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ESTE MUNDO PERFEITO / Iran Levin
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.
CONTINUA
3
Ela olhou para o revólver e para Quem.
— O gerador está fraco — disse ele, — mas fez um buraco de um centímetro de profundidade na parede do museu e fará outro ainda mais fundo em você. Portanto é melhor obedecer. Desculpe o susto. Mais tarde você verá por que estou procedendo assim.
— Que horror! — exclamou. — Você ainda está doente!
— Sim, e piorei. Portanto faça o que eu digo ou a Família perderá dois membros preciosos: primeiro você e depois eu.
— Como é que você pode fazer isso, Li? Então não compreende... de arma na mão, me ameaçando?
— Levante-se e vista-se — ordenou.
— Por favor, me deixe telefonar...
— Vista-se — repetiu. — Depressa!
— Está bem — concordou ela, retirando as cobertas.
— Está bem, vou fazer exatamente o que você disser.
Levantou-se da cama e abriu o pijama.
Quem recuou, sem tirar os olhos de cima dela, mantendo o revólver apontado.
Ela despiu o pijama, deixou-o cair no chão e virou-se para a prateleira para apanhar um par de túnicas. Ele olhou os seios e o resto do seu corpo, que de maneira sutil — a opulência de nádegas, a redondeza das coxas — era também diferente do normal. Como era bonita!
Ela puxou a túnica para cima e enfiou os braços nas mangas.
— Li, eu imploro — disse, olhando para ele, — vamos até lá embaixo no centro médico e...
— Não fale.
Ela fechou a túnica e calçou as sandálias.
— Por que você quer andar de bicicleta? — perguntou.
— No meio da noite!
— Prepare a sacola — mandou.
— A de viagem?
— É. Ponha outro par de túnicas, o estojo de medicamentos e a tesoura. E tudo o que for importante que você queira guardar. Tem lanterna?
— O que é que você está pretendendo fazer? — perguntou.
— Arrume a sacola — repetiu.
Ela arrumou e depois que a fechou ele pegou-a e a pôs a tiracolo.
— Vamos passar pelos fundos do prédio — disse. — Deixei duas bicicletas lá. Caminharemos lado a lado e ficarei de revólver no bolso. Se a gente encontrar algum membro e você fizer qualquer sinal, indicando que está acontecendo algo de anormal, eu mato você e o membro, compreendeu?
— Sim — respondeu.
— Faça tudo o que eu disser. Se eu mandar parar pra você arrumar a sandália, você pára e arruma. Vamos passar pelos controles sem tocar neles. Você já fez isso antes. Agora fará de novo.
— Não voltaremos pra cá?
— Não. Vamos pra muito longe.
— Então tem uma fotografia que eu gostaria de levar.
— Busque-a. Eu falei pra você incluir tudo o que você quisesse guardar.
Ela foi à escrivaninha, abriu a gaveta e remexeu dentro. Uma fotografia de Rei? imaginou ele. Não, Rei fazia parte da doença. Provavelmente um retrato de família.
— Estava aqui — disse ela, num tom nervoso, suspeito.
Correu até ela e empurrou-a para o lado. Li RM revólver 2 bicicletas estava escrito no fundo da gaveta. Ela segurava uma caneta na mão.
— Estou procurando ajudá-lo — explicou.
Sentiu vontade de esmurrá-la mas controlou-se. Controlar-se, porém, era um erro: perceberia que não pretendia feri-la. Esbofeteou-a com a mão aberta, para doer mesmo.
— Não tente enganar-me! — disse. — Você ainda não viu como eu estou doente? Se fizer qualquer coisa igual a essa de novo, você morre, junto com uma dúzia de outros membros, talvez!
Fitou-o de olhos arregalados, trêmula, com a mão no rosto.
Ele também tremia, sabendo que a machucara. Arrancou- lhe a caneta da mão, traçou ziguezagues por cima do que ela escrevera e cobriu com papéis e uma agenda de números. Jogou a caneta dentro da gaveta e fechou-a, pegando Lilás pelo cotovelo e empurrando-a porta afora.
Saíram do quarto e desceram o corredor, andando lado a lado. Ele mantinha a mão no bolso, segurando o revólver.
— Pare de tremer — ordenou. — eu não farei nada se você fizer o que eu digo.
Desceram as escadas rolantes. Dois membros subiam na direção contrária.
— Você e eles — lembrou. — E todos os que aparecerem.
Ficou calada.
Ele sorriu para os membros. Eles retribuíram. Ela acenou com a cabeça.
— Esta é a minha segunda transferência este ano — comentou com ela.
Desceram mais escadas e pisaram numa que conduzia ao zia ao saguão. Três membros, dois com telecomputadores, estavam parados, conversando ao lado do controle numa das portas.
— Nada de bobagens agora — disse ele.
Desceram, refletidos ao longe pelas vidraças na escuridão do lado de fora. Os membros continuaram conversando. Um deles largou o telecomputador no chão.
Saíram da escada.
— Espere um pouco, Ana — disse ele.
Ela parou, de frente para ele. — Entrou-me uma pestana no olho. Tem um lenço?
Ela meteu a mão no bolso e sacudiu a cabeça.
Ele encontrou um por baixo do revólver, tirou-o e entregou-lhe. Ficou de frente para os membros, abrindo bem o olho, a outra mão novamente no bolso. Ela segurou o lenço contra o olho. Ainda estava trêmula.
— É só uma pestana — disse ele. — Não há motivo pra nervosismo.
Atrás dela, o membro tinha apanhado o telecomputador e os três apertavam-se as mãos e trocavam beijos. Os dois de telecomputador tocaram no controle. Sim, piscou, sim. Saíram. O terceiro membro aproximou-se: um rapaz de vinte e poucos anos.
Quem afastou a mão de Lilás.
— Pronto — disse, pestanejando. — Obrigado, irmã.
— Precisam de ajuda? — perguntou o membro. — Sou um 101.
— Não, obrigado, era só uma pestana — agradeceu Quem.
Lilás fez um movimento. Quem olhou-a. Ela guardava o lenço no bolso.
O membro, reparando na sacola, disse:
— Boa viagem.
— Obrigado — respondeu Quem. — Boa noite.
— Boa noite — despediu-se o membro, sorrindo.
— Boa noite — disse Lilás.
Dirigiram-se às portas e viram nelas o reflexo do membro pisando os degraus da escada ascendente.
— Eu vou encostar-me perto do controle — preveniu Quem. — Toque no lado dele, não na placa.
Saíram à rua.
— Por favor, Li — disse Lilás, — pelo amor da Família, vamos voltar lá pra dentro pra ir ao centro médico.
— Cale-se.
Dobraram na esquina, entre o prédio e o vizinho. A escuridão ficou mais densa. Ele acendeu a lanterna.
— O que é que você vai fazer comigo? — perguntou ela.
— Nada. A não ser que tente enganar-me de novo.
— Então pra que é que você quer que eu vá junto?
Ele não respondeu.
Havia um controle no cruzamento atrás dos prédios. Lilás ergueu a mão.
— Não! — disse Quem.
Passaram sem tocá-lo. Lilás soltou um suspiro angustiado e gemeu baixinho:
— Que horror!
As bicicletas continuavam encostadas à mesma parede. A sacola enrolada no cobertor, contendo bolos e recipientes de bebida, achava-se numa das cestas. Um cobertor encobria a outra. Ele pôs a sacola de Lilás dentro dessa e enrolou-a com o cobertor, prendendo bem as pontas.
— Monte — disse, segurando-lhe a bicicleta com firmeza.
Ela montou, segurando o guidom.
— Iremos em linha reta, entre os edifícios, até a Rua Leste — disse ele. — Não se vire, não pare, nem aumente a velocidade a menos que eu mande.
Montou a outra bicicleta. Abaixou a lanterna para o lado da cesta, a luz brilhando entre as grades sobre o pavimento em frente.
— Muito bem, já podemos ir — disse.
Pedalaram lado a lado, descendo a passagem reta completamente escura, interrompida por frestas de trevas menos densas entre os prédios, uma faixa estreita de estréias lá no alto, e ao longe o pálido clarão azulado de um único lampião de rua.
— Aumente um pouco a velocidade — pediu.
Pedalaram mais ligeiro.
— Quando é que você ia ter o próximo tratamento? — perguntou ele.
Ela ficou em silêncio, e depois respondeu.
— No dia oito de marx.
Duas semanas, pensou ele. Cristo e Wei, por que não era logo no dia seguinte ou depois de amanhã? Bem, podia ter sido pior; podia ter sido quatro semanas.
— Vou poder fazê-lo? — perguntou ela.
Não havia vantagem em perturbá-la ainda mais.
— Talvez — respondeu. — Veremos.
Ele pretendia percorrer curtas distâncias por dia, durante a hora de folga em que os ciclistas não chamariam atenção. Andariam de parque em parque, passando por uma cidade ou talvez duas, completando o percurso, aos poucos, até ’12082, na costa setentrional de Afr, a cidade mais próxima de Majorca.
Mas nesse primeiro dia, no parque ao norte de ’14509, mudou de ideia. Achar esconderijo era mais difícil do que esperava. Só muito depois do sol nascer — lá pelas oito horas, calculou — conseguiram instalar-se sob o abrigo da saliência de uma rocha fronteira a uma moita de arbustos, cujos claros Quem tinha enchido de galhos cortados. Logo depois ouviram o zumbido de um helicóptero: passou e repassou nos ares enquanto ele apontava o revólver para Lilás e ela ficava sentada, imóvel, olhando para ele, com o bolo comido pela metade nas mãos. Ao meio-dia, ouviram rumor de galhos partidos, folhas vergastadas e uma, voz a menos de vinte metros de distância. Falava de modo ininteligível, no tom monocórdio e vagaroso de quem se dirige a um telefone ou microfone de telecomputador.
