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ESTE MUNDO PERFEITO / Iran Levin
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Foram morar numa cidade chamada Pollensa, ocupando metade de um quarto de um prédio em ruínas, caindo aos pedaços, da Vila-Ferrinho onde faltava luz a toda hora e a água era encardida. Tinham cobertor, mesa, uma cadeira, e uma caixa para roupas que eles utilizavam como segunda cadeira. As pessoas da outra metade do quarto, os Newmans — um casal quarentão com a filha de nove anos — emprestavam-lhes o fogão, a televisão e uma prateleira do refrigerador onde guardavam a comida. O quarto era dos Newmans. Quem e Lilás pagavam quatro dólares por semana de aluguel.
Ganhavam, entre ambos, nove dólares e vinte cents por semana. Quem trabalhava em mina de ferro, carregando minério em carrinhos com uma turma de imigrantes ao longo de um carregador automático que jazia imóvel e empoeirado, sem possibilidade de conserto. Lilás trabalhava numa fábrica de roupas, pregando colchetes em camisas. Lá também havia outra máquina estragada, grossa de penugem.
Os nove dólares e vinte cents tinham que dar para o aluguel semanal, a comida, as passagens, alguns cigarros e um jornal chamado Imigrante de Liberdade. Economizavam cinquenta cents para a compra de roupa e eventuais emergências, pagando outros cinquenta para o Socorro aos Imigrantes, como amortização parcial do empréstimo de vinte dólares recebidos na chegada. Comiam pão, peixe, batatas e figos. No começo esses alimentos lhes causaram cãibras intestinais e prisão de ventre, mas logo se habituaram, passando a se deliciar com os variados sabores e consistências. Aguardavam a hora da refeição com ansiedade, embora se aborrecessem com o preparo da comida e a limpeza posterior.
Seus corpos sofreram transformações. Lilás sangrou alguns dias, o que os Newmans asseguraram que era normal em mulheres que não faziam tratamento, e ficou mais roliça e elástica à medida que o cabelo crescia. Quem enrijeceu e se fortificou com o trabalho na mina. A barba cresceu preta e parelha, e ele a aparava uma vez por semana com a tesoura dos Newmans.
Receberam nomes, dados por um funcionário do Serviço de Imigração. Quem passou a chamar-se Eiko Newmark, e Lilás, Grace Newbridge. Mais tarde, quando casaram — sem fazer pedido a Uni, mas com formulários, emolumentos e promessas a Deus — o de Lilás foi mudado para Grace Newmark. Mas entre ambos continuaram a tratar-se por Quem e Lilás.
Acostumaram-se a lidar com moedas e negociar com lojistas, e a andar no monotrilho aéreo de Pollensa, desmantelado e sempre lotado. Aprenderam a esquivar-se dos habitantes locais sem ofendê-los. Decoraram o Voto de Lealdade e prestaram juramento à bandeira vermelha-e-amarela de Liberdade. Batiam às portas antes de abri-las, diziam quarta-feira e não dia-de-Wood, março em vez de marx. Lembravam-se continuamente que lutar e odiar eram palavras admissíveis, ao passo que foder era “palavrão”.
Hassan Newman bebia muito uísque. Logo depois de chegar a casa do trabalho — na maior fábrica de móveis da ilha — começava a fazer barulho brincando com Gigi, a filha, quase derrubando a cortina que dividia o quarto, com uma garrafa presa entre os três dedos restantes da mão aleijada pela serra.
— Vamos, seus ferrinhos tristes — dizia sempre, — onde ódio estão os copos de vocês? Alegria, animem-se um pouco.
Quem e Lilás bebiam junto com ele algumas vezes, porém achavam que o uísque os deixava confusos e canhestros, e geralmente rejeitavam o convite.
— Ora, vamos — disse ele uma noite. — Eu sei que sou o senhorio, mas não sou propriamente um safado, sou? Então o que é? Vocês pensam que eu espero que vocês retri... retribuam? Eu sei que vocês não botam dinheiro fora.
— Não se trata disso — protestou Quem.
— Então o que é? — insistiu Hassan, vacilando e equilibrando-se nos pés.
Quem ficou calado um instante e depois respondeu:
— Bem, qual é a vantagem em fugir dos tratamentos pra depois se embrutecer com uísque? Desse modo tanto faz viver aqui como no meio da Família.
— Ah — exclamou Hassan — Ah claro, agora entendi — olhou zangado para os dois: era um sujeito enorme, de barba crespa e olhos injetados de sangue. — Vocês vão ver. Esperem até conhecer melhor isto aqui. Esperem só até conhecer melhor isto aqui, é só o que eu digo.
E virou as costas, tateando em busca da abertura da cortina. Ainda ouviram os seus resmungos, enquanto a esposa, Ria, tentava acalmá-lo.
Quase todos os moradores do prédio, pelo visto, bebiam tanto quanto Hassan. Retumbavam gritos de alegria ou fúria pelas paredes a qualquer hora da noite. O elevador e os corredores recendiam a uísque, a peixe e a perfumes suaves que eles usavam para disfarçar o mau cheiro do uísque e do peixe.
Todas as noites, praticamente, depois que terminavam de fazer a limpeza necessária, Quem e Lilás subiam ao terraço para apanhar um pouco de ar puro ou então sentavam à mesa para ler o Imigrante ou livros que tinham encontrado no monotrilho ou tomado emprestado a uma pequena biblioteca do Socorro aos Imigrantes. Às vezes assistiam à televisão em companhia dos Newmans — novelas sobre desentendimentos idiotas entre famílias locais, com frequentes intervalos para anúncios de diferentes marcas de cigarros e desinfetantes. Eventualmente havia discursos, pronunciados pelo General Costanza ou o chefe da Igreja, o Papa Clemente — discursos inquietantes a respeito de racionamentos de víveres, moradia e recursos, cuja culpa recaía exclusivamente sobre os imigrantes. Hassan, que o uísque deixava belicoso, em geral desligava o aparelho antes que os oradores finalizassem. Ao contrário da televisão da Família, em Liberdade podia-se ligá-la e desligá-la à vontade.
Um dia na mina, perto do fim da pausa de quinze minutos para almoço, Quem aproximou-se do carregador automático e pôs-se a examiná-lo, imaginando se de fato não teria conserto ou se não seria possível substituir alguma peça, que não possuísse sobressalente, por outro expediente qualquer. O ilhéu encarregado da turma de trabalhadores chegou perto e perguntou-lhe o que estava fazendo ali. Quem explicou, tomando cuidado para não faltar com o respeito, mas o sujeito ficou furioso.
— Vocês, seus ferrinhos fodidos, pensam todos que são uns sabidos de merda! — explodiu, com a mão no cabo do revólver. — Volte pro seu lugar e fique lá! Se não tem outra coisa no que pensar, trate de dar um jeito de comer menos!
Nem todos os ilhéus eram tão ruins assim. O proprietário do prédio em que moravam simpatizou com Quem e Lilás e prometeu alugar-lhes a cinco dólares por semana o primeiro quarto que desocupasse.
— Vocês não são como essa gente — disse ele, — que bebe, anda nua em pêlo pelos corredores... prefiro ganhar um pouco menos e ficar com vocês.
Quem olhou para ele e respondeu:
— Há motivo prós imigrantes beberem, sabe?
— Eu sei, eu sei — disse o proprietário. — Sou o primeiro a reconhecer: nós tratamos vocês de uma maneira incrível. Mas seja como for, vocês dois bebem? Andam por aí nus em pêlo?
— Obrigada, Mr. Corsham. Nós lhe ficaremos gratos se nos puder amimar um quarto.
Pegaram resfriados e a gripe. Lilás perdeu o emprego na fábrica de roupas, mas conseguiu outro melhor na cozinha de um restaurante frequentado por ilhéus, cuja distância dava para percorrer a pé desde o prédio. Uma noite, dois guardas apareceram no quarto, verificando as carteiras de identidade e à procura de armas. Hassan resmungou qualquer coisa ao mostrar sua carteira e o derrubaram a pauladas. Espetaram facas nos colchões e quebraram alguns pratos.
Lilás não teve “regras”, seus poucos dias de hemorragia vaginal durante o mês, o que indicava que ficara grávida.
Uma noite no terraço, Quem deteve-se a fumar e contemplar o céu do lado nordeste, onde pairava um fosco clarão alaranjado proveniente do complexo de produção de cobre em EUR91766. Lilás, que estava recolhendo roupa do arame, aproximou-se e abraçou-o pela cintura. Beijou-lhe o rosto e encostou-se nele.
— A coisa não está tão ruim assim — disse ela. — Já economizamos doze dólares, vamos ter quarto próprio qualquer dia destes e antes que você se dê conta teremos um bebê.
— Um ferrinho.
— Não — retrucou Lilás. Um bebê.
— Isto aqui é uma porcaria — disse Quem. — Uma droga. Eu não aguento mais.
— Não há outra alternativa. A gente tem que se conformar. Quem ficou calado. Continuou contemplando o clarão alaranjado no céu.
O Imigrante de Liberdade publicava artigos semanais sobre cantores e atletas imigrantes e, de vez em quando, cientistas, que ganhavam quarenta ou cinquenta dólares por semana e residiam em bons apartamentos, convivendo com ilhéus influentes e esclarecidos, e que alimentavam esperanças de um incremento de relações mais justas entre os dois grupos. Quem lia esses artigos com desdém — o objetivo dos donos do jornal, no seu entender, era acalmar e apaziguar os imigrantes — mas Lilás os aceitava ao pé da letra, como prova de que a própria sorte de ambos acabaria melhorando.
Uma semana, em outubro, quando já fazia pouco mais de seis meses que estavam em Liberdade, saiu um artigo sobre um pintor chamado Morgan Newgate, que tinha vindo de Eur há oito anos e morava num apartamento de quatro peças em Nova Madri. Seus quadros — um dos quais, uma cena da Crucificação, acabava de ser presenteado ao Papa Clemente — chegavam a render-lhe cem dólares cada um. Assinava-os com um A, dizia o jornal, porque seu apelido era Ashi.
— Cristo e Wei — exclamou Quem.
— Que foi? — perguntou Lilás.
— Eu estive na academia com esse Morgan Newgate — disse Quem, mostrando-lhe o artigo. — Éramos bons amigos. O nome dele era Karl. Você se lembra daquele quadro do cavalo que eu tinha lá em Ind?
— Não — respondeu ela, lendo.
— Pois foi ele quem desenhou. Ele assinava tudo com um A no meio de um círculo.
É mesmo, lembrou-se, parecia que Ashi era o nome que Karl havia mencionado. Cristo e Wei, então ele também fugira! Tinha “fugido”, se se podia dizer assim, para Liberdade, para o pavilhão de isolamento de Uni. Pelo menos estava fazendo o que sempre queria fazer: para ele Liberdade realmente significava liberdade.
— Você devia telefonar-lhe — sugeriu Lilás, continuando a ler.
— E vou mesmo — disse Quem.
Mas, pensando bem... Qual seria a vantagem, sinceramente, em telefonar a Morgan Newgate, que pintava Crucificações para o Papa e garantia a seus colegas imigrantes que a situação melhorava dia a dia? Talvez Karl não tivesse dito aquilo. Talvez o Imigrante estivesse mentindo.
— Não fique só na intenção — insistiu Lilás. — Ele provavelmente o ajudará a conseguir um bom emprego.
— É — concordou Quem, — provavelmente.
Ela olhou para ele.
— O que é que há? — perguntou. — Você não quer um bom emprego?
— Vou ligar pra ele amanhã, no caminho pro trabalho.
Porém não ligou. Lançou-se com redobrada fúria ao trabalho na mina, escavando minério com a pá. Lutem-se todos, pensou: os ferrinhos que bebem, os ferrinhos que acham que as coisas estão melhorando, os safados, os pamonhas — abaixo Uni.
No domingo seguinte, de manhã, Lilás foi junto com ele até um prédio que ficava a dois quarteirões de distância, onde havia um telefone no saguão, e esperou enquanto Quem folheava a lista de assinantes esfrangalhada. Morgan e Newgate eram nomes comuns entre os imigrantes, mas poucos possuíam telefone. Encontrou apenas um Newgate, Morgan e mesmo assim em Nova Madri.
Quem colocou três fichas no aparelho e disse o número. A tela estava quebrada, mas não fazia a mínima diferença, pois os telefones de Liberdade de toda maneira não transmitiam mais imagens.
Uma mulher atendeu, e quando lhe perguntou se Morgan Newgate estava, ela respondeu que sim, e depois a linha ficou muda. O silêncio se prolongava e Lilás, parada a poucos metros de distância, ao lado de um cartaz de Sani-Spray, impacientou- se e veio ver o que havia.
— Ele não está em casa? — perguntou num cochicho.
— Alô? — atendeu uma voz masculina.
—·Quem fala? É Norman Newgate? — perguntou Quem.
— É. E aí?
— Aqui é Quem. Li RM, da Academia das Ciências Genéticas.
Houve um silêncio e depois:
— Meu Deus! — exclamou a voz. — Li! Você conseguiu blocos e carvão pra mim!
— Sim — confirmou Quem. — E contei ao meu conselheiro que você andava doente e precisava de ajuda.
Karl deu uma risada.
— Isso mesmo, não foi, seu cretino! Mas que formidável! Quando é que você chegou?
— Há uns seis meses, mais ou menos.
— Você está em Nova Madri?
— Em Pollensa.
— Que anda fazendo?
— Trabalhando numa mina.
— Cristo, que espeto! — exclamou Karl. E depois de uma pausa: — Isto aqui é um inferno, não é?
— Se é — respondeu Quem, pensando: Ele usa as palavras deles. Inferno. Meu Deus. Aposto até que ele reza.
— Pena que estes telefones não estejam funcionando direito pra eu poder enxergar você — disse Karl.
De repente Quem teve vergonha de sua hostilidade. Explicou pra Karl quem era Lilás e que estava grávida. Karl disse que tinha casado na Família, mas viajara sozinho. Não aceitou os cumprimentos de Quem pelo seu sucesso.
— As coisas que eu vendo são detestáveis. Criancinhas safadas engraçadinhas. Mas sempre dá pra pintar o que eu gosto umas três vezes por semana, de modo que não me posso queixar. Escuta, Li... não, como é mesmo? Quem? Quem, olhe, a gente precisa se encontrar. Eu tenho um motociclo: irei até aí qualquer noite destas. Não, espera. Você e a sua mulher têm alguma coisa pra fazer domingo que vem?
Lilás olhou ansiosa para ele.
— Acho que não — respondeu Quem. — Não tenho certeza.
— Vou receber uns amigos — disse Karl. — Venham vocês também, ‘tá bom? Lá pelas seis horas.
Lilás acenou com a cabeça.
— Vamos ver — retrucou Quem. — Provavelmente iremos.
— Façam força — insistiu Karl, dando-lhe o endereço.
— Que bom que você veio pra cá. Apesar dos pesares, sempre é melhor do que lá, não é?
— Um pouco.
— Conto com vocês domingo que vem. Até logo, irmão.
— Até logo — despediu-se Quem e desligou.
— A gente vai, não vai? — perguntou Lilás .
— Você faz ideia do preço que custa a passagem?
— Ah, Quem...
— Está certo. Está certo, a gente vai. Mas não pretendo aceitar nenhum favor dele. E não quero que você peça, tampouco. Não se esqueça.
Lilás passou as noites da semana inteira a reformar as melhores roupas que possuíam. Cortou as mangas poídas de um vestido verde e remendou uma perna da calça para que não se notasse o rasgão.
O prédio, na periferia da Vila-Ferrinho em Nova Madri, não oferecia piores condições do que a maioria dos edifícios habitados por ilhéus. O saguão fora varrido, recendendo levemente a uísque, peixe e perfume, e o elevador funcionava bem.
Incrustado em reboco novo, junto à porta de Karl, havia um botão: uma campainha para chamar. Quem apertou-a. Ficou todo empertigado e Lilás apoiou-se a seu braço.
— Quem é? — perguntou uma voz masculina.
— Quem Newmark — respondeu.
Ouviu-se o barulho da chave, a porta se abriu e Karl — um Karl de trinta e cinco anos, de barba, com os olhos penetrantes do Karl de antigamente —, sorrindo, apertou a mão de Quem e exclamou:
— Li! Pensei que você não vinha mais!
— É que encontramos uns safados gozadores — explicou Quem.
— Ai, Cristo — gemeu Karl, fazendo-os entrar.
Passou a chave na porta. Quem apresentou Lilás.
— Como vai, Mr. Newgate? — cumprimentou ela.
E Karl, aceitando a mão que lhe era estendida e olhando-a no rosto, respondeu.
— Chame-me de Ashi. Bem, e você, Lilás?
— Muito bem, Ashi.
Voltando-se para Quem, Karl perguntou:
— Eles machucaram vocês?
— Não. Só disseram “recitem o Voto” e bobagens desse gênero.
— Canalhas — disse Karl. — Entrem, vou-lhes servir um drinque e vocês esquecerão o incidente.
Tomou os dois pelo braço e conduziu-os por um corredor estreito, cujas paredes estavam atulhadas de quadros.
— Você está com ótimo aspeto, Quem.
— Você também. Ashi.
Sorriram um para o outro.
— Dezessete anos, irmão — suspirou Karl-Ashi.
