dia da encomenda. E ainda precisamos achar mais um homem e passar por uma fase de treinamento. Espero que se vá em julho ou agosto.

— Tem certeza de que é aqui mesmo que se localiza o túnel?

— Não, nós continuamos fazendo pesquisas. Isso é apenas uma aproximação.

Cinco convidados se escusaram e sete preencheram cheques que atingiram apenas a dois mil e seiscentos dólares — menos da quarta parte dos onze mil necessários.

— Safados cachorros — disse Júlia.

— Em todo caso, já é alguma coisa — retrucou Quem. — Podemos começar as encomendas. E contratar o Capitão Gold.

— Dentro de poucas semanas oferecerei outro jantar — declarou Júlia. — Que é que você tinha que estava tão nervoso? É preciso falar com mais convicção!

O bebê nasceu. Era menino e recebeu o nome de Jan. Tinha os dois olhos castanhos.

Nas noites de domingo e quarta-feira, num sótão desocupado da fábrica de Júlia, Quem, Dover, Buzz, Jack e Ria praticavam diversas modalidades de luta. O professor, oficial do exército, era o Capitão Gold, sujeito baixinho e sorridente que evidentemente antipatizava com o grupo e parecia ter prazer em fazê-los surrarem-se e derrubarem-se mutuamente sobre as ralas esteiras estendidas no chão.

— Dá nele! Dá nele! Dá nele! — mandava, pulando por todos os cantos, na frente deles, de camiseta e calças de campanha. — Dá nele! Assim, oh! Isto é que é dar, e não isto! Assim parece até que está abanando pra alguém! Santo Deus, vocês não têm mesmo jeito, seus ferrinhos! Anda, Olho-Verde, dá nele!

Quem fechou o punho contra Jack e quando viu estava no ar, caindo de costas em cima de esteira.

— Boa! — gritou o Capitão Gold. — Agora, sim, parece coisa de gente! Levanta, Olho Verde, ninguém matou você! Eu não falei que era pra ficar agachado?

Jack e Ria aprendiam logo. Buzz era mais lento.

Júlia ofereceu novo jantar. Quem falou com maior convicção e arrecadaram três mil e cem dólares.

O bebê adoeceu — teve febre e infecção intestinal — mas logo melhorou, adquirindo aspeto robusto e alegre, sugando faminto os seios de Lilás. A mãe mostrava-se mais carinhosa do que nunca, encantada com o filho e interessada em ouvir Quem discorrer sobre a arrecadação de fundos e a efetivação progressiva do plano.

Quem achou o sexto homem: um operário de granja, perto de Santany, chegado de Afri pouco antes dele e de Lilás. Tinha quarenta e três anos, bastante mais velho que o tipo que Quem procurava, mas era forte e ágil, e certo de que Uni podia ser derrotado. Trabalhara em cromatomicrografia no seio da Família e chamava-se Morgan Newmark, embora continuasse atendendo peto nome anterior: Karl.

— Creio que agora até eu seria capaz de descobrir o maldito túnel — disse Ashi, entregando a Quem vinte páginas de anotações copiadas de livros na Biblioteca.

Quem mostrou-as, junto com os mapas, a cada uma das pessoas consultadas anteriormente. Três se prontificaram a traçar uma planta do curso mais provável do túnel. E, como era de prever, apresentaram três lugares diferentes para a entrada da galeria. Duas distavam um quilômetro entre si, e a terceira ficava seis quilômetros mais longe.

— A falta de melhor, isto já basta — comentou Quem com Dover.

A firma que estava fabricando as máscaras contra gases faliu — sem devolver os oitocentos dólares de sinal, pagos por Quem — e tiveram de procurar outra.

Quem voltou a falar com Newbrook, o ex-professor da academia tecnológica, sobre o tipo de usinas de refrigeração que Uni provavelmente possuía. Júlia ofereceu outro jantar e Ashi deu uma festa. Arrecadaram mais três mil dólares. Buzz brigou com um bando de ilhéus e, apesar de assombrá-los com seus conhecimentos pugilísticos, quebrou duas costelas e fraturou a tíbia. Todos começaram a procurar um substituto para ele, caso não pudesse participar da expedição.

Uma noite Lilás acordou Quem.

— Que foi que houve? — perguntou ele.

— Quem?

— Sim, o que é?

Ouviu a respiração de Jan, dormindo no berço.

— Se você tiver razão, e esta ilha for uma prisão onde Uni nos largou...

— Sim?

— E já partiram ataques daqui antes...

— Que é que tem?

Ela permaneceu em silêncio — podia vê-la, deitada de costas com os olhos abertos — e por fim disse:

— Uni não poria outras pessoas aqui, membros “sadios”, pra preveni-lo contra novos ataques?

Ele olhou para ela e não respondeu.

— Quem sabe até... pra participar das expedições? — insistiu. — E providenciar “ajuda” pra todo mundo em Eur?

— Não — protestou, sacudindo a cabeça. — É... não. Eles teriam de fazer tratamento, não teriam? Pra continuar “sadios”.

— De fato — concordou.

— Você pensa que existe algum centro médico escondido na ilha? — perguntou, sorrindo.

— Então? Tenho certeza de que não há nenhum... espion aqui. Antes de recorrer a tais extremos, Uni simplesmente mataria os incuráveis da maneira que você e Ashi sugeriram.

— Como é que você sabe?

— Lilás, não há espions — afirmou. — Você está apenas querendo preocupar-se a toa. Agora durma, ande. Não demora Jan se acorda. Durma de uma vez.

Beijou-a e ela se virou para o outro lado. Passando certo tempo, parecia adormecida.

Ele se manteve acordado.

Não podia ser. Precisariam de tratamentos...

A quantas pessoas tinha revelado o plano, falando sobre o túnel, as verdadeiras comportas de memória? Nem dava para contar. Centenas! E cada uma, na certa, passara adiante...

Chegara até a pôr anúncio no Imigrante: Compram-se sacolas, túnicas, sandálias...

Alguém que fazia parte do grupo? Não. Dover?... impossível. Buzz?... não, nunca. Jack ou Ria?... não. Karl? Realmente ainda não conhecia Karl bem a fundo — era simpático, conversador, bebia além da conta, mas não a ponto de causar preocupações — não, Karl não podia ser senão o que aparentava, trabalhando numa granja nos cafundós do Judas...

Júlia? Estava ficando maluco. Cristo e Wei! Deus do céu!

Lilás andava apenas se inquietando à toa, mais nada.

Não podia haver nenhum espion, nenhuma pessoa por ali que apoiasse Uni às escondidas, porque nesse caso precisaria de tratamentos para continuar naquela condição.

Levaria o plano a cabo, a despeito de tudo.

Adormeceu.

As bombas chegaram: feixes de leves cilindros marrons, amarrados em torno de um preto, no meio. Foram guardados num galpão atrás da fábrica. Cada um tinha uma alça metálica, azul ou amarela, colada a um lado. As azuis era espoletas de trinta segundos, as amarelas, de quatro minutos.

Experimentaram uma numa pedreira de mármore, à noite. Calçaram-na numa fenda e puxaram a alça azul da espoleta, com cinquenta metros de arame, por trás de uma pilha de blocos cortados. A explosão foi tremenda e no lugar da fenda abriu-se um buraco do tamanho de uma porta, de onde caíam pedras, em nuvens de pó.

Todos — com exceção de Buzz — excursionaram a pé pelas montanhas, levando as sacolas cheias de pedras. O Capitão Gold ensinou-lhes a carregar um revólver e focar um raio laser, a sacar, fazer mira e atirar — em pranchas escoradas à parede dos fundos da fábrica.

— Você não ia oferecer outro jantar? — perguntou Quem a Júlia.

— Sim, daqui a uma ou duas semanas — respondeu.

Mas não ofereceu. Nunca mais falou em dinheiro, e ele tampouco.

Passou algum tempo em companhia de Karl e certificou-se de que não era um espion.

A perna de Buzz sarou quase por completo: insistiu que estaria em condições de ir junto.

As máscaras contra gases chegaram, assim como o resto das armas, ferramentas, sapatos, navalhas, revestimentos plásticos, sacolas reformadas, relógios, rolos de arame grosso, balsa pneumática, pá, bússolas e binóculos.

— Experimente me dar um soco — sugeriu o Capitão Gold.

Quem deu e partiu-lhe o lábio.

Demorou até novembro, quase um ano, para aprontar tudo, e então Quem resolveu adiar a partida para o Natal, aproveitando o feriado para chegar a ’001: as estradas de bicicletas e as ruas, carroportos e aeroportos estariam no auge do movimento, os membros andariam com um passo um pouco mais rápido que o normal e mesmo um “sadio” poderia distrair-se esquecendo de tocar na placa de um controle.

No domingo anterior à data marcada, levaram ao sótão tudo o que havia no galpão, enchendo as sacolas — inclusive as que ficariam por dentro — que esvaziariam ao atracar em terra firme. Júlia estava presente, bem como John, o filho de Newman, que devia trazer de volta a lancha do S.I., e Nella, a namorada de Dover — moça de vinte e dois anos, com o cabelo amarelo como o dele, entusiasmadíssima com os preparativos. Ashi compareceu, e o Capitão Gold também.

— Vocês todos são uns doidos varridos — disse o Capitão.

— Cai fora, safado — respondeu Buzz.

Quando terminaram, com as sacolas completamente enroladas em invólucros plásticos e amarradas, Quem pediu aos que não tomariam parte na expedição para que se retirassem. Depois reuniu o grupo num círculo em cima das esteiras.

— Pensei muito sobre o que se deve fazer se um de nós for capturado — disse, — e optei pela seguinte solução: caso alguém seja preso, mesmo que seja apenas um elemento do grupo, todos os restantes regressarão imediatamente à ilha.

Olharam para ele.

— Depois de tanto esforço? — estranhou Buzz.

— Sim. Se um de nós for submetido a tratamento, revelará ao médico que pretendemos entrar pelo túnel, e aí então não teremos mais nenhuma chance de êxito. Portando o melhor é voltar, rápida e discretamente, procurando uma lancha na praia. Pra dizer a verdade, quero ver se localizo uma assim que atracarmos, antes de iniciar o trajeto.

— Cristo e Wei! — exclamou Jack. — Evidentemente, se

três ou quatro fossem capturados, mas um?

— Minha decisão é essa — afirmou Quem. — É a mais acertada.

— E se você for preso? — perguntou Ria.

— Então a chefia passará a Buzz — respondeu Quem, — e quem resolve é ele. Mas por enquanto fica decidido o seguinte: se alguém for capturado, todo mundo recua.

— Portanto que ninguém se deixe pegar — disse Karl.

— Justo — retrucou Quem, levantando-se. — É só — declarou. — Tratem de dormir bastante. Até quarta às sete.

— Dia de Wood — corrigiu Dover.

— Dia de Wood, dia de Wood, dia de Wood — disse Quem. — Até o dia de Wood, às sete.


Beijou Lilás como se fosse sair para tratar de um assunto qualquer e tomasse voltar dentro de poucas horas.

— Tchau, amor — disse.

Ela abraçou-se nele, encostando-lhe o rosto e não disse nada.

Beijou-a de novo, desvencilhou-se de seus braços e aproximando-se do berço. Jan estava entretido em alcançar um pacote vazio de cigarros, pendurado num cordão. Quem beijou-lhe a face e deu-lhe adeus.

Lilás chegou perto e ele a beijou. Abraçaram-se e beijaram- se, e depois ele saiu, sem virar-se para trás.

Ashi esperava lá em baixo, de monociclo. Levou Quem ao cais, em Pollensa.

Todos se achavam no escritório do S.I. às sete menos um quarto e enquanto um cortava o cabelo do outro, o caminhão chegou. John Newman, Ashi e um homem da fábrica levaram as sacolas e a balsa até a lancha, e Júlia distribuiu sanduíches e café. Os homens cortaram a barba e escanhoaram bem o rosto.

Colocaram as pulseiras e os aros fechados que pareciam semelhantes aos normais. A de Quem dizia Jesus AY 31G6912.

Despediu-se de Ashi e beijou Júlia.

— Faça a sua sacola e prepare-se pra conhecer o mundo — disse ele.

— Tome cuidado — recomendou ela. — E procure rezar.

Entrou na lancha sentou-se sobre o tombadilho na frente das sacolas, em companhia de John Newman e dos outros — Buzz e Karl, Jack e Ria: todos tinham um aspecto estranho de membros da Família com aquele cabelo cortado e aquelas caras iguais, imberbes.

Dover ligou o motor e pôs-se ao largo do porto, virando depois em direção à suave claridade alaranjada que se erguia do lado de ‘91766.


2

 

A pálida luz que precede o raiar do dia, abandonaram furtivamente o batelão e empurraram por diante a balsa carregada de sacolas. Três empurravam e três nadavam rentes, observando o recorte escuro dos altos penhascos. Avançaram aos poucos, mantendo-se a uma distância de cerca de cinquenta metros da costa. De dez em dez minutos mais ou menos, trocavam de lugar: os que tinham estado nadando, empurravam e os que tinham estado empurrando, nadavam.

Quando já se encontravam à altura de *91772, desviaram a balsa em direção à praia. Guardaram-na numa pequena enseada de areia rodeada por imponentes escarpas rochosas, descarregaram as sacolas e as desembrulharam. Abriram as internas e vestiram túnicas. Puseram armas, relógios, bússolas e mapas nos bolsos. Depois .cavaram um buraco e esconderam dentro as duas sacolas vazias, todos os invólucros plásticos, a balsa sem ar, as roupas que usavam em Liberdade e a pá utilizada para escavar. Encheram o buraco de terra, eliminaram os vestígios e, de sacolas a tiracolo e sandálias na mão, começaram a caminhar em fila única pela estreita faixa de areia. O céu clareou e suas sombras se projetaram sobre a base rochosa dos penhascos, deslizando para frente e para trás. Karl, quase no fim da fila, pôs-se a assobiar Uma Forte Família. O resto do grupo sorriu e Quem, que vinha à dianteira, também aderiu ao assobio. Alguns dos outros fizeram o mesmo.

Não tardou muito, acharam uma lancha — uma velha lancha azul, emborcada de lado, à espera de incuráveis que se considerariam felizes. Quem virou-se e andando de costas disse:

— Cá está ela, se a gente precisar.

— Não vai ser preciso — retrucou Dover.

Depois de Quem virar-se de novo para a frente, quando já tinham passado adiante, Jack pegou uma pedra, jogou na lancha, mas errou.

Durante o percurso mudaram as sacolas de ombro. Em menos de uma hora chegaram a um controle que fazia face ao lado oposto.

— Nada como estar em casa — ironizou Dover.

Ria soltou um suspiro.

— Oi, Uni — disse Buzz, — como vai?

E bateu de teve na parte de cima do controle ao passar por ele.

Já caminhava sem mancar. Quem voltava-se de vez em quando para verificar.

A faixa de areia começou a alargar-se e chegaram a uma cesta de lixo, seguida por outras. Depois surgiram plataformas de salva-vidas, alto-falantes e um relógio — 6h54m — Quinta 25 Dez 171 A.U. — e uma escada que subia em ziguezague pelo penhasco com enfeites vermelhos e verdes enroscados em diversos pilares da grade.

Largaram as sacolas e as sandálias, tiraram as túnicas e estenderam tudo no chão. Deitaram-se em cima e descansaram ao crescente calor do sol. Quem lembrou coisas que achava que deviam dizer quando falassem com a Família posteriormente. Discutiram o assunto, conjeturando sobre até que ponto a interrupção de Uni afetaria as transmissões de televisão e quanto tempo levaria para serem normalizadas.

Karl e Dover pegaram no sono.

Quem ficou estendido de olhos fechados, pensando em certos problemas que a Família teria que enfrentar quando despertasse, e nas várias maneiras de solucioná-los.

“Cristo, que nos ensinou” — começaram os alto-falantes às oito horas. Dois salva-vidas de gorro vermelho e óculos escuros vieram descendo os degraus em ziguezague. Um deles chegou à plataforma perto do grupo.

— Feliz Natal — disse.

— Feliz Natal — responderam em coro.

— Querendo, já podem entrar n’água — avisou, subindo à plataforma.

Quem, Jack e Dover levantaram-se e dirigiram-se ao mar. Nadaram um pouco, observando os membros que desciam a escada, e depois saíram, tornando a deitar-se na areia.

Quando havia trinta e cinco ou quarenta membros na praia, às 8h22m, os seis se levantaram e começaram a vestir as túnicas e pôr as sacolas no ombro.

Quem e Dover foram os primeiros a subir a escada. Sorriam e davam “Feliz Natal” aos membros que vinham descendo e fingiram facilmente que tocavam no controle ao alto. Os únicos membros nas proximidades estavam na cantina, de costas para eles.

Esperaram junto de um chafariz até que Jack e Ria subissem e depois Buzz e Karl.

Dirigiram-se ao posto de bicicletas, onde havia vinte ou vinte e cinco enfileiradas nos lugares mais à mão. Tiraram as seis últimas, colocaram as sacolas nas cestas, montaram e pedalaram até o início da estrada destinada exclusivamente a ciclistas. Ali esperaram, sorrindo e conversando, que cessasse o trânsito de bicicletas e carros. Depois cruzaram em grupo pelo controle, encostando as pulseiras na parte lateral, para a eventualidade de estarem sendo observados a distância por alguém.

Rumaram a EUR91770 individualmente e aos pares, deixando bastante espaço de intervalo entre si na estrada. Quem ia à frente, com Dover logo atrás. Olhou os ciclistas que se aproximavam e os carros esporádicos que passavam chispando. Havemos de conseguir, pensou. Nós havemos de conseguir.


Entraram separados no aeroporto, reunindo-se perto do quadro de horários de vôo. Os membros aglomeravam-se ao redor deles. A sala de espera, toda enfeitada de vermelho e verde, estava apinhada de gente e o burburinho era tão grande que mal se escutava a música de Natal. Do outro lado das vidraças, aviões imensos giravam e avançavam pesadamente, tomando passageiros em três escadas rolantes ao mesmo tempo, desembarcando filas de membros, num contínuo vaivém entre as pistas.

Eram 9h35m. O próximo vôo para EUR0001 partiria às 11h48m.

— Não me agrada essa ideia de permanecer muito tempo aqui — disse Quem. — Ou o batelão usou energia extra ou então chegou atrasado, e se a diferença ficou manifesta, é bem capaz que Uni perceba o motivo.

— Então vamos tomar logo o primeiro avião — sugeriu Ria, — pra chegar o mais perto possível de ’001 e depois completar o percurso de bicicleta.

— Se a gente espera mais um pouco, chega mais rápido — discordou Karl. — Isto aqui até que não é tão ruim como esconderijo.

— Não — retrucou Quem, consultando o quadro de vôo, — vamos no... das 10h6m pra ’00020. Não tem outro mais cedo e dista apenas cinquenta quilômetros de ’001. Venha, o portão é aquele lá.

Abriram caminho no meio da multidão até a porta giratória no canto da sala e agruparam-se em torno do controle. A porta se abriu, dando passagem a um membro de túnica cor de laranja. Pedindo desculpas, estendeu o braço entre Quem e Dover para tocar no controle — sim, piscou a luz — e seguiu adiante.

Quem tirou disfarçadamente o relógio do bolso e comparou- o com o da parede.

— É a pista seis — disse. — Se houver mais de uma escada rolante, entrem na fila da parte de trás do avião. E façam questão de ficar quase por último, deixando no mínimo seis membros à retaguarda. Vem, Dover.

Pegou-o pelo braço e os dois atravessaram a porta, entrando na área de depósito.

— Vocês não deviam estar aqui — avisou um membro de túnica cor de laranja que estava parado ali.

— Uni autorizou — respondeu Quem. — Trabalhamos nos planos de aeroporto.

— Três-trinta-e-sete-A — explicou Dover.

— Este pavilhão vai ser ampliado no ano que vem — disse Quem.

— Agora entendo o que você queria dizer a respeito do teto — comentou Dover, olhando para cima.

— Sim — confirmou Quem. — Ele podia facilmente ganhar mais um metro de altura.

— Metro e meio — corrigiu Dover.

— A não ser que oi condutos compliquem tudo — disse Quem.

O membro afastou-se e saiu pela porta.

— É, os condutos — observou Dover. — Problema sério.

— Deixe eu lhe mostrar aonde eles vão — continuou Quem. — É muito interessante.

— Se é.

Entraram na área em que os membros de túnica cor de laranja aprontavam os bolos e recipientes de bebida, trabalhando mais depressa do que era costume entre os membros.

— Três-trinta-e-sete A? — perguntou Quem.

— Por que não? — retrucou Dover, apontando para o teto enquanto se separavam para dar passagem a um membro empurrando carrinho. — Está vendo a direção que os condutos tomam?

— Teremos que modificar a instalação toda. Aqui também.

Fingiram tocar no controle e passaram à sala onde havia túnicas penduradas em ganchos. Não encontraram ninguém. Quem fechou a porta e mostrou o armário onde eram guardadas as de cor de laranja.

Vestiram-nas por cima das amarelas e colocaram biqueiras nas sandálias. Rasgaram o fundo dos bolsos das de cor de laranja para poderem enfiar a mão nos das que ficaram por baixo.

Surgiu um membro de branco.

— Olá — saudou. — Feliz Natal.

— Feliz Natal — responderam.

— Mandaram-me lá de ’765 pra ajudar aqui — explicou.

Tinha uns trinta anos.

— Ótimo, estávamos mesmo precisando — disse Quem.

O membro, abrindo a túnica, olhou para Dover, que fechava a sua.

— Por que você deixou a outra por baixo? — estranhou.

— Assim esquenta mais — respondeu Quem, aproximando-se.

Virou-se para Quem, intrigado.

— Esquenta mais? Pra que você quer esquentar-se mais?

— Desculpe, irmão — disse Quem, dando-lhe um soco no estômago.

Ele se curvou para a frente, com um gemido, e Quem desfechou-lhe outro no queixo. O membro endireitou o corpo e caiu para trás. Dover pegou-o por baixo dos braços e estendeu-o no chão. Ficou de olhos fechados, como se estivesse dormindo.

Quem, examinando-o, exclamou:

— Cristo e Wei, o negócio dá certo.

Os dois rasgaram uma série de túnicas e amarraram os pulsos e os tornozelos do membro, atando uma manga entre os seus dentes. Depois ergueram-no e colocaram-no dentro do armário onde era guardada a cera de soalho.

De 9h51m7 o relógio passou a 9h52m.

Embrulharam as sacolas em túnicas cor de laranja, saíram da sala e passaram pelos membros que lidavam com os recipientes de bolo e bebida. Na área de depósito descobriram uma caixa de papelão com toalhas pelo meio e puseram dentro as sacolas embrulhadas. Carregando-a entre ambos, cruzaram o portão e acharam-se no campo.

Havia um avião em frente à pista seis, enorme, desembarcando membros por duas escadas rolantes. Outros membros, de laranja, aguardavam ao pé de cada uma das duas com um carrinho de recipientes.

Afastaram-se do avião, rumo à esquerda. Atravessaram o campo em sentido diagonal, sempre carregando a caixa de papelão, desviaram-se de um caminhão de manutenção que andava devagar e aproximaram-se dos hangares que ficavam num pavilhão de telhado plano e estendia-se até as pistas de decolagem.

Entraram num deles. Continha um avião menor, com membros de laranja por baixo, retirando do bojo uma caixa preta quadrada. Quem e Dover continuaram até os fundos do hangar, onde havia uma porta na parede lateral. Dover abriu-a, espiou lá dentro e fez sinal com a cabeça para Quem.

Os dois entraram e fecharam a porta. Era um almoxarifado: prateleiras de ferramentas, filas de engradados de madeira, tonéis pretos de metal com marca Óleo Lub SG.

— Até parece de encomenda — comentou Quem, enquanto largavam a caixa no chão.

Dover escondeu-se atrás da porta. Tirou o revólver e segurou-o pelo cano.

Agachando-se, Quem desembrulhou uma sacola, abriu-a e retirou uma bomba com alça amarela de quatro minutos.

Separou dois tonéis de óleo e colocou a bomba no chão no meio, com a alça presa pelo esparadrapo virada para cima. Puxou o relógio do bolso e olhou a hora.

— Quanto tempo? — perguntou Dover.

— Três minutos.

Voltou à caixa de papelão. Sempre de relógio em punho, correu o fecho da sacola, tomou a embrulhá-la e fechou as tampas da caixa.

— Tem alguma coisa que se aproveite? — perguntou Dover, acenando com a cabeça para as prateleiras de ferramentas.

Quem aproximou-se de uma delas. A porta do almoxarifado se abriu e entrou um membro de túnica laranja — uma mulher.

— Olá — saudou Quem, apanhando uma ferramenta e guardando o relógio no bolso.

— Olá — disse ela, dirigindo-se ao lado oposto da prateleira.

Olhou de relance para Quem.

— Quem é você? — indagou.

— Li RP — respondeu. — Mandaram-me lá de 765 pra ajudar aqui.

Apanhou outra ferramenta na prateleira: um par de compassos.

— Não está tão ruim como no Natal de Wei — observou ela.

Surgiu outro membro à porta.

— Já encontramos, Paz — avisou. — Estava com Li.

— Eu perguntei a ele e ele respondeu que não estava — disse ela.

— Pois estava — disse o outro membro, desaparecendo.

Ela saiu atrás dele.

— Ele foi o primeiro a quem eu perguntei.

Quem ficou parado, olhando a porta que se fechava lentamente. Dover, escondido no canto, olhou para ele e empurrou-a até o fim, de mansinho. Quem olhou para Dover e depois para a mão que segurava as ferramentas: estava trêmula. Largou as ferramentas, respirou fundo e mostrou a mão a Dover, que sorriu e observou:

— Muito pouco próprio de membro.

Quem tomou fôlego e tirou o relógio do bolso.

— Menos de um minuto — avisou, indo até os tonéis e agachando-se.

Puxou o esparadrapo da alça da bomba.

Dover guardou o revólver no bolso — o da túnica por baixo — e ficou imóvel com a mão na maçaneta.

Quem, controlando o relógio e segurando a alça da espoleta disse:

— Dez segundos.

Esperou, esperou, esperou — e finalmente puxou a alça para cima e pôs-se em pé enquanto Dover abria a porta. Levantaram a caixa de papelão, tirando-a do almoxarifado e fechado imediatamente a porta.

Percorreram o hangar com a caixa — “Calma, devagar”, dizia Quem — e atravessaram o campo em direção ao avião em frente à pista seis. Membros faziam fila nas escadas rolantes e subiam.

— O que é isso? — perguntou um membro de túnica laranja com uma prancheta na mão, caminhando ao lado de ambos.

— Mandaram-nos trazer pra cá — explicou Quem.

— Karl? — chamou outro membro do lado oposto do que trazia a prancheta.

Ele parou e se virou.

— Que é?

Quem e Dover continuaram andando.

Trouxeram a caixa de papelão até a escada rolante da parte de trás do avião e largaram no chão. Quem colocou-se diante do controle, olhando o regulador da escada. Dover esgueirou-se pela fila e postou-se atrás do controle. Os membros passavam entre os dois, encostavam as pulseiras no controle que piscava a luz verde e depois pisavam nos degraus.

Um membro de túnica laranja chegou-se a Quem e disse;

— Eu estou nesta escada.

— Karl acabou de me pedir pra vir pra cá — respondeu Quem. — Mandaram-me lá de ’765 pra ajudar aqui.

— Que foi que houve? — perguntou o membro da prancheta, aproximando-se. — Por que vocês estão em três aqui?

— Eu pensei que estava nesta escada — disse o outro membro.

O ar estremeceu e uma forte explosão partiu dos hangares.

Uma coluna preta, ampla e cada vez maior, pairou sobre o pavilhão, misturada a rolos de fogo. Desabou uma chuva negra e amarelada sobre o telhado e o campo, e membros de túnica laranja saíram correndo dos hangares, disparando e depois diminuindo o passo para se virar e olhar a coluna de labaredas no telhado.

O membro da prancheta arregalou os olhos e precipitou- se naquela direção. O outro correu atrás.

Os membros da fila ficaram imóveis, olhando para o lado dos hangares. Quem e Dover pegaram alguns pelo braço e empurraram por diante.

— Não parem — diziam. — Continuem subindo, por favor. Não há perigo. O avião está esperando. Toquem no controle e pisem no degrau. Continuem subindo, por favor.

Encaminharam os membros a passar pelo controle e subir a escada. Um deles era Jack.

— Que beleza — comentou, olhando por cima do ombro de Quem ao fingir que tocava no controle.

Depois foi a vez de Ria, que parecia tão empolgada como na primeira vez que Quem a tinha visto. E Karl, amedrontado e lúgubre. E Buzz, todo sorridente. Dover pisou na escada logo em seguida. Quem confiou-lhe uma sacola embrulhada e virou-se para os outros membros da fila, os últimos sete ou oito, que estavam parados, contemplando os hangares.

— Continuem subindo, por favor — pediu. — O avião está esperando. Irmã!

— Não há motivo para pânico — disse uma voz de mulher pelo alto-falante. — Ocorreu um acidente nos hangares, mas já está tudo em ordem.

Quem apressou os membros a subir a escada.

— Toquem no controle e pisem no degrau — pediu. — O avião está esperando.

— Membros passageiros, queiram retomar seus lugares na fila — disse a voz. — Os membros que estiverem entrando a bordo dos aviões, continuem a fazê-lo. O serviço não sofrerá interrupção.

Quem fingiu tocar no controle e pisou no degrau atrás do último membro. Subindo a escada com a sacola embrulhada debaixo do braço, olhou de relance para os hangares: a coluna estava preta e enfumaçada mas não se via mais fogo. Virou-se de frente novamente, para as túnicas azul claro.

— Todos os funcionários, com exceção dos quarenta-e-sete e quarenta-e-nove, retomem às suas ocupações — disse a voz de mulher. — Todos os funcionários, com exceção dos quarenta-e-sete e quarenta-e-nove, retomem às suas ocupações. A situação já está normalizada.

Quem entrou no avião e a porta começou a baixar às suas costas.

— O serviço não sofrerá interrupção...

Os membros se achavam de pé, confusos, olhando os lugares tomados.

— Há passageiros extras devido ao feriado — explicou Quem. — Passem lá pra frente e peçam aos membros com filhos pra porem as crianças no colo. Não há outra solução.

Os membros avançaram pelo corredor, olhando para todos os lados do avião.

Os cinco ocupavam a última fileira, junto à dispensa. Dover retirou a sacola embrulhada do assento do corredor e Quem sentou-se.

— Nada mau — disse Dover.

— Ainda não levantamos vôo — retrucou Quem.

Havia burburinho a bordo: os recém-chegados comentavam a explosão com os primeiros que tinham embarcado, espalhando a notícia de fila em fila. O relógio marcava 10h6m, mas o avião não saía do mesmo lugar.

De 10h6m passou a 10h7m.

Os seis se entreolharam e depois viraram a cabeça para a frente, com jeito normal.

O avião se mexeu. Girou levemente para o lado e depois tomou impulso. Começou a acelerar. As luzes diminuíram e as telas de televisão se iluminaram.

Assistiram à Vida de Cristo e A Família no Trabalho, que já era bem velho. Tomaram chá e refrigerante, mas não conseguiram comer: não havia bolos a bordo, por causa da hora, e embora tivessem queijo embrulhados em papel laminado, podiam ser vistos pelos membros que saíssem da despensa. Quem e Dover suavam com as túnicas duplas. Karl cochilava a cada instante, e Ria e Buzz, que o ladeavam, cutucavam-no para mantê-lo acordado e atento.