Ou o recado na gaveta da escrivaninha de Lilás havia sido encontrado, ou, o que era mais provável, Uni ligara o desaparecimento de ambos às duas bicicletas faltantes. Por isso mudou de ideia e decidiu que, estando sendo procurados e desaparecidos, ficariam ali a semana toda, viajando só no domingo. Fariam uma travessia de sessenta ou setenta quilômetros — não diretamente ao norte, mas a nordeste — parando depois e escondendo-se durante outra semana. Quatro ou cinco domingos os levariam, por um trajeto sinuoso, a ’12082, e cada domingo Lilás seria mais ela mesma e menos Ana SG, mais prestimosa ou, pelo menos, menos ansiosa em vê-lo ajudado.
Por enquanto, porém, era Ana SG. Amarrou-a e amordaçou-a com tiras de cobertor, dormindo de arma em punho até que o sol sumisse no horizonte. No meio da noite, tornou a amarrá-la e amordaçá-la, indo embora de bicicleta. Voltou horas depois com bolos, bebidas, mais dois cobertores, toalhas, papel higiênico, um “relógio de pulso” — cujo tique-taque já tinha parado — e dois livros em Français. Encontrou-a acordada onde a deixara, com os olhos aflitos e pesarosos. Mantida em cativeiro por um membro doente, suportava-lhe os abusos com clemência. Sentia pena dele.
Mas de dia olhava-o com repulsa. Apalpou o rosto e sentiu a barba espetada de dois dias. Sorrindo, levemente encabulado, comentou:
— Há quase um ano que não faço tratamento.
Ela abaixou a cabeça e cobriu os olhos com a mão.
— Você virou bicho — disse.
— É o que nós somos mesmo — replicou. — Cristo, Marx, e Wei nos transformaram numa coisa morta, anormal.
Ela lhe virou as costas quando ele começou a barbear-se, mas olhou por cima do ombro, uma, duas vezes, e depois voltou-se, fitando-o com desgosto.
— Você não corta a pele? — perguntou.
— No princípio eu cortava — respondeu, comprimindo o rosto e passando a navalha com facilidade, olhando-a à luz da lanterna apoiada a uma pedra. — Tinha de ficar com a mão no rosto dias a fio.
— Você sempre usa chá?
Ele riu.
— Não — disse. — É que não tenho água. Hoje à noite vou sair à procura de um açude ou riacho.
— Com que frequência você... faz isso?
— Todos os dias — respondeu. — Ontem eu não fiz. É uma amolação, mas é só por mais algumas semanas. Pelo menos espero.
— O que você quer dizer?
Ficou calado, continuando a barbear-se.
Ela virou as costas.
Ele leu um dos livros em Français, sobre as causas de uma guerra que durava trinta anos. Lilás dormiu e depois sentou-se sobre o cobertor, olhando para ele, para as árvores e para o céu.
— Quer que eu lhe ensine esta língua?
— Pra quê? — retrucou.
— Você já quis aprendê-la. Lembra-se? Eu lhe dei listas de vocabulário.
— Sim, eu me lembro. Eu decorei tudo, mas esqueci. Agora estou curada. Pra que haveria de querer aprendê-la de novo?
Fez ginástica e também obrigou-a a fazer, para ficarem em forma para o longo percurso de domingo. Ela seguiu as instruções sem protesto.
Naquela noite ele encontrou, não um riacho, mas um canal de irrigação com cerca de dois metros de largura e margens de concreto. Banhou-se nas águas de curso lento, depois regressou ao esconderijo com os recipientes cheios. Acordou Lilás e desamarrou-a. Levou-a pelo meio das árvores e ficou vigiando enquanto ela tomava banho. Seu corpo úmido brilhava à pálida luz da lua.
Ajudou-a a subir à margem, entregou-lhe a toalha e permaneceu perto enquanto ela se secava.
— Sabe por que estou fazendo isso? — perguntou-lhe.
Ela olhou para ele.
— Porque te amo.
— Então me deixa ir embora.
Ele sacudiu a cabeça.
— Então como é que você diz que me ama?
— Porque é verdade.
Ela se curvou e secou as pernas.
— Você quer que eu fique doente de novo?
— Quero.
— Então você me odeia — retrucou, — você não me ama.
E endireitou o corpo.
Tomou-a pelo braço, frio e úmido, macio.
— Lilás.
— Ana.
Tentou beijar-lhe os lábios, mas ela desviou a cabeça para o outro lado. Beijou-a no rosto.
— Agora aponte o revólver pra mim e me estupre — disse ela.
— Isso eu não faço.
Soltou-lhe o braço.
— Não sei por quê — retrucou, vestindo a túnica e atrapalhando-se toda para fechá-la — Por favor, Li, vamos voltar pra cidade. Tenho certeza de que você pode ser curado, porque se estivesse mesmo doente, incuravelmente doente, você me estupraria. Seria muito menos bonzinho do que você é.
— Venha, vamos voltar pro esconderijo.
— Por favor, Li...
— Quem. Meu nome é Quem. Anda.
Ele sacudiu a cabeça e saíram caminhando entre as árvores.
Perto do fim da semana, ela pegou a caneta dele e o livro que ele não estava lendo, e desenhou figuras na parte interna da capa do livro — retratos aproximados de Cristo e Wei, grupos de edifícios, a sua mão esquerda e uma série de cruzes e foices sombreadas. Ele olhou para se certificar de que ela não estava escrevendo bilhetes que tentaria entregar a alguém no domingo.
Mais tarde ele desenhou um edifício e mostrou-lhe.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Um edifício.
— Não é, não.
— É, sim. Eles não precisam ser todos brancos e retangulares.
— Que ovais são esses?
— Janelas.
— Nunca vi um edifício igual a este. Nem mesmo na Pré-U. Onde é que ele fica?
— Em nenhuma parte. Eu inventei.
— Ah. Então não é um edifício de verdade. Como é que você pode desenhar coisas que não existem?
— Eu estou doente, lembre-se.
Ela devolveu-lhe o livro, sem olhá-lo nos olhos.
— Não brinque com coisas sérias.
Ele esperava — bem, esperava propriamente não, mas julgava possível — que no sábado à noite, seja por hábito, desejo ou até mesmo simples generosidade de membro, ela demonstrasse vontade de dormir junto com ele. Mas não demonstrou. Portou-se como se fosse uma noite qualquer, permanecendo sentada em silêncio ao crepúsculo, os joelhos entre os braços, contemplando a nesga de céu violeta entre a copa escura cambiante das árvores e a saliência de rocha negra que os cobria.
— Hoje é sábado — lembrou ele.
— Eu sei.
Ficaram calados durante alguns momentos. Por fim ela perguntou:
— Eu não vou poder fazer o tratamento, não é?
— Não.
— Então corro o risco de ficar grávida. E eu não devo ter filhos, nem você tampouco.
Sentiu vontade de dizer-lhe que iam para um lugar onde as decisões de Uni não tinham nexo, mas era cedo demais. Ela talvez se assustasse e se tornasse impossível.
— Sim, acho que você tem razão.
Depois de amarrá-la e cobri-la, beijou-lhe o rosto. Ela permaneceu no escuro, sem dizer nada, e ele se levantou e foi deitar-se nas suas próprias cobertas.
O percurso de domingo transcorreu bem. De manhã cedo um grupo de membros jovens pediu que eles parassem, mas só para que ajudassem a consertar uma corrente de direção partida. Lilás sentou-se na relva, longe do grupo, enquanto Quem fazia o serviço. Na hora do pôr do sol já estavam no parque ao norte de ’14266. Tinham completado cerca de setenta e cinco quilômetros.
Foi novamente difícil encontrar um esconderijo, mas o que Quem finalmente encontrou — as paredes caídas de um prédio da Pré-U, ou do começo da U, cobertas por uma massa abaulada de vinhas e trepadeiras — era maior e mais confortável do que o que tinham usado na semana anterior. Nessa mesma noite, apesar do percurso diurno, ele foi até ’266 e voltou com um suprimento de bolos e bebida para três dias.
Lilás ficou impaciente naquela semana.
— Quero escovar os dentes — reclamou. — E quero tomar uma ducha. Por quanto tempo vamos continuar deste jeito? Eternamente? Você talvez goste de viver feito bicho, mas eu não: sou um ser humano. E não posso dormir de mãos e pés amarrados.
— Você dormiu muito bem na semana passada.
— Pois agora não posso!
— Então fique quieta e me deixe dormir.
Quando ela o olhava era com aborrecimento, não com piedade. Fazia ruídos de desaprovação quando se barbeava e quando lia. Respondia abruptamente, ou nem sequer se dignava a responder, quando ele falava. Recusava-se a praticar ginástica: ele precisava puxar o revólver e ameaçá-la.
Estava aproximando-se o dia oito de marx, data do tratamento dela, lembrou-se, e essa irritabilidade, o ressentimento natural contra o cativeiro e o desconforto, era sinal da Lilás sadia que Ana SG encobria. A ideia devia causar-lhe alegria, e quando pensava nisso, de fato causava. Mas era muito mais difícil para o convívio do que a comiseração e a docilidade típica de membro da semana precedente.
Ela queixava-se dos insetos e de tédio. Uma noite choveu e ela se queixou da chuva.
Outra noite Quem acordou e ouviu-a mexendo-se. Acendeu a lanterna. Tinha desamarrado os pulsos e estava desamarrando os tornozelos. Amarrou-a de novo e deu nela.
No sábado à noite não trocaram uma só palavra.
No domingo viajaram outra vez. Quem conservava-se perto e cuidava para ver o que ela fazia quando membros se aproximavam pela estrada. Pedia-lhe que sorrisse, que acenasse com a cabeça, retribuindo as saudações, agindo com a maior naturalidade. Ela pedalava num silêncio lúgubre e ele temia que apesar da ameaça do revólver ela pudesse gritar por socorro a qualquer momento ou se recusar a seguir adiante.
— Não só você — dizia, — todos que estiverem por perto. Eu mato vocês todos, juro que mato.
Ela continuava a pedalar. Sorria e cumprimentava com ressentimento os passantes! O câmbio de velocidade de Quem emperrou e os dois percorreram apenas quarenta quilômetros.