Havia homens e mulheres sentados numa sala de paredes marrons, cheia de fumaça, umas dez ou doze pessoas conversando, de cigarros e copos na mão.
— Este é Quem e esta é Lilás — apresentou Karl. — Quem e eu cursamos juntos a Academia: os dois piores alunos de genética da Família.
Os homens e as mulheres sorriram e Karl começou a apresentá-los, um a um, pelos respetivos nomes:
— Vito, Sunny, Ria, Lars...
Na maioria eram imigrantes, homens barbudos e mulheres de cabelos compridos, com os olhos e a tez típicos da Família. Havia dois ilhéus: uma mulher de pele clara, empertigada, de nariz aquilino, que devia andar beirando os cinquenta anos e usava uma cruz de ouro pendurada no traje preto que cobria o seu corpo incrivelmente magro (“Júlia”, disse Karl; ela sorriu- lhe com os lábios fechados); e outra, mais moça, gorda e ruiva, de vestido justo, recamado de contas prateadas. Alguns dos presentes podiam ser tanto imigrantes como ilhéus: um homem imberbe, de olhos cinzentos, chamado Beto, uma loura, e um rapaz de olhos azuis.
— Uísque ou vinho? — ofereceu Karl. — Lilás?
— Vinho, por favor.
Acompanharam-no a uma pequena mesa arrumada com garrafas e copos, pratos contendo uma ou duas fatias de queijo e carne, e maços de cigarros e fósforos. Um pesa-papéis de lembrança cobria uma pilha de guardanapos. Quem pegou-o e examinou-o: era de AUS21989,
— Ficou com saudade? — perguntou Karl, servindo o vinho.
Quem mostrou-o para Lilás e ela sorriu.
— Não muito — disse, repondo-o no lugar.
— Quem?
— Uísque.
A ruiva do vestido prateado se aproximou, sorridente, com o copo vazio na mão coberta de anéis.
— Você é uma verdadeira beleza — disse para Lilás. — Sinceramente — virou-se para Quem, — eu acho vocês todos muito bonitos. A Família pode não ter liberdade, alguma; mas está muito mais adiantada do que nós em matéria de estética. Eu daria tudo pra ser magra, morena e ter olhos amendoados.
E continuou por aí afora — mencionando a atitude sensata da Família em questões de sexo — até que Quem percebeu que estava de copo na mão e Karl e Lilás conversavam com outras pessoas enquanto a mulher não o largava. Traços pretos de pintura delineavam e repuxavam-lhe os olhos.
— Vocês são muito mais abertos do que nós — disse ela. — Sexualmente, digo. Aproveitam mais.
Uma imigrante se aproximou.
— Heinz não vai vir, Marge? — perguntou.
— Ele está em Palma — respondeu a gorda, voltando-se para ela. — Uma ala do hotel desabou.
— Com licença, sim? — desculpou-se Quem, afastando-se por um lado.
Dirigiu-se à outra extremidade da sala, acenando com a cabeça às pessoas sentadas ali, e bebeu um pouco do uísque, admirando um quadro na parede — placas marrons e vermelhas contra o fundo branco. O uísque tinha melhor sabor que o de Hassan. Era menos amargo e ardente, mais leve e mais agradável ao paladar. O quadro com as placas marrons e vermelhas não passava da planta de apartamento, interessante de olhar um momento, mas sem a menor relação com a vida. O A no meio de um círculo de Karl (não, de Ashi!) ocupava um dos cantos inferiores. Quem ficou a imaginar se aquilo seria um dos quadros ruins que ele vendia ou, já que estava pendurado ali na sala de estar, se fazia parte dos que “gostava de pintar” a que se referira com evidente satisfação. Será que não se dedicava mais aos belos homens e mulheres sem pulseiras que costumava desenhar na época da Academia?
Bebeu mais um pouco de uísque e virou-se para as pessoas sentadas por perto: três homens e uma mulher, todos imigrantes. Conversavam sobre móveis. Prestou atenção durante alguns minutos, bebeu, e afastou-se.
Lilás estava sentada ao lado da mulher magra de nariz aquilino — Júlia. Fumavam e palestravam, ou melhor, Júlia falava e Lilás ouvia.
Quem voltou à mesa e serviu-se de nova dose de uísque. Acendeu um cigarro.
Um homem chamado Lars apresentou-se a ele. Dirigia uma escola para filhos de imigrantes em Nova Madri. Fora trazido para Liberdade quando era pequeno e fazia quarenta e dois anos que morava na ilha.
Ashi se aproximou, segurando Lilás pela mão.
— Quem, venha conhecer o meu estúdio — convidou.
Levou-os da sala pelo corredor atulhado de quadros.
— Sabe com quem você estava conversando? — perguntou a Lilás.
— Júlia?
— Júlia Costanza — frisou. — Ela é prima do General. E o despreza. Foi uma das fundadoras do Socorro aos Imigrantes.
O estúdio era amplo e profusamente iluminado. Um retrato ainda incompleto de uma ilhoa de gato no colo estava pousado sobre um cavalete. Noutro, havia uma tela pintada com placas azuis e verdes. Outros quadros se achavam encostados às paredes: placas marrons e alaranjadas, azuis e roxas, roxas e pretas, alaranjadas e vermelhas..
Ele explicou o que estava tentando fazer, ressaltando equilíbrios, e traços opostos, e sutis nuanças de colorido.
Quem perdeu o interesse, concentrando-se no uísque.
— Ouçam, seus ferrinhos! — disse ele, bastante alto para que todos pudessem escutar. — Parem de conversar sobre móveis um minuto e ouçam! Vocês sabem o que precisamos fazer? Lutar contra Uni! Não pensem que estou dizendo palavrão, me refiro a lutar literalmente. Lutar contra Uni! Porque ele é o culpado... por tudo! Pelos safados, que são o que são porque não têm comida nem espaço suficientes ou ligação com qualquer mundo exterior, pelos pamonhas, que são o que são porque vivem à custa de tratamentos de LKD e ficam tranquilizados desse modo, e por nós, que somos o que nós somos porque Uni nos pôs aqui pra se ver livre de nós! É Uni quem tem a culpa... ele congelou o mundo para que não houvesse mais mudanças... e nós temos que lutar contra ele! Temos que nos levantar dos nossos estúpidos traseiros surrados e LUTAR CONTRA ELE!
Ashi, sorrindo, esbofeteou-lhe o rosto.
— Ei, irmão — disse, — você passou um pouco da conta, sabe disso? Ei, Quem, você está me ouvindo? ·
Lógico que ele tinha passado um pouco da conta: lógico, lógico, lógico. Mas em vez de se embrutecer, libertara-se. A bebida lhe abrira tudo o que sufocara no íntimo durante meses a fio. Uísque era ótimo! Uísque era formidável!
Deteve a mão de Ashi e não se deixou esbofetear mais.
— Eu estou bem, Ashi. Sei o que estou dizendo.
E para os outros, sentados, vacilantes, sorridentes:
— Não podemos simplesmente desistir e aceitar a situação, nos conformando com esta prisão! Ashi, antigamente você desenhava membros sem pulseiras: eram tão bonitos! E agora você só pinta cores, placas de cor!
Tentaram obrigá-lo a sentar-se, Ashi de um lado, Lilás do outro, nervosa e encabulada.
— Você também, meu amor — continuou. — Você aceita tudo, está-se conformando.
Deixou-se sentar, não era fácil permanecer de pé e sentado era melhor, mais confortável, mais amplo.
— Temos que lutar em vez de nos conformar — repetiu. Lutar, lutar, lutar. Temos que lutar — disse ao homem imberbe de olhos cinzentos, instalado a seu lado.
— Por Deus, você tem razão! — concordou o homem. — Estou inteiramente de acordo! Lutar contra Uni! Como faremos? Sair por aí de lancha, levando junto o Exército por precaução? Mas talvez o mar seja controlado por satélite e os médicos estejam esperando com nuvens de LPK. Tenho uma ideia melhor: conseguiremos um avião... soube que existe um na ilha que voa de fato... e depois...
— Não mexe com ele, Bob — disse alguém. — Ele mal chegou à ilha.
— Nota-se — retrucou o homem, pondo-se em pé.
— Há uma solução — insistiu Quem. — Tem de haver. Há uma solução.
Pensou no mar, com a ilha no meio, mas não conseguia raciocinar com a necessária clareza. Lilás ocupou o lugar deixado vago pelo homem e tomou-lhe a mão.
— Precisamos lutar — disse a ela.
— Eu sei, eu sei — concordou, olhando-o tristonha.
Ashi veio e pôs uma xícara quente em sua mão.
— E café — disse. — Tome.
Estava muito quente e forte: bebeu um gole e depois afastou a xícara.
— O complexo de cobre — lembrou. — Em ’91766. O cobre tem que ser levado pro continente. Deve haver lanchas ou batelões. A gente podia...
— Já se tentou antes — disse Ashi.
Quem olhou para ele, achando que estava blefando, divertindo-se de certo modo à sua custa, como o homem imberbe de olhos cinzentos.
— Tudo o que você está dizendo — continuou Ashi, — tudo o que você está pensando... “lutar contra Uni’’... já foi dito e pensado antes. E tentado também. Uma dúzia de vezes. — Aproximou a xícara dos lábios de Quem. — Tome mais um pouco.
Quem afastou a xícara, olhou bem para ele e sacudiu a cabeça.
— Não é verdade — disse.
— E, irmão. Vamos, tome mais...
— Não é!
— E — disse uma mulher do outro lado da sala. — É verdade.
Júlia. Era Júlia, Júlia-a-prima-do-General, sentada ereta e solitária em seu vestido preto com a cruzinha de ouro.
— Cada cinco ou seis anos — continuou ela, — um grupo de pessoas como você... às vezes apenas duas ou três, às vezes até dez... se propõe a destruir o UniComp. Partem em lanchas, em submarinos que passam anos construindo. A bordo dos batelões que você acaba de mencionar. Levam armas, explosivos, máscaras contra gases, bombas lacrimogêneas, tudo quanto é dispositivo, com planos infalíveis. Mas nunca voltam. Eu financiei as duas últimas expedições e estou sustentando as famílias dos participantes, portanto falo com autoridade no assunto. Espero que você esteja bastante sóbrio pra compreender e poupar-se angústias inúteis. Aceitar e conformar-se é a única solução possível. Considere-se por feliz com o que você tem: uma linda esposa, um filho por nascer e uma pequena parcela de liberdade que, esperemos, crescerá à medida que o tempo passe. Posso acrescentar que, sejam quais forem as circunstâncias, jamais tomarei a financiar outra expedição dessas. Não sou tão rica como muita gente pensa.
Quem ficou olhando para ela. Ela retribuiu com firmeza, fitando-o com aqueles olhinhos pretos por cima do alvo nariz aquilino.
— Eles nunca voltaram, Quem — disse Ashi.
Quem virou-se para ele.
— Talvez tenham alcançado o continente — continuou Ashi, — talvez tenham chegado a ’001. Talvez até tenham entrado na cúpula. Mas é só até onde vão, pois desapareceram, todos. E Uni ainda está em funcionamento.
Quem olhou para Júlia.
— Homens e mulheres exatamente iguais a você — disse ela. — Já nem me lembro quando isso começou.
Ele olhou para Lilás, que lhe segurava a mão. Ela a apertou, fítando-o penalizada.
Olhou para Ashi, que lhe oferecia a xícara de café.
Recusou-a, sacudindo a cabeça.
— Não, eu não quero café — disse.
Permaneceu sentado, imóvel, a testa subitamente suada. Depois debruçou-se para a frente e começou a vomitar.
Estava na cama. Lilás, deitada a seu lado, dormia. Hassan roncava do outro lado da cortina. Sentiu um gosto azedo na boca e então lembrou-se do vômito. Cristo e Wei! E em cima do tapete... o primeiro que via em meio ano!
Depois lembrou-se do que lhe tinham dito aquela mulher, Júlia, e Karl-Ashi.
Continuou algum tempo deitado e por fim levantou-se, passando na ponta dos pés pela cortina e pelos Newmans adormecidos para chegar à pia. Tomou um gole d’água e, como não queria ir até o fim do corredor, urinou baixinho na pia mesmo e secou-a por completo.
Tomou a deitar-se junto de Lilás e puxou o cobertor. Sentia-se ainda meio embriagado. A cabeça doía. Mas deitou-se de costas, com os olhos fechados, respirando de leve e vagarosamente. Passados alguns instantes, sentiu-se melhor.
Manteve os olhos fechados e pensou numa porção de coisas.
Dali a meia hora, mais ou menos, o despertador de Hassan pôs-se a tocar com estrépito. Lilás se virou. Ele acariciou-lhe a cabeça e ela soergueu-se na cama.
— Você está bem? — perguntou-lhe.
— Sim, acho que sim — respondeu ele.
A luz se acendeu e os dois pestanejaram. Ouviram os resmungos de Hassan levantando-se, bocejando, peidando.
— Te acorda, Ria — disse ele. — Gigi? ’Tá na hora de levantar.
Quem ficou de costas, com a mão no rosto de Lilás.
— Perdoa-me, querida. Vou telefonar a ele hoje pra pedir desculpas.
Ela tomou-lhe a mão e beijou-a.
— Foi mais forte que você — disse. — Ele compreendeu.
— Vou pedir pra ele me ajudar a encontrar um bom emprego — disse Quem.
Lilás olhou-o com ar interrogativo.
— Já desopilei tudo — explicou. — Que nem o uísque. Tudo. Serei um ferrinho trabalhador, otimista. Vou aceitar e me conformar. Ainda teremos um apartamento maior que o do Ashi.
— Não precisa tanto. Mas eu gostaria de ter dois quartos.
— Nós teremos — prometeu ele. —Daqui a dois anos. Dois quartos em dois anos: prometo.
Ela sorriu.
— Acho que devíamos pensar em nos mudar pra Nova Madri, onde moram os nossos amigos ricos — disse ele. — Aquele tal de Lars dirige uma escola, você sabia? Talvez desse pra você ensinar lá. E o bebê podia frequentar as aulas quando tivesse idade.
— Ensinar o quê?
— Qualquer coisa. Sei lá.
Abaixou a mão e acariciou-lhe os seios.
— A ter seios bonitos, por exemplo.
— É melhor a gente se vestir — retrucou, sorrindo.
— Deixa o café pra lá — disse ele, puxando-a para trás. Rolou por cima dela e os dois se abraçaram e se beijaram.
— Lilás! — chamou Ria. — Que tal foi a visita?
Lilás desvencilhou a boca.
— Depois eu conto! — gritou.
Enquanto percorria a galeria na mina, lembrou-se da que levava a Uni, o túnel de Papai Jan por onde tinham rolado as comportas da memória.
Ficou estatelado.
Por onde tinham rolado as verdadeiras comportas da memória. E lá em cima estavam as falsas, os brinquedos cor-de-rosa e laranja, acessíveis através da cúpula e dos elevadores, e que todo mundo julgava que fosse o próprio Uni. Todo mundo, inclusive — tinha que ser! — aqueles homens e mulheres que haviam partido para lutar contra ele no passado. Mas Uni, o autêntico Uni, estava nos pavimentos inferiores, e podia ser alcançado pelo túnel, pelo túnel de Papai Jan, por trás do Monte Amor.
E ainda estaria lá — provavelmente com a abertura dissimulada, talvez até mesmo selada por um metro de concreto
— mas ainda estaria lá. Porque ninguém se dá ao trabalho de encher um túnel comprido, especialmente um computador eficiente. E havia espaço reservado para outras comportas de memória lá embaixo — conforme Papai Jan dissera — de maneira que o túnel um dia voltaria a ter utilidade.
Estava lá, por trás do Monte Amor.
Um túnel até Uni.
Com mapas e itinerários adequados, alguém que soubesse o que estava fazendo poderia, provavelmente, descobrir a posição exata ou, pelo menos, aproximada.
— Você aí! Não fique parado! — gritou uma voz*
Seguiu adiante rapidamente, pensando naquilo, pensando naquilo.
Estava lá. O túnel.
6
Se for dinheiro, a resposta é negativa — disse Júlia Costanza, caminhando com passo enérgico entre teares barulhentos e mulheres imigrantes que olhavam para ela- — Se for emprego, talvez possa ajudá-lo.
Quem, andando a seu lado, explicou:
— Ashi já me conseguiu emprego.
— Então é dinheiro — retrucou.
— Em primeiro lugar, informação. Depois, talvez, dinheiro.
Empurrou uma porta.
— Não — disse Júlia, entrando. — Por que você não procura o S.I.? E pra isso que eles existem. Que informação? A respeito do quê?
Olhou-o de soslaio, enquanto subiam uma escada circular que oscilava sob o peso de ambos.
— Não podíamos sentar nalgum lugar por cinco minutos? — perguntou Quem.
— Se eu me sentar — respondeu Júlia, — metade desta ilha amanhã ficará nua. Pra você, provavelmente, não faz diferença, mas pra mim faz. Que informação?
Ele sufocou o ressentimento. Fitando aquele perfil de nariz aquilino, disse:
— Aqueles dois ataques a Uni que você...
— Não — atalhou, parando e olhando para ele, com a mão apoiada ao pilar central da escada. — Se é sobre isso, eu realmente não quero ouvir mais nada. Adivinhei no momento em que você entrou naquela sala, o ar de desaprovação que você tinha. Não. Não estou mais interessada em nenhum plano e maquinações. Procure outra pessoa.