A viagem demorou quarenta minutos.

Quando o sinal de localização indicou EUR00020, Quem e Dover levantaram-se do assento e ficaram em pé na despensa, comprimindo os botões e deixando escorrer chá e refrigerante pelo cano de esgoto. O avião pousou, deslizou e parou, e os membros começaram a fazer fila para descer. Depois que algumas dezenas passaram pela porta mais próxima, Quem e Dover tiraram os recipientes vazios da despensa, largaram no chão, levantaram as tampas, e Buzz colocou uma sacola embrulhada dentro de cada um deles. Depois Buzz, Karl, Ria e Jack se levantaram e os seis se dirigiram à saída. Quem apoiando um recipiente contra o peito, pediu:

— Querem dar licença, por favor?

Um membro de certa idade cedeu-lhe passagem. Os outros vieram logo atrás. Dover, carregando o segundo recipiente, disse ao membro idoso:

— É melhor esperar até que eu deixe a escada livre.

O membro concordou com um aceno de cabeça, um tanto atônito.

Ao pé da escada rolante Quem encostou o pulso no controle e imediatamente cobriu-o com o corpo, impedindo a visão dos membros na sala de espera, Buz, Karl, Ria e Jack passaram por ele, fingindo encostar a pulseira. Dover debruçou-se no controle e fez sinal com a cabeça para o membro que aguardava lá em cima.

Os quatro rumaram para a sala de espera e Quem e Dover atravessaram o campo até o portão, entrando na área de depósito. Largando os recipientes por terra, retiraram as sacolas e esguei- raram-se entre duas fileiras de engradados. Descobriram um espaço livre perto da parede, onde despiram as túnicas cor de laranja e descalçaram as biqueiras das sandálias.

Deixaram a área de depósito pela porta giratória, de sacolas no ombro. Os outros os esperavam ao redor do controle. Saíram aos pares do aeroporto — estava quase tão apinhado de gente quanto o de ’91770 — e reuniram-se de novo no posto de bicicletas.

Ao meio-dia achavam-se ao norte de ’00018. Comeram suas bolas de queijo entre a estrada de ciclistas e o Rio da Liberdade, num vale cercado de montanhas que se erguiam a impressionantes altitudes franjeadas de neve. Enquanto comiam, examinaram os mapas. Ao cair da noite, segundo seus cálculos, chegariam a um parque a poucos quilômetros da entrada do túnel.

Pouco depois das três horas, quando se aproximavam de ’00013. Quem notou uma ciclista adolescente que vinha na direção oposta, olhando para os rostos do grupo que seguia rumo ao norte — inclusive seu, ao se cruzarem — com uma expressão preocupada, de membro “querendo-ajudar”. Passado um instante, avistou outra ciclista olhando para eles do mesmo modo ligeiramente nervoso. Era uma mulher de idade que levava flores na cesta. Sorriu-lhe ao cruzar por ela e depois não se virou para trás. Nem a estrada, nem a rodovia paralela apresentavam sinais de anormalidade. A algumas centenas de metros mais adiante, ambas dobravam à direita e desapareciam nos fundos de uma usina elétrica.

Pedalou sobre a relva, parou e, olhando à retaguarda, acenou aos companheiros à medida que surgiam.

Empurraram as bicicletas bem para longe da estrada. Achavam-se no último trecho de vegetação antes da cidade: uma extensão de relva seguida por mesas de piquenique e um arvoredo que encobria uma pequena elevação no terreno.

— Parando de meia em meia hora jamais chegaremos — disse Ria.

Sentaram na relva.

— Acho que estão examinando as pulseiras logo adiante — disse Quem. — Telecomputadores e túnicas de cruz vermelha. Notei dois membros que vinham de lá com jeito de quem procura localizar alguém doente. Estavam com aquela cara de “será-que-posso-ajudar?”

— Que ódio — exclamou Buzz.

— Cristo e Wei, Quem — disse Jack, — se vamos começar a nos preocupar com as expressões faciais dos membros, seria preferível voltar logo pra casa.

Quem olhou para ele.

— Um exame de pulseiras não é tão implausível assim, não é? — retrucou. — A esta altura Uni já deve saber que a explosão em ’91770 não foi acidente, e é capaz de ter adivinhado exatamente o motivo. Este é o caminho mais curto de ’020 a Uni... e vamos chegar à primeira curva abrupta dentro de uns doze quilômetros.

— Está certo, então eles estão examinando as pulseiras — disse Jack. — Pra que ódio andamos armados?

— É — apoiou Ria.

— Se formos abrir caminho a bala, teremos todos os ciclistas no nosso encalço — retrucou Dover.

— Nesse caso, a gente atira uma bomba pra trás — sugeriu Jack. — Precisamos andar depressa, em vez de ficar de rabo sentado como se estivéssemos jogando xadrez. De qualquer modo esses pamonhas já são mesmo uns mortos-vivos: que diferença faz se a gente liquida meia dúzia? Nós vamos salvar todo o resto, não vamos?

— As armas e as bombas são pra quando for necessário — disse Quem, — e não pra quando se pode deixar de usá-las.

Virou-se para Dover.

— Dá uma volta, ali pelo mato — pediu-lhe, — e vê se enxerga o que está depois da curva.

— O.K. —concordou Dover.

Levantou-se, cruzou o gramado, juntou alguma coisa do chão, jogou dentro de uma cesta de lixo e penetrou no arvoredo. A túnica amarela se transformou em pontinhos esparsos desaparecendo elevação acima.

Deixaram de observá-lo. Quem tirou o mapa do bolso.

— Merda — disse Jack.

Quem não fez comentários. Examinava o mapa.

Buzz esfregou a perna e de repente afastou a mão.

Jack arrancava pedaços de relva do chão. Ria, sentada a seu lado, observava-o.

— Que é que você sugere — perguntou Jack, — se eles estiverem examinando as pulseiras?

Quem tirou os olhos de cima do mapa e, depois de uma pausa, respondeu:

— Recuaremos um pouco, atalhando pelo leste e fazendo uma volta.

Jack arrancou mais relva e depois arremessou longe.

— Vem — disse a Ria, pondo-se em pé.

Ela se levantou de um salto, os olhos brilhando.

— Aonde vocês vão? — perguntou Quem.

— Aonde tínhamos planejado — respondeu Jack, olhando-o com firmeza. — ao parque perto do túnel. Esperaremos por vocês até clarear o dia.

— Sentem-se, todos os dois — ordenou Karl.

— Vocês irão, mas junto conosco e quando eu achar que se deve ir — retrucou Quem. — Vocês concordaram com isso no começo.

— Mudei de ideia — disse Jack. — Pra mim é tão desagradável receber ordens de você quanto de Uni.

— Esses dois vão estragar tudo — disse Buzz.

— Vocês é que vão! — revidou Ria. — Parando, recuando, fazendo voltas... quando se quer fazer uma coisa a gente faz logo!

— Sentem aí e esperem até que Dover venha — ordenou Quem.

Jack sorriu.

— Vai-me obrigar? — perguntou. — Logo aqui, bem na frente da Família?

Fez sinal para Ria e os dois pegaram as bicicletas, firmando as sacolas nas cestas.

Quem se levantou e guardou o mapa no bolso.

— Não podemos dividir o grupo pelo meio deste jeito — disse. — Pare um pouco pra refletir, Jack. Como vamos saber se...

— Você é quem gosta de parar pra refletir — retrucou Jack. — Eu prefiro entrar logo no túnel.

E virou as costas, dando impulso à bicicleta. Ria empurrava a sua ao lado dele. Dirigiram-se à estrada.

Quem deu um passo atrás dos dois e estacou, de queixo tenso, os punhos cerrados. Sentiu vontade de gritar, de tirar o revólver do bolso e forçá-los a voltar — mas havia ciclistas passando, membros disseminados por perto, sobre a relva.

— Não há nada que você possa fazer, Quem — disse Karl.

— Os filhos da luta — exclamou Buzz.

À beira da estrada, Jack e Ria montaram nas bicicletas. Jack abanou para o grupo.

— Até logo! — gritou. — A gente se vê na sala da televisão!

Ria também abanou e os dois foram embora, pedalando.

Buzz e Karl abanaram para eles.

Quem arrancou bruscamente a sacola de sua bicicleta e colocou-a a tiracolo. Tirou outra e jogou-a ao colo de Buzz.

— Karl, você fique aqui — disse. — Venha comigo, Buzz.

Entrou no mato, dando-se conta de que estava caminhando depressa demais, encolerizado, comportando-se de modo anormal, mas pensou Lute-se! Subiu a elevação de terreno na direção tomada por Dover. Que fossem PRO INFERNO!

Buzz alcançou-o.

— Cristo e Wei — exclamou, — não jogue as sacolas assim!

— Que vão pro inferno! — respondeu Quem. — Percebi logo à primeira vista que aqueles dois não valiam nada! Mas fechei os olhos porque estava tão desesperado... diabos me levem! A culpa é minha. Exclusivamente minha.

— Talvez não haja exame de pulseiras e eles fiquem à nossa espera no parque — alvitrou Buzz.

Apareceram lampejos amarelos entre as árvores: Dover vinha descendo. Parou, enxergou-os e aproximou-se.

— Você tinha razão — disse. — Médicos na estrada, médicos no ar...

— Jack e Ria foram na frente — avisou Quem.

Dover arregalou os olhos.

— E você deixou?

— Por acaso podia impedir? — retrucou Quem. Pegou Dover pelo braço e virou-o de costas. — Mostre o caminho.

Dover conduziu-os rapidamente elevação acima pelo meio das árvores.

— Nunca que conseguirão passar — disse. — Tem um centro médico inteiro e barreiras pra impedir que as bicicletas dêem meia volta.

Emergiram do arvoredo, deparando com um declive de rochas. Buzz chegou por último, afobado.

— Abaixem-se, senão eles enxergam a gente — aconselhou Dover.

Deitaram-se de bruços e rastejaram declive acima. Lá do alto avistava-se a cidade, ’00013, com seus edifícios brancos recortados nítidos à luz do sol, a rede de monotrílhos entrelaçados e faiscantes, a orla das rodovias rutilante de carros. O rio descrevia uma curva e continuava rumo ao norte, azul e estreito, sulcado por vagarosas lanchas de turismo e uma longa fileira de barcas passando sob as pontes.

Ao pé do declive via-se uma meia concha de paredes de pedra, cujo pavimento formava uma praça semicircular onde se bifurcava a estrada de ciclistas: descia do norte, por trás da usina elétrica, desviando-se a certa altura para cruzar a rodovia de carros vertiginosos e penetrar na cidade por uma ponte. O outro braço cortava a praça na parte central, acompanhando a margem oriental do rio sinuoso até reencontrar a rodovia paralela. Antes de se bifurcar, uma série de barreiras dividia em três filas os ciclistas que se aproximavam, cada uma forçada a desfilar perante um grupo de membros de cruz vermelha na túnica, parados junto a ura pequeno controle de aspecto insólito. Três membros, munidos de equipamento contra a lei da gravidade, pairavam no ar, de rosto virado para baixo, sobre cada grupo. Dois carros e um helicóptero ocupavam o canto mais próximo da praça, enquanto outros membros de cruz vermelha na túnica, parados junto à fila de ciclistas que deixava a cidade, os apressavam a seguir viagem quando diminuíam a marcha para observar os que tocavam nos controles.

— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou Buzz.

Quem, de olho naquela cena, puxou o fecho da sacola.

— Eles devem estar nalgum ponto da fila — opinou.

Achou os binóculos, colocou-os em posição e acertou o foco.

— Estão, sim — confirmou Dover. — Está vendo as sacolas nas cestas?

Quem percorreu a fila e localizou Jack e Ria. Os dois pedalavam devagar, lado a lado, em pistas flanqueadas por barreiras de madeira. Jack olhava em frente e movia os lábios. Ria acenava com a cabeça. Guiavam apenas com a mão esquerda. Mantinham a direita no bolso.

Quem passou os binóculos a Dover e virou-se para a sua sacola.

— Temos que ajudá-los a passar pelo controle — disse. — Se conseguirem alcançar a ponte, talvez possam sumir na cidade.

— Eles vão começar a atirar quando chegarem aos controles — opinou Dover.

Quem entregou a Buzz uma bomba de alça azul.

— Puxe o esparadrapo e atire quando eu mandar — disse,

— Faça pontaria contra o helicóptero: dois coelhos de uma só cajadada.

— Atire antes que comecem o tiroteio — recomendou Dover.

Quem pegou de novo os binóculos e procurou Jack e Ria até encontrá-los outra vez. Esquadrinhou as filas na frente deles: havia cerca de quinze bicicletas entre os dois e os grupos nos controles.

— Eles têm balas ou raios laser? — perguntou Dover.

— Balas — respondeu Quem. — Não se preocupe, eu calculo direito o tempo.

Observou as filas de bicicletas avançando lentamente, graduando-se a velocidade.

— De um jeito ou doutro, provavelmente vão começar a disparar disse Buzz. — Só pra se divertir. Você reparou no olhar de Ria?

— Prepare-se — pediu Quem. Esperou até que Jack e Ria ficassem a cinco bicicletas de distância dos controles. — Agora — disse.

Buzz puxou a alça e atirou a bomba furtivamente de lado. Ela bateu numa pedra, saiu rolando caiu de uma saliência e foi pousar perto do lado do helicóptero.

— Volte pra cá — mandou Quem.

Espiou outra vez pelos binóculos. Jack e Ria estavam a duas bicicletas dos controles, com ar tenso mas confiante. Recuou de novo entre Buzze Dover.

— Parece até que estão indo pra uma festa — comentou.

Esperaram, de rosto colado às pedras. A bomba explodiu e o declive estremeceu. Lá embaixo saltou metal para tudo quanto foi lado. Fez-se silêncio e espalhou-se pelo ar o cheiro acre do explosivo. Depois ouviram-se vozes, primeiro em murmúrio e por fim mais alto.

— Aqueles dois! —gritou alguém.

Debruçaram-se à beira do declive..

Duas bicicletas corriam rumo à ponte. Todas as outras estavam imóveis, os ciclistas apoiando um pé no chão, de frente para o helicóptero — emborcado e fumegante — e agora voltados para as duas bicicletas que ganhavam velocidade e para os membros de cruz vermelha na túnica que corriam atrás. Os três membros no ar mudaram de direção e voaram para a ponte.

Quem levantou os binóculos — e viu as costas curvadas de Ria e Jack pouco mais adiante. Pedalavam velozmente em terreno absolutamente plano, parecendo encontrar dificuldade em afastar-se com maior rapidez. Formou-se um nevoeiro brilhante, cobrindo-os parcialmente.

Ao alto, pairava um membro apontado para baixo um cilindro que expelia denso gás branco.

— Ele conseguiu pegá-los! — exclamou Dover.

Ria parou, montada na bicicleta. Jack olhou para ela por cima do ombro.

— Ria, Jack não — retrucou Quem.

Jack parou e virou-se para o alto, de arma em punho. Desfechou dois tiros.

O membro no ar claudicou (trek e treck, soaram os tiros) deixando cair das mãos o cilindro que expelia gás branco.

Para fugir da ponte os membros pedalavam em ambas as direções, correndo de olhos arregalados sobre as calçadas laterais.

Ria sentou-se ao lado da bicicleta. Virou a cabeça: tinha o rosto úmido e brilhante. Parecia aflita. Túnicas com cruzes vermelhas toldaram a visão que tinham dela.

Jack olhava fixamente, de arma em punho. Sua boca abriu-se ao máximo, redonda, fechou-se e tomou a se abrir no meio do brilhante nevoeiro. (Ria!"— ouviu Quem, baixo e distante.) Jack ergueu o revólver (Ria!) e disparou três vezes.

Outro membro pairando no ar (trek, trek, trek) claudicou e deixou cair o cilindro. A calçada embaixo começou a se tingir de vermelho.

Quem tirou os binóculos.

— A máscara contra gases! — sussurrou Buzz, também de binóculos.

Dover escondera o rosto entre os braços.

Quem soergueu o corpo e olhou sem os binóculos: na estreita ponte deserta um ciclista de azul claro avançava vacilante ao longe, já na metade, perseguido por um membro no ar a curta distância.

Os outros dois, mortos ou moribundos, rodopiavam lentamente no ar, à deriva. Os de cruz vermelha na túnica tinham formado agora uma fila da largura da ponte, um deles ajudando a levantar uma mulher de amarelo ao lado de uma bicicleta caída, tomando-a pelos ombros e levando-a de volta à praça.

O ciclista parou e olhou a fila de membros de cruz vermelha na túnica, depois virou-se e curvou-se sobre a parte da frente da bicicleta. O membro no ar aproximou-se rápido e fez pontaria com a arma: uma grossa pluma branca emergiu dela e envolveu o ciclista.

Quem pôs os binóculos.

Jack, com o rosto coberto pela máscara cinzenta contra gases, apoiado do lado esquerdo no meio do nevoeiro brilhante, colocava uma bomba na ponte. Depois saiu pedalando, derrapou, escorregou e caiu. Ergueu-se sobre um braço, com a bicicleta imóvel entre as pernas. A sacola, arremessada fora da cesta, estava ao lado da bomba.

— Oh Cristo e Wei — exclamou Buzz.

Quem tirou os binóculos, olhou para a ponte e depois começou a enrolar, bem firme, pelo meio, a alça de enfiar no pescoço.

— Quantos? — perguntou Dover, fitando-o.

— Três — respondeu Quem.

A explosão foi luminosa, violenta e demorada. Quem viu Ria afastando-se da ponte, conduzida pelo membro de cruz vermelha na túnica. Ela não se virou para trás.

Dover, agora ajoelhado e contemplando a cena, voltou-se para Quem.

—A sacola inteira dele — explicou Quem. — Ele estava bem ao lado.

Guardou os binóculos na sacola e puxou o fecho.

— Temos de dar o fora daqui. Guarde os seus, Buzz. Venham.

Pretendia não olhar mais para baixo, mas antes de abandonar o declive não resistiu e olhou.

O meio da ponte estava negro e entulhado de pedras. As partes laterais tinham desmoronado. Uma roda de bicicleta jazia no chão fora da área enegrecida, além de outras coisas menores, rumo às quais os membros de cruz vermelha na túnica adiantavam-se lentamente. Farrapos azuis claros espalhavam-se sobre a ponte e flutuavam nas águas do rio.


Reuniram-se de novo a Karl e contaram-lhe o que tinha acontecido. Os quatro montaram nas bicicletas e pedalaram alguns quilômetros em direção ao sul, entrando no parque. Descobriram um riacho, saciaram a sede e se lavaram.

— E agora, vamos voltar? — perguntou Dover.

— Não — disse Quem, — todos não.

Olharam para ele.

— Eu disse que voltaríamos — explicou, — porque se alguém fosse capturado, eu queria que ele acreditasse e confessasse isso quando o interrogassem. Como provavelmente Ria está fazendo neste momento.

Pegou o cigarro que passava de mão em mão, malgrado o risco do cheiro do fumo chegar até longe, deu uma tragada e entregou-o a Buzz.

— Um de nós vai voltar — continuou. — Pelo menos espero que seja apenas um... pra soltar uma bomba ou duas daqui até a costa, tomar a lancha e dar a impressão de que nos mantivemos fiéis ao plano. Os outros se esconderão no parque, procurando uma maneira de se aproximar o mais possível de ’001 e localizar o túnel dentro de duas semanas no máximo.

— Boa — apoiou Dover.

— Nunca vi cabimento numa desistência tão fácil assim — concordou Buzz.

— Será que dá pra fazer tudo com três? — perguntou

Karl.

— A gente só descobre tentando — retrucou Quem. — E em seis, será que daria? Talvez pudesse ser feito por um e talvez nem por doze. Mas depois de chegar até aqui, raios me partam se não hei de descobrir.

— Conte comigo — disse Karl. — Perguntei por perguntar.

— Comigo também — disse Buzz.

— E comigo idem — disse Dover.

— Ótimo — exclamou Quem. — Três têm melhores possibilidades do que um, quanto a isso eu tenho certeza. Karl, quem vai voltar é você.

Karl olhou para ele.

— Por que logo eu? — perguntou.

— Porque você tem quarenta e três anos. Desculpe, irmão, mas não me ocorre nenhum outro critério válido pra decisão.

— Quem — interveio Buzz, — creio que é melhor lhe avisar: a minha perna está doendo muito há várias horas. Pra mim, tanto faz voltar como continuar, mas... bem, achei que você devia saber.

Karl passou o cigarro a Quem. Estava reduzido a uns dois centímetros. Esmigalhou-o no chão.

— Está certo, Buzz, então é melhor você voltar — disse.

— Mas antes faça a barba. Convém que todos se barbeiem, pra eventualidade de se encontrar alguém.

Barbearam-se e depois Quem e Buzz traçaram um caminho para Buzz chegar ao lado mais perto da costa, a cerca de trezentos quilômetros de distância. Ele jogaria uma bomba no aeroporto em ’00015 e outra quando se encontrasse já próximo ao mar. Guardou mais duas, para qualquer imprevisto, e entregou as outras a Quem.

— Tendo sorte, você estará numa lancha amanhã de noite — disse Quem. — Tome cuidado pra que ninguém veja você sair nela. Diga a Júlia, e a Lilás também, que ficaremos escondidos por duas semanas no mínimo, talvez mais.

Buzz apertou a mão de todos, desejou-lhes felicidades, tomou a bicicleta e partiu.

— Vamos ficar aqui mesmo provisoriamente, nos revezando pra dormir um pouco — disse Quem. — Hoje à noite iremos buscar bolos e túnicas na cidade.

— Bolos — suspirou Karl.

— Serão duas semanas bem longas — comentou Dover.

— Não serão, não — retrucou Quem. — Isso foi para o caso que ele fosse capturado. Seguiremos com o plano dentro de quatro ou cinco dias.

Cristo e Wei — exclamou Karl, sorrindo. — Como você é precavido, hem?


CONTINUA

QUARTA PARTE

 

REAGINDO


1

 

Ficou ocupadíssimo, como jamais estivera em toda a sua vida: planejava, procurava pessoas e equipamento, viajava, aprendia, explicava, suplicava, inventava, decidia. Sem incluir o trabalho na fábrica, onde Júlia, apesar do tempo livre concedido, empenhava-se em se ressarcir dos seis e cinquenta semanais em consertos de maquinaria e incremento de produção. E à medida que a gravidez de Lilás progredia, multiplicavam-se os afazeres domésticos que lhe competiam. Andava mais exausto do que nunca; mais vivo, também: na véspera completamente farto de tudo e, no dia seguinte, com redobrada convicção — mais lúcido.

O plano, o projeto, aquilo, assemelhava-se a uma máquina que, para ser montada, requeria que ele localizasse ou fabricasse todos os componentes indispensáveis, interdependentes em questão de formato e dimensões.

Antes de tomar uma resolução sobre o tamanho da expedição, precisava ter uma ideia bem nítida do objetivo principal. Para isso, era fundamental obter maiores informações sobre o funcionamento de Uni e seus pontos mais vulneráveis.

Conversou com Lars Newman, o amigo de Ashi que dirigia uma escola. Lars indicou-lhe um homem em Andrait que, por sua vez, recomendou-lhe outro, em Manacor.

— Logo vi que aquelas comportas eram insuficientes pro volume de isolamento que pareciam possuir — disse o homem de Manacor. Chamava-se Newbrook e andava beirando os setenta. Antes de abandonar a Família lecionara numa academia tecnológica. Estava trocando a fralda de uma netinha e aborreceu-se porque ela não ficava quieta.

— Quer parar de se mexer? Bem, supondo que vocês consigam entrar — continuou, dirigindo-se a Quem, — é óbvio que terão que destruir a fonte de energia. O reator ou, o que é mais provável, os reatores.

— Mas eles podem ser substituídos bastante rápido, não podem? — perguntou. — Eu queria deixar Uni sem funcionar muito tempo, o suficiente pra despertar a Família e resolver o que se fará com ele.

— Diabo, pára quieta! — reclamou Newbrook. — A usina de refrigeração, então.

— A usina de refrigeração?

— Exatamente. A temperatura interna das comportas precisa conservar-se perto do zero absoluto. Aumente alguns graus e as grades deixarão... pronto, viu o que você fez?... as grades perderão a supercondutividade. A memória de Uni será destruída.

Levantou a netinha, que estava aos berros, e apoiou-a contra o ombro, batendo-lhe de leve nas costas.

— Psiu, psiu.

— Destruída em caráter permanente?

Newbrook acenou afirmativamente com a cabeça, acalmando a criança que não parava de chorar.

— Mesmo que a refrigeração seja restaurada — explicou,

— todos os dados terão que ser fornecidos novamente. Levará anos.

— E justamente o que eu quero — disse Quem.

A usina de refrigeração.

E a sobressalente, caso houvesse.

Três usinas de refrigeração para deixar fora de combate. Dois homens para cada uma, segundo os seus cálculos: um para colocar os explosivos e o outro para manter os membros à distância.

Seis homens para paralisar a refrigeração de Uni e depois guardar as entradas contra os reforços que ele decerto pediria com seu cérebro dissolvendo-se em murmúrios balbuciantes. Poderiam os seis controlar os elevadores e o túnel? (Papai Jan não havia mencionado outros poços no espaço deixado de reserva?) Mas seis representavam o mínimo, e o mínimo era o que ele queria, porque bastaria que apenas um fosse capturado no trajeto para revelar todo o plano aos médicos e Uni estaria à espera do grupo no túnel. Quanto menor o número de participantes, menor o risco.

Ele e mais cinco.

O rapaz de cabelo amarelo que pilotava a lancha-patrulha do S.I. — Vito Newcome, mas cujo apelido era Dover — ficou pintando a amurada do barco enquanto escutava, e depois, quando Quem mencionou o túnel e as verdadeiras comportas de memória, parou de trabalhar. Acocorado sobre os calcanhares, de brocha caída na mão, levantou a cabeça para Quem. Tinha os olhos espremidos e respingos brancos na barba curta e no peito.

— Tem certeza? — perguntou.

— Absoluta.

— Já era tempo que alguém atacasse de novo aquele filho da luta.

Dover Newcome fitou o polegar, manchado de branco, e limpou-o na coxa da calça.

Quem agachou-se a seu lado.

— Você não quer tomar parte? — perguntou-lhe.

Dover olhou para ele e, depois de breve hesitação, sacudiu a cabeça.

— Quero. Claro que quero.

Ashi respondeu que não, tal como Quem esperava. Convidou-o unicamente porque do contrário, a seu ver, cometeria uma falta de consideração.

— Eu simplesmente acho que não vale a pena arriscar — justificou-se Ashi. — Mas o ajudarei de todas as maneiras ao meu alcance. Júlia já me arrancou uma contribuição e eu prometi dar cem dólares. Caso você precise, posso entrar com uma quantia maior.

— Ótimo. Obrigado, Ashi. Há várias maneiras de você ajudar. Você tem acesso à Biblioteca, não tem? Veja se consegue descobrir algum mapa da região em torno de EUR’001, U ou Pré-U. Quanto maior, melhor. Mapas com detalhes topográficos.

Júlia protestou quando soube que Dover Newcome participaria do grupo.

— Nós precisamos dele aqui, pra lancha — lembrou.

— Quando tudo estiver terminado, não precisarão mais — retrucou Quem.

— Santo Deus. Como é que você se arranja com tanta falta de confiança em si mesmo?

— E fácil — disse Quem. — Tenho uma amiga que reza por mim.

Júlia olhou friamente para ele.

— Não pegue mais ninguém do S.I. — recomendou.

— Tampouco da fábrica. E muito menos alguém cuja família ainda tenha que viver às minhas custas!

— Como é que você se arranja com tão pouca fé? — retrucou Quem.

Entre ambos, ele e Dover falaram com cerca de trinta ou quarenta imigrantes sem encontrar nenhum que quisesse tomar parte no ataque. Copiaram nos arquivos do S.I. os nomes e endereços de homens e mulheres de vinte a quarenta anos que tivessem vindo para Liberdade no espaço dos dois anos precedentes: visitavam sete ou oito por semana. O filho de Lars Newman queria entrar para o grupo, mas tinha nascido em Liberdade, e Quem só queria pessoas criadas no seio da Família, acostumadas a controles e ruas, a caminhar devagar e sorrir de satisfação.

Descobriu em Pollensa uma firma capaz de fabricar bombas de dinamite de espoleta mecânica lenta ou rápida, desde que fossem encomendadas por um ilhéu autorizado. E descobriu outra, em Calvia, que fabricaria seis máscaras contra gases, mas não garantiam que fosse eficaz contra LPK, a menos que lhes fornecesse uma amostra para experiência. Lilás, que trabalhava numa clínica de imigrantes, encontrou um médico que sabia a fórmula do LPK, mas nenhum dos laboratórios da ilha podia fabricá-lo. Lítio era um dos principais elementos da composição, e estava em falta há mais de trinta anos.

Começou a pôr um anúncio semanal de duas linhas no Imigrante, propondo a compra de túnicas, sandálias e sacolas de viagem. Um dia recebeu resposta de uma mulher de Andrait e algumas noites depois foi até lá para examinar duas sacolas e um par de sandálias. As sacolas, além de antiquadas, estavam gastas, mas as sandálias eram boas. A mulher e o marido perguntaram o que pretendia fazer com aquilo. Chamavam-se Newbridge e tinham trinta e poucos anos, morando num porão minúsculo e infecto, cheio de ratos. Quem explicou e os dois quiseram logo entrar para o grupo — chegando mesmo a insistir. Possuíam aspeto perfeitamente normal, o que representava um ponto a seu favor, mas com qualquer coisa de febril, uma tensão permanente, que causou certa impressão desfavorável em Quem.

Procurou-os novamente na semana seguinte, junto com Dover, e desta vez lhe pareceram mais calmos e possivelmente aproveitáveis. Chamavam-se Jack e Ria. Haviam tido dois filhos, falecidos nos primeiros meses de vida. Jack era limpador de esgotos e Ria trabalhava numa fábrica de brinquedos. Disseram gozar de boa saúde e, a julgar pelas aparências, não estavam mentindo.

Quem resolveu aceitá-los — provisoriamente, ao menos — e contou-lhes detalhes do plano em andamento.

— Devíamos explodir aquela porra toda, e não apenas as usinas de refrigeração — opinou Jack.

— Uma coisa precisa ficar bem clara — retrucou Quem. — O chefe da expedição sou eu. Se você não estiver preparado pra cumprir fielmente as minhas ordens, sem discussão, é melhor desistir desde já.

— Não, você tem toda a razão — concordou Jack. — Uma operação dessas só pode ter um chefe. Do contrário a coisa não funciona.

— Mas a gente pode dar sugestões, não pode? — perguntou Ria.

— Quanto mais, melhor — respondeu Quem. — Só que as decisões serão minhas, e vocês devem estar prontos a executá-las.

— Eu estou — afirmou Jack.

— E eu também — disse Ria.

Localizar a entrada do túnel resultou mais difícil do que Quem previra. Conseguiu três mapas em grande escala de Eur central e um, extremamente detalhado e topográfico da “Suíça” na Pré-U, no qual copiou a sede de Uni com o maior cuidado, mas todas as pessoas consultadas — ex-engenheiros e geólogos, construtores de minas locais — afirmaram necessitar de outros dados antes que o curso do túnel pudesse ser projetado com alguma esperança de exatidão. Ashi passou a interessar-se mais pelo problema, gastando às vezes horas inteiras na Biblioteca a copiar referências a “Genebra” e às “Montanhas do Jura” de velhas enciclopédias e obras sobre geologia.