No fim da terceira semana a irritação de Lilás diminuiu. Sentava-se de testa franzida, arrancando folhas da relva, olhando as pontas dos dedos, virando a pulseira sem parar no pulso. Fitava Quem com curiosidade, como se fosse um estranho que nunca tivesse visto antes. Seguia-lhe as instruções devagar, mecanicamente.
Ele consertava a bicicleta, deixando-a acordada nas horas correspondentes.
Uma noite, na quarta semana, ela perguntou:
— Aonde é que nós vamos?
Olhou-a um momento — estavam comendo o último bolo do dia — e respondeu:
— Pra uma ilha chamada Majorca. No Mar da Paz Eterna.
— Majorca?
— É uma ilha de incuráveis — explicou. — Existem outras sete no mundo inteiro. Mais do que sete, realmente, porque algumas são arquipélagos. Encontrei-as num mapa no Pré-U, lá em Ind. Estavam encobertas e não figuram nos mapas do MPF. Eu ia-lhe contar tudo no dia em que fui... “curado”.
Ficou calada. Depois perguntou:
— Você contou pra Rei?
Era a primeira vez que mencionava o nome dele. Deveria dizer-lhe que Rei não precisava que lhe contassem, que soubera o tempo todo, negando-lhes a informação? Para quê? Rei estava morto: por que macular a lembrança que ela guardava dele?
— Contei, sim — respondeu. — Ele ficou assombrado, e todo entusiasmado. Não compreendo por que ele... fez o que fez. Você ouviu falar, não foi?
— Ouvi, sim.
Pegou um pequeno pedaço de bolo e comeu, sem olhar para ele.
— Como é que vivem nessa ilha? — perguntou.
— Não tenho a mínima ideia. Talvez seja uma vida muito dura, muito primitiva. Mas melhor do que esta — sorriu. — Seja como for, é uma vida livre. Talvez até extremamente civilizada. Os primeiros incuráveis devem ter sido os membros mais independentes e habilidosos.
— Não tenho certeza se quero ir pra lá.
— Fique só pensando nela. Dentro de poucos dias você terá certeza. Foi você quem teve a ideia de que talvez houvesse colônias de incuráveis, lembra-se? Você me pediu pra procurá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu me lembro.
No fim daquela semana, ela pegou um novo livro em Français que Quem encontrara e tentou lê-lo. Ele se sentou a seu lado e traduziu-o.
No domingo, enquanto pedalavam, um membro aproximou-se de bicicleta à esquerda de Quem e conservou-se junto deles.
— Olá—saudou.
— Olá —respondeu Quem.
— Eu pensava que todas as bicicletas antigas tivessem sido retiradas de circulação.
— Eu também, mas eram só estas que havia lá.
A bicicleta do membro tinha a armação mais leve e um botão para controle de velocidade.
— Lá em ’935? — perguntou ele.
— Não,’939 — respondeu Quem.
— Ah — fez o membro.
Olhou as duas cestas, com as sacolas enroladas nos cobertores,
— É melhor a gente se apressar — sugeriu Lilás. — Os outros já sumiram de vista.
— Eles esperarão por nós — retrucou Quem. — Têm que esperar: nós estamos com os bolos e os cobertores.
O membro sorriu.
— Não, anda, vamos mais depressa — insistiu Lilás.
— Não é justo fazê-los esperar.
— Está bem — concordou Quem, e para o membro:
— Bom dia pro senhor.
— Pra vocês também.
Pedalaram mais rápido e se distanciaram.
— Bravo — disse Quem. — Ele ia mesmo perguntar por que estávamos tão carregados.
Lilás não teceu comentários.
Completaram cerca de oitenta quilômetros aquele dia, chegando ao parque a noroeste de '12471, que distava apenas um dia de bicicleta de ’082. Encontraram um esconderijo bastante bom, uma cova triangular entre altos esporões rochosos, encimada por árvores. Quem cortou galhos para fechar a parte da frente.
— Não precisa mais me amarrar — disse Lilás. — Não vou fugir, nem vou tentar chamar ninguém. Pode guardar o revólver na sacola.
— Você quer ir? Pra Majorca?
— Claro que quero. Estou ansiosa pra chegar. É o que eu sempre quis... quando era eu mesma, quero dizer.
— Está bem.
Guardou o revólver na sacola e naquela noite não a amarrou.
O ar displicente e prosaico que Lilás adotara não lhe parecia direito. Não deveria ter demonstrado mais entusiasmo? Sim, e gratidão também. Admitiu consigo mesmo que era isso o que esperava: gratidão, expressões de amor. Ficou acordado, prestando atenção à sua suave, lenta respiração. Estaria realmente dormindo ou apenas fingia? Quem sabe não o estaria enganando de algum modo inimaginável? Acendeu a lanterna. Mantinha os olhos fechados, os lábios entreabertos, os braços unidos debaixo do cobertor como se continuasse amarrada.
Era apenas vinte de marx, disse consigo mesmo. Dentro de uma semana ou duas ela mostraria mais sentimento. Fechou os olhos. Quando acordou, ela estava juntando pedras e gravetos do chão.
— Bom dia — disse, toda amável.
Descobriram um estreito córrego nas proximidades e um pé de frutas verdes que ele achou que era uma “oliveira”. O fruto era amargo e tinha gosto estranho. Ambos preferiram os bolos.
Ela lhe perguntou como evitara os tratamentos. Então contou-lhe sobre a folha e a pedra úmida e as ataduras que tinha feito. Ficou impressionada. Como era esperto, disse-lhe.
Uma noite foram a ’12471 buscar bolos, bebidas, toalhas, papel higiênico, túnicas, sandálias novas. E estudar, da melhor maneira propiciada pela lanterna, o mapa da região no MPF.
— Que faremos quando chegarmos a ’082? — perguntou ela no outro dia de manhã.
— Esconder-nos-emos na praia e ficaremos cuidando todas as noites até que apareçam os comerciantes.
— Eles fariam isso? Arriscar-se-iam a vir até a praia?
— Sim. Acho que fariam, longe da cidade.
— Mas não é mais provável que fossem a Eur? Fica mais perto.
— Só nos resta esperar que eles também venham a Afr. E eu quero conseguir algumas coisas da cidade pra nós negociarmos quando chegarmos lá, coisas que eles sejam capazes de prezar. Temos de pensar nisso.
— Há alguma possibilidade de a gente encontrar uma lancha? — perguntou ela.
— Creio que não — respondeu. — Não existe nenhuma ilha perto da costa, portanto é pouco provável que haja lanchas nos arredores. Naturalmente, sempre há canoas nos parques de diversões, mas não posso nos imaginar remando duzentos e oitenta quilômetros. Você pode?
— Impossível não é.
— Não, na pior das hipóteses, não. Mas estou contando com os negociantes, ou talvez até com algum tipo de operação organizada de salvamento. Majorca tem de e defender, compreende, porque Uni sabe de sua existência. Ele está a par de todas as ilhas. Por isso os membros lá são capazes de estar à espera de recém-chegados, pra aumentar a população, a força deles.
— É bem possível — concordou ela.
Houve outra noite de chuva, e os dois sentaram-se juntos, enrolados num cobertor no cantinho mais recôndito do esconderijo, apertados entre os altos esporões rochosos. Beijou-a e procurou abrir-lhe a parte superior da túnica, mas ela segurou-lhe a mão.
— Eu sei que é ilógico — disse, — mas continuo ainda um pouco com aquela sensação de só-nas-noites-de-sábado. Por favor. Não dá pra esperar pra mais tarde?
— De fato é ilógico.
— Eu sei, mas por favor. Não dá pra esperar?
Após uma pausa, concordou.
— Claro, já que você quer.
— Eu quero, sim, Quem.
Leram um pouco e combinaram as melhores coisas que podiam apanhar em ’082 para negociar. Ele passou vistoria nas bicicletas e ela fez ginástica, durante muito mais tempo e com mais empenho do que ele.
No sábado à noite voltou do riacho e encontrou-a de revólver em punho, apontado para ele, os olhos espremidos de ódio.
— Ele me telefonou antes de se matar — disse.
Ele exclamou:
— O que é que você está...
— Rei! — gritou ela. — Ele me telefonou! Seu mentiroso, seu odioso...
Apertou o gatilho. De novo, com mais força. Olhou para o revólver e depois para ele.
— Está sem o gerador — explicou-lhe.
Ela olhou para o revólver, olhou para ele e respirou fundo pelas narinas dilatadas de raiva.
— Por que ódio você... começou a dizer, mas ela virou a coronha do revólver e arremessou-o contra ele.
Levantou as mãos e a arma foi atingi-lo no peito, causando-lhe dor e deixando-o com falta de ar.
— Ir com você? — retrucou ela. — Foder com você? Depois que você o matou? Está... está fou, seu cochon de olho verde, chien, bâtard!
Segurou o peito, recuperou o fôlego.
— Eu não o matei! — disse. — Ele se matou a si mesmo, Lilás! Cristo e...
— Porque você mentiu pra ele! Mentiu sobre nós dois! Disse-lhe que nós andávamos...
— Isso foi o que ele pensou: eu disse pra ele que não era verdade! Eu disse pra ele e ele não quis acreditar!
— Você admitiu. Ele disse que pouco estava ligando, que nós dois éramos dignos um do outro, e então ele apagou a luz e...
— Lilás, juro pelo amor da Família: eu disse pra ele que não era verdade!
— Então por que ele se matou?
— Porque ele sabia!
— Porque você contou pra ele! — disse ela, e virou-se agarrou a sua bicicleta — a cesta estava cheia — e arremessou- se contra os galhos empilhados à entrada do esconderijo.
Ele correu, pegou a bicicleta por trás e segurou-a com ambas as mãos.
— Daqui você não sai! — gritou.
— Solte esta bicicleta! — retrucou, virando-se.
Ele tomou a bicicleta pelo meio, arrancou-a das mãos de Lilás e atirou-a para o lado. Agarrou-a pelo braço. Ela quis agredi-lo, mas ele reteve-lhe o braço.
— Ele sabia sobre as ilhas! As ilhas! Tinha estado perto de uma, negociado com os membros! Foi assim que eu descobri que eles vêm até a praia!
Ela arregalou os olhos.