E subiu os degraus.
Ele foi atrás depressa e alcançou-a.
— Eles planejavam usar um túnel? — perguntou. — Só me responda isto: eles iam entrar por um túnel por trás do Monte Amor?
Ela empurrou a porta no alto da escada. Ele segurou para ela passar e seguiu logo no encalço, entrando num amplo sótão, onde havia algumas peças de máquina. Pássaros saíram esvoaçando por buracos no telhado pontiagudo.
— Eles iam misturar-se com as outras pessoas — disse ela, atravessando o sótão em linha reta até uma porta na extremidade oposta. — Com os turistas. Ao menos o plano era esse. Iam descer pelos elevadores.
— E depois?
— Não vejo motivo pra...
— Quer responder-me, por favor? — implorou.
Ela se virou irritada, e seguiu adiante.
— Parece que tem uma grande janela de observação — disse. — Iam quebrá-la e jogar explosivos lá dentro.
— Os dois grupos?
— Sim.
— Talvez tenham tido êxito.
Ela parou com a mão na porta e olhou-o, sem entender.
— Aquilo não é realmente Uni — explicou-lhe. — É um espetáculo para turistas. E talvez também se destine a ser um alvo falso para agressores. Pode ter explodido tudo sem que nada tenha sucedido... só que seriam presos e submetidos a tratamento.
Ela continuou olhando-o.
O verdadeiro fica bem mais embaixo — disse. — Ocupa três pavimentos. Estive lá uma vez quando eu tinha dez ou onze anos.
— Escavar um túnel é a coisa mais ri... — começou ela.
— Ele já existe — interrompeu. — Não precisa ser escavado.
— Ela fechou a boca, olhou para ele, virou-lhe as costas rapidamente, e empurrou a porta. Comunicava com outro sótão, profusamente iluminado, onde havia uma fileira de prelos imóveis, com os cofres cobertos por panos. O soalho estava alagado e dois homens procuravam erguer a ponta de um cano comprido que, pelo jeito, caíra da parede em cima de uma correia transportadora que se achava parada, cheia de pedaços cortados de fazenda. A ponta presa à parede não se danificara e os homens tentavam levantar a parte caída para tirá-la de cima da correia e recolocá-la no devido lugar. Um terceiro homem, imigrante, aguardava o momento de recebê-la, no alto de uma escada.
— Ajude-os — ordenou Júlia, começando a juntar pedaços de fazenda no soalho molhado.
— Se é assim que eu vou ocupar o meu tempo, tudo continuará na mesma — retrucou Quem. — Pra você não faz diferença, mas pra mim faz.
— Ajude-os! — ordenou Júlia. — Ande de uma vez! Depois falaremos! Com insolências é que você não vai conseguir nada mesmo!
Quem ajudou os homens a firmar o cano à parede e depois saiu em companhia de Júlia para um patamar gradeado na parte lateral do prédio. Brilhando ao sol alto da manhã, Nova Madri estendia-se a seus pés. Ao longe via-se uma faixa de mar azul esverdeado, pontilhada de barcos pesqueiros.
— Cada dia aparece uma novidade — queixou-se Júlia, enfiando a mão no bolso do avental cinza.
Tirou cigarros, ofereceu um a Quem, e acendeu-os com fósforos bem ordinários.
Os dois fumaram.
— O túnel está lá — disse Quem. — Foi utilizado pra levar as comportas de memória pra dentro.
— É possível que alguns grupos com quem eu não entrei em contato estivessem informados a respeito — opinou Júlia.
— Não dá pra sondar?
Ela tragou a fumaça. Parecia mais velha à luz do dia. A pele do rosto e do pescoço estava sulcada de rugas.
— Sim — respondeu. — Acho que dá. Como é que você ficou sabendo?
Contou-lhe.
— Tenho certeza de que não foi aterrado — disse. — Deve ter quinze quilômetros de extensão. E ademais vai ser utilizado novamente. Há espaço de reserva pra outras comportas, quando a Família aumentar.
Ela olhou-o com uma expressão de dúvida.
— Eu pensei que as colônias tivessem seus próprios computadores — observou.
— E têm — confirmou, sem compreender.
Mas logo viu aonde ela queria chegar. Era só nas colônias que a Família estava aumentando. Na Terra, com dois filhos por casal e nem todos obtendo licença para procriar, a Família, em vez de aumentar, diminuía cada vez mais. Ele nunca tinha relacionado essa ideia com o que Papai Jan comentara a respeito de espaço para outras comportas de memória.
— Talvez seja utilizado para outro equipamento de tele- controle — sugeriu.
— Ou talvez o seu avô não fosse uma fonte de informação muito segura.
— Foi ele quem teve a ideia do túnel — lembrou Quem. — Ainda está lá, eu tenho certeza. E pode ser um meio, o único, de se chegar até Uni. Eu vou tentar e preciso de sua ajuda, tanto quanto possível.
— Você precisa do meu dinheiro, quer dizer.
— Sim. E de sua ajuda também. Pra encontrar as pessoas certas, com a necessária habilidade. E pra obter informações indispensáveis, além do aparelhamento. E pra descobrir gente que possa ensinar coisas que não sabemos. Quero fazer isso com toda a calma e cautela. Eu quero voltar.
Ela o olhou com os olhos franzidos pela fumaça do cigarro.
— Ora viva, até que você não é tão idiota assim. Que espécie de emprego o Ashi achou pra você?
— Lavar pratos no Cassino.
— Deus do céu! Apareça aqui amanhã de manhã, às oito menos um quarto.
— No Cassino eu tenho as manhãs livres.
— Apareça aqui! Você disporá do tempo necessário.
— Está bem — concordou, sorrindo. — Obrigado.
Ela virou as costas e contemplou o cigarro. Esmagou-o contra a grade.
— Só que eu não vou entrar com o dinheiro — disse. — Pelo menos não tudo. Não posso. Você não faz ideia do que custa uma coisa destas. Explosivos, por exemplo: da última vez saiu por mais de dois mil dólares, e isso foi há cinco anos. Sabe Deus quanto não custaria hoje.
Franziu o cenho para o toco do cigarro e atirou-o pela grade.
— Pagarei o que eu puder. E apresentarei você a pessoas que cobrirão o restante se você bajulá-las bastante.
— Obrigado. É só o que eu preciso. Obrigado.
— Deus do céu, lá vou eu outra vez — suspirou Júlia. Virou-se para Quem. — Espere e verá: quanto mais velho você fica, menos você muda. Eu sou filha única, sempre consegui o que quis. Esse é o meu mal. Vamos embora. Tenho mais que fazer.
Desceram a escada do patamar.
— É fato — continuou Júlia. — Eu tenho tudo quanto é espécie de motivos nobres pra perder tempo e dinheiro com gente como você... um impulso cristão pra ajudar a Família, o amor pela justiça, pela liberdade, pela democracia... mas a pura verdade é que sou uma filha única que sempre conseguiu o que quis. Acho enlouquecedor, simplesmente enlouquecedor, não poder ir aonde bem entendo neste planeta! Ou sair dele, pra ser mais precisa! Você não faz ideia da raiva que sinto daquele maldito computador!
Quem riu.
— Faço, sim! É exatamente o que eu sinto!
— Aquilo é uma monstruosidade infernal.
Caminharam ao redor do prédio.
— E uma monstruosidade, sim — retrucou Quem, jogando o cigarro fora. — Pelo menos do jeito que ficou agora. Uma das coisas que me interessa averiguar é se há possibilidade, se tudo correr bem, de mudar o funcionamento dele, em vez de destruí-lo. Se a Família pudesse governá-lo, e não vice-versa, não seria tão ruim. Você acredita mesmo em céu e inferno?
— Não vamos começar a discutir religião, senão você acaba lavando pratos no Cassino. Quanto estão-lhe pagando?
— Seis e cinquenta por semana.
— É mesmo?
— É.
— Eu lhe pagarei o mesmo, mas se alguém por aqui perguntar, diga que você está ganhando cinco.
Esperou até que Júlia interrogasse uma série de pessoas sem descobrir nenhuma expedição de ataque que tivesse sido informada da existência do túnel, e só então, confirmando a sua decisão, revelou a Lilás os planos que tinha.
— Você não pode! — protestou ela. — Não vê quanta gente já tentou em vão?!
— Eles não sabiam onde deviam atacar.
Ela sacudiu a cabeça, levantou a testa e olhou para ele.
— Isso é uma.„ eu nem sei o que dizer — gaguejou. — Pensei que você tivesse... acabado com essa mania. Pensei que estivéssemos sossegados.
E gesticulou com as mãos, indicando o quarto, o quarto que haviam conseguido em Nova Madri, com as paredes que os dois tinham pintado, a estante de livros que ele mesmo fizera, a cama, a geladeira, o desenho de uma criança rindo, feito por Ashi.
— Meu bem — retrucou Quem, — eu talvez seja a única pessoa em todas as ilhas que sabe da existência do túnel, que conhece o verdadeiro Uni. Eu tenho que fazer uso disso. Como é que posso ficar de braços cruzados?
— Pois muito bem, faça uso, então. Planeje, ajude a organizar uma expedição... ótimo! Até eu posso ajudar! Mas por que você precisa ir junto? Deixe isso pros outros, pra quem não tenha família.
— Eu ainda estarei aqui quando o bebê nascer. Vai levar muito tempo pra aprontar tudo. E depois só me afastarei por... talvez uma semana, no máximo.
Ela olhou bem para ele.
— Como é que você pode afirmar uma coisa dessas? Como é que pode dizer que você... é bem capaz que você nunca mais volte! Podem prendê-lo e submetê-lo a tratamento!
— Nós aprenderemos a lutar. Teremos armas e...
— Os outros é que devem ir!
— Como posso pedir a eles se eu mesmo não for junto?
— Peça, é o que basta. Peça.
— Não. Eu também tenho que ir.
— Você quer ir, isso é o que é. Você não tem que ir. Você quer ir.
Ficou calado um instante.
— Está bem. Eu quero, sim. Nem posso pensar em não estar presente quando Uni for derrotado. Eu mesmo quero jogar o explosivo, ou puxar a alavanca pessoalmente, ou fazer, enfim, o que for necessário... eu mesmo.
— Você está doente — retrucou. Levantou a costura que segurava no colo, encontrou a agulha e começou a coser. — Estou falando sério. Você está doente sobre esse assunto do Uni. Não foi ele que nos trouxe pra cá: nós tivemos a sorte de chegar aqui. Ashi tem razão: ele nos teria matado assim como mata as pessoas aos sessenta e dois anos. Não precisava desperdiçar lanchas nem ilhas. Nós fugimos dele. Ele já foi derrotado. E você está doente em querer voltar pra derrotá-lo outra vez.
— Ele nos trouxe pra cá porque os programadores não poderiam justificar a morte de pessoas ainda jovens.
— Balela — disse Lilás. — Já justificaram a morte de velhos, se quisessem justificariam até a de crianças. Nós fugimos. E você agora quer voltar.
— E o que me diz de nossos pais? Eles vão morrer dentro de poucos anos. E Floco de Neve e Pardal... a Família inteira, em suma?
Ela cosia, espetando a agulha no pano verde — as mangas do vestido que ia transformar em camisola para o bebê.
— Os outros é que devem ir — repetiu. — Gente que não tem família.
Mais tarde, na cama, ele disse:
— Se acontecer alguma coisa, Júlia cuidará de você. E do bebê.
— Que grande consolo. Obrigada. Muito obrigada. E agradeça a Júlia também.
A partir daquela noite a situação entre os dois permaneceu inalterável: rancor, por parte dela, e recusa em se deixar impressionar, por parte dele.
CONTINUA
5
Foram morar numa cidade chamada Pollensa, ocupando metade de um quarto de um prédio em ruínas, caindo aos pedaços, da Vila-Ferrinho onde faltava luz a toda hora e a água era encardida. Tinham cobertor, mesa, uma cadeira, e uma caixa para roupas que eles utilizavam como segunda cadeira. As pessoas da outra metade do quarto, os Newmans — um casal quarentão com a filha de nove anos — emprestavam-lhes o fogão, a televisão e uma prateleira do refrigerador onde guardavam a comida. O quarto era dos Newmans. Quem e Lilás pagavam quatro dólares por semana de aluguel.
Ganhavam, entre ambos, nove dólares e vinte cents por semana. Quem trabalhava em mina de ferro, carregando minério em carrinhos com uma turma de imigrantes ao longo de um carregador automático que jazia imóvel e empoeirado, sem possibilidade de conserto. Lilás trabalhava numa fábrica de roupas, pregando colchetes em camisas. Lá também havia outra máquina estragada, grossa de penugem.
Os nove dólares e vinte cents tinham que dar para o aluguel semanal, a comida, as passagens, alguns cigarros e um jornal chamado Imigrante de Liberdade. Economizavam cinquenta cents para a compra de roupa e eventuais emergências, pagando outros cinquenta para o Socorro aos Imigrantes, como amortização parcial do empréstimo de vinte dólares recebidos na chegada. Comiam pão, peixe, batatas e figos. No começo esses alimentos lhes causaram cãibras intestinais e prisão de ventre, mas logo se habituaram, passando a se deliciar com os variados sabores e consistências. Aguardavam a hora da refeição com ansiedade, embora se aborrecessem com o preparo da comida e a limpeza posterior.
Seus corpos sofreram transformações. Lilás sangrou alguns dias, o que os Newmans asseguraram que era normal em mulheres que não faziam tratamento, e ficou mais roliça e elástica à medida que o cabelo crescia. Quem enrijeceu e se fortificou com o trabalho na mina. A barba cresceu preta e parelha, e ele a aparava uma vez por semana com a tesoura dos Newmans.
Receberam nomes, dados por um funcionário do Serviço de Imigração. Quem passou a chamar-se Eiko Newmark, e Lilás, Grace Newbridge. Mais tarde, quando casaram — sem fazer pedido a Uni, mas com formulários, emolumentos e promessas a Deus — o de Lilás foi mudado para Grace Newmark. Mas entre ambos continuaram a tratar-se por Quem e Lilás.
Acostumaram-se a lidar com moedas e negociar com lojistas, e a andar no monotrilho aéreo de Pollensa, desmantelado e sempre lotado. Aprenderam a esquivar-se dos habitantes locais sem ofendê-los. Decoraram o Voto de Lealdade e prestaram juramento à bandeira vermelha-e-amarela de Liberdade. Batiam às portas antes de abri-las, diziam quarta-feira e não dia-de-Wood, março em vez de marx. Lembravam-se continuamente que lutar e odiar eram palavras admissíveis, ao passo que foder era “palavrão”.
Hassan Newman bebia muito uísque. Logo depois de chegar a casa do trabalho — na maior fábrica de móveis da ilha — começava a fazer barulho brincando com Gigi, a filha, quase derrubando a cortina que dividia o quarto, com uma garrafa presa entre os três dedos restantes da mão aleijada pela serra.
— Vamos, seus ferrinhos tristes — dizia sempre, — onde ódio estão os copos de vocês? Alegria, animem-se um pouco.
Quem e Lilás bebiam junto com ele algumas vezes, porém achavam que o uísque os deixava confusos e canhestros, e geralmente rejeitavam o convite.
— Ora, vamos — disse ele uma noite. — Eu sei que sou o senhorio, mas não sou propriamente um safado, sou? Então o que é? Vocês pensam que eu espero que vocês retri... retribuam? Eu sei que vocês não botam dinheiro fora.
— Não se trata disso — protestou Quem.
— Então o que é? — insistiu Hassan, vacilando e equilibrando-se nos pés.
Quem ficou calado um instante e depois respondeu:
— Bem, qual é a vantagem em fugir dos tratamentos pra depois se embrutecer com uísque? Desse modo tanto faz viver aqui como no meio da Família.
— Ah — exclamou Hassan — Ah claro, agora entendi — olhou zangado para os dois: era um sujeito enorme, de barba crespa e olhos injetados de sangue. — Vocês vão ver. Esperem até conhecer melhor isto aqui. Esperem só até conhecer melhor isto aqui, é só o que eu digo.
E virou as costas, tateando em busca da abertura da cortina. Ainda ouviram os seus resmungos, enquanto a esposa, Ria, tentava acalmá-lo.
Quase todos os moradores do prédio, pelo visto, bebiam tanto quanto Hassan. Retumbavam gritos de alegria ou fúria pelas paredes a qualquer hora da noite. O elevador e os corredores recendiam a uísque, a peixe e a perfumes suaves que eles usavam para disfarçar o mau cheiro do uísque e do peixe.
Todas as noites, praticamente, depois que terminavam de fazer a limpeza necessária, Quem e Lilás subiam ao terraço para apanhar um pouco de ar puro ou então sentavam à mesa para ler o Imigrante ou livros que tinham encontrado no monotrilho ou tomado emprestado a uma pequena biblioteca do Socorro aos Imigrantes. Às vezes assistiam à televisão em companhia dos Newmans — novelas sobre desentendimentos idiotas entre famílias locais, com frequentes intervalos para anúncios de diferentes marcas de cigarros e desinfetantes. Eventualmente havia discursos, pronunciados pelo General Costanza ou o chefe da Igreja, o Papa Clemente — discursos inquietantes a respeito de racionamentos de víveres, moradia e recursos, cuja culpa recaía exclusivamente sobre os imigrantes. Hassan, que o uísque deixava belicoso, em geral desligava o aparelho antes que os oradores finalizassem. Ao contrário da televisão da Família, em Liberdade podia-se ligá-la e desligá-la à vontade.
