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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESTE MUNDO PERFEITO
ESTE MUNDO PERFEITO

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

ESTE MUNDO PERFEITO / Iran Levin

 

 

 

 

TERCEIRA PARTE

 

FUGINDO


1

 

Velhas cidades foram demolidas, novas construídas. As novas tinham edifícios mais altos, praças mais amplas, parques mais vastos, monotrilhos cujos carros desenvolviam maior velocidade, embora com menos frequência.

Outras duas espaçonaves foram lançadas, em direção a Sírio B e Cisnes 61. As colônias marcianas, agora repovoadas e protegidas da devastação de 152, expandiam-se diariamente. O mesmo acontecendo com as colônias em Vênus e na Lua, os postos avançados em Titã e Mercúrio.

A hora de folga teve uma prolongação de cinco minutos. A ligação de telecomputadores pela voz começou a substituir as teclas e os bolos integrais ganharam um agradável segundo sabor. O limite de longevidade aumentou para 62.4.

Os membros trabalhavam e comiam, assistiam à televisão e dormiam. Cantavam, visitavam museus e passeavam pelos jardins de diversão.

No segundo centenário do nascimento de Wei, durante a parada numa cidade nova, um imenso estandarte com o retrato de Wei sorrindo teve um de seus mastros carregado por um membro de mais ou menos trinta anos, cujo aspeto era normal em todos os sentidos, a não ser pelo olho direito, que era verde em vez de castanho. Certa ocasião, há muito tempo, esse membro tinha adoecido, mas agora estava curado. Possuía trabalho, quarto, namorada e conselheiro. Sentia-se calmo e contente.

Um fato estranho lhe aconteceu durante a parada. Enquanto marchava, sorridente, segurando o mastro do estandarte, começou a ouvir um número que se repetia incessantemente no cérebro: Ana SG, trinta e oito P, vinte e oito, vinte e três. Ana SG, trinta e oito P, vinte e oito, vinte e três. Aquilo continuou martelando, em compasso com a marcha. Ficou imaginando a quem pertencia esse número e por que estaria repetindo-se daquela maneira em seu cérebro.

De repente lembrou-se: era do tempo de sua doença! Era o número de um dos outros doentes, o que se chamava Linda — não, Lilás. Por que, depois de tantos anos, voltava-lhe o seu número? Bateu os pés no chão com mais força, procurando não ouvir, e alegrou-se quando foi dado o sinal para cantar.

Contou ao conselheiro.

— Não tem a menor importância — disse ela. — Você provavelmente viu alguma coisa que fez lembrá-la. Talvez até ela mesma. Não há motivo pra temer recordações... a não ser, naturalmente, que se tornem incomodas. Se acontecer outra vez, me avise.

Mas não aconteceu. Ele estava curado, graças a Uni.


Um dia de Natal de Cristo, quando já tinha novo trabalho e morava noutra cidade, foi de bicicleta com a namorada e quatro outros membros a um parque distante. Levaram bolos e refrigerantes, e almoçaram no chão, perto de um arvoredo.

Ele tinha posto seu recipiente de refrigerante em cima de uma pedra quase lisa e, estendendo o braço para apanhá-lo enquanto conversava, derrubou-o. Os outros membros encheram-no de novo com o conteúdo dos seus.

Poucos minutos depois, ao dobrar o invólucro de seu bolo, reparou numa folha caída em cima da pedra úmida, com gotas de refrigerante brilhando na parte posterior, a haste enroscada para cima feito uma alça. Ele pegou a haste e levantou a folha: a pedra, embaixo, estava seca no formato oval da folha. O resto da pedra escurecera com o líquido, mas no lugar da folha continuava cinza e seca. Qualquer coisa naquele momento lhe pareceu significativa. Ficou sentado em silêncio, contemplando a folha que tinha na mão, o invólucro do bolo dobrado na outra e o contorno seco da folha em cima da pedra. Sua namorada falou-lhe algo e ele não pensou mais naquilo, juntando a folha e o invólucro e entregando-os ao membro encarregado do saco de detritos.

A imagem do contorno seco da folha em cima da pedra voltou-lhe à lembrança várias vezes naquele dia. E no dia seguinte também. Depois teve o seu tratamento e esqueceu o assunto. Em questão de semanas, porém, tomou a lembrar-se. Ficou imaginando por quê. Teria já levantado antes uma folha de cima de uma pedra úmida daquele mesmo jeito? Se tinha, não se recordava...

De vez em quando, ao caminhar por um parque ou, por estranho que pareça, ao aguardar na fila para fazer tratamento, a imagem do contorno seco da folha voltava-lhe à lembrança e o fazia franzir a testa.


Houve um terremoto. (Foi jogado longe da cadeira; a lente do microscópio quebrou e das profundezas do laboratório ele ouviu o som mais ensurdecedor de toda a sua vida.) Uma válvula- sismógrafo a meio continente de distância tinha emperrado sem que ninguém percebesse, explicou a televisão poucas noites depois. Aquilo jamais acontecera e não se repetiria mais. Constituía motivo de pesar, naturalmente, mas não era nada que causasse preocupações para o futuro.

Dezenas de prédios ruíram, centenas de membros morreram. Todos os centros médicos da cidade viram-se superlotados de feridos e mais da metade dos aparelhos de tratamento ficaram danificados, ocasionando um atraso de dez dias em cada um.

Alguns dias depois da data em que devia ter tido o seu, pensou em Lilás e em como a tinha amado de uma maneira diferente e mais — mais excitantemente — do que amara todas as outras. Ele havia querido contar uma coisa a ela. O que era? Ah sim, a propósito das ilhas. As ilhas que descobrira escondidas no mapa do Pré-U. As ilhas dos incuráveis...

O conselheiro telefonou-lhe.

— Você está bem? — perguntou.

— Acho que não, Karl — respondeu. — Preciso do meu tratamento.

— Espere um instante — disse o conselheiro, afastando- se e falando baixinho ao telecomputador. Não demorou muito, voltou. — Você pode fazê-lo hoje de noite às sete e meia — anunciou, — mas terá de ir ao centro médico em T24.

Às sete e meia ele estava esperando numa longa fila, pensando em Lilás, procurando recordar exatamente como ela era. Quando chegou perto dos aparelhos de tratamento, voltou-lhe à memória a imagem do contorno seco da folha em cima da pedra.


Lilás telefonou-lhe (ela morava ali mesmo, no próprio edifício) e ele foi para o quarto dela, que era a sala de depósito no Pré-U. Jóias verdes pendiam-lhe das orelhas e cintilavam em torno do pescoço moreno-rosa: estava com um vestido de fazenda verde fulgurante que expunha os seios cônicos macios de bicos nacarados.

— Bon soir, Quem — disse, sorrindo. — Comment vas-tu? Je m’ertnuyais tellement de toi.

Ele se aproximou, tomou-a nos braços e beijou-a — os lábios eram quentes e macios, a boca entreaberta — e acordou no escuro, desapontado: fora um sonho, apenas um sonho.

Mas estranhamente, assustadoramente, tudo persistia: o cheiro do seu perfume (parfum), o gosto do fumo, o som das canções de Pardal, o desejo por Lilás, a raiva contra Rei, o ressentimento contra Uni, a tristeza pela Família e a felicidade de sentir, de estar vivo e lúcido.

E de manhã faria o tratamento e aquilo terminaria. Às oito horas. Acendeu a luz, olhou o relógio: 4h54m. Em pouco mais de três horas...

Apagou a luz de novo e ficou deitado no escuro, de olhos abertos. Não queria perder aquilo. Doente ou não, queria guardar suas recordações, a capacidade de explorá-las e saboreá-las. Não queria pensar nas ilhas — não, nunca: isso era doença mesmo — porém queria pensar em Lilás, nas reuniões do grupo na sala de depósito cheia de relíquias e, de vez em quando, talvez, sonhar outra vez.

Mas o tratamento viria dentro de três horas e tudo terminaria. Não havia nada que pudesse fazer — a não ser esperar novo terremoto, & quais eram as possibilidades de que isso acontecesse? As válvulas-sismógrafos funcionavam perfeitamente desde então e continuariam funcionando perfeitamente no futuro. E o que, além de um terremoto, podia adiar o tratamento? Nada. Absolutamente nada. Não com Uni sabendo que ele já tinha mentido antes para conseguir um adiamento.

O contorno da folha seca sobre a pedra voltou-lhe à lembrança, mas enxotou-o para pensar em Lilás, para vê-la como a havia visto no sonho, para não desperdiçar suas três breves horas de lucidez. Tinha esquecido como eram grandes os olhos dela, como era lindo o seu sorriso, a sua pele morena-rosa, como era comovente a sua sinceridade. Tinha esquecido tanta coisa mais: o prazer de fumar, o entusiasmo em decifrar Français...

O contorno seco da folha voltou, e pensou nele, irritado tentando descobrir por que se gravara na lembrança, tentando livrar-se dele de uma vez por todas. Recapitulou o momento ridiculamente inexplicável: visualizou a folha de novo, coberta de gotas brilhantes de bebida, seus dedos levantando-a pela haste, enquanto a outra mão segurava o invólucro dobrado do bolo, e o oval seco e cinzento sobre a pedra molhada de refrigerante escuro. Tinha derramado a bebida, ia folha ficara ali, e por baixo a pedra continuava...

Soergueu-se na cama e pegou com força o braço esquerdo coberto pelo pijama.

— Cristo e Wei — exclamou, assustado.


Levantou-se antes do primeiro carrilhão, vestiu-se e arrumou a cama.

Foi o primeiro a chegar ao refeitório. Comeu e bebeu, e voltou para o quarto com o invólucro do bolo dobrado displicentemente no bolso.

Desdobrou-o, colocou-o em cima da escrivaninha e alisou- o com a mão. Dobrou o invólucro laminado bem ao meio, e a metade em três. Apertou o maço quanto pôde e apalpou-o: era fino, apesar das seis dobras. Fino demais? Largou-o de novo.

Dirigiu-se ao banheiro, tirou algodão e o rolo de esparadrapo do estojo de medicamentos que guardava no armário. Trouxe-os de volta à escrivaninha.

Pôs uma camada de algodão sobre o maço do invólucro — uma camada menor que o próprio maço — e começou a cobrir o algodão e o maço com longas tiras superpostas de esparadrapo da cor da pele. Prendeu de leve as pontas do esparadrapo em cima da escrivaninha.

A porta se abriu e ele se virou, escondendo o que estava fazendo e guardando o rolo de esparadrapo no bolso. Era Karl TK, vizinho de quarto.

— Pronto pro café? — perguntou.

— Eu já tomei — respondeu.

— Ah. Até já, então.

— O.K. — disse, e sorriu.

Karl fechou a porta.

Terminou de passar o esparadrapo e depois desprendeu as pontas de cima da escrivaninha, levando para o banheiro a atadura que tinha feito. Colocou-a com o lado do invólucro laminado para cima na beira da pia e arregaçou a manga.

Pegou a atadura e encostou o invólucro cuidadosamente à parte interna do seu braço, onde o disco da infusão tocaria. Agarrou a atadura com força e colou as pontas do esparadrapo contra a pele.

Uma folha. Um escudo. Daria certo?

Se desse, pensaria unicamente em Lilás, não nas ilhas. Se se surpreendesse pensando nelas, contaria ao conselheiro.

Abaixou a manga.

Às oito horas, entrou na fila na sala de tratamento. Ficou de braços cruzados, com a mão por cima da atadura encoberta pela manga — para esquentá-la, caso o disco de infusão fosse sensível à temperatura.

Estou doente, pensou. Vou pegar tudo quanto é doença: câncer, varíola, cólera, tudo. Crescerão pêlos no meu rosto!

Faria aquilo só desta vez. Ao primeiro sintoma de anormalidade, correria ao conselheiro.

Talvez não desse certo.

Chegou a sua vez. Arregaçou a manga até o cotovelo, enfiou o braço bem no fundo do orifício revestido de borracha, depois puxou a manga até o ombro e no mesmo instante deslizou o braço todo no interior do aparelho.

Sentiu o controle localizando-lhe a pulseira e a leve pressão do disco de infusão sobre a atadura de algodão... Não aconteceu nada.

— Você já está pronto — advertiu o membro seguinte.

A luz azul do aparelho estava acesa.

— Ah — exclamou, abaixando a manga enquanto retirava o braço.

Tinha de rumar direto para o trabalho.

Terminado o almoço, voltou ao quarto e, no banheiro, arregaçou a manga e tirou a atadura. O invólucro laminado estava intato, mas a pele sempre ficava assim após o tratamento. Arrancou do esparadrapo o invólucro dobrado.

O algodão tinha ficado cinzento e fosco. Espremeu a atadura em cima da pia e um líquido aquoso escorreu de dentro dela.


Recuperou a lucidez, cada dia mais forte. Recuperou a memória, em pormenores nítidos, torturantes.

Recuperou o sentimento. O rancor contra Uni converteu-se em ódio; o desejo por Lilás transformou-se em fome insaciável.

Recorreu novamente às velhas simulações: era normal no trabalho, normal com o conselheiro, normal com a namorada. Mas dia a dia aquele fingimento ficava mais irritante, mais insuportável de manter.

No tratamento subsequente, fez outra atadura com invólucro de bolo, algodão e esparadrapo; e dela espremeu outro fio de líquido aquoso.

Apareceram-lhe pontinhos pretos no queixo, no rosto e acima do lábio superior — pêlos incipientes. Desmontou a tesoura, prendeu com arame uma das lâminas ao cabo e de manhã, antes do primeiro carrilhão, esfregava sabonete no rosto e raspava fora os pontinhos.

Sonhava todas as noites. As vezes os sonhos traziam-lhe orgasmos.

Simular calma e contentamento, humildade e bondade, tornava-se cada vez mais exasperante. No dia de Natal de Marx, numa praia, pôs-se a caminhar pela areia e de repente desandou a correr, a correr na frente dos membros que caminhavam a seu lado, a correr para longe da Família que tomava banho de sol, que comia bolos. Correu até que a praia se estreitou em pedras caídas e continuou correndo no meio da arrebentação e por cima de antigos contrafortes escorregadios. Então parou e sozinho e nu entre o oceano e os elevados penhascos cerrou os punhos e esmurrou os rochedos, gritando obscenidades para o claro céu azul, torcendo e tentando arrancar a corrente inquebrável de sua pulseira.

Era 169, dia 6 de maio. Tinha perdido seis anos e meio. Seis anos e meio! Estava com trinta e quatro. Morava em USA- 90058.

E onde estaria ela? Ainda em Ind, ou noutro lugar qualquer? Na Terra ou numa espaçonave?

E estaria viva, como ele, ou morta, como todos os membros da Família?


2

 

Agora era mais fácil, agora que tinha machucado as mãos e gritado. Mais fácil de caminhar com um sorriso de contentamento, de assistir à televisão e olhar pelo microscópio, de sentar com a namorada nos concertos de anfiteatro.

Pensando o tempo todo no que fazer...


— Alguma preocupação? — perguntou-lhe o conselheiro.

— Bem, um pouco — respondeu.

— Achei que você não estava com bom aspeto. O que é?

— Olha, sabe, eu andei muito doente alguns anos atrás...

— Sei.

— E agora um dos membros que esteve doente junto comigo, o que me deixou doente, pra ser mais preciso, está morando aqui no prédio. Será que não daria pra eu me mudar pra outro lugar?

O conselheiro olhou-o com ar de dúvida.

Estou meio surpreso — disse ele, — que o UniComp tenha deixado vocês dois juntos de novo.— Eu também — disse Quem. — Mas ela está morando aqui. Encontrei-a ontem à noite no refeitório e hoje de manhã outra vez.

— Você falou com ela?

— Não.

— Vou informar-me. Se ela estiver aqui e isso o incomoda, evidente que nós o mudaremos pra outro lugar. Ou então ela. Qual é o número dela?

— Não me lembro por completo — respondeu Quem. — Ana ST38P.


O conselheiro telefonou-lhe no dia seguinte de manhã cedo.

— Você se enganou, Li — disse. — Não foi aquele membro que você viu. E por falar nisso, ela é Ana SG, não ST.

— Tem certeza de que ela não mora aqui?

— Absoluta. Ela está em Afr.

— Que alívio.

— E Li, em vez de você fazer tratamento na quinta, você vai fazer hoje,

— É mesmo?

— É. A uma e meia.

— ‘Tá certo — disse. — Obrigado, Jesus.

— Agradeça a Uni.

Tinha três invólucros de bolo dobrados e escondidos no fundo da gaveta da escrivaninha. Tirou um, foi ao banheiro, e começou a preparar a atadura.


Ela estava em Afr. Era mais perto do que Ind, mas sempre a um oceano de distância. E da largura de Usa, aliás.

Os pais dele moravam lá, em ’71334. Esperaria algumas semanas e depois pediria uma visita. Fazia pouco menos de dois anos que não os via: havia bastante possibilidade de que o pedido fosse atendido. Chegando em Afr, telefonaria a ela — sob o pretexto de ter ferido o braço, conseguiria que uma criança tocasse a placa de um telefone de rua para ele — terminando por descobrir onde ela se encontrava exatamente. Alô, Ana SG. Espero que você esteja tão bem quanto eu. Qual é a cidade em que você mora?

E depois, como faria? Iria a pé até lá? Pediria uma passagem de carro para algum lugar vizinho, onde houvesse uma instalação relacionada de certa forma com genética? Uni não perceberia o que ele andava tramando?

Mas mesmo que tudo-isso acontecesse, mesmo que conseguisse chegar até ela, o que faria depois? Era esperar demais que ela também houvesse levantado uma folha de uma pedra molhada algum dia. Não, ódio, na certa estaria normal, tão normal como ele próprio estivera até há bem poucos meses. E à primeira palavra anormal que proferisse, o recolheria a um centro médico. Cristo, Marx, Wood e Wei, que podia ele fazer?

Esquecê-la: era uma solução. Partir por sua conta, agora, para a ilha livre mais próxima. AH haveria mulheres, provavelmente aos montes, e algumas decerto teriam a pele rosa-morena, olhos grandes menos-oblíquos-que-o-normal e seios cônicos de aspeto macio. Valeria a pena arriscar a lucidez conquistada em troca da remota possibilidade de despertar a dela?

Embora ela tivesse despertado a sua, agachando-se à sua frente com as mãos pousadas em seus joelhos...

Não ao risco da própria, contudo. Ou, pelo menos, não com um risco tão grande.

Foi ao Museu da Pré-U: da mesma maneira antiga, à noite, sem tocar nos controles. Era igual ao de IND26110. Algumas peças do mostruário variavam um pouco, expostas em lugares diferentes.

Encontrou outro mapa da Pré-U, este feito em 1937, com os mesmos oito retângulos azuis colados. A parte traseira havia sido cortada e presa toscamente com esparadrapo: alguém passara por ali antes dele. A ideia era empolgante: alguém tinha descoberto as ilhas, talvez estivesse a caminho de uma naquele mesmo momento.

Noutra sala de depósito — esta com apenas uma mesa, algumas caixas de papelão e uma máquina semelhante a uma cabina, com uma série de minúsculas alavancas — ele novamente segurou o mapa contra a luz, novamente viu as ilhas escondidas. Copiou no papel a mais próxima, “Cuba”, ao largo da ponta sudeste de Usa. E caso decidisse arriscar-se a encontrar Lilás, copiou o contorno de Afr e as duas ilhas que ficavam perto, “Madagascar” ao leste e a pequena “Majorca” ao norte.

Uma das caixas de papelão continha livros. Encontrou um em Français:. Spinoza et ses Contemporains. Spinoza e seus Contemporâneos. Deu uma olhada nas páginas e tirou-o.

Pôs o mapa remoldurado no lugar e foi passar o museu em revista. Tirou uma bússola de pulso que parecia ainda estar funcionando, uma “navalha” com cabo de marfim e a pedra para afiá-la.

— Não demora muito seremos transferidos — avisou o chefe de seção um dia à hora do almoço. GL4 vai substitui-nos.

— Tomara que eu vá pra Afr — disse. — Meus pais estão lá.

Era o tipo do comentário arriscado, ligeiramente impróprio para um membro, mas talvez o chefe de seção exercesse influência indireta na escalação de trabalho.

Sua namorada foi transferida e ele acompanhou-a ao aeroporto para despedir-se — e verificar se era possível entrar a bordo de um avião sem a permissão de Uni. Pelo jeito, não: a compacta fila única de passageiros não permitiria o toque falso do controle e quando chegasse a hora em que o último membro da fila estivesse tocando-o, um membro de túnica cor de laranja achava-se a seu lado, pronto para fazer parar a escada rolante e devolvê-la ao respetivo poço. Sair de um avião apresentava a mesma dificuldade: o passageiro que ficava por último tocava no controle enquanto dois membros de túnica cor de laranja observavam. Depois invertiam a escada rolante, tocavam no controle, e entravam a bordo com recipientes de aço para recolher os restos de bolo e bebida. Talvez conseguisse entrar num avião que estivesse aguardando no espaço dos hangares — e esconder-se dentro, embora não se lembrasse de nenhum esconderijo em aviões — mas como prever o destino eventual do vôo?