Em duas noites de luar consecutivas, Quem e Dover saíram na lancha do S.I., indo até a ponta ocidental de EUR91766 para esperar a passagem dos batelões de cobre. Obedeciam, segundo constataram, a intervalos exatos de quatro horas e vinte e cinco minutos. Cada silhueta baixa e plana avançava com firmeza rumo a noroeste, desenvolvendo trinta quilômetros por hora, deixando um rastro de ondas que deixava a lancha oscilando durante vários minutos. Três horas depois, voltavam da direção oposta, mais altos à tona d’água, vazios.

Dover calculou que os batelões que se dirigiam a Eur, caso sempre mantivessem velocidade e rumo idênticos, alcançariam EUR91772 em pouco mais de seis horas.

Na segunda noite a lancha encostou num batelão e Dover diminuiu a marcha para equiparar as duas velocidades enquanto Quem subia a bordo. Ele andou de batelão durante algum tempo, comodamente sentado sobre a compacta carga achatada de lingotes de cobre em treliças de madeira, e depois desceu de novo para a lancha.

Lilás descobriu outro homem para o grupo, um assistente da clínica chamado Lars Newstone, cujo apelido era Buzz. Tinha trinta e seis anos, a mesma idade de Quem, e era mais alto que o normal: um homem tranquilo e aparentemente capaz. Fazia nove anos que vivia na ilha, três dos quais trabalhando na clínica, período em que assimilara certo cabedal de conhecimentos médicos. Estava casado, porém separado da mulher. Queria juntar-se ao grupo, disse, porque sempre achara que “alguém precisava fazer alguma coisa, ou pelo menos tentar”.

— É um erro — disse — deixar que Uni fique dono do mundo sem sequer tentar reavê-lo.

— Ele é ótimo, justamente o homem de que precisamos — comentou Quem com Lilás depois que Buzz foi embora. — Quem me dera contar com mais dois iguais a ele em vez dos Newbridges. Obrigado.

Lilás conservou-se calada, lavando xícaras na pia. Quem aproximou-se, pegou-a pelos ombros e beijou-lhe os cabelos. Estava no sétimo mês de gravidez, enorme e constrangida.

Em fins de março Júlia ofereceu um jantar no qual Quem, que a essa altura já se achava trabalhando há quatro meses na ideia, apresentou o plano aos convidados — ilhéus abastados — que podiam contribuir, segundo ela, quinhentos dólares no mínimo por cabeça. Forneceu-lhes cópias de uma lista preparada de antemão, contendo o custo total do empreendimento, e mostrou o seu mapa da “Suíça”, com o túnel desenhado na posição aproximada.

Não se mostraram tão receptivos quanto imaginara.

— Três mil e seiscentos pra explosivos? — admirou-se um.

— Exatamente, seu moço — disse Quem. — Se alguém souber onde se consegue por menos preço, gostaria muito que me informasse...

— Que negócio é este, “reforço de sacolas”?

— E pras sacolas que teremos de carregar. Elas não foram feitas pra cargas pesadas. Nós vamos ter que desmanchá-las e fazer tudo de novo com estrutura metálica.

— Mas vocês têm licença pra comprar armas e bombas?

— Quem vai comprar sou eu — explicou Júlia, — e ficarão em minha propriedade até a data da partida da expedição. Eu tenho autorização.

— Quando tencionam ir?

— Por enquanto ainda não sei — respondeu Quem. — As máscaras contra gases só estarão prontas três meses depois do dia da encomenda. E ainda precisamos achar mais um homem e passar por uma fase de treinamento. Espero que se vá em julho ou agosto.

— Tem certeza de que é aqui mesmo que se localiza o túnel?

— Não, nós continuamos fazendo pesquisas. Isso é apenas uma aproximação.

Cinco convidados se escusaram e sete preencheram cheques que atingiram apenas a dois mil e seiscentos dólares — menos da quarta parte dos onze mil necessários.

— Safados cachorros — disse Júlia.

— Em todo caso, já é alguma coisa — retrucou Quem. — Podemos começar as encomendas. E contratar o Capitão Gold.

— Dentro de poucas semanas oferecerei outro jantar — declarou Júlia. — Que é que você tinha que estava tão nervoso? É preciso falar com mais convicção!

O bebê nasceu. Era menino e recebeu o nome de Jan. Tinha os dois olhos castanhos.

Nas noites de domingo e quarta-feira, num sótão desocupado da fábrica de Júlia, Quem, Dover, Buzz, Jack e Ria praticavam diversas modalidades de luta. O professor, oficial do exército, era o Capitão Gold, sujeito baixinho e sorridente que evidentemente antipatizava com o grupo e parecia ter prazer em fazê-los surrarem-se e derrubarem-se mutuamente sobre as ralas esteiras estendidas no chão.

— Dá nele! Dá nele! Dá nele! — mandava, pulando por todos os cantos, na frente deles, de camiseta e calças de campanha. — Dá nele! Assim, oh! Isto é que é dar, e não isto! Assim parece até que está abanando pra alguém! Santo Deus, vocês não têm mesmo jeito, seus ferrinhos! Anda, Olho-Verde, dá nele!

Quem fechou o punho contra Jack e quando viu estava no ar, caindo de costas em cima de esteira.

— Boa! — gritou o Capitão Gold. — Agora, sim, parece coisa de gente! Levanta, Olho Verde, ninguém matou você! Eu não falei que era pra ficar agachado?

Jack e Ria aprendiam logo. Buzz era mais lento.

Júlia ofereceu novo jantar. Quem falou com maior convicção e arrecadaram três mil e cem dólares.

O bebê adoeceu — teve febre e infecção intestinal — mas logo melhorou, adquirindo aspeto robusto e alegre, sugando faminto os seios de Lilás. A mãe mostrava-se mais carinhosa do que nunca, encantada com o filho e interessada em ouvir Quem discorrer sobre a arrecadação de fundos e a efetivação progressiva do plano.

Quem achou o sexto homem: um operário de granja, perto de Santany, chegado de Afri pouco antes dele e de Lilás. Tinha quarenta e três anos, bastante mais velho que o tipo que Quem procurava, mas era forte e ágil, e certo de que Uni podia ser derrotado. Trabalhara em cromatomicrografia no seio da Família e chamava-se Morgan Newmark, embora continuasse atendendo peto nome anterior: Karl.

— Creio que agora até eu seria capaz de descobrir o maldito túnel — disse Ashi, entregando a Quem vinte páginas de anotações copiadas de livros na Biblioteca.

Quem mostrou-as, junto com os mapas, a cada uma das pessoas consultadas anteriormente. Três se prontificaram a traçar uma planta do curso mais provável do túnel. E, como era de prever, apresentaram três lugares diferentes para a entrada da galeria. Duas distavam um quilômetro entre si, e a terceira ficava seis quilômetros mais longe.

— A falta de melhor, isto já basta — comentou Quem com Dover.

A firma que estava fabricando as máscaras contra gases faliu — sem devolver os oitocentos dólares de sinal, pagos por Quem — e tiveram de procurar outra.

Quem voltou a falar com Newbrook, o ex-professor da academia tecnológica, sobre o tipo de usinas de refrigeração que Uni provavelmente possuía. Júlia ofereceu outro jantar e Ashi deu uma festa. Arrecadaram mais três mil dólares. Buzz brigou com um bando de ilhéus e, apesar de assombrá-los com seus conhecimentos pugilísticos, quebrou duas costelas e fraturou a tíbia. Todos começaram a procurar um substituto para ele, caso não pudesse participar da expedição.

Uma noite Lilás acordou Quem.

— Que foi que houve? — perguntou ele.

— Quem?

— Sim, o que é?

Ouviu a respiração de Jan, dormindo no berço.

— Se você tiver razão, e esta ilha for uma prisão onde Uni nos largou...

— Sim?

— E já partiram ataques daqui antes...

— Que é que tem?

Ela permaneceu em silêncio — podia vê-la, deitada de costas com os olhos abertos — e por fim disse:

— Uni não poria outras pessoas aqui, membros “sadios”, pra preveni-lo contra novos ataques?

Ele olhou para ela e não respondeu.

— Quem sabe até... pra participar das expedições? — insistiu. — E providenciar “ajuda” pra todo mundo em Eur?

— Não — protestou, sacudindo a cabeça. — É... não. Eles teriam de fazer tratamento, não teriam? Pra continuar “sadios”.

— De fato — concordou.

— Você pensa que existe algum centro médico escondido na ilha? — perguntou, sorrindo.

— Então? Tenho certeza de que não há nenhum... espion aqui. Antes de recorrer a tais extremos, Uni simplesmente mataria os incuráveis da maneira que você e Ashi sugeriram.

— Como é que você sabe?

— Lilás, não há espions — afirmou. — Você está apenas querendo preocupar-se a toa. Agora durma, ande. Não demora Jan se acorda. Durma de uma vez.

Beijou-a e ela se virou para o outro lado. Passando certo tempo, parecia adormecida.

Ele se manteve acordado.

Não podia ser. Precisariam de tratamentos...

A quantas pessoas tinha revelado o plano, falando sobre o túnel, as verdadeiras comportas de memória? Nem dava para contar. Centenas! E cada uma, na certa, passara adiante...

Chegara até a pôr anúncio no Imigrante: Compram-se sacolas, túnicas, sandálias...

Alguém que fazia parte do grupo? Não. Dover?... impossível. Buzz?... não, nunca. Jack ou Ria?... não. Karl? Realmente ainda não conhecia Karl bem a fundo — era simpático, conversador, bebia além da conta, mas não a ponto de causar preocupações — não, Karl não podia ser senão o que aparentava, trabalhando numa granja nos cafundós do Judas...

Júlia? Estava ficando maluco. Cristo e Wei! Deus do céu!

Lilás andava apenas se inquietando à toa, mais nada.

Não podia haver nenhum espion, nenhuma pessoa por ali que apoiasse Uni às escondidas, porque nesse caso precisaria de tratamentos para continuar naquela condição.

Levaria o plano a cabo, a despeito de tudo.

Adormeceu.

As bombas chegaram: feixes de leves cilindros marrons, amarrados em torno de um preto, no meio. Foram guardados num galpão atrás da fábrica. Cada um tinha uma alça metálica, azul ou amarela, colada a um lado. As azuis era espoletas de trinta segundos, as amarelas, de quatro minutos.

Experimentaram uma numa pedreira de mármore, à noite. Calçaram-na numa fenda e puxaram a alça azul da espoleta, com cinquenta metros de arame, por trás de uma pilha de blocos cortados. A explosão foi tremenda e no lugar da fenda abriu-se um buraco do tamanho de uma porta, de onde caíam pedras, em nuvens de pó.

Todos — com exceção de Buzz — excursionaram a pé pelas montanhas, levando as sacolas cheias de pedras. O Capitão Gold ensinou-lhes a carregar um revólver e focar um raio laser, a sacar, fazer mira e atirar — em pranchas escoradas à parede dos fundos da fábrica.

— Você não ia oferecer outro jantar? — perguntou Quem a Júlia.

— Sim, daqui a uma ou duas semanas — respondeu.

Mas não ofereceu. Nunca mais falou em dinheiro, e ele tampouco.

Passou algum tempo em companhia de Karl e certificou-se de que não era um espion.

A perna de Buzz sarou quase por completo: insistiu que estaria em condições de ir junto.

As máscaras contra gases chegaram, assim como o resto das armas, ferramentas, sapatos, navalhas, revestimentos plásticos, sacolas reformadas, relógios, rolos de arame grosso, balsa pneumática, pá, bússolas e binóculos.

— Experimente me dar um soco — sugeriu o Capitão Gold.

Quem deu e partiu-lhe o lábio.

Demorou até novembro, quase um ano, para aprontar tudo, e então Quem resolveu adiar a partida para o Natal, aproveitando o feriado para chegar a ’001: as estradas de bicicletas e as ruas, carroportos e aeroportos estariam no auge do movimento, os membros andariam com um passo um pouco mais rápido que o normal e mesmo um “sadio” poderia distrair-se esquecendo de tocar na placa de um controle.

No domingo anterior à data marcada, levaram ao sótão tudo o que havia no galpão, enchendo as sacolas — inclusive as que ficariam por dentro — que esvaziariam ao atracar em terra firme. Júlia estava presente, bem como John, o filho de Newman, que devia trazer de volta a lancha do S.I., e Nella, a namorada de Dover — moça de vinte e dois anos, com o cabelo amarelo como o dele, entusiasmadíssima com os preparativos. Ashi compareceu, e o Capitão Gold também.

— Vocês todos são uns doidos varridos — disse o Capitão.

— Cai fora, safado — respondeu Buzz.

Quando terminaram, com as sacolas completamente enroladas em invólucros plásticos e amarradas, Quem pediu aos que não tomariam parte na expedição para que se retirassem. Depois reuniu o grupo num círculo em cima das esteiras.

— Pensei muito sobre o que se deve fazer se um de nós for capturado — disse, — e optei pela seguinte solução: caso alguém seja preso, mesmo que seja apenas um elemento do grupo, todos os restantes regressarão imediatamente à ilha.

Olharam para ele.

— Depois de tanto esforço? — estranhou Buzz.

— Sim. Se um de nós for submetido a tratamento, revelará ao médico que pretendemos entrar pelo túnel, e aí então não teremos mais nenhuma chance de êxito. Portando o melhor é voltar, rápida e discretamente, procurando uma lancha na praia. Pra dizer a verdade, quero ver se localizo uma assim que atracarmos, antes de iniciar o trajeto.

— Cristo e Wei! — exclamou Jack. — Evidentemente, se

três ou quatro fossem capturados, mas um?

— Minha decisão é essa — afirmou Quem. — É a mais acertada.

— E se você for preso? — perguntou Ria.

— Então a chefia passará a Buzz — respondeu Quem, — e quem resolve é ele. Mas por enquanto fica decidido o seguinte: se alguém for capturado, todo mundo recua.

— Portanto que ninguém se deixe pegar — disse Karl.

— Justo — retrucou Quem, levantando-se. — É só — declarou. — Tratem de dormir bastante. Até quarta às sete.

— Dia de Wood — corrigiu Dover.

— Dia de Wood, dia de Wood, dia de Wood — disse Quem. — Até o dia de Wood, às sete.


Beijou Lilás como se fosse sair para tratar de um assunto qualquer e tomasse voltar dentro de poucas horas.

— Tchau, amor — disse.

Ela abraçou-se nele, encostando-lhe o rosto e não disse nada.

Beijou-a de novo, desvencilhou-se de seus braços e aproximando-se do berço. Jan estava entretido em alcançar um pacote vazio de cigarros, pendurado num cordão. Quem beijou-lhe a face e deu-lhe adeus.

Lilás chegou perto e ele a beijou. Abraçaram-se e beijaram- se, e depois ele saiu, sem virar-se para trás.

Ashi esperava lá em baixo, de monociclo. Levou Quem ao cais, em Pollensa.

Todos se achavam no escritório do S.I. às sete menos um quarto e enquanto um cortava o cabelo do outro, o caminhão chegou. John Newman, Ashi e um homem da fábrica levaram as sacolas e a balsa até a lancha, e Júlia distribuiu sanduíches e café. Os homens cortaram a barba e escanhoaram bem o rosto.

Colocaram as pulseiras e os aros fechados que pareciam semelhantes aos normais. A de Quem dizia Jesus AY 31G6912.

Despediu-se de Ashi e beijou Júlia.

— Faça a sua sacola e prepare-se pra conhecer o mundo — disse ele.

— Tome cuidado — recomendou ela. — E procure rezar.

Entrou na lancha sentou-se sobre o tombadilho na frente das sacolas, em companhia de John Newman e dos outros — Buzz e Karl, Jack e Ria: todos tinham um aspecto estranho de membros da Família com aquele cabelo cortado e aquelas caras iguais, imberbes.

Dover ligou o motor e pôs-se ao largo do porto, virando depois em direção à suave claridade alaranjada que se erguia do lado de ‘91766.


2

 

A pálida luz que precede o raiar do dia, abandonaram furtivamente o batelão e empurraram por diante a balsa carregada de sacolas. Três empurravam e três nadavam rentes, observando o recorte escuro dos altos penhascos. Avançaram aos poucos, mantendo-se a uma distância de cerca de cinquenta metros da costa. De dez em dez minutos mais ou menos, trocavam de lugar: os que tinham estado nadando, empurravam e os que tinham estado empurrando, nadavam.

Quando já se encontravam à altura de *91772, desviaram a balsa em direção à praia. Guardaram-na numa pequena enseada de areia rodeada por imponentes escarpas rochosas, descarregaram as sacolas e as desembrulharam. Abriram as internas e vestiram túnicas. Puseram armas, relógios, bússolas e mapas nos bolsos. Depois .cavaram um buraco e esconderam dentro as duas sacolas vazias, todos os invólucros plásticos, a balsa sem ar, as roupas que usavam em Liberdade e a pá utilizada para escavar. Encheram o buraco de terra, eliminaram os vestígios e, de sacolas a tiracolo e sandálias na mão, começaram a caminhar em fila única pela estreita faixa de areia. O céu clareou e suas sombras se projetaram sobre a base rochosa dos penhascos, deslizando para frente e para trás. Karl, quase no fim da fila, pôs-se a assobiar Uma Forte Família. O resto do grupo sorriu e Quem, que vinha à dianteira, também aderiu ao assobio. Alguns dos outros fizeram o mesmo.

Não tardou muito, acharam uma lancha — uma velha lancha azul, emborcada de lado, à espera de incuráveis que se considerariam felizes. Quem virou-se e andando de costas disse:

— Cá está ela, se a gente precisar.

— Não vai ser preciso — retrucou Dover.

Depois de Quem virar-se de novo para a frente, quando já tinham passado adiante, Jack pegou uma pedra, jogou na lancha, mas errou.

Durante o percurso mudaram as sacolas de ombro. Em menos de uma hora chegaram a um controle que fazia face ao lado oposto.

— Nada como estar em casa — ironizou Dover.

Ria soltou um suspiro.

— Oi, Uni — disse Buzz, — como vai?

E bateu de teve na parte de cima do controle ao passar por ele.

Já caminhava sem mancar. Quem voltava-se de vez em quando para verificar.

A faixa de areia começou a alargar-se e chegaram a uma cesta de lixo, seguida por outras. Depois surgiram plataformas de salva-vidas, alto-falantes e um relógio — 6h54m — Quinta 25 Dez 171 A.U. — e uma escada que subia em ziguezague pelo penhasco com enfeites vermelhos e verdes enroscados em diversos pilares da grade.

Largaram as sacolas e as sandálias, tiraram as túnicas e estenderam tudo no chão. Deitaram-se em cima e descansaram ao crescente calor do sol. Quem lembrou coisas que achava que deviam dizer quando falassem com a Família posteriormente. Discutiram o assunto, conjeturando sobre até que ponto a interrupção de Uni afetaria as transmissões de televisão e quanto tempo levaria para serem normalizadas.

Karl e Dover pegaram no sono.

Quem ficou estendido de olhos fechados, pensando em certos problemas que a Família teria que enfrentar quando despertasse, e nas várias maneiras de solucioná-los.

“Cristo, que nos ensinou” — começaram os alto-falantes às oito horas. Dois salva-vidas de gorro vermelho e óculos escuros vieram descendo os degraus em ziguezague. Um deles chegou à plataforma perto do grupo.

— Feliz Natal — disse.

— Feliz Natal — responderam em coro.

— Querendo, já podem entrar n’água — avisou, subindo à plataforma.

Quem, Jack e Dover levantaram-se e dirigiram-se ao mar. Nadaram um pouco, observando os membros que desciam a escada, e depois saíram, tornando a deitar-se na areia.

Quando havia trinta e cinco ou quarenta membros na praia, às 8h22m, os seis se levantaram e começaram a vestir as túnicas e pôr as sacolas no ombro.

Quem e Dover foram os primeiros a subir a escada. Sorriam e davam “Feliz Natal” aos membros que vinham descendo e fingiram facilmente que tocavam no controle ao alto. Os únicos membros nas proximidades estavam na cantina, de costas para eles.

Esperaram junto de um chafariz até que Jack e Ria subissem e depois Buzz e Karl.

Dirigiram-se ao posto de bicicletas, onde havia vinte ou vinte e cinco enfileiradas nos lugares mais à mão. Tiraram as seis últimas, colocaram as sacolas nas cestas, montaram e pedalaram até o início da estrada destinada exclusivamente a ciclistas. Ali esperaram, sorrindo e conversando, que cessasse o trânsito de bicicletas e carros. Depois cruzaram em grupo pelo controle, encostando as pulseiras na parte lateral, para a eventualidade de estarem sendo observados a distância por alguém.

Rumaram a EUR91770 individualmente e aos pares, deixando bastante espaço de intervalo entre si na estrada. Quem ia à frente, com Dover logo atrás. Olhou os ciclistas que se aproximavam e os carros esporádicos que passavam chispando. Havemos de conseguir, pensou. Nós havemos de conseguir.


Entraram separados no aeroporto, reunindo-se perto do quadro de horários de vôo. Os membros aglomeravam-se ao redor deles. A sala de espera, toda enfeitada de vermelho e verde, estava apinhada de gente e o burburinho era tão grande que mal se escutava a música de Natal. Do outro lado das vidraças, aviões imensos giravam e avançavam pesadamente, tomando passageiros em três escadas rolantes ao mesmo tempo, desembarcando filas de membros, num contínuo vaivém entre as pistas.

Eram 9h35m. O próximo vôo para EUR0001 partiria às 11h48m.

— Não me agrada essa ideia de permanecer muito tempo aqui — disse Quem. — Ou o batelão usou energia extra ou então chegou atrasado, e se a diferença ficou manifesta, é bem capaz que Uni perceba o motivo.

— Então vamos tomar logo o primeiro avião — sugeriu Ria, — pra chegar o mais perto possível de ’001 e depois completar o percurso de bicicleta.

— Se a gente espera mais um pouco, chega mais rápido — discordou Karl. — Isto aqui até que não é tão ruim como esconderijo.

— Não — retrucou Quem, consultando o quadro de vôo, — vamos no... das 10h6m pra ’00020. Não tem outro mais cedo e dista apenas cinquenta quilômetros de ’001. Venha, o portão é aquele lá.

Abriram caminho no meio da multidão até a porta giratória no canto da sala e agruparam-se em torno do controle. A porta se abriu, dando passagem a um membro de túnica cor de laranja. Pedindo desculpas, estendeu o braço entre Quem e Dover para tocar no controle — sim, piscou a luz — e seguiu adiante.

Quem tirou disfarçadamente o relógio do bolso e comparou- o com o da parede.

— É a pista seis — disse. — Se houver mais de uma escada rolante, entrem na fila da parte de trás do avião. E façam questão de ficar quase por último, deixando no mínimo seis membros à retaguarda. Vem, Dover.

Pegou-o pelo braço e os dois atravessaram a porta, entrando na área de depósito.

— Vocês não deviam estar aqui — avisou um membro de túnica cor de laranja que estava parado ali.

— Uni autorizou — respondeu Quem. — Trabalhamos nos planos de aeroporto.

— Três-trinta-e-sete-A — explicou Dover.

— Este pavilhão vai ser ampliado no ano que vem — disse Quem.

— Agora entendo o que você queria dizer a respeito do teto — comentou Dover, olhando para cima.

— Sim — confirmou Quem. — Ele podia facilmente ganhar mais um metro de altura.

— Metro e meio — corrigiu Dover.

— A não ser que oi condutos compliquem tudo — disse Quem.

O membro afastou-se e saiu pela porta.

— É, os condutos — observou Dover. — Problema sério.

— Deixe eu lhe mostrar aonde eles vão — continuou Quem. — É muito interessante.

— Se é.

Entraram na área em que os membros de túnica cor de laranja aprontavam os bolos e recipientes de bebida, trabalhando mais depressa do que era costume entre os membros.

— Três-trinta-e-sete A? — perguntou Quem.

— Por que não? — retrucou Dover, apontando para o teto enquanto se separavam para dar passagem a um membro empurrando carrinho. — Está vendo a direção que os condutos tomam?

— Teremos que modificar a instalação toda. Aqui também.

Fingiram tocar no controle e passaram à sala onde havia túnicas penduradas em ganchos. Não encontraram ninguém. Quem fechou a porta e mostrou o armário onde eram guardadas as de cor de laranja.

Vestiram-nas por cima das amarelas e colocaram biqueiras nas sandálias. Rasgaram o fundo dos bolsos das de cor de laranja para poderem enfiar a mão nos das que ficaram por baixo.

Surgiu um membro de branco.

— Olá — saudou. — Feliz Natal.

— Feliz Natal — responderam.

— Mandaram-me lá de ’765 pra ajudar aqui — explicou.

Tinha uns trinta anos.

— Ótimo, estávamos mesmo precisando — disse Quem.

O membro, abrindo a túnica, olhou para Dover, que fechava a sua.

— Por que você deixou a outra por baixo? — estranhou.

— Assim esquenta mais — respondeu Quem, aproximando-se.

Virou-se para Quem, intrigado.

— Esquenta mais? Pra que você quer esquentar-se mais?

— Desculpe, irmão — disse Quem, dando-lhe um soco no estômago.

Ele se curvou para a frente, com um gemido, e Quem desfechou-lhe outro no queixo. O membro endireitou o corpo e caiu para trás. Dover pegou-o por baixo dos braços e estendeu-o no chão. Ficou de olhos fechados, como se estivesse dormindo.

Quem, examinando-o, exclamou:

— Cristo e Wei, o negócio dá certo.

Os dois rasgaram uma série de túnicas e amarraram os pulsos e os tornozelos do membro, atando uma manga entre os seus dentes. Depois ergueram-no e colocaram-no dentro do armário onde era guardada a cera de soalho.

De 9h51m7 o relógio passou a 9h52m.

Embrulharam as sacolas em túnicas cor de laranja, saíram da sala e passaram pelos membros que lidavam com os recipientes de bolo e bebida. Na área de depósito descobriram uma caixa de papelão com toalhas pelo meio e puseram dentro as sacolas embrulhadas. Carregando-a entre ambos, cruzaram o portão e acharam-se no campo.

Havia um avião em frente à pista seis, enorme, desembarcando membros por duas escadas rolantes. Outros membros, de laranja, aguardavam ao pé de cada uma das duas com um carrinho de recipientes.

Afastaram-se do avião, rumo à esquerda. Atravessaram o campo em sentido diagonal, sempre carregando a caixa de papelão, desviaram-se de um caminhão de manutenção que andava devagar e aproximaram-se dos hangares que ficavam num pavilhão de telhado plano e estendia-se até as pistas de decolagem.

Entraram num deles. Continha um avião menor, com membros de laranja por baixo, retirando do bojo uma caixa preta quadrada. Quem e Dover continuaram até os fundos do hangar, onde havia uma porta na parede lateral. Dover abriu-a, espiou lá dentro e fez sinal com a cabeça para Quem.

Os dois entraram e fecharam a porta. Era um almoxarifado: prateleiras de ferramentas, filas de engradados de madeira, tonéis pretos de metal com marca Óleo Lub SG.

— Até parece de encomenda — comentou Quem, enquanto largavam a caixa no chão.

Dover escondeu-se atrás da porta. Tirou o revólver e segurou-o pelo cano.

Agachando-se, Quem desembrulhou uma sacola, abriu-a e retirou uma bomba com alça amarela de quatro minutos.

Separou dois tonéis de óleo e colocou a bomba no chão no meio, com a alça presa pelo esparadrapo virada para cima. Puxou o relógio do bolso e olhou a hora.

— Quanto tempo? — perguntou Dover.

— Três minutos.

Voltou à caixa de papelão. Sempre de relógio em punho, correu o fecho da sacola, tomou a embrulhá-la e fechou as tampas da caixa.

— Tem alguma coisa que se aproveite? — perguntou Dover, acenando com a cabeça para as prateleiras de ferramentas.

Quem aproximou-se de uma delas. A porta do almoxarifado se abriu e entrou um membro de túnica laranja — uma mulher.

— Olá — saudou Quem, apanhando uma ferramenta e guardando o relógio no bolso.

— Olá — disse ela, dirigindo-se ao lado oposto da prateleira.

Olhou de relance para Quem.

— Quem é você? — indagou.

— Li RP — respondeu. — Mandaram-me lá de 765 pra ajudar aqui.

Apanhou outra ferramenta na prateleira: um par de compassos.

— Não está tão ruim como no Natal de Wei — observou ela.

Surgiu outro membro à porta.

— Já encontramos, Paz — avisou. — Estava com Li.

— Eu perguntei a ele e ele respondeu que não estava — disse ela.

— Pois estava — disse o outro membro, desaparecendo.

Ela saiu atrás dele.

— Ele foi o primeiro a quem eu perguntei.

Quem ficou parado, olhando a porta que se fechava lentamente. Dover, escondido no canto, olhou para ele e empurrou-a até o fim, de mansinho. Quem olhou para Dover e depois para a mão que segurava as ferramentas: estava trêmula. Largou as ferramentas, respirou fundo e mostrou a mão a Dover, que sorriu e observou:

— Muito pouco próprio de membro.

Quem tomou fôlego e tirou o relógio do bolso.

— Menos de um minuto — avisou, indo até os tonéis e agachando-se.

Puxou o esparadrapo da alça da bomba.

Dover guardou o revólver no bolso — o da túnica por baixo — e ficou imóvel com a mão na maçaneta.

Quem, controlando o relógio e segurando a alça da espoleta disse:

— Dez segundos.

Esperou, esperou, esperou — e finalmente puxou a alça para cima e pôs-se em pé enquanto Dover abria a porta. Levantaram a caixa de papelão, tirando-a do almoxarifado e fechado imediatamente a porta.

Percorreram o hangar com a caixa — “Calma, devagar”, dizia Quem — e atravessaram o campo em direção ao avião em frente à pista seis. Membros faziam fila nas escadas rolantes e subiam.

— O que é isso? — perguntou um membro de túnica laranja com uma prancheta na mão, caminhando ao lado de ambos.

— Mandaram-nos trazer pra cá — explicou Quem.

— Karl? — chamou outro membro do lado oposto do que trazia a prancheta.

Ele parou e se virou.

— Que é?

Quem e Dover continuaram andando.

Trouxeram a caixa de papelão até a escada rolante da parte de trás do avião e largaram no chão. Quem colocou-se diante do controle, olhando o regulador da escada. Dover esgueirou-se pela fila e postou-se atrás do controle. Os membros passavam entre os dois, encostavam as pulseiras no controle que piscava a luz verde e depois pisavam nos degraus.

Um membro de túnica laranja chegou-se a Quem e disse;

— Eu estou nesta escada.

— Karl acabou de me pedir pra vir pra cá — respondeu Quem. — Mandaram-me lá de ’765 pra ajudar aqui.

— Que foi que houve? — perguntou o membro da prancheta, aproximando-se. — Por que vocês estão em três aqui?

— Eu pensei que estava nesta escada — disse o outro membro.

O ar estremeceu e uma forte explosão partiu dos hangares.

Uma coluna preta, ampla e cada vez maior, pairou sobre o pavilhão, misturada a rolos de fogo. Desabou uma chuva negra e amarelada sobre o telhado e o campo, e membros de túnica laranja saíram correndo dos hangares, disparando e depois diminuindo o passo para se virar e olhar a coluna de labaredas no telhado.

O membro da prancheta arregalou os olhos e precipitou- se naquela direção. O outro correu atrás.

Os membros da fila ficaram imóveis, olhando para o lado dos hangares. Quem e Dover pegaram alguns pelo braço e empurraram por diante.

— Não parem — diziam. — Continuem subindo, por favor. Não há perigo. O avião está esperando. Toquem no controle e pisem no degrau. Continuem subindo, por favor.