— Do que é que você está falando? — perguntou.
— Ele havia trabalhado perto de uma das ilhas — disse. — As Falklands, ao largo de Arg. E tinha encontrado os incuráveis e negociado com eles. Não contou nada porque sabia que nós íamos querer ir, e ele não queria que fossemos! Foi por isso que ele se matou! Ele sabia que você ia descobrir, por meu intermédio, e sentiu vergonha, cansaço, não podia mais ser o Rei.
— Você está me mentindo exatamente como mentiu pra ele — retrucou desvencilhando o braço, rasgando a túnica no ombro.
— Foi assim que ele conseguiu o perfume e as sementes de fumo.
— Não quero ouvir mais nada. Nem mais ver você. Vou-me embora sozinha.
Dirigiu-se à bicicleta, apanhou a sacola e o cobertor que haviam caído no chão.
— Não seja idiota — disse ele.
Ela endireitou a bicicleta atirou a sacola dentro da cesta e socou o cobertor por cima. Ele se aproximou e segurou o assento e o guidom.
— Você não vai voltar sozinha.
— Pois sim que não vou.
Sua voz tremia. Seguraram a bicicleta entre ambos. Mal distinguia o rosto dela na escuridão cada vez mais densa.
— Eu não deixo — disse.
— Prefiro fazer o que ele fez do que ir com você.
— Escute uma coisa, sua... — retrucou. — Eu podia estar numa das ilhas há meio ano! Já estava a caminho e dei meia volta, porque não queria deixá-la morta e embrutecida! — encostou-lhe a mão no peito e empurrou-a com força, obrigando-a a apoiar-se à rocha e jogando a bicicleta longe. Cercou-a com os braços. — Eu vim desde Usa e estou gostando desta vida de bicho tanto quanto você. Estou-me lutando pro seu amor ou seu ódio...
— Eu o odeio!
— ...você vai ficar comigo! O revólver está estragado, mas tem outras coisas, como pedras e mãos. Você não precisa se matar, porque...
Sentiu uma dor na virilha — o joelho dela — e viu-a sair correndo até os galhos, um pálido contorno amarelo, debatendo-se, empurrando.
Foi atrás e pegou-a pelo braço, virando-a de frente, e atirando-a, aos gritos, no chão.
— Bâtard! — urrava. — Seu doente agressivo...
Caiu em cima dela, tapando-lhe a boca com a mão, com toda a força possível. Os dentes dela se cravaram na palma de sua mão. Começou a espernear e bateu na cabeça dele com os punhos cerrados. Apoiou um joelho à coxa dela, fincando o pé sobre o outro tornozelo. Pegou-a pelo pulso, deixando que a outra mão o agredisse e os dentes continuassem cravados.
— Pode ter alguém por aqui! — disse. — Hoje é sábado! Você quer que nós dois façamos tratamento, sua garce bêsta!
Ela não parava de lhe bater, mordendo a palma da sua mão.
As pancadas diminuíram e cessaram. Os dentes se abriram e soltaram a carne. Ficou ofegante, de olhos postos nele.
— Garce! — repetiu.
Ela tentou tirar a perna debaixo do pé, mas ele calçou ainda com mais força. Não lhe soltou o pulso, sempre tapando-lhe a boca com a outra mão. A palma ardia como se ela tivesse arrancado a carne.
Mantendo-a assim, subjugada, de pernas abertas, de repente excitou-o. Pensou em rasgar-lhe a túnica e estuprá-la.
Ela não tinha dito que deviam esperar pela noite de sábado? E talvez acabasse com toda aquela xaropada a propósito de Rei e o ódio que sentia contra ele. Acabar com a luta — era justamente o que haviam feito, lutado — e os palavrões de ódio em Français.
Ela ficou olhando.
Soltou-lhe o pulso e pegou-a pela túnica, rasgada no ombro. Rasgou-a até abaixo do peito e ela recomeçou a agredi-lo, retorcendo as pernas e mordendo-lhe a palma da mão.
Rasgou-lhe a túnica em mil pedaços até abrir toda a parte da frente e então apalpou-a: acariciou-lhe os seios fluidos, macios, o estômago liso, a saliência que encobria os lábios úmidos com um tufo de pêlos emaranhados. Ela lhe bateu na cabeça e puxou-o pelos cabelos. Os dentes se cravaram na palma da mão. Continuou apalpando-a com a outra: seios, estômago, saliência, lábios: soqueando, esfregando, enfiando o dedo, cada vez mais excitado — e depois abriu sua própria túnica. Ela desvencilhou a perna e deu-lhe um pontapé. Rolou no chão, tentando derrubá-lo, mas ele fez pressão, imobilizando-lhe a coxa, e passou a perna por cima. Montou-a em cheio, prendendo com os pés, pelos tornozelos, as pernas dela, dobradas para fora em torno dos seus joelhos. Desviou os rins e caiu de chofre, sujeitando-lhe uma das mãos e os dedos da outra.
— Pára — disse, — pára.
Continuou a introduzir. Ela corcoveava e se retorcia, mordendo a palma ainda mais fundo. Viu-se parcialmente dentro dela. Com um empurrão, meteu tudo.
— Pára — repetiu, — pára.
Mexeu-se pelo comprido, lentamente. Largou as mãos e acariciou os seios, por baixo. Eram macios, os mamilos começavam a enrijecer. Ela mordeu-lhe a mão e se contorceu.
— Pára — pediu, — pára com isso, Lilás.
E pôs-se a mexer, primeiro devagar, em seguida mais rápido, depois acelerando, cada vez mais forte.
Ergueu-se de joelhos e olhou-a. Estava deitada, cobrindo os olhos com um braço, o outro estirado no chão. Os seios arfavam.
Levantou-se, foi buscar um dos cobertores, sacudindo-o e abrindo-o por cima dela, até os braços.
— Tudo bem com você? — perguntou, agachando-se a seu lado.
Ela não respondeu.
Apanhou a lanterna e examinou a palma da mão. Escorria sangue de uma meia-lua de carne viva.
— Cristo e Wei — exclamou.
Despejou água em cima, lavou com sabonete e enxugou. Procurou o estojo de medicamentos, mas não pôde achar.
— Você pegou o estojo de medicamentos? — perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
Mantendo a mão erguida, encontrou a sacola dela no chão, abriu-a e tirou o estojo de medicamentos. Sentou-se numa pedra, com o estojo no colo e a lanterna apoiada na pedra ao lado.
— Animal — disse ela.
— Eu não mordo — respondeu. — E muito menos tento matar. Cristo e Wei, você pensou que o revólver estivesse carregado.
Espalhou o cicatrizador na palma da mão: uma camada fina e depois outra mais grossa.
— Cochon — disse ela.
— Ah, deixa disso. Não vá recomeçar.
Desenrolou uma atadura e ouviu-a levantar-se, a túnica farfalhando enquanto se despia. Aproximou-se nua, pegou a lanterna e foi até a sacola dela: tirou sabonete, toalha, uma túnica e dirigiu-se aos fundos da cova, onde ele empilhara pedras entre os esporões, improvisando degraus que conduziam ao riacho.
Aplicou a atadura no escuro e depois encontrou a lanterna dela caída no chão, perto da bicicleta. Juntou as duas bicicletas, apanhou cobertores e preparou os dois lugares para dormir de costume, deixando a sacola ao lado do reservado a ela, e por fim recolheu a arma e os trapos da túnica. Guardou o revólver em sua própria sacola.
A lua assomou sobre um dos esporões atrás das folhas, negras e imóveis.
Ela não voltava. Começou a temer que tivesse ido embora a pé.
Finalmente, porém, apareceu. Guardou o sabonete e a toalha na sacola, apagou a lanterna e meteu-se entre os cobertores.
— Eu fiquei excitado com você debaixo de mim daquela maneira — disse ele. — Sempre a desejei, e estas últimas semanas foram simplesmente um martírio. Você sabe que eu a amo, não sabe?
— Daqui por diante eu vou sozinha.
— Quando chegarmos em Majorca... se chegarmos... você pode fazer o que quiser. Mas até lá, ficaremos juntos. E ponto final, Lilás.
Ela não disse nada.
Acordou ouvindo ruídos estranhos, lamúrias e gemidos de dor. Soergueu-se e acendeu a lanterna: Lilás cobria a boca com a mão, e escorriam lágrimas dos olhos fechados.
Correu para ela e agachou-se a seu lado, acariciando-lhe a cabeça.
— Oh, Lilás, não faça assim. Não chore, Lilás, por favor, não chore.
Pensou que estivesse chorando porque a machucara, talvez nas partes íntimas.
Ela continuou chorando.
— Oh, Lilás, me perdoe! Me desculpe, amor! Ah, Cristo e Wei, antes o revólver estivesse carregado!
Ela sacudiu a cabeça, sempre de mão na boca.
— Não é por causa disso que você está chorando? Por que a machuquei? Então por quê? Se você não quer ir junto comigo, você não precisa.
Tomou a sacudir a cabeça, sem parar de chorar.
Ele não sabia o que fazer. Ficou a seu lado, acariciando-lhe a cabeça, perguntando por que estava chorando, repetindo-lhe que não devia, e depois apanhou seus cobertores, estendeu-os junto aos dela, deitou-se, virou-a e abraçou-a. Ela continuou a chorar. Quando acordou, estava olhando-o, deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão.
— Não tem sentido a gente ir separado — disse ela, — portanto ficaremos juntos.
Procurou lembrar-se do que haviam conversado antes de dormir. Pelo que se lembrava, não tinham dito nada: ela se limitara a chorar.
— Está bem — concordou, confuso.
— Estou tremendamente arrependida por causa.do revólver. Como pude fazer aquilo? Eu tinha certeza de que você havia mentido pra Rei.
— E eu estou arrependido pelo que eu fiz,
— Não precisa. Você não tem culpa. Foi perfeitamente natural. Como está a sua mão?
Ele tirou a mão de baixo da coberta e flexionou-a: doía muito.
— Mais ou menos — respondeu.
Ela a tomou e examinou a atadura.
— Você passou o remédio?