Via aérea, portanto, era impossível, até que Uni dissesse que ele podia viajar.

Pediu licença para visitar os pais. Não foi atendido.

Anunciaram novas transferências para a sua seção. Dois 663 foram enviados a Afr, mas ele não: tinha de ir para USA-36104. Estudou o avião durante o vôo. Não havia esconderijo: apenas a longa cabina cheia de poltronas, o banheiro na parte da frente, o compartimento de bolos e bebidas na retaguarda, e as telas de televisão, com um ator interpretando o papel de Marx em todas elas.

USA36104 ficava a sudeste, perto da ponta de Usa, com Cuba logo após. Podia sair de bicicleta um domingo, passar de cidade em cidade, dormindo nos parques intermediários e indo buscar bolos e bebida depois que anoitecesse. Eram mil e duzentos quilômetros, segundo o mapa do MPF. Em ’33037 ele podia encontrar um barco, ou negociantes vindo à costa, como os de ARG20400 de que Rei lhe falara.

Lilás, pensou, que mais posso fazer?

Pediu de novo permissão para visitar Afr e de novo não foi atendido.

Começou a andar de bicicleta aos domingos e durante a hora de folga, para exercitar as pernas. Foi ao Pré-U de ’36104 e descobriu uma bússola melhor e uma faca de fio dentado que servia para cortar galhos nos parques. Verificou o mapa que havia: a parte traseira estava intata, fechada. Escreveu por cima: Sim, existem ilhas onde os membros são livres. Abaixo Uni!

Um domingo, de manhã cedo, rumou para Cuba, com a bússola e um mapa copiado em um de seus bolsos. Na cesta da bicicleta, levava A Sabedoria Viva de Wei em cima de um cobertor dobrado, um recipiente com bebida e um bolo. Dentro do cobertor estava a sua sacola de viagem, que continha a navalha, a pedra de afiar, um sabonete, a tesoura, dois bolos, a faca, uma lanterna, algodão, um rolo de esparadrapo, uma fotografia de seus pais e Papai Jan, e uma muda extra de túnica. Debaixo da manga direita uma atadura cobria-lhe o braço, embora se fosse levado para tratamento seria quase certo que a descobririam. Usava óculos escuros e sorria, pedalando rumo a sudeste entre outros ciclistas pela estrada que conduzia a ’36081. Passavam carros chispando em sequência uniforme sobre a autopista paralela à estrada. De vez em quando zuniam pedregulhos, chutados pelos jatos aéreos dos carros contra a linha divisória de metal.

De hora em hora, mais ou menos, ele parava e descansava um pouco. Comia metade de um bolo e bebia certa quantidade do refrigerante. Pensava em Cuba e no que tiraria em ’33037 para negociar lá. Pensava nas mulheres em Cuba. Provavelmente se sentiriam atraídas por um recém-chegado. E nenhuma estaria sob tratamento, apaixonadas como nem era possível imaginar, tão bonitas como Lilás ou até mais...

Viajou cinco horas; de repente deu meia volta e refez o mesmo percurso.

Forçou-se a se concentrar no trabalho. Era o funcionário 663 da seção de pediatria de um centro médico. O tipo do serviço tedioso, com intermináveis exames de genes e mínimas variações, o tipo do serviço do qual nunca seria transferido. Ficaria ali para o resto da vida.

De mês em mês pedia permissão para visitar os pais em

Afr.

Em fevereiro de 170 o pedido foi atendido.


Saiu do avião às quatro da madrugada, hora local, e foi para a sala de espera, segurando o cotovelo direito com ar constrangido, a sacola a tiracolo no ombro esquerdo. O membro que descera do avião atrás dele, e que o ajudara a levantar-se quando caíra, colocou-lhe a pulseira diante de um telefone.

— Tem certeza de que não se machucou muito? — perguntou ela.

— Tenho, sim — garantiu, sorrindo. — Obrigado, e aproveite a visita, — E ao telefone: —AnaSG38P2823.

A mulher foi-se embora.

Houve um clarão antes da tela se definir e a ligação ser completada. De repente escureceu e não se iluminou mais. Ela foi transferida, pensou. Não está mais no continente. Esperou para ouvir a confirmação. Mas em vez disso:

— Um momento, não consigo...

E lá estava ela, ainda indefinida, sentada na beira da cama, de pijama, esfregando os olhos.

— Quem é? — perguntou.

Atrás dela um membro se virou. Era sábado de noite. Ou teria casado?

— Li RM — respondeu.

— Quem?

Ela olhou-o, inclinando-se um pouco, piscando os olhos. Era mais bonita do que ele se lembrava: estava mais velha, linda. E, depois, que olhos!

— Li RM — repetiu, forçando-se a um tom apenas cortês, típico de membro. — Não se lembra? De IND26110, lá por 162.

Ela contraiu a testa, nervosa, um instante.

— Ah, sim, lógico — sorriu. — Claro que me lembro. Como vai, Li?

— Muito bem. E você?

— Otimamente.

E parou de sorrir.

— Casou?

— Não. Que bom que você telefonou, Li. Eu quero agradecer-lhe, sabe? Por me ter ajudado.

— Agradeça a Uni.

— Não, não. A você. Um pouco atrasado.

Sorriu de novo.

— Desculpe ligar a esta hora. Estou de passagem por Afr, fui transferido.

— Não tem importância. Gostei muito.

— Onde você está? — perguntou.

— Em ’14509.

— É onde mora a minha irmã.

— Não diga.

— E, sim. Qual é o seu edifício?

— P51.

— O dela é A-não-sei-quanto.

O membro atrás dela sentou na cama e ela se voltou, dizendo-lhe qualquer coisa. Ele sorriu para Quem. Ela se virou de novo.

— Este é Li XE.

— Olá — saudou Quem, decorando '14509, P51; '14509, P51.

— Olá, irmão — fizeram os lábios de Li XE: sua voz não alcançava o aparelho.

— Que foi que houve com o seu braço? — perguntou Lilás.

Ele continuava segurando-o. Soltou-o.

— Nada — respondeu. — Eu caí ao descer do avião.

— Oh, que pena — ela olhou por cima do ombro dele. — Tem um membro aí esperando — preveniu. — Acho melhor a gente se despedir.

— Sim. Adeus. Gostei muito de revê-la. Você não mudou nada.

— Você também não. Adeus, Li.

Ela se levantou, estendeu a mão para o aparelho e a imagem desapareceu.

Ele desligou e cedeu lugar ao membro que esperava atrás.

Estava morta: um membro normal, sadio, deitada agora ao lado do seu namorado, em ’14509, P51. Como podia arriscar-se a lhe falar sobre alguma coisa que não fosse tão normal e sadia como ela? Passaria o dia com os pais e voltaria de avião para Usa.

No próximo domingo partiria de bicicleta e desta vez não daria meia volta.

Perambulou um pouco pela sala de espera. Havia um mapa geral de Afr na parede, com luzes nas principais cidades, ligadas por tênues linhas alaranjadas. Ao norte ficava ’14510, perto do lugar onde ela morava. A meio continente de distância de ’71330, que era onde ele se encontrava. Uma linha alaranjada ligava as duas luzes.

Olhou o quadro de horário dos vôos, acendendo e apagando, revisando os escalados para Domingo 18 fev. Tinha um que partia às 8h20m da noite para ’14510, quarenta minutos antes do avião que tomaria para USA33100.

Aproximou-se da vidraça que dava para o campo e ficou olhando os passageiros dirigindo-se em fila única para a escada rolante do avião que ele deixara. Um membro de túnica cor de laranja apareceu e aguardou ao lado do controle.

Virou-se de frente para a sala de espera. Estava quase vazia. Dois membros que tinham viajado no avião junto com ele, uma mulher segurando uma criança adormecida e um homem carregando duas sacolas, colocaram seus pulsos e o da criança no controle da porta que conduzia ao carroporto — sim, piscou três vezes — e saíram. Um membro de túnica cor de laranja, ajoelhado ao lado do chafariz, desatarraxava uma placa na parte inferior; outra empurrou uma enceradeira para um canto da sala de espera, tocou num controle — sim — e empurrou-a através de uma porta giratória.

Refletiu um instante, olhando o membro trabalhando no chafariz, e depois atravessou a sala, tocando no controle da porta que levava ao carroporto — sim — e saiu. Havia um carro para ’71334 à espera, já com três membros. Tocou no controle — sim — e entrou no carro, desculpando-se com os outros por tê-los feito esperar. A porta fechou-se e o carro partiu. Ele se sentou com a sacola no colo, pensativo.

Ao chegar ao apartamento dos pais, entrou sem fazer ruído, barbeou-se e depois acordou-os. Ficaram contentes, até mesmo felizes, em vê-lo.

Os três conversaram, tomaram café e voltaram a conversar. Pediram um telefonema para Paz, em Eur, que foi atendido. Falaram com ela, com o marido, e com os filhos, Beto, que tinha dez anos, e Yin, de oito. Depois, por sugestão dele, foram ao Museu dos Progressos da Família.

Terminado o almoço, ele dormiu três horas e por fim tomaram o monotrilho para os Jardins de Diversões. O pai entrou num jogo de vôlei e ele e a mãe sentaram num banco para assistir.

— Você está doente de novo? — perguntou-lhe ela.

Olhou-a.

— Não — respondeu. — Claro que não. Estou muito bem.

Ela olhou bem para ele. Tinha agora cinquenta e sete anos, o cabelo estava grisalho e a pele morena toda enrugada.

— Você esteve pensando em alguma coisa — disse. O dia todo.

— Eu estou bem. Por favor. A senhora é minha mãe, acredite em mim.

Olhou-o nos olhos, preocupada.

— Estou bem — repetiu.

Após uma pausa, ela retrucou:

— O.K., Quem.

Sentiu-se subitamente cheio de amor por ela. De amor e gratidão, com uma sensação de unidade filial. Pegou-a pelo ombro e beijou-lhe o rosto.

— Eu te amo, Suzu — disse.

Ela riu.

— Cristo e Wei — exclamou. — Que memória você tem!

— É porque sou sadio. Lembre-se disso, sim? Sou sadio e feliz. Quero que a senhora não se esqueça disso.

— Porquê?

— Porque sim.

Contou-lhes que o avião partia às oito.

— Despedir-nos-emos no carroporto — disse. O aeroporto vai estar atulhado de gente.

Mesmo assim, o pai queria ir. Mas a mãe disse que não, que ficariam em '334. Sentia-se cansada.

Às sete e meia, deu-lhes um beijo de despedida — primeiro no pai, depois na mãe, segredando-lhe ao ouvido: “Não se esqueça” — e entrou na fila de carros para o aeroporto de ’71330. O controle, quando tocou nele, piscou sim.


A sala de espera estava ainda mais repleta do que esperava que estivesse. Membros de túnicas brancas, amarelas e azul claro caminhavam, ficavam de pé, sentavam e esperavam na fila, alguns com sacola, outros sem. Uns poucos de túnica cor de laranja moviam-se no meio da multidão.

Olhou o quadro: o vôo das 8h20m para ’14510 apanharia os passageiros na pista dois. Os membros já estavam lá na fila, e além da vidraça, um avião fazia manobra para colocar-se junto de uma escada rolante. Sua porta abriu-se, deixando passar um membro, logo seguido por outro.

Quem abriu caminho entre a multidão até chegar à porta giratória no canto da sala, fingindo que tocava no controle e empurrando-a para sair: encontrou-se numa parte de depósito, onde havia engradados e caixas de papelão enfileirados sob uma luz ofuscante, semelhantes às comportas de memória de Uni. Tirou a sacola do ombro e escondeu-a entre uma caixa de papelão e a parede.

Seguiu adiante normalmente. Um carrinho com recipientes de aço passou por ele, empurrado por um membro de túnica cor de laranja que o olhou de relance, cumprimentando com a cabeça.

Retribuiu o aceno, continuou andando, e viu o membro empurrar o carrinho por um grande portão aberto e sair para o campo profusamente iluminado.

Tomou a direção de onde o membro tinha vindo, chegando a uma área em que membros de túnica cor de laranja colocavam recipientes de aço sobre a esteira de transporte de uma máquina de lavar, enchendo outros com refrigerantes e chá fumegante provenientes das torneiras de gigantescos cilindros. Seguiu adiante.

Fingiu tocar num controle e entrou numa sala cheia de túnicas comuns penduradas em ganchos. Dois membros despiam túnicas cor de laranja.

— Olá — saudou.

— Olá — responderam.

Dirigiu-se à porta de um armário e entreabriu-a: continha uma enceradeira e frascos de líquido verde.

— Onde estão as túnicas? — perguntou.

— Ali dentro — informou um deles, acenando com a cabeça para outro armário.

Foi até lá e abriu-o. Havia túnicas cor de laranja nas prateleiras. Biqueiras de calçado e pares de luvas grossas, tudo da mesma cor.

— De onde você é? — perguntou o mesmo.

— RUS50937 — mentiu, tirando uma túnica e um par de biqueiras. — Lá nós guardamos as túnicas ali.

— Elas devem ficar aí — teimou o membro, fechando a túnica branca.

— Já estive em Rus — disse o outro, que era uma mulher. — Tive dois trabalhos lá. O primeiro levou quatro anos e o segundo três.

Não se apressou em colocar as biqueiras, só terminando quando os dois jogaram as túnicas cor de laranja na lixeira e saíram.

Enfiou a túnica cor de laranja por cima da branca e fechou-a até o pescoço. Era mais grossa que a comum e possuía bolsos extras.

Examinou os outros armários, encontrou uma chave inglesa e um pedaço de paplão amarelo de bom tamanho.

Voltou ao lugar onde deixara a sacola, tirou-a e embrulhou-a no paplão. A porta giratória deu um encontrão nele.

— Desculpe — disse um membro, entrando. — Machucou-se?

— Não — respondeu, segurando a sacola embrulhada.

O membro de túnica cor de laranja seguiu adiante.

Esperou um pouco, observando-o, depois meteu a sacola debaixo do braço esquerdo e tirou a chave inglesa do bolso. Agarrou-a com a mão direita, de um jeito que esperava que parecesse natural.

Foi atrás do membro, depois dobrou e dirigiu-se ao portão que comunicava com o campo.

A escada rolante apoiada ao flanco do avião na pista dois estava vazia. Um carrinho, provavelmente o que tinha visto ser empurrado, achava-se parado ao pé dos degraus, junto do controle.

Havia outra escada rolante, sendo recolhida ao poço, e o avião que ela atendera já rodava, pronto para a decolagem. Devia ser o vôo das 8hl0 para Chi, provavelmente.

Agachou-se sobre um joelho, largando a sacola e a chave inglesa em cima do cimento, e simulou ter problema com a biqueira. Todo mundo na sala de espera estaria assistindo à decolagem do avião para Chi: era o momento em que ele subiria a escada rolante. Pernas cor de laranja passaram farfalhando a seu lado: um membro voltava aos hangares. Tirou a biqueira e tomou a enfiá-la, olhando o avião girar...

A decolagem começou. Juntou a sacola e a chave inglesa, levantou-se e caminhou normalmente. O clarão dos holofotes o enervava, mas disse consigo mesmo que ninguém o estava olhando, todo mundo prestando atenção ao avião. Dirigiu-se à escada rolante, fingiu tocar no controle — o carrinho ao lado o favorecia, justificando-lhe a falta de jeito — e pisou nos degraus ascendentes. Agarrou-se com força à sacola enrolada em paplão e ao cabo úmido da chave inglesa enquanto subia rapidamente até a porta aberta do avião. Saltou fora da escada rolante e entrou a bordo.

Dois membros com túnica cor de laranja estavam ocupados na despensa. Olharam na sua direção e ele acenou com a cabeça. Retribuíram-lhe o cumprimento. Desceu o corredor, rumo ao banheiro.

Entrou, deixando a porta aberta, e pousou a sacola no chão. Virou-se para a pia, experimentou as torneiras e bateu-as com a chave inglesa. Ajoelhou-se e fez o mesmo no cano de esgoto. Abriu as tenazes da chave inglesa e colocou-as em torno do cano.

Escutou a escada parar, e depois recomeçar. Inclinou-se para o lado de fora e espiou. Os membros tinham ido embora.

Largou a chave no chão, levantou-se, fechou a porta e abriu a túnica cor de laranja. Despiu-a, dobrou-a pelo comprido e enrolou-a numa trouxa tão compacta quanto pôde. Tornou a ajoelhar-se, desembrulhou a sacola e abriu-a. Guardou a túnica, dobrou o paplão amarelo e também meteu junto na sacola. Tirou as biqueiras das sandálias, apertou-as bem e enfiou num dos cantos da sacola. Incluiu a chave inglesa, esticou a tampa com força e comprimiu-a para fechar.

De sacola no ombro, lavou as mãos e o rosto com água fria. Seu coração batia depressa, mas sentia-se bem, entusiasmado, vivo. Olhou no espelho aquela sua cara com um olho verde e o outro castanho. Abaixo Uni!

Ouviu vozes de membros subindo a bordo do avião. Ficou junto da pia, enxugando as mãos que já estavam secas.

A porta se abriu, dando passagem a um menino de mais ou menos dez anos.

— Oi — disse Quem, secando as mãos. — O dia foi bom pra você?

— Foi, sim — respondeu o garoto.

Quem jogou a toalha na lixeira.

— É a primeira vez que você anda de avião?

— Não — disse o garoto, abrindo a túnica. — Já andei uma porção de vezes.

E sentou-se numa das toaletes.

— Até já — disse Quem, e saiu.

A terça parte do avião já estava cheia, e novos membros entravam. Ocupou a poltrona vazia mais próxima que havia no corredor, verificou se a sacola ficara bem fechada e acomodou-a embaixo do assento.

Na chegada faria a mesma coisa. Quando todo mundo estivesse descendo do avião, iria para o banheiro e vestiria a túnica cor de laranja. Quando os membros viessem a bordo com os recipientes de reabastecimento, o encontrariam trabalhando na pia e ele sairia depois deles. Na área de depósito, atrás de um engradado ou dentro de um armário, ele se livraria da túnica, das biqueiras e da chave inglesa. E depois fingiria tocar o controle para dar o fora do aeroporto e caminhar a pé até ’14509. Ficava a oito quilômetros a leste de ’510. Verificara de manhã num mapa do MPF, Tendo sorte, chegaria lá por volta da meia-noite.

— Que coisa estranha — exclamou o membro a seu lado.

Virou-se.

Ela estava olhando para o fundo do avião.

— Não há lugar vago pra aquele membro — disse.

O homem percorria lentamente o corredor, olhando para todos os lados. O avião estava lotado. Membros olhavam em torno, procurando dar-lhe ajuda.

— Tem que ter — disse Quem, levantando-se da poltrona e olhando ao redor. — Uni não pode ter cometido um engano.

— Não tem — disse a vizinha de assento. — Todos os lugares estão ocupados.

Formou-se um burburinho a bordo. De fato não havia lugar para o membro. Uma mulher pegou uma criança no colo e chamou-o.

O avião começou a se mover e as telas de televisão se iluminaram, com um programa sobre a geografia e os recursos de Afr.

Tentou prestar atenção ao programa, pensando que talvez lhe trouxesse alguma informação útil, mas não conseguiu. Se fosse descoberto e tratado agora, nunca mais ficaria lúcido. Desta vez Uni tomaria todas as precauções para que não entendesse nem o significado de mil folhas sobre mil pedras úmidas.


Chegou a ’14509 à meia-noite e vinte. Estava bem acordado, ainda segundo a hora de Usa, com o vigor da tarde.

Primeiro foi ao Pré-U, e depois ao ponto de bicicletas na praça mais próxima ao prédio P51. Fez duas viagens até o ponto de bicicletas e uma até o refeitório do P51 e seu centro de abastecimento.

Às três horas, entrou no quarto de Lilás. Olhou-a à luz da lanterna enquanto dormia — o rosto, o pescoço, mão morena pousada no travesseiro — e depois aproximou-se da escrivaninha e acendeu a lâmpada.

— Ana — chamou, parado ao pé da cama. — Ana, você tem que levantar agora.

Ela resmungou qualquer coisa.

— Você tem que levantar agora, Ana — repetiu. — Anda, levanta.

Ela se ergueu, cobrindo os olhos com a mão, queixando-se baixinho. Sentando-se, tirou a mão e fitou-o, reconhecendo-o e franzindo intrigada a testa.

— Eu quero que você venha dar uma volta comigo — disse.

— De bicicleta. Você não deve falar alto, nem pedir socorro.

Enfiou a mão no bolso e tirou um revólver. Empunhou-o do modo que lhe parecia adequado, com o indicador no gatilho, o resto da mão segurando o cabo, e a ponta fazendo mira no rosto dela.

— Eu a mato se você não fizer o que eu mando — acrescentou. — Não grite, Ana.


CONTINUA

TERCEIRA PARTE

 

FUGINDO


1

 

Velhas cidades foram demolidas, novas construídas. As novas tinham edifícios mais altos, praças mais amplas, parques mais vastos, monotrilhos cujos carros desenvolviam maior velocidade, embora com menos frequência.