Encaminharam os membros a passar pelo controle e subir a escada. Um deles era Jack.

— Que beleza — comentou, olhando por cima do ombro de Quem ao fingir que tocava no controle.

Depois foi a vez de Ria, que parecia tão empolgada como na primeira vez que Quem a tinha visto. E Karl, amedrontado e lúgubre. E Buzz, todo sorridente. Dover pisou na escada logo em seguida. Quem confiou-lhe uma sacola embrulhada e virou-se para os outros membros da fila, os últimos sete ou oito, que estavam parados, contemplando os hangares.

— Continuem subindo, por favor — pediu. — O avião está esperando. Irmã!

— Não há motivo para pânico — disse uma voz de mulher pelo alto-falante. — Ocorreu um acidente nos hangares, mas já está tudo em ordem.

Quem apressou os membros a subir a escada.

— Toquem no controle e pisem no degrau — pediu. — O avião está esperando.

— Membros passageiros, queiram retomar seus lugares na fila — disse a voz. — Os membros que estiverem entrando a bordo dos aviões, continuem a fazê-lo. O serviço não sofrerá interrupção.

Quem fingiu tocar no controle e pisou no degrau atrás do último membro. Subindo a escada com a sacola embrulhada debaixo do braço, olhou de relance para os hangares: a coluna estava preta e enfumaçada mas não se via mais fogo. Virou-se de frente novamente, para as túnicas azul claro.

— Todos os funcionários, com exceção dos quarenta-e-sete e quarenta-e-nove, retomem às suas ocupações — disse a voz de mulher. — Todos os funcionários, com exceção dos quarenta-e-sete e quarenta-e-nove, retomem às suas ocupações. A situação já está normalizada.

Quem entrou no avião e a porta começou a baixar às suas costas.

— O serviço não sofrerá interrupção...

Os membros se achavam de pé, confusos, olhando os lugares tomados.

— Há passageiros extras devido ao feriado — explicou Quem. — Passem lá pra frente e peçam aos membros com filhos pra porem as crianças no colo. Não há outra solução.

Os membros avançaram pelo corredor, olhando para todos os lados do avião.

Os cinco ocupavam a última fileira, junto à dispensa. Dover retirou a sacola embrulhada do assento do corredor e Quem sentou-se.

— Nada mau — disse Dover.

— Ainda não levantamos vôo — retrucou Quem.

Havia burburinho a bordo: os recém-chegados comentavam a explosão com os primeiros que tinham embarcado, espalhando a notícia de fila em fila. O relógio marcava 10h6m, mas o avião não saía do mesmo lugar.

De 10h6m passou a 10h7m.

Os seis se entreolharam e depois viraram a cabeça para a frente, com jeito normal.

O avião se mexeu. Girou levemente para o lado e depois tomou impulso. Começou a acelerar. As luzes diminuíram e as telas de televisão se iluminaram.

Assistiram à Vida de Cristo e A Família no Trabalho, que já era bem velho. Tomaram chá e refrigerante, mas não conseguiram comer: não havia bolos a bordo, por causa da hora, e embora tivessem queijo embrulhados em papel laminado, podiam ser vistos pelos membros que saíssem da despensa. Quem e Dover suavam com as túnicas duplas. Karl cochilava a cada instante, e Ria e Buzz, que o ladeavam, cutucavam-no para mantê-lo acordado e atento.

A viagem demorou quarenta minutos.

Quando o sinal de localização indicou EUR00020, Quem e Dover levantaram-se do assento e ficaram em pé na despensa, comprimindo os botões e deixando escorrer chá e refrigerante pelo cano de esgoto. O avião pousou, deslizou e parou, e os membros começaram a fazer fila para descer. Depois que algumas dezenas passaram pela porta mais próxima, Quem e Dover tiraram os recipientes vazios da despensa, largaram no chão, levantaram as tampas, e Buzz colocou uma sacola embrulhada dentro de cada um deles. Depois Buzz, Karl, Ria e Jack se levantaram e os seis se dirigiram à saída. Quem apoiando um recipiente contra o peito, pediu:

— Querem dar licença, por favor?

Um membro de certa idade cedeu-lhe passagem. Os outros vieram logo atrás. Dover, carregando o segundo recipiente, disse ao membro idoso:

— É melhor esperar até que eu deixe a escada livre.

O membro concordou com um aceno de cabeça, um tanto atônito.

Ao pé da escada rolante Quem encostou o pulso no controle e imediatamente cobriu-o com o corpo, impedindo a visão dos membros na sala de espera, Buz, Karl, Ria e Jack passaram por ele, fingindo encostar a pulseira. Dover debruçou-se no controle e fez sinal com a cabeça para o membro que aguardava lá em cima.

Os quatro rumaram para a sala de espera e Quem e Dover atravessaram o campo até o portão, entrando na área de depósito. Largando os recipientes por terra, retiraram as sacolas e esguei- raram-se entre duas fileiras de engradados. Descobriram um espaço livre perto da parede, onde despiram as túnicas cor de laranja e descalçaram as biqueiras das sandálias.

Deixaram a área de depósito pela porta giratória, de sacolas no ombro. Os outros os esperavam ao redor do controle. Saíram aos pares do aeroporto — estava quase tão apinhado de gente quanto o de ’91770 — e reuniram-se de novo no posto de bicicletas.

Ao meio-dia achavam-se ao norte de ’00018. Comeram suas bolas de queijo entre a estrada de ciclistas e o Rio da Liberdade, num vale cercado de montanhas que se erguiam a impressionantes altitudes franjeadas de neve. Enquanto comiam, examinaram os mapas. Ao cair da noite, segundo seus cálculos, chegariam a um parque a poucos quilômetros da entrada do túnel.

Pouco depois das três horas, quando se aproximavam de ’00013. Quem notou uma ciclista adolescente que vinha na direção oposta, olhando para os rostos do grupo que seguia rumo ao norte — inclusive seu, ao se cruzarem — com uma expressão preocupada, de membro “querendo-ajudar”. Passado um instante, avistou outra ciclista olhando para eles do mesmo modo ligeiramente nervoso. Era uma mulher de idade que levava flores na cesta. Sorriu-lhe ao cruzar por ela e depois não se virou para trás. Nem a estrada, nem a rodovia paralela apresentavam sinais de anormalidade. A algumas centenas de metros mais adiante, ambas dobravam à direita e desapareciam nos fundos de uma usina elétrica.

Pedalou sobre a relva, parou e, olhando à retaguarda, acenou aos companheiros à medida que surgiam.

Empurraram as bicicletas bem para longe da estrada. Achavam-se no último trecho de vegetação antes da cidade: uma extensão de relva seguida por mesas de piquenique e um arvoredo que encobria uma pequena elevação no terreno.

— Parando de meia em meia hora jamais chegaremos — disse Ria.

Sentaram na relva.

— Acho que estão examinando as pulseiras logo adiante — disse Quem. — Telecomputadores e túnicas de cruz vermelha. Notei dois membros que vinham de lá com jeito de quem procura localizar alguém doente. Estavam com aquela cara de “será-que-posso-ajudar?”

— Que ódio — exclamou Buzz.

— Cristo e Wei, Quem — disse Jack, — se vamos começar a nos preocupar com as expressões faciais dos membros, seria preferível voltar logo pra casa.

Quem olhou para ele.

— Um exame de pulseiras não é tão implausível assim, não é? — retrucou. — A esta altura Uni já deve saber que a explosão em ’91770 não foi acidente, e é capaz de ter adivinhado exatamente o motivo. Este é o caminho mais curto de ’020 a Uni... e vamos chegar à primeira curva abrupta dentro de uns doze quilômetros.

— Está certo, então eles estão examinando as pulseiras — disse Jack. — Pra que ódio andamos armados?

— É — apoiou Ria.

— Se formos abrir caminho a bala, teremos todos os ciclistas no nosso encalço — retrucou Dover.

— Nesse caso, a gente atira uma bomba pra trás — sugeriu Jack. — Precisamos andar depressa, em vez de ficar de rabo sentado como se estivéssemos jogando xadrez. De qualquer modo esses pamonhas já são mesmo uns mortos-vivos: que diferença faz se a gente liquida meia dúzia? Nós vamos salvar todo o resto, não vamos?

— As armas e as bombas são pra quando for necessário — disse Quem, — e não pra quando se pode deixar de usá-las.

Virou-se para Dover.

— Dá uma volta, ali pelo mato — pediu-lhe, — e vê se enxerga o que está depois da curva.

— O.K. —concordou Dover.

Levantou-se, cruzou o gramado, juntou alguma coisa do chão, jogou dentro de uma cesta de lixo e penetrou no arvoredo. A túnica amarela se transformou em pontinhos esparsos desaparecendo elevação acima.

Deixaram de observá-lo. Quem tirou o mapa do bolso.

— Merda — disse Jack.

Quem não fez comentários. Examinava o mapa.

Buzz esfregou a perna e de repente afastou a mão.

Jack arrancava pedaços de relva do chão. Ria, sentada a seu lado, observava-o.

— Que é que você sugere — perguntou Jack, — se eles estiverem examinando as pulseiras?

Quem tirou os olhos de cima do mapa e, depois de uma pausa, respondeu:

— Recuaremos um pouco, atalhando pelo leste e fazendo uma volta.

Jack arrancou mais relva e depois arremessou longe.

— Vem — disse a Ria, pondo-se em pé.

Ela se levantou de um salto, os olhos brilhando.

— Aonde vocês vão? — perguntou Quem.

— Aonde tínhamos planejado — respondeu Jack, olhando-o com firmeza. — ao parque perto do túnel. Esperaremos por vocês até clarear o dia.

— Sentem-se, todos os dois — ordenou Karl.

— Vocês irão, mas junto conosco e quando eu achar que se deve ir — retrucou Quem. — Vocês concordaram com isso no começo.

— Mudei de ideia — disse Jack. — Pra mim é tão desagradável receber ordens de você quanto de Uni.

— Esses dois vão estragar tudo — disse Buzz.

— Vocês é que vão! — revidou Ria. — Parando, recuando, fazendo voltas... quando se quer fazer uma coisa a gente faz logo!

— Sentem aí e esperem até que Dover venha — ordenou Quem.

Jack sorriu.

— Vai-me obrigar? — perguntou. — Logo aqui, bem na frente da Família?

Fez sinal para Ria e os dois pegaram as bicicletas, firmando as sacolas nas cestas.

Quem se levantou e guardou o mapa no bolso.

— Não podemos dividir o grupo pelo meio deste jeito — disse. — Pare um pouco pra refletir, Jack. Como vamos saber se...

— Você é quem gosta de parar pra refletir — retrucou Jack. — Eu prefiro entrar logo no túnel.

E virou as costas, dando impulso à bicicleta. Ria empurrava a sua ao lado dele. Dirigiram-se à estrada.

Quem deu um passo atrás dos dois e estacou, de queixo tenso, os punhos cerrados. Sentiu vontade de gritar, de tirar o revólver do bolso e forçá-los a voltar — mas havia ciclistas passando, membros disseminados por perto, sobre a relva.

— Não há nada que você possa fazer, Quem — disse Karl.

— Os filhos da luta — exclamou Buzz.

À beira da estrada, Jack e Ria montaram nas bicicletas. Jack abanou para o grupo.

— Até logo! — gritou. — A gente se vê na sala da televisão!

Ria também abanou e os dois foram embora, pedalando.

Buzz e Karl abanaram para eles.

Quem arrancou bruscamente a sacola de sua bicicleta e colocou-a a tiracolo. Tirou outra e jogou-a ao colo de Buzz.

— Karl, você fique aqui — disse. — Venha comigo, Buzz.

Entrou no mato, dando-se conta de que estava caminhando depressa demais, encolerizado, comportando-se de modo anormal, mas pensou Lute-se! Subiu a elevação de terreno na direção tomada por Dover. Que fossem PRO INFERNO!

Buzz alcançou-o.

— Cristo e Wei — exclamou, — não jogue as sacolas assim!

— Que vão pro inferno! — respondeu Quem. — Percebi logo à primeira vista que aqueles dois não valiam nada! Mas fechei os olhos porque estava tão desesperado... diabos me levem! A culpa é minha. Exclusivamente minha.

— Talvez não haja exame de pulseiras e eles fiquem à nossa espera no parque — alvitrou Buzz.

Apareceram lampejos amarelos entre as árvores: Dover vinha descendo. Parou, enxergou-os e aproximou-se.

— Você tinha razão — disse. — Médicos na estrada, médicos no ar...

— Jack e Ria foram na frente — avisou Quem.

Dover arregalou os olhos.

— E você deixou?

— Por acaso podia impedir? — retrucou Quem. Pegou Dover pelo braço e virou-o de costas. — Mostre o caminho.

Dover conduziu-os rapidamente elevação acima pelo meio das árvores.

— Nunca que conseguirão passar — disse. — Tem um centro médico inteiro e barreiras pra impedir que as bicicletas dêem meia volta.

Emergiram do arvoredo, deparando com um declive de rochas. Buzz chegou por último, afobado.

— Abaixem-se, senão eles enxergam a gente — aconselhou Dover.

Deitaram-se de bruços e rastejaram declive acima. Lá do alto avistava-se a cidade, ’00013, com seus edifícios brancos recortados nítidos à luz do sol, a rede de monotrílhos entrelaçados e faiscantes, a orla das rodovias rutilante de carros. O rio descrevia uma curva e continuava rumo ao norte, azul e estreito, sulcado por vagarosas lanchas de turismo e uma longa fileira de barcas passando sob as pontes.

Ao pé do declive via-se uma meia concha de paredes de pedra, cujo pavimento formava uma praça semicircular onde se bifurcava a estrada de ciclistas: descia do norte, por trás da usina elétrica, desviando-se a certa altura para cruzar a rodovia de carros vertiginosos e penetrar na cidade por uma ponte. O outro braço cortava a praça na parte central, acompanhando a margem oriental do rio sinuoso até reencontrar a rodovia paralela. Antes de se bifurcar, uma série de barreiras dividia em três filas os ciclistas que se aproximavam, cada uma forçada a desfilar perante um grupo de membros de cruz vermelha na túnica, parados junto a ura pequeno controle de aspecto insólito. Três membros, munidos de equipamento contra a lei da gravidade, pairavam no ar, de rosto virado para baixo, sobre cada grupo. Dois carros e um helicóptero ocupavam o canto mais próximo da praça, enquanto outros membros de cruz vermelha na túnica, parados junto à fila de ciclistas que deixava a cidade, os apressavam a seguir viagem quando diminuíam a marcha para observar os que tocavam nos controles.

— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou Buzz.

Quem, de olho naquela cena, puxou o fecho da sacola.

— Eles devem estar nalgum ponto da fila — opinou.

Achou os binóculos, colocou-os em posição e acertou o foco.

— Estão, sim — confirmou Dover. — Está vendo as sacolas nas cestas?

Quem percorreu a fila e localizou Jack e Ria. Os dois pedalavam devagar, lado a lado, em pistas flanqueadas por barreiras de madeira. Jack olhava em frente e movia os lábios. Ria acenava com a cabeça. Guiavam apenas com a mão esquerda. Mantinham a direita no bolso.

Quem passou os binóculos a Dover e virou-se para a sua sacola.

— Temos que ajudá-los a passar pelo controle — disse. — Se conseguirem alcançar a ponte, talvez possam sumir na cidade.

— Eles vão começar a atirar quando chegarem aos controles — opinou Dover.

Quem entregou a Buzz uma bomba de alça azul.

— Puxe o esparadrapo e atire quando eu mandar — disse,

— Faça pontaria contra o helicóptero: dois coelhos de uma só cajadada.

— Atire antes que comecem o tiroteio — recomendou Dover.

Quem pegou de novo os binóculos e procurou Jack e Ria até encontrá-los outra vez. Esquadrinhou as filas na frente deles: havia cerca de quinze bicicletas entre os dois e os grupos nos controles.

— Eles têm balas ou raios laser? — perguntou Dover.

— Balas — respondeu Quem. — Não se preocupe, eu calculo direito o tempo.

Observou as filas de bicicletas avançando lentamente, graduando-se a velocidade.

— De um jeito ou doutro, provavelmente vão começar a disparar disse Buzz. — Só pra se divertir. Você reparou no olhar de Ria?

— Prepare-se — pediu Quem. Esperou até que Jack e Ria ficassem a cinco bicicletas de distância dos controles. — Agora — disse.

Buzz puxou a alça e atirou a bomba furtivamente de lado. Ela bateu numa pedra, saiu rolando caiu de uma saliência e foi pousar perto do lado do helicóptero.

— Volte pra cá — mandou Quem.

Espiou outra vez pelos binóculos. Jack e Ria estavam a duas bicicletas dos controles, com ar tenso mas confiante. Recuou de novo entre Buzze Dover.

— Parece até que estão indo pra uma festa — comentou.

Esperaram, de rosto colado às pedras. A bomba explodiu e o declive estremeceu. Lá embaixo saltou metal para tudo quanto foi lado. Fez-se silêncio e espalhou-se pelo ar o cheiro acre do explosivo. Depois ouviram-se vozes, primeiro em murmúrio e por fim mais alto.

— Aqueles dois! —gritou alguém.

Debruçaram-se à beira do declive..

Duas bicicletas corriam rumo à ponte. Todas as outras estavam imóveis, os ciclistas apoiando um pé no chão, de frente para o helicóptero — emborcado e fumegante — e agora voltados para as duas bicicletas que ganhavam velocidade e para os membros de cruz vermelha na túnica que corriam atrás. Os três membros no ar mudaram de direção e voaram para a ponte.

Quem levantou os binóculos — e viu as costas curvadas de Ria e Jack pouco mais adiante. Pedalavam velozmente em terreno absolutamente plano, parecendo encontrar dificuldade em afastar-se com maior rapidez. Formou-se um nevoeiro brilhante, cobrindo-os parcialmente.

Ao alto, pairava um membro apontado para baixo um cilindro que expelia denso gás branco.

— Ele conseguiu pegá-los! — exclamou Dover.

Ria parou, montada na bicicleta. Jack olhou para ela por cima do ombro.

— Ria, Jack não — retrucou Quem.

Jack parou e virou-se para o alto, de arma em punho. Desfechou dois tiros.

O membro no ar claudicou (trek e treck, soaram os tiros) deixando cair das mãos o cilindro que expelia gás branco.

Para fugir da ponte os membros pedalavam em ambas as direções, correndo de olhos arregalados sobre as calçadas laterais.

Ria sentou-se ao lado da bicicleta. Virou a cabeça: tinha o rosto úmido e brilhante. Parecia aflita. Túnicas com cruzes vermelhas toldaram a visão que tinham dela.

Jack olhava fixamente, de arma em punho. Sua boca abriu-se ao máximo, redonda, fechou-se e tomou a se abrir no meio do brilhante nevoeiro. (Ria!"— ouviu Quem, baixo e distante.) Jack ergueu o revólver (Ria!) e disparou três vezes.

Outro membro pairando no ar (trek, trek, trek) claudicou e deixou cair o cilindro. A calçada embaixo começou a se tingir de vermelho.

Quem tirou os binóculos.

— A máscara contra gases! — sussurrou Buzz, também de binóculos.

Dover escondera o rosto entre os braços.

Quem soergueu o corpo e olhou sem os binóculos: na estreita ponte deserta um ciclista de azul claro avançava vacilante ao longe, já na metade, perseguido por um membro no ar a curta distância.

Os outros dois, mortos ou moribundos, rodopiavam lentamente no ar, à deriva. Os de cruz vermelha na túnica tinham formado agora uma fila da largura da ponte, um deles ajudando a levantar uma mulher de amarelo ao lado de uma bicicleta caída, tomando-a pelos ombros e levando-a de volta à praça.

O ciclista parou e olhou a fila de membros de cruz vermelha na túnica, depois virou-se e curvou-se sobre a parte da frente da bicicleta. O membro no ar aproximou-se rápido e fez pontaria com a arma: uma grossa pluma branca emergiu dela e envolveu o ciclista.

Quem pôs os binóculos.

Jack, com o rosto coberto pela máscara cinzenta contra gases, apoiado do lado esquerdo no meio do nevoeiro brilhante, colocava uma bomba na ponte. Depois saiu pedalando, derrapou, escorregou e caiu. Ergueu-se sobre um braço, com a bicicleta imóvel entre as pernas. A sacola, arremessada fora da cesta, estava ao lado da bomba.

— Oh Cristo e Wei — exclamou Buzz.

Quem tirou os binóculos, olhou para a ponte e depois começou a enrolar, bem firme, pelo meio, a alça de enfiar no pescoço.

— Quantos? — perguntou Dover, fitando-o.

— Três — respondeu Quem.

A explosão foi luminosa, violenta e demorada. Quem viu Ria afastando-se da ponte, conduzida pelo membro de cruz vermelha na túnica. Ela não se virou para trás.

Dover, agora ajoelhado e contemplando a cena, voltou-se para Quem.

—A sacola inteira dele — explicou Quem. — Ele estava bem ao lado.

Guardou os binóculos na sacola e puxou o fecho.

— Temos de dar o fora daqui. Guarde os seus, Buzz. Venham.

Pretendia não olhar mais para baixo, mas antes de abandonar o declive não resistiu e olhou.

O meio da ponte estava negro e entulhado de pedras. As partes laterais tinham desmoronado. Uma roda de bicicleta jazia no chão fora da área enegrecida, além de outras coisas menores, rumo às quais os membros de cruz vermelha na túnica adiantavam-se lentamente. Farrapos azuis claros espalhavam-se sobre a ponte e flutuavam nas águas do rio.


Reuniram-se de novo a Karl e contaram-lhe o que tinha acontecido. Os quatro montaram nas bicicletas e pedalaram alguns quilômetros em direção ao sul, entrando no parque. Descobriram um riacho, saciaram a sede e se lavaram.

— E agora, vamos voltar? — perguntou Dover.

— Não — disse Quem, — todos não.

Olharam para ele.

— Eu disse que voltaríamos — explicou, — porque se alguém fosse capturado, eu queria que ele acreditasse e confessasse isso quando o interrogassem. Como provavelmente Ria está fazendo neste momento.

Pegou o cigarro que passava de mão em mão, malgrado o risco do cheiro do fumo chegar até longe, deu uma tragada e entregou-o a Buzz.

— Um de nós vai voltar — continuou. — Pelo menos espero que seja apenas um... pra soltar uma bomba ou duas daqui até a costa, tomar a lancha e dar a impressão de que nos mantivemos fiéis ao plano. Os outros se esconderão no parque, procurando uma maneira de se aproximar o mais possível de ’001 e localizar o túnel dentro de duas semanas no máximo.

— Boa — apoiou Dover.

— Nunca vi cabimento numa desistência tão fácil assim — concordou Buzz.

— Será que dá pra fazer tudo com três? — perguntou

Karl.

— A gente só descobre tentando — retrucou Quem. — E em seis, será que daria? Talvez pudesse ser feito por um e talvez nem por doze. Mas depois de chegar até aqui, raios me partam se não hei de descobrir.

— Conte comigo — disse Karl. — Perguntei por perguntar.

— Comigo também — disse Buzz.

— E comigo idem — disse Dover.

— Ótimo — exclamou Quem. — Três têm melhores possibilidades do que um, quanto a isso eu tenho certeza. Karl, quem vai voltar é você.

Karl olhou para ele.

— Por que logo eu? — perguntou.

— Porque você tem quarenta e três anos. Desculpe, irmão, mas não me ocorre nenhum outro critério válido pra decisão.

— Quem — interveio Buzz, — creio que é melhor lhe avisar: a minha perna está doendo muito há várias horas. Pra mim, tanto faz voltar como continuar, mas... bem, achei que você devia saber.

Karl passou o cigarro a Quem. Estava reduzido a uns dois centímetros. Esmigalhou-o no chão.

— Está certo, Buzz, então é melhor você voltar — disse.

— Mas antes faça a barba. Convém que todos se barbeiem, pra eventualidade de se encontrar alguém.

Barbearam-se e depois Quem e Buzz traçaram um caminho para Buzz chegar ao lado mais perto da costa, a cerca de trezentos quilômetros de distância. Ele jogaria uma bomba no aeroporto em ’00015 e outra quando se encontrasse já próximo ao mar. Guardou mais duas, para qualquer imprevisto, e entregou as outras a Quem.

— Tendo sorte, você estará numa lancha amanhã de noite — disse Quem. — Tome cuidado pra que ninguém veja você sair nela. Diga a Júlia, e a Lilás também, que ficaremos escondidos por duas semanas no mínimo, talvez mais.

Buzz apertou a mão de todos, desejou-lhes felicidades, tomou a bicicleta e partiu.

— Vamos ficar aqui mesmo provisoriamente, nos revezando pra dormir um pouco — disse Quem. — Hoje à noite iremos buscar bolos e túnicas na cidade.

— Bolos — suspirou Karl.

— Serão duas semanas bem longas — comentou Dover.

— Não serão, não — retrucou Quem. — Isso foi para o caso que ele fosse capturado. Seguiremos com o plano dentro de quatro ou cinco dias.

Cristo e Wei — exclamou Karl, sorrindo. — Como você é precavido, hem?


CONTINUA

QUARTA PARTE

 

REAGINDO


1

 

Ficou ocupadíssimo, como jamais estivera em toda a sua vida: planejava, procurava pessoas e equipamento, viajava, aprendia, explicava, suplicava, inventava, decidia. Sem incluir o trabalho na fábrica, onde Júlia, apesar do tempo livre concedido, empenhava-se em se ressarcir dos seis e cinquenta semanais em consertos de maquinaria e incremento de produção. E à medida que a gravidez de Lilás progredia, multiplicavam-se os afazeres domésticos que lhe competiam. Andava mais exausto do que nunca; mais vivo, também: na véspera completamente farto de tudo e, no dia seguinte, com redobrada convicção — mais lúcido.

O plano, o projeto, aquilo, assemelhava-se a uma máquina que, para ser montada, requeria que ele localizasse ou fabricasse todos os componentes indispensáveis, interdependentes em questão de formato e dimensões.

Antes de tomar uma resolução sobre o tamanho da expedição, precisava ter uma ideia bem nítida do objetivo principal. Para isso, era fundamental obter maiores informações sobre o funcionamento de Uni e seus pontos mais vulneráveis.

Conversou com Lars Newman, o amigo de Ashi que dirigia uma escola. Lars indicou-lhe um homem em Andrait que, por sua vez, recomendou-lhe outro, em Manacor.

— Logo vi que aquelas comportas eram insuficientes pro volume de isolamento que pareciam possuir — disse o homem de Manacor. Chamava-se Newbrook e andava beirando os setenta. Antes de abandonar a Família lecionara numa academia tecnológica. Estava trocando a fralda de uma netinha e aborreceu-se porque ela não ficava quieta.

— Quer parar de se mexer? Bem, supondo que vocês consigam entrar — continuou, dirigindo-se a Quem, — é óbvio que terão que destruir a fonte de energia. O reator ou, o que é mais provável, os reatores.

— Mas eles podem ser substituídos bastante rápido, não podem? — perguntou. — Eu queria deixar Uni sem funcionar muito tempo, o suficiente pra despertar a Família e resolver o que se fará com ele.

— Diabo, pára quieta! — reclamou Newbrook. — A usina de refrigeração, então.

— A usina de refrigeração?

— Exatamente. A temperatura interna das comportas precisa conservar-se perto do zero absoluto. Aumente alguns graus e as grades deixarão... pronto, viu o que você fez?... as grades perderão a supercondutividade. A memória de Uni será destruída.

Levantou a netinha, que estava aos berros, e apoiou-a contra o ombro, batendo-lhe de leve nas costas.

— Psiu, psiu.

— Destruída em caráter permanente?

Newbrook acenou afirmativamente com a cabeça, acalmando a criança que não parava de chorar.

— Mesmo que a refrigeração seja restaurada — explicou,

— todos os dados terão que ser fornecidos novamente. Levará anos.

— E justamente o que eu quero — disse Quem.

A usina de refrigeração.

E a sobressalente, caso houvesse.

Três usinas de refrigeração para deixar fora de combate. Dois homens para cada uma, segundo os seus cálculos: um para colocar os explosivos e o outro para manter os membros à distância.

Seis homens para paralisar a refrigeração de Uni e depois guardar as entradas contra os reforços que ele decerto pediria com seu cérebro dissolvendo-se em murmúrios balbuciantes. Poderiam os seis controlar os elevadores e o túnel? (Papai Jan não havia mencionado outros poços no espaço deixado de reserva?) Mas seis representavam o mínimo, e o mínimo era o que ele queria, porque bastaria que apenas um fosse capturado no trajeto para revelar todo o plano aos médicos e Uni estaria à espera do grupo no túnel. Quanto menor o número de participantes, menor o risco.

Ele e mais cinco.

O rapaz de cabelo amarelo que pilotava a lancha-patrulha do S.I. — Vito Newcome, mas cujo apelido era Dover — ficou pintando a amurada do barco enquanto escutava, e depois, quando Quem mencionou o túnel e as verdadeiras comportas de memória, parou de trabalhar. Acocorado sobre os calcanhares, de brocha caída na mão, levantou a cabeça para Quem. Tinha os olhos espremidos e respingos brancos na barba curta e no peito.

— Tem certeza? — perguntou.

— Absoluta.

— Já era tempo que alguém atacasse de novo aquele filho da luta.

Dover Newcome fitou o polegar, manchado de branco, e limpou-o na coxa da calça.

Quem agachou-se a seu lado.

— Você não quer tomar parte? — perguntou-lhe.

Dover olhou para ele e, depois de breve hesitação, sacudiu a cabeça.

— Quero. Claro que quero.

Ashi respondeu que não, tal como Quem esperava. Convidou-o unicamente porque do contrário, a seu ver, cometeria uma falta de consideração.

— Eu simplesmente acho que não vale a pena arriscar — justificou-se Ashi. — Mas o ajudarei de todas as maneiras ao meu alcance. Júlia já me arrancou uma contribuição e eu prometi dar cem dólares. Caso você precise, posso entrar com uma quantia maior.

— Ótimo. Obrigado, Ashi. Há várias maneiras de você ajudar. Você tem acesso à Biblioteca, não tem? Veja se consegue descobrir algum mapa da região em torno de EUR’001, U ou Pré-U. Quanto maior, melhor. Mapas com detalhes topográficos.

Júlia protestou quando soube que Dover Newcome participaria do grupo.

— Nós precisamos dele aqui, pra lancha — lembrou.

— Quando tudo estiver terminado, não precisarão mais — retrucou Quem.

— Santo Deus. Como é que você se arranja com tanta falta de confiança em si mesmo?

— E fácil — disse Quem. — Tenho uma amiga que reza por mim.

Júlia olhou friamente para ele.

— Não pegue mais ninguém do S.I. — recomendou.

— Tampouco da fábrica. E muito menos alguém cuja família ainda tenha que viver às minhas custas!

— Como é que você se arranja com tão pouca fé? — retrucou Quem.

Entre ambos, ele e Dover falaram com cerca de trinta ou quarenta imigrantes sem encontrar nenhum que quisesse tomar parte no ataque. Copiaram nos arquivos do S.I. os nomes e endereços de homens e mulheres de vinte a quarenta anos que tivessem vindo para Liberdade no espaço dos dois anos precedentes: visitavam sete ou oito por semana. O filho de Lars Newman queria entrar para o grupo, mas tinha nascido em Liberdade, e Quem só queria pessoas criadas no seio da Família, acostumadas a controles e ruas, a caminhar devagar e sorrir de satisfação.