— Passei.
Ela olhou para ele, ainda segurando-lhe a mão. Seus olhos castanhos estavam enormes, e claros como a manhã.
— Você chegou mesmo a sair à procura de uma das ilhas e depois deu meia volta? — perguntou.
Ele fez que sim.
Ela sorriu.
— Você é três fou — disse.
— Não sou, não.
— É, sim — afirmou, examinando-lhe a mão de novo. Aproximou-a dos lábios e beijou as pontas dos dedos, uma por uma.
4
A manhã já ia alta quando partiram. Pedalaram então rapidamente durante algum tempo para compensar o atraso. Fazia um dia esquisito, nublado e opressivo, o céu cinza esverdeado e o sol um disco branco que se podia encarar de olhos bem abertos. Era uma anomalia do controle climatológico. Lilás lembrou-se de um dia semelhante em Chi, quando tinha doze ou treze anos. (“Foi lá que você nasceu?” “Não, nasci em Mex.” “É mesmo? Eu também!”) Não havia sombra e as bicicletas que se aproximavam pareciam pairar acima do chão, como carros. Os membros fitavam o céu, apreensivos, e ao chegar mais perto, cumprimentavam com a cabeça sem sorrir.
Quando sentaram na relva, partilhando um recipiente de refrigerante, Quem sugeriu:
— É melhor a gente seguir devagar. Pode ser que surjam controles pelo caminho e tenhamos que esperar o momento exato pra cruzá-los.
— Controles por nossa causa?
Não necessariamente. Apenas porque é a cidade mais próxima de uma das ilhas. Você não instalaria um sistema de segurança extra se fosse Uni?
Ele não temia tanto os controles quanto a possibilidade de encontrar uma equipe médica à espera logo adiante.
— E se houver membros cuidando? — perguntou ela. — Conselheiros ou médicos, com retratos nossos?
— É pouco provável depois de todo esse tempo. Temos que arriscar. Eu tenho o revólver, e a faca também.
Apalpou o bolso.
Passado um instante ela perguntou:
— Você o usaria?
— Sim. Acho que sim.
— Tomara que não seja preciso.
— Tomara.
— Convém você botar os óculos escuros.
— Hoje — olhou para o céu.
— Por causa do seu olho.
— Ah. Claro.
Tirou os óculos do bolso, colocou-os, olhou para ela e sorriu.
— Não há grande coisa pra você fazer, a não ser prender a respiração.
— Que quer você quer dizer? — retrucou, encabulando logo.
— Eles não são tão perceptíveis quando estou vestida.
— Foi a primeira coisa que notei quando olhei pra você. As primeiras, aliás.
— Não acredito. Você está mentindo. Está, sim, não é?
Ele riu, cutucando-lhe o queixo.
Pedalaram vagarosamente. Não havia controles pelo caminho. Nenhuma junta médica os deteve.
Todas as bicicletas da região eram novas, mas ninguém reparou que as deles eram velhas.
Ao cair da tarde chegaram a ’12082. Rumaram para o lado oeste da cidade, sentindo o cheiro do mar, observando cautelosamente o caminho em frente.
Deixaram as bicicletas no parque e voltaram a pé até uma cantina onde uma escada levava à praia. Lá embaixo o mar, ao longe, estendia-se sereno e azul, a perder de vista, num horizonte de neblina cinza esverdeada.
— Aqueles membros não tocaram no controle — disse uma criança.
A mão de Lilás apertou a de Quem.
— Não pare — cochichou ele.
Desceram os degraus de cimento salientes no íngreme penhasco.
— Ei, vocês dois aí! — gritou um homem.
Quem apertou a mão de Lilás e eles se viraram. O membro estava parado atrás do controle no topo da escada, segurando pela mão uma garotinha nua de cinco ou seis anos. Ela coçava a cabeça com uma pá vermelha, olhando para os dois.
— Vocês tocaram no controle há pouco? — perguntou o homem.
Um olhou para o outro e depois para o membro.
— Claro que tocamos — respondeu Quem.
— Evidente — confirmou Lilás.
— Ele não piscou que sim — insistiu a menina.
— Piscou, sim, irmã — retrucou Quem, bem sério. — Senão nós não teríamos passado, não é?
E sorriu para o membro.
O homem se curvou e falou qualquer coisa para a criança.
— Não, eu não vi — teimou ela.
— Vem — disse Quem para Lilás.
Viraram as costas e continuaram a descer.
— Pequena odiosa — cochichou Lilás.
— Caminhe e não fale.
Percorreram todos os degraus e pararam ao pé da escada para tirar as sandálias. De corpo curvado, Quem olhou para cima: o homem e a menina tinham desaparecido, outros membros vinham descendo.
A praia estava semideserta, sob o estranho céu nublado. Havia membros sentados ou deitados em cobertores, a maioria de túnica. Mantinham-se em silêncio ou conversavam em voz baixa e a música dos alto-falantes — Domingo, Dia de Alegria— soava forte e anormal. Um bando de crianças pulava corda à beira d’água: “Cristo, Marx, Wood e Wei criaram este mundo de perfeição, Marx, Wood, Wei e Cristo...”
Dirigiram-se ao lado oeste, de mãos dadas e segurando as sandálias na mão livre. A praia, já estreita, afunilava-se cada vez mais. Não encontraram praticamente ninguém. De repente depararam com um controle entre o rochedo e o mar.
— Nunca vi um controle na praia antes — comentou Quem.
— Nem eu tampouco.
Entreolharam-se.
— É por aqui que teremos de passar — disse ele, — Mais tarde.
Ela acenou com a cabeça e os dois se aproximaram do controle.
— Estou sentindo um impulso fou de tocar nele — disse Quem. — Lute-se, Uni: cá estou eu.
— Nem se atreva — pediu ela.
— Não se preocupe que não me vou atrever mesmo.
Viraram as costas e voltaram para o meio da praia. Despiram as túnicas, entraram n’água e nadaram mar adentro. Batendo pé, de costas para o mar, examinaram a praia do outro lado do controle, os penhascos cinzentos diminuindo até sumirem na neblina cinza esverdeada. Um pássaro saiu voando lá do alto, descreveu um círculo e depois voltou, desaparecendo no interior de uma fenda que mais parecia um fio de cabelo.
— Provavelmente tem grutas onde a gente pode esconder-se — disse Quem.
Um salva-vidas assobiou e acenou para ambos. Nadaram de volta até a praia.
— Já passam cinco das cinco, membros — anunciaram os alto-falantes. Por favor, queiram deixar os restos e as toalhas nas cestas. Respeitem os membros que estiverem perto quando sacudirem os cobertores.
Os dois se vestiram, subiram de novo a escada e dirigiram-se ao arvoredo onde tinham ficado as bicicletas. Levaram- nas mais para o meio das árvores e sentaram no chão a esperar. Quem limpou a bússola, as lanternas e a faca. Lilás fez um embrulho único das coisas restantes.
Mais ou menos uma hora depois de anoitecer foram à cantina, encheram de bolos e bebida uma caixa de papelão e desceram novamente à praia. Caminharam até o controle e atravessaram. Não havia lua nem estréias. No ar ainda pairava a neblina diurna. De vez em quando, na beira marulhante da água cintilavam partículas fosforescentes. No mais, reinava absoluta escuridão. Quem sobraçou a caixa de bolos e bebida, acendendo a lanterna a curtos intervalos. Lilás carregava o embrulho de cobertores.
— Nenhum negociante virá à praia numa noite como esta — disse ela.
— E ninguém tampouco — lembrou Quem. — Não há perigo de encontrar adolescentes de doze anos, loucos pra fazer sexo. O que é uma boa coisa.
Não era, não, pensou. Era péssimo. E se aquela neblina perdurasse dias e noites a fio, encurralando-os no próprio limiar da liberdade? Seria possível que Uni tivesse criado, de propósito, só com esse fim? Sorriu da ideia. Ele era mesmo très fou, tal como Lilás o chamara.
Andaram até calcular que já estavam a meio caminho entre '’082 e a próxima cidade a oeste. Largaram então a caixa e o embrulho no chão e saíram procurando na frente dos penhascos uma gruta que servisse. Em poucos minutos acharam uma toca de teto baixo, atapetada de areia e toda suja de invólucros de bolo e, o que era positivamente intrigante, dois pedaços — um “Egito” verde, uma “Etiópia” cor-de-rosa — rasgados de um mapa da Pré-U. Transportaram a caixa de papelão e o embrulho para o interior da gruta, estenderam os cobertores por terra, comeram e deitaram-se lado a lado.
— Você consegue? — estranhou Lilás. — Depois de hoje de manhã e de ontem à noite?
— Sem tratamento, tudo é possível.
— Mas que fantástico.
Mais tarde Quem disse:
— Mesmo que não der pra gente ir adiante, mesmo que sejamos capturados e submetidos a tratamento daqui a cinco minutos, valeu a pena. A gente fez o que quis, viveu, ao menos por algumas horas.
— Eu quero ficar viva a vida inteira, não só algumas horas — retrucou Lilás.
— Você há de ficar. Eu lhe prometo — beijou-a nos lábios, acariciando-lhe o rosto no escuro. — Você vai continuar comigo? Lá em Majorca?
— Claro que vou. Por que não havia de continuar?
— Você não queria, lembra-se? Não queria nem vir até aqui junto comigo.
— Cristo e Wei, isso foi na noite passada — exclamou, beijando-o. — Lógico que vou continuar. Você me acordou, agora tem que me aguentar.
E permaneceram abraçados, aos beijos.
— Quem! — gritou ela.
Era realidade, ele não estava sonhando.
Não a encontrou a seu lado. Soergueu-se e bateu com a cabeça na pedra, tateando à procura da faca que deixara cravada na areia.
— Quem! Olha!
Achou a faca e saltou para o lado, de joelhos, apoiado a uma mão. Ela era um vulto escuro agachado à ofuscante abertura azul da gruta. Ergueu a faca, pronto a retalhar quem se aproximasse.
— Não, não — disse ela, rindo. — Vem ver! Vem! Você não vai acreditar!