Um dia na mina, perto do fim da pausa de quinze minutos para almoço, Quem aproximou-se do carregador automático e pôs-se a examiná-lo, imaginando se de fato não teria conserto ou se não seria possível substituir alguma peça, que não possuísse sobressalente, por outro expediente qualquer. O ilhéu encarregado da turma de trabalhadores chegou perto e perguntou-lhe o que estava fazendo ali. Quem explicou, tomando cuidado para não faltar com o respeito, mas o sujeito ficou furioso.
— Vocês, seus ferrinhos fodidos, pensam todos que são uns sabidos de merda! — explodiu, com a mão no cabo do revólver. — Volte pro seu lugar e fique lá! Se não tem outra coisa no que pensar, trate de dar um jeito de comer menos!
Nem todos os ilhéus eram tão ruins assim. O proprietário do prédio em que moravam simpatizou com Quem e Lilás e prometeu alugar-lhes a cinco dólares por semana o primeiro quarto que desocupasse.
— Vocês não são como essa gente — disse ele, — que bebe, anda nua em pêlo pelos corredores... prefiro ganhar um pouco menos e ficar com vocês.
Quem olhou para ele e respondeu:
— Há motivo prós imigrantes beberem, sabe?
— Eu sei, eu sei — disse o proprietário. — Sou o primeiro a reconhecer: nós tratamos vocês de uma maneira incrível. Mas seja como for, vocês dois bebem? Andam por aí nus em pêlo?
— Obrigada, Mr. Corsham. Nós lhe ficaremos gratos se nos puder amimar um quarto.
Pegaram resfriados e a gripe. Lilás perdeu o emprego na fábrica de roupas, mas conseguiu outro melhor na cozinha de um restaurante frequentado por ilhéus, cuja distância dava para percorrer a pé desde o prédio. Uma noite, dois guardas apareceram no quarto, verificando as carteiras de identidade e à procura de armas. Hassan resmungou qualquer coisa ao mostrar sua carteira e o derrubaram a pauladas. Espetaram facas nos colchões e quebraram alguns pratos.
Lilás não teve “regras”, seus poucos dias de hemorragia vaginal durante o mês, o que indicava que ficara grávida.
Uma noite no terraço, Quem deteve-se a fumar e contemplar o céu do lado nordeste, onde pairava um fosco clarão alaranjado proveniente do complexo de produção de cobre em EUR91766. Lilás, que estava recolhendo roupa do arame, aproximou-se e abraçou-o pela cintura. Beijou-lhe o rosto e encostou-se nele.
— A coisa não está tão ruim assim — disse ela. — Já economizamos doze dólares, vamos ter quarto próprio qualquer dia destes e antes que você se dê conta teremos um bebê.
— Um ferrinho.
— Não — retrucou Lilás. Um bebê.
— Isto aqui é uma porcaria — disse Quem. — Uma droga. Eu não aguento mais.
— Não há outra alternativa. A gente tem que se conformar. Quem ficou calado. Continuou contemplando o clarão alaranjado no céu.
O Imigrante de Liberdade publicava artigos semanais sobre cantores e atletas imigrantes e, de vez em quando, cientistas, que ganhavam quarenta ou cinquenta dólares por semana e residiam em bons apartamentos, convivendo com ilhéus influentes e esclarecidos, e que alimentavam esperanças de um incremento de relações mais justas entre os dois grupos. Quem lia esses artigos com desdém — o objetivo dos donos do jornal, no seu entender, era acalmar e apaziguar os imigrantes — mas Lilás os aceitava ao pé da letra, como prova de que a própria sorte de ambos acabaria melhorando.
Uma semana, em outubro, quando já fazia pouco mais de seis meses que estavam em Liberdade, saiu um artigo sobre um pintor chamado Morgan Newgate, que tinha vindo de Eur há oito anos e morava num apartamento de quatro peças em Nova Madri. Seus quadros — um dos quais, uma cena da Crucificação, acabava de ser presenteado ao Papa Clemente — chegavam a render-lhe cem dólares cada um. Assinava-os com um A, dizia o jornal, porque seu apelido era Ashi.
— Cristo e Wei — exclamou Quem.
— Que foi? — perguntou Lilás.
— Eu estive na academia com esse Morgan Newgate — disse Quem, mostrando-lhe o artigo. — Éramos bons amigos. O nome dele era Karl. Você se lembra daquele quadro do cavalo que eu tinha lá em Ind?
— Não — respondeu ela, lendo.
— Pois foi ele quem desenhou. Ele assinava tudo com um A no meio de um círculo.
É mesmo, lembrou-se, parecia que Ashi era o nome que Karl havia mencionado. Cristo e Wei, então ele também fugira! Tinha “fugido”, se se podia dizer assim, para Liberdade, para o pavilhão de isolamento de Uni. Pelo menos estava fazendo o que sempre queria fazer: para ele Liberdade realmente significava liberdade.
— Você devia telefonar-lhe — sugeriu Lilás, continuando a ler.
— E vou mesmo — disse Quem.
Mas, pensando bem... Qual seria a vantagem, sinceramente, em telefonar a Morgan Newgate, que pintava Crucificações para o Papa e garantia a seus colegas imigrantes que a situação melhorava dia a dia? Talvez Karl não tivesse dito aquilo. Talvez o Imigrante estivesse mentindo.
— Não fique só na intenção — insistiu Lilás. — Ele provavelmente o ajudará a conseguir um bom emprego.
— É — concordou Quem, — provavelmente.
Ela olhou para ele.
— O que é que há? — perguntou. — Você não quer um bom emprego?
— Vou ligar pra ele amanhã, no caminho pro trabalho.
Porém não ligou. Lançou-se com redobrada fúria ao trabalho na mina, escavando minério com a pá. Lutem-se todos, pensou: os ferrinhos que bebem, os ferrinhos que acham que as coisas estão melhorando, os safados, os pamonhas — abaixo Uni.
No domingo seguinte, de manhã, Lilás foi junto com ele até um prédio que ficava a dois quarteirões de distância, onde havia um telefone no saguão, e esperou enquanto Quem folheava a lista de assinantes esfrangalhada. Morgan e Newgate eram nomes comuns entre os imigrantes, mas poucos possuíam telefone. Encontrou apenas um Newgate, Morgan e mesmo assim em Nova Madri.
Quem colocou três fichas no aparelho e disse o número. A tela estava quebrada, mas não fazia a mínima diferença, pois os telefones de Liberdade de toda maneira não transmitiam mais imagens.
Uma mulher atendeu, e quando lhe perguntou se Morgan Newgate estava, ela respondeu que sim, e depois a linha ficou muda. O silêncio se prolongava e Lilás, parada a poucos metros de distância, ao lado de um cartaz de Sani-Spray, impacientou- se e veio ver o que havia.
— Ele não está em casa? — perguntou num cochicho.
— Alô? — atendeu uma voz masculina.
—·Quem fala? É Norman Newgate? — perguntou Quem.
— É. E aí?
— Aqui é Quem. Li RM, da Academia das Ciências Genéticas.
Houve um silêncio e depois:
— Meu Deus! — exclamou a voz. — Li! Você conseguiu blocos e carvão pra mim!
— Sim — confirmou Quem. — E contei ao meu conselheiro que você andava doente e precisava de ajuda.
Karl deu uma risada.
— Isso mesmo, não foi, seu cretino! Mas que formidável! Quando é que você chegou?
— Há uns seis meses, mais ou menos.
— Você está em Nova Madri?
— Em Pollensa.
— Que anda fazendo?
— Trabalhando numa mina.
— Cristo, que espeto! — exclamou Karl. E depois de uma pausa: — Isto aqui é um inferno, não é?
— Se é — respondeu Quem, pensando: Ele usa as palavras deles. Inferno. Meu Deus. Aposto até que ele reza.
— Pena que estes telefones não estejam funcionando direito pra eu poder enxergar você — disse Karl.
De repente Quem teve vergonha de sua hostilidade. Explicou pra Karl quem era Lilás e que estava grávida. Karl disse que tinha casado na Família, mas viajara sozinho. Não aceitou os cumprimentos de Quem pelo seu sucesso.
— As coisas que eu vendo são detestáveis. Criancinhas safadas engraçadinhas. Mas sempre dá pra pintar o que eu gosto umas três vezes por semana, de modo que não me posso queixar. Escuta, Li... não, como é mesmo? Quem? Quem, olhe, a gente precisa se encontrar. Eu tenho um motociclo: irei até aí qualquer noite destas. Não, espera. Você e a sua mulher têm alguma coisa pra fazer domingo que vem?
Lilás olhou ansiosa para ele.
— Acho que não — respondeu Quem. — Não tenho certeza.
— Vou receber uns amigos — disse Karl. — Venham vocês também, ‘tá bom? Lá pelas seis horas.
Lilás acenou com a cabeça.
— Vamos ver — retrucou Quem. — Provavelmente iremos.
— Façam força — insistiu Karl, dando-lhe o endereço.
— Que bom que você veio pra cá. Apesar dos pesares, sempre é melhor do que lá, não é?
— Um pouco.
— Conto com vocês domingo que vem. Até logo, irmão.
— Até logo — despediu-se Quem e desligou.
— A gente vai, não vai? — perguntou Lilás .
— Você faz ideia do preço que custa a passagem?
— Ah, Quem...
— Está certo. Está certo, a gente vai. Mas não pretendo aceitar nenhum favor dele. E não quero que você peça, tampouco. Não se esqueça.
Lilás passou as noites da semana inteira a reformar as melhores roupas que possuíam. Cortou as mangas poídas de um vestido verde e remendou uma perna da calça para que não se notasse o rasgão.
O prédio, na periferia da Vila-Ferrinho em Nova Madri, não oferecia piores condições do que a maioria dos edifícios habitados por ilhéus. O saguão fora varrido, recendendo levemente a uísque, peixe e perfume, e o elevador funcionava bem.
Incrustado em reboco novo, junto à porta de Karl, havia um botão: uma campainha para chamar. Quem apertou-a. Ficou todo empertigado e Lilás apoiou-se a seu braço.
— Quem é? — perguntou uma voz masculina.
— Quem Newmark — respondeu.
Ouviu-se o barulho da chave, a porta se abriu e Karl — um Karl de trinta e cinco anos, de barba, com os olhos penetrantes do Karl de antigamente —, sorrindo, apertou a mão de Quem e exclamou:
— Li! Pensei que você não vinha mais!
— É que encontramos uns safados gozadores — explicou Quem.
— Ai, Cristo — gemeu Karl, fazendo-os entrar.
Passou a chave na porta. Quem apresentou Lilás.
— Como vai, Mr. Newgate? — cumprimentou ela.
E Karl, aceitando a mão que lhe era estendida e olhando-a no rosto, respondeu.
— Chame-me de Ashi. Bem, e você, Lilás?
— Muito bem, Ashi.
Voltando-se para Quem, Karl perguntou:
— Eles machucaram vocês?
— Não. Só disseram “recitem o Voto” e bobagens desse gênero.
— Canalhas — disse Karl. — Entrem, vou-lhes servir um drinque e vocês esquecerão o incidente.
Tomou os dois pelo braço e conduziu-os por um corredor estreito, cujas paredes estavam atulhadas de quadros.
— Você está com ótimo aspeto, Quem.
— Você também. Ashi.
Sorriram um para o outro.
— Dezessete anos, irmão — suspirou Karl-Ashi.
Havia homens e mulheres sentados numa sala de paredes marrons, cheia de fumaça, umas dez ou doze pessoas conversando, de cigarros e copos na mão.
— Este é Quem e esta é Lilás — apresentou Karl. — Quem e eu cursamos juntos a Academia: os dois piores alunos de genética da Família.
Os homens e as mulheres sorriram e Karl começou a apresentá-los, um a um, pelos respetivos nomes:
— Vito, Sunny, Ria, Lars...
Na maioria eram imigrantes, homens barbudos e mulheres de cabelos compridos, com os olhos e a tez típicos da Família. Havia dois ilhéus: uma mulher de pele clara, empertigada, de nariz aquilino, que devia andar beirando os cinquenta anos e usava uma cruz de ouro pendurada no traje preto que cobria o seu corpo incrivelmente magro (“Júlia”, disse Karl; ela sorriu- lhe com os lábios fechados); e outra, mais moça, gorda e ruiva, de vestido justo, recamado de contas prateadas. Alguns dos presentes podiam ser tanto imigrantes como ilhéus: um homem imberbe, de olhos cinzentos, chamado Beto, uma loura, e um rapaz de olhos azuis.
— Uísque ou vinho? — ofereceu Karl. — Lilás?
— Vinho, por favor.
Acompanharam-no a uma pequena mesa arrumada com garrafas e copos, pratos contendo uma ou duas fatias de queijo e carne, e maços de cigarros e fósforos. Um pesa-papéis de lembrança cobria uma pilha de guardanapos. Quem pegou-o e examinou-o: era de AUS21989,
— Ficou com saudade? — perguntou Karl, servindo o vinho.
Quem mostrou-o para Lilás e ela sorriu.
— Não muito — disse, repondo-o no lugar.
— Quem?
— Uísque.
A ruiva do vestido prateado se aproximou, sorridente, com o copo vazio na mão coberta de anéis.
— Você é uma verdadeira beleza — disse para Lilás. — Sinceramente — virou-se para Quem, — eu acho vocês todos muito bonitos. A Família pode não ter liberdade, alguma; mas está muito mais adiantada do que nós em matéria de estética. Eu daria tudo pra ser magra, morena e ter olhos amendoados.
E continuou por aí afora — mencionando a atitude sensata da Família em questões de sexo — até que Quem percebeu que estava de copo na mão e Karl e Lilás conversavam com outras pessoas enquanto a mulher não o largava. Traços pretos de pintura delineavam e repuxavam-lhe os olhos.
— Vocês são muito mais abertos do que nós — disse ela. — Sexualmente, digo. Aproveitam mais.
Uma imigrante se aproximou.
— Heinz não vai vir, Marge? — perguntou.
— Ele está em Palma — respondeu a gorda, voltando-se para ela. — Uma ala do hotel desabou.
— Com licença, sim? — desculpou-se Quem, afastando-se por um lado.
Dirigiu-se à outra extremidade da sala, acenando com a cabeça às pessoas sentadas ali, e bebeu um pouco do uísque, admirando um quadro na parede — placas marrons e vermelhas contra o fundo branco. O uísque tinha melhor sabor que o de Hassan. Era menos amargo e ardente, mais leve e mais agradável ao paladar. O quadro com as placas marrons e vermelhas não passava da planta de apartamento, interessante de olhar um momento, mas sem a menor relação com a vida. O A no meio de um círculo de Karl (não, de Ashi!) ocupava um dos cantos inferiores. Quem ficou a imaginar se aquilo seria um dos quadros ruins que ele vendia ou, já que estava pendurado ali na sala de estar, se fazia parte dos que “gostava de pintar” a que se referira com evidente satisfação. Será que não se dedicava mais aos belos homens e mulheres sem pulseiras que costumava desenhar na época da Academia?
Bebeu mais um pouco de uísque e virou-se para as pessoas sentadas por perto: três homens e uma mulher, todos imigrantes. Conversavam sobre móveis. Prestou atenção durante alguns minutos, bebeu, e afastou-se.
Lilás estava sentada ao lado da mulher magra de nariz aquilino — Júlia. Fumavam e palestravam, ou melhor, Júlia falava e Lilás ouvia.
Quem voltou à mesa e serviu-se de nova dose de uísque. Acendeu um cigarro.
Um homem chamado Lars apresentou-se a ele. Dirigia uma escola para filhos de imigrantes em Nova Madri. Fora trazido para Liberdade quando era pequeno e fazia quarenta e dois anos que morava na ilha.
Ashi se aproximou, segurando Lilás pela mão.
— Quem, venha conhecer o meu estúdio — convidou.
Levou-os da sala pelo corredor atulhado de quadros.
— Sabe com quem você estava conversando? — perguntou a Lilás.
— Júlia?
— Júlia Costanza — frisou. — Ela é prima do General. E o despreza. Foi uma das fundadoras do Socorro aos Imigrantes.
O estúdio era amplo e profusamente iluminado. Um retrato ainda incompleto de uma ilhoa de gato no colo estava pousado sobre um cavalete. Noutro, havia uma tela pintada com placas azuis e verdes. Outros quadros se achavam encostados às paredes: placas marrons e alaranjadas, azuis e roxas, roxas e pretas, alaranjadas e vermelhas..
Ele explicou o que estava tentando fazer, ressaltando equilíbrios, e traços opostos, e sutis nuanças de colorido.
Quem perdeu o interesse, concentrando-se no uísque.
— Ouçam, seus ferrinhos! — disse ele, bastante alto para que todos pudessem escutar. — Parem de conversar sobre móveis um minuto e ouçam! Vocês sabem o que precisamos fazer? Lutar contra Uni! Não pensem que estou dizendo palavrão, me refiro a lutar literalmente. Lutar contra Uni! Porque ele é o culpado... por tudo! Pelos safados, que são o que são porque não têm comida nem espaço suficientes ou ligação com qualquer mundo exterior, pelos pamonhas, que são o que são porque vivem à custa de tratamentos de LKD e ficam tranquilizados desse modo, e por nós, que somos o que nós somos porque Uni nos pôs aqui pra se ver livre de nós! É Uni quem tem a culpa... ele congelou o mundo para que não houvesse mais mudanças... e nós temos que lutar contra ele! Temos que nos levantar dos nossos estúpidos traseiros surrados e LUTAR CONTRA ELE!