Descobriu em Pollensa uma firma capaz de fabricar bombas de dinamite de espoleta mecânica lenta ou rápida, desde que fossem encomendadas por um ilhéu autorizado. E descobriu outra, em Calvia, que fabricaria seis máscaras contra gases, mas não garantiam que fosse eficaz contra LPK, a menos que lhes fornecesse uma amostra para experiência. Lilás, que trabalhava numa clínica de imigrantes, encontrou um médico que sabia a fórmula do LPK, mas nenhum dos laboratórios da ilha podia fabricá-lo. Lítio era um dos principais elementos da composição, e estava em falta há mais de trinta anos.

Começou a pôr um anúncio semanal de duas linhas no Imigrante, propondo a compra de túnicas, sandálias e sacolas de viagem. Um dia recebeu resposta de uma mulher de Andrait e algumas noites depois foi até lá para examinar duas sacolas e um par de sandálias. As sacolas, além de antiquadas, estavam gastas, mas as sandálias eram boas. A mulher e o marido perguntaram o que pretendia fazer com aquilo. Chamavam-se Newbridge e tinham trinta e poucos anos, morando num porão minúsculo e infecto, cheio de ratos. Quem explicou e os dois quiseram logo entrar para o grupo — chegando mesmo a insistir. Possuíam aspeto perfeitamente normal, o que representava um ponto a seu favor, mas com qualquer coisa de febril, uma tensão permanente, que causou certa impressão desfavorável em Quem.

Procurou-os novamente na semana seguinte, junto com Dover, e desta vez lhe pareceram mais calmos e possivelmente aproveitáveis. Chamavam-se Jack e Ria. Haviam tido dois filhos, falecidos nos primeiros meses de vida. Jack era limpador de esgotos e Ria trabalhava numa fábrica de brinquedos. Disseram gozar de boa saúde e, a julgar pelas aparências, não estavam mentindo.

Quem resolveu aceitá-los — provisoriamente, ao menos — e contou-lhes detalhes do plano em andamento.

— Devíamos explodir aquela porra toda, e não apenas as usinas de refrigeração — opinou Jack.

— Uma coisa precisa ficar bem clara — retrucou Quem. — O chefe da expedição sou eu. Se você não estiver preparado pra cumprir fielmente as minhas ordens, sem discussão, é melhor desistir desde já.

— Não, você tem toda a razão — concordou Jack. — Uma operação dessas só pode ter um chefe. Do contrário a coisa não funciona.

— Mas a gente pode dar sugestões, não pode? — perguntou Ria.

— Quanto mais, melhor — respondeu Quem. — Só que as decisões serão minhas, e vocês devem estar prontos a executá-las.

— Eu estou — afirmou Jack.

— E eu também — disse Ria.

Localizar a entrada do túnel resultou mais difícil do que Quem previra. Conseguiu três mapas em grande escala de Eur central e um, extremamente detalhado e topográfico da “Suíça” na Pré-U, no qual copiou a sede de Uni com o maior cuidado, mas todas as pessoas consultadas — ex-engenheiros e geólogos, construtores de minas locais — afirmaram necessitar de outros dados antes que o curso do túnel pudesse ser projetado com alguma esperança de exatidão. Ashi passou a interessar-se mais pelo problema, gastando às vezes horas inteiras na Biblioteca a copiar referências a “Genebra” e às “Montanhas do Jura” de velhas enciclopédias e obras sobre geologia.

Em duas noites de luar consecutivas, Quem e Dover saíram na lancha do S.I., indo até a ponta ocidental de EUR91766 para esperar a passagem dos batelões de cobre. Obedeciam, segundo constataram, a intervalos exatos de quatro horas e vinte e cinco minutos. Cada silhueta baixa e plana avançava com firmeza rumo a noroeste, desenvolvendo trinta quilômetros por hora, deixando um rastro de ondas que deixava a lancha oscilando durante vários minutos. Três horas depois, voltavam da direção oposta, mais altos à tona d’água, vazios.

Dover calculou que os batelões que se dirigiam a Eur, caso sempre mantivessem velocidade e rumo idênticos, alcançariam EUR91772 em pouco mais de seis horas.

Na segunda noite a lancha encostou num batelão e Dover diminuiu a marcha para equiparar as duas velocidades enquanto Quem subia a bordo. Ele andou de batelão durante algum tempo, comodamente sentado sobre a compacta carga achatada de lingotes de cobre em treliças de madeira, e depois desceu de novo para a lancha.

Lilás descobriu outro homem para o grupo, um assistente da clínica chamado Lars Newstone, cujo apelido era Buzz. Tinha trinta e seis anos, a mesma idade de Quem, e era mais alto que o normal: um homem tranquilo e aparentemente capaz. Fazia nove anos que vivia na ilha, três dos quais trabalhando na clínica, período em que assimilara certo cabedal de conhecimentos médicos. Estava casado, porém separado da mulher. Queria juntar-se ao grupo, disse, porque sempre achara que “alguém precisava fazer alguma coisa, ou pelo menos tentar”.

— É um erro — disse — deixar que Uni fique dono do mundo sem sequer tentar reavê-lo.

— Ele é ótimo, justamente o homem de que precisamos — comentou Quem com Lilás depois que Buzz foi embora. — Quem me dera contar com mais dois iguais a ele em vez dos Newbridges. Obrigado.

Lilás conservou-se calada, lavando xícaras na pia. Quem aproximou-se, pegou-a pelos ombros e beijou-lhe os cabelos. Estava no sétimo mês de gravidez, enorme e constrangida.

Em fins de março Júlia ofereceu um jantar no qual Quem, que a essa altura já se achava trabalhando há quatro meses na ideia, apresentou o plano aos convidados — ilhéus abastados — que podiam contribuir, segundo ela, quinhentos dólares no mínimo por cabeça. Forneceu-lhes cópias de uma lista preparada de antemão, contendo o custo total do empreendimento, e mostrou o seu mapa da “Suíça”, com o túnel desenhado na posição aproximada.

Não se mostraram tão receptivos quanto imaginara.

— Três mil e seiscentos pra explosivos? — admirou-se um.

— Exatamente, seu moço — disse Quem. — Se alguém souber onde se consegue por menos preço, gostaria muito que me informasse...

— Que negócio é este, “reforço de sacolas”?

— E pras sacolas que teremos de carregar. Elas não foram feitas pra cargas pesadas. Nós vamos ter que desmanchá-las e fazer tudo de novo com estrutura metálica.

— Mas vocês têm licença pra comprar armas e bombas?

— Quem vai comprar sou eu — explicou Júlia, — e ficarão em minha propriedade até a data da partida da expedição. Eu tenho autorização.

— Quando tencionam ir?

— Por enquanto ainda não sei — respondeu Quem. — As máscaras contra gases só estarão prontas três meses depois do dia da encomenda. E ainda precisamos achar mais um homem e passar por uma fase de treinamento. Espero que se vá em julho ou agosto.

— Tem certeza de que é aqui mesmo que se localiza o túnel?

— Não, nós continuamos fazendo pesquisas. Isso é apenas uma aproximação.

Cinco convidados se escusaram e sete preencheram cheques que atingiram apenas a dois mil e seiscentos dólares — menos da quarta parte dos onze mil necessários.

— Safados cachorros — disse Júlia.

— Em todo caso, já é alguma coisa — retrucou Quem. — Podemos começar as encomendas. E contratar o Capitão Gold.

— Dentro de poucas semanas oferecerei outro jantar — declarou Júlia. — Que é que você tinha que estava tão nervoso? É preciso falar com mais convicção!

O bebê nasceu. Era menino e recebeu o nome de Jan. Tinha os dois olhos castanhos.

Nas noites de domingo e quarta-feira, num sótão desocupado da fábrica de Júlia, Quem, Dover, Buzz, Jack e Ria praticavam diversas modalidades de luta. O professor, oficial do exército, era o Capitão Gold, sujeito baixinho e sorridente que evidentemente antipatizava com o grupo e parecia ter prazer em fazê-los surrarem-se e derrubarem-se mutuamente sobre as ralas esteiras estendidas no chão.

— Dá nele! Dá nele! Dá nele! — mandava, pulando por todos os cantos, na frente deles, de camiseta e calças de campanha. — Dá nele! Assim, oh! Isto é que é dar, e não isto! Assim parece até que está abanando pra alguém! Santo Deus, vocês não têm mesmo jeito, seus ferrinhos! Anda, Olho-Verde, dá nele!

Quem fechou o punho contra Jack e quando viu estava no ar, caindo de costas em cima de esteira.

— Boa! — gritou o Capitão Gold. — Agora, sim, parece coisa de gente! Levanta, Olho Verde, ninguém matou você! Eu não falei que era pra ficar agachado?

Jack e Ria aprendiam logo. Buzz era mais lento.

Júlia ofereceu novo jantar. Quem falou com maior convicção e arrecadaram três mil e cem dólares.

O bebê adoeceu — teve febre e infecção intestinal — mas logo melhorou, adquirindo aspeto robusto e alegre, sugando faminto os seios de Lilás. A mãe mostrava-se mais carinhosa do que nunca, encantada com o filho e interessada em ouvir Quem discorrer sobre a arrecadação de fundos e a efetivação progressiva do plano.

Quem achou o sexto homem: um operário de granja, perto de Santany, chegado de Afri pouco antes dele e de Lilás. Tinha quarenta e três anos, bastante mais velho que o tipo que Quem procurava, mas era forte e ágil, e certo de que Uni podia ser derrotado. Trabalhara em cromatomicrografia no seio da Família e chamava-se Morgan Newmark, embora continuasse atendendo peto nome anterior: Karl.

— Creio que agora até eu seria capaz de descobrir o maldito túnel — disse Ashi, entregando a Quem vinte páginas de anotações copiadas de livros na Biblioteca.

Quem mostrou-as, junto com os mapas, a cada uma das pessoas consultadas anteriormente. Três se prontificaram a traçar uma planta do curso mais provável do túnel. E, como era de prever, apresentaram três lugares diferentes para a entrada da galeria. Duas distavam um quilômetro entre si, e a terceira ficava seis quilômetros mais longe.

— A falta de melhor, isto já basta — comentou Quem com Dover.

A firma que estava fabricando as máscaras contra gases faliu — sem devolver os oitocentos dólares de sinal, pagos por Quem — e tiveram de procurar outra.

Quem voltou a falar com Newbrook, o ex-professor da academia tecnológica, sobre o tipo de usinas de refrigeração que Uni provavelmente possuía. Júlia ofereceu outro jantar e Ashi deu uma festa. Arrecadaram mais três mil dólares. Buzz brigou com um bando de ilhéus e, apesar de assombrá-los com seus conhecimentos pugilísticos, quebrou duas costelas e fraturou a tíbia. Todos começaram a procurar um substituto para ele, caso não pudesse participar da expedição.

Uma noite Lilás acordou Quem.

— Que foi que houve? — perguntou ele.

— Quem?

— Sim, o que é?

Ouviu a respiração de Jan, dormindo no berço.

— Se você tiver razão, e esta ilha for uma prisão onde Uni nos largou...

— Sim?

— E já partiram ataques daqui antes...

— Que é que tem?

Ela permaneceu em silêncio — podia vê-la, deitada de costas com os olhos abertos — e por fim disse:

— Uni não poria outras pessoas aqui, membros “sadios”, pra preveni-lo contra novos ataques?

Ele olhou para ela e não respondeu.

— Quem sabe até... pra participar das expedições? — insistiu. — E providenciar “ajuda” pra todo mundo em Eur?

— Não — protestou, sacudindo a cabeça. — É... não. Eles teriam de fazer tratamento, não teriam? Pra continuar “sadios”.

— De fato — concordou.

— Você pensa que existe algum centro médico escondido na ilha? — perguntou, sorrindo.

— Então? Tenho certeza de que não há nenhum... espion aqui. Antes de recorrer a tais extremos, Uni simplesmente mataria os incuráveis da maneira que você e Ashi sugeriram.

— Como é que você sabe?

— Lilás, não há espions — afirmou. — Você está apenas querendo preocupar-se a toa. Agora durma, ande. Não demora Jan se acorda. Durma de uma vez.

Beijou-a e ela se virou para o outro lado. Passando certo tempo, parecia adormecida.

Ele se manteve acordado.

Não podia ser. Precisariam de tratamentos...

A quantas pessoas tinha revelado o plano, falando sobre o túnel, as verdadeiras comportas de memória? Nem dava para contar. Centenas! E cada uma, na certa, passara adiante...

Chegara até a pôr anúncio no Imigrante: Compram-se sacolas, túnicas, sandálias...

Alguém que fazia parte do grupo? Não. Dover?... impossível. Buzz?... não, nunca. Jack ou Ria?... não. Karl? Realmente ainda não conhecia Karl bem a fundo — era simpático, conversador, bebia além da conta, mas não a ponto de causar preocupações — não, Karl não podia ser senão o que aparentava, trabalhando numa granja nos cafundós do Judas...

Júlia? Estava ficando maluco. Cristo e Wei! Deus do céu!

Lilás andava apenas se inquietando à toa, mais nada.

Não podia haver nenhum espion, nenhuma pessoa por ali que apoiasse Uni às escondidas, porque nesse caso precisaria de tratamentos para continuar naquela condição.

Levaria o plano a cabo, a despeito de tudo.

Adormeceu.

As bombas chegaram: feixes de leves cilindros marrons, amarrados em torno de um preto, no meio. Foram guardados num galpão atrás da fábrica. Cada um tinha uma alça metálica, azul ou amarela, colada a um lado. As azuis era espoletas de trinta segundos, as amarelas, de quatro minutos.

Experimentaram uma numa pedreira de mármore, à noite. Calçaram-na numa fenda e puxaram a alça azul da espoleta, com cinquenta metros de arame, por trás de uma pilha de blocos cortados. A explosão foi tremenda e no lugar da fenda abriu-se um buraco do tamanho de uma porta, de onde caíam pedras, em nuvens de pó.

Todos — com exceção de Buzz — excursionaram a pé pelas montanhas, levando as sacolas cheias de pedras. O Capitão Gold ensinou-lhes a carregar um revólver e focar um raio laser, a sacar, fazer mira e atirar — em pranchas escoradas à parede dos fundos da fábrica.

— Você não ia oferecer outro jantar? — perguntou Quem a Júlia.

— Sim, daqui a uma ou duas semanas — respondeu.

Mas não ofereceu. Nunca mais falou em dinheiro, e ele tampouco.

Passou algum tempo em companhia de Karl e certificou-se de que não era um espion.

A perna de Buzz sarou quase por completo: insistiu que estaria em condições de ir junto.

As máscaras contra gases chegaram, assim como o resto das armas, ferramentas, sapatos, navalhas, revestimentos plásticos, sacolas reformadas, relógios, rolos de arame grosso, balsa pneumática, pá, bússolas e binóculos.

— Experimente me dar um soco — sugeriu o Capitão Gold.

Quem deu e partiu-lhe o lábio.

Demorou até novembro, quase um ano, para aprontar tudo, e então Quem resolveu adiar a partida para o Natal, aproveitando o feriado para chegar a ’001: as estradas de bicicletas e as ruas, carroportos e aeroportos estariam no auge do movimento, os membros andariam com um passo um pouco mais rápido que o normal e mesmo um “sadio” poderia distrair-se esquecendo de tocar na placa de um controle.

No domingo anterior à data marcada, levaram ao sótão tudo o que havia no galpão, enchendo as sacolas — inclusive as que ficariam por dentro — que esvaziariam ao atracar em terra firme. Júlia estava presente, bem como John, o filho de Newman, que devia trazer de volta a lancha do S.I., e Nella, a namorada de Dover — moça de vinte e dois anos, com o cabelo amarelo como o dele, entusiasmadíssima com os preparativos. Ashi compareceu, e o Capitão Gold também.

— Vocês todos são uns doidos varridos — disse o Capitão.

— Cai fora, safado — respondeu Buzz.

Quando terminaram, com as sacolas completamente enroladas em invólucros plásticos e amarradas, Quem pediu aos que não tomariam parte na expedição para que se retirassem. Depois reuniu o grupo num círculo em cima das esteiras.

— Pensei muito sobre o que se deve fazer se um de nós for capturado — disse, — e optei pela seguinte solução: caso alguém seja preso, mesmo que seja apenas um elemento do grupo, todos os restantes regressarão imediatamente à ilha.

Olharam para ele.

— Depois de tanto esforço? — estranhou Buzz.

— Sim. Se um de nós for submetido a tratamento, revelará ao médico que pretendemos entrar pelo túnel, e aí então não teremos mais nenhuma chance de êxito. Portando o melhor é voltar, rápida e discretamente, procurando uma lancha na praia. Pra dizer a verdade, quero ver se localizo uma assim que atracarmos, antes de iniciar o trajeto.

— Cristo e Wei! — exclamou Jack. — Evidentemente, se

três ou quatro fossem capturados, mas um?

— Minha decisão é essa — afirmou Quem. — É a mais acertada.

— E se você for preso? — perguntou Ria.

— Então a chefia passará a Buzz — respondeu Quem, — e quem resolve é ele. Mas por enquanto fica decidido o seguinte: se alguém for capturado, todo mundo recua.

— Portanto que ninguém se deixe pegar — disse Karl.

— Justo — retrucou Quem, levantando-se. — É só — declarou. — Tratem de dormir bastante. Até quarta às sete.

— Dia de Wood — corrigiu Dover.

— Dia de Wood, dia de Wood, dia de Wood — disse Quem. — Até o dia de Wood, às sete.


Beijou Lilás como se fosse sair para tratar de um assunto qualquer e tomasse voltar dentro de poucas horas.

— Tchau, amor — disse.

Ela abraçou-se nele, encostando-lhe o rosto e não disse nada.

Beijou-a de novo, desvencilhou-se de seus braços e aproximando-se do berço. Jan estava entretido em alcançar um pacote vazio de cigarros, pendurado num cordão. Quem beijou-lhe a face e deu-lhe adeus.

Lilás chegou perto e ele a beijou. Abraçaram-se e beijaram- se, e depois ele saiu, sem virar-se para trás.

Ashi esperava lá em baixo, de monociclo. Levou Quem ao cais, em Pollensa.

Todos se achavam no escritório do S.I. às sete menos um quarto e enquanto um cortava o cabelo do outro, o caminhão chegou. John Newman, Ashi e um homem da fábrica levaram as sacolas e a balsa até a lancha, e Júlia distribuiu sanduíches e café. Os homens cortaram a barba e escanhoaram bem o rosto.

Colocaram as pulseiras e os aros fechados que pareciam semelhantes aos normais. A de Quem dizia Jesus AY 31G6912.

Despediu-se de Ashi e beijou Júlia.

— Faça a sua sacola e prepare-se pra conhecer o mundo — disse ele.

— Tome cuidado — recomendou ela. — E procure rezar.

Entrou na lancha sentou-se sobre o tombadilho na frente das sacolas, em companhia de John Newman e dos outros — Buzz e Karl, Jack e Ria: todos tinham um aspecto estranho de membros da Família com aquele cabelo cortado e aquelas caras iguais, imberbes.

Dover ligou o motor e pôs-se ao largo do porto, virando depois em direção à suave claridade alaranjada que se erguia do lado de ‘91766.


2

 

A pálida luz que precede o raiar do dia, abandonaram furtivamente o batelão e empurraram por diante a balsa carregada de sacolas. Três empurravam e três nadavam rentes, observando o recorte escuro dos altos penhascos. Avançaram aos poucos, mantendo-se a uma distância de cerca de cinquenta metros da costa. De dez em dez minutos mais ou menos, trocavam de lugar: os que tinham estado nadando, empurravam e os que tinham estado empurrando, nadavam.

Quando já se encontravam à altura de *91772, desviaram a balsa em direção à praia. Guardaram-na numa pequena enseada de areia rodeada por imponentes escarpas rochosas, descarregaram as sacolas e as desembrulharam. Abriram as internas e vestiram túnicas. Puseram armas, relógios, bússolas e mapas nos bolsos. Depois .cavaram um buraco e esconderam dentro as duas sacolas vazias, todos os invólucros plásticos, a balsa sem ar, as roupas que usavam em Liberdade e a pá utilizada para escavar. Encheram o buraco de terra, eliminaram os vestígios e, de sacolas a tiracolo e sandálias na mão, começaram a caminhar em fila única pela estreita faixa de areia. O céu clareou e suas sombras se projetaram sobre a base rochosa dos penhascos, deslizando para frente e para trás. Karl, quase no fim da fila, pôs-se a assobiar Uma Forte Família. O resto do grupo sorriu e Quem, que vinha à dianteira, também aderiu ao assobio. Alguns dos outros fizeram o mesmo.

Não tardou muito, acharam uma lancha — uma velha lancha azul, emborcada de lado, à espera de incuráveis que se considerariam felizes. Quem virou-se e andando de costas disse:

— Cá está ela, se a gente precisar.

— Não vai ser preciso — retrucou Dover.

Depois de Quem virar-se de novo para a frente, quando já tinham passado adiante, Jack pegou uma pedra, jogou na lancha, mas errou.

Durante o percurso mudaram as sacolas de ombro. Em menos de uma hora chegaram a um controle que fazia face ao lado oposto.

— Nada como estar em casa — ironizou Dover.

Ria soltou um suspiro.

— Oi, Uni — disse Buzz, — como vai?

E bateu de teve na parte de cima do controle ao passar por ele.

Já caminhava sem mancar. Quem voltava-se de vez em quando para verificar.

A faixa de areia começou a alargar-se e chegaram a uma cesta de lixo, seguida por outras. Depois surgiram plataformas de salva-vidas, alto-falantes e um relógio — 6h54m — Quinta 25 Dez 171 A.U. — e uma escada que subia em ziguezague pelo penhasco com enfeites vermelhos e verdes enroscados em diversos pilares da grade.

Largaram as sacolas e as sandálias, tiraram as túnicas e estenderam tudo no chão. Deitaram-se em cima e descansaram ao crescente calor do sol. Quem lembrou coisas que achava que deviam dizer quando falassem com a Família posteriormente. Discutiram o assunto, conjeturando sobre até que ponto a interrupção de Uni afetaria as transmissões de televisão e quanto tempo levaria para serem normalizadas.

Karl e Dover pegaram no sono.

Quem ficou estendido de olhos fechados, pensando em certos problemas que a Família teria que enfrentar quando despertasse, e nas várias maneiras de solucioná-los.

“Cristo, que nos ensinou” — começaram os alto-falantes às oito horas. Dois salva-vidas de gorro vermelho e óculos escuros vieram descendo os degraus em ziguezague. Um deles chegou à plataforma perto do grupo.

— Feliz Natal — disse.

— Feliz Natal — responderam em coro.

— Querendo, já podem entrar n’água — avisou, subindo à plataforma.

Quem, Jack e Dover levantaram-se e dirigiram-se ao mar. Nadaram um pouco, observando os membros que desciam a escada, e depois saíram, tornando a deitar-se na areia.

Quando havia trinta e cinco ou quarenta membros na praia, às 8h22m, os seis se levantaram e começaram a vestir as túnicas e pôr as sacolas no ombro.

Quem e Dover foram os primeiros a subir a escada. Sorriam e davam “Feliz Natal” aos membros que vinham descendo e fingiram facilmente que tocavam no controle ao alto. Os únicos membros nas proximidades estavam na cantina, de costas para eles.

Esperaram junto de um chafariz até que Jack e Ria subissem e depois Buzz e Karl.

Dirigiram-se ao posto de bicicletas, onde havia vinte ou vinte e cinco enfileiradas nos lugares mais à mão. Tiraram as seis últimas, colocaram as sacolas nas cestas, montaram e pedalaram até o início da estrada destinada exclusivamente a ciclistas. Ali esperaram, sorrindo e conversando, que cessasse o trânsito de bicicletas e carros. Depois cruzaram em grupo pelo controle, encostando as pulseiras na parte lateral, para a eventualidade de estarem sendo observados a distância por alguém.

Rumaram a EUR91770 individualmente e aos pares, deixando bastante espaço de intervalo entre si na estrada. Quem ia à frente, com Dover logo atrás. Olhou os ciclistas que se aproximavam e os carros esporádicos que passavam chispando. Havemos de conseguir, pensou. Nós havemos de conseguir.


Entraram separados no aeroporto, reunindo-se perto do quadro de horários de vôo. Os membros aglomeravam-se ao redor deles. A sala de espera, toda enfeitada de vermelho e verde, estava apinhada de gente e o burburinho era tão grande que mal se escutava a música de Natal. Do outro lado das vidraças, aviões imensos giravam e avançavam pesadamente, tomando passageiros em três escadas rolantes ao mesmo tempo, desembarcando filas de membros, num contínuo vaivém entre as pistas.

Eram 9h35m. O próximo vôo para EUR0001 partiria às 11h48m.

— Não me agrada essa ideia de permanecer muito tempo aqui — disse Quem. — Ou o batelão usou energia extra ou então chegou atrasado, e se a diferença ficou manifesta, é bem capaz que Uni perceba o motivo.

— Então vamos tomar logo o primeiro avião — sugeriu Ria, — pra chegar o mais perto possível de ’001 e depois completar o percurso de bicicleta.

— Se a gente espera mais um pouco, chega mais rápido — discordou Karl. — Isto aqui até que não é tão ruim como esconderijo.

— Não — retrucou Quem, consultando o quadro de vôo, — vamos no... das 10h6m pra ’00020. Não tem outro mais cedo e dista apenas cinquenta quilômetros de ’001. Venha, o portão é aquele lá.

Abriram caminho no meio da multidão até a porta giratória no canto da sala e agruparam-se em torno do controle. A porta se abriu, dando passagem a um membro de túnica cor de laranja. Pedindo desculpas, estendeu o braço entre Quem e Dover para tocar no controle — sim, piscou a luz — e seguiu adiante.

Quem tirou disfarçadamente o relógio do bolso e comparou- o com o da parede.

— É a pista seis — disse. — Se houver mais de uma escada rolante, entrem na fila da parte de trás do avião. E façam questão de ficar quase por último, deixando no mínimo seis membros à retaguarda. Vem, Dover.

Pegou-o pelo braço e os dois atravessaram a porta, entrando na área de depósito.

— Vocês não deviam estar aqui — avisou um membro de túnica cor de laranja que estava parado ali.

— Uni autorizou — respondeu Quem. — Trabalhamos nos planos de aeroporto.

— Três-trinta-e-sete-A — explicou Dover.

— Este pavilhão vai ser ampliado no ano que vem — disse Quem.

— Agora entendo o que você queria dizer a respeito do teto — comentou Dover, olhando para cima.

— Sim — confirmou Quem. — Ele podia facilmente ganhar mais um metro de altura.

— Metro e meio — corrigiu Dover.

— A não ser que oi condutos compliquem tudo — disse Quem.

O membro afastou-se e saiu pela porta.

— É, os condutos — observou Dover. — Problema sério.

— Deixe eu lhe mostrar aonde eles vão — continuou Quem. — É muito interessante.

— Se é.

Entraram na área em que os membros de túnica cor de laranja aprontavam os bolos e recipientes de bebida, trabalhando mais depressa do que era costume entre os membros.

— Três-trinta-e-sete A? — perguntou Quem.

— Por que não? — retrucou Dover, apontando para o teto enquanto se separavam para dar passagem a um membro empurrando carrinho. — Está vendo a direção que os condutos tomam?

— Teremos que modificar a instalação toda. Aqui também.

Fingiram tocar no controle e passaram à sala onde havia túnicas penduradas em ganchos. Não encontraram ninguém. Quem fechou a porta e mostrou o armário onde eram guardadas as de cor de laranja.

Vestiram-nas por cima das amarelas e colocaram biqueiras nas sandálias. Rasgaram o fundo dos bolsos das de cor de laranja para poderem enfiar a mão nos das que ficaram por baixo.

Surgiu um membro de branco.

— Olá — saudou. — Feliz Natal.

— Feliz Natal — responderam.

— Mandaram-me lá de ’765 pra ajudar aqui — explicou.

Tinha uns trinta anos.

— Ótimo, estávamos mesmo precisando — disse Quem.

O membro, abrindo a túnica, olhou para Dover, que fechava a sua.

— Por que você deixou a outra por baixo? — estranhou.

— Assim esquenta mais — respondeu Quem, aproximando-se.

Virou-se para Quem, intrigado.

— Esquenta mais? Pra que você quer esquentar-se mais?

— Desculpe, irmão — disse Quem, dando-lhe um soco no estômago.

Ele se curvou para a frente, com um gemido, e Quem desfechou-lhe outro no queixo. O membro endireitou o corpo e caiu para trás. Dover pegou-o por baixo dos braços e estendeu-o no chão. Ficou de olhos fechados, como se estivesse dormindo.

Quem, examinando-o, exclamou:

— Cristo e Wei, o negócio dá certo.

Os dois rasgaram uma série de túnicas e amarraram os pulsos e os tornozelos do membro, atando uma manga entre os seus dentes. Depois ergueram-no e colocaram-no dentro do armário onde era guardada a cera de soalho.

De 9h51m7 o relógio passou a 9h52m.

Embrulharam as sacolas em túnicas cor de laranja, saíram da sala e passaram pelos membros que lidavam com os recipientes de bolo e bebida. Na área de depósito descobriram uma caixa de papelão com toalhas pelo meio e puseram dentro as sacolas embrulhadas. Carregando-a entre ambos, cruzaram o portão e acharam-se no campo.

Havia um avião em frente à pista seis, enorme, desembarcando membros por duas escadas rolantes. Outros membros, de laranja, aguardavam ao pé de cada uma das duas com um carrinho de recipientes.

Afastaram-se do avião, rumo à esquerda. Atravessaram o campo em sentido diagonal, sempre carregando a caixa de papelão, desviaram-se de um caminhão de manutenção que andava devagar e aproximaram-se dos hangares que ficavam num pavilhão de telhado plano e estendia-se até as pistas de decolagem.

Entraram num deles. Continha um avião menor, com membros de laranja por baixo, retirando do bojo uma caixa preta quadrada. Quem e Dover continuaram até os fundos do hangar, onde havia uma porta na parede lateral. Dover abriu-a, espiou lá dentro e fez sinal com a cabeça para Quem.

Os dois entraram e fecharam a porta. Era um almoxarifado: prateleiras de ferramentas, filas de engradados de madeira, tonéis pretos de metal com marca Óleo Lub SG.

— Até parece de encomenda — comentou Quem, enquanto largavam a caixa no chão.

Dover escondeu-se atrás da porta. Tirou o revólver e segurou-o pelo cano.

Agachando-se, Quem desembrulhou uma sacola, abriu-a e retirou uma bomba com alça amarela de quatro minutos.

Separou dois tonéis de óleo e colocou a bomba no chão no meio, com a alça presa pelo esparadrapo virada para cima. Puxou o relógio do bolso e olhou a hora.

— Quanto tempo? — perguntou Dover.

— Três minutos.

Voltou à caixa de papelão. Sempre de relógio em punho, correu o fecho da sacola, tomou a embrulhá-la e fechou as tampas da caixa.

— Tem alguma coisa que se aproveite? — perguntou Dover, acenando com a cabeça para as prateleiras de ferramentas.

Quem aproximou-se de uma delas. A porta do almoxarifado se abriu e entrou um membro de túnica laranja — uma mulher.

— Olá — saudou Quem, apanhando uma ferramenta e guardando o relógio no bolso.

— Olá — disse ela, dirigindo-se ao lado oposto da prateleira.

Olhou de relance para Quem.

— Quem é você? — indagou.

— Li RP — respondeu. — Mandaram-me lá de 765 pra ajudar aqui.

Apanhou outra ferramenta na prateleira: um par de compassos.

— Não está tão ruim como no Natal de Wei — observou ela.

Surgiu outro membro à porta.