Outras duas espaçonaves foram lançadas, em direção a Sírio B e Cisnes 61. As colônias marcianas, agora repovoadas e protegidas da devastação de 152, expandiam-se diariamente. O mesmo acontecendo com as colônias em Vênus e na Lua, os postos avançados em Titã e Mercúrio.

A hora de folga teve uma prolongação de cinco minutos. A ligação de telecomputadores pela voz começou a substituir as teclas e os bolos integrais ganharam um agradável segundo sabor. O limite de longevidade aumentou para 62.4.

Os membros trabalhavam e comiam, assistiam à televisão e dormiam. Cantavam, visitavam museus e passeavam pelos jardins de diversão.

No segundo centenário do nascimento de Wei, durante a parada numa cidade nova, um imenso estandarte com o retrato de Wei sorrindo teve um de seus mastros carregado por um membro de mais ou menos trinta anos, cujo aspeto era normal em todos os sentidos, a não ser pelo olho direito, que era verde em vez de castanho. Certa ocasião, há muito tempo, esse membro tinha adoecido, mas agora estava curado. Possuía trabalho, quarto, namorada e conselheiro. Sentia-se calmo e contente.

Um fato estranho lhe aconteceu durante a parada. Enquanto marchava, sorridente, segurando o mastro do estandarte, começou a ouvir um número que se repetia incessantemente no cérebro: Ana SG, trinta e oito P, vinte e oito, vinte e três. Ana SG, trinta e oito P, vinte e oito, vinte e três. Aquilo continuou martelando, em compasso com a marcha. Ficou imaginando a quem pertencia esse número e por que estaria repetindo-se daquela maneira em seu cérebro.

De repente lembrou-se: era do tempo de sua doença! Era o número de um dos outros doentes, o que se chamava Linda — não, Lilás. Por que, depois de tantos anos, voltava-lhe o seu número? Bateu os pés no chão com mais força, procurando não ouvir, e alegrou-se quando foi dado o sinal para cantar.

Contou ao conselheiro.

— Não tem a menor importância — disse ela. — Você provavelmente viu alguma coisa que fez lembrá-la. Talvez até ela mesma. Não há motivo pra temer recordações... a não ser, naturalmente, que se tornem incomodas. Se acontecer outra vez, me avise.

Mas não aconteceu. Ele estava curado, graças a Uni.


Um dia de Natal de Cristo, quando já tinha novo trabalho e morava noutra cidade, foi de bicicleta com a namorada e quatro outros membros a um parque distante. Levaram bolos e refrigerantes, e almoçaram no chão, perto de um arvoredo.

Ele tinha posto seu recipiente de refrigerante em cima de uma pedra quase lisa e, estendendo o braço para apanhá-lo enquanto conversava, derrubou-o. Os outros membros encheram-no de novo com o conteúdo dos seus.

Poucos minutos depois, ao dobrar o invólucro de seu bolo, reparou numa folha caída em cima da pedra úmida, com gotas de refrigerante brilhando na parte posterior, a haste enroscada para cima feito uma alça. Ele pegou a haste e levantou a folha: a pedra, embaixo, estava seca no formato oval da folha. O resto da pedra escurecera com o líquido, mas no lugar da folha continuava cinza e seca. Qualquer coisa naquele momento lhe pareceu significativa. Ficou sentado em silêncio, contemplando a folha que tinha na mão, o invólucro do bolo dobrado na outra e o contorno seco da folha em cima da pedra. Sua namorada falou-lhe algo e ele não pensou mais naquilo, juntando a folha e o invólucro e entregando-os ao membro encarregado do saco de detritos.

A imagem do contorno seco da folha em cima da pedra voltou-lhe à lembrança várias vezes naquele dia. E no dia seguinte também. Depois teve o seu tratamento e esqueceu o assunto. Em questão de semanas, porém, tomou a lembrar-se. Ficou imaginando por quê. Teria já levantado antes uma folha de cima de uma pedra úmida daquele mesmo jeito? Se tinha, não se recordava...

De vez em quando, ao caminhar por um parque ou, por estranho que pareça, ao aguardar na fila para fazer tratamento, a imagem do contorno seco da folha voltava-lhe à lembrança e o fazia franzir a testa.


Houve um terremoto. (Foi jogado longe da cadeira; a lente do microscópio quebrou e das profundezas do laboratório ele ouviu o som mais ensurdecedor de toda a sua vida.) Uma válvula- sismógrafo a meio continente de distância tinha emperrado sem que ninguém percebesse, explicou a televisão poucas noites depois. Aquilo jamais acontecera e não se repetiria mais. Constituía motivo de pesar, naturalmente, mas não era nada que causasse preocupações para o futuro.

Dezenas de prédios ruíram, centenas de membros morreram. Todos os centros médicos da cidade viram-se superlotados de feridos e mais da metade dos aparelhos de tratamento ficaram danificados, ocasionando um atraso de dez dias em cada um.

Alguns dias depois da data em que devia ter tido o seu, pensou em Lilás e em como a tinha amado de uma maneira diferente e mais — mais excitantemente — do que amara todas as outras. Ele havia querido contar uma coisa a ela. O que era? Ah sim, a propósito das ilhas. As ilhas que descobrira escondidas no mapa do Pré-U. As ilhas dos incuráveis...

O conselheiro telefonou-lhe.

— Você está bem? — perguntou.

— Acho que não, Karl — respondeu. — Preciso do meu tratamento.

— Espere um instante — disse o conselheiro, afastando- se e falando baixinho ao telecomputador. Não demorou muito, voltou. — Você pode fazê-lo hoje de noite às sete e meia — anunciou, — mas terá de ir ao centro médico em T24.

Às sete e meia ele estava esperando numa longa fila, pensando em Lilás, procurando recordar exatamente como ela era. Quando chegou perto dos aparelhos de tratamento, voltou-lhe à memória a imagem do contorno seco da folha em cima da pedra.


Lilás telefonou-lhe (ela morava ali mesmo, no próprio edifício) e ele foi para o quarto dela, que era a sala de depósito no Pré-U. Jóias verdes pendiam-lhe das orelhas e cintilavam em torno do pescoço moreno-rosa: estava com um vestido de fazenda verde fulgurante que expunha os seios cônicos macios de bicos nacarados.

— Bon soir, Quem — disse, sorrindo. — Comment vas-tu? Je m’ertnuyais tellement de toi.

Ele se aproximou, tomou-a nos braços e beijou-a — os lábios eram quentes e macios, a boca entreaberta — e acordou no escuro, desapontado: fora um sonho, apenas um sonho.

Mas estranhamente, assustadoramente, tudo persistia: o cheiro do seu perfume (parfum), o gosto do fumo, o som das canções de Pardal, o desejo por Lilás, a raiva contra Rei, o ressentimento contra Uni, a tristeza pela Família e a felicidade de sentir, de estar vivo e lúcido.

E de manhã faria o tratamento e aquilo terminaria. Às oito horas. Acendeu a luz, olhou o relógio: 4h54m. Em pouco mais de três horas...

Apagou a luz de novo e ficou deitado no escuro, de olhos abertos. Não queria perder aquilo. Doente ou não, queria guardar suas recordações, a capacidade de explorá-las e saboreá-las. Não queria pensar nas ilhas — não, nunca: isso era doença mesmo — porém queria pensar em Lilás, nas reuniões do grupo na sala de depósito cheia de relíquias e, de vez em quando, talvez, sonhar outra vez.

Mas o tratamento viria dentro de três horas e tudo terminaria. Não havia nada que pudesse fazer — a não ser esperar novo terremoto, & quais eram as possibilidades de que isso acontecesse? As válvulas-sismógrafos funcionavam perfeitamente desde então e continuariam funcionando perfeitamente no futuro. E o que, além de um terremoto, podia adiar o tratamento? Nada. Absolutamente nada. Não com Uni sabendo que ele já tinha mentido antes para conseguir um adiamento.

O contorno da folha seca sobre a pedra voltou-lhe à lembrança, mas enxotou-o para pensar em Lilás, para vê-la como a havia visto no sonho, para não desperdiçar suas três breves horas de lucidez. Tinha esquecido como eram grandes os olhos dela, como era lindo o seu sorriso, a sua pele morena-rosa, como era comovente a sua sinceridade. Tinha esquecido tanta coisa mais: o prazer de fumar, o entusiasmo em decifrar Français...

O contorno seco da folha voltou, e pensou nele, irritado tentando descobrir por que se gravara na lembrança, tentando livrar-se dele de uma vez por todas. Recapitulou o momento ridiculamente inexplicável: visualizou a folha de novo, coberta de gotas brilhantes de bebida, seus dedos levantando-a pela haste, enquanto a outra mão segurava o invólucro dobrado do bolo, e o oval seco e cinzento sobre a pedra molhada de refrigerante escuro. Tinha derramado a bebida, ia folha ficara ali, e por baixo a pedra continuava...

Soergueu-se na cama e pegou com força o braço esquerdo coberto pelo pijama.

— Cristo e Wei — exclamou, assustado.


Levantou-se antes do primeiro carrilhão, vestiu-se e arrumou a cama.

Foi o primeiro a chegar ao refeitório. Comeu e bebeu, e voltou para o quarto com o invólucro do bolo dobrado displicentemente no bolso.

Desdobrou-o, colocou-o em cima da escrivaninha e alisou- o com a mão. Dobrou o invólucro laminado bem ao meio, e a metade em três. Apertou o maço quanto pôde e apalpou-o: era fino, apesar das seis dobras. Fino demais? Largou-o de novo.

Dirigiu-se ao banheiro, tirou algodão e o rolo de esparadrapo do estojo de medicamentos que guardava no armário. Trouxe-os de volta à escrivaninha.

Pôs uma camada de algodão sobre o maço do invólucro — uma camada menor que o próprio maço — e começou a cobrir o algodão e o maço com longas tiras superpostas de esparadrapo da cor da pele. Prendeu de leve as pontas do esparadrapo em cima da escrivaninha.

A porta se abriu e ele se virou, escondendo o que estava fazendo e guardando o rolo de esparadrapo no bolso. Era Karl TK, vizinho de quarto.

— Pronto pro café? — perguntou.

— Eu já tomei — respondeu.

— Ah. Até já, então.

— O.K. — disse, e sorriu.

Karl fechou a porta.

Terminou de passar o esparadrapo e depois desprendeu as pontas de cima da escrivaninha, levando para o banheiro a atadura que tinha feito. Colocou-a com o lado do invólucro laminado para cima na beira da pia e arregaçou a manga.

Pegou a atadura e encostou o invólucro cuidadosamente à parte interna do seu braço, onde o disco da infusão tocaria. Agarrou a atadura com força e colou as pontas do esparadrapo contra a pele.

Uma folha. Um escudo. Daria certo?

Se desse, pensaria unicamente em Lilás, não nas ilhas. Se se surpreendesse pensando nelas, contaria ao conselheiro.

Abaixou a manga.

Às oito horas, entrou na fila na sala de tratamento. Ficou de braços cruzados, com a mão por cima da atadura encoberta pela manga — para esquentá-la, caso o disco de infusão fosse sensível à temperatura.

Estou doente, pensou. Vou pegar tudo quanto é doença: câncer, varíola, cólera, tudo. Crescerão pêlos no meu rosto!

Faria aquilo só desta vez. Ao primeiro sintoma de anormalidade, correria ao conselheiro.

Talvez não desse certo.

Chegou a sua vez. Arregaçou a manga até o cotovelo, enfiou o braço bem no fundo do orifício revestido de borracha, depois puxou a manga até o ombro e no mesmo instante deslizou o braço todo no interior do aparelho.

Sentiu o controle localizando-lhe a pulseira e a leve pressão do disco de infusão sobre a atadura de algodão... Não aconteceu nada.

— Você já está pronto — advertiu o membro seguinte.

A luz azul do aparelho estava acesa.

— Ah — exclamou, abaixando a manga enquanto retirava o braço.

Tinha de rumar direto para o trabalho.

Terminado o almoço, voltou ao quarto e, no banheiro, arregaçou a manga e tirou a atadura. O invólucro laminado estava intato, mas a pele sempre ficava assim após o tratamento. Arrancou do esparadrapo o invólucro dobrado.

O algodão tinha ficado cinzento e fosco. Espremeu a atadura em cima da pia e um líquido aquoso escorreu de dentro dela.


Recuperou a lucidez, cada dia mais forte. Recuperou a memória, em pormenores nítidos, torturantes.

Recuperou o sentimento. O rancor contra Uni converteu-se em ódio; o desejo por Lilás transformou-se em fome insaciável.

Recorreu novamente às velhas simulações: era normal no trabalho, normal com o conselheiro, normal com a namorada. Mas dia a dia aquele fingimento ficava mais irritante, mais insuportável de manter.

No tratamento subsequente, fez outra atadura com invólucro de bolo, algodão e esparadrapo; e dela espremeu outro fio de líquido aquoso.

Apareceram-lhe pontinhos pretos no queixo, no rosto e acima do lábio superior — pêlos incipientes. Desmontou a tesoura, prendeu com arame uma das lâminas ao cabo e de manhã, antes do primeiro carrilhão, esfregava sabonete no rosto e raspava fora os pontinhos.

Sonhava todas as noites. As vezes os sonhos traziam-lhe orgasmos.

Simular calma e contentamento, humildade e bondade, tornava-se cada vez mais exasperante. No dia de Natal de Marx, numa praia, pôs-se a caminhar pela areia e de repente desandou a correr, a correr na frente dos membros que caminhavam a seu lado, a correr para longe da Família que tomava banho de sol, que comia bolos. Correu até que a praia se estreitou em pedras caídas e continuou correndo no meio da arrebentação e por cima de antigos contrafortes escorregadios. Então parou e sozinho e nu entre o oceano e os elevados penhascos cerrou os punhos e esmurrou os rochedos, gritando obscenidades para o claro céu azul, torcendo e tentando arrancar a corrente inquebrável de sua pulseira.

Era 169, dia 6 de maio. Tinha perdido seis anos e meio. Seis anos e meio! Estava com trinta e quatro. Morava em USA- 90058.

E onde estaria ela? Ainda em Ind, ou noutro lugar qualquer? Na Terra ou numa espaçonave?

E estaria viva, como ele, ou morta, como todos os membros da Família?


2

 

Agora era mais fácil, agora que tinha machucado as mãos e gritado. Mais fácil de caminhar com um sorriso de contentamento, de assistir à televisão e olhar pelo microscópio, de sentar com a namorada nos concertos de anfiteatro.

Pensando o tempo todo no que fazer...


— Alguma preocupação? — perguntou-lhe o conselheiro.

— Bem, um pouco — respondeu.

— Achei que você não estava com bom aspeto. O que é?

— Olha, sabe, eu andei muito doente alguns anos atrás...

— Sei.

— E agora um dos membros que esteve doente junto comigo, o que me deixou doente, pra ser mais preciso, está morando aqui no prédio. Será que não daria pra eu me mudar pra outro lugar?

O conselheiro olhou-o com ar de dúvida.

Estou meio surpreso — disse ele, — que o UniComp tenha deixado vocês dois juntos de novo.— Eu também — disse Quem. — Mas ela está morando aqui. Encontrei-a ontem à noite no refeitório e hoje de manhã outra vez.

— Você falou com ela?

— Não.

— Vou informar-me. Se ela estiver aqui e isso o incomoda, evidente que nós o mudaremos pra outro lugar. Ou então ela. Qual é o número dela?

— Não me lembro por completo — respondeu Quem. — Ana ST38P.


O conselheiro telefonou-lhe no dia seguinte de manhã cedo.

— Você se enganou, Li — disse. — Não foi aquele membro que você viu. E por falar nisso, ela é Ana SG, não ST.

— Tem certeza de que ela não mora aqui?

— Absoluta. Ela está em Afr.

— Que alívio.

— E Li, em vez de você fazer tratamento na quinta, você vai fazer hoje,

— É mesmo?

— É. A uma e meia.

— ‘Tá certo — disse. — Obrigado, Jesus.

— Agradeça a Uni.

Tinha três invólucros de bolo dobrados e escondidos no fundo da gaveta da escrivaninha. Tirou um, foi ao banheiro, e começou a preparar a atadura.


Ela estava em Afr. Era mais perto do que Ind, mas sempre a um oceano de distância. E da largura de Usa, aliás.

Os pais dele moravam lá, em ’71334. Esperaria algumas semanas e depois pediria uma visita. Fazia pouco menos de dois anos que não os via: havia bastante possibilidade de que o pedido fosse atendido. Chegando em Afr, telefonaria a ela — sob o pretexto de ter ferido o braço, conseguiria que uma criança tocasse a placa de um telefone de rua para ele — terminando por descobrir onde ela se encontrava exatamente. Alô, Ana SG. Espero que você esteja tão bem quanto eu. Qual é a cidade em que você mora?

E depois, como faria? Iria a pé até lá? Pediria uma passagem de carro para algum lugar vizinho, onde houvesse uma instalação relacionada de certa forma com genética? Uni não perceberia o que ele andava tramando?

Mas mesmo que tudo-isso acontecesse, mesmo que conseguisse chegar até ela, o que faria depois? Era esperar demais que ela também houvesse levantado uma folha de uma pedra molhada algum dia. Não, ódio, na certa estaria normal, tão normal como ele próprio estivera até há bem poucos meses. E à primeira palavra anormal que proferisse, o recolheria a um centro médico. Cristo, Marx, Wood e Wei, que podia ele fazer?

Esquecê-la: era uma solução. Partir por sua conta, agora, para a ilha livre mais próxima. AH haveria mulheres, provavelmente aos montes, e algumas decerto teriam a pele rosa-morena, olhos grandes menos-oblíquos-que-o-normal e seios cônicos de aspeto macio. Valeria a pena arriscar a lucidez conquistada em troca da remota possibilidade de despertar a dela?

Embora ela tivesse despertado a sua, agachando-se à sua frente com as mãos pousadas em seus joelhos...

Não ao risco da própria, contudo. Ou, pelo menos, não com um risco tão grande.

Foi ao Museu da Pré-U: da mesma maneira antiga, à noite, sem tocar nos controles. Era igual ao de IND26110. Algumas peças do mostruário variavam um pouco, expostas em lugares diferentes.

Encontrou outro mapa da Pré-U, este feito em 1937, com os mesmos oito retângulos azuis colados. A parte traseira havia sido cortada e presa toscamente com esparadrapo: alguém passara por ali antes dele. A ideia era empolgante: alguém tinha descoberto as ilhas, talvez estivesse a caminho de uma naquele mesmo momento.

Noutra sala de depósito — esta com apenas uma mesa, algumas caixas de papelão e uma máquina semelhante a uma cabina, com uma série de minúsculas alavancas — ele novamente segurou o mapa contra a luz, novamente viu as ilhas escondidas. Copiou no papel a mais próxima, “Cuba”, ao largo da ponta sudeste de Usa. E caso decidisse arriscar-se a encontrar Lilás, copiou o contorno de Afr e as duas ilhas que ficavam perto, “Madagascar” ao leste e a pequena “Majorca” ao norte.

Uma das caixas de papelão continha livros. Encontrou um em Français:. Spinoza et ses Contemporains. Spinoza e seus Contemporâneos. Deu uma olhada nas páginas e tirou-o.

Pôs o mapa remoldurado no lugar e foi passar o museu em revista. Tirou uma bússola de pulso que parecia ainda estar funcionando, uma “navalha” com cabo de marfim e a pedra para afiá-la.

— Não demora muito seremos transferidos — avisou o chefe de seção um dia à hora do almoço. GL4 vai substitui-nos.

— Tomara que eu vá pra Afr — disse. — Meus pais estão lá.

Era o tipo do comentário arriscado, ligeiramente impróprio para um membro, mas talvez o chefe de seção exercesse influência indireta na escalação de trabalho.

Sua namorada foi transferida e ele acompanhou-a ao aeroporto para despedir-se — e verificar se era possível entrar a bordo de um avião sem a permissão de Uni. Pelo jeito, não: a compacta fila única de passageiros não permitiria o toque falso do controle e quando chegasse a hora em que o último membro da fila estivesse tocando-o, um membro de túnica cor de laranja achava-se a seu lado, pronto para fazer parar a escada rolante e devolvê-la ao respetivo poço. Sair de um avião apresentava a mesma dificuldade: o passageiro que ficava por último tocava no controle enquanto dois membros de túnica cor de laranja observavam. Depois invertiam a escada rolante, tocavam no controle, e entravam a bordo com recipientes de aço para recolher os restos de bolo e bebida. Talvez conseguisse entrar num avião que estivesse aguardando no espaço dos hangares — e esconder-se dentro, embora não se lembrasse de nenhum esconderijo em aviões — mas como prever o destino eventual do vôo?

Via aérea, portanto, era impossível, até que Uni dissesse que ele podia viajar.

Pediu licença para visitar os pais. Não foi atendido.