Ashi, sorrindo, esbofeteou-lhe o rosto.
— Ei, irmão — disse, — você passou um pouco da conta, sabe disso? Ei, Quem, você está me ouvindo? ·
Lógico que ele tinha passado um pouco da conta: lógico, lógico, lógico. Mas em vez de se embrutecer, libertara-se. A bebida lhe abrira tudo o que sufocara no íntimo durante meses a fio. Uísque era ótimo! Uísque era formidável!
Deteve a mão de Ashi e não se deixou esbofetear mais.
— Eu estou bem, Ashi. Sei o que estou dizendo.
E para os outros, sentados, vacilantes, sorridentes:
— Não podemos simplesmente desistir e aceitar a situação, nos conformando com esta prisão! Ashi, antigamente você desenhava membros sem pulseiras: eram tão bonitos! E agora você só pinta cores, placas de cor!
Tentaram obrigá-lo a sentar-se, Ashi de um lado, Lilás do outro, nervosa e encabulada.
— Você também, meu amor — continuou. — Você aceita tudo, está-se conformando.
Deixou-se sentar, não era fácil permanecer de pé e sentado era melhor, mais confortável, mais amplo.
— Temos que lutar em vez de nos conformar — repetiu. Lutar, lutar, lutar. Temos que lutar — disse ao homem imberbe de olhos cinzentos, instalado a seu lado.
— Por Deus, você tem razão! — concordou o homem. — Estou inteiramente de acordo! Lutar contra Uni! Como faremos? Sair por aí de lancha, levando junto o Exército por precaução? Mas talvez o mar seja controlado por satélite e os médicos estejam esperando com nuvens de LPK. Tenho uma ideia melhor: conseguiremos um avião... soube que existe um na ilha que voa de fato... e depois...
— Não mexe com ele, Bob — disse alguém. — Ele mal chegou à ilha.
— Nota-se — retrucou o homem, pondo-se em pé.
— Há uma solução — insistiu Quem. — Tem de haver. Há uma solução.
Pensou no mar, com a ilha no meio, mas não conseguia raciocinar com a necessária clareza. Lilás ocupou o lugar deixado vago pelo homem e tomou-lhe a mão.
— Precisamos lutar — disse a ela.
— Eu sei, eu sei — concordou, olhando-o tristonha.
Ashi veio e pôs uma xícara quente em sua mão.
— E café — disse. — Tome.
Estava muito quente e forte: bebeu um gole e depois afastou a xícara.
— O complexo de cobre — lembrou. — Em ’91766. O cobre tem que ser levado pro continente. Deve haver lanchas ou batelões. A gente podia...
— Já se tentou antes — disse Ashi.
Quem olhou para ele, achando que estava blefando, divertindo-se de certo modo à sua custa, como o homem imberbe de olhos cinzentos.
— Tudo o que você está dizendo — continuou Ashi, — tudo o que você está pensando... “lutar contra Uni’’... já foi dito e pensado antes. E tentado também. Uma dúzia de vezes. — Aproximou a xícara dos lábios de Quem. — Tome mais um pouco.
Quem afastou a xícara, olhou bem para ele e sacudiu a cabeça.
— Não é verdade — disse.
— E, irmão. Vamos, tome mais...
— Não é!
— E — disse uma mulher do outro lado da sala. — É verdade.
Júlia. Era Júlia, Júlia-a-prima-do-General, sentada ereta e solitária em seu vestido preto com a cruzinha de ouro.
— Cada cinco ou seis anos — continuou ela, — um grupo de pessoas como você... às vezes apenas duas ou três, às vezes até dez... se propõe a destruir o UniComp. Partem em lanchas, em submarinos que passam anos construindo. A bordo dos batelões que você acaba de mencionar. Levam armas, explosivos, máscaras contra gases, bombas lacrimogêneas, tudo quanto é dispositivo, com planos infalíveis. Mas nunca voltam. Eu financiei as duas últimas expedições e estou sustentando as famílias dos participantes, portanto falo com autoridade no assunto. Espero que você esteja bastante sóbrio pra compreender e poupar-se angústias inúteis. Aceitar e conformar-se é a única solução possível. Considere-se por feliz com o que você tem: uma linda esposa, um filho por nascer e uma pequena parcela de liberdade que, esperemos, crescerá à medida que o tempo passe. Posso acrescentar que, sejam quais forem as circunstâncias, jamais tomarei a financiar outra expedição dessas. Não sou tão rica como muita gente pensa.
Quem ficou olhando para ela. Ela retribuiu com firmeza, fitando-o com aqueles olhinhos pretos por cima do alvo nariz aquilino.
— Eles nunca voltaram, Quem — disse Ashi.
Quem virou-se para ele.
— Talvez tenham alcançado o continente — continuou Ashi, — talvez tenham chegado a ’001. Talvez até tenham entrado na cúpula. Mas é só até onde vão, pois desapareceram, todos. E Uni ainda está em funcionamento.
Quem olhou para Júlia.
— Homens e mulheres exatamente iguais a você — disse ela. — Já nem me lembro quando isso começou.
Ele olhou para Lilás, que lhe segurava a mão. Ela a apertou, fítando-o penalizada.
Olhou para Ashi, que lhe oferecia a xícara de café.
Recusou-a, sacudindo a cabeça.
— Não, eu não quero café — disse.
Permaneceu sentado, imóvel, a testa subitamente suada. Depois debruçou-se para a frente e começou a vomitar.
Estava na cama. Lilás, deitada a seu lado, dormia. Hassan roncava do outro lado da cortina. Sentiu um gosto azedo na boca e então lembrou-se do vômito. Cristo e Wei! E em cima do tapete... o primeiro que via em meio ano!
Depois lembrou-se do que lhe tinham dito aquela mulher, Júlia, e Karl-Ashi.
Continuou algum tempo deitado e por fim levantou-se, passando na ponta dos pés pela cortina e pelos Newmans adormecidos para chegar à pia. Tomou um gole d’água e, como não queria ir até o fim do corredor, urinou baixinho na pia mesmo e secou-a por completo.
Tomou a deitar-se junto de Lilás e puxou o cobertor. Sentia-se ainda meio embriagado. A cabeça doía. Mas deitou-se de costas, com os olhos fechados, respirando de leve e vagarosamente. Passados alguns instantes, sentiu-se melhor.
Manteve os olhos fechados e pensou numa porção de coisas.
Dali a meia hora, mais ou menos, o despertador de Hassan pôs-se a tocar com estrépito. Lilás se virou. Ele acariciou-lhe a cabeça e ela soergueu-se na cama.
— Você está bem? — perguntou-lhe.
— Sim, acho que sim — respondeu ele.
A luz se acendeu e os dois pestanejaram. Ouviram os resmungos de Hassan levantando-se, bocejando, peidando.
— Te acorda, Ria — disse ele. — Gigi? ’Tá na hora de levantar.
Quem ficou de costas, com a mão no rosto de Lilás.
— Perdoa-me, querida. Vou telefonar a ele hoje pra pedir desculpas.
Ela tomou-lhe a mão e beijou-a.
— Foi mais forte que você — disse. — Ele compreendeu.
— Vou pedir pra ele me ajudar a encontrar um bom emprego — disse Quem.
Lilás olhou-o com ar interrogativo.
— Já desopilei tudo — explicou. — Que nem o uísque. Tudo. Serei um ferrinho trabalhador, otimista. Vou aceitar e me conformar. Ainda teremos um apartamento maior que o do Ashi.
— Não precisa tanto. Mas eu gostaria de ter dois quartos.
— Nós teremos — prometeu ele. —Daqui a dois anos. Dois quartos em dois anos: prometo.
Ela sorriu.
— Acho que devíamos pensar em nos mudar pra Nova Madri, onde moram os nossos amigos ricos — disse ele. — Aquele tal de Lars dirige uma escola, você sabia? Talvez desse pra você ensinar lá. E o bebê podia frequentar as aulas quando tivesse idade.
— Ensinar o quê?
— Qualquer coisa. Sei lá.
Abaixou a mão e acariciou-lhe os seios.
— A ter seios bonitos, por exemplo.
— É melhor a gente se vestir — retrucou, sorrindo.
— Deixa o café pra lá — disse ele, puxando-a para trás. Rolou por cima dela e os dois se abraçaram e se beijaram.
— Lilás! — chamou Ria. — Que tal foi a visita?
Lilás desvencilhou a boca.
— Depois eu conto! — gritou.
Enquanto percorria a galeria na mina, lembrou-se da que levava a Uni, o túnel de Papai Jan por onde tinham rolado as comportas da memória.
Ficou estatelado.
Por onde tinham rolado as verdadeiras comportas da memória. E lá em cima estavam as falsas, os brinquedos cor-de-rosa e laranja, acessíveis através da cúpula e dos elevadores, e que todo mundo julgava que fosse o próprio Uni. Todo mundo, inclusive — tinha que ser! — aqueles homens e mulheres que haviam partido para lutar contra ele no passado. Mas Uni, o autêntico Uni, estava nos pavimentos inferiores, e podia ser alcançado pelo túnel, pelo túnel de Papai Jan, por trás do Monte Amor.
E ainda estaria lá — provavelmente com a abertura dissimulada, talvez até mesmo selada por um metro de concreto
— mas ainda estaria lá. Porque ninguém se dá ao trabalho de encher um túnel comprido, especialmente um computador eficiente. E havia espaço reservado para outras comportas de memória lá embaixo — conforme Papai Jan dissera — de maneira que o túnel um dia voltaria a ter utilidade.
Estava lá, por trás do Monte Amor.
Um túnel até Uni.
Com mapas e itinerários adequados, alguém que soubesse o que estava fazendo poderia, provavelmente, descobrir a posição exata ou, pelo menos, aproximada.
— Você aí! Não fique parado! — gritou uma voz*
Seguiu adiante rapidamente, pensando naquilo, pensando naquilo.
Estava lá. O túnel.
6
Se for dinheiro, a resposta é negativa — disse Júlia Costanza, caminhando com passo enérgico entre teares barulhentos e mulheres imigrantes que olhavam para ela- — Se for emprego, talvez possa ajudá-lo.
Quem, andando a seu lado, explicou:
— Ashi já me conseguiu emprego.
— Então é dinheiro — retrucou.
— Em primeiro lugar, informação. Depois, talvez, dinheiro.
Empurrou uma porta.
— Não — disse Júlia, entrando. — Por que você não procura o S.I.? E pra isso que eles existem. Que informação? A respeito do quê?
Olhou-o de soslaio, enquanto subiam uma escada circular que oscilava sob o peso de ambos.
— Não podíamos sentar nalgum lugar por cinco minutos? — perguntou Quem.
— Se eu me sentar — respondeu Júlia, — metade desta ilha amanhã ficará nua. Pra você, provavelmente, não faz diferença, mas pra mim faz. Que informação?
Ele sufocou o ressentimento. Fitando aquele perfil de nariz aquilino, disse:
— Aqueles dois ataques a Uni que você...
— Não — atalhou, parando e olhando para ele, com a mão apoiada ao pilar central da escada. — Se é sobre isso, eu realmente não quero ouvir mais nada. Adivinhei no momento em que você entrou naquela sala, o ar de desaprovação que você tinha. Não. Não estou mais interessada em nenhum plano e maquinações. Procure outra pessoa.
E subiu os degraus.
Ele foi atrás depressa e alcançou-a.
— Eles planejavam usar um túnel? — perguntou. — Só me responda isto: eles iam entrar por um túnel por trás do Monte Amor?
Ela empurrou a porta no alto da escada. Ele segurou para ela passar e seguiu logo no encalço, entrando num amplo sótão, onde havia algumas peças de máquina. Pássaros saíram esvoaçando por buracos no telhado pontiagudo.
— Eles iam misturar-se com as outras pessoas — disse ela, atravessando o sótão em linha reta até uma porta na extremidade oposta. — Com os turistas. Ao menos o plano era esse. Iam descer pelos elevadores.
— E depois?
— Não vejo motivo pra...
— Quer responder-me, por favor? — implorou.
Ela se virou irritada, e seguiu adiante.
— Parece que tem uma grande janela de observação — disse. — Iam quebrá-la e jogar explosivos lá dentro.
— Os dois grupos?
— Sim.
— Talvez tenham tido êxito.
Ela parou com a mão na porta e olhou-o, sem entender.
— Aquilo não é realmente Uni — explicou-lhe. — É um espetáculo para turistas. E talvez também se destine a ser um alvo falso para agressores. Pode ter explodido tudo sem que nada tenha sucedido... só que seriam presos e submetidos a tratamento.
Ela continuou olhando-o.
O verdadeiro fica bem mais embaixo — disse. — Ocupa três pavimentos. Estive lá uma vez quando eu tinha dez ou onze anos.
— Escavar um túnel é a coisa mais ri... — começou ela.
— Ele já existe — interrompeu. — Não precisa ser escavado.
— Ela fechou a boca, olhou para ele, virou-lhe as costas rapidamente, e empurrou a porta. Comunicava com outro sótão, profusamente iluminado, onde havia uma fileira de prelos imóveis, com os cofres cobertos por panos. O soalho estava alagado e dois homens procuravam erguer a ponta de um cano comprido que, pelo jeito, caíra da parede em cima de uma correia transportadora que se achava parada, cheia de pedaços cortados de fazenda. A ponta presa à parede não se danificara e os homens tentavam levantar a parte caída para tirá-la de cima da correia e recolocá-la no devido lugar. Um terceiro homem, imigrante, aguardava o momento de recebê-la, no alto de uma escada.
— Ajude-os — ordenou Júlia, começando a juntar pedaços de fazenda no soalho molhado.
— Se é assim que eu vou ocupar o meu tempo, tudo continuará na mesma — retrucou Quem. — Pra você não faz diferença, mas pra mim faz.
— Ajude-os! — ordenou Júlia. — Ande de uma vez! Depois falaremos! Com insolências é que você não vai conseguir nada mesmo!
Quem ajudou os homens a firmar o cano à parede e depois saiu em companhia de Júlia para um patamar gradeado na parte lateral do prédio. Brilhando ao sol alto da manhã, Nova Madri estendia-se a seus pés. Ao longe via-se uma faixa de mar azul esverdeado, pontilhada de barcos pesqueiros.
— Cada dia aparece uma novidade — queixou-se Júlia, enfiando a mão no bolso do avental cinza.
Tirou cigarros, ofereceu um a Quem, e acendeu-os com fósforos bem ordinários.
Os dois fumaram.
— O túnel está lá — disse Quem. — Foi utilizado pra levar as comportas de memória pra dentro.
— É possível que alguns grupos com quem eu não entrei em contato estivessem informados a respeito — opinou Júlia.
— Não dá pra sondar?
Ela tragou a fumaça. Parecia mais velha à luz do dia. A pele do rosto e do pescoço estava sulcada de rugas.
— Sim — respondeu. — Acho que dá. Como é que você ficou sabendo?
Contou-lhe.
— Tenho certeza de que não foi aterrado — disse. — Deve ter quinze quilômetros de extensão. E ademais vai ser utilizado novamente. Há espaço de reserva pra outras comportas, quando a Família aumentar.
Ela olhou-o com uma expressão de dúvida.
— Eu pensei que as colônias tivessem seus próprios computadores — observou.
— E têm — confirmou, sem compreender.
Mas logo viu aonde ela queria chegar. Era só nas colônias que a Família estava aumentando. Na Terra, com dois filhos por casal e nem todos obtendo licença para procriar, a Família, em vez de aumentar, diminuía cada vez mais. Ele nunca tinha relacionado essa ideia com o que Papai Jan comentara a respeito de espaço para outras comportas de memória.
— Talvez seja utilizado para outro equipamento de tele- controle — sugeriu.
— Ou talvez o seu avô não fosse uma fonte de informação muito segura.
— Foi ele quem teve a ideia do túnel — lembrou Quem. — Ainda está lá, eu tenho certeza. E pode ser um meio, o único, de se chegar até Uni. Eu vou tentar e preciso de sua ajuda, tanto quanto possível.
— Você precisa do meu dinheiro, quer dizer.
— Sim. E de sua ajuda também. Pra encontrar as pessoas certas, com a necessária habilidade. E pra obter informações indispensáveis, além do aparelhamento. E pra descobrir gente que possa ensinar coisas que não sabemos. Quero fazer isso com toda a calma e cautela. Eu quero voltar.
Ela o olhou com os olhos franzidos pela fumaça do cigarro.
— Ora viva, até que você não é tão idiota assim. Que espécie de emprego o Ashi achou pra você?
— Lavar pratos no Cassino.
— Deus do céu! Apareça aqui amanhã de manhã, às oito menos um quarto.
— No Cassino eu tenho as manhãs livres.
— Apareça aqui! Você disporá do tempo necessário.
— Está bem — concordou, sorrindo. — Obrigado.
Ela virou as costas e contemplou o cigarro. Esmagou-o contra a grade.