— Já encontramos, Paz — avisou. — Estava com Li.

— Eu perguntei a ele e ele respondeu que não estava — disse ela.

— Pois estava — disse o outro membro, desaparecendo.

Ela saiu atrás dele.

— Ele foi o primeiro a quem eu perguntei.

Quem ficou parado, olhando a porta que se fechava lentamente. Dover, escondido no canto, olhou para ele e empurrou-a até o fim, de mansinho. Quem olhou para Dover e depois para a mão que segurava as ferramentas: estava trêmula. Largou as ferramentas, respirou fundo e mostrou a mão a Dover, que sorriu e observou:

— Muito pouco próprio de membro.

Quem tomou fôlego e tirou o relógio do bolso.

— Menos de um minuto — avisou, indo até os tonéis e agachando-se.

Puxou o esparadrapo da alça da bomba.

Dover guardou o revólver no bolso — o da túnica por baixo — e ficou imóvel com a mão na maçaneta.

Quem, controlando o relógio e segurando a alça da espoleta disse:

— Dez segundos.

Esperou, esperou, esperou — e finalmente puxou a alça para cima e pôs-se em pé enquanto Dover abria a porta. Levantaram a caixa de papelão, tirando-a do almoxarifado e fechado imediatamente a porta.

Percorreram o hangar com a caixa — “Calma, devagar”, dizia Quem — e atravessaram o campo em direção ao avião em frente à pista seis. Membros faziam fila nas escadas rolantes e subiam.

— O que é isso? — perguntou um membro de túnica laranja com uma prancheta na mão, caminhando ao lado de ambos.

— Mandaram-nos trazer pra cá — explicou Quem.

— Karl? — chamou outro membro do lado oposto do que trazia a prancheta.

Ele parou e se virou.

— Que é?

Quem e Dover continuaram andando.

Trouxeram a caixa de papelão até a escada rolante da parte de trás do avião e largaram no chão. Quem colocou-se diante do controle, olhando o regulador da escada. Dover esgueirou-se pela fila e postou-se atrás do controle. Os membros passavam entre os dois, encostavam as pulseiras no controle que piscava a luz verde e depois pisavam nos degraus.

Um membro de túnica laranja chegou-se a Quem e disse;

— Eu estou nesta escada.

— Karl acabou de me pedir pra vir pra cá — respondeu Quem. — Mandaram-me lá de ’765 pra ajudar aqui.

— Que foi que houve? — perguntou o membro da prancheta, aproximando-se. — Por que vocês estão em três aqui?

— Eu pensei que estava nesta escada — disse o outro membro.

O ar estremeceu e uma forte explosão partiu dos hangares.

Uma coluna preta, ampla e cada vez maior, pairou sobre o pavilhão, misturada a rolos de fogo. Desabou uma chuva negra e amarelada sobre o telhado e o campo, e membros de túnica laranja saíram correndo dos hangares, disparando e depois diminuindo o passo para se virar e olhar a coluna de labaredas no telhado.

O membro da prancheta arregalou os olhos e precipitou- se naquela direção. O outro correu atrás.

Os membros da fila ficaram imóveis, olhando para o lado dos hangares. Quem e Dover pegaram alguns pelo braço e empurraram por diante.

— Não parem — diziam. — Continuem subindo, por favor. Não há perigo. O avião está esperando. Toquem no controle e pisem no degrau. Continuem subindo, por favor.

Encaminharam os membros a passar pelo controle e subir a escada. Um deles era Jack.

— Que beleza — comentou, olhando por cima do ombro de Quem ao fingir que tocava no controle.

Depois foi a vez de Ria, que parecia tão empolgada como na primeira vez que Quem a tinha visto. E Karl, amedrontado e lúgubre. E Buzz, todo sorridente. Dover pisou na escada logo em seguida. Quem confiou-lhe uma sacola embrulhada e virou-se para os outros membros da fila, os últimos sete ou oito, que estavam parados, contemplando os hangares.

— Continuem subindo, por favor — pediu. — O avião está esperando. Irmã!

— Não há motivo para pânico — disse uma voz de mulher pelo alto-falante. — Ocorreu um acidente nos hangares, mas já está tudo em ordem.

Quem apressou os membros a subir a escada.

— Toquem no controle e pisem no degrau — pediu. — O avião está esperando.

— Membros passageiros, queiram retomar seus lugares na fila — disse a voz. — Os membros que estiverem entrando a bordo dos aviões, continuem a fazê-lo. O serviço não sofrerá interrupção.

Quem fingiu tocar no controle e pisou no degrau atrás do último membro. Subindo a escada com a sacola embrulhada debaixo do braço, olhou de relance para os hangares: a coluna estava preta e enfumaçada mas não se via mais fogo. Virou-se de frente novamente, para as túnicas azul claro.

— Todos os funcionários, com exceção dos quarenta-e-sete e quarenta-e-nove, retomem às suas ocupações — disse a voz de mulher. — Todos os funcionários, com exceção dos quarenta-e-sete e quarenta-e-nove, retomem às suas ocupações. A situação já está normalizada.

Quem entrou no avião e a porta começou a baixar às suas costas.

— O serviço não sofrerá interrupção...

Os membros se achavam de pé, confusos, olhando os lugares tomados.

— Há passageiros extras devido ao feriado — explicou Quem. — Passem lá pra frente e peçam aos membros com filhos pra porem as crianças no colo. Não há outra solução.

Os membros avançaram pelo corredor, olhando para todos os lados do avião.

Os cinco ocupavam a última fileira, junto à dispensa. Dover retirou a sacola embrulhada do assento do corredor e Quem sentou-se.

— Nada mau — disse Dover.

— Ainda não levantamos vôo — retrucou Quem.

Havia burburinho a bordo: os recém-chegados comentavam a explosão com os primeiros que tinham embarcado, espalhando a notícia de fila em fila. O relógio marcava 10h6m, mas o avião não saía do mesmo lugar.

De 10h6m passou a 10h7m.

Os seis se entreolharam e depois viraram a cabeça para a frente, com jeito normal.

O avião se mexeu. Girou levemente para o lado e depois tomou impulso. Começou a acelerar. As luzes diminuíram e as telas de televisão se iluminaram.

Assistiram à Vida de Cristo e A Família no Trabalho, que já era bem velho. Tomaram chá e refrigerante, mas não conseguiram comer: não havia bolos a bordo, por causa da hora, e embora tivessem queijo embrulhados em papel laminado, podiam ser vistos pelos membros que saíssem da despensa. Quem e Dover suavam com as túnicas duplas. Karl cochilava a cada instante, e Ria e Buzz, que o ladeavam, cutucavam-no para mantê-lo acordado e atento.

A viagem demorou quarenta minutos.

Quando o sinal de localização indicou EUR00020, Quem e Dover levantaram-se do assento e ficaram em pé na despensa, comprimindo os botões e deixando escorrer chá e refrigerante pelo cano de esgoto. O avião pousou, deslizou e parou, e os membros começaram a fazer fila para descer. Depois que algumas dezenas passaram pela porta mais próxima, Quem e Dover tiraram os recipientes vazios da despensa, largaram no chão, levantaram as tampas, e Buzz colocou uma sacola embrulhada dentro de cada um deles. Depois Buzz, Karl, Ria e Jack se levantaram e os seis se dirigiram à saída. Quem apoiando um recipiente contra o peito, pediu:

— Querem dar licença, por favor?

Um membro de certa idade cedeu-lhe passagem. Os outros vieram logo atrás. Dover, carregando o segundo recipiente, disse ao membro idoso:

— É melhor esperar até que eu deixe a escada livre.

O membro concordou com um aceno de cabeça, um tanto atônito.

Ao pé da escada rolante Quem encostou o pulso no controle e imediatamente cobriu-o com o corpo, impedindo a visão dos membros na sala de espera, Buz, Karl, Ria e Jack passaram por ele, fingindo encostar a pulseira. Dover debruçou-se no controle e fez sinal com a cabeça para o membro que aguardava lá em cima.

Os quatro rumaram para a sala de espera e Quem e Dover atravessaram o campo até o portão, entrando na área de depósito. Largando os recipientes por terra, retiraram as sacolas e esguei- raram-se entre duas fileiras de engradados. Descobriram um espaço livre perto da parede, onde despiram as túnicas cor de laranja e descalçaram as biqueiras das sandálias.

Deixaram a área de depósito pela porta giratória, de sacolas no ombro. Os outros os esperavam ao redor do controle. Saíram aos pares do aeroporto — estava quase tão apinhado de gente quanto o de ’91770 — e reuniram-se de novo no posto de bicicletas.

Ao meio-dia achavam-se ao norte de ’00018. Comeram suas bolas de queijo entre a estrada de ciclistas e o Rio da Liberdade, num vale cercado de montanhas que se erguiam a impressionantes altitudes franjeadas de neve. Enquanto comiam, examinaram os mapas. Ao cair da noite, segundo seus cálculos, chegariam a um parque a poucos quilômetros da entrada do túnel.

Pouco depois das três horas, quando se aproximavam de ’00013. Quem notou uma ciclista adolescente que vinha na direção oposta, olhando para os rostos do grupo que seguia rumo ao norte — inclusive seu, ao se cruzarem — com uma expressão preocupada, de membro “querendo-ajudar”. Passado um instante, avistou outra ciclista olhando para eles do mesmo modo ligeiramente nervoso. Era uma mulher de idade que levava flores na cesta. Sorriu-lhe ao cruzar por ela e depois não se virou para trás. Nem a estrada, nem a rodovia paralela apresentavam sinais de anormalidade. A algumas centenas de metros mais adiante, ambas dobravam à direita e desapareciam nos fundos de uma usina elétrica.

Pedalou sobre a relva, parou e, olhando à retaguarda, acenou aos companheiros à medida que surgiam.

Empurraram as bicicletas bem para longe da estrada. Achavam-se no último trecho de vegetação antes da cidade: uma extensão de relva seguida por mesas de piquenique e um arvoredo que encobria uma pequena elevação no terreno.

— Parando de meia em meia hora jamais chegaremos — disse Ria.

Sentaram na relva.

— Acho que estão examinando as pulseiras logo adiante — disse Quem. — Telecomputadores e túnicas de cruz vermelha. Notei dois membros que vinham de lá com jeito de quem procura localizar alguém doente. Estavam com aquela cara de “será-que-posso-ajudar?”

— Que ódio — exclamou Buzz.

— Cristo e Wei, Quem — disse Jack, — se vamos começar a nos preocupar com as expressões faciais dos membros, seria preferível voltar logo pra casa.

Quem olhou para ele.

— Um exame de pulseiras não é tão implausível assim, não é? — retrucou. — A esta altura Uni já deve saber que a explosão em ’91770 não foi acidente, e é capaz de ter adivinhado exatamente o motivo. Este é o caminho mais curto de ’020 a Uni... e vamos chegar à primeira curva abrupta dentro de uns doze quilômetros.

— Está certo, então eles estão examinando as pulseiras — disse Jack. — Pra que ódio andamos armados?

— É — apoiou Ria.

— Se formos abrir caminho a bala, teremos todos os ciclistas no nosso encalço — retrucou Dover.

— Nesse caso, a gente atira uma bomba pra trás — sugeriu Jack. — Precisamos andar depressa, em vez de ficar de rabo sentado como se estivéssemos jogando xadrez. De qualquer modo esses pamonhas já são mesmo uns mortos-vivos: que diferença faz se a gente liquida meia dúzia? Nós vamos salvar todo o resto, não vamos?

— As armas e as bombas são pra quando for necessário — disse Quem, — e não pra quando se pode deixar de usá-las.

Virou-se para Dover.

— Dá uma volta, ali pelo mato — pediu-lhe, — e vê se enxerga o que está depois da curva.

— O.K. —concordou Dover.

Levantou-se, cruzou o gramado, juntou alguma coisa do chão, jogou dentro de uma cesta de lixo e penetrou no arvoredo. A túnica amarela se transformou em pontinhos esparsos desaparecendo elevação acima.

Deixaram de observá-lo. Quem tirou o mapa do bolso.

— Merda — disse Jack.

Quem não fez comentários. Examinava o mapa.

Buzz esfregou a perna e de repente afastou a mão.

Jack arrancava pedaços de relva do chão. Ria, sentada a seu lado, observava-o.

— Que é que você sugere — perguntou Jack, — se eles estiverem examinando as pulseiras?

Quem tirou os olhos de cima do mapa e, depois de uma pausa, respondeu:

— Recuaremos um pouco, atalhando pelo leste e fazendo uma volta.

Jack arrancou mais relva e depois arremessou longe.

— Vem — disse a Ria, pondo-se em pé.

Ela se levantou de um salto, os olhos brilhando.

— Aonde vocês vão? — perguntou Quem.

— Aonde tínhamos planejado — respondeu Jack, olhando-o com firmeza. — ao parque perto do túnel. Esperaremos por vocês até clarear o dia.

— Sentem-se, todos os dois — ordenou Karl.

— Vocês irão, mas junto conosco e quando eu achar que se deve ir — retrucou Quem. — Vocês concordaram com isso no começo.

— Mudei de ideia — disse Jack. — Pra mim é tão desagradável receber ordens de você quanto de Uni.

— Esses dois vão estragar tudo — disse Buzz.

— Vocês é que vão! — revidou Ria. — Parando, recuando, fazendo voltas... quando se quer fazer uma coisa a gente faz logo!

— Sentem aí e esperem até que Dover venha — ordenou Quem.

Jack sorriu.

— Vai-me obrigar? — perguntou. — Logo aqui, bem na frente da Família?

Fez sinal para Ria e os dois pegaram as bicicletas, firmando as sacolas nas cestas.

Quem se levantou e guardou o mapa no bolso.

— Não podemos dividir o grupo pelo meio deste jeito — disse. — Pare um pouco pra refletir, Jack. Como vamos saber se...

— Você é quem gosta de parar pra refletir — retrucou Jack. — Eu prefiro entrar logo no túnel.

E virou as costas, dando impulso à bicicleta. Ria empurrava a sua ao lado dele. Dirigiram-se à estrada.

Quem deu um passo atrás dos dois e estacou, de queixo tenso, os punhos cerrados. Sentiu vontade de gritar, de tirar o revólver do bolso e forçá-los a voltar — mas havia ciclistas passando, membros disseminados por perto, sobre a relva.

— Não há nada que você possa fazer, Quem — disse Karl.

— Os filhos da luta — exclamou Buzz.

À beira da estrada, Jack e Ria montaram nas bicicletas. Jack abanou para o grupo.

— Até logo! — gritou. — A gente se vê na sala da televisão!

Ria também abanou e os dois foram embora, pedalando.

Buzz e Karl abanaram para eles.

Quem arrancou bruscamente a sacola de sua bicicleta e colocou-a a tiracolo. Tirou outra e jogou-a ao colo de Buzz.

— Karl, você fique aqui — disse. — Venha comigo, Buzz.

Entrou no mato, dando-se conta de que estava caminhando depressa demais, encolerizado, comportando-se de modo anormal, mas pensou Lute-se! Subiu a elevação de terreno na direção tomada por Dover. Que fossem PRO INFERNO!

Buzz alcançou-o.

— Cristo e Wei — exclamou, — não jogue as sacolas assim!

— Que vão pro inferno! — respondeu Quem. — Percebi logo à primeira vista que aqueles dois não valiam nada! Mas fechei os olhos porque estava tão desesperado... diabos me levem! A culpa é minha. Exclusivamente minha.

— Talvez não haja exame de pulseiras e eles fiquem à nossa espera no parque — alvitrou Buzz.

Apareceram lampejos amarelos entre as árvores: Dover vinha descendo. Parou, enxergou-os e aproximou-se.

— Você tinha razão — disse. — Médicos na estrada, médicos no ar...

— Jack e Ria foram na frente — avisou Quem.

Dover arregalou os olhos.

— E você deixou?

— Por acaso podia impedir? — retrucou Quem. Pegou Dover pelo braço e virou-o de costas. — Mostre o caminho.

Dover conduziu-os rapidamente elevação acima pelo meio das árvores.

— Nunca que conseguirão passar — disse. — Tem um centro médico inteiro e barreiras pra impedir que as bicicletas dêem meia volta.

Emergiram do arvoredo, deparando com um declive de rochas. Buzz chegou por último, afobado.

— Abaixem-se, senão eles enxergam a gente — aconselhou Dover.

Deitaram-se de bruços e rastejaram declive acima. Lá do alto avistava-se a cidade, ’00013, com seus edifícios brancos recortados nítidos à luz do sol, a rede de monotrílhos entrelaçados e faiscantes, a orla das rodovias rutilante de carros. O rio descrevia uma curva e continuava rumo ao norte, azul e estreito, sulcado por vagarosas lanchas de turismo e uma longa fileira de barcas passando sob as pontes.

Ao pé do declive via-se uma meia concha de paredes de pedra, cujo pavimento formava uma praça semicircular onde se bifurcava a estrada de ciclistas: descia do norte, por trás da usina elétrica, desviando-se a certa altura para cruzar a rodovia de carros vertiginosos e penetrar na cidade por uma ponte. O outro braço cortava a praça na parte central, acompanhando a margem oriental do rio sinuoso até reencontrar a rodovia paralela. Antes de se bifurcar, uma série de barreiras dividia em três filas os ciclistas que se aproximavam, cada uma forçada a desfilar perante um grupo de membros de cruz vermelha na túnica, parados junto a ura pequeno controle de aspecto insólito. Três membros, munidos de equipamento contra a lei da gravidade, pairavam no ar, de rosto virado para baixo, sobre cada grupo. Dois carros e um helicóptero ocupavam o canto mais próximo da praça, enquanto outros membros de cruz vermelha na túnica, parados junto à fila de ciclistas que deixava a cidade, os apressavam a seguir viagem quando diminuíam a marcha para observar os que tocavam nos controles.

— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou Buzz.

Quem, de olho naquela cena, puxou o fecho da sacola.

— Eles devem estar nalgum ponto da fila — opinou.

Achou os binóculos, colocou-os em posição e acertou o foco.

— Estão, sim — confirmou Dover. — Está vendo as sacolas nas cestas?

Quem percorreu a fila e localizou Jack e Ria. Os dois pedalavam devagar, lado a lado, em pistas flanqueadas por barreiras de madeira. Jack olhava em frente e movia os lábios. Ria acenava com a cabeça. Guiavam apenas com a mão esquerda. Mantinham a direita no bolso.

Quem passou os binóculos a Dover e virou-se para a sua sacola.

— Temos que ajudá-los a passar pelo controle — disse. — Se conseguirem alcançar a ponte, talvez possam sumir na cidade.

— Eles vão começar a atirar quando chegarem aos controles — opinou Dover.

Quem entregou a Buzz uma bomba de alça azul.

— Puxe o esparadrapo e atire quando eu mandar — disse,

— Faça pontaria contra o helicóptero: dois coelhos de uma só cajadada.

— Atire antes que comecem o tiroteio — recomendou Dover.

Quem pegou de novo os binóculos e procurou Jack e Ria até encontrá-los outra vez. Esquadrinhou as filas na frente deles: havia cerca de quinze bicicletas entre os dois e os grupos nos controles.

— Eles têm balas ou raios laser? — perguntou Dover.

— Balas — respondeu Quem. — Não se preocupe, eu calculo direito o tempo.

Observou as filas de bicicletas avançando lentamente, graduando-se a velocidade.

— De um jeito ou doutro, provavelmente vão começar a disparar disse Buzz. — Só pra se divertir. Você reparou no olhar de Ria?

— Prepare-se — pediu Quem. Esperou até que Jack e Ria ficassem a cinco bicicletas de distância dos controles. — Agora — disse.

Buzz puxou a alça e atirou a bomba furtivamente de lado. Ela bateu numa pedra, saiu rolando caiu de uma saliência e foi pousar perto do lado do helicóptero.

— Volte pra cá — mandou Quem.

Espiou outra vez pelos binóculos. Jack e Ria estavam a duas bicicletas dos controles, com ar tenso mas confiante. Recuou de novo entre Buzze Dover.

— Parece até que estão indo pra uma festa — comentou.

Esperaram, de rosto colado às pedras. A bomba explodiu e o declive estremeceu. Lá embaixo saltou metal para tudo quanto foi lado. Fez-se silêncio e espalhou-se pelo ar o cheiro acre do explosivo. Depois ouviram-se vozes, primeiro em murmúrio e por fim mais alto.

— Aqueles dois! —gritou alguém.

Debruçaram-se à beira do declive..

Duas bicicletas corriam rumo à ponte. Todas as outras estavam imóveis, os ciclistas apoiando um pé no chão, de frente para o helicóptero — emborcado e fumegante — e agora voltados para as duas bicicletas que ganhavam velocidade e para os membros de cruz vermelha na túnica que corriam atrás. Os três membros no ar mudaram de direção e voaram para a ponte.

Quem levantou os binóculos — e viu as costas curvadas de Ria e Jack pouco mais adiante. Pedalavam velozmente em terreno absolutamente plano, parecendo encontrar dificuldade em afastar-se com maior rapidez. Formou-se um nevoeiro brilhante, cobrindo-os parcialmente.

Ao alto, pairava um membro apontado para baixo um cilindro que expelia denso gás branco.

— Ele conseguiu pegá-los! — exclamou Dover.

Ria parou, montada na bicicleta. Jack olhou para ela por cima do ombro.

— Ria, Jack não — retrucou Quem.

Jack parou e virou-se para o alto, de arma em punho. Desfechou dois tiros.

O membro no ar claudicou (trek e treck, soaram os tiros) deixando cair das mãos o cilindro que expelia gás branco.

Para fugir da ponte os membros pedalavam em ambas as direções, correndo de olhos arregalados sobre as calçadas laterais.

Ria sentou-se ao lado da bicicleta. Virou a cabeça: tinha o rosto úmido e brilhante. Parecia aflita. Túnicas com cruzes vermelhas toldaram a visão que tinham dela.

Jack olhava fixamente, de arma em punho. Sua boca abriu-se ao máximo, redonda, fechou-se e tomou a se abrir no meio do brilhante nevoeiro. (Ria!"— ouviu Quem, baixo e distante.) Jack ergueu o revólver (Ria!) e disparou três vezes.

Outro membro pairando no ar (trek, trek, trek) claudicou e deixou cair o cilindro. A calçada embaixo começou a se tingir de vermelho.

Quem tirou os binóculos.

— A máscara contra gases! — sussurrou Buzz, também de binóculos.

Dover escondera o rosto entre os braços.

Quem soergueu o corpo e olhou sem os binóculos: na estreita ponte deserta um ciclista de azul claro avançava vacilante ao longe, já na metade, perseguido por um membro no ar a curta distância.

Os outros dois, mortos ou moribundos, rodopiavam lentamente no ar, à deriva. Os de cruz vermelha na túnica tinham formado agora uma fila da largura da ponte, um deles ajudando a levantar uma mulher de amarelo ao lado de uma bicicleta caída, tomando-a pelos ombros e levando-a de volta à praça.

O ciclista parou e olhou a fila de membros de cruz vermelha na túnica, depois virou-se e curvou-se sobre a parte da frente da bicicleta. O membro no ar aproximou-se rápido e fez pontaria com a arma: uma grossa pluma branca emergiu dela e envolveu o ciclista.

Quem pôs os binóculos.

Jack, com o rosto coberto pela máscara cinzenta contra gases, apoiado do lado esquerdo no meio do nevoeiro brilhante, colocava uma bomba na ponte. Depois saiu pedalando, derrapou, escorregou e caiu. Ergueu-se sobre um braço, com a bicicleta imóvel entre as pernas. A sacola, arremessada fora da cesta, estava ao lado da bomba.

— Oh Cristo e Wei — exclamou Buzz.

Quem tirou os binóculos, olhou para a ponte e depois começou a enrolar, bem firme, pelo meio, a alça de enfiar no pescoço.

— Quantos? — perguntou Dover, fitando-o.

— Três — respondeu Quem.

A explosão foi luminosa, violenta e demorada. Quem viu Ria afastando-se da ponte, conduzida pelo membro de cruz vermelha na túnica. Ela não se virou para trás.

Dover, agora ajoelhado e contemplando a cena, voltou-se para Quem.

—A sacola inteira dele — explicou Quem. — Ele estava bem ao lado.

Guardou os binóculos na sacola e puxou o fecho.

— Temos de dar o fora daqui. Guarde os seus, Buzz. Venham.

Pretendia não olhar mais para baixo, mas antes de abandonar o declive não resistiu e olhou.

O meio da ponte estava negro e entulhado de pedras. As partes laterais tinham desmoronado. Uma roda de bicicleta jazia no chão fora da área enegrecida, além de outras coisas menores, rumo às quais os membros de cruz vermelha na túnica adiantavam-se lentamente. Farrapos azuis claros espalhavam-se sobre a ponte e flutuavam nas águas do rio.


Reuniram-se de novo a Karl e contaram-lhe o que tinha acontecido. Os quatro montaram nas bicicletas e pedalaram alguns quilômetros em direção ao sul, entrando no parque. Descobriram um riacho, saciaram a sede e se lavaram.

— E agora, vamos voltar? — perguntou Dover.

— Não — disse Quem, — todos não.

Olharam para ele.

— Eu disse que voltaríamos — explicou, — porque se alguém fosse capturado, eu queria que ele acreditasse e confessasse isso quando o interrogassem. Como provavelmente Ria está fazendo neste momento.

Pegou o cigarro que passava de mão em mão, malgrado o risco do cheiro do fumo chegar até longe, deu uma tragada e entregou-o a Buzz.

— Um de nós vai voltar — continuou. — Pelo menos espero que seja apenas um... pra soltar uma bomba ou duas daqui até a costa, tomar a lancha e dar a impressão de que nos mantivemos fiéis ao plano. Os outros se esconderão no parque, procurando uma maneira de se aproximar o mais possível de ’001 e localizar o túnel dentro de duas semanas no máximo.

— Boa — apoiou Dover.

— Nunca vi cabimento numa desistência tão fácil assim — concordou Buzz.

— Será que dá pra fazer tudo com três? — perguntou

Karl.

— A gente só descobre tentando — retrucou Quem. — E em seis, será que daria? Talvez pudesse ser feito por um e talvez nem por doze. Mas depois de chegar até aqui, raios me partam se não hei de descobrir.

— Conte comigo — disse Karl. — Perguntei por perguntar.

— Comigo também — disse Buzz.

— E comigo idem — disse Dover.

— Ótimo — exclamou Quem. — Três têm melhores possibilidades do que um, quanto a isso eu tenho certeza. Karl, quem vai voltar é você.

Karl olhou para ele.

— Por que logo eu? — perguntou.

— Porque você tem quarenta e três anos. Desculpe, irmão, mas não me ocorre nenhum outro critério válido pra decisão.

— Quem — interveio Buzz, — creio que é melhor lhe avisar: a minha perna está doendo muito há várias horas. Pra mim, tanto faz voltar como continuar, mas... bem, achei que você devia saber.

Karl passou o cigarro a Quem. Estava reduzido a uns dois centímetros. Esmigalhou-o no chão.

— Está certo, Buzz, então é melhor você voltar — disse.

— Mas antes faça a barba. Convém que todos se barbeiem, pra eventualidade de se encontrar alguém.

Barbearam-se e depois Quem e Buzz traçaram um caminho para Buzz chegar ao lado mais perto da costa, a cerca de trezentos quilômetros de distância. Ele jogaria uma bomba no aeroporto em ’00015 e outra quando se encontrasse já próximo ao mar. Guardou mais duas, para qualquer imprevisto, e entregou as outras a Quem.

— Tendo sorte, você estará numa lancha amanhã de noite — disse Quem. — Tome cuidado pra que ninguém veja você sair nela. Diga a Júlia, e a Lilás também, que ficaremos escondidos por duas semanas no mínimo, talvez mais.

Buzz apertou a mão de todos, desejou-lhes felicidades, tomou a bicicleta e partiu.

— Vamos ficar aqui mesmo provisoriamente, nos revezando pra dormir um pouco — disse Quem. — Hoje à noite iremos buscar bolos e túnicas na cidade.

— Bolos — suspirou Karl.

— Serão duas semanas bem longas — comentou Dover.

— Não serão, não — retrucou Quem. — Isso foi para o caso que ele fosse capturado. Seguiremos com o plano dentro de quatro ou cinco dias.

Cristo e Wei — exclamou Karl, sorrindo. — Como você é precavido, hem?


CONTINUA

QUARTA PARTE

 

REAGINDO


1

 

Ficou ocupadíssimo, como jamais estivera em toda a sua vida: planejava, procurava pessoas e equipamento, viajava, aprendia, explicava, suplicava, inventava, decidia. Sem incluir o trabalho na fábrica, onde Júlia, apesar do tempo livre concedido, empenhava-se em se ressarcir dos seis e cinquenta semanais em consertos de maquinaria e incremento de produção. E à medida que a gravidez de Lilás progredia, multiplicavam-se os afazeres domésticos que lhe competiam. Andava mais exausto do que nunca; mais vivo, também: na véspera completamente farto de tudo e, no dia seguinte, com redobrada convicção — mais lúcido.

O plano, o projeto, aquilo, assemelhava-se a uma máquina que, para ser montada, requeria que ele localizasse ou fabricasse todos os componentes indispensáveis, interdependentes em questão de formato e dimensões.

Antes de tomar uma resolução sobre o tamanho da expedição, precisava ter uma ideia bem nítida do objetivo principal. Para isso, era fundamental obter maiores informações sobre o funcionamento de Uni e seus pontos mais vulneráveis.

Conversou com Lars Newman, o amigo de Ashi que dirigia uma escola. Lars indicou-lhe um homem em Andrait que, por sua vez, recomendou-lhe outro, em Manacor.

— Logo vi que aquelas comportas eram insuficientes pro volume de isolamento que pareciam possuir — disse o homem de Manacor. Chamava-se Newbrook e andava beirando os setenta. Antes de abandonar a Família lecionara numa academia tecnológica. Estava trocando a fralda de uma netinha e aborreceu-se porque ela não ficava quieta.

— Quer parar de se mexer? Bem, supondo que vocês consigam entrar — continuou, dirigindo-se a Quem, — é óbvio que terão que destruir a fonte de energia. O reator ou, o que é mais provável, os reatores.

— Mas eles podem ser substituídos bastante rápido, não podem? — perguntou. — Eu queria deixar Uni sem funcionar muito tempo, o suficiente pra despertar a Família e resolver o que se fará com ele.

— Diabo, pára quieta! — reclamou Newbrook. — A usina de refrigeração, então.

— A usina de refrigeração?

— Exatamente. A temperatura interna das comportas precisa conservar-se perto do zero absoluto. Aumente alguns graus e as grades deixarão... pronto, viu o que você fez?... as grades perderão a supercondutividade. A memória de Uni será destruída.

Levantou a netinha, que estava aos berros, e apoiou-a contra o ombro, batendo-lhe de leve nas costas.

— Psiu, psiu.

— Destruída em caráter permanente?

Newbrook acenou afirmativamente com a cabeça, acalmando a criança que não parava de chorar.

— Mesmo que a refrigeração seja restaurada — explicou,

— todos os dados terão que ser fornecidos novamente. Levará anos.

— E justamente o que eu quero — disse Quem.

A usina de refrigeração.

E a sobressalente, caso houvesse.

Três usinas de refrigeração para deixar fora de combate. Dois homens para cada uma, segundo os seus cálculos: um para colocar os explosivos e o outro para manter os membros à distância.