Anunciaram novas transferências para a sua seção. Dois 663 foram enviados a Afr, mas ele não: tinha de ir para USA-36104. Estudou o avião durante o vôo. Não havia esconderijo: apenas a longa cabina cheia de poltronas, o banheiro na parte da frente, o compartimento de bolos e bebidas na retaguarda, e as telas de televisão, com um ator interpretando o papel de Marx em todas elas.

USA36104 ficava a sudeste, perto da ponta de Usa, com Cuba logo após. Podia sair de bicicleta um domingo, passar de cidade em cidade, dormindo nos parques intermediários e indo buscar bolos e bebida depois que anoitecesse. Eram mil e duzentos quilômetros, segundo o mapa do MPF. Em ’33037 ele podia encontrar um barco, ou negociantes vindo à costa, como os de ARG20400 de que Rei lhe falara.

Lilás, pensou, que mais posso fazer?

Pediu de novo permissão para visitar Afr e de novo não foi atendido.

Começou a andar de bicicleta aos domingos e durante a hora de folga, para exercitar as pernas. Foi ao Pré-U de ’36104 e descobriu uma bússola melhor e uma faca de fio dentado que servia para cortar galhos nos parques. Verificou o mapa que havia: a parte traseira estava intata, fechada. Escreveu por cima: Sim, existem ilhas onde os membros são livres. Abaixo Uni!

Um domingo, de manhã cedo, rumou para Cuba, com a bússola e um mapa copiado em um de seus bolsos. Na cesta da bicicleta, levava A Sabedoria Viva de Wei em cima de um cobertor dobrado, um recipiente com bebida e um bolo. Dentro do cobertor estava a sua sacola de viagem, que continha a navalha, a pedra de afiar, um sabonete, a tesoura, dois bolos, a faca, uma lanterna, algodão, um rolo de esparadrapo, uma fotografia de seus pais e Papai Jan, e uma muda extra de túnica. Debaixo da manga direita uma atadura cobria-lhe o braço, embora se fosse levado para tratamento seria quase certo que a descobririam. Usava óculos escuros e sorria, pedalando rumo a sudeste entre outros ciclistas pela estrada que conduzia a ’36081. Passavam carros chispando em sequência uniforme sobre a autopista paralela à estrada. De vez em quando zuniam pedregulhos, chutados pelos jatos aéreos dos carros contra a linha divisória de metal.

De hora em hora, mais ou menos, ele parava e descansava um pouco. Comia metade de um bolo e bebia certa quantidade do refrigerante. Pensava em Cuba e no que tiraria em ’33037 para negociar lá. Pensava nas mulheres em Cuba. Provavelmente se sentiriam atraídas por um recém-chegado. E nenhuma estaria sob tratamento, apaixonadas como nem era possível imaginar, tão bonitas como Lilás ou até mais...

Viajou cinco horas; de repente deu meia volta e refez o mesmo percurso.

Forçou-se a se concentrar no trabalho. Era o funcionário 663 da seção de pediatria de um centro médico. O tipo do serviço tedioso, com intermináveis exames de genes e mínimas variações, o tipo do serviço do qual nunca seria transferido. Ficaria ali para o resto da vida.

De mês em mês pedia permissão para visitar os pais em

Afr.

Em fevereiro de 170 o pedido foi atendido.


Saiu do avião às quatro da madrugada, hora local, e foi para a sala de espera, segurando o cotovelo direito com ar constrangido, a sacola a tiracolo no ombro esquerdo. O membro que descera do avião atrás dele, e que o ajudara a levantar-se quando caíra, colocou-lhe a pulseira diante de um telefone.

— Tem certeza de que não se machucou muito? — perguntou ela.

— Tenho, sim — garantiu, sorrindo. — Obrigado, e aproveite a visita, — E ao telefone: —AnaSG38P2823.

A mulher foi-se embora.

Houve um clarão antes da tela se definir e a ligação ser completada. De repente escureceu e não se iluminou mais. Ela foi transferida, pensou. Não está mais no continente. Esperou para ouvir a confirmação. Mas em vez disso:

— Um momento, não consigo...

E lá estava ela, ainda indefinida, sentada na beira da cama, de pijama, esfregando os olhos.

— Quem é? — perguntou.

Atrás dela um membro se virou. Era sábado de noite. Ou teria casado?

— Li RM — respondeu.

— Quem?

Ela olhou-o, inclinando-se um pouco, piscando os olhos. Era mais bonita do que ele se lembrava: estava mais velha, linda. E, depois, que olhos!

— Li RM — repetiu, forçando-se a um tom apenas cortês, típico de membro. — Não se lembra? De IND26110, lá por 162.

Ela contraiu a testa, nervosa, um instante.

— Ah, sim, lógico — sorriu. — Claro que me lembro. Como vai, Li?

— Muito bem. E você?

— Otimamente.

E parou de sorrir.

— Casou?

— Não. Que bom que você telefonou, Li. Eu quero agradecer-lhe, sabe? Por me ter ajudado.

— Agradeça a Uni.

— Não, não. A você. Um pouco atrasado.

Sorriu de novo.

— Desculpe ligar a esta hora. Estou de passagem por Afr, fui transferido.

— Não tem importância. Gostei muito.

— Onde você está? — perguntou.

— Em ’14509.

— É onde mora a minha irmã.

— Não diga.

— E, sim. Qual é o seu edifício?

— P51.

— O dela é A-não-sei-quanto.

O membro atrás dela sentou na cama e ela se voltou, dizendo-lhe qualquer coisa. Ele sorriu para Quem. Ela se virou de novo.

— Este é Li XE.

— Olá — saudou Quem, decorando '14509, P51; '14509, P51.

— Olá, irmão — fizeram os lábios de Li XE: sua voz não alcançava o aparelho.

— Que foi que houve com o seu braço? — perguntou Lilás.

Ele continuava segurando-o. Soltou-o.

— Nada — respondeu. — Eu caí ao descer do avião.

— Oh, que pena — ela olhou por cima do ombro dele. — Tem um membro aí esperando — preveniu. — Acho melhor a gente se despedir.

— Sim. Adeus. Gostei muito de revê-la. Você não mudou nada.

— Você também não. Adeus, Li.

Ela se levantou, estendeu a mão para o aparelho e a imagem desapareceu.

Ele desligou e cedeu lugar ao membro que esperava atrás.

Estava morta: um membro normal, sadio, deitada agora ao lado do seu namorado, em ’14509, P51. Como podia arriscar-se a lhe falar sobre alguma coisa que não fosse tão normal e sadia como ela? Passaria o dia com os pais e voltaria de avião para Usa.

No próximo domingo partiria de bicicleta e desta vez não daria meia volta.

Perambulou um pouco pela sala de espera. Havia um mapa geral de Afr na parede, com luzes nas principais cidades, ligadas por tênues linhas alaranjadas. Ao norte ficava ’14510, perto do lugar onde ela morava. A meio continente de distância de ’71330, que era onde ele se encontrava. Uma linha alaranjada ligava as duas luzes.

Olhou o quadro de horário dos vôos, acendendo e apagando, revisando os escalados para Domingo 18 fev. Tinha um que partia às 8h20m da noite para ’14510, quarenta minutos antes do avião que tomaria para USA33100.

Aproximou-se da vidraça que dava para o campo e ficou olhando os passageiros dirigindo-se em fila única para a escada rolante do avião que ele deixara. Um membro de túnica cor de laranja apareceu e aguardou ao lado do controle.

Virou-se de frente para a sala de espera. Estava quase vazia. Dois membros que tinham viajado no avião junto com ele, uma mulher segurando uma criança adormecida e um homem carregando duas sacolas, colocaram seus pulsos e o da criança no controle da porta que conduzia ao carroporto — sim, piscou três vezes — e saíram. Um membro de túnica cor de laranja, ajoelhado ao lado do chafariz, desatarraxava uma placa na parte inferior; outra empurrou uma enceradeira para um canto da sala de espera, tocou num controle — sim — e empurrou-a através de uma porta giratória.

Refletiu um instante, olhando o membro trabalhando no chafariz, e depois atravessou a sala, tocando no controle da porta que levava ao carroporto — sim — e saiu. Havia um carro para ’71334 à espera, já com três membros. Tocou no controle — sim — e entrou no carro, desculpando-se com os outros por tê-los feito esperar. A porta fechou-se e o carro partiu. Ele se sentou com a sacola no colo, pensativo.

Ao chegar ao apartamento dos pais, entrou sem fazer ruído, barbeou-se e depois acordou-os. Ficaram contentes, até mesmo felizes, em vê-lo.

Os três conversaram, tomaram café e voltaram a conversar. Pediram um telefonema para Paz, em Eur, que foi atendido. Falaram com ela, com o marido, e com os filhos, Beto, que tinha dez anos, e Yin, de oito. Depois, por sugestão dele, foram ao Museu dos Progressos da Família.

Terminado o almoço, ele dormiu três horas e por fim tomaram o monotrilho para os Jardins de Diversões. O pai entrou num jogo de vôlei e ele e a mãe sentaram num banco para assistir.

— Você está doente de novo? — perguntou-lhe ela.

Olhou-a.

— Não — respondeu. — Claro que não. Estou muito bem.

Ela olhou bem para ele. Tinha agora cinquenta e sete anos, o cabelo estava grisalho e a pele morena toda enrugada.

— Você esteve pensando em alguma coisa — disse. O dia todo.

— Eu estou bem. Por favor. A senhora é minha mãe, acredite em mim.

Olhou-o nos olhos, preocupada.

— Estou bem — repetiu.

Após uma pausa, ela retrucou:

— O.K., Quem.

Sentiu-se subitamente cheio de amor por ela. De amor e gratidão, com uma sensação de unidade filial. Pegou-a pelo ombro e beijou-lhe o rosto.

— Eu te amo, Suzu — disse.

Ela riu.

— Cristo e Wei — exclamou. — Que memória você tem!

— É porque sou sadio. Lembre-se disso, sim? Sou sadio e feliz. Quero que a senhora não se esqueça disso.

— Porquê?

— Porque sim.

Contou-lhes que o avião partia às oito.

— Despedir-nos-emos no carroporto — disse. O aeroporto vai estar atulhado de gente.

Mesmo assim, o pai queria ir. Mas a mãe disse que não, que ficariam em '334. Sentia-se cansada.

Às sete e meia, deu-lhes um beijo de despedida — primeiro no pai, depois na mãe, segredando-lhe ao ouvido: “Não se esqueça” — e entrou na fila de carros para o aeroporto de ’71330. O controle, quando tocou nele, piscou sim.


A sala de espera estava ainda mais repleta do que esperava que estivesse. Membros de túnicas brancas, amarelas e azul claro caminhavam, ficavam de pé, sentavam e esperavam na fila, alguns com sacola, outros sem. Uns poucos de túnica cor de laranja moviam-se no meio da multidão.

Olhou o quadro: o vôo das 8h20m para ’14510 apanharia os passageiros na pista dois. Os membros já estavam lá na fila, e além da vidraça, um avião fazia manobra para colocar-se junto de uma escada rolante. Sua porta abriu-se, deixando passar um membro, logo seguido por outro.

Quem abriu caminho entre a multidão até chegar à porta giratória no canto da sala, fingindo que tocava no controle e empurrando-a para sair: encontrou-se numa parte de depósito, onde havia engradados e caixas de papelão enfileirados sob uma luz ofuscante, semelhantes às comportas de memória de Uni. Tirou a sacola do ombro e escondeu-a entre uma caixa de papelão e a parede.

Seguiu adiante normalmente. Um carrinho com recipientes de aço passou por ele, empurrado por um membro de túnica cor de laranja que o olhou de relance, cumprimentando com a cabeça.

Retribuiu o aceno, continuou andando, e viu o membro empurrar o carrinho por um grande portão aberto e sair para o campo profusamente iluminado.

Tomou a direção de onde o membro tinha vindo, chegando a uma área em que membros de túnica cor de laranja colocavam recipientes de aço sobre a esteira de transporte de uma máquina de lavar, enchendo outros com refrigerantes e chá fumegante provenientes das torneiras de gigantescos cilindros. Seguiu adiante.

Fingiu tocar num controle e entrou numa sala cheia de túnicas comuns penduradas em ganchos. Dois membros despiam túnicas cor de laranja.

— Olá — saudou.

— Olá — responderam.

Dirigiu-se à porta de um armário e entreabriu-a: continha uma enceradeira e frascos de líquido verde.

— Onde estão as túnicas? — perguntou.

— Ali dentro — informou um deles, acenando com a cabeça para outro armário.

Foi até lá e abriu-o. Havia túnicas cor de laranja nas prateleiras. Biqueiras de calçado e pares de luvas grossas, tudo da mesma cor.

— De onde você é? — perguntou o mesmo.

— RUS50937 — mentiu, tirando uma túnica e um par de biqueiras. — Lá nós guardamos as túnicas ali.

— Elas devem ficar aí — teimou o membro, fechando a túnica branca.

— Já estive em Rus — disse o outro, que era uma mulher. — Tive dois trabalhos lá. O primeiro levou quatro anos e o segundo três.

Não se apressou em colocar as biqueiras, só terminando quando os dois jogaram as túnicas cor de laranja na lixeira e saíram.

Enfiou a túnica cor de laranja por cima da branca e fechou-a até o pescoço. Era mais grossa que a comum e possuía bolsos extras.

Examinou os outros armários, encontrou uma chave inglesa e um pedaço de paplão amarelo de bom tamanho.

Voltou ao lugar onde deixara a sacola, tirou-a e embrulhou-a no paplão. A porta giratória deu um encontrão nele.

— Desculpe — disse um membro, entrando. — Machucou-se?

— Não — respondeu, segurando a sacola embrulhada.

O membro de túnica cor de laranja seguiu adiante.

Esperou um pouco, observando-o, depois meteu a sacola debaixo do braço esquerdo e tirou a chave inglesa do bolso. Agarrou-a com a mão direita, de um jeito que esperava que parecesse natural.

Foi atrás do membro, depois dobrou e dirigiu-se ao portão que comunicava com o campo.

A escada rolante apoiada ao flanco do avião na pista dois estava vazia. Um carrinho, provavelmente o que tinha visto ser empurrado, achava-se parado ao pé dos degraus, junto do controle.

Havia outra escada rolante, sendo recolhida ao poço, e o avião que ela atendera já rodava, pronto para a decolagem. Devia ser o vôo das 8hl0 para Chi, provavelmente.

Agachou-se sobre um joelho, largando a sacola e a chave inglesa em cima do cimento, e simulou ter problema com a biqueira. Todo mundo na sala de espera estaria assistindo à decolagem do avião para Chi: era o momento em que ele subiria a escada rolante. Pernas cor de laranja passaram farfalhando a seu lado: um membro voltava aos hangares. Tirou a biqueira e tomou a enfiá-la, olhando o avião girar...

A decolagem começou. Juntou a sacola e a chave inglesa, levantou-se e caminhou normalmente. O clarão dos holofotes o enervava, mas disse consigo mesmo que ninguém o estava olhando, todo mundo prestando atenção ao avião. Dirigiu-se à escada rolante, fingiu tocar no controle — o carrinho ao lado o favorecia, justificando-lhe a falta de jeito — e pisou nos degraus ascendentes. Agarrou-se com força à sacola enrolada em paplão e ao cabo úmido da chave inglesa enquanto subia rapidamente até a porta aberta do avião. Saltou fora da escada rolante e entrou a bordo.

Dois membros com túnica cor de laranja estavam ocupados na despensa. Olharam na sua direção e ele acenou com a cabeça. Retribuíram-lhe o cumprimento. Desceu o corredor, rumo ao banheiro.

Entrou, deixando a porta aberta, e pousou a sacola no chão. Virou-se para a pia, experimentou as torneiras e bateu-as com a chave inglesa. Ajoelhou-se e fez o mesmo no cano de esgoto. Abriu as tenazes da chave inglesa e colocou-as em torno do cano.

Escutou a escada parar, e depois recomeçar. Inclinou-se para o lado de fora e espiou. Os membros tinham ido embora.

Largou a chave no chão, levantou-se, fechou a porta e abriu a túnica cor de laranja. Despiu-a, dobrou-a pelo comprido e enrolou-a numa trouxa tão compacta quanto pôde. Tornou a ajoelhar-se, desembrulhou a sacola e abriu-a. Guardou a túnica, dobrou o paplão amarelo e também meteu junto na sacola. Tirou as biqueiras das sandálias, apertou-as bem e enfiou num dos cantos da sacola. Incluiu a chave inglesa, esticou a tampa com força e comprimiu-a para fechar.

De sacola no ombro, lavou as mãos e o rosto com água fria. Seu coração batia depressa, mas sentia-se bem, entusiasmado, vivo. Olhou no espelho aquela sua cara com um olho verde e o outro castanho. Abaixo Uni!

Ouviu vozes de membros subindo a bordo do avião. Ficou junto da pia, enxugando as mãos que já estavam secas.

A porta se abriu, dando passagem a um menino de mais ou menos dez anos.

— Oi — disse Quem, secando as mãos. — O dia foi bom pra você?

— Foi, sim — respondeu o garoto.

Quem jogou a toalha na lixeira.

— É a primeira vez que você anda de avião?

— Não — disse o garoto, abrindo a túnica. — Já andei uma porção de vezes.

E sentou-se numa das toaletes.

— Até já — disse Quem, e saiu.

A terça parte do avião já estava cheia, e novos membros entravam. Ocupou a poltrona vazia mais próxima que havia no corredor, verificou se a sacola ficara bem fechada e acomodou-a embaixo do assento.

Na chegada faria a mesma coisa. Quando todo mundo estivesse descendo do avião, iria para o banheiro e vestiria a túnica cor de laranja. Quando os membros viessem a bordo com os recipientes de reabastecimento, o encontrariam trabalhando na pia e ele sairia depois deles. Na área de depósito, atrás de um engradado ou dentro de um armário, ele se livraria da túnica, das biqueiras e da chave inglesa. E depois fingiria tocar o controle para dar o fora do aeroporto e caminhar a pé até ’14509. Ficava a oito quilômetros a leste de ’510. Verificara de manhã num mapa do MPF, Tendo sorte, chegaria lá por volta da meia-noite.

— Que coisa estranha — exclamou o membro a seu lado.

Virou-se.

Ela estava olhando para o fundo do avião.

— Não há lugar vago pra aquele membro — disse.

O homem percorria lentamente o corredor, olhando para todos os lados. O avião estava lotado. Membros olhavam em torno, procurando dar-lhe ajuda.

— Tem que ter — disse Quem, levantando-se da poltrona e olhando ao redor. — Uni não pode ter cometido um engano.

— Não tem — disse a vizinha de assento. — Todos os lugares estão ocupados.

Formou-se um burburinho a bordo. De fato não havia lugar para o membro. Uma mulher pegou uma criança no colo e chamou-o.

O avião começou a se mover e as telas de televisão se iluminaram, com um programa sobre a geografia e os recursos de Afr.

Tentou prestar atenção ao programa, pensando que talvez lhe trouxesse alguma informação útil, mas não conseguiu. Se fosse descoberto e tratado agora, nunca mais ficaria lúcido. Desta vez Uni tomaria todas as precauções para que não entendesse nem o significado de mil folhas sobre mil pedras úmidas.


Chegou a ’14509 à meia-noite e vinte. Estava bem acordado, ainda segundo a hora de Usa, com o vigor da tarde.

Primeiro foi ao Pré-U, e depois ao ponto de bicicletas na praça mais próxima ao prédio P51. Fez duas viagens até o ponto de bicicletas e uma até o refeitório do P51 e seu centro de abastecimento.

Às três horas, entrou no quarto de Lilás. Olhou-a à luz da lanterna enquanto dormia — o rosto, o pescoço, mão morena pousada no travesseiro — e depois aproximou-se da escrivaninha e acendeu a lâmpada.

— Ana — chamou, parado ao pé da cama. — Ana, você tem que levantar agora.

Ela resmungou qualquer coisa.

— Você tem que levantar agora, Ana — repetiu. — Anda, levanta.

Ela se ergueu, cobrindo os olhos com a mão, queixando-se baixinho. Sentando-se, tirou a mão e fitou-o, reconhecendo-o e franzindo intrigada a testa.

— Eu quero que você venha dar uma volta comigo — disse.

— De bicicleta. Você não deve falar alto, nem pedir socorro.

Enfiou a mão no bolso e tirou um revólver. Empunhou-o do modo que lhe parecia adequado, com o indicador no gatilho, o resto da mão segurando o cabo, e a ponta fazendo mira no rosto dela.

— Eu a mato se você não fizer o que eu mando — acrescentou. — Não grite, Ana.


CONTINUA

TERCEIRA PARTE

 

FUGINDO


1

 

Velhas cidades foram demolidas, novas construídas. As novas tinham edifícios mais altos, praças mais amplas, parques mais vastos, monotrilhos cujos carros desenvolviam maior velocidade, embora com menos frequência.

Outras duas espaçonaves foram lançadas, em direção a Sírio B e Cisnes 61. As colônias marcianas, agora repovoadas e protegidas da devastação de 152, expandiam-se diariamente. O mesmo acontecendo com as colônias em Vênus e na Lua, os postos avançados em Titã e Mercúrio.