— Só que eu não vou entrar com o dinheiro — disse. — Pelo menos não tudo. Não posso. Você não faz ideia do que custa uma coisa destas. Explosivos, por exemplo: da última vez saiu por mais de dois mil dólares, e isso foi há cinco anos. Sabe Deus quanto não custaria hoje.
Franziu o cenho para o toco do cigarro e atirou-o pela grade.
— Pagarei o que eu puder. E apresentarei você a pessoas que cobrirão o restante se você bajulá-las bastante.
— Obrigado. É só o que eu preciso. Obrigado.
— Deus do céu, lá vou eu outra vez — suspirou Júlia. Virou-se para Quem. — Espere e verá: quanto mais velho você fica, menos você muda. Eu sou filha única, sempre consegui o que quis. Esse é o meu mal. Vamos embora. Tenho mais que fazer.
Desceram a escada do patamar.
— É fato — continuou Júlia. — Eu tenho tudo quanto é espécie de motivos nobres pra perder tempo e dinheiro com gente como você... um impulso cristão pra ajudar a Família, o amor pela justiça, pela liberdade, pela democracia... mas a pura verdade é que sou uma filha única que sempre conseguiu o que quis. Acho enlouquecedor, simplesmente enlouquecedor, não poder ir aonde bem entendo neste planeta! Ou sair dele, pra ser mais precisa! Você não faz ideia da raiva que sinto daquele maldito computador!
Quem riu.
— Faço, sim! É exatamente o que eu sinto!
— Aquilo é uma monstruosidade infernal.
Caminharam ao redor do prédio.
— E uma monstruosidade, sim — retrucou Quem, jogando o cigarro fora. — Pelo menos do jeito que ficou agora. Uma das coisas que me interessa averiguar é se há possibilidade, se tudo correr bem, de mudar o funcionamento dele, em vez de destruí-lo. Se a Família pudesse governá-lo, e não vice-versa, não seria tão ruim. Você acredita mesmo em céu e inferno?
— Não vamos começar a discutir religião, senão você acaba lavando pratos no Cassino. Quanto estão-lhe pagando?
— Seis e cinquenta por semana.
— É mesmo?
— É.
— Eu lhe pagarei o mesmo, mas se alguém por aqui perguntar, diga que você está ganhando cinco.
Esperou até que Júlia interrogasse uma série de pessoas sem descobrir nenhuma expedição de ataque que tivesse sido informada da existência do túnel, e só então, confirmando a sua decisão, revelou a Lilás os planos que tinha.
— Você não pode! — protestou ela. — Não vê quanta gente já tentou em vão?!
— Eles não sabiam onde deviam atacar.
Ela sacudiu a cabeça, levantou a testa e olhou para ele.
— Isso é uma.„ eu nem sei o que dizer — gaguejou. — Pensei que você tivesse... acabado com essa mania. Pensei que estivéssemos sossegados.
E gesticulou com as mãos, indicando o quarto, o quarto que haviam conseguido em Nova Madri, com as paredes que os dois tinham pintado, a estante de livros que ele mesmo fizera, a cama, a geladeira, o desenho de uma criança rindo, feito por Ashi.
— Meu bem — retrucou Quem, — eu talvez seja a única pessoa em todas as ilhas que sabe da existência do túnel, que conhece o verdadeiro Uni. Eu tenho que fazer uso disso. Como é que posso ficar de braços cruzados?
— Pois muito bem, faça uso, então. Planeje, ajude a organizar uma expedição... ótimo! Até eu posso ajudar! Mas por que você precisa ir junto? Deixe isso pros outros, pra quem não tenha família.
— Eu ainda estarei aqui quando o bebê nascer. Vai levar muito tempo pra aprontar tudo. E depois só me afastarei por... talvez uma semana, no máximo.
Ela olhou bem para ele.
— Como é que você pode afirmar uma coisa dessas? Como é que pode dizer que você... é bem capaz que você nunca mais volte! Podem prendê-lo e submetê-lo a tratamento!
— Nós aprenderemos a lutar. Teremos armas e...
— Os outros é que devem ir!
— Como posso pedir a eles se eu mesmo não for junto?
— Peça, é o que basta. Peça.
— Não. Eu também tenho que ir.
— Você quer ir, isso é o que é. Você não tem que ir. Você quer ir.
Ficou calado um instante.
— Está bem. Eu quero, sim. Nem posso pensar em não estar presente quando Uni for derrotado. Eu mesmo quero jogar o explosivo, ou puxar a alavanca pessoalmente, ou fazer, enfim, o que for necessário... eu mesmo.
— Você está doente — retrucou. Levantou a costura que segurava no colo, encontrou a agulha e começou a coser. — Estou falando sério. Você está doente sobre esse assunto do Uni. Não foi ele que nos trouxe pra cá: nós tivemos a sorte de chegar aqui. Ashi tem razão: ele nos teria matado assim como mata as pessoas aos sessenta e dois anos. Não precisava desperdiçar lanchas nem ilhas. Nós fugimos dele. Ele já foi derrotado. E você está doente em querer voltar pra derrotá-lo outra vez.
— Ele nos trouxe pra cá porque os programadores não poderiam justificar a morte de pessoas ainda jovens.
— Balela — disse Lilás. — Já justificaram a morte de velhos, se quisessem justificariam até a de crianças. Nós fugimos. E você agora quer voltar.
— E o que me diz de nossos pais? Eles vão morrer dentro de poucos anos. E Floco de Neve e Pardal... a Família inteira, em suma?
Ela cosia, espetando a agulha no pano verde — as mangas do vestido que ia transformar em camisola para o bebê.
— Os outros é que devem ir — repetiu. — Gente que não tem família.
Mais tarde, na cama, ele disse:
— Se acontecer alguma coisa, Júlia cuidará de você. E do bebê.
— Que grande consolo. Obrigada. Muito obrigada. E agradeça a Júlia também.
A partir daquela noite a situação entre os dois permaneceu inalterável: rancor, por parte dela, e recusa em se deixar impressionar, por parte dele.
CONTINUA
5
Foram morar numa cidade chamada Pollensa, ocupando metade de um quarto de um prédio em ruínas, caindo aos pedaços, da Vila-Ferrinho onde faltava luz a toda hora e a água era encardida. Tinham cobertor, mesa, uma cadeira, e uma caixa para roupas que eles utilizavam como segunda cadeira. As pessoas da outra metade do quarto, os Newmans — um casal quarentão com a filha de nove anos — emprestavam-lhes o fogão, a televisão e uma prateleira do refrigerador onde guardavam a comida. O quarto era dos Newmans. Quem e Lilás pagavam quatro dólares por semana de aluguel.
Ganhavam, entre ambos, nove dólares e vinte cents por semana. Quem trabalhava em mina de ferro, carregando minério em carrinhos com uma turma de imigrantes ao longo de um carregador automático que jazia imóvel e empoeirado, sem possibilidade de conserto. Lilás trabalhava numa fábrica de roupas, pregando colchetes em camisas. Lá também havia outra máquina estragada, grossa de penugem.
Os nove dólares e vinte cents tinham que dar para o aluguel semanal, a comida, as passagens, alguns cigarros e um jornal chamado Imigrante de Liberdade. Economizavam cinquenta cents para a compra de roupa e eventuais emergências, pagando outros cinquenta para o Socorro aos Imigrantes, como amortização parcial do empréstimo de vinte dólares recebidos na chegada. Comiam pão, peixe, batatas e figos. No começo esses alimentos lhes causaram cãibras intestinais e prisão de ventre, mas logo se habituaram, passando a se deliciar com os variados sabores e consistências. Aguardavam a hora da refeição com ansiedade, embora se aborrecessem com o preparo da comida e a limpeza posterior.
Seus corpos sofreram transformações. Lilás sangrou alguns dias, o que os Newmans asseguraram que era normal em mulheres que não faziam tratamento, e ficou mais roliça e elástica à medida que o cabelo crescia. Quem enrijeceu e se fortificou com o trabalho na mina. A barba cresceu preta e parelha, e ele a aparava uma vez por semana com a tesoura dos Newmans.
Receberam nomes, dados por um funcionário do Serviço de Imigração. Quem passou a chamar-se Eiko Newmark, e Lilás, Grace Newbridge. Mais tarde, quando casaram — sem fazer pedido a Uni, mas com formulários, emolumentos e promessas a Deus — o de Lilás foi mudado para Grace Newmark. Mas entre ambos continuaram a tratar-se por Quem e Lilás.
Acostumaram-se a lidar com moedas e negociar com lojistas, e a andar no monotrilho aéreo de Pollensa, desmantelado e sempre lotado. Aprenderam a esquivar-se dos habitantes locais sem ofendê-los. Decoraram o Voto de Lealdade e prestaram juramento à bandeira vermelha-e-amarela de Liberdade. Batiam às portas antes de abri-las, diziam quarta-feira e não dia-de-Wood, março em vez de marx. Lembravam-se continuamente que lutar e odiar eram palavras admissíveis, ao passo que foder era “palavrão”.
Hassan Newman bebia muito uísque. Logo depois de chegar a casa do trabalho — na maior fábrica de móveis da ilha — começava a fazer barulho brincando com Gigi, a filha, quase derrubando a cortina que dividia o quarto, com uma garrafa presa entre os três dedos restantes da mão aleijada pela serra.
— Vamos, seus ferrinhos tristes — dizia sempre, — onde ódio estão os copos de vocês? Alegria, animem-se um pouco.
Quem e Lilás bebiam junto com ele algumas vezes, porém achavam que o uísque os deixava confusos e canhestros, e geralmente rejeitavam o convite.
— Ora, vamos — disse ele uma noite. — Eu sei que sou o senhorio, mas não sou propriamente um safado, sou? Então o que é? Vocês pensam que eu espero que vocês retri... retribuam? Eu sei que vocês não botam dinheiro fora.
— Não se trata disso — protestou Quem.
— Então o que é? — insistiu Hassan, vacilando e equilibrando-se nos pés.
Quem ficou calado um instante e depois respondeu:
— Bem, qual é a vantagem em fugir dos tratamentos pra depois se embrutecer com uísque? Desse modo tanto faz viver aqui como no meio da Família.
— Ah — exclamou Hassan — Ah claro, agora entendi — olhou zangado para os dois: era um sujeito enorme, de barba crespa e olhos injetados de sangue. — Vocês vão ver. Esperem até conhecer melhor isto aqui. Esperem só até conhecer melhor isto aqui, é só o que eu digo.
E virou as costas, tateando em busca da abertura da cortina. Ainda ouviram os seus resmungos, enquanto a esposa, Ria, tentava acalmá-lo.
Quase todos os moradores do prédio, pelo visto, bebiam tanto quanto Hassan. Retumbavam gritos de alegria ou fúria pelas paredes a qualquer hora da noite. O elevador e os corredores recendiam a uísque, a peixe e a perfumes suaves que eles usavam para disfarçar o mau cheiro do uísque e do peixe.
Todas as noites, praticamente, depois que terminavam de fazer a limpeza necessária, Quem e Lilás subiam ao terraço para apanhar um pouco de ar puro ou então sentavam à mesa para ler o Imigrante ou livros que tinham encontrado no monotrilho ou tomado emprestado a uma pequena biblioteca do Socorro aos Imigrantes. Às vezes assistiam à televisão em companhia dos Newmans — novelas sobre desentendimentos idiotas entre famílias locais, com frequentes intervalos para anúncios de diferentes marcas de cigarros e desinfetantes. Eventualmente havia discursos, pronunciados pelo General Costanza ou o chefe da Igreja, o Papa Clemente — discursos inquietantes a respeito de racionamentos de víveres, moradia e recursos, cuja culpa recaía exclusivamente sobre os imigrantes. Hassan, que o uísque deixava belicoso, em geral desligava o aparelho antes que os oradores finalizassem. Ao contrário da televisão da Família, em Liberdade podia-se ligá-la e desligá-la à vontade.
Um dia na mina, perto do fim da pausa de quinze minutos para almoço, Quem aproximou-se do carregador automático e pôs-se a examiná-lo, imaginando se de fato não teria conserto ou se não seria possível substituir alguma peça, que não possuísse sobressalente, por outro expediente qualquer. O ilhéu encarregado da turma de trabalhadores chegou perto e perguntou-lhe o que estava fazendo ali. Quem explicou, tomando cuidado para não faltar com o respeito, mas o sujeito ficou furioso.
— Vocês, seus ferrinhos fodidos, pensam todos que são uns sabidos de merda! — explodiu, com a mão no cabo do revólver. — Volte pro seu lugar e fique lá! Se não tem outra coisa no que pensar, trate de dar um jeito de comer menos!
Nem todos os ilhéus eram tão ruins assim. O proprietário do prédio em que moravam simpatizou com Quem e Lilás e prometeu alugar-lhes a cinco dólares por semana o primeiro quarto que desocupasse.
— Vocês não são como essa gente — disse ele, — que bebe, anda nua em pêlo pelos corredores... prefiro ganhar um pouco menos e ficar com vocês.
Quem olhou para ele e respondeu:
— Há motivo prós imigrantes beberem, sabe?
— Eu sei, eu sei — disse o proprietário. — Sou o primeiro a reconhecer: nós tratamos vocês de uma maneira incrível. Mas seja como for, vocês dois bebem? Andam por aí nus em pêlo?
— Obrigada, Mr. Corsham. Nós lhe ficaremos gratos se nos puder amimar um quarto.
Pegaram resfriados e a gripe. Lilás perdeu o emprego na fábrica de roupas, mas conseguiu outro melhor na cozinha de um restaurante frequentado por ilhéus, cuja distância dava para percorrer a pé desde o prédio. Uma noite, dois guardas apareceram no quarto, verificando as carteiras de identidade e à procura de armas. Hassan resmungou qualquer coisa ao mostrar sua carteira e o derrubaram a pauladas. Espetaram facas nos colchões e quebraram alguns pratos.
Lilás não teve “regras”, seus poucos dias de hemorragia vaginal durante o mês, o que indicava que ficara grávida.
Uma noite no terraço, Quem deteve-se a fumar e contemplar o céu do lado nordeste, onde pairava um fosco clarão alaranjado proveniente do complexo de produção de cobre em EUR91766. Lilás, que estava recolhendo roupa do arame, aproximou-se e abraçou-o pela cintura. Beijou-lhe o rosto e encostou-se nele.
— A coisa não está tão ruim assim — disse ela. — Já economizamos doze dólares, vamos ter quarto próprio qualquer dia destes e antes que você se dê conta teremos um bebê.
— Um ferrinho.
— Não — retrucou Lilás. Um bebê.
— Isto aqui é uma porcaria — disse Quem. — Uma droga. Eu não aguento mais.
— Não há outra alternativa. A gente tem que se conformar. Quem ficou calado. Continuou contemplando o clarão alaranjado no céu.
O Imigrante de Liberdade publicava artigos semanais sobre cantores e atletas imigrantes e, de vez em quando, cientistas, que ganhavam quarenta ou cinquenta dólares por semana e residiam em bons apartamentos, convivendo com ilhéus influentes e esclarecidos, e que alimentavam esperanças de um incremento de relações mais justas entre os dois grupos. Quem lia esses artigos com desdém — o objetivo dos donos do jornal, no seu entender, era acalmar e apaziguar os imigrantes — mas Lilás os aceitava ao pé da letra, como prova de que a própria sorte de ambos acabaria melhorando.
Uma semana, em outubro, quando já fazia pouco mais de seis meses que estavam em Liberdade, saiu um artigo sobre um pintor chamado Morgan Newgate, que tinha vindo de Eur há oito anos e morava num apartamento de quatro peças em Nova Madri. Seus quadros — um dos quais, uma cena da Crucificação, acabava de ser presenteado ao Papa Clemente — chegavam a render-lhe cem dólares cada um. Assinava-os com um A, dizia o jornal, porque seu apelido era Ashi.
— Cristo e Wei — exclamou Quem.
— Que foi? — perguntou Lilás.
— Eu estive na academia com esse Morgan Newgate — disse Quem, mostrando-lhe o artigo. — Éramos bons amigos. O nome dele era Karl. Você se lembra daquele quadro do cavalo que eu tinha lá em Ind?
— Não — respondeu ela, lendo.
— Pois foi ele quem desenhou. Ele assinava tudo com um A no meio de um círculo.
É mesmo, lembrou-se, parecia que Ashi era o nome que Karl havia mencionado. Cristo e Wei, então ele também fugira! Tinha “fugido”, se se podia dizer assim, para Liberdade, para o pavilhão de isolamento de Uni. Pelo menos estava fazendo o que sempre queria fazer: para ele Liberdade realmente significava liberdade.
— Você devia telefonar-lhe — sugeriu Lilás, continuando a ler.
— E vou mesmo — disse Quem.
Mas, pensando bem... Qual seria a vantagem, sinceramente, em telefonar a Morgan Newgate, que pintava Crucificações para o Papa e garantia a seus colegas imigrantes que a situação melhorava dia a dia? Talvez Karl não tivesse dito aquilo. Talvez o Imigrante estivesse mentindo.
— Não fique só na intenção — insistiu Lilás. — Ele provavelmente o ajudará a conseguir um bom emprego.
— É — concordou Quem, — provavelmente.
Ela olhou para ele.
— O que é que há? — perguntou. — Você não quer um bom emprego?
— Vou ligar pra ele amanhã, no caminho pro trabalho.