Seis homens para paralisar a refrigeração de Uni e depois guardar as entradas contra os reforços que ele decerto pediria com seu cérebro dissolvendo-se em murmúrios balbuciantes. Poderiam os seis controlar os elevadores e o túnel? (Papai Jan não havia mencionado outros poços no espaço deixado de reserva?) Mas seis representavam o mínimo, e o mínimo era o que ele queria, porque bastaria que apenas um fosse capturado no trajeto para revelar todo o plano aos médicos e Uni estaria à espera do grupo no túnel. Quanto menor o número de participantes, menor o risco.

Ele e mais cinco.

O rapaz de cabelo amarelo que pilotava a lancha-patrulha do S.I. — Vito Newcome, mas cujo apelido era Dover — ficou pintando a amurada do barco enquanto escutava, e depois, quando Quem mencionou o túnel e as verdadeiras comportas de memória, parou de trabalhar. Acocorado sobre os calcanhares, de brocha caída na mão, levantou a cabeça para Quem. Tinha os olhos espremidos e respingos brancos na barba curta e no peito.

— Tem certeza? — perguntou.

— Absoluta.

— Já era tempo que alguém atacasse de novo aquele filho da luta.

Dover Newcome fitou o polegar, manchado de branco, e limpou-o na coxa da calça.

Quem agachou-se a seu lado.

— Você não quer tomar parte? — perguntou-lhe.

Dover olhou para ele e, depois de breve hesitação, sacudiu a cabeça.

— Quero. Claro que quero.

Ashi respondeu que não, tal como Quem esperava. Convidou-o unicamente porque do contrário, a seu ver, cometeria uma falta de consideração.

— Eu simplesmente acho que não vale a pena arriscar — justificou-se Ashi. — Mas o ajudarei de todas as maneiras ao meu alcance. Júlia já me arrancou uma contribuição e eu prometi dar cem dólares. Caso você precise, posso entrar com uma quantia maior.

— Ótimo. Obrigado, Ashi. Há várias maneiras de você ajudar. Você tem acesso à Biblioteca, não tem? Veja se consegue descobrir algum mapa da região em torno de EUR’001, U ou Pré-U. Quanto maior, melhor. Mapas com detalhes topográficos.

Júlia protestou quando soube que Dover Newcome participaria do grupo.

— Nós precisamos dele aqui, pra lancha — lembrou.

— Quando tudo estiver terminado, não precisarão mais — retrucou Quem.

— Santo Deus. Como é que você se arranja com tanta falta de confiança em si mesmo?

— E fácil — disse Quem. — Tenho uma amiga que reza por mim.

Júlia olhou friamente para ele.

— Não pegue mais ninguém do S.I. — recomendou.

— Tampouco da fábrica. E muito menos alguém cuja família ainda tenha que viver às minhas custas!

— Como é que você se arranja com tão pouca fé? — retrucou Quem.

Entre ambos, ele e Dover falaram com cerca de trinta ou quarenta imigrantes sem encontrar nenhum que quisesse tomar parte no ataque. Copiaram nos arquivos do S.I. os nomes e endereços de homens e mulheres de vinte a quarenta anos que tivessem vindo para Liberdade no espaço dos dois anos precedentes: visitavam sete ou oito por semana. O filho de Lars Newman queria entrar para o grupo, mas tinha nascido em Liberdade, e Quem só queria pessoas criadas no seio da Família, acostumadas a controles e ruas, a caminhar devagar e sorrir de satisfação.

Descobriu em Pollensa uma firma capaz de fabricar bombas de dinamite de espoleta mecânica lenta ou rápida, desde que fossem encomendadas por um ilhéu autorizado. E descobriu outra, em Calvia, que fabricaria seis máscaras contra gases, mas não garantiam que fosse eficaz contra LPK, a menos que lhes fornecesse uma amostra para experiência. Lilás, que trabalhava numa clínica de imigrantes, encontrou um médico que sabia a fórmula do LPK, mas nenhum dos laboratórios da ilha podia fabricá-lo. Lítio era um dos principais elementos da composição, e estava em falta há mais de trinta anos.

Começou a pôr um anúncio semanal de duas linhas no Imigrante, propondo a compra de túnicas, sandálias e sacolas de viagem. Um dia recebeu resposta de uma mulher de Andrait e algumas noites depois foi até lá para examinar duas sacolas e um par de sandálias. As sacolas, além de antiquadas, estavam gastas, mas as sandálias eram boas. A mulher e o marido perguntaram o que pretendia fazer com aquilo. Chamavam-se Newbridge e tinham trinta e poucos anos, morando num porão minúsculo e infecto, cheio de ratos. Quem explicou e os dois quiseram logo entrar para o grupo — chegando mesmo a insistir. Possuíam aspeto perfeitamente normal, o que representava um ponto a seu favor, mas com qualquer coisa de febril, uma tensão permanente, que causou certa impressão desfavorável em Quem.

Procurou-os novamente na semana seguinte, junto com Dover, e desta vez lhe pareceram mais calmos e possivelmente aproveitáveis. Chamavam-se Jack e Ria. Haviam tido dois filhos, falecidos nos primeiros meses de vida. Jack era limpador de esgotos e Ria trabalhava numa fábrica de brinquedos. Disseram gozar de boa saúde e, a julgar pelas aparências, não estavam mentindo.

Quem resolveu aceitá-los — provisoriamente, ao menos — e contou-lhes detalhes do plano em andamento.

— Devíamos explodir aquela porra toda, e não apenas as usinas de refrigeração — opinou Jack.

— Uma coisa precisa ficar bem clara — retrucou Quem. — O chefe da expedição sou eu. Se você não estiver preparado pra cumprir fielmente as minhas ordens, sem discussão, é melhor desistir desde já.

— Não, você tem toda a razão — concordou Jack. — Uma operação dessas só pode ter um chefe. Do contrário a coisa não funciona.

— Mas a gente pode dar sugestões, não pode? — perguntou Ria.

— Quanto mais, melhor — respondeu Quem. — Só que as decisões serão minhas, e vocês devem estar prontos a executá-las.

— Eu estou — afirmou Jack.

— E eu também — disse Ria.

Localizar a entrada do túnel resultou mais difícil do que Quem previra. Conseguiu três mapas em grande escala de Eur central e um, extremamente detalhado e topográfico da “Suíça” na Pré-U, no qual copiou a sede de Uni com o maior cuidado, mas todas as pessoas consultadas — ex-engenheiros e geólogos, construtores de minas locais — afirmaram necessitar de outros dados antes que o curso do túnel pudesse ser projetado com alguma esperança de exatidão. Ashi passou a interessar-se mais pelo problema, gastando às vezes horas inteiras na Biblioteca a copiar referências a “Genebra” e às “Montanhas do Jura” de velhas enciclopédias e obras sobre geologia.

Em duas noites de luar consecutivas, Quem e Dover saíram na lancha do S.I., indo até a ponta ocidental de EUR91766 para esperar a passagem dos batelões de cobre. Obedeciam, segundo constataram, a intervalos exatos de quatro horas e vinte e cinco minutos. Cada silhueta baixa e plana avançava com firmeza rumo a noroeste, desenvolvendo trinta quilômetros por hora, deixando um rastro de ondas que deixava a lancha oscilando durante vários minutos. Três horas depois, voltavam da direção oposta, mais altos à tona d’água, vazios.

Dover calculou que os batelões que se dirigiam a Eur, caso sempre mantivessem velocidade e rumo idênticos, alcançariam EUR91772 em pouco mais de seis horas.

Na segunda noite a lancha encostou num batelão e Dover diminuiu a marcha para equiparar as duas velocidades enquanto Quem subia a bordo. Ele andou de batelão durante algum tempo, comodamente sentado sobre a compacta carga achatada de lingotes de cobre em treliças de madeira, e depois desceu de novo para a lancha.

Lilás descobriu outro homem para o grupo, um assistente da clínica chamado Lars Newstone, cujo apelido era Buzz. Tinha trinta e seis anos, a mesma idade de Quem, e era mais alto que o normal: um homem tranquilo e aparentemente capaz. Fazia nove anos que vivia na ilha, três dos quais trabalhando na clínica, período em que assimilara certo cabedal de conhecimentos médicos. Estava casado, porém separado da mulher. Queria juntar-se ao grupo, disse, porque sempre achara que “alguém precisava fazer alguma coisa, ou pelo menos tentar”.

— É um erro — disse — deixar que Uni fique dono do mundo sem sequer tentar reavê-lo.

— Ele é ótimo, justamente o homem de que precisamos — comentou Quem com Lilás depois que Buzz foi embora. — Quem me dera contar com mais dois iguais a ele em vez dos Newbridges. Obrigado.

Lilás conservou-se calada, lavando xícaras na pia. Quem aproximou-se, pegou-a pelos ombros e beijou-lhe os cabelos. Estava no sétimo mês de gravidez, enorme e constrangida.

Em fins de março Júlia ofereceu um jantar no qual Quem, que a essa altura já se achava trabalhando há quatro meses na ideia, apresentou o plano aos convidados — ilhéus abastados — que podiam contribuir, segundo ela, quinhentos dólares no mínimo por cabeça. Forneceu-lhes cópias de uma lista preparada de antemão, contendo o custo total do empreendimento, e mostrou o seu mapa da “Suíça”, com o túnel desenhado na posição aproximada.

Não se mostraram tão receptivos quanto imaginara.

— Três mil e seiscentos pra explosivos? — admirou-se um.

— Exatamente, seu moço — disse Quem. — Se alguém souber onde se consegue por menos preço, gostaria muito que me informasse...

— Que negócio é este, “reforço de sacolas”?

— E pras sacolas que teremos de carregar. Elas não foram feitas pra cargas pesadas. Nós vamos ter que desmanchá-las e fazer tudo de novo com estrutura metálica.

— Mas vocês têm licença pra comprar armas e bombas?

— Quem vai comprar sou eu — explicou Júlia, — e ficarão em minha propriedade até a data da partida da expedição. Eu tenho autorização.

— Quando tencionam ir?

— Por enquanto ainda não sei — respondeu Quem. — As máscaras contra gases só estarão prontas três meses depois do dia da encomenda. E ainda precisamos achar mais um homem e passar por uma fase de treinamento. Espero que se vá em julho ou agosto.

— Tem certeza de que é aqui mesmo que se localiza o túnel?

— Não, nós continuamos fazendo pesquisas. Isso é apenas uma aproximação.

Cinco convidados se escusaram e sete preencheram cheques que atingiram apenas a dois mil e seiscentos dólares — menos da quarta parte dos onze mil necessários.

— Safados cachorros — disse Júlia.

— Em todo caso, já é alguma coisa — retrucou Quem. — Podemos começar as encomendas. E contratar o Capitão Gold.

— Dentro de poucas semanas oferecerei outro jantar — declarou Júlia. — Que é que você tinha que estava tão nervoso? É preciso falar com mais convicção!

O bebê nasceu. Era menino e recebeu o nome de Jan. Tinha os dois olhos castanhos.

Nas noites de domingo e quarta-feira, num sótão desocupado da fábrica de Júlia, Quem, Dover, Buzz, Jack e Ria praticavam diversas modalidades de luta. O professor, oficial do exército, era o Capitão Gold, sujeito baixinho e sorridente que evidentemente antipatizava com o grupo e parecia ter prazer em fazê-los surrarem-se e derrubarem-se mutuamente sobre as ralas esteiras estendidas no chão.

— Dá nele! Dá nele! Dá nele! — mandava, pulando por todos os cantos, na frente deles, de camiseta e calças de campanha. — Dá nele! Assim, oh! Isto é que é dar, e não isto! Assim parece até que está abanando pra alguém! Santo Deus, vocês não têm mesmo jeito, seus ferrinhos! Anda, Olho-Verde, dá nele!

Quem fechou o punho contra Jack e quando viu estava no ar, caindo de costas em cima de esteira.

— Boa! — gritou o Capitão Gold. — Agora, sim, parece coisa de gente! Levanta, Olho Verde, ninguém matou você! Eu não falei que era pra ficar agachado?

Jack e Ria aprendiam logo. Buzz era mais lento.

Júlia ofereceu novo jantar. Quem falou com maior convicção e arrecadaram três mil e cem dólares.

O bebê adoeceu — teve febre e infecção intestinal — mas logo melhorou, adquirindo aspeto robusto e alegre, sugando faminto os seios de Lilás. A mãe mostrava-se mais carinhosa do que nunca, encantada com o filho e interessada em ouvir Quem discorrer sobre a arrecadação de fundos e a efetivação progressiva do plano.

Quem achou o sexto homem: um operário de granja, perto de Santany, chegado de Afri pouco antes dele e de Lilás. Tinha quarenta e três anos, bastante mais velho que o tipo que Quem procurava, mas era forte e ágil, e certo de que Uni podia ser derrotado. Trabalhara em cromatomicrografia no seio da Família e chamava-se Morgan Newmark, embora continuasse atendendo peto nome anterior: Karl.

— Creio que agora até eu seria capaz de descobrir o maldito túnel — disse Ashi, entregando a Quem vinte páginas de anotações copiadas de livros na Biblioteca.

Quem mostrou-as, junto com os mapas, a cada uma das pessoas consultadas anteriormente. Três se prontificaram a traçar uma planta do curso mais provável do túnel. E, como era de prever, apresentaram três lugares diferentes para a entrada da galeria. Duas distavam um quilômetro entre si, e a terceira ficava seis quilômetros mais longe.

— A falta de melhor, isto já basta — comentou Quem com Dover.

A firma que estava fabricando as máscaras contra gases faliu — sem devolver os oitocentos dólares de sinal, pagos por Quem — e tiveram de procurar outra.

Quem voltou a falar com Newbrook, o ex-professor da academia tecnológica, sobre o tipo de usinas de refrigeração que Uni provavelmente possuía. Júlia ofereceu outro jantar e Ashi deu uma festa. Arrecadaram mais três mil dólares. Buzz brigou com um bando de ilhéus e, apesar de assombrá-los com seus conhecimentos pugilísticos, quebrou duas costelas e fraturou a tíbia. Todos começaram a procurar um substituto para ele, caso não pudesse participar da expedição.

Uma noite Lilás acordou Quem.

— Que foi que houve? — perguntou ele.

— Quem?

— Sim, o que é?

Ouviu a respiração de Jan, dormindo no berço.

— Se você tiver razão, e esta ilha for uma prisão onde Uni nos largou...

— Sim?

— E já partiram ataques daqui antes...

— Que é que tem?

Ela permaneceu em silêncio — podia vê-la, deitada de costas com os olhos abertos — e por fim disse:

— Uni não poria outras pessoas aqui, membros “sadios”, pra preveni-lo contra novos ataques?

Ele olhou para ela e não respondeu.

— Quem sabe até... pra participar das expedições? — insistiu. — E providenciar “ajuda” pra todo mundo em Eur?

— Não — protestou, sacudindo a cabeça. — É... não. Eles teriam de fazer tratamento, não teriam? Pra continuar “sadios”.

— De fato — concordou.

— Você pensa que existe algum centro médico escondido na ilha? — perguntou, sorrindo.

— Então? Tenho certeza de que não há nenhum... espion aqui. Antes de recorrer a tais extremos, Uni simplesmente mataria os incuráveis da maneira que você e Ashi sugeriram.

— Como é que você sabe?

— Lilás, não há espions — afirmou. — Você está apenas querendo preocupar-se a toa. Agora durma, ande. Não demora Jan se acorda. Durma de uma vez.

Beijou-a e ela se virou para o outro lado. Passando certo tempo, parecia adormecida.

Ele se manteve acordado.

Não podia ser. Precisariam de tratamentos...

A quantas pessoas tinha revelado o plano, falando sobre o túnel, as verdadeiras comportas de memória? Nem dava para contar. Centenas! E cada uma, na certa, passara adiante...

Chegara até a pôr anúncio no Imigrante: Compram-se sacolas, túnicas, sandálias...

Alguém que fazia parte do grupo? Não. Dover?... impossível. Buzz?... não, nunca. Jack ou Ria?... não. Karl? Realmente ainda não conhecia Karl bem a fundo — era simpático, conversador, bebia além da conta, mas não a ponto de causar preocupações — não, Karl não podia ser senão o que aparentava, trabalhando numa granja nos cafundós do Judas...

Júlia? Estava ficando maluco. Cristo e Wei! Deus do céu!

Lilás andava apenas se inquietando à toa, mais nada.

Não podia haver nenhum espion, nenhuma pessoa por ali que apoiasse Uni às escondidas, porque nesse caso precisaria de tratamentos para continuar naquela condição.

Levaria o plano a cabo, a despeito de tudo.

Adormeceu.

As bombas chegaram: feixes de leves cilindros marrons, amarrados em torno de um preto, no meio. Foram guardados num galpão atrás da fábrica. Cada um tinha uma alça metálica, azul ou amarela, colada a um lado. As azuis era espoletas de trinta segundos, as amarelas, de quatro minutos.

Experimentaram uma numa pedreira de mármore, à noite. Calçaram-na numa fenda e puxaram a alça azul da espoleta, com cinquenta metros de arame, por trás de uma pilha de blocos cortados. A explosão foi tremenda e no lugar da fenda abriu-se um buraco do tamanho de uma porta, de onde caíam pedras, em nuvens de pó.

Todos — com exceção de Buzz — excursionaram a pé pelas montanhas, levando as sacolas cheias de pedras. O Capitão Gold ensinou-lhes a carregar um revólver e focar um raio laser, a sacar, fazer mira e atirar — em pranchas escoradas à parede dos fundos da fábrica.

— Você não ia oferecer outro jantar? — perguntou Quem a Júlia.

— Sim, daqui a uma ou duas semanas — respondeu.

Mas não ofereceu. Nunca mais falou em dinheiro, e ele tampouco.

Passou algum tempo em companhia de Karl e certificou-se de que não era um espion.

A perna de Buzz sarou quase por completo: insistiu que estaria em condições de ir junto.

As máscaras contra gases chegaram, assim como o resto das armas, ferramentas, sapatos, navalhas, revestimentos plásticos, sacolas reformadas, relógios, rolos de arame grosso, balsa pneumática, pá, bússolas e binóculos.

— Experimente me dar um soco — sugeriu o Capitão Gold.

Quem deu e partiu-lhe o lábio.

Demorou até novembro, quase um ano, para aprontar tudo, e então Quem resolveu adiar a partida para o Natal, aproveitando o feriado para chegar a ’001: as estradas de bicicletas e as ruas, carroportos e aeroportos estariam no auge do movimento, os membros andariam com um passo um pouco mais rápido que o normal e mesmo um “sadio” poderia distrair-se esquecendo de tocar na placa de um controle.

No domingo anterior à data marcada, levaram ao sótão tudo o que havia no galpão, enchendo as sacolas — inclusive as que ficariam por dentro — que esvaziariam ao atracar em terra firme. Júlia estava presente, bem como John, o filho de Newman, que devia trazer de volta a lancha do S.I., e Nella, a namorada de Dover — moça de vinte e dois anos, com o cabelo amarelo como o dele, entusiasmadíssima com os preparativos. Ashi compareceu, e o Capitão Gold também.

— Vocês todos são uns doidos varridos — disse o Capitão.

— Cai fora, safado — respondeu Buzz.

Quando terminaram, com as sacolas completamente enroladas em invólucros plásticos e amarradas, Quem pediu aos que não tomariam parte na expedição para que se retirassem. Depois reuniu o grupo num círculo em cima das esteiras.

— Pensei muito sobre o que se deve fazer se um de nós for capturado — disse, — e optei pela seguinte solução: caso alguém seja preso, mesmo que seja apenas um elemento do grupo, todos os restantes regressarão imediatamente à ilha.

Olharam para ele.

— Depois de tanto esforço? — estranhou Buzz.

— Sim. Se um de nós for submetido a tratamento, revelará ao médico que pretendemos entrar pelo túnel, e aí então não teremos mais nenhuma chance de êxito. Portando o melhor é voltar, rápida e discretamente, procurando uma lancha na praia. Pra dizer a verdade, quero ver se localizo uma assim que atracarmos, antes de iniciar o trajeto.

— Cristo e Wei! — exclamou Jack. — Evidentemente, se

três ou quatro fossem capturados, mas um?

— Minha decisão é essa — afirmou Quem. — É a mais acertada.

— E se você for preso? — perguntou Ria.

— Então a chefia passará a Buzz — respondeu Quem, — e quem resolve é ele. Mas por enquanto fica decidido o seguinte: se alguém for capturado, todo mundo recua.

— Portanto que ninguém se deixe pegar — disse Karl.

— Justo — retrucou Quem, levantando-se. — É só — declarou. — Tratem de dormir bastante. Até quarta às sete.

— Dia de Wood — corrigiu Dover.

— Dia de Wood, dia de Wood, dia de Wood — disse Quem. — Até o dia de Wood, às sete.


Beijou Lilás como se fosse sair para tratar de um assunto qualquer e tomasse voltar dentro de poucas horas.

— Tchau, amor — disse.

Ela abraçou-se nele, encostando-lhe o rosto e não disse nada.

Beijou-a de novo, desvencilhou-se de seus braços e aproximando-se do berço. Jan estava entretido em alcançar um pacote vazio de cigarros, pendurado num cordão. Quem beijou-lhe a face e deu-lhe adeus.

Lilás chegou perto e ele a beijou. Abraçaram-se e beijaram- se, e depois ele saiu, sem virar-se para trás.

Ashi esperava lá em baixo, de monociclo. Levou Quem ao cais, em Pollensa.

Todos se achavam no escritório do S.I. às sete menos um quarto e enquanto um cortava o cabelo do outro, o caminhão chegou. John Newman, Ashi e um homem da fábrica levaram as sacolas e a balsa até a lancha, e Júlia distribuiu sanduíches e café. Os homens cortaram a barba e escanhoaram bem o rosto.

Colocaram as pulseiras e os aros fechados que pareciam semelhantes aos normais. A de Quem dizia Jesus AY 31G6912.

Despediu-se de Ashi e beijou Júlia.

— Faça a sua sacola e prepare-se pra conhecer o mundo — disse ele.

— Tome cuidado — recomendou ela. — E procure rezar.

Entrou na lancha sentou-se sobre o tombadilho na frente das sacolas, em companhia de John Newman e dos outros — Buzz e Karl, Jack e Ria: todos tinham um aspecto estranho de membros da Família com aquele cabelo cortado e aquelas caras iguais, imberbes.

Dover ligou o motor e pôs-se ao largo do porto, virando depois em direção à suave claridade alaranjada que se erguia do lado de ‘91766.


2

 

A pálida luz que precede o raiar do dia, abandonaram furtivamente o batelão e empurraram por diante a balsa carregada de sacolas. Três empurravam e três nadavam rentes, observando o recorte escuro dos altos penhascos. Avançaram aos poucos, mantendo-se a uma distância de cerca de cinquenta metros da costa. De dez em dez minutos mais ou menos, trocavam de lugar: os que tinham estado nadando, empurravam e os que tinham estado empurrando, nadavam.

Quando já se encontravam à altura de *91772, desviaram a balsa em direção à praia. Guardaram-na numa pequena enseada de areia rodeada por imponentes escarpas rochosas, descarregaram as sacolas e as desembrulharam. Abriram as internas e vestiram túnicas. Puseram armas, relógios, bússolas e mapas nos bolsos. Depois .cavaram um buraco e esconderam dentro as duas sacolas vazias, todos os invólucros plásticos, a balsa sem ar, as roupas que usavam em Liberdade e a pá utilizada para escavar. Encheram o buraco de terra, eliminaram os vestígios e, de sacolas a tiracolo e sandálias na mão, começaram a caminhar em fila única pela estreita faixa de areia. O céu clareou e suas sombras se projetaram sobre a base rochosa dos penhascos, deslizando para frente e para trás. Karl, quase no fim da fila, pôs-se a assobiar Uma Forte Família. O resto do grupo sorriu e Quem, que vinha à dianteira, também aderiu ao assobio. Alguns dos outros fizeram o mesmo.

Não tardou muito, acharam uma lancha — uma velha lancha azul, emborcada de lado, à espera de incuráveis que se considerariam felizes. Quem virou-se e andando de costas disse:

— Cá está ela, se a gente precisar.

— Não vai ser preciso — retrucou Dover.

Depois de Quem virar-se de novo para a frente, quando já tinham passado adiante, Jack pegou uma pedra, jogou na lancha, mas errou.

Durante o percurso mudaram as sacolas de ombro. Em menos de uma hora chegaram a um controle que fazia face ao lado oposto.

— Nada como estar em casa — ironizou Dover.

Ria soltou um suspiro.

— Oi, Uni — disse Buzz, — como vai?

E bateu de teve na parte de cima do controle ao passar por ele.

Já caminhava sem mancar. Quem voltava-se de vez em quando para verificar.

A faixa de areia começou a alargar-se e chegaram a uma cesta de lixo, seguida por outras. Depois surgiram plataformas de salva-vidas, alto-falantes e um relógio — 6h54m — Quinta 25 Dez 171 A.U. — e uma escada que subia em ziguezague pelo penhasco com enfeites vermelhos e verdes enroscados em diversos pilares da grade.

Largaram as sacolas e as sandálias, tiraram as túnicas e estenderam tudo no chão. Deitaram-se em cima e descansaram ao crescente calor do sol. Quem lembrou coisas que achava que deviam dizer quando falassem com a Família posteriormente. Discutiram o assunto, conjeturando sobre até que ponto a interrupção de Uni afetaria as transmissões de televisão e quanto tempo levaria para serem normalizadas.

Karl e Dover pegaram no sono.

Quem ficou estendido de olhos fechados, pensando em certos problemas que a Família teria que enfrentar quando despertasse, e nas várias maneiras de solucioná-los.

“Cristo, que nos ensinou” — começaram os alto-falantes às oito horas. Dois salva-vidas de gorro vermelho e óculos escuros vieram descendo os degraus em ziguezague. Um deles chegou à plataforma perto do grupo.

— Feliz Natal — disse.

— Feliz Natal — responderam em coro.

— Querendo, já podem entrar n’água — avisou, subindo à plataforma.

Quem, Jack e Dover levantaram-se e dirigiram-se ao mar. Nadaram um pouco, observando os membros que desciam a escada, e depois saíram, tornando a deitar-se na areia.

Quando havia trinta e cinco ou quarenta membros na praia, às 8h22m, os seis se levantaram e começaram a vestir as túnicas e pôr as sacolas no ombro.

Quem e Dover foram os primeiros a subir a escada. Sorriam e davam “Feliz Natal” aos membros que vinham descendo e fingiram facilmente que tocavam no controle ao alto. Os únicos membros nas proximidades estavam na cantina, de costas para eles.

Esperaram junto de um chafariz até que Jack e Ria subissem e depois Buzz e Karl.

Dirigiram-se ao posto de bicicletas, onde havia vinte ou vinte e cinco enfileiradas nos lugares mais à mão. Tiraram as seis últimas, colocaram as sacolas nas cestas, montaram e pedalaram até o início da estrada destinada exclusivamente a ciclistas. Ali esperaram, sorrindo e conversando, que cessasse o trânsito de bicicletas e carros. Depois cruzaram em grupo pelo controle, encostando as pulseiras na parte lateral, para a eventualidade de estarem sendo observados a distância por alguém.

Rumaram a EUR91770 individualmente e aos pares, deixando bastante espaço de intervalo entre si na estrada. Quem ia à frente, com Dover logo atrás. Olhou os ciclistas que se aproximavam e os carros esporádicos que passavam chispando. Havemos de conseguir, pensou. Nós havemos de conseguir.


Entraram separados no aeroporto, reunindo-se perto do quadro de horários de vôo. Os membros aglomeravam-se ao redor deles. A sala de espera, toda enfeitada de vermelho e verde, estava apinhada de gente e o burburinho era tão grande que mal se escutava a música de Natal. Do outro lado das vidraças, aviões imensos giravam e avançavam pesadamente, tomando passageiros em três escadas rolantes ao mesmo tempo, desembarcando filas de membros, num contínuo vaivém entre as pistas.

Eram 9h35m. O próximo vôo para EUR0001 partiria às 11h48m.

— Não me agrada essa ideia de permanecer muito tempo aqui — disse Quem. — Ou o batelão usou energia extra ou então chegou atrasado, e se a diferença ficou manifesta, é bem capaz que Uni perceba o motivo.

— Então vamos tomar logo o primeiro avião — sugeriu Ria, — pra chegar o mais perto possível de ’001 e depois completar o percurso de bicicleta.

— Se a gente espera mais um pouco, chega mais rápido — discordou Karl. — Isto aqui até que não é tão ruim como esconderijo.

— Não — retrucou Quem, consultando o quadro de vôo, — vamos no... das 10h6m pra ’00020. Não tem outro mais cedo e dista apenas cinquenta quilômetros de ’001. Venha, o portão é aquele lá.

Abriram caminho no meio da multidão até a porta giratória no canto da sala e agruparam-se em torno do controle. A porta se abriu, dando passagem a um membro de túnica cor de laranja. Pedindo desculpas, estendeu o braço entre Quem e Dover para tocar no controle — sim, piscou a luz — e seguiu adiante.

Quem tirou disfarçadamente o relógio do bolso e comparou- o com o da parede.

— É a pista seis — disse. — Se houver mais de uma escada rolante, entrem na fila da parte de trás do avião. E façam questão de ficar quase por último, deixando no mínimo seis membros à retaguarda. Vem, Dover.

Pegou-o pelo braço e os dois atravessaram a porta, entrando na área de depósito.

— Vocês não deviam estar aqui — avisou um membro de túnica cor de laranja que estava parado ali.

— Uni autorizou — respondeu Quem. — Trabalhamos nos planos de aeroporto.

— Três-trinta-e-sete-A — explicou Dover.

— Este pavilhão vai ser ampliado no ano que vem — disse Quem.

— Agora entendo o que você queria dizer a respeito do teto — comentou Dover, olhando para cima.

— Sim — confirmou Quem. — Ele podia facilmente ganhar mais um metro de altura.

— Metro e meio — corrigiu Dover.

— A não ser que oi condutos compliquem tudo — disse Quem.

O membro afastou-se e saiu pela porta.

— É, os condutos — observou Dover. — Problema sério.

— Deixe eu lhe mostrar aonde eles vão — continuou Quem. — É muito interessante.

— Se é.

Entraram na área em que os membros de túnica cor de laranja aprontavam os bolos e recipientes de bebida, trabalhando mais depressa do que era costume entre os membros.

— Três-trinta-e-sete A? — perguntou Quem.

— Por que não? — retrucou Dover, apontando para o teto enquanto se separavam para dar passagem a um membro empurrando carrinho. — Está vendo a direção que os condutos tomam?

— Teremos que modificar a instalação toda. Aqui também.

Fingiram tocar no controle e passaram à sala onde havia túnicas penduradas em ganchos. Não encontraram ninguém. Quem fechou a porta e mostrou o armário onde eram guardadas as de cor de laranja.

Vestiram-nas por cima das amarelas e colocaram biqueiras nas sandálias. Rasgaram o fundo dos bolsos das de cor de laranja para poderem enfiar a mão nos das que ficaram por baixo.

Surgiu um membro de branco.

— Olá — saudou. — Feliz Natal.

— Feliz Natal — responderam.

— Mandaram-me lá de ’765 pra ajudar aqui — explicou.

Tinha uns trinta anos.

— Ótimo, estávamos mesmo precisando — disse Quem.

O membro, abrindo a túnica, olhou para Dover, que fechava a sua.

— Por que você deixou a outra por baixo? — estranhou.

— Assim esquenta mais — respondeu Quem, aproximando-se.

Virou-se para Quem, intrigado.

— Esquenta mais? Pra que você quer esquentar-se mais?

— Desculpe, irmão — disse Quem, dando-lhe um soco no estômago.