Entrecerrando os olhos por causa do brilho do céu e do mar, rastejou para perto da entrada.
— Olha! — disse ela com alegria, apontando a praia.
Havia um barco na areia, a cerca de cinquenta metros de distância, uma pequena lancha de dois rotores, de casco branco e quilha vermelha. Estava bem perto da água, emborcado de leve, e salpicado de branco na quilha e no pára-brisa, do qual parecia faltar um pedaço.
— Vamos ver se funciona! — sugeriu Lilás.
E apoiando-se ao ombro de Quem, começou a se levantar da gruta. Ele largou a faca no chão, pegou-a pelo braço e puxou-a de volta.
— Espera aí.
— Por quê?
Olhou para ele.
Ele esfregou o galo que se formara na cabeça e franziu a cara para a lancha — tão branca e vermelha, vazia e providencial na clara manhã ensolarada e sem neblina.
— Isso não me está cheirando bem — advertiu. — Pode ser uma cilada. É cômodo demais. A gente vai dormir, acorda e ganha um barco de presente. Você tem razão: eu não acredito mesmo.
— Nós não ganhamos de presente — retrucou. — Faz semanas que está aí. Espia só aquele troço de passarinho ali em cima, e como a areia é funda na frente.
— De onde é que veio? — perguntou. — Não existem ilhas por aqui.
— Talvez os negociantes a trouxessem de Majorca e fossem capturados na praia. Ou talvez tenham deixado aí de propósito, pra membros como nós. Você disse que era capaz que houvesse uma operação de salvamento.
— Sem que ninguém visse, nem tomasse conhecimento durante o tempo todo que esteve aqui?
— Uni não deixou ninguém passar pra esta parte da praia.
— Vamos esperar. Vamos ficar cuidando e esperar um pouco.
— Está bem — concordou, relutante.
— E cômodo demais — repetiu Quem.
— Por que é que tudo precisa ser incomodo?
Ficaram na gruta. Comeram e tornaram a embrulhar os cobertores, sempre de olho na lancha. Revezavam-se, rastejando até o fundo da toca e enterrando os restos na areia.
As pontas das ondas passaram por baixo da quilha do barco, afastando-se assim que a maré baixou. Sobrevoaram pássaros, pousando no pára-brisa e na balaustrada: quatro gaivotas e dois menores, marrons.
— Está ficando mais suja a cada instante — observou Lilás. — E o que é que tem se já tomaram conhecimento e hoje seja o dia em que será recolhida?
— Fala baixo, por favor. Cristo e Wei, antes eu tivesse trazido um telescópio.
Tentou improvisar um com as lentes da bússola, da lanterna e a dobra enrolada de uma caixa de papelão, mas não deu certo.
— Quanto tempo vamos esperar ainda? — perguntou ela.
— Até que anoiteça.
Ninguém passou pela praia e os únicos sons que ouviram foram o marulho das ondas, as batidas das asas e os gritos dos pássaros.
Aproximou-se da lancha sozinho, lenta e cautelosamente. Era mais velha do que parecia da gruta: a pintura branca lascada do casco mostrava marcas de conserto e a quilha estava entalhada e rachada. Deu uma volta completa sem tocar em nada, de lanterna em punho, à procura de indícios — ignorava a forma que poderiam ter — de impostura, de perigo. Não encontrou nenhum. Viu apenas uma lancha gasta, inexplicavelmente abandonada, à qual faltava os assentos centrais, com a terça parte do pára-brisa quebrada, e toda respingada de detritos ressequidos de pássaros. Apagou a lanterna e olhou para o penhasco. Encostou a mão à balaustrada e esperou pelo alarme. O penhasco continuou escuro e deserto à pálida luz da lua.
Chegou perto da quilha, subiu a bordo e iluminou o painel de controle. Parecia bastante simples: interruptores para os rotores de propulsão e de elevação, uma chave de controle de velocidade calibrada em 100 KPH, uma barra de leme, alguns manômetros e indicadores, e um botão indicando Manual e Automático, colocado em posição automática. Encontrou a caixa de bateria no soalho, entre os assentos da frente, e abriu a tampa: a data desbotada marcava abril de 171, um ano atrás, portanto.
Acendeu a lanterna sobre a caixa dos rotores. Havia gravetos empilhados num deles. Escovou-os, tirando um a um, e assestou a luz contra o rotor que se achava por baixo: estava novo, reluzente. O outro era velho, com as pás chanfradas, sendo que uma faltava.
Sentou-se diante do painel de controle e descobriu a chave que ligava os rotores. Um relógio-miniatura marcava 5h11m Sexta 27 de agosto 169. Ligou um rotor de propulsão e depois o outro: eles rangeram, mas logo começaram a zumbir normalmente. Desligou-os, examinou os manômetros e indicadores, e apagou as luzes de controle.
O penhasco continuava como antes. Nenhum membro surgira de nenhuma tocaia. Virou-se para o mar às suas costas: estava vazio e calmo, prateado por um rastro estreito que ia terminar sob a lua quase cheia. Não havia lanchas voando em sua direção.
Sentou-se um pouco no barco e depois desceu pelo casco, caminhando de volta até a gruta.
Encontrou Lilás à entrada.
— Tudo em ordem? — perguntou ela.
— Não. Não foi deixada pelos negociantes porque não há nenhum bilhete nem nada parecido. O relógio parou no ano passado, mas um dos rotores é novo. Não experimentei o rotor de elevação por causa da areia, mas mesmo que funcione, a quilha está rachada em dois lugares e ela pode apenas chapinhar, sem ir a parte alguma. Em compensação, talvez nos leve diretamente a ’082... a um pequeno centro médico na costa... ainda que esteja fora de telecontrole.
Lilás ficou olhando para ele.
— Não custa nada tentar — continuou. — Se não foram os comerciantes que a deixaram aí, eles não virão até a praia enquanto a lancha estiver encalhada ali. Quem sabe não somos dois membros de muita sorte?
E entregou-lhe a lanterna.
Foi buscar a caixa de papelão e o embrulho de cobertores no interior da gruta, trazendo um debaixo de cada braço. Puseram-se a caminhar em direção à lancha.
— E as coisas que íamos negociar? — perguntou ela.
— Nós já temos. Uma lancha deve valer cem vezes mais do que câmaras e estojos de medicamentos — olhou para o penhasco.
— O.K., doutores! — gritou. — Agora vocês já podem sair!
— Psiu, não faça isso! — disse ela.
— Esquecemos as sandálias.
— Estão na caixa de papelão.
Ele colocou a caixa e o embrulho dentro do barco e os dois rasparam a sujeira dos pássaros no pára-brisa quebrado com cacos de conchas. Levantaram a proa e a arrastaram pro lado do mar. Depois fizeram o mesmo com a popa.
Continuaram levantando e arrastando ambas as pontas e finalmente colocaram a lancha dentro da arrebentação, balanceando-se e volteando-se desajeitadamente. Quem imobilizou-a enquanto Lilás subia a bordo, e depois empurrou-a até onde pôde e também subiu.
Sentou-se diante do painel de controle e acendeu as luzes. Lilás ocupou o assento vizinho, prestando atenção. Olhou-a de soslaio — ela o fitava, nervosa — ligando os rotores de propulsão e por fim o de elevação. O barco sacudiu com violência, jogando-os para o lado oposto. Um estrépito ensurdecedor estremeceu a quilha. Quem pegou a barra do leme, segurou-a, e girou a chave do controle de velocidade. A lancha lançou-se mar afora e o tremor e o estrépito diminuíram. Aumentou a velocidade para vinte, vinte e cinco. O estrépito cessou e o tremor se reduziu a uma vibração ritmada. O barco deslizou pela superfície da água.
— Não está se erguendo — disse ele.
— Mas pelo menos anda.
— Sim, mas por quanto tempo? Ela não foi feita pra ficar à tona d’água deste jeito e a quilha já está rachada.
Aumentou ainda mais a velocidade e a lancha zuniu entre a crista das ondas. Experimentou a barra do leme: o barco obedecia. Virou para o norte, tirou a bússola do bolso e comparou o ponteiro com o do indicador de direção.
— Não nos está levando para ’082 — disse. — Pelo menos por enquanto.
Ela olhou para trás e para o céu.
— Não vem vindo ninguém comentou.
Ele aumentou de novo a velocidade e conseguiu um pouco mais de elevação, mas o impacto ao roçar as ondas era maior. Reduziu a velocidade. O botão estava em cinquenta e seis.
— Eu não acho que estejamos fazendo mais que quarenta — opinou. — Será dia quando chegarmos lá, se chegarmos. A meu ver, tanto faz. Não pretendo ir parar na ilha errada. Não sei até que ponto nos estamos desviando da rota.
Havia duas outras ilhas perto de Majorca: EUR91766, a quarenta quilômetros a nordeste, sede de um complexo produtor de cobre, e EUR91603, a oitenta e cinco quilômetros a sudoeste, onde funcionava um complexo de processamento de algas e um centro subordinado de climatonomia.
Lilás aninhou-se contra Quem, evitando o vento e a espuma da parte quebrada do pára-brisa. Quem segurava a barra do leme. Cuidava o indicador de direção, o mar enluarado que tinham pela frente, e as estrelas que brilhavam acima do horizonte.
As estrelas sumiram, o céu começou a clarear e nada de Majorca. Havia apenas o mar, plácido e infinito em todas as direções.
— Se estivéssemos fazendo quarenta — disse Lilás, — teria levado sete horas. Já passa disso, não passa?
— Talvez não estejamos fazendo quarenta — retrucou Quem.
Ou talvez tivesse compensado demais ou de menos a deriva para o leste do mar. Talvez tivessem passado por Majorca e estivessem rumando para Eur. Ou talvez Majorca não existisse — não constando mais dos mapas da Pré-U porque os membros daquele tempo tinham-na bombardeado e riscado da face da terra. E por que a Família precisava ser novamente lembrada de loucuras e barbárie?
Manteve o barco orientado por uma fração de diferença a noroeste, mas diminuiu um pouco a velocidade.