Porém não ligou. Lançou-se com redobrada fúria ao trabalho na mina, escavando minério com a pá. Lutem-se todos, pensou: os ferrinhos que bebem, os ferrinhos que acham que as coisas estão melhorando, os safados, os pamonhas — abaixo Uni.
No domingo seguinte, de manhã, Lilás foi junto com ele até um prédio que ficava a dois quarteirões de distância, onde havia um telefone no saguão, e esperou enquanto Quem folheava a lista de assinantes esfrangalhada. Morgan e Newgate eram nomes comuns entre os imigrantes, mas poucos possuíam telefone. Encontrou apenas um Newgate, Morgan e mesmo assim em Nova Madri.
Quem colocou três fichas no aparelho e disse o número. A tela estava quebrada, mas não fazia a mínima diferença, pois os telefones de Liberdade de toda maneira não transmitiam mais imagens.
Uma mulher atendeu, e quando lhe perguntou se Morgan Newgate estava, ela respondeu que sim, e depois a linha ficou muda. O silêncio se prolongava e Lilás, parada a poucos metros de distância, ao lado de um cartaz de Sani-Spray, impacientou- se e veio ver o que havia.
— Ele não está em casa? — perguntou num cochicho.
— Alô? — atendeu uma voz masculina.
—·Quem fala? É Norman Newgate? — perguntou Quem.
— É. E aí?
— Aqui é Quem. Li RM, da Academia das Ciências Genéticas.
Houve um silêncio e depois:
— Meu Deus! — exclamou a voz. — Li! Você conseguiu blocos e carvão pra mim!
— Sim — confirmou Quem. — E contei ao meu conselheiro que você andava doente e precisava de ajuda.
Karl deu uma risada.
— Isso mesmo, não foi, seu cretino! Mas que formidável! Quando é que você chegou?
— Há uns seis meses, mais ou menos.
— Você está em Nova Madri?
— Em Pollensa.
— Que anda fazendo?
— Trabalhando numa mina.
— Cristo, que espeto! — exclamou Karl. E depois de uma pausa: — Isto aqui é um inferno, não é?
— Se é — respondeu Quem, pensando: Ele usa as palavras deles. Inferno. Meu Deus. Aposto até que ele reza.
— Pena que estes telefones não estejam funcionando direito pra eu poder enxergar você — disse Karl.
De repente Quem teve vergonha de sua hostilidade. Explicou pra Karl quem era Lilás e que estava grávida. Karl disse que tinha casado na Família, mas viajara sozinho. Não aceitou os cumprimentos de Quem pelo seu sucesso.
— As coisas que eu vendo são detestáveis. Criancinhas safadas engraçadinhas. Mas sempre dá pra pintar o que eu gosto umas três vezes por semana, de modo que não me posso queixar. Escuta, Li... não, como é mesmo? Quem? Quem, olhe, a gente precisa se encontrar. Eu tenho um motociclo: irei até aí qualquer noite destas. Não, espera. Você e a sua mulher têm alguma coisa pra fazer domingo que vem?
Lilás olhou ansiosa para ele.
— Acho que não — respondeu Quem. — Não tenho certeza.
— Vou receber uns amigos — disse Karl. — Venham vocês também, ‘tá bom? Lá pelas seis horas.
Lilás acenou com a cabeça.
— Vamos ver — retrucou Quem. — Provavelmente iremos.
— Façam força — insistiu Karl, dando-lhe o endereço.
— Que bom que você veio pra cá. Apesar dos pesares, sempre é melhor do que lá, não é?
— Um pouco.
— Conto com vocês domingo que vem. Até logo, irmão.
— Até logo — despediu-se Quem e desligou.
— A gente vai, não vai? — perguntou Lilás .
— Você faz ideia do preço que custa a passagem?
— Ah, Quem...
— Está certo. Está certo, a gente vai. Mas não pretendo aceitar nenhum favor dele. E não quero que você peça, tampouco. Não se esqueça.
Lilás passou as noites da semana inteira a reformar as melhores roupas que possuíam. Cortou as mangas poídas de um vestido verde e remendou uma perna da calça para que não se notasse o rasgão.
O prédio, na periferia da Vila-Ferrinho em Nova Madri, não oferecia piores condições do que a maioria dos edifícios habitados por ilhéus. O saguão fora varrido, recendendo levemente a uísque, peixe e perfume, e o elevador funcionava bem.
Incrustado em reboco novo, junto à porta de Karl, havia um botão: uma campainha para chamar. Quem apertou-a. Ficou todo empertigado e Lilás apoiou-se a seu braço.
— Quem é? — perguntou uma voz masculina.
— Quem Newmark — respondeu.
Ouviu-se o barulho da chave, a porta se abriu e Karl — um Karl de trinta e cinco anos, de barba, com os olhos penetrantes do Karl de antigamente —, sorrindo, apertou a mão de Quem e exclamou:
— Li! Pensei que você não vinha mais!
— É que encontramos uns safados gozadores — explicou Quem.
— Ai, Cristo — gemeu Karl, fazendo-os entrar.
Passou a chave na porta. Quem apresentou Lilás.
— Como vai, Mr. Newgate? — cumprimentou ela.
E Karl, aceitando a mão que lhe era estendida e olhando-a no rosto, respondeu.
— Chame-me de Ashi. Bem, e você, Lilás?
— Muito bem, Ashi.
Voltando-se para Quem, Karl perguntou:
— Eles machucaram vocês?
— Não. Só disseram “recitem o Voto” e bobagens desse gênero.
— Canalhas — disse Karl. — Entrem, vou-lhes servir um drinque e vocês esquecerão o incidente.
Tomou os dois pelo braço e conduziu-os por um corredor estreito, cujas paredes estavam atulhadas de quadros.
— Você está com ótimo aspeto, Quem.
— Você também. Ashi.
Sorriram um para o outro.
— Dezessete anos, irmão — suspirou Karl-Ashi.
Havia homens e mulheres sentados numa sala de paredes marrons, cheia de fumaça, umas dez ou doze pessoas conversando, de cigarros e copos na mão.
— Este é Quem e esta é Lilás — apresentou Karl. — Quem e eu cursamos juntos a Academia: os dois piores alunos de genética da Família.
Os homens e as mulheres sorriram e Karl começou a apresentá-los, um a um, pelos respetivos nomes:
— Vito, Sunny, Ria, Lars...
Na maioria eram imigrantes, homens barbudos e mulheres de cabelos compridos, com os olhos e a tez típicos da Família. Havia dois ilhéus: uma mulher de pele clara, empertigada, de nariz aquilino, que devia andar beirando os cinquenta anos e usava uma cruz de ouro pendurada no traje preto que cobria o seu corpo incrivelmente magro (“Júlia”, disse Karl; ela sorriu- lhe com os lábios fechados); e outra, mais moça, gorda e ruiva, de vestido justo, recamado de contas prateadas. Alguns dos presentes podiam ser tanto imigrantes como ilhéus: um homem imberbe, de olhos cinzentos, chamado Beto, uma loura, e um rapaz de olhos azuis.
— Uísque ou vinho? — ofereceu Karl. — Lilás?
— Vinho, por favor.
Acompanharam-no a uma pequena mesa arrumada com garrafas e copos, pratos contendo uma ou duas fatias de queijo e carne, e maços de cigarros e fósforos. Um pesa-papéis de lembrança cobria uma pilha de guardanapos. Quem pegou-o e examinou-o: era de AUS21989,
— Ficou com saudade? — perguntou Karl, servindo o vinho.
Quem mostrou-o para Lilás e ela sorriu.
— Não muito — disse, repondo-o no lugar.
— Quem?
— Uísque.
A ruiva do vestido prateado se aproximou, sorridente, com o copo vazio na mão coberta de anéis.
— Você é uma verdadeira beleza — disse para Lilás. — Sinceramente — virou-se para Quem, — eu acho vocês todos muito bonitos. A Família pode não ter liberdade, alguma; mas está muito mais adiantada do que nós em matéria de estética. Eu daria tudo pra ser magra, morena e ter olhos amendoados.
E continuou por aí afora — mencionando a atitude sensata da Família em questões de sexo — até que Quem percebeu que estava de copo na mão e Karl e Lilás conversavam com outras pessoas enquanto a mulher não o largava. Traços pretos de pintura delineavam e repuxavam-lhe os olhos.
— Vocês são muito mais abertos do que nós — disse ela. — Sexualmente, digo. Aproveitam mais.
Uma imigrante se aproximou.
— Heinz não vai vir, Marge? — perguntou.
— Ele está em Palma — respondeu a gorda, voltando-se para ela. — Uma ala do hotel desabou.
— Com licença, sim? — desculpou-se Quem, afastando-se por um lado.
Dirigiu-se à outra extremidade da sala, acenando com a cabeça às pessoas sentadas ali, e bebeu um pouco do uísque, admirando um quadro na parede — placas marrons e vermelhas contra o fundo branco. O uísque tinha melhor sabor que o de Hassan. Era menos amargo e ardente, mais leve e mais agradável ao paladar. O quadro com as placas marrons e vermelhas não passava da planta de apartamento, interessante de olhar um momento, mas sem a menor relação com a vida. O A no meio de um círculo de Karl (não, de Ashi!) ocupava um dos cantos inferiores. Quem ficou a imaginar se aquilo seria um dos quadros ruins que ele vendia ou, já que estava pendurado ali na sala de estar, se fazia parte dos que “gostava de pintar” a que se referira com evidente satisfação. Será que não se dedicava mais aos belos homens e mulheres sem pulseiras que costumava desenhar na época da Academia?
Bebeu mais um pouco de uísque e virou-se para as pessoas sentadas por perto: três homens e uma mulher, todos imigrantes. Conversavam sobre móveis. Prestou atenção durante alguns minutos, bebeu, e afastou-se.
Lilás estava sentada ao lado da mulher magra de nariz aquilino — Júlia. Fumavam e palestravam, ou melhor, Júlia falava e Lilás ouvia.
Quem voltou à mesa e serviu-se de nova dose de uísque. Acendeu um cigarro.
Um homem chamado Lars apresentou-se a ele. Dirigia uma escola para filhos de imigrantes em Nova Madri. Fora trazido para Liberdade quando era pequeno e fazia quarenta e dois anos que morava na ilha.
Ashi se aproximou, segurando Lilás pela mão.
— Quem, venha conhecer o meu estúdio — convidou.
Levou-os da sala pelo corredor atulhado de quadros.
— Sabe com quem você estava conversando? — perguntou a Lilás.
— Júlia?
— Júlia Costanza — frisou. — Ela é prima do General. E o despreza. Foi uma das fundadoras do Socorro aos Imigrantes.
O estúdio era amplo e profusamente iluminado. Um retrato ainda incompleto de uma ilhoa de gato no colo estava pousado sobre um cavalete. Noutro, havia uma tela pintada com placas azuis e verdes. Outros quadros se achavam encostados às paredes: placas marrons e alaranjadas, azuis e roxas, roxas e pretas, alaranjadas e vermelhas..
Ele explicou o que estava tentando fazer, ressaltando equilíbrios, e traços opostos, e sutis nuanças de colorido.
Quem perdeu o interesse, concentrando-se no uísque.
— Ouçam, seus ferrinhos! — disse ele, bastante alto para que todos pudessem escutar. — Parem de conversar sobre móveis um minuto e ouçam! Vocês sabem o que precisamos fazer? Lutar contra Uni! Não pensem que estou dizendo palavrão, me refiro a lutar literalmente. Lutar contra Uni! Porque ele é o culpado... por tudo! Pelos safados, que são o que são porque não têm comida nem espaço suficientes ou ligação com qualquer mundo exterior, pelos pamonhas, que são o que são porque vivem à custa de tratamentos de LKD e ficam tranquilizados desse modo, e por nós, que somos o que nós somos porque Uni nos pôs aqui pra se ver livre de nós! É Uni quem tem a culpa... ele congelou o mundo para que não houvesse mais mudanças... e nós temos que lutar contra ele! Temos que nos levantar dos nossos estúpidos traseiros surrados e LUTAR CONTRA ELE!
Ashi, sorrindo, esbofeteou-lhe o rosto.
— Ei, irmão — disse, — você passou um pouco da conta, sabe disso? Ei, Quem, você está me ouvindo? ·
Lógico que ele tinha passado um pouco da conta: lógico, lógico, lógico. Mas em vez de se embrutecer, libertara-se. A bebida lhe abrira tudo o que sufocara no íntimo durante meses a fio. Uísque era ótimo! Uísque era formidável!
Deteve a mão de Ashi e não se deixou esbofetear mais.
— Eu estou bem, Ashi. Sei o que estou dizendo.
E para os outros, sentados, vacilantes, sorridentes:
— Não podemos simplesmente desistir e aceitar a situação, nos conformando com esta prisão! Ashi, antigamente você desenhava membros sem pulseiras: eram tão bonitos! E agora você só pinta cores, placas de cor!
Tentaram obrigá-lo a sentar-se, Ashi de um lado, Lilás do outro, nervosa e encabulada.
— Você também, meu amor — continuou. — Você aceita tudo, está-se conformando.
Deixou-se sentar, não era fácil permanecer de pé e sentado era melhor, mais confortável, mais amplo.
— Temos que lutar em vez de nos conformar — repetiu. Lutar, lutar, lutar. Temos que lutar — disse ao homem imberbe de olhos cinzentos, instalado a seu lado.
— Por Deus, você tem razão! — concordou o homem. — Estou inteiramente de acordo! Lutar contra Uni! Como faremos? Sair por aí de lancha, levando junto o Exército por precaução? Mas talvez o mar seja controlado por satélite e os médicos estejam esperando com nuvens de LPK. Tenho uma ideia melhor: conseguiremos um avião... soube que existe um na ilha que voa de fato... e depois...
— Não mexe com ele, Bob — disse alguém. — Ele mal chegou à ilha.
— Nota-se — retrucou o homem, pondo-se em pé.
— Há uma solução — insistiu Quem. — Tem de haver. Há uma solução.
Pensou no mar, com a ilha no meio, mas não conseguia raciocinar com a necessária clareza. Lilás ocupou o lugar deixado vago pelo homem e tomou-lhe a mão.
— Precisamos lutar — disse a ela.
— Eu sei, eu sei — concordou, olhando-o tristonha.
Ashi veio e pôs uma xícara quente em sua mão.
— E café — disse. — Tome.
Estava muito quente e forte: bebeu um gole e depois afastou a xícara.
— O complexo de cobre — lembrou. — Em ’91766. O cobre tem que ser levado pro continente. Deve haver lanchas ou batelões. A gente podia...
— Já se tentou antes — disse Ashi.
Quem olhou para ele, achando que estava blefando, divertindo-se de certo modo à sua custa, como o homem imberbe de olhos cinzentos.
— Tudo o que você está dizendo — continuou Ashi, — tudo o que você está pensando... “lutar contra Uni’’... já foi dito e pensado antes. E tentado também. Uma dúzia de vezes. — Aproximou a xícara dos lábios de Quem. — Tome mais um pouco.
Quem afastou a xícara, olhou bem para ele e sacudiu a cabeça.
— Não é verdade — disse.
— E, irmão. Vamos, tome mais...
— Não é!
— E — disse uma mulher do outro lado da sala. — É verdade.
Júlia. Era Júlia, Júlia-a-prima-do-General, sentada ereta e solitária em seu vestido preto com a cruzinha de ouro.
— Cada cinco ou seis anos — continuou ela, — um grupo de pessoas como você... às vezes apenas duas ou três, às vezes até dez... se propõe a destruir o UniComp. Partem em lanchas, em submarinos que passam anos construindo. A bordo dos batelões que você acaba de mencionar. Levam armas, explosivos, máscaras contra gases, bombas lacrimogêneas, tudo quanto é dispositivo, com planos infalíveis. Mas nunca voltam. Eu financiei as duas últimas expedições e estou sustentando as famílias dos participantes, portanto falo com autoridade no assunto. Espero que você esteja bastante sóbrio pra compreender e poupar-se angústias inúteis. Aceitar e conformar-se é a única solução possível. Considere-se por feliz com o que você tem: uma linda esposa, um filho por nascer e uma pequena parcela de liberdade que, esperemos, crescerá à medida que o tempo passe. Posso acrescentar que, sejam quais forem as circunstâncias, jamais tomarei a financiar outra expedição dessas. Não sou tão rica como muita gente pensa.
Quem ficou olhando para ela. Ela retribuiu com firmeza, fitando-o com aqueles olhinhos pretos por cima do alvo nariz aquilino.
— Eles nunca voltaram, Quem — disse Ashi.
Quem virou-se para ele.
— Talvez tenham alcançado o continente — continuou Ashi, — talvez tenham chegado a ’001. Talvez até tenham entrado na cúpula. Mas é só até onde vão, pois desapareceram, todos. E Uni ainda está em funcionamento.
Quem olhou para Júlia.
— Homens e mulheres exatamente iguais a você — disse ela. — Já nem me lembro quando isso começou.
Ele olhou para Lilás, que lhe segurava a mão. Ela a apertou, fítando-o penalizada.
Olhou para Ashi, que lhe oferecia a xícara de café.
Recusou-a, sacudindo a cabeça.
— Não, eu não quero café — disse.
Permaneceu sentado, imóvel, a testa subitamente suada. Depois debruçou-se para a frente e começou a vomitar.