A hora de folga teve uma prolongação de cinco minutos. A ligação de telecomputadores pela voz começou a substituir as teclas e os bolos integrais ganharam um agradável segundo sabor. O limite de longevidade aumentou para 62.4.

Os membros trabalhavam e comiam, assistiam à televisão e dormiam. Cantavam, visitavam museus e passeavam pelos jardins de diversão.

No segundo centenário do nascimento de Wei, durante a parada numa cidade nova, um imenso estandarte com o retrato de Wei sorrindo teve um de seus mastros carregado por um membro de mais ou menos trinta anos, cujo aspeto era normal em todos os sentidos, a não ser pelo olho direito, que era verde em vez de castanho. Certa ocasião, há muito tempo, esse membro tinha adoecido, mas agora estava curado. Possuía trabalho, quarto, namorada e conselheiro. Sentia-se calmo e contente.

Um fato estranho lhe aconteceu durante a parada. Enquanto marchava, sorridente, segurando o mastro do estandarte, começou a ouvir um número que se repetia incessantemente no cérebro: Ana SG, trinta e oito P, vinte e oito, vinte e três. Ana SG, trinta e oito P, vinte e oito, vinte e três. Aquilo continuou martelando, em compasso com a marcha. Ficou imaginando a quem pertencia esse número e por que estaria repetindo-se daquela maneira em seu cérebro.

De repente lembrou-se: era do tempo de sua doença! Era o número de um dos outros doentes, o que se chamava Linda — não, Lilás. Por que, depois de tantos anos, voltava-lhe o seu número? Bateu os pés no chão com mais força, procurando não ouvir, e alegrou-se quando foi dado o sinal para cantar.

Contou ao conselheiro.

— Não tem a menor importância — disse ela. — Você provavelmente viu alguma coisa que fez lembrá-la. Talvez até ela mesma. Não há motivo pra temer recordações... a não ser, naturalmente, que se tornem incomodas. Se acontecer outra vez, me avise.

Mas não aconteceu. Ele estava curado, graças a Uni.


Um dia de Natal de Cristo, quando já tinha novo trabalho e morava noutra cidade, foi de bicicleta com a namorada e quatro outros membros a um parque distante. Levaram bolos e refrigerantes, e almoçaram no chão, perto de um arvoredo.

Ele tinha posto seu recipiente de refrigerante em cima de uma pedra quase lisa e, estendendo o braço para apanhá-lo enquanto conversava, derrubou-o. Os outros membros encheram-no de novo com o conteúdo dos seus.

Poucos minutos depois, ao dobrar o invólucro de seu bolo, reparou numa folha caída em cima da pedra úmida, com gotas de refrigerante brilhando na parte posterior, a haste enroscada para cima feito uma alça. Ele pegou a haste e levantou a folha: a pedra, embaixo, estava seca no formato oval da folha. O resto da pedra escurecera com o líquido, mas no lugar da folha continuava cinza e seca. Qualquer coisa naquele momento lhe pareceu significativa. Ficou sentado em silêncio, contemplando a folha que tinha na mão, o invólucro do bolo dobrado na outra e o contorno seco da folha em cima da pedra. Sua namorada falou-lhe algo e ele não pensou mais naquilo, juntando a folha e o invólucro e entregando-os ao membro encarregado do saco de detritos.

A imagem do contorno seco da folha em cima da pedra voltou-lhe à lembrança várias vezes naquele dia. E no dia seguinte também. Depois teve o seu tratamento e esqueceu o assunto. Em questão de semanas, porém, tomou a lembrar-se. Ficou imaginando por quê. Teria já levantado antes uma folha de cima de uma pedra úmida daquele mesmo jeito? Se tinha, não se recordava...

De vez em quando, ao caminhar por um parque ou, por estranho que pareça, ao aguardar na fila para fazer tratamento, a imagem do contorno seco da folha voltava-lhe à lembrança e o fazia franzir a testa.


Houve um terremoto. (Foi jogado longe da cadeira; a lente do microscópio quebrou e das profundezas do laboratório ele ouviu o som mais ensurdecedor de toda a sua vida.) Uma válvula- sismógrafo a meio continente de distância tinha emperrado sem que ninguém percebesse, explicou a televisão poucas noites depois. Aquilo jamais acontecera e não se repetiria mais. Constituía motivo de pesar, naturalmente, mas não era nada que causasse preocupações para o futuro.

Dezenas de prédios ruíram, centenas de membros morreram. Todos os centros médicos da cidade viram-se superlotados de feridos e mais da metade dos aparelhos de tratamento ficaram danificados, ocasionando um atraso de dez dias em cada um.

Alguns dias depois da data em que devia ter tido o seu, pensou em Lilás e em como a tinha amado de uma maneira diferente e mais — mais excitantemente — do que amara todas as outras. Ele havia querido contar uma coisa a ela. O que era? Ah sim, a propósito das ilhas. As ilhas que descobrira escondidas no mapa do Pré-U. As ilhas dos incuráveis...

O conselheiro telefonou-lhe.

— Você está bem? — perguntou.

— Acho que não, Karl — respondeu. — Preciso do meu tratamento.

— Espere um instante — disse o conselheiro, afastando- se e falando baixinho ao telecomputador. Não demorou muito, voltou. — Você pode fazê-lo hoje de noite às sete e meia — anunciou, — mas terá de ir ao centro médico em T24.

Às sete e meia ele estava esperando numa longa fila, pensando em Lilás, procurando recordar exatamente como ela era. Quando chegou perto dos aparelhos de tratamento, voltou-lhe à memória a imagem do contorno seco da folha em cima da pedra.


Lilás telefonou-lhe (ela morava ali mesmo, no próprio edifício) e ele foi para o quarto dela, que era a sala de depósito no Pré-U. Jóias verdes pendiam-lhe das orelhas e cintilavam em torno do pescoço moreno-rosa: estava com um vestido de fazenda verde fulgurante que expunha os seios cônicos macios de bicos nacarados.

— Bon soir, Quem — disse, sorrindo. — Comment vas-tu? Je m’ertnuyais tellement de toi.

Ele se aproximou, tomou-a nos braços e beijou-a — os lábios eram quentes e macios, a boca entreaberta — e acordou no escuro, desapontado: fora um sonho, apenas um sonho.

Mas estranhamente, assustadoramente, tudo persistia: o cheiro do seu perfume (parfum), o gosto do fumo, o som das canções de Pardal, o desejo por Lilás, a raiva contra Rei, o ressentimento contra Uni, a tristeza pela Família e a felicidade de sentir, de estar vivo e lúcido.

E de manhã faria o tratamento e aquilo terminaria. Às oito horas. Acendeu a luz, olhou o relógio: 4h54m. Em pouco mais de três horas...

Apagou a luz de novo e ficou deitado no escuro, de olhos abertos. Não queria perder aquilo. Doente ou não, queria guardar suas recordações, a capacidade de explorá-las e saboreá-las. Não queria pensar nas ilhas — não, nunca: isso era doença mesmo — porém queria pensar em Lilás, nas reuniões do grupo na sala de depósito cheia de relíquias e, de vez em quando, talvez, sonhar outra vez.

Mas o tratamento viria dentro de três horas e tudo terminaria. Não havia nada que pudesse fazer — a não ser esperar novo terremoto, & quais eram as possibilidades de que isso acontecesse? As válvulas-sismógrafos funcionavam perfeitamente desde então e continuariam funcionando perfeitamente no futuro. E o que, além de um terremoto, podia adiar o tratamento? Nada. Absolutamente nada. Não com Uni sabendo que ele já tinha mentido antes para conseguir um adiamento.

O contorno da folha seca sobre a pedra voltou-lhe à lembrança, mas enxotou-o para pensar em Lilás, para vê-la como a havia visto no sonho, para não desperdiçar suas três breves horas de lucidez. Tinha esquecido como eram grandes os olhos dela, como era lindo o seu sorriso, a sua pele morena-rosa, como era comovente a sua sinceridade. Tinha esquecido tanta coisa mais: o prazer de fumar, o entusiasmo em decifrar Français...

O contorno seco da folha voltou, e pensou nele, irritado tentando descobrir por que se gravara na lembrança, tentando livrar-se dele de uma vez por todas. Recapitulou o momento ridiculamente inexplicável: visualizou a folha de novo, coberta de gotas brilhantes de bebida, seus dedos levantando-a pela haste, enquanto a outra mão segurava o invólucro dobrado do bolo, e o oval seco e cinzento sobre a pedra molhada de refrigerante escuro. Tinha derramado a bebida, ia folha ficara ali, e por baixo a pedra continuava...

Soergueu-se na cama e pegou com força o braço esquerdo coberto pelo pijama.

— Cristo e Wei — exclamou, assustado.


Levantou-se antes do primeiro carrilhão, vestiu-se e arrumou a cama.

Foi o primeiro a chegar ao refeitório. Comeu e bebeu, e voltou para o quarto com o invólucro do bolo dobrado displicentemente no bolso.

Desdobrou-o, colocou-o em cima da escrivaninha e alisou- o com a mão. Dobrou o invólucro laminado bem ao meio, e a metade em três. Apertou o maço quanto pôde e apalpou-o: era fino, apesar das seis dobras. Fino demais? Largou-o de novo.

Dirigiu-se ao banheiro, tirou algodão e o rolo de esparadrapo do estojo de medicamentos que guardava no armário. Trouxe-os de volta à escrivaninha.

Pôs uma camada de algodão sobre o maço do invólucro — uma camada menor que o próprio maço — e começou a cobrir o algodão e o maço com longas tiras superpostas de esparadrapo da cor da pele. Prendeu de leve as pontas do esparadrapo em cima da escrivaninha.

A porta se abriu e ele se virou, escondendo o que estava fazendo e guardando o rolo de esparadrapo no bolso. Era Karl TK, vizinho de quarto.

— Pronto pro café? — perguntou.

— Eu já tomei — respondeu.

— Ah. Até já, então.

— O.K. — disse, e sorriu.

Karl fechou a porta.

Terminou de passar o esparadrapo e depois desprendeu as pontas de cima da escrivaninha, levando para o banheiro a atadura que tinha feito. Colocou-a com o lado do invólucro laminado para cima na beira da pia e arregaçou a manga.

Pegou a atadura e encostou o invólucro cuidadosamente à parte interna do seu braço, onde o disco da infusão tocaria. Agarrou a atadura com força e colou as pontas do esparadrapo contra a pele.

Uma folha. Um escudo. Daria certo?

Se desse, pensaria unicamente em Lilás, não nas ilhas. Se se surpreendesse pensando nelas, contaria ao conselheiro.

Abaixou a manga.

Às oito horas, entrou na fila na sala de tratamento. Ficou de braços cruzados, com a mão por cima da atadura encoberta pela manga — para esquentá-la, caso o disco de infusão fosse sensível à temperatura.

Estou doente, pensou. Vou pegar tudo quanto é doença: câncer, varíola, cólera, tudo. Crescerão pêlos no meu rosto!

Faria aquilo só desta vez. Ao primeiro sintoma de anormalidade, correria ao conselheiro.

Talvez não desse certo.

Chegou a sua vez. Arregaçou a manga até o cotovelo, enfiou o braço bem no fundo do orifício revestido de borracha, depois puxou a manga até o ombro e no mesmo instante deslizou o braço todo no interior do aparelho.

Sentiu o controle localizando-lhe a pulseira e a leve pressão do disco de infusão sobre a atadura de algodão... Não aconteceu nada.

— Você já está pronto — advertiu o membro seguinte.

A luz azul do aparelho estava acesa.

— Ah — exclamou, abaixando a manga enquanto retirava o braço.

Tinha de rumar direto para o trabalho.

Terminado o almoço, voltou ao quarto e, no banheiro, arregaçou a manga e tirou a atadura. O invólucro laminado estava intato, mas a pele sempre ficava assim após o tratamento. Arrancou do esparadrapo o invólucro dobrado.

O algodão tinha ficado cinzento e fosco. Espremeu a atadura em cima da pia e um líquido aquoso escorreu de dentro dela.


Recuperou a lucidez, cada dia mais forte. Recuperou a memória, em pormenores nítidos, torturantes.

Recuperou o sentimento. O rancor contra Uni converteu-se em ódio; o desejo por Lilás transformou-se em fome insaciável.

Recorreu novamente às velhas simulações: era normal no trabalho, normal com o conselheiro, normal com a namorada. Mas dia a dia aquele fingimento ficava mais irritante, mais insuportável de manter.

No tratamento subsequente, fez outra atadura com invólucro de bolo, algodão e esparadrapo; e dela espremeu outro fio de líquido aquoso.

Apareceram-lhe pontinhos pretos no queixo, no rosto e acima do lábio superior — pêlos incipientes. Desmontou a tesoura, prendeu com arame uma das lâminas ao cabo e de manhã, antes do primeiro carrilhão, esfregava sabonete no rosto e raspava fora os pontinhos.

Sonhava todas as noites. As vezes os sonhos traziam-lhe orgasmos.

Simular calma e contentamento, humildade e bondade, tornava-se cada vez mais exasperante. No dia de Natal de Marx, numa praia, pôs-se a caminhar pela areia e de repente desandou a correr, a correr na frente dos membros que caminhavam a seu lado, a correr para longe da Família que tomava banho de sol, que comia bolos. Correu até que a praia se estreitou em pedras caídas e continuou correndo no meio da arrebentação e por cima de antigos contrafortes escorregadios. Então parou e sozinho e nu entre o oceano e os elevados penhascos cerrou os punhos e esmurrou os rochedos, gritando obscenidades para o claro céu azul, torcendo e tentando arrancar a corrente inquebrável de sua pulseira.

Era 169, dia 6 de maio. Tinha perdido seis anos e meio. Seis anos e meio! Estava com trinta e quatro. Morava em USA- 90058.

E onde estaria ela? Ainda em Ind, ou noutro lugar qualquer? Na Terra ou numa espaçonave?

E estaria viva, como ele, ou morta, como todos os membros da Família?


2

 

Agora era mais fácil, agora que tinha machucado as mãos e gritado. Mais fácil de caminhar com um sorriso de contentamento, de assistir à televisão e olhar pelo microscópio, de sentar com a namorada nos concertos de anfiteatro.

Pensando o tempo todo no que fazer...


— Alguma preocupação? — perguntou-lhe o conselheiro.

— Bem, um pouco — respondeu.

— Achei que você não estava com bom aspeto. O que é?

— Olha, sabe, eu andei muito doente alguns anos atrás...

— Sei.

— E agora um dos membros que esteve doente junto comigo, o que me deixou doente, pra ser mais preciso, está morando aqui no prédio. Será que não daria pra eu me mudar pra outro lugar?

O conselheiro olhou-o com ar de dúvida.

Estou meio surpreso — disse ele, — que o UniComp tenha deixado vocês dois juntos de novo.— Eu também — disse Quem. — Mas ela está morando aqui. Encontrei-a ontem à noite no refeitório e hoje de manhã outra vez.

— Você falou com ela?

— Não.

— Vou informar-me. Se ela estiver aqui e isso o incomoda, evidente que nós o mudaremos pra outro lugar. Ou então ela. Qual é o número dela?

— Não me lembro por completo — respondeu Quem. — Ana ST38P.


O conselheiro telefonou-lhe no dia seguinte de manhã cedo.

— Você se enganou, Li — disse. — Não foi aquele membro que você viu. E por falar nisso, ela é Ana SG, não ST.

— Tem certeza de que ela não mora aqui?

— Absoluta. Ela está em Afr.

— Que alívio.

— E Li, em vez de você fazer tratamento na quinta, você vai fazer hoje,

— É mesmo?

— É. A uma e meia.

— ‘Tá certo — disse. — Obrigado, Jesus.

— Agradeça a Uni.

Tinha três invólucros de bolo dobrados e escondidos no fundo da gaveta da escrivaninha. Tirou um, foi ao banheiro, e começou a preparar a atadura.


Ela estava em Afr. Era mais perto do que Ind, mas sempre a um oceano de distância. E da largura de Usa, aliás.

Os pais dele moravam lá, em ’71334. Esperaria algumas semanas e depois pediria uma visita. Fazia pouco menos de dois anos que não os via: havia bastante possibilidade de que o pedido fosse atendido. Chegando em Afr, telefonaria a ela — sob o pretexto de ter ferido o braço, conseguiria que uma criança tocasse a placa de um telefone de rua para ele — terminando por descobrir onde ela se encontrava exatamente. Alô, Ana SG. Espero que você esteja tão bem quanto eu. Qual é a cidade em que você mora?

E depois, como faria? Iria a pé até lá? Pediria uma passagem de carro para algum lugar vizinho, onde houvesse uma instalação relacionada de certa forma com genética? Uni não perceberia o que ele andava tramando?

Mas mesmo que tudo-isso acontecesse, mesmo que conseguisse chegar até ela, o que faria depois? Era esperar demais que ela também houvesse levantado uma folha de uma pedra molhada algum dia. Não, ódio, na certa estaria normal, tão normal como ele próprio estivera até há bem poucos meses. E à primeira palavra anormal que proferisse, o recolheria a um centro médico. Cristo, Marx, Wood e Wei, que podia ele fazer?

Esquecê-la: era uma solução. Partir por sua conta, agora, para a ilha livre mais próxima. AH haveria mulheres, provavelmente aos montes, e algumas decerto teriam a pele rosa-morena, olhos grandes menos-oblíquos-que-o-normal e seios cônicos de aspeto macio. Valeria a pena arriscar a lucidez conquistada em troca da remota possibilidade de despertar a dela?

Embora ela tivesse despertado a sua, agachando-se à sua frente com as mãos pousadas em seus joelhos...

Não ao risco da própria, contudo. Ou, pelo menos, não com um risco tão grande.

Foi ao Museu da Pré-U: da mesma maneira antiga, à noite, sem tocar nos controles. Era igual ao de IND26110. Algumas peças do mostruário variavam um pouco, expostas em lugares diferentes.

Encontrou outro mapa da Pré-U, este feito em 1937, com os mesmos oito retângulos azuis colados. A parte traseira havia sido cortada e presa toscamente com esparadrapo: alguém passara por ali antes dele. A ideia era empolgante: alguém tinha descoberto as ilhas, talvez estivesse a caminho de uma naquele mesmo momento.

Noutra sala de depósito — esta com apenas uma mesa, algumas caixas de papelão e uma máquina semelhante a uma cabina, com uma série de minúsculas alavancas — ele novamente segurou o mapa contra a luz, novamente viu as ilhas escondidas. Copiou no papel a mais próxima, “Cuba”, ao largo da ponta sudeste de Usa. E caso decidisse arriscar-se a encontrar Lilás, copiou o contorno de Afr e as duas ilhas que ficavam perto, “Madagascar” ao leste e a pequena “Majorca” ao norte.

Uma das caixas de papelão continha livros. Encontrou um em Français:. Spinoza et ses Contemporains. Spinoza e seus Contemporâneos. Deu uma olhada nas páginas e tirou-o.

Pôs o mapa remoldurado no lugar e foi passar o museu em revista. Tirou uma bússola de pulso que parecia ainda estar funcionando, uma “navalha” com cabo de marfim e a pedra para afiá-la.

— Não demora muito seremos transferidos — avisou o chefe de seção um dia à hora do almoço. GL4 vai substitui-nos.

— Tomara que eu vá pra Afr — disse. — Meus pais estão lá.

Era o tipo do comentário arriscado, ligeiramente impróprio para um membro, mas talvez o chefe de seção exercesse influência indireta na escalação de trabalho.

Sua namorada foi transferida e ele acompanhou-a ao aeroporto para despedir-se — e verificar se era possível entrar a bordo de um avião sem a permissão de Uni. Pelo jeito, não: a compacta fila única de passageiros não permitiria o toque falso do controle e quando chegasse a hora em que o último membro da fila estivesse tocando-o, um membro de túnica cor de laranja achava-se a seu lado, pronto para fazer parar a escada rolante e devolvê-la ao respetivo poço. Sair de um avião apresentava a mesma dificuldade: o passageiro que ficava por último tocava no controle enquanto dois membros de túnica cor de laranja observavam. Depois invertiam a escada rolante, tocavam no controle, e entravam a bordo com recipientes de aço para recolher os restos de bolo e bebida. Talvez conseguisse entrar num avião que estivesse aguardando no espaço dos hangares — e esconder-se dentro, embora não se lembrasse de nenhum esconderijo em aviões — mas como prever o destino eventual do vôo?

Via aérea, portanto, era impossível, até que Uni dissesse que ele podia viajar.

Pediu licença para visitar os pais. Não foi atendido.

Anunciaram novas transferências para a sua seção. Dois 663 foram enviados a Afr, mas ele não: tinha de ir para USA-36104. Estudou o avião durante o vôo. Não havia esconderijo: apenas a longa cabina cheia de poltronas, o banheiro na parte da frente, o compartimento de bolos e bebidas na retaguarda, e as telas de televisão, com um ator interpretando o papel de Marx em todas elas.