O céu ficou mais claro e não se divisava nem uma ilha, nenhuma Majorca. Perscrutaram o horizonte em silêncio, um evitando os olhos do outro.
Uma derradeira estrela cintilou sobre a água a nordeste. Não, cintilou na água. Não...
— Tem uma luz lá adiante — disse ele.
Ela olhou na direção apontada e segurou-lhe o braço.
A luz se movia em arco, de lado a lado, depois para cima e para baixo, como se os chamasse. Estava a mais ou menos um quilômetro de distância.
— Cristo e Wei — exclamou Quem baixinho, e dirigiu-se para lá.
— Cuidado — recomendou Lilás. — Talvez seja...
Ele trocou de mão na barra do leme e tirou a faca do bolso, deixando-a no colo.
A luz se apagou e apareceu uma pequena embarcação.
Havia um homem sentado, acenando. Acenava uma coisa clara que botou na cabeça — um chapéu — e depois abanou a mão vazia.
— Um membro — disse Lilás.
— Uma pessoa — corrigiu Quem.
Continuou em direção da embarcação — um barco a remos, parecia — com uma mão na barra e a outra na chave do controle de velocidade.
— Veja! — exclamou Lilás.
O homem que acenava era baixo e tinha barba branca, com um rosto corado por baixo do chapéu amarelo de abas largas. Estava vestido com uma roupa azul em cima e branca nas pernas.
Quem diminuiu a velocidade, manobrando para se aproximar do barco a remo e deslizando os três rotores.
O homem — que há muito passara dos sessenta e dois anos e tinha olhos azuis, fantasticamente azuis — sorriu com dentes escuros e cheios de falhas.
— Fugindo dos pamonhas, hem? — disse ele. — Em busca da liberdade?
O barco a remo gingou nas ondas provocadas pela lancha, deslocando caniços e redes no interior — material de pescaria.
— É, sim — respondeu Quem. — Estamos, sim! Estamos à procura de Majorca.
— Majorca? — repetiu o homem, rindo e coçando a barba — Maiorca — corrigiu. — Majorca não, Maiorca! Mas agora ela se chama Liberdade. Não se chama mais Maiorca desde... sabe Deus quando, uns cem anos, acho eu! É Liberdade.
— Fica perto? — perguntou Lilás.
— Nós somos amigos — avisou Quem. — Não viemos pra... interferir de jeito nenhum, pra tentar “curar” vocês ou coisa parecida.
— Também somos incuráveis — explicou Lilás.
— Vocês não teriam vindo pra cá se não fossem — retrucou o homem. — É pra isso que estou aqui, pra esperar gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto. Sim, fica perto. É lá pra aquele lado.
Apontou ao norte.
Então surgiu no horizonte uma faixa verde escura, baixa e nítida. Veias cor-de-rosa cintilavam sobre a parte ocidental — montanhas iluminadas pelos primeiros raios de sol.
Quem e Lilás contemplaram aquilo, se entreolharam, e de novo fitaram Majorca-Maiorca-Liberdade.
— Firmem bem a lancha — pediu o homem, — que eu vou amarrar aí na popa e subir a bordo.
Os dois se viraram em seus assentos e ficaram de frente, um para o outro. Quem tirou a faca do colo, sorriu, e largou-a no chão.
Pegou as mãos de Lilás.
Sorriam de felicidade.
— Pensei que já tivéssemos passado por ela — confessou Lilás.
— Eu também. Ou que ela nem existisse mais.
Sorriram um para o outro, curvaram-se e beijaram-se.
— Ei, como é? Não vão ajudar-me? — reclamou o homem, da popa da lancha, pendurado pelos dedos de unhas encardidas.
Levantaram-se rapidamente e correram a acudi-lo. Quem ajoelhou-se no banco de trás e ajudou-o a subir.
Tinha roupas feitas de pano, o chapéu era tecido de tiras lisas de fibra amarela. Meia cabeça mais baixo que ambos, recendia a um cheiro forte e esquisito. Quem agarrou-lhe a mão áspera e apertou-a.
— Eu me chamo Quem, e esta aqui é a Lilás.
— Muito prazer — disse o velho barbudo de olhos azuis, com aquele sorriso de dentes feios. — Meu nome é Darren Costanza.
Apertou a mão de Lilás.
— Darren Costanza? — estranhou Quem.
— Isso mesmo.
— Que lindo! — exclamou Lilás.
— Vocês conseguiram uma Boa lancha — disse Darren Costanza, dando uma olhada em torno.
— Mas não levanta da tona d’água — avisou Quem.
— Sim, mas nos trouxe até aqui — frisou Lilás. — Foi uma sorte encontrá-la.
Darren Costanza sorriu.
— E os bolsos de vocês estão cheios de câmaras e coisas? — perguntou.
— Não — respondeu Quem, — resolvemos não trazer nada. A maré estava subindo e...
— Ah, isso foi um erro — atalhou Darren Costanza. — Não trouxeram nada?
— Um revólver sem gerador — disse Quem, tirando-o do bolso — Um punhado de livros e uma navalha naquele embrulho ali.
— Bem, isto vale alguma coisa — comentou Darren Costanza, pegando a arma e examinando-a, manuseando o cabo.
— Poderemos negociar a lancha — lembrou Lilás.
— Vocês deviam ter trazido mais — disse Darren Costanza, virando as costas e afastando-se.
Os dois se entreolharam e olharam de novo para ele, prontos a ir atrás, mas ele se voltou, empunhando uma arma diferente. Apontou-a contra ambos, guardando o revólver de Quem no bolso.
— Esta velharia dispara balas — preveniu, recuando para o assento de direção. — Não precisa de gerador. Bangue, bangue. Agora caiam n’água, sem demora. Vamos. Caiam n’água.
Olharam para ele.
— Atirem-se na água, seus ferrinhos pamonhas! — gritou. — Querem levar uma bala no crânio?
Mexeu qualquer coisa na parte traseira da arma e fez pontaria contra Lilás.
Quem empurrou-a para a amurada da lancha. Ela escalou e escorregou pela quilha — dizendo:
— Por que ele está fazendo isto?
Mergulhou dentro d’água. Quem saltou logo atrás.
— Afastem-se da lancha! — gritou Darren Costanza. — Bem pra longe! Nadem!
Os dois nadaram alguns metros, as túnicas expandindo-se em torno dos corpos, e depois viraram-se, mantendo-se à tona d'água.
— Por que você está fazendo isto? — perguntou Lilás.
— Tratem de adivinhar, seus-ferrinhos-pamonhas! — respondeu Darren Costanza, sentando-se diante do painel de controle.
— Nós morreremos afogados se você nos deixar aqui! — gritou Quem. — Não podemos nadar até lá!
— Quem mandou vir pra cá? — retrucou Darren Costanza.
E a lancha partiu na disparada, o barco a remo amarrado à popa abrindo sulcos de espuma à retaguarda.
— Seu odioso filho da luta! — berrou Quem.
A lancha fez uma curva e rumou para a ponta leste da ilha distante.
— Ele mesmo vai levar a lancha! — exclamou Lilás. — Vai fazer negócio com ela!
— O egoísta, doente, Pré-U... — disse Quem. — Cristo, Marx, Wood e Wei, eu estava com a faca na mão e larguei-a no chão! “Esperando gente como vocês, pra ajudá-los a encontrar o porto!” Ele é um pirata, isso é o que ele é, o odioso...
— Pare! Chega! — implorou Lilás, olhando desesperada para ele.
— Oh Cristo e Wei.
Abriram as túnicas e desvencilharam-se delas.
— Não jogue fora! — disse Quem. — Elas conservam o ar se a gente amarra as aberturas!
— Outra lancha! — anunciou Lilás.
Uma pontinha branca corria veloz de oeste para leste, a meio caminho entre os dois e a ilha.
Ela acenou com a túnica.
— Longe demais! — disse Quem. — Temos de começar a nadar!
Amarraram ao pescoço as mangas das túnicas e nadaram na água gelada. As ilhas ficavam a uma distância impossível — vinte quilômetros ou mais.
Se pudessem fazer rápidas pausas, boiando nas túnicas infladas, pensou Quem, poderiam alcançar uma distância suficiente para que outro barco os visse. Mas quem estaria nele? Membros como Darren Costanza? Piratas e assassinos de cheiro asqueroso? Rei teria razão? “Faço votos de boa viagem”, dissera, deitado na cama de olhos fechados. “Aos dois, Vocês merecem.” Odioso filho da luta!
O segundo barco tinha-se aproximado do que lhes fora roubado e que rumava bem para leste, como se quisesse evitá-lo.
Quem nadou sem parar, percebendo pelo canto do olho que Lilás se esforçava para acompanhá-lo. Conseguiriam repouso suficiente para seguir adiante, para chegar? Ou se afogariam, sufocando-se, deslizando languidamente até o fundo, no meio da água escura... Expulsou a imagem do pensamento: continuou nadando, sem parar.
O segundo barco tinha parado. O deles agora estava mais longe do que nunca. Mas o segundo parecia maior, cada vez maior.
Quem se imobilizou e pegou Lilás pela perna. Ela se virou, ofegante, e então ele apontou.
O barco não havia parado: tinha dado meia volta e vinha vindo em direção a eles.
Puxaram do pescoço as mangas das túnicas, tiraram-nas e acenaram a azul claro, a amarelo vivo.
O barco afastou-se um pouco, depois voltou, e por fim partiu na direção oposta.
— Aqui! — gritaram. — Socorro! Aqui! Socorro! — acenando as túnicas, espichando-se fora da água.
O barco recuou, tornou a afastar-se e depois avançou com firmeza. Permaneceu voltado para eles, avolumando-se e ouviu-se uma sirene — alta, alta, alta, alta, alta.
Lilás mergulhou contra Quem, tossindo água. Ele inclinou o ombro sob o braço dela e apoiou-a. O barco aproximou-se num redemoinho de espuma, todo branco — tinha as letras S.I. pintadas no casco, graúdas e verdes, e um só rotor — e parou com estardalhaço, formando uma onda que desabou em cima dos dois.
— Segurem!— gritou um membro.