Estava na cama. Lilás, deitada a seu lado, dormia. Hassan roncava do outro lado da cortina. Sentiu um gosto azedo na boca e então lembrou-se do vômito. Cristo e Wei! E em cima do tapete... o primeiro que via em meio ano!
Depois lembrou-se do que lhe tinham dito aquela mulher, Júlia, e Karl-Ashi.
Continuou algum tempo deitado e por fim levantou-se, passando na ponta dos pés pela cortina e pelos Newmans adormecidos para chegar à pia. Tomou um gole d’água e, como não queria ir até o fim do corredor, urinou baixinho na pia mesmo e secou-a por completo.
Tomou a deitar-se junto de Lilás e puxou o cobertor. Sentia-se ainda meio embriagado. A cabeça doía. Mas deitou-se de costas, com os olhos fechados, respirando de leve e vagarosamente. Passados alguns instantes, sentiu-se melhor.
Manteve os olhos fechados e pensou numa porção de coisas.
Dali a meia hora, mais ou menos, o despertador de Hassan pôs-se a tocar com estrépito. Lilás se virou. Ele acariciou-lhe a cabeça e ela soergueu-se na cama.
— Você está bem? — perguntou-lhe.
— Sim, acho que sim — respondeu ele.
A luz se acendeu e os dois pestanejaram. Ouviram os resmungos de Hassan levantando-se, bocejando, peidando.
— Te acorda, Ria — disse ele. — Gigi? ’Tá na hora de levantar.
Quem ficou de costas, com a mão no rosto de Lilás.
— Perdoa-me, querida. Vou telefonar a ele hoje pra pedir desculpas.
Ela tomou-lhe a mão e beijou-a.
— Foi mais forte que você — disse. — Ele compreendeu.
— Vou pedir pra ele me ajudar a encontrar um bom emprego — disse Quem.
Lilás olhou-o com ar interrogativo.
— Já desopilei tudo — explicou. — Que nem o uísque. Tudo. Serei um ferrinho trabalhador, otimista. Vou aceitar e me conformar. Ainda teremos um apartamento maior que o do Ashi.
— Não precisa tanto. Mas eu gostaria de ter dois quartos.
— Nós teremos — prometeu ele. —Daqui a dois anos. Dois quartos em dois anos: prometo.
Ela sorriu.
— Acho que devíamos pensar em nos mudar pra Nova Madri, onde moram os nossos amigos ricos — disse ele. — Aquele tal de Lars dirige uma escola, você sabia? Talvez desse pra você ensinar lá. E o bebê podia frequentar as aulas quando tivesse idade.
— Ensinar o quê?
— Qualquer coisa. Sei lá.
Abaixou a mão e acariciou-lhe os seios.
— A ter seios bonitos, por exemplo.
— É melhor a gente se vestir — retrucou, sorrindo.
— Deixa o café pra lá — disse ele, puxando-a para trás. Rolou por cima dela e os dois se abraçaram e se beijaram.
— Lilás! — chamou Ria. — Que tal foi a visita?
Lilás desvencilhou a boca.
— Depois eu conto! — gritou.
Enquanto percorria a galeria na mina, lembrou-se da que levava a Uni, o túnel de Papai Jan por onde tinham rolado as comportas da memória.
Ficou estatelado.
Por onde tinham rolado as verdadeiras comportas da memória. E lá em cima estavam as falsas, os brinquedos cor-de-rosa e laranja, acessíveis através da cúpula e dos elevadores, e que todo mundo julgava que fosse o próprio Uni. Todo mundo, inclusive — tinha que ser! — aqueles homens e mulheres que haviam partido para lutar contra ele no passado. Mas Uni, o autêntico Uni, estava nos pavimentos inferiores, e podia ser alcançado pelo túnel, pelo túnel de Papai Jan, por trás do Monte Amor.
E ainda estaria lá — provavelmente com a abertura dissimulada, talvez até mesmo selada por um metro de concreto
— mas ainda estaria lá. Porque ninguém se dá ao trabalho de encher um túnel comprido, especialmente um computador eficiente. E havia espaço reservado para outras comportas de memória lá embaixo — conforme Papai Jan dissera — de maneira que o túnel um dia voltaria a ter utilidade.
Estava lá, por trás do Monte Amor.
Um túnel até Uni.
Com mapas e itinerários adequados, alguém que soubesse o que estava fazendo poderia, provavelmente, descobrir a posição exata ou, pelo menos, aproximada.
— Você aí! Não fique parado! — gritou uma voz*
Seguiu adiante rapidamente, pensando naquilo, pensando naquilo.
Estava lá. O túnel.
6
Se for dinheiro, a resposta é negativa — disse Júlia Costanza, caminhando com passo enérgico entre teares barulhentos e mulheres imigrantes que olhavam para ela- — Se for emprego, talvez possa ajudá-lo.
Quem, andando a seu lado, explicou:
— Ashi já me conseguiu emprego.
— Então é dinheiro — retrucou.
— Em primeiro lugar, informação. Depois, talvez, dinheiro.
Empurrou uma porta.
— Não — disse Júlia, entrando. — Por que você não procura o S.I.? E pra isso que eles existem. Que informação? A respeito do quê?
Olhou-o de soslaio, enquanto subiam uma escada circular que oscilava sob o peso de ambos.
— Não podíamos sentar nalgum lugar por cinco minutos? — perguntou Quem.
— Se eu me sentar — respondeu Júlia, — metade desta ilha amanhã ficará nua. Pra você, provavelmente, não faz diferença, mas pra mim faz. Que informação?
Ele sufocou o ressentimento. Fitando aquele perfil de nariz aquilino, disse:
— Aqueles dois ataques a Uni que você...
— Não — atalhou, parando e olhando para ele, com a mão apoiada ao pilar central da escada. — Se é sobre isso, eu realmente não quero ouvir mais nada. Adivinhei no momento em que você entrou naquela sala, o ar de desaprovação que você tinha. Não. Não estou mais interessada em nenhum plano e maquinações. Procure outra pessoa.
E subiu os degraus.
Ele foi atrás depressa e alcançou-a.
— Eles planejavam usar um túnel? — perguntou. — Só me responda isto: eles iam entrar por um túnel por trás do Monte Amor?
Ela empurrou a porta no alto da escada. Ele segurou para ela passar e seguiu logo no encalço, entrando num amplo sótão, onde havia algumas peças de máquina. Pássaros saíram esvoaçando por buracos no telhado pontiagudo.
— Eles iam misturar-se com as outras pessoas — disse ela, atravessando o sótão em linha reta até uma porta na extremidade oposta. — Com os turistas. Ao menos o plano era esse. Iam descer pelos elevadores.
— E depois?
— Não vejo motivo pra...
— Quer responder-me, por favor? — implorou.
Ela se virou irritada, e seguiu adiante.
— Parece que tem uma grande janela de observação — disse. — Iam quebrá-la e jogar explosivos lá dentro.
— Os dois grupos?
— Sim.
— Talvez tenham tido êxito.
Ela parou com a mão na porta e olhou-o, sem entender.
— Aquilo não é realmente Uni — explicou-lhe. — É um espetáculo para turistas. E talvez também se destine a ser um alvo falso para agressores. Pode ter explodido tudo sem que nada tenha sucedido... só que seriam presos e submetidos a tratamento.
Ela continuou olhando-o.
O verdadeiro fica bem mais embaixo — disse. — Ocupa três pavimentos. Estive lá uma vez quando eu tinha dez ou onze anos.
— Escavar um túnel é a coisa mais ri... — começou ela.
— Ele já existe — interrompeu. — Não precisa ser escavado.
— Ela fechou a boca, olhou para ele, virou-lhe as costas rapidamente, e empurrou a porta. Comunicava com outro sótão, profusamente iluminado, onde havia uma fileira de prelos imóveis, com os cofres cobertos por panos. O soalho estava alagado e dois homens procuravam erguer a ponta de um cano comprido que, pelo jeito, caíra da parede em cima de uma correia transportadora que se achava parada, cheia de pedaços cortados de fazenda. A ponta presa à parede não se danificara e os homens tentavam levantar a parte caída para tirá-la de cima da correia e recolocá-la no devido lugar. Um terceiro homem, imigrante, aguardava o momento de recebê-la, no alto de uma escada.
— Ajude-os — ordenou Júlia, começando a juntar pedaços de fazenda no soalho molhado.
— Se é assim que eu vou ocupar o meu tempo, tudo continuará na mesma — retrucou Quem. — Pra você não faz diferença, mas pra mim faz.
— Ajude-os! — ordenou Júlia. — Ande de uma vez! Depois falaremos! Com insolências é que você não vai conseguir nada mesmo!
Quem ajudou os homens a firmar o cano à parede e depois saiu em companhia de Júlia para um patamar gradeado na parte lateral do prédio. Brilhando ao sol alto da manhã, Nova Madri estendia-se a seus pés. Ao longe via-se uma faixa de mar azul esverdeado, pontilhada de barcos pesqueiros.
— Cada dia aparece uma novidade — queixou-se Júlia, enfiando a mão no bolso do avental cinza.
Tirou cigarros, ofereceu um a Quem, e acendeu-os com fósforos bem ordinários.
Os dois fumaram.
— O túnel está lá — disse Quem. — Foi utilizado pra levar as comportas de memória pra dentro.
— É possível que alguns grupos com quem eu não entrei em contato estivessem informados a respeito — opinou Júlia.
— Não dá pra sondar?
Ela tragou a fumaça. Parecia mais velha à luz do dia. A pele do rosto e do pescoço estava sulcada de rugas.
— Sim — respondeu. — Acho que dá. Como é que você ficou sabendo?
Contou-lhe.
— Tenho certeza de que não foi aterrado — disse. — Deve ter quinze quilômetros de extensão. E ademais vai ser utilizado novamente. Há espaço de reserva pra outras comportas, quando a Família aumentar.
Ela olhou-o com uma expressão de dúvida.
— Eu pensei que as colônias tivessem seus próprios computadores — observou.
— E têm — confirmou, sem compreender.
Mas logo viu aonde ela queria chegar. Era só nas colônias que a Família estava aumentando. Na Terra, com dois filhos por casal e nem todos obtendo licença para procriar, a Família, em vez de aumentar, diminuía cada vez mais. Ele nunca tinha relacionado essa ideia com o que Papai Jan comentara a respeito de espaço para outras comportas de memória.
— Talvez seja utilizado para outro equipamento de tele- controle — sugeriu.
— Ou talvez o seu avô não fosse uma fonte de informação muito segura.
— Foi ele quem teve a ideia do túnel — lembrou Quem. — Ainda está lá, eu tenho certeza. E pode ser um meio, o único, de se chegar até Uni. Eu vou tentar e preciso de sua ajuda, tanto quanto possível.
— Você precisa do meu dinheiro, quer dizer.
— Sim. E de sua ajuda também. Pra encontrar as pessoas certas, com a necessária habilidade. E pra obter informações indispensáveis, além do aparelhamento. E pra descobrir gente que possa ensinar coisas que não sabemos. Quero fazer isso com toda a calma e cautela. Eu quero voltar.
Ela o olhou com os olhos franzidos pela fumaça do cigarro.
— Ora viva, até que você não é tão idiota assim. Que espécie de emprego o Ashi achou pra você?
— Lavar pratos no Cassino.
— Deus do céu! Apareça aqui amanhã de manhã, às oito menos um quarto.
— No Cassino eu tenho as manhãs livres.
— Apareça aqui! Você disporá do tempo necessário.
— Está bem — concordou, sorrindo. — Obrigado.
Ela virou as costas e contemplou o cigarro. Esmagou-o contra a grade.
— Só que eu não vou entrar com o dinheiro — disse. — Pelo menos não tudo. Não posso. Você não faz ideia do que custa uma coisa destas. Explosivos, por exemplo: da última vez saiu por mais de dois mil dólares, e isso foi há cinco anos. Sabe Deus quanto não custaria hoje.
Franziu o cenho para o toco do cigarro e atirou-o pela grade.
— Pagarei o que eu puder. E apresentarei você a pessoas que cobrirão o restante se você bajulá-las bastante.
— Obrigado. É só o que eu preciso. Obrigado.
— Deus do céu, lá vou eu outra vez — suspirou Júlia. Virou-se para Quem. — Espere e verá: quanto mais velho você fica, menos você muda. Eu sou filha única, sempre consegui o que quis. Esse é o meu mal. Vamos embora. Tenho mais que fazer.
Desceram a escada do patamar.
— É fato — continuou Júlia. — Eu tenho tudo quanto é espécie de motivos nobres pra perder tempo e dinheiro com gente como você... um impulso cristão pra ajudar a Família, o amor pela justiça, pela liberdade, pela democracia... mas a pura verdade é que sou uma filha única que sempre conseguiu o que quis. Acho enlouquecedor, simplesmente enlouquecedor, não poder ir aonde bem entendo neste planeta! Ou sair dele, pra ser mais precisa! Você não faz ideia da raiva que sinto daquele maldito computador!
Quem riu.
— Faço, sim! É exatamente o que eu sinto!
— Aquilo é uma monstruosidade infernal.
Caminharam ao redor do prédio.
— E uma monstruosidade, sim — retrucou Quem, jogando o cigarro fora. — Pelo menos do jeito que ficou agora. Uma das coisas que me interessa averiguar é se há possibilidade, se tudo correr bem, de mudar o funcionamento dele, em vez de destruí-lo. Se a Família pudesse governá-lo, e não vice-versa, não seria tão ruim. Você acredita mesmo em céu e inferno?
— Não vamos começar a discutir religião, senão você acaba lavando pratos no Cassino. Quanto estão-lhe pagando?
— Seis e cinquenta por semana.
— É mesmo?
— É.
— Eu lhe pagarei o mesmo, mas se alguém por aqui perguntar, diga que você está ganhando cinco.
Esperou até que Júlia interrogasse uma série de pessoas sem descobrir nenhuma expedição de ataque que tivesse sido informada da existência do túnel, e só então, confirmando a sua decisão, revelou a Lilás os planos que tinha.
— Você não pode! — protestou ela. — Não vê quanta gente já tentou em vão?!
— Eles não sabiam onde deviam atacar.
Ela sacudiu a cabeça, levantou a testa e olhou para ele.
— Isso é uma.„ eu nem sei o que dizer — gaguejou. — Pensei que você tivesse... acabado com essa mania. Pensei que estivéssemos sossegados.
E gesticulou com as mãos, indicando o quarto, o quarto que haviam conseguido em Nova Madri, com as paredes que os dois tinham pintado, a estante de livros que ele mesmo fizera, a cama, a geladeira, o desenho de uma criança rindo, feito por Ashi.
— Meu bem — retrucou Quem, — eu talvez seja a única pessoa em todas as ilhas que sabe da existência do túnel, que conhece o verdadeiro Uni. Eu tenho que fazer uso disso. Como é que posso ficar de braços cruzados?
— Pois muito bem, faça uso, então. Planeje, ajude a organizar uma expedição... ótimo! Até eu posso ajudar! Mas por que você precisa ir junto? Deixe isso pros outros, pra quem não tenha família.
— Eu ainda estarei aqui quando o bebê nascer. Vai levar muito tempo pra aprontar tudo. E depois só me afastarei por... talvez uma semana, no máximo.
Ela olhou bem para ele.
— Como é que você pode afirmar uma coisa dessas? Como é que pode dizer que você... é bem capaz que você nunca mais volte! Podem prendê-lo e submetê-lo a tratamento!
— Nós aprenderemos a lutar. Teremos armas e...
— Os outros é que devem ir!
— Como posso pedir a eles se eu mesmo não for junto?
— Peça, é o que basta. Peça.
— Não. Eu também tenho que ir.
— Você quer ir, isso é o que é. Você não tem que ir. Você quer ir.
Ficou calado um instante.
— Está bem. Eu quero, sim. Nem posso pensar em não estar presente quando Uni for derrotado. Eu mesmo quero jogar o explosivo, ou puxar a alavanca pessoalmente, ou fazer, enfim, o que for necessário... eu mesmo.
— Você está doente — retrucou. Levantou a costura que segurava no colo, encontrou a agulha e começou a coser. — Estou falando sério. Você está doente sobre esse assunto do Uni. Não foi ele que nos trouxe pra cá: nós tivemos a sorte de chegar aqui. Ashi tem razão: ele nos teria matado assim como mata as pessoas aos sessenta e dois anos. Não precisava desperdiçar lanchas nem ilhas. Nós fugimos dele. Ele já foi derrotado. E você está doente em querer voltar pra derrotá-lo outra vez.
— Ele nos trouxe pra cá porque os programadores não poderiam justificar a morte de pessoas ainda jovens.
— Balela — disse Lilás. — Já justificaram a morte de velhos, se quisessem justificariam até a de crianças. Nós fugimos. E você agora quer voltar.
— E o que me diz de nossos pais? Eles vão morrer dentro de poucos anos. E Floco de Neve e Pardal... a Família inteira, em suma?
Ela cosia, espetando a agulha no pano verde — as mangas do vestido que ia transformar em camisola para o bebê.
— Os outros é que devem ir — repetiu. — Gente que não tem família.
Mais tarde, na cama, ele disse:
— Se acontecer alguma coisa, Júlia cuidará de você. E do bebê.
— Que grande consolo. Obrigada. Muito obrigada. E agradeça a Júlia também.
A partir daquela noite a situação entre os dois permaneceu inalterável: rancor, por parte dela, e recusa em se deixar impressionar, por parte dele.