Ele se curvou para a frente, com um gemido, e Quem desfechou-lhe outro no queixo. O membro endireitou o corpo e caiu para trás. Dover pegou-o por baixo dos braços e estendeu-o no chão. Ficou de olhos fechados, como se estivesse dormindo.

Quem, examinando-o, exclamou:

— Cristo e Wei, o negócio dá certo.

Os dois rasgaram uma série de túnicas e amarraram os pulsos e os tornozelos do membro, atando uma manga entre os seus dentes. Depois ergueram-no e colocaram-no dentro do armário onde era guardada a cera de soalho.

De 9h51m7 o relógio passou a 9h52m.

Embrulharam as sacolas em túnicas cor de laranja, saíram da sala e passaram pelos membros que lidavam com os recipientes de bolo e bebida. Na área de depósito descobriram uma caixa de papelão com toalhas pelo meio e puseram dentro as sacolas embrulhadas. Carregando-a entre ambos, cruzaram o portão e acharam-se no campo.

Havia um avião em frente à pista seis, enorme, desembarcando membros por duas escadas rolantes. Outros membros, de laranja, aguardavam ao pé de cada uma das duas com um carrinho de recipientes.

Afastaram-se do avião, rumo à esquerda. Atravessaram o campo em sentido diagonal, sempre carregando a caixa de papelão, desviaram-se de um caminhão de manutenção que andava devagar e aproximaram-se dos hangares que ficavam num pavilhão de telhado plano e estendia-se até as pistas de decolagem.

Entraram num deles. Continha um avião menor, com membros de laranja por baixo, retirando do bojo uma caixa preta quadrada. Quem e Dover continuaram até os fundos do hangar, onde havia uma porta na parede lateral. Dover abriu-a, espiou lá dentro e fez sinal com a cabeça para Quem.

Os dois entraram e fecharam a porta. Era um almoxarifado: prateleiras de ferramentas, filas de engradados de madeira, tonéis pretos de metal com marca Óleo Lub SG.

— Até parece de encomenda — comentou Quem, enquanto largavam a caixa no chão.

Dover escondeu-se atrás da porta. Tirou o revólver e segurou-o pelo cano.

Agachando-se, Quem desembrulhou uma sacola, abriu-a e retirou uma bomba com alça amarela de quatro minutos.

Separou dois tonéis de óleo e colocou a bomba no chão no meio, com a alça presa pelo esparadrapo virada para cima. Puxou o relógio do bolso e olhou a hora.

— Quanto tempo? — perguntou Dover.

— Três minutos.

Voltou à caixa de papelão. Sempre de relógio em punho, correu o fecho da sacola, tomou a embrulhá-la e fechou as tampas da caixa.

— Tem alguma coisa que se aproveite? — perguntou Dover, acenando com a cabeça para as prateleiras de ferramentas.

Quem aproximou-se de uma delas. A porta do almoxarifado se abriu e entrou um membro de túnica laranja — uma mulher.

— Olá — saudou Quem, apanhando uma ferramenta e guardando o relógio no bolso.

— Olá — disse ela, dirigindo-se ao lado oposto da prateleira.

Olhou de relance para Quem.

— Quem é você? — indagou.

— Li RP — respondeu. — Mandaram-me lá de 765 pra ajudar aqui.

Apanhou outra ferramenta na prateleira: um par de compassos.

— Não está tão ruim como no Natal de Wei — observou ela.

Surgiu outro membro à porta.

— Já encontramos, Paz — avisou. — Estava com Li.

— Eu perguntei a ele e ele respondeu que não estava — disse ela.

— Pois estava — disse o outro membro, desaparecendo.

Ela saiu atrás dele.

— Ele foi o primeiro a quem eu perguntei.

Quem ficou parado, olhando a porta que se fechava lentamente. Dover, escondido no canto, olhou para ele e empurrou-a até o fim, de mansinho. Quem olhou para Dover e depois para a mão que segurava as ferramentas: estava trêmula. Largou as ferramentas, respirou fundo e mostrou a mão a Dover, que sorriu e observou:

— Muito pouco próprio de membro.

Quem tomou fôlego e tirou o relógio do bolso.

— Menos de um minuto — avisou, indo até os tonéis e agachando-se.

Puxou o esparadrapo da alça da bomba.

Dover guardou o revólver no bolso — o da túnica por baixo — e ficou imóvel com a mão na maçaneta.

Quem, controlando o relógio e segurando a alça da espoleta disse:

— Dez segundos.

Esperou, esperou, esperou — e finalmente puxou a alça para cima e pôs-se em pé enquanto Dover abria a porta. Levantaram a caixa de papelão, tirando-a do almoxarifado e fechado imediatamente a porta.

Percorreram o hangar com a caixa — “Calma, devagar”, dizia Quem — e atravessaram o campo em direção ao avião em frente à pista seis. Membros faziam fila nas escadas rolantes e subiam.

— O que é isso? — perguntou um membro de túnica laranja com uma prancheta na mão, caminhando ao lado de ambos.

— Mandaram-nos trazer pra cá — explicou Quem.

— Karl? — chamou outro membro do lado oposto do que trazia a prancheta.

Ele parou e se virou.

— Que é?

Quem e Dover continuaram andando.

Trouxeram a caixa de papelão até a escada rolante da parte de trás do avião e largaram no chão. Quem colocou-se diante do controle, olhando o regulador da escada. Dover esgueirou-se pela fila e postou-se atrás do controle. Os membros passavam entre os dois, encostavam as pulseiras no controle que piscava a luz verde e depois pisavam nos degraus.

Um membro de túnica laranja chegou-se a Quem e disse;

— Eu estou nesta escada.

— Karl acabou de me pedir pra vir pra cá — respondeu Quem. — Mandaram-me lá de ’765 pra ajudar aqui.

— Que foi que houve? — perguntou o membro da prancheta, aproximando-se. — Por que vocês estão em três aqui?

— Eu pensei que estava nesta escada — disse o outro membro.

O ar estremeceu e uma forte explosão partiu dos hangares.

Uma coluna preta, ampla e cada vez maior, pairou sobre o pavilhão, misturada a rolos de fogo. Desabou uma chuva negra e amarelada sobre o telhado e o campo, e membros de túnica laranja saíram correndo dos hangares, disparando e depois diminuindo o passo para se virar e olhar a coluna de labaredas no telhado.

O membro da prancheta arregalou os olhos e precipitou- se naquela direção. O outro correu atrás.

Os membros da fila ficaram imóveis, olhando para o lado dos hangares. Quem e Dover pegaram alguns pelo braço e empurraram por diante.

— Não parem — diziam. — Continuem subindo, por favor. Não há perigo. O avião está esperando. Toquem no controle e pisem no degrau. Continuem subindo, por favor.

Encaminharam os membros a passar pelo controle e subir a escada. Um deles era Jack.

— Que beleza — comentou, olhando por cima do ombro de Quem ao fingir que tocava no controle.

Depois foi a vez de Ria, que parecia tão empolgada como na primeira vez que Quem a tinha visto. E Karl, amedrontado e lúgubre. E Buzz, todo sorridente. Dover pisou na escada logo em seguida. Quem confiou-lhe uma sacola embrulhada e virou-se para os outros membros da fila, os últimos sete ou oito, que estavam parados, contemplando os hangares.

— Continuem subindo, por favor — pediu. — O avião está esperando. Irmã!

— Não há motivo para pânico — disse uma voz de mulher pelo alto-falante. — Ocorreu um acidente nos hangares, mas já está tudo em ordem.

Quem apressou os membros a subir a escada.

— Toquem no controle e pisem no degrau — pediu. — O avião está esperando.

— Membros passageiros, queiram retomar seus lugares na fila — disse a voz. — Os membros que estiverem entrando a bordo dos aviões, continuem a fazê-lo. O serviço não sofrerá interrupção.

Quem fingiu tocar no controle e pisou no degrau atrás do último membro. Subindo a escada com a sacola embrulhada debaixo do braço, olhou de relance para os hangares: a coluna estava preta e enfumaçada mas não se via mais fogo. Virou-se de frente novamente, para as túnicas azul claro.

— Todos os funcionários, com exceção dos quarenta-e-sete e quarenta-e-nove, retomem às suas ocupações — disse a voz de mulher. — Todos os funcionários, com exceção dos quarenta-e-sete e quarenta-e-nove, retomem às suas ocupações. A situação já está normalizada.

Quem entrou no avião e a porta começou a baixar às suas costas.

— O serviço não sofrerá interrupção...

Os membros se achavam de pé, confusos, olhando os lugares tomados.

— Há passageiros extras devido ao feriado — explicou Quem. — Passem lá pra frente e peçam aos membros com filhos pra porem as crianças no colo. Não há outra solução.

Os membros avançaram pelo corredor, olhando para todos os lados do avião.

Os cinco ocupavam a última fileira, junto à dispensa. Dover retirou a sacola embrulhada do assento do corredor e Quem sentou-se.

— Nada mau — disse Dover.

— Ainda não levantamos vôo — retrucou Quem.

Havia burburinho a bordo: os recém-chegados comentavam a explosão com os primeiros que tinham embarcado, espalhando a notícia de fila em fila. O relógio marcava 10h6m, mas o avião não saía do mesmo lugar.

De 10h6m passou a 10h7m.

Os seis se entreolharam e depois viraram a cabeça para a frente, com jeito normal.

O avião se mexeu. Girou levemente para o lado e depois tomou impulso. Começou a acelerar. As luzes diminuíram e as telas de televisão se iluminaram.

Assistiram à Vida de Cristo e A Família no Trabalho, que já era bem velho. Tomaram chá e refrigerante, mas não conseguiram comer: não havia bolos a bordo, por causa da hora, e embora tivessem queijo embrulhados em papel laminado, podiam ser vistos pelos membros que saíssem da despensa. Quem e Dover suavam com as túnicas duplas. Karl cochilava a cada instante, e Ria e Buzz, que o ladeavam, cutucavam-no para mantê-lo acordado e atento.

A viagem demorou quarenta minutos.

Quando o sinal de localização indicou EUR00020, Quem e Dover levantaram-se do assento e ficaram em pé na despensa, comprimindo os botões e deixando escorrer chá e refrigerante pelo cano de esgoto. O avião pousou, deslizou e parou, e os membros começaram a fazer fila para descer. Depois que algumas dezenas passaram pela porta mais próxima, Quem e Dover tiraram os recipientes vazios da despensa, largaram no chão, levantaram as tampas, e Buzz colocou uma sacola embrulhada dentro de cada um deles. Depois Buzz, Karl, Ria e Jack se levantaram e os seis se dirigiram à saída. Quem apoiando um recipiente contra o peito, pediu:

— Querem dar licença, por favor?

Um membro de certa idade cedeu-lhe passagem. Os outros vieram logo atrás. Dover, carregando o segundo recipiente, disse ao membro idoso:

— É melhor esperar até que eu deixe a escada livre.

O membro concordou com um aceno de cabeça, um tanto atônito.

Ao pé da escada rolante Quem encostou o pulso no controle e imediatamente cobriu-o com o corpo, impedindo a visão dos membros na sala de espera, Buz, Karl, Ria e Jack passaram por ele, fingindo encostar a pulseira. Dover debruçou-se no controle e fez sinal com a cabeça para o membro que aguardava lá em cima.

Os quatro rumaram para a sala de espera e Quem e Dover atravessaram o campo até o portão, entrando na área de depósito. Largando os recipientes por terra, retiraram as sacolas e esguei- raram-se entre duas fileiras de engradados. Descobriram um espaço livre perto da parede, onde despiram as túnicas cor de laranja e descalçaram as biqueiras das sandálias.

Deixaram a área de depósito pela porta giratória, de sacolas no ombro. Os outros os esperavam ao redor do controle. Saíram aos pares do aeroporto — estava quase tão apinhado de gente quanto o de ’91770 — e reuniram-se de novo no posto de bicicletas.

Ao meio-dia achavam-se ao norte de ’00018. Comeram suas bolas de queijo entre a estrada de ciclistas e o Rio da Liberdade, num vale cercado de montanhas que se erguiam a impressionantes altitudes franjeadas de neve. Enquanto comiam, examinaram os mapas. Ao cair da noite, segundo seus cálculos, chegariam a um parque a poucos quilômetros da entrada do túnel.

Pouco depois das três horas, quando se aproximavam de ’00013. Quem notou uma ciclista adolescente que vinha na direção oposta, olhando para os rostos do grupo que seguia rumo ao norte — inclusive seu, ao se cruzarem — com uma expressão preocupada, de membro “querendo-ajudar”. Passado um instante, avistou outra ciclista olhando para eles do mesmo modo ligeiramente nervoso. Era uma mulher de idade que levava flores na cesta. Sorriu-lhe ao cruzar por ela e depois não se virou para trás. Nem a estrada, nem a rodovia paralela apresentavam sinais de anormalidade. A algumas centenas de metros mais adiante, ambas dobravam à direita e desapareciam nos fundos de uma usina elétrica.

Pedalou sobre a relva, parou e, olhando à retaguarda, acenou aos companheiros à medida que surgiam.

Empurraram as bicicletas bem para longe da estrada. Achavam-se no último trecho de vegetação antes da cidade: uma extensão de relva seguida por mesas de piquenique e um arvoredo que encobria uma pequena elevação no terreno.

— Parando de meia em meia hora jamais chegaremos — disse Ria.

Sentaram na relva.

— Acho que estão examinando as pulseiras logo adiante — disse Quem. — Telecomputadores e túnicas de cruz vermelha. Notei dois membros que vinham de lá com jeito de quem procura localizar alguém doente. Estavam com aquela cara de “será-que-posso-ajudar?”

— Que ódio — exclamou Buzz.

— Cristo e Wei, Quem — disse Jack, — se vamos começar a nos preocupar com as expressões faciais dos membros, seria preferível voltar logo pra casa.

Quem olhou para ele.

— Um exame de pulseiras não é tão implausível assim, não é? — retrucou. — A esta altura Uni já deve saber que a explosão em ’91770 não foi acidente, e é capaz de ter adivinhado exatamente o motivo. Este é o caminho mais curto de ’020 a Uni... e vamos chegar à primeira curva abrupta dentro de uns doze quilômetros.

— Está certo, então eles estão examinando as pulseiras — disse Jack. — Pra que ódio andamos armados?

— É — apoiou Ria.

— Se formos abrir caminho a bala, teremos todos os ciclistas no nosso encalço — retrucou Dover.

— Nesse caso, a gente atira uma bomba pra trás — sugeriu Jack. — Precisamos andar depressa, em vez de ficar de rabo sentado como se estivéssemos jogando xadrez. De qualquer modo esses pamonhas já são mesmo uns mortos-vivos: que diferença faz se a gente liquida meia dúzia? Nós vamos salvar todo o resto, não vamos?

— As armas e as bombas são pra quando for necessário — disse Quem, — e não pra quando se pode deixar de usá-las.

Virou-se para Dover.

— Dá uma volta, ali pelo mato — pediu-lhe, — e vê se enxerga o que está depois da curva.

— O.K. —concordou Dover.

Levantou-se, cruzou o gramado, juntou alguma coisa do chão, jogou dentro de uma cesta de lixo e penetrou no arvoredo. A túnica amarela se transformou em pontinhos esparsos desaparecendo elevação acima.

Deixaram de observá-lo. Quem tirou o mapa do bolso.

— Merda — disse Jack.

Quem não fez comentários. Examinava o mapa.

Buzz esfregou a perna e de repente afastou a mão.

Jack arrancava pedaços de relva do chão. Ria, sentada a seu lado, observava-o.

— Que é que você sugere — perguntou Jack, — se eles estiverem examinando as pulseiras?

Quem tirou os olhos de cima do mapa e, depois de uma pausa, respondeu:

— Recuaremos um pouco, atalhando pelo leste e fazendo uma volta.

Jack arrancou mais relva e depois arremessou longe.

— Vem — disse a Ria, pondo-se em pé.

Ela se levantou de um salto, os olhos brilhando.

— Aonde vocês vão? — perguntou Quem.

— Aonde tínhamos planejado — respondeu Jack, olhando-o com firmeza. — ao parque perto do túnel. Esperaremos por vocês até clarear o dia.

— Sentem-se, todos os dois — ordenou Karl.

— Vocês irão, mas junto conosco e quando eu achar que se deve ir — retrucou Quem. — Vocês concordaram com isso no começo.

— Mudei de ideia — disse Jack. — Pra mim é tão desagradável receber ordens de você quanto de Uni.

— Esses dois vão estragar tudo — disse Buzz.

— Vocês é que vão! — revidou Ria. — Parando, recuando, fazendo voltas... quando se quer fazer uma coisa a gente faz logo!

— Sentem aí e esperem até que Dover venha — ordenou Quem.

Jack sorriu.

— Vai-me obrigar? — perguntou. — Logo aqui, bem na frente da Família?

Fez sinal para Ria e os dois pegaram as bicicletas, firmando as sacolas nas cestas.

Quem se levantou e guardou o mapa no bolso.

— Não podemos dividir o grupo pelo meio deste jeito — disse. — Pare um pouco pra refletir, Jack. Como vamos saber se...

— Você é quem gosta de parar pra refletir — retrucou Jack. — Eu prefiro entrar logo no túnel.

E virou as costas, dando impulso à bicicleta. Ria empurrava a sua ao lado dele. Dirigiram-se à estrada.

Quem deu um passo atrás dos dois e estacou, de queixo tenso, os punhos cerrados. Sentiu vontade de gritar, de tirar o revólver do bolso e forçá-los a voltar — mas havia ciclistas passando, membros disseminados por perto, sobre a relva.

— Não há nada que você possa fazer, Quem — disse Karl.

— Os filhos da luta — exclamou Buzz.

À beira da estrada, Jack e Ria montaram nas bicicletas. Jack abanou para o grupo.

— Até logo! — gritou. — A gente se vê na sala da televisão!

Ria também abanou e os dois foram embora, pedalando.

Buzz e Karl abanaram para eles.

Quem arrancou bruscamente a sacola de sua bicicleta e colocou-a a tiracolo. Tirou outra e jogou-a ao colo de Buzz.

— Karl, você fique aqui — disse. — Venha comigo, Buzz.

Entrou no mato, dando-se conta de que estava caminhando depressa demais, encolerizado, comportando-se de modo anormal, mas pensou Lute-se! Subiu a elevação de terreno na direção tomada por Dover. Que fossem PRO INFERNO!

Buzz alcançou-o.

— Cristo e Wei — exclamou, — não jogue as sacolas assim!

— Que vão pro inferno! — respondeu Quem. — Percebi logo à primeira vista que aqueles dois não valiam nada! Mas fechei os olhos porque estava tão desesperado... diabos me levem! A culpa é minha. Exclusivamente minha.

— Talvez não haja exame de pulseiras e eles fiquem à nossa espera no parque — alvitrou Buzz.

Apareceram lampejos amarelos entre as árvores: Dover vinha descendo. Parou, enxergou-os e aproximou-se.

— Você tinha razão — disse. — Médicos na estrada, médicos no ar...

— Jack e Ria foram na frente — avisou Quem.

Dover arregalou os olhos.

— E você deixou?

— Por acaso podia impedir? — retrucou Quem. Pegou Dover pelo braço e virou-o de costas. — Mostre o caminho.

Dover conduziu-os rapidamente elevação acima pelo meio das árvores.

— Nunca que conseguirão passar — disse. — Tem um centro médico inteiro e barreiras pra impedir que as bicicletas dêem meia volta.

Emergiram do arvoredo, deparando com um declive de rochas. Buzz chegou por último, afobado.

— Abaixem-se, senão eles enxergam a gente — aconselhou Dover.

Deitaram-se de bruços e rastejaram declive acima. Lá do alto avistava-se a cidade, ’00013, com seus edifícios brancos recortados nítidos à luz do sol, a rede de monotrílhos entrelaçados e faiscantes, a orla das rodovias rutilante de carros. O rio descrevia uma curva e continuava rumo ao norte, azul e estreito, sulcado por vagarosas lanchas de turismo e uma longa fileira de barcas passando sob as pontes.

Ao pé do declive via-se uma meia concha de paredes de pedra, cujo pavimento formava uma praça semicircular onde se bifurcava a estrada de ciclistas: descia do norte, por trás da usina elétrica, desviando-se a certa altura para cruzar a rodovia de carros vertiginosos e penetrar na cidade por uma ponte. O outro braço cortava a praça na parte central, acompanhando a margem oriental do rio sinuoso até reencontrar a rodovia paralela. Antes de se bifurcar, uma série de barreiras dividia em três filas os ciclistas que se aproximavam, cada uma forçada a desfilar perante um grupo de membros de cruz vermelha na túnica, parados junto a ura pequeno controle de aspecto insólito. Três membros, munidos de equipamento contra a lei da gravidade, pairavam no ar, de rosto virado para baixo, sobre cada grupo. Dois carros e um helicóptero ocupavam o canto mais próximo da praça, enquanto outros membros de cruz vermelha na túnica, parados junto à fila de ciclistas que deixava a cidade, os apressavam a seguir viagem quando diminuíam a marcha para observar os que tocavam nos controles.

— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou Buzz.

Quem, de olho naquela cena, puxou o fecho da sacola.

— Eles devem estar nalgum ponto da fila — opinou.

Achou os binóculos, colocou-os em posição e acertou o foco.

— Estão, sim — confirmou Dover. — Está vendo as sacolas nas cestas?

Quem percorreu a fila e localizou Jack e Ria. Os dois pedalavam devagar, lado a lado, em pistas flanqueadas por barreiras de madeira. Jack olhava em frente e movia os lábios. Ria acenava com a cabeça. Guiavam apenas com a mão esquerda. Mantinham a direita no bolso.

Quem passou os binóculos a Dover e virou-se para a sua sacola.

— Temos que ajudá-los a passar pelo controle — disse. — Se conseguirem alcançar a ponte, talvez possam sumir na cidade.

— Eles vão começar a atirar quando chegarem aos controles — opinou Dover.

Quem entregou a Buzz uma bomba de alça azul.

— Puxe o esparadrapo e atire quando eu mandar — disse,

— Faça pontaria contra o helicóptero: dois coelhos de uma só cajadada.

— Atire antes que comecem o tiroteio — recomendou Dover.

Quem pegou de novo os binóculos e procurou Jack e Ria até encontrá-los outra vez. Esquadrinhou as filas na frente deles: havia cerca de quinze bicicletas entre os dois e os grupos nos controles.

— Eles têm balas ou raios laser? — perguntou Dover.

— Balas — respondeu Quem. — Não se preocupe, eu calculo direito o tempo.

Observou as filas de bicicletas avançando lentamente, graduando-se a velocidade.

— De um jeito ou doutro, provavelmente vão começar a disparar disse Buzz. — Só pra se divertir. Você reparou no olhar de Ria?

— Prepare-se — pediu Quem. Esperou até que Jack e Ria ficassem a cinco bicicletas de distância dos controles. — Agora — disse.

Buzz puxou a alça e atirou a bomba furtivamente de lado. Ela bateu numa pedra, saiu rolando caiu de uma saliência e foi pousar perto do lado do helicóptero.

— Volte pra cá — mandou Quem.

Espiou outra vez pelos binóculos. Jack e Ria estavam a duas bicicletas dos controles, com ar tenso mas confiante. Recuou de novo entre Buzze Dover.

— Parece até que estão indo pra uma festa — comentou.

Esperaram, de rosto colado às pedras. A bomba explodiu e o declive estremeceu. Lá embaixo saltou metal para tudo quanto foi lado. Fez-se silêncio e espalhou-se pelo ar o cheiro acre do explosivo. Depois ouviram-se vozes, primeiro em murmúrio e por fim mais alto.

— Aqueles dois! —gritou alguém.

Debruçaram-se à beira do declive..

Duas bicicletas corriam rumo à ponte. Todas as outras estavam imóveis, os ciclistas apoiando um pé no chão, de frente para o helicóptero — emborcado e fumegante — e agora voltados para as duas bicicletas que ganhavam velocidade e para os membros de cruz vermelha na túnica que corriam atrás. Os três membros no ar mudaram de direção e voaram para a ponte.

Quem levantou os binóculos — e viu as costas curvadas de Ria e Jack pouco mais adiante. Pedalavam velozmente em terreno absolutamente plano, parecendo encontrar dificuldade em afastar-se com maior rapidez. Formou-se um nevoeiro brilhante, cobrindo-os parcialmente.

Ao alto, pairava um membro apontado para baixo um cilindro que expelia denso gás branco.

— Ele conseguiu pegá-los! — exclamou Dover.

Ria parou, montada na bicicleta. Jack olhou para ela por cima do ombro.

— Ria, Jack não — retrucou Quem.

Jack parou e virou-se para o alto, de arma em punho. Desfechou dois tiros.

O membro no ar claudicou (trek e treck, soaram os tiros) deixando cair das mãos o cilindro que expelia gás branco.

Para fugir da ponte os membros pedalavam em ambas as direções, correndo de olhos arregalados sobre as calçadas laterais.

Ria sentou-se ao lado da bicicleta. Virou a cabeça: tinha o rosto úmido e brilhante. Parecia aflita. Túnicas com cruzes vermelhas toldaram a visão que tinham dela.

Jack olhava fixamente, de arma em punho. Sua boca abriu-se ao máximo, redonda, fechou-se e tomou a se abrir no meio do brilhante nevoeiro. (Ria!"— ouviu Quem, baixo e distante.) Jack ergueu o revólver (Ria!) e disparou três vezes.

Outro membro pairando no ar (trek, trek, trek) claudicou e deixou cair o cilindro. A calçada embaixo começou a se tingir de vermelho.

Quem tirou os binóculos.

— A máscara contra gases! — sussurrou Buzz, também de binóculos.

Dover escondera o rosto entre os braços.

Quem soergueu o corpo e olhou sem os binóculos: na estreita ponte deserta um ciclista de azul claro avançava vacilante ao longe, já na metade, perseguido por um membro no ar a curta distância.

Os outros dois, mortos ou moribundos, rodopiavam lentamente no ar, à deriva. Os de cruz vermelha na túnica tinham formado agora uma fila da largura da ponte, um deles ajudando a levantar uma mulher de amarelo ao lado de uma bicicleta caída, tomando-a pelos ombros e levando-a de volta à praça.

O ciclista parou e olhou a fila de membros de cruz vermelha na túnica, depois virou-se e curvou-se sobre a parte da frente da bicicleta. O membro no ar aproximou-se rápido e fez pontaria com a arma: uma grossa pluma branca emergiu dela e envolveu o ciclista.

Quem pôs os binóculos.

Jack, com o rosto coberto pela máscara cinzenta contra gases, apoiado do lado esquerdo no meio do nevoeiro brilhante, colocava uma bomba na ponte. Depois saiu pedalando, derrapou, escorregou e caiu. Ergueu-se sobre um braço, com a bicicleta imóvel entre as pernas. A sacola, arremessada fora da cesta, estava ao lado da bomba.

— Oh Cristo e Wei — exclamou Buzz.

Quem tirou os binóculos, olhou para a ponte e depois começou a enrolar, bem firme, pelo meio, a alça de enfiar no pescoço.

— Quantos? — perguntou Dover, fitando-o.

— Três — respondeu Quem.

A explosão foi luminosa, violenta e demorada. Quem viu Ria afastando-se da ponte, conduzida pelo membro de cruz vermelha na túnica. Ela não se virou para trás.

Dover, agora ajoelhado e contemplando a cena, voltou-se para Quem.

—A sacola inteira dele — explicou Quem. — Ele estava bem ao lado.

Guardou os binóculos na sacola e puxou o fecho.

— Temos de dar o fora daqui. Guarde os seus, Buzz. Venham.

Pretendia não olhar mais para baixo, mas antes de abandonar o declive não resistiu e olhou.

O meio da ponte estava negro e entulhado de pedras. As partes laterais tinham desmoronado. Uma roda de bicicleta jazia no chão fora da área enegrecida, além de outras coisas menores, rumo às quais os membros de cruz vermelha na túnica adiantavam-se lentamente. Farrapos azuis claros espalhavam-se sobre a ponte e flutuavam nas águas do rio.


Reuniram-se de novo a Karl e contaram-lhe o que tinha acontecido. Os quatro montaram nas bicicletas e pedalaram alguns quilômetros em direção ao sul, entrando no parque. Descobriram um riacho, saciaram a sede e se lavaram.

— E agora, vamos voltar? — perguntou Dover.

— Não — disse Quem, — todos não.

Olharam para ele.

— Eu disse que voltaríamos — explicou, — porque se alguém fosse capturado, eu queria que ele acreditasse e confessasse isso quando o interrogassem. Como provavelmente Ria está fazendo neste momento.

Pegou o cigarro que passava de mão em mão, malgrado o risco do cheiro do fumo chegar até longe, deu uma tragada e entregou-o a Buzz.

— Um de nós vai voltar — continuou. — Pelo menos espero que seja apenas um... pra soltar uma bomba ou duas daqui até a costa, tomar a lancha e dar a impressão de que nos mantivemos fiéis ao plano. Os outros se esconderão no parque, procurando uma maneira de se aproximar o mais possível de ’001 e localizar o túnel dentro de duas semanas no máximo.

— Boa — apoiou Dover.

— Nunca vi cabimento numa desistência tão fácil assim — concordou Buzz.

— Será que dá pra fazer tudo com três? — perguntou

Karl.

— A gente só descobre tentando — retrucou Quem. — E em seis, será que daria? Talvez pudesse ser feito por um e talvez nem por doze. Mas depois de chegar até aqui, raios me partam se não hei de descobrir.

— Conte comigo — disse Karl. — Perguntei por perguntar.

— Comigo também — disse Buzz.

— E comigo idem — disse Dover.

— Ótimo — exclamou Quem. — Três têm melhores possibilidades do que um, quanto a isso eu tenho certeza. Karl, quem vai voltar é você.

Karl olhou para ele.

— Por que logo eu? — perguntou.

— Porque você tem quarenta e três anos. Desculpe, irmão, mas não me ocorre nenhum outro critério válido pra decisão.

— Quem — interveio Buzz, — creio que é melhor lhe avisar: a minha perna está doendo muito há várias horas. Pra mim, tanto faz voltar como continuar, mas... bem, achei que você devia saber.

Karl passou o cigarro a Quem. Estava reduzido a uns dois centímetros. Esmigalhou-o no chão.

— Está certo, Buzz, então é melhor você voltar — disse.

— Mas antes faça a barba. Convém que todos se barbeiem, pra eventualidade de se encontrar alguém.

Barbearam-se e depois Quem e Buzz traçaram um caminho para Buzz chegar ao lado mais perto da costa, a cerca de trezentos quilômetros de distância. Ele jogaria uma bomba no aeroporto em ’00015 e outra quando se encontrasse já próximo ao mar. Guardou mais duas, para qualquer imprevisto, e entregou as outras a Quem.

— Tendo sorte, você estará numa lancha amanhã de noite — disse Quem. — Tome cuidado pra que ninguém veja você sair nela. Diga a Júlia, e a Lilás também, que ficaremos escondidos por duas semanas no mínimo, talvez mais.

Buzz apertou a mão de todos, desejou-lhes felicidades, tomou a bicicleta e partiu.

— Vamos ficar aqui mesmo provisoriamente, nos revezando pra dormir um pouco — disse Quem. — Hoje à noite iremos buscar bolos e túnicas na cidade.

— Bolos — suspirou Karl.

— Serão duas semanas bem longas — comentou Dover.

— Não serão, não — retrucou Quem. — Isso foi para o caso que ele fosse capturado. Seguiremos com o plano dentro de quatro ou cinco dias.

Cristo e Wei — exclamou Karl, sorrindo. — Como você é precavido, hem?

 


                                       CONTINUA