USA36104 ficava a sudeste, perto da ponta de Usa, com Cuba logo após. Podia sair de bicicleta um domingo, passar de cidade em cidade, dormindo nos parques intermediários e indo buscar bolos e bebida depois que anoitecesse. Eram mil e duzentos quilômetros, segundo o mapa do MPF. Em ’33037 ele podia encontrar um barco, ou negociantes vindo à costa, como os de ARG20400 de que Rei lhe falara.

Lilás, pensou, que mais posso fazer?

Pediu de novo permissão para visitar Afr e de novo não foi atendido.

Começou a andar de bicicleta aos domingos e durante a hora de folga, para exercitar as pernas. Foi ao Pré-U de ’36104 e descobriu uma bússola melhor e uma faca de fio dentado que servia para cortar galhos nos parques. Verificou o mapa que havia: a parte traseira estava intata, fechada. Escreveu por cima: Sim, existem ilhas onde os membros são livres. Abaixo Uni!

Um domingo, de manhã cedo, rumou para Cuba, com a bússola e um mapa copiado em um de seus bolsos. Na cesta da bicicleta, levava A Sabedoria Viva de Wei em cima de um cobertor dobrado, um recipiente com bebida e um bolo. Dentro do cobertor estava a sua sacola de viagem, que continha a navalha, a pedra de afiar, um sabonete, a tesoura, dois bolos, a faca, uma lanterna, algodão, um rolo de esparadrapo, uma fotografia de seus pais e Papai Jan, e uma muda extra de túnica. Debaixo da manga direita uma atadura cobria-lhe o braço, embora se fosse levado para tratamento seria quase certo que a descobririam. Usava óculos escuros e sorria, pedalando rumo a sudeste entre outros ciclistas pela estrada que conduzia a ’36081. Passavam carros chispando em sequência uniforme sobre a autopista paralela à estrada. De vez em quando zuniam pedregulhos, chutados pelos jatos aéreos dos carros contra a linha divisória de metal.

De hora em hora, mais ou menos, ele parava e descansava um pouco. Comia metade de um bolo e bebia certa quantidade do refrigerante. Pensava em Cuba e no que tiraria em ’33037 para negociar lá. Pensava nas mulheres em Cuba. Provavelmente se sentiriam atraídas por um recém-chegado. E nenhuma estaria sob tratamento, apaixonadas como nem era possível imaginar, tão bonitas como Lilás ou até mais...

Viajou cinco horas; de repente deu meia volta e refez o mesmo percurso.

Forçou-se a se concentrar no trabalho. Era o funcionário 663 da seção de pediatria de um centro médico. O tipo do serviço tedioso, com intermináveis exames de genes e mínimas variações, o tipo do serviço do qual nunca seria transferido. Ficaria ali para o resto da vida.

De mês em mês pedia permissão para visitar os pais em

Afr.

Em fevereiro de 170 o pedido foi atendido.


Saiu do avião às quatro da madrugada, hora local, e foi para a sala de espera, segurando o cotovelo direito com ar constrangido, a sacola a tiracolo no ombro esquerdo. O membro que descera do avião atrás dele, e que o ajudara a levantar-se quando caíra, colocou-lhe a pulseira diante de um telefone.

— Tem certeza de que não se machucou muito? — perguntou ela.

— Tenho, sim — garantiu, sorrindo. — Obrigado, e aproveite a visita, — E ao telefone: —AnaSG38P2823.

A mulher foi-se embora.

Houve um clarão antes da tela se definir e a ligação ser completada. De repente escureceu e não se iluminou mais. Ela foi transferida, pensou. Não está mais no continente. Esperou para ouvir a confirmação. Mas em vez disso:

— Um momento, não consigo...

E lá estava ela, ainda indefinida, sentada na beira da cama, de pijama, esfregando os olhos.

— Quem é? — perguntou.

Atrás dela um membro se virou. Era sábado de noite. Ou teria casado?

— Li RM — respondeu.

— Quem?

Ela olhou-o, inclinando-se um pouco, piscando os olhos. Era mais bonita do que ele se lembrava: estava mais velha, linda. E, depois, que olhos!

— Li RM — repetiu, forçando-se a um tom apenas cortês, típico de membro. — Não se lembra? De IND26110, lá por 162.

Ela contraiu a testa, nervosa, um instante.

— Ah, sim, lógico — sorriu. — Claro que me lembro. Como vai, Li?

— Muito bem. E você?

— Otimamente.

E parou de sorrir.

— Casou?

— Não. Que bom que você telefonou, Li. Eu quero agradecer-lhe, sabe? Por me ter ajudado.

— Agradeça a Uni.

— Não, não. A você. Um pouco atrasado.

Sorriu de novo.

— Desculpe ligar a esta hora. Estou de passagem por Afr, fui transferido.

— Não tem importância. Gostei muito.

— Onde você está? — perguntou.

— Em ’14509.

— É onde mora a minha irmã.

— Não diga.

— E, sim. Qual é o seu edifício?

— P51.

— O dela é A-não-sei-quanto.

O membro atrás dela sentou na cama e ela se voltou, dizendo-lhe qualquer coisa. Ele sorriu para Quem. Ela se virou de novo.

— Este é Li XE.

— Olá — saudou Quem, decorando '14509, P51; '14509, P51.

— Olá, irmão — fizeram os lábios de Li XE: sua voz não alcançava o aparelho.

— Que foi que houve com o seu braço? — perguntou Lilás.

Ele continuava segurando-o. Soltou-o.

— Nada — respondeu. — Eu caí ao descer do avião.

— Oh, que pena — ela olhou por cima do ombro dele. — Tem um membro aí esperando — preveniu. — Acho melhor a gente se despedir.

— Sim. Adeus. Gostei muito de revê-la. Você não mudou nada.

— Você também não. Adeus, Li.

Ela se levantou, estendeu a mão para o aparelho e a imagem desapareceu.

Ele desligou e cedeu lugar ao membro que esperava atrás.

Estava morta: um membro normal, sadio, deitada agora ao lado do seu namorado, em ’14509, P51. Como podia arriscar-se a lhe falar sobre alguma coisa que não fosse tão normal e sadia como ela? Passaria o dia com os pais e voltaria de avião para Usa.

No próximo domingo partiria de bicicleta e desta vez não daria meia volta.

Perambulou um pouco pela sala de espera. Havia um mapa geral de Afr na parede, com luzes nas principais cidades, ligadas por tênues linhas alaranjadas. Ao norte ficava ’14510, perto do lugar onde ela morava. A meio continente de distância de ’71330, que era onde ele se encontrava. Uma linha alaranjada ligava as duas luzes.

Olhou o quadro de horário dos vôos, acendendo e apagando, revisando os escalados para Domingo 18 fev. Tinha um que partia às 8h20m da noite para ’14510, quarenta minutos antes do avião que tomaria para USA33100.

Aproximou-se da vidraça que dava para o campo e ficou olhando os passageiros dirigindo-se em fila única para a escada rolante do avião que ele deixara. Um membro de túnica cor de laranja apareceu e aguardou ao lado do controle.

Virou-se de frente para a sala de espera. Estava quase vazia. Dois membros que tinham viajado no avião junto com ele, uma mulher segurando uma criança adormecida e um homem carregando duas sacolas, colocaram seus pulsos e o da criança no controle da porta que conduzia ao carroporto — sim, piscou três vezes — e saíram. Um membro de túnica cor de laranja, ajoelhado ao lado do chafariz, desatarraxava uma placa na parte inferior; outra empurrou uma enceradeira para um canto da sala de espera, tocou num controle — sim — e empurrou-a através de uma porta giratória.

Refletiu um instante, olhando o membro trabalhando no chafariz, e depois atravessou a sala, tocando no controle da porta que levava ao carroporto — sim — e saiu. Havia um carro para ’71334 à espera, já com três membros. Tocou no controle — sim — e entrou no carro, desculpando-se com os outros por tê-los feito esperar. A porta fechou-se e o carro partiu. Ele se sentou com a sacola no colo, pensativo.

Ao chegar ao apartamento dos pais, entrou sem fazer ruído, barbeou-se e depois acordou-os. Ficaram contentes, até mesmo felizes, em vê-lo.

Os três conversaram, tomaram café e voltaram a conversar. Pediram um telefonema para Paz, em Eur, que foi atendido. Falaram com ela, com o marido, e com os filhos, Beto, que tinha dez anos, e Yin, de oito. Depois, por sugestão dele, foram ao Museu dos Progressos da Família.

Terminado o almoço, ele dormiu três horas e por fim tomaram o monotrilho para os Jardins de Diversões. O pai entrou num jogo de vôlei e ele e a mãe sentaram num banco para assistir.

— Você está doente de novo? — perguntou-lhe ela.

Olhou-a.

— Não — respondeu. — Claro que não. Estou muito bem.

Ela olhou bem para ele. Tinha agora cinquenta e sete anos, o cabelo estava grisalho e a pele morena toda enrugada.

— Você esteve pensando em alguma coisa — disse. O dia todo.

— Eu estou bem. Por favor. A senhora é minha mãe, acredite em mim.

Olhou-o nos olhos, preocupada.

— Estou bem — repetiu.

Após uma pausa, ela retrucou:

— O.K., Quem.

Sentiu-se subitamente cheio de amor por ela. De amor e gratidão, com uma sensação de unidade filial. Pegou-a pelo ombro e beijou-lhe o rosto.

— Eu te amo, Suzu — disse.

Ela riu.

— Cristo e Wei — exclamou. — Que memória você tem!

— É porque sou sadio. Lembre-se disso, sim? Sou sadio e feliz. Quero que a senhora não se esqueça disso.

— Porquê?

— Porque sim.

Contou-lhes que o avião partia às oito.

— Despedir-nos-emos no carroporto — disse. O aeroporto vai estar atulhado de gente.

Mesmo assim, o pai queria ir. Mas a mãe disse que não, que ficariam em '334. Sentia-se cansada.

Às sete e meia, deu-lhes um beijo de despedida — primeiro no pai, depois na mãe, segredando-lhe ao ouvido: “Não se esqueça” — e entrou na fila de carros para o aeroporto de ’71330. O controle, quando tocou nele, piscou sim.


A sala de espera estava ainda mais repleta do que esperava que estivesse. Membros de túnicas brancas, amarelas e azul claro caminhavam, ficavam de pé, sentavam e esperavam na fila, alguns com sacola, outros sem. Uns poucos de túnica cor de laranja moviam-se no meio da multidão.

Olhou o quadro: o vôo das 8h20m para ’14510 apanharia os passageiros na pista dois. Os membros já estavam lá na fila, e além da vidraça, um avião fazia manobra para colocar-se junto de uma escada rolante. Sua porta abriu-se, deixando passar um membro, logo seguido por outro.

Quem abriu caminho entre a multidão até chegar à porta giratória no canto da sala, fingindo que tocava no controle e empurrando-a para sair: encontrou-se numa parte de depósito, onde havia engradados e caixas de papelão enfileirados sob uma luz ofuscante, semelhantes às comportas de memória de Uni. Tirou a sacola do ombro e escondeu-a entre uma caixa de papelão e a parede.

Seguiu adiante normalmente. Um carrinho com recipientes de aço passou por ele, empurrado por um membro de túnica cor de laranja que o olhou de relance, cumprimentando com a cabeça.

Retribuiu o aceno, continuou andando, e viu o membro empurrar o carrinho por um grande portão aberto e sair para o campo profusamente iluminado.

Tomou a direção de onde o membro tinha vindo, chegando a uma área em que membros de túnica cor de laranja colocavam recipientes de aço sobre a esteira de transporte de uma máquina de lavar, enchendo outros com refrigerantes e chá fumegante provenientes das torneiras de gigantescos cilindros. Seguiu adiante.

Fingiu tocar num controle e entrou numa sala cheia de túnicas comuns penduradas em ganchos. Dois membros despiam túnicas cor de laranja.

— Olá — saudou.

— Olá — responderam.

Dirigiu-se à porta de um armário e entreabriu-a: continha uma enceradeira e frascos de líquido verde.

— Onde estão as túnicas? — perguntou.

— Ali dentro — informou um deles, acenando com a cabeça para outro armário.

Foi até lá e abriu-o. Havia túnicas cor de laranja nas prateleiras. Biqueiras de calçado e pares de luvas grossas, tudo da mesma cor.

— De onde você é? — perguntou o mesmo.

— RUS50937 — mentiu, tirando uma túnica e um par de biqueiras. — Lá nós guardamos as túnicas ali.

— Elas devem ficar aí — teimou o membro, fechando a túnica branca.

— Já estive em Rus — disse o outro, que era uma mulher. — Tive dois trabalhos lá. O primeiro levou quatro anos e o segundo três.

Não se apressou em colocar as biqueiras, só terminando quando os dois jogaram as túnicas cor de laranja na lixeira e saíram.

Enfiou a túnica cor de laranja por cima da branca e fechou-a até o pescoço. Era mais grossa que a comum e possuía bolsos extras.

Examinou os outros armários, encontrou uma chave inglesa e um pedaço de paplão amarelo de bom tamanho.

Voltou ao lugar onde deixara a sacola, tirou-a e embrulhou-a no paplão. A porta giratória deu um encontrão nele.

— Desculpe — disse um membro, entrando. — Machucou-se?

— Não — respondeu, segurando a sacola embrulhada.

O membro de túnica cor de laranja seguiu adiante.

Esperou um pouco, observando-o, depois meteu a sacola debaixo do braço esquerdo e tirou a chave inglesa do bolso. Agarrou-a com a mão direita, de um jeito que esperava que parecesse natural.

Foi atrás do membro, depois dobrou e dirigiu-se ao portão que comunicava com o campo.

A escada rolante apoiada ao flanco do avião na pista dois estava vazia. Um carrinho, provavelmente o que tinha visto ser empurrado, achava-se parado ao pé dos degraus, junto do controle.

Havia outra escada rolante, sendo recolhida ao poço, e o avião que ela atendera já rodava, pronto para a decolagem. Devia ser o vôo das 8hl0 para Chi, provavelmente.

Agachou-se sobre um joelho, largando a sacola e a chave inglesa em cima do cimento, e simulou ter problema com a biqueira. Todo mundo na sala de espera estaria assistindo à decolagem do avião para Chi: era o momento em que ele subiria a escada rolante. Pernas cor de laranja passaram farfalhando a seu lado: um membro voltava aos hangares. Tirou a biqueira e tomou a enfiá-la, olhando o avião girar...

A decolagem começou. Juntou a sacola e a chave inglesa, levantou-se e caminhou normalmente. O clarão dos holofotes o enervava, mas disse consigo mesmo que ninguém o estava olhando, todo mundo prestando atenção ao avião. Dirigiu-se à escada rolante, fingiu tocar no controle — o carrinho ao lado o favorecia, justificando-lhe a falta de jeito — e pisou nos degraus ascendentes. Agarrou-se com força à sacola enrolada em paplão e ao cabo úmido da chave inglesa enquanto subia rapidamente até a porta aberta do avião. Saltou fora da escada rolante e entrou a bordo.

Dois membros com túnica cor de laranja estavam ocupados na despensa. Olharam na sua direção e ele acenou com a cabeça. Retribuíram-lhe o cumprimento. Desceu o corredor, rumo ao banheiro.

Entrou, deixando a porta aberta, e pousou a sacola no chão. Virou-se para a pia, experimentou as torneiras e bateu-as com a chave inglesa. Ajoelhou-se e fez o mesmo no cano de esgoto. Abriu as tenazes da chave inglesa e colocou-as em torno do cano.

Escutou a escada parar, e depois recomeçar. Inclinou-se para o lado de fora e espiou. Os membros tinham ido embora.

Largou a chave no chão, levantou-se, fechou a porta e abriu a túnica cor de laranja. Despiu-a, dobrou-a pelo comprido e enrolou-a numa trouxa tão compacta quanto pôde. Tornou a ajoelhar-se, desembrulhou a sacola e abriu-a. Guardou a túnica, dobrou o paplão amarelo e também meteu junto na sacola. Tirou as biqueiras das sandálias, apertou-as bem e enfiou num dos cantos da sacola. Incluiu a chave inglesa, esticou a tampa com força e comprimiu-a para fechar.

De sacola no ombro, lavou as mãos e o rosto com água fria. Seu coração batia depressa, mas sentia-se bem, entusiasmado, vivo. Olhou no espelho aquela sua cara com um olho verde e o outro castanho. Abaixo Uni!

Ouviu vozes de membros subindo a bordo do avião. Ficou junto da pia, enxugando as mãos que já estavam secas.

A porta se abriu, dando passagem a um menino de mais ou menos dez anos.

— Oi — disse Quem, secando as mãos. — O dia foi bom pra você?

— Foi, sim — respondeu o garoto.

Quem jogou a toalha na lixeira.

— É a primeira vez que você anda de avião?

— Não — disse o garoto, abrindo a túnica. — Já andei uma porção de vezes.

E sentou-se numa das toaletes.

— Até já — disse Quem, e saiu.

A terça parte do avião já estava cheia, e novos membros entravam. Ocupou a poltrona vazia mais próxima que havia no corredor, verificou se a sacola ficara bem fechada e acomodou-a embaixo do assento.

Na chegada faria a mesma coisa. Quando todo mundo estivesse descendo do avião, iria para o banheiro e vestiria a túnica cor de laranja. Quando os membros viessem a bordo com os recipientes de reabastecimento, o encontrariam trabalhando na pia e ele sairia depois deles. Na área de depósito, atrás de um engradado ou dentro de um armário, ele se livraria da túnica, das biqueiras e da chave inglesa. E depois fingiria tocar o controle para dar o fora do aeroporto e caminhar a pé até ’14509. Ficava a oito quilômetros a leste de ’510. Verificara de manhã num mapa do MPF, Tendo sorte, chegaria lá por volta da meia-noite.

— Que coisa estranha — exclamou o membro a seu lado.

Virou-se.

Ela estava olhando para o fundo do avião.

— Não há lugar vago pra aquele membro — disse.

O homem percorria lentamente o corredor, olhando para todos os lados. O avião estava lotado. Membros olhavam em torno, procurando dar-lhe ajuda.

— Tem que ter — disse Quem, levantando-se da poltrona e olhando ao redor. — Uni não pode ter cometido um engano.

— Não tem — disse a vizinha de assento. — Todos os lugares estão ocupados.

Formou-se um burburinho a bordo. De fato não havia lugar para o membro. Uma mulher pegou uma criança no colo e chamou-o.

O avião começou a se mover e as telas de televisão se iluminaram, com um programa sobre a geografia e os recursos de Afr.

Tentou prestar atenção ao programa, pensando que talvez lhe trouxesse alguma informação útil, mas não conseguiu. Se fosse descoberto e tratado agora, nunca mais ficaria lúcido. Desta vez Uni tomaria todas as precauções para que não entendesse nem o significado de mil folhas sobre mil pedras úmidas.


Chegou a ’14509 à meia-noite e vinte. Estava bem acordado, ainda segundo a hora de Usa, com o vigor da tarde.

Primeiro foi ao Pré-U, e depois ao ponto de bicicletas na praça mais próxima ao prédio P51. Fez duas viagens até o ponto de bicicletas e uma até o refeitório do P51 e seu centro de abastecimento.

Às três horas, entrou no quarto de Lilás. Olhou-a à luz da lanterna enquanto dormia — o rosto, o pescoço, mão morena pousada no travesseiro — e depois aproximou-se da escrivaninha e acendeu a lâmpada.

— Ana — chamou, parado ao pé da cama. — Ana, você tem que levantar agora.

Ela resmungou qualquer coisa.

— Você tem que levantar agora, Ana — repetiu. — Anda, levanta.

Ela se ergueu, cobrindo os olhos com a mão, queixando-se baixinho. Sentando-se, tirou a mão e fitou-o, reconhecendo-o e franzindo intrigada a testa.

— Eu quero que você venha dar uma volta comigo — disse.

— De bicicleta. Você não deve falar alto, nem pedir socorro.

Enfiou a mão no bolso e tirou um revólver. Empunhou-o do modo que lhe parecia adequado, com o indicador no gatilho, o resto da mão segurando o cabo, e a ponta fazendo mira no rosto dela.

— Eu a mato se você não fizer o que eu mando — acrescentou. — Não grite, Ana.


CONTINUA

TERCEIRA PARTE

 

FUGINDO


1

 

Velhas cidades foram demolidas, novas construídas. As novas tinham edifícios mais altos, praças mais amplas, parques mais vastos, monotrilhos cujos carros desenvolviam maior velocidade, embora com menos frequência.

Outras duas espaçonaves foram lançadas, em direção a Sírio B e Cisnes 61. As colônias marcianas, agora repovoadas e protegidas da devastação de 152, expandiam-se diariamente. O mesmo acontecendo com as colônias em Vênus e na Lua, os postos avançados em Titã e Mercúrio.

A hora de folga teve uma prolongação de cinco minutos. A ligação de telecomputadores pela voz começou a substituir as teclas e os bolos integrais ganharam um agradável segundo sabor. O limite de longevidade aumentou para 62.4.