Qualquer coisa branca foi jogada lá de cima e bateu na água, perto deles: um aro branco flutuante com uma corda. Quem agarrou-o e a corda ficou logo tensa, puxada por um membro, moço, de cabelo amarelo. Arrastou-os pela superfície da água.
— Estou bem — disse Lilás, nos braços de Quem. — Eu estou bem.
O costado do barco tinha degraus. Quem tirou a túnica de Lilás da mão dela, prendeu-lhe os dedos ao redor de um degrau e colocou a outra mão no degrau acima. Ela subiu. O membro, debruçando-se e espichando-se, pegou-a pela mão e ajudou-a. Quem orientou os pés dela e depois subiu atrás.
Deitaram-se de costas em sólido chão quente, sob cobertores penugentos, de mãos dadas, ofegantes. Alguém levantou-lhes a cabeça, uma após outra, aproximando de seus lábios um pequeno recipiente metálico. Continha um líquido que cheirava igual a Darren Costanza. Ardia na goela, mas depois de descer pela garganta aquecia surpreendentemente o estômago.
— É álcool? — perguntou Quem.
— Não se impressionem — disse o rapaz de cabelo amarelo, sorrindo-lhes com dentes normais e atarraxando o recipiente num frasco, — um gole não abala o cérebro de ninguém.
Tinha uns vinte e cinco anos, barba curta também amarela, olhos e pele normais. O cinto marrom nos quadris prendia um revólver num bolso marrom. Vestia camisa de pano branco sem mangas e calças de fazenda cor de castanha, remendadas de azul, que davam pelos joelhos. Largando o frasco sobre o assento, desafivelou o cinto.
— Vou buscar túnicas pra vocês — disse. — Prendam a respiração.
Pôs o cinto junto do frasco e subiu à amurada do barco. Ouviu-se um mergulho na água e a embarcação sacudiu.
— Pelo menos nem todos são como aquele outro — disse Quem.
— Ele tem revólver — disse Lilás.
— Sim, mas deixou aqui. Se fosse... doente, teria medo de fazer isso.
Conservaram-se em silêncio, de mãos dadas sob os cobertores penugentos, respirando fundo e contemplando o límpido céu azul.
O barco se inclinou e o rapaz subiu a bordo de novo, com duas túnicas gotejantes. O cabelo, que há muito não via tesoura, estava colado ao crânio em anéis molhados.
— Sentem-se melhor? — perguntou, sorrindo.
— Sim — responderam.
Sacudiu as túnicas sobre o costado do barco.
— Lamento não ter chegado a tempo de impedir que aquele safado se aproveitasse de vocês. A maioria dos imigrantes vem de Eur, por isso eu geralmente fico ao norte. Nós precisamos é de dois barcos em vez de um. Ou de um instrumento de observação de longo alcance.
— Você é... da polícia? — indagou Quem.
— Eu? — o rapaz sorriu. — Não, eu sou do Socorro aos Imigrantes. E um agência que nos permitiram generosamente organizar, para ajudar o novo imigrante a se orientar. E chegar até a praia sem se afogar.
Pendurou as túnicas à amurada da embarcação, separando as dobras unidas.
Quem soergueu-se sobre o cotovelos.
— Isso acontece seguido? — perguntou.
— Roubar lanchas de imigrantes é passatempo muito popular por aqui — respondeu o rapaz. — Tem outros que são ainda mais divertidos.
Quem sentou-se no chão e Lilás, a seu lado, fez o mesmo. O rapaz enfrentou-os, iluminado lateralmente pela luz rosada do sol.
— Desculpem a decepção — disse ele, — mas vocês não vieram parar em nenhum paraíso. Oitenta por cento da população da ilha descende de famílias que já estavam aqui antes da Unificação ou que chegaram logo depois. São parentes consanguíneos, ignorantes, mesquinhos, presunçosos... e desprezam os imigrantes. Chamam-nos de “ferrinhos”. Por causa das pulseiras. Mesmo quando já não se usa mais.
Apanhou o cinto com o revólver no assento e prendeu-o aos quadris.
— Nós chamamo-los de “safados” — explicou, afivelando o cinto. — Mas nunca digam isso em voz alta, senão meia dúzia deles cai a patadas em cima de vocês. É outro passatempo a que se dedicam.
Olhou-os novamente.
— A ilha é governada por um tal de General Costanza, com o...
— Foi esse que roubou a lancha! — exclamaram. — Darren Costanza!
— Duvido — retrucou o rapaz, sorrindo. — O general não se levanta tão cedo assim. Aquele safado deve ter-se divertido à custa de vocês.
— O odioso filho da luta! — disse Quem.
— O General Costanza é apoiado pela Igreja e pelo Exército. Os próprios safados gozam de pouquíssima liberdade e nós praticamente de nenhuma. Temos que viver em áreas especificadas, Vilas-Ferrinhos, e não podemos sair sem justa causa. Temos de mostrar carteiras de identidade a todos os guardas safados e os únicos empregos que obtemos são os piores, os mais estafantes. — Pegou o frasco. — Querem mais um pouco? Chama-se uísque.
Quem e Lilás sacudiram a cabeça.
O rapaz desatarraxou o recipiente e encheu-o de um líquido amarelo.
— Deixe ver se esqueci alguma coisa... Não podemos possuir terras nem armas. Eu entrego o meu revólver quando chego a terra. — Ergueu o recipiente e olhou para os dois. —Bem-vindos a Liberdade — brindou, e bebeu.
Entreolharam-se desanimados e depois fitaram o rapaz.
— E assim que ela se chama: Liberdade.
— Nós pensávamos que os recém-chegados seriam bem recebidos — disse Quem. — Pra ajudar a manter a Família a distância,
O rapaz tornou a atarraxar o recipiente no frasco.
— Ninguém vem pra cá, a não ser dois ou três imigrantes por mês. A última vez que a Família tentou ameaçar os safados foi no tempo em que havia cinco computadores. Depois que Uni entrou em funcionamento não fizeram mais nenhuma tentativa.
— Por que não? — perguntou Lilás.
O rapaz olhou para os dois.
— Ninguém sabe. Existem várias teorias. Os safados acreditam que Deus os protege ou então que a Família tem medo do Exército, uma corja de palermas bêbados e ineptos. Os imigrantes pensam... bem, alguns deles acham que a ilha está tão depauperada que simplesmente nem vale a pena Uni ameaçar todo mundo.
— Enquanto que outros... — disse Quem,
O rapaz virou as costas e guardou o frasco numa prateleira embaixo do painel de controle do barco. Sentou-se à direção e voltou-se para encará-los.
— Outros, entre os quais me incluo, acham que Uni está usando a ilha, e os safados, e todas as ilhas ocultas espalhadas pelo mundo afora.
— Usando-as? — estranhou Quem.
— De que modo? — perguntou Lilás.
— Como prisões. Pra nós — respondeu o rapaz.
Olharam para ele.
— Por que surge sempre uma lancha na praia? — disse ele. — Sempre, em Eur e em Afr... uma lancha velha, ainda em condições de chegar até aqui. E por que existem esses mapas remendados, tão acessíveis, nos museus? Não seria mais fácil fabricar mapas falsos, com as ilhas realmente omitidas?
Os dois arregalaram os olhos.
— O que é que se faz — continuou, fitando-os atentamente, — quando se programa um computador pra manter uma sociedade perfeitamente eficiente, perfeitamente estável, perfeitamente cooperativa? Como se permite que haja anomalias biológicas, incuráveis, possíveis desordeiros?
Os dois não responderam, sempre de olhos arregalados.
Ele curvou-se mais perto.
— Deixa-se um punhado de ilhas “desunificadas” pelo mundo afora. Deixam-se mapas em museus e lanchas nas praias. O computador não precisa eliminar as ervas daninhas: elas mesmas se encarregam da própria eliminação. Saem serpeando à procura do pavilhão de isolamento mais próximo, onde já há safados esperando, chefiados por um General Costanza, pra roubas suas lanchas, apinhá-las em Vilas-Ferrinhos e mantê-las impotentes e inofensivas... recorrendo a expedientes que nobres discípulos de Cristo, Marx, Wood e Wei jamais sonhariam.
— Não pode ser— protestou Lilás.
— Uma porção de nós acha que pode.
— Uni nos deixar vir pra cá? — retrucou Quem.
— Não — insistiu Lilás. — É... tortuoso demais.
O rapaz olhou para ela e depois para Quem*
— E eu que pensei que estava sendo tão inteligente! — exclamou Quem.
— Que nem eu — disse o rapaz, recostando-se no assento.
— Sei perfeitamente como você está-se sentindo.
— Não, não pode ser — repetiu Lilás.
Fez-se um instante de silêncio e depois o rapaz continuou:
— Vou levar vocês agora. O S.A. vai tirar essas pulseiras de vocês, registrar os dois e emprestar vinte e cinco pratas pra começar. — sorriu. — Por pior que seja, é melhor que ficar na Família. Roupa de pano é mais confortável que de paplão... sério... e até figo podre tem melhor sabor que bolos integrais. Vocês podem ter filhos, beber álcool, fumar cigarros... mais de um quarto, se trabalharem bastante. Existem “ferrinhos” que até enriquecem... artistas, na maioria. Se vocês tratarem os safados de “senhor” e não saírem da Vila-Ferrinho, tudo corre bem. Não há controles, nem conselheiros, e nem uma Vida de Marx num ano inteiro de televisão.
Lilás sorriu. Quem também.
— Vistam as túnicas — aconselhou o rapaz. — Os safados ficam horrorizados com a nudez. Acham “hedionda”.
E virou-se para o painel de controle.
Puseram de lado os cobertores e vestiram as túnicas molhadas, postando-se depois em pé atrás do rapaz, que manobrava o barco em direção à ilha. Ela se estendia verde e dourada na radiância do sol que acabava de nascer, coroada por montanhas e pontilhada de manchas brancas, amarelas, rosas e azul-claro.
— E linda — declarou Lilás, taxativamente.
Quem, enlaçando-a pelo ombro, olhou a paisagem com os olhos espremidos e não disse nada.