Os membros trabalhavam e comiam, assistiam à televisão e dormiam. Cantavam, visitavam museus e passeavam pelos jardins de diversão.

No segundo centenário do nascimento de Wei, durante a parada numa cidade nova, um imenso estandarte com o retrato de Wei sorrindo teve um de seus mastros carregado por um membro de mais ou menos trinta anos, cujo aspeto era normal em todos os sentidos, a não ser pelo olho direito, que era verde em vez de castanho. Certa ocasião, há muito tempo, esse membro tinha adoecido, mas agora estava curado. Possuía trabalho, quarto, namorada e conselheiro. Sentia-se calmo e contente.

Um fato estranho lhe aconteceu durante a parada. Enquanto marchava, sorridente, segurando o mastro do estandarte, começou a ouvir um número que se repetia incessantemente no cérebro: Ana SG, trinta e oito P, vinte e oito, vinte e três. Ana SG, trinta e oito P, vinte e oito, vinte e três. Aquilo continuou martelando, em compasso com a marcha. Ficou imaginando a quem pertencia esse número e por que estaria repetindo-se daquela maneira em seu cérebro.

De repente lembrou-se: era do tempo de sua doença! Era o número de um dos outros doentes, o que se chamava Linda — não, Lilás. Por que, depois de tantos anos, voltava-lhe o seu número? Bateu os pés no chão com mais força, procurando não ouvir, e alegrou-se quando foi dado o sinal para cantar.

Contou ao conselheiro.

— Não tem a menor importância — disse ela. — Você provavelmente viu alguma coisa que fez lembrá-la. Talvez até ela mesma. Não há motivo pra temer recordações... a não ser, naturalmente, que se tornem incomodas. Se acontecer outra vez, me avise.

Mas não aconteceu. Ele estava curado, graças a Uni.


Um dia de Natal de Cristo, quando já tinha novo trabalho e morava noutra cidade, foi de bicicleta com a namorada e quatro outros membros a um parque distante. Levaram bolos e refrigerantes, e almoçaram no chão, perto de um arvoredo.

Ele tinha posto seu recipiente de refrigerante em cima de uma pedra quase lisa e, estendendo o braço para apanhá-lo enquanto conversava, derrubou-o. Os outros membros encheram-no de novo com o conteúdo dos seus.

Poucos minutos depois, ao dobrar o invólucro de seu bolo, reparou numa folha caída em cima da pedra úmida, com gotas de refrigerante brilhando na parte posterior, a haste enroscada para cima feito uma alça. Ele pegou a haste e levantou a folha: a pedra, embaixo, estava seca no formato oval da folha. O resto da pedra escurecera com o líquido, mas no lugar da folha continuava cinza e seca. Qualquer coisa naquele momento lhe pareceu significativa. Ficou sentado em silêncio, contemplando a folha que tinha na mão, o invólucro do bolo dobrado na outra e o contorno seco da folha em cima da pedra. Sua namorada falou-lhe algo e ele não pensou mais naquilo, juntando a folha e o invólucro e entregando-os ao membro encarregado do saco de detritos.

A imagem do contorno seco da folha em cima da pedra voltou-lhe à lembrança várias vezes naquele dia. E no dia seguinte também. Depois teve o seu tratamento e esqueceu o assunto. Em questão de semanas, porém, tomou a lembrar-se. Ficou imaginando por quê. Teria já levantado antes uma folha de cima de uma pedra úmida daquele mesmo jeito? Se tinha, não se recordava...

De vez em quando, ao caminhar por um parque ou, por estranho que pareça, ao aguardar na fila para fazer tratamento, a imagem do contorno seco da folha voltava-lhe à lembrança e o fazia franzir a testa.


Houve um terremoto. (Foi jogado longe da cadeira; a lente do microscópio quebrou e das profundezas do laboratório ele ouviu o som mais ensurdecedor de toda a sua vida.) Uma válvula- sismógrafo a meio continente de distância tinha emperrado sem que ninguém percebesse, explicou a televisão poucas noites depois. Aquilo jamais acontecera e não se repetiria mais. Constituía motivo de pesar, naturalmente, mas não era nada que causasse preocupações para o futuro.

Dezenas de prédios ruíram, centenas de membros morreram. Todos os centros médicos da cidade viram-se superlotados de feridos e mais da metade dos aparelhos de tratamento ficaram danificados, ocasionando um atraso de dez dias em cada um.

Alguns dias depois da data em que devia ter tido o seu, pensou em Lilás e em como a tinha amado de uma maneira diferente e mais — mais excitantemente — do que amara todas as outras. Ele havia querido contar uma coisa a ela. O que era? Ah sim, a propósito das ilhas. As ilhas que descobrira escondidas no mapa do Pré-U. As ilhas dos incuráveis...

O conselheiro telefonou-lhe.

— Você está bem? — perguntou.

— Acho que não, Karl — respondeu. — Preciso do meu tratamento.

— Espere um instante — disse o conselheiro, afastando- se e falando baixinho ao telecomputador. Não demorou muito, voltou. — Você pode fazê-lo hoje de noite às sete e meia — anunciou, — mas terá de ir ao centro médico em T24.

Às sete e meia ele estava esperando numa longa fila, pensando em Lilás, procurando recordar exatamente como ela era. Quando chegou perto dos aparelhos de tratamento, voltou-lhe à memória a imagem do contorno seco da folha em cima da pedra.


Lilás telefonou-lhe (ela morava ali mesmo, no próprio edifício) e ele foi para o quarto dela, que era a sala de depósito no Pré-U. Jóias verdes pendiam-lhe das orelhas e cintilavam em torno do pescoço moreno-rosa: estava com um vestido de fazenda verde fulgurante que expunha os seios cônicos macios de bicos nacarados.

— Bon soir, Quem — disse, sorrindo. — Comment vas-tu? Je m’ertnuyais tellement de toi.

Ele se aproximou, tomou-a nos braços e beijou-a — os lábios eram quentes e macios, a boca entreaberta — e acordou no escuro, desapontado: fora um sonho, apenas um sonho.

Mas estranhamente, assustadoramente, tudo persistia: o cheiro do seu perfume (parfum), o gosto do fumo, o som das canções de Pardal, o desejo por Lilás, a raiva contra Rei, o ressentimento contra Uni, a tristeza pela Família e a felicidade de sentir, de estar vivo e lúcido.

E de manhã faria o tratamento e aquilo terminaria. Às oito horas. Acendeu a luz, olhou o relógio: 4h54m. Em pouco mais de três horas...

Apagou a luz de novo e ficou deitado no escuro, de olhos abertos. Não queria perder aquilo. Doente ou não, queria guardar suas recordações, a capacidade de explorá-las e saboreá-las. Não queria pensar nas ilhas — não, nunca: isso era doença mesmo — porém queria pensar em Lilás, nas reuniões do grupo na sala de depósito cheia de relíquias e, de vez em quando, talvez, sonhar outra vez.

Mas o tratamento viria dentro de três horas e tudo terminaria. Não havia nada que pudesse fazer — a não ser esperar novo terremoto, & quais eram as possibilidades de que isso acontecesse? As válvulas-sismógrafos funcionavam perfeitamente desde então e continuariam funcionando perfeitamente no futuro. E o que, além de um terremoto, podia adiar o tratamento? Nada. Absolutamente nada. Não com Uni sabendo que ele já tinha mentido antes para conseguir um adiamento.

O contorno da folha seca sobre a pedra voltou-lhe à lembrança, mas enxotou-o para pensar em Lilás, para vê-la como a havia visto no sonho, para não desperdiçar suas três breves horas de lucidez. Tinha esquecido como eram grandes os olhos dela, como era lindo o seu sorriso, a sua pele morena-rosa, como era comovente a sua sinceridade. Tinha esquecido tanta coisa mais: o prazer de fumar, o entusiasmo em decifrar Français...

O contorno seco da folha voltou, e pensou nele, irritado tentando descobrir por que se gravara na lembrança, tentando livrar-se dele de uma vez por todas. Recapitulou o momento ridiculamente inexplicável: visualizou a folha de novo, coberta de gotas brilhantes de bebida, seus dedos levantando-a pela haste, enquanto a outra mão segurava o invólucro dobrado do bolo, e o oval seco e cinzento sobre a pedra molhada de refrigerante escuro. Tinha derramado a bebida, ia folha ficara ali, e por baixo a pedra continuava...

Soergueu-se na cama e pegou com força o braço esquerdo coberto pelo pijama.

— Cristo e Wei — exclamou, assustado.


Levantou-se antes do primeiro carrilhão, vestiu-se e arrumou a cama.

Foi o primeiro a chegar ao refeitório. Comeu e bebeu, e voltou para o quarto com o invólucro do bolo dobrado displicentemente no bolso.

Desdobrou-o, colocou-o em cima da escrivaninha e alisou- o com a mão. Dobrou o invólucro laminado bem ao meio, e a metade em três. Apertou o maço quanto pôde e apalpou-o: era fino, apesar das seis dobras. Fino demais? Largou-o de novo.

Dirigiu-se ao banheiro, tirou algodão e o rolo de esparadrapo do estojo de medicamentos que guardava no armário. Trouxe-os de volta à escrivaninha.

Pôs uma camada de algodão sobre o maço do invólucro — uma camada menor que o próprio maço — e começou a cobrir o algodão e o maço com longas tiras superpostas de esparadrapo da cor da pele. Prendeu de leve as pontas do esparadrapo em cima da escrivaninha.

A porta se abriu e ele se virou, escondendo o que estava fazendo e guardando o rolo de esparadrapo no bolso. Era Karl TK, vizinho de quarto.

— Pronto pro café? — perguntou.

— Eu já tomei — respondeu.

— Ah. Até já, então.

— O.K. — disse, e sorriu.

Karl fechou a porta.

Terminou de passar o esparadrapo e depois desprendeu as pontas de cima da escrivaninha, levando para o banheiro a atadura que tinha feito. Colocou-a com o lado do invólucro laminado para cima na beira da pia e arregaçou a manga.

Pegou a atadura e encostou o invólucro cuidadosamente à parte interna do seu braço, onde o disco da infusão tocaria. Agarrou a atadura com força e colou as pontas do esparadrapo contra a pele.

Uma folha. Um escudo. Daria certo?

Se desse, pensaria unicamente em Lilás, não nas ilhas. Se se surpreendesse pensando nelas, contaria ao conselheiro.

Abaixou a manga.

Às oito horas, entrou na fila na sala de tratamento. Ficou de braços cruzados, com a mão por cima da atadura encoberta pela manga — para esquentá-la, caso o disco de infusão fosse sensível à temperatura.

Estou doente, pensou. Vou pegar tudo quanto é doença: câncer, varíola, cólera, tudo. Crescerão pêlos no meu rosto!

Faria aquilo só desta vez. Ao primeiro sintoma de anormalidade, correria ao conselheiro.

Talvez não desse certo.

Chegou a sua vez. Arregaçou a manga até o cotovelo, enfiou o braço bem no fundo do orifício revestido de borracha, depois puxou a manga até o ombro e no mesmo instante deslizou o braço todo no interior do aparelho.

Sentiu o controle localizando-lhe a pulseira e a leve pressão do disco de infusão sobre a atadura de algodão... Não aconteceu nada.

— Você já está pronto — advertiu o membro seguinte.

A luz azul do aparelho estava acesa.

— Ah — exclamou, abaixando a manga enquanto retirava o braço.

Tinha de rumar direto para o trabalho.

Terminado o almoço, voltou ao quarto e, no banheiro, arregaçou a manga e tirou a atadura. O invólucro laminado estava intato, mas a pele sempre ficava assim após o tratamento. Arrancou do esparadrapo o invólucro dobrado.

O algodão tinha ficado cinzento e fosco. Espremeu a atadura em cima da pia e um líquido aquoso escorreu de dentro dela.


Recuperou a lucidez, cada dia mais forte. Recuperou a memória, em pormenores nítidos, torturantes.

Recuperou o sentimento. O rancor contra Uni converteu-se em ódio; o desejo por Lilás transformou-se em fome insaciável.

Recorreu novamente às velhas simulações: era normal no trabalho, normal com o conselheiro, normal com a namorada. Mas dia a dia aquele fingimento ficava mais irritante, mais insuportável de manter.

No tratamento subsequente, fez outra atadura com invólucro de bolo, algodão e esparadrapo; e dela espremeu outro fio de líquido aquoso.

Apareceram-lhe pontinhos pretos no queixo, no rosto e acima do lábio superior — pêlos incipientes. Desmontou a tesoura, prendeu com arame uma das lâminas ao cabo e de manhã, antes do primeiro carrilhão, esfregava sabonete no rosto e raspava fora os pontinhos.

Sonhava todas as noites. As vezes os sonhos traziam-lhe orgasmos.

Simular calma e contentamento, humildade e bondade, tornava-se cada vez mais exasperante. No dia de Natal de Marx, numa praia, pôs-se a caminhar pela areia e de repente desandou a correr, a correr na frente dos membros que caminhavam a seu lado, a correr para longe da Família que tomava banho de sol, que comia bolos. Correu até que a praia se estreitou em pedras caídas e continuou correndo no meio da arrebentação e por cima de antigos contrafortes escorregadios. Então parou e sozinho e nu entre o oceano e os elevados penhascos cerrou os punhos e esmurrou os rochedos, gritando obscenidades para o claro céu azul, torcendo e tentando arrancar a corrente inquebrável de sua pulseira.

Era 169, dia 6 de maio. Tinha perdido seis anos e meio. Seis anos e meio! Estava com trinta e quatro. Morava em USA- 90058.

E onde estaria ela? Ainda em Ind, ou noutro lugar qualquer? Na Terra ou numa espaçonave?

E estaria viva, como ele, ou morta, como todos os membros da Família?


2

 

Agora era mais fácil, agora que tinha machucado as mãos e gritado. Mais fácil de caminhar com um sorriso de contentamento, de assistir à televisão e olhar pelo microscópio, de sentar com a namorada nos concertos de anfiteatro.

Pensando o tempo todo no que fazer...


— Alguma preocupação? — perguntou-lhe o conselheiro.

— Bem, um pouco — respondeu.

— Achei que você não estava com bom aspeto. O que é?

— Olha, sabe, eu andei muito doente alguns anos atrás...

— Sei.

— E agora um dos membros que esteve doente junto comigo, o que me deixou doente, pra ser mais preciso, está morando aqui no prédio. Será que não daria pra eu me mudar pra outro lugar?

O conselheiro olhou-o com ar de dúvida.

Estou meio surpreso — disse ele, — que o UniComp tenha deixado vocês dois juntos de novo.— Eu também — disse Quem. — Mas ela está morando aqui. Encontrei-a ontem à noite no refeitório e hoje de manhã outra vez.

— Você falou com ela?

— Não.

— Vou informar-me. Se ela estiver aqui e isso o incomoda, evidente que nós o mudaremos pra outro lugar. Ou então ela. Qual é o número dela?

— Não me lembro por completo — respondeu Quem. — Ana ST38P.


O conselheiro telefonou-lhe no dia seguinte de manhã cedo.

— Você se enganou, Li — disse. — Não foi aquele membro que você viu. E por falar nisso, ela é Ana SG, não ST.

— Tem certeza de que ela não mora aqui?

— Absoluta. Ela está em Afr.

— Que alívio.

— E Li, em vez de você fazer tratamento na quinta, você vai fazer hoje,

— É mesmo?

— É. A uma e meia.

— ‘Tá certo — disse. — Obrigado, Jesus.

— Agradeça a Uni.

Tinha três invólucros de bolo dobrados e escondidos no fundo da gaveta da escrivaninha. Tirou um, foi ao banheiro, e começou a preparar a atadura.


Ela estava em Afr. Era mais perto do que Ind, mas sempre a um oceano de distância. E da largura de Usa, aliás.

Os pais dele moravam lá, em ’71334. Esperaria algumas semanas e depois pediria uma visita. Fazia pouco menos de dois anos que não os via: havia bastante possibilidade de que o pedido fosse atendido. Chegando em Afr, telefonaria a ela — sob o pretexto de ter ferido o braço, conseguiria que uma criança tocasse a placa de um telefone de rua para ele — terminando por descobrir onde ela se encontrava exatamente. Alô, Ana SG. Espero que você esteja tão bem quanto eu. Qual é a cidade em que você mora?

E depois, como faria? Iria a pé até lá? Pediria uma passagem de carro para algum lugar vizinho, onde houvesse uma instalação relacionada de certa forma com genética? Uni não perceberia o que ele andava tramando?

Mas mesmo que tudo-isso acontecesse, mesmo que conseguisse chegar até ela, o que faria depois? Era esperar demais que ela também houvesse levantado uma folha de uma pedra molhada algum dia. Não, ódio, na certa estaria normal, tão normal como ele próprio estivera até há bem poucos meses. E à primeira palavra anormal que proferisse, o recolheria a um centro médico. Cristo, Marx, Wood e Wei, que podia ele fazer?

Esquecê-la: era uma solução. Partir por sua conta, agora, para a ilha livre mais próxima. AH haveria mulheres, provavelmente aos montes, e algumas decerto teriam a pele rosa-morena, olhos grandes menos-oblíquos-que-o-normal e seios cônicos de aspeto macio. Valeria a pena arriscar a lucidez conquistada em troca da remota possibilidade de despertar a dela?

Embora ela tivesse despertado a sua, agachando-se à sua frente com as mãos pousadas em seus joelhos...

Não ao risco da própria, contudo. Ou, pelo menos, não com um risco tão grande.

Foi ao Museu da Pré-U: da mesma maneira antiga, à noite, sem tocar nos controles. Era igual ao de IND26110. Algumas peças do mostruário variavam um pouco, expostas em lugares diferentes.

Encontrou outro mapa da Pré-U, este feito em 1937, com os mesmos oito retângulos azuis colados. A parte traseira havia sido cortada e presa toscamente com esparadrapo: alguém passara por ali antes dele. A ideia era empolgante: alguém tinha descoberto as ilhas, talvez estivesse a caminho de uma naquele mesmo momento.

Noutra sala de depósito — esta com apenas uma mesa, algumas caixas de papelão e uma máquina semelhante a uma cabina, com uma série de minúsculas alavancas — ele novamente segurou o mapa contra a luz, novamente viu as ilhas escondidas. Copiou no papel a mais próxima, “Cuba”, ao largo da ponta sudeste de Usa. E caso decidisse arriscar-se a encontrar Lilás, copiou o contorno de Afr e as duas ilhas que ficavam perto, “Madagascar” ao leste e a pequena “Majorca” ao norte.

Uma das caixas de papelão continha livros. Encontrou um em Français:. Spinoza et ses Contemporains. Spinoza e seus Contemporâneos. Deu uma olhada nas páginas e tirou-o.

Pôs o mapa remoldurado no lugar e foi passar o museu em revista. Tirou uma bússola de pulso que parecia ainda estar funcionando, uma “navalha” com cabo de marfim e a pedra para afiá-la.

— Não demora muito seremos transferidos — avisou o chefe de seção um dia à hora do almoço. GL4 vai substitui-nos.

— Tomara que eu vá pra Afr — disse. — Meus pais estão lá.

Era o tipo do comentário arriscado, ligeiramente impróprio para um membro, mas talvez o chefe de seção exercesse influência indireta na escalação de trabalho.

Sua namorada foi transferida e ele acompanhou-a ao aeroporto para despedir-se — e verificar se era possível entrar a bordo de um avião sem a permissão de Uni. Pelo jeito, não: a compacta fila única de passageiros não permitiria o toque falso do controle e quando chegasse a hora em que o último membro da fila estivesse tocando-o, um membro de túnica cor de laranja achava-se a seu lado, pronto para fazer parar a escada rolante e devolvê-la ao respetivo poço. Sair de um avião apresentava a mesma dificuldade: o passageiro que ficava por último tocava no controle enquanto dois membros de túnica cor de laranja observavam. Depois invertiam a escada rolante, tocavam no controle, e entravam a bordo com recipientes de aço para recolher os restos de bolo e bebida. Talvez conseguisse entrar num avião que estivesse aguardando no espaço dos hangares — e esconder-se dentro, embora não se lembrasse de nenhum esconderijo em aviões — mas como prever o destino eventual do vôo?

Via aérea, portanto, era impossível, até que Uni dissesse que ele podia viajar.

Pediu licença para visitar os pais. Não foi atendido.

Anunciaram novas transferências para a sua seção. Dois 663 foram enviados a Afr, mas ele não: tinha de ir para USA-36104. Estudou o avião durante o vôo. Não havia esconderijo: apenas a longa cabina cheia de poltronas, o banheiro na parte da frente, o compartimento de bolos e bebidas na retaguarda, e as telas de televisão, com um ator interpretando o papel de Marx em todas elas.

USA36104 ficava a sudeste, perto da ponta de Usa, com Cuba logo após. Podia sair de bicicleta um domingo, passar de cidade em cidade, dormindo nos parques intermediários e indo buscar bolos e bebida depois que anoitecesse. Eram mil e duzentos quilômetros, segundo o mapa do MPF. Em ’33037 ele podia encontrar um barco, ou negociantes vindo à costa, como os de ARG20400 de que Rei lhe falara.

Lilás, pensou, que mais posso fazer?

Pediu de novo permissão para visitar Afr e de novo não foi atendido.

Começou a andar de bicicleta aos domingos e durante a hora de folga, para exercitar as pernas. Foi ao Pré-U de ’36104 e descobriu uma bússola melhor e uma faca de fio dentado que servia para cortar galhos nos parques. Verificou o mapa que havia: a parte traseira estava intata, fechada. Escreveu por cima: Sim, existem ilhas onde os membros são livres. Abaixo Uni!

Um domingo, de manhã cedo, rumou para Cuba, com a bússola e um mapa copiado em um de seus bolsos. Na cesta da bicicleta, levava A Sabedoria Viva de Wei em cima de um cobertor dobrado, um recipiente com bebida e um bolo. Dentro do cobertor estava a sua sacola de viagem, que continha a navalha, a pedra de afiar, um sabonete, a tesoura, dois bolos, a faca, uma lanterna, algodão, um rolo de esparadrapo, uma fotografia de seus pais e Papai Jan, e uma muda extra de túnica. Debaixo da manga direita uma atadura cobria-lhe o braço, embora se fosse levado para tratamento seria quase certo que a descobririam. Usava óculos escuros e sorria, pedalando rumo a sudeste entre outros ciclistas pela estrada que conduzia a ’36081. Passavam carros chispando em sequência uniforme sobre a autopista paralela à estrada. De vez em quando zuniam pedregulhos, chutados pelos jatos aéreos dos carros contra a linha divisória de metal.

De hora em hora, mais ou menos, ele parava e descansava um pouco. Comia metade de um bolo e bebia certa quantidade do refrigerante. Pensava em Cuba e no que tiraria em ’33037 para negociar lá. Pensava nas mulheres em Cuba. Provavelmente se sentiriam atraídas por um recém-chegado. E nenhuma estaria sob tratamento, apaixonadas como nem era possível imaginar, tão bonitas como Lilás ou até mais...

Viajou cinco horas; de repente deu meia volta e refez o mesmo percurso.

Forçou-se a se concentrar no trabalho. Era o funcionário 663 da seção de pediatria de um centro médico. O tipo do serviço tedioso, com intermináveis exames de genes e mínimas variações, o tipo do serviço do qual nunca seria transferido. Ficaria ali para o resto da vida.

De mês em mês pedia permissão para visitar os pais em

Afr.

Em fevereiro de 170 o pedido foi atendido.


Saiu do avião às quatro da madrugada, hora local, e foi para a sala de espera, segurando o cotovelo direito com ar constrangido, a sacola a tiracolo no ombro esquerdo. O membro que descera do avião atrás dele, e que o ajudara a levantar-se quando caíra, colocou-lhe a pulseira diante de um telefone.

— Tem certeza de que não se machucou muito? — perguntou ela.

— Tenho, sim — garantiu, sorrindo. — Obrigado, e aproveite a visita, — E ao telefone: —AnaSG38P2823.

A mulher foi-se embora.

Houve um clarão antes da tela se definir e a ligação ser completada. De repente escureceu e não se iluminou mais. Ela foi transferida, pensou. Não está mais no continente. Esperou para ouvir a confirmação. Mas em vez disso:

— Um momento, não consigo...

E lá estava ela, ainda indefinida, sentada na beira da cama, de pijama, esfregando os olhos.

— Quem é? — perguntou.

Atrás dela um membro se virou. Era sábado de noite. Ou teria casado?

— Li RM — respondeu.

— Quem?

Ela olhou-o, inclinando-se um pouco, piscando os olhos. Era mais bonita do que ele se lembrava: estava mais velha, linda. E, depois, que olhos!

— Li RM — repetiu, forçando-se a um tom apenas cortês, típico de membro. — Não se lembra? De IND26110, lá por 162.

Ela contraiu a testa, nervosa, um instante.

— Ah, sim, lógico — sorriu. — Claro que me lembro. Como vai, Li?

— Muito bem. E você?

— Otimamente.

E parou de sorrir.

— Casou?

— Não. Que bom que você telefonou, Li. Eu quero agradecer-lhe, sabe? Por me ter ajudado.

— Agradeça a Uni.

— Não, não. A você. Um pouco atrasado.

Sorriu de novo.

— Desculpe ligar a esta hora. Estou de passagem por Afr, fui transferido.

— Não tem importância. Gostei muito.

— Onde você está? — perguntou.

— Em ’14509.

— É onde mora a minha irmã.

— Não diga.

— E, sim. Qual é o seu edifício?

— P51.

— O dela é A-não-sei-quanto.

O membro atrás dela sentou na cama e ela se voltou, dizendo-lhe qualquer coisa. Ele sorriu para Quem. Ela se virou de novo.

— Este é Li XE.

— Olá — saudou Quem, decorando '14509, P51; '14509, P51.

— Olá, irmão — fizeram os lábios de Li XE: sua voz não alcançava o aparelho.

— Que foi que houve com o seu braço? — perguntou Lilás.

Ele continuava segurando-o. Soltou-o.

— Nada — respondeu. — Eu caí ao descer do avião.

— Oh, que pena — ela olhou por cima do ombro dele. — Tem um membro aí esperando — preveniu. — Acho melhor a gente se despedir.

— Sim. Adeus. Gostei muito de revê-la. Você não mudou nada.

— Você também não. Adeus, Li.

Ela se levantou, estendeu a mão para o aparelho e a imagem desapareceu.

Ele desligou e cedeu lugar ao membro que esperava atrás.

Estava morta: um membro normal, sadio, deitada agora ao lado do seu namorado, em ’14509, P51. Como podia arriscar-se a lhe falar sobre alguma coisa que não fosse tão normal e sadia como ela? Passaria o dia com os pais e voltaria de avião para Usa.

No próximo domingo partiria de bicicleta e desta vez não daria meia volta.

Perambulou um pouco pela sala de espera. Havia um mapa geral de Afr na parede, com luzes nas principais cidades, ligadas por tênues linhas alaranjadas. Ao norte ficava ’14510, perto do lugar onde ela morava. A meio continente de distância de ’71330, que era onde ele se encontrava. Uma linha alaranjada ligava as duas luzes.

Olhou o quadro de horário dos vôos, acendendo e apagando, revisando os escalados para Domingo 18 fev. Tinha um que partia às 8h20m da noite para ’14510, quarenta minutos antes do avião que tomaria para USA33100.

Aproximou-se da vidraça que dava para o campo e ficou olhando os passageiros dirigindo-se em fila única para a escada rolante do avião que ele deixara. Um membro de túnica cor de laranja apareceu e aguardou ao lado do controle.

Virou-se de frente para a sala de espera. Estava quase vazia. Dois membros que tinham viajado no avião junto com ele, uma mulher segurando uma criança adormecida e um homem carregando duas sacolas, colocaram seus pulsos e o da criança no controle da porta que conduzia ao carroporto — sim, piscou três vezes — e saíram. Um membro de túnica cor de laranja, ajoelhado ao lado do chafariz, desatarraxava uma placa na parte inferior; outra empurrou uma enceradeira para um canto da sala de espera, tocou num controle — sim — e empurrou-a através de uma porta giratória.

Refletiu um instante, olhando o membro trabalhando no chafariz, e depois atravessou a sala, tocando no controle da porta que levava ao carroporto — sim — e saiu. Havia um carro para ’71334 à espera, já com três membros. Tocou no controle — sim — e entrou no carro, desculpando-se com os outros por tê-los feito esperar. A porta fechou-se e o carro partiu. Ele se sentou com a sacola no colo, pensativo.

Ao chegar ao apartamento dos pais, entrou sem fazer ruído, barbeou-se e depois acordou-os. Ficaram contentes, até mesmo felizes, em vê-lo.

Os três conversaram, tomaram café e voltaram a conversar. Pediram um telefonema para Paz, em Eur, que foi atendido. Falaram com ela, com o marido, e com os filhos, Beto, que tinha dez anos, e Yin, de oito. Depois, por sugestão dele, foram ao Museu dos Progressos da Família.

Terminado o almoço, ele dormiu três horas e por fim tomaram o monotrilho para os Jardins de Diversões. O pai entrou num jogo de vôlei e ele e a mãe sentaram num banco para assistir.

— Você está doente de novo? — perguntou-lhe ela.

Olhou-a.

— Não — respondeu. — Claro que não. Estou muito bem.

Ela olhou bem para ele. Tinha agora cinquenta e sete anos, o cabelo estava grisalho e a pele morena toda enrugada.

— Você esteve pensando em alguma coisa — disse. O dia todo.

— Eu estou bem. Por favor. A senhora é minha mãe, acredite em mim.

Olhou-o nos olhos, preocupada.

— Estou bem — repetiu.

Após uma pausa, ela retrucou:

— O.K., Quem.

Sentiu-se subitamente cheio de amor por ela. De amor e gratidão, com uma sensação de unidade filial. Pegou-a pelo ombro e beijou-lhe o rosto.

— Eu te amo, Suzu — disse.

Ela riu.

— Cristo e Wei — exclamou. — Que memória você tem!

— É porque sou sadio. Lembre-se disso, sim? Sou sadio e feliz. Quero que a senhora não se esqueça disso.

— Porquê?

— Porque sim.

Contou-lhes que o avião partia às oito.

— Despedir-nos-emos no carroporto — disse. O aeroporto vai estar atulhado de gente.

Mesmo assim, o pai queria ir. Mas a mãe disse que não, que ficariam em '334. Sentia-se cansada.

Às sete e meia, deu-lhes um beijo de despedida — primeiro no pai, depois na mãe, segredando-lhe ao ouvido: “Não se esqueça” — e entrou na fila de carros para o aeroporto de ’71330. O controle, quando tocou nele, piscou sim.


A sala de espera estava ainda mais repleta do que esperava que estivesse. Membros de túnicas brancas, amarelas e azul claro caminhavam, ficavam de pé, sentavam e esperavam na fila, alguns com sacola, outros sem. Uns poucos de túnica cor de laranja moviam-se no meio da multidão.

Olhou o quadro: o vôo das 8h20m para ’14510 apanharia os passageiros na pista dois. Os membros já estavam lá na fila, e além da vidraça, um avião fazia manobra para colocar-se junto de uma escada rolante. Sua porta abriu-se, deixando passar um membro, logo seguido por outro.

Quem abriu caminho entre a multidão até chegar à porta giratória no canto da sala, fingindo que tocava no controle e empurrando-a para sair: encontrou-se numa parte de depósito, onde havia engradados e caixas de papelão enfileirados sob uma luz ofuscante, semelhantes às comportas de memória de Uni. Tirou a sacola do ombro e escondeu-a entre uma caixa de papelão e a parede.

Seguiu adiante normalmente. Um carrinho com recipientes de aço passou por ele, empurrado por um membro de túnica cor de laranja que o olhou de relance, cumprimentando com a cabeça.

Retribuiu o aceno, continuou andando, e viu o membro empurrar o carrinho por um grande portão aberto e sair para o campo profusamente iluminado.

Tomou a direção de onde o membro tinha vindo, chegando a uma área em que membros de túnica cor de laranja colocavam recipientes de aço sobre a esteira de transporte de uma máquina de lavar, enchendo outros com refrigerantes e chá fumegante provenientes das torneiras de gigantescos cilindros. Seguiu adiante.

Fingiu tocar num controle e entrou numa sala cheia de túnicas comuns penduradas em ganchos. Dois membros despiam túnicas cor de laranja.

— Olá — saudou.

— Olá — responderam.

Dirigiu-se à porta de um armário e entreabriu-a: continha uma enceradeira e frascos de líquido verde.

— Onde estão as túnicas? — perguntou.

— Ali dentro — informou um deles, acenando com a cabeça para outro armário.

Foi até lá e abriu-o. Havia túnicas cor de laranja nas prateleiras. Biqueiras de calçado e pares de luvas grossas, tudo da mesma cor.

— De onde você é? — perguntou o mesmo.

— RUS50937 — mentiu, tirando uma túnica e um par de biqueiras. — Lá nós guardamos as túnicas ali.

— Elas devem ficar aí — teimou o membro, fechando a túnica branca.

— Já estive em Rus — disse o outro, que era uma mulher. — Tive dois trabalhos lá. O primeiro levou quatro anos e o segundo três.

Não se apressou em colocar as biqueiras, só terminando quando os dois jogaram as túnicas cor de laranja na lixeira e saíram.

Enfiou a túnica cor de laranja por cima da branca e fechou-a até o pescoço. Era mais grossa que a comum e possuía bolsos extras.

Examinou os outros armários, encontrou uma chave inglesa e um pedaço de paplão amarelo de bom tamanho.

Voltou ao lugar onde deixara a sacola, tirou-a e embrulhou-a no paplão. A porta giratória deu um encontrão nele.

— Desculpe — disse um membro, entrando. — Machucou-se?

— Não — respondeu, segurando a sacola embrulhada.

O membro de túnica cor de laranja seguiu adiante.

Esperou um pouco, observando-o, depois meteu a sacola debaixo do braço esquerdo e tirou a chave inglesa do bolso. Agarrou-a com a mão direita, de um jeito que esperava que parecesse natural.

Foi atrás do membro, depois dobrou e dirigiu-se ao portão que comunicava com o campo.

A escada rolante apoiada ao flanco do avião na pista dois estava vazia. Um carrinho, provavelmente o que tinha visto ser empurrado, achava-se parado ao pé dos degraus, junto do controle.

Havia outra escada rolante, sendo recolhida ao poço, e o avião que ela atendera já rodava, pronto para a decolagem. Devia ser o vôo das 8hl0 para Chi, provavelmente.

Agachou-se sobre um joelho, largando a sacola e a chave inglesa em cima do cimento, e simulou ter problema com a biqueira. Todo mundo na sala de espera estaria assistindo à decolagem do avião para Chi: era o momento em que ele subiria a escada rolante. Pernas cor de laranja passaram farfalhando a seu lado: um membro voltava aos hangares. Tirou a biqueira e tomou a enfiá-la, olhando o avião girar...

A decolagem começou. Juntou a sacola e a chave inglesa, levantou-se e caminhou normalmente. O clarão dos holofotes o enervava, mas disse consigo mesmo que ninguém o estava olhando, todo mundo prestando atenção ao avião. Dirigiu-se à escada rolante, fingiu tocar no controle — o carrinho ao lado o favorecia, justificando-lhe a falta de jeito — e pisou nos degraus ascendentes. Agarrou-se com força à sacola enrolada em paplão e ao cabo úmido da chave inglesa enquanto subia rapidamente até a porta aberta do avião. Saltou fora da escada rolante e entrou a bordo.

Dois membros com túnica cor de laranja estavam ocupados na despensa. Olharam na sua direção e ele acenou com a cabeça. Retribuíram-lhe o cumprimento. Desceu o corredor, rumo ao banheiro.

Entrou, deixando a porta aberta, e pousou a sacola no chão. Virou-se para a pia, experimentou as torneiras e bateu-as com a chave inglesa. Ajoelhou-se e fez o mesmo no cano de esgoto. Abriu as tenazes da chave inglesa e colocou-as em torno do cano.

Escutou a escada parar, e depois recomeçar. Inclinou-se para o lado de fora e espiou. Os membros tinham ido embora.

Largou a chave no chão, levantou-se, fechou a porta e abriu a túnica cor de laranja. Despiu-a, dobrou-a pelo comprido e enrolou-a numa trouxa tão compacta quanto pôde. Tornou a ajoelhar-se, desembrulhou a sacola e abriu-a. Guardou a túnica, dobrou o paplão amarelo e também meteu junto na sacola. Tirou as biqueiras das sandálias, apertou-as bem e enfiou num dos cantos da sacola. Incluiu a chave inglesa, esticou a tampa com força e comprimiu-a para fechar.

De sacola no ombro, lavou as mãos e o rosto com água fria. Seu coração batia depressa, mas sentia-se bem, entusiasmado, vivo. Olhou no espelho aquela sua cara com um olho verde e o outro castanho. Abaixo Uni!

Ouviu vozes de membros subindo a bordo do avião. Ficou junto da pia, enxugando as mãos que já estavam secas.

A porta se abriu, dando passagem a um menino de mais ou menos dez anos.

— Oi — disse Quem, secando as mãos. — O dia foi bom pra você?

— Foi, sim — respondeu o garoto.

Quem jogou a toalha na lixeira.

— É a primeira vez que você anda de avião?

— Não — disse o garoto, abrindo a túnica. — Já andei uma porção de vezes.

E sentou-se numa das toaletes.

— Até já — disse Quem, e saiu.

A terça parte do avião já estava cheia, e novos membros entravam. Ocupou a poltrona vazia mais próxima que havia no corredor, verificou se a sacola ficara bem fechada e acomodou-a embaixo do assento.

Na chegada faria a mesma coisa. Quando todo mundo estivesse descendo do avião, iria para o banheiro e vestiria a túnica cor de laranja. Quando os membros viessem a bordo com os recipientes de reabastecimento, o encontrariam trabalhando na pia e ele sairia depois deles. Na área de depósito, atrás de um engradado ou dentro de um armário, ele se livraria da túnica, das biqueiras e da chave inglesa. E depois fingiria tocar o controle para dar o fora do aeroporto e caminhar a pé até ’14509. Ficava a oito quilômetros a leste de ’510. Verificara de manhã num mapa do MPF, Tendo sorte, chegaria lá por volta da meia-noite.

— Que coisa estranha — exclamou o membro a seu lado.

Virou-se.

Ela estava olhando para o fundo do avião.

— Não há lugar vago pra aquele membro — disse.

O homem percorria lentamente o corredor, olhando para todos os lados. O avião estava lotado. Membros olhavam em torno, procurando dar-lhe ajuda.

— Tem que ter — disse Quem, levantando-se da poltrona e olhando ao redor. — Uni não pode ter cometido um engano.

— Não tem — disse a vizinha de assento. — Todos os lugares estão ocupados.

Formou-se um burburinho a bordo. De fato não havia lugar para o membro. Uma mulher pegou uma criança no colo e chamou-o.

O avião começou a se mover e as telas de televisão se iluminaram, com um programa sobre a geografia e os recursos de Afr.

Tentou prestar atenção ao programa, pensando que talvez lhe trouxesse alguma informação útil, mas não conseguiu. Se fosse descoberto e tratado agora, nunca mais ficaria lúcido. Desta vez Uni tomaria todas as precauções para que não entendesse nem o significado de mil folhas sobre mil pedras úmidas.


Chegou a ’14509 à meia-noite e vinte. Estava bem acordado, ainda segundo a hora de Usa, com o vigor da tarde.

Primeiro foi ao Pré-U, e depois ao ponto de bicicletas na praça mais próxima ao prédio P51. Fez duas viagens até o ponto de bicicletas e uma até o refeitório do P51 e seu centro de abastecimento.

Às três horas, entrou no quarto de Lilás. Olhou-a à luz da lanterna enquanto dormia — o rosto, o pescoço, mão morena pousada no travesseiro — e depois aproximou-se da escrivaninha e acendeu a lâmpada.

— Ana — chamou, parado ao pé da cama. — Ana, você tem que levantar agora.

Ela resmungou qualquer coisa.

— Você tem que levantar agora, Ana — repetiu. — Anda, levanta.

Ela se ergueu, cobrindo os olhos com a mão, queixando-se baixinho. Sentando-se, tirou a mão e fitou-o, reconhecendo-o e franzindo intrigada a testa.

— Eu quero que você venha dar uma volta comigo — disse.

— De bicicleta. Você não deve falar alto, nem pedir socorro.

Enfiou a mão no bolso e tirou um revólver. Empunhou-o do modo que lhe parecia adequado, com o indicador no gatilho, o resto da mão segurando o cabo, e a ponta fazendo mira no rosto dela.

— Eu a mato se você não fizer o que eu mando — acrescentou. — Não grite, Ana.


CONTINUA

TERCEIRA PARTE

 

FUGINDO


1

 

Velhas cidades foram demolidas, novas construídas. As novas tinham edifícios mais altos, praças mais amplas, parques mais vastos, monotrilhos cujos carros desenvolviam maior velocidade, embora com menos frequência.

Outras duas espaçonaves foram lançadas, em direção a Sírio B e Cisnes 61. As colônias marcianas, agora repovoadas e protegidas da devastação de 152, expandiam-se diariamente. O mesmo acontecendo com as colônias em Vênus e na Lua, os postos avançados em Titã e Mercúrio.

A hora de folga teve uma prolongação de cinco minutos. A ligação de telecomputadores pela voz começou a substituir as teclas e os bolos integrais ganharam um agradável segundo sabor. O limite de longevidade aumentou para 62.4.

Os membros trabalhavam e comiam, assistiam à televisão e dormiam. Cantavam, visitavam museus e passeavam pelos jardins de diversão.

No segundo centenário do nascimento de Wei, durante a parada numa cidade nova, um imenso estandarte com o retrato de Wei sorrindo teve um de seus mastros carregado por um membro de mais ou menos trinta anos, cujo aspeto era normal em todos os sentidos, a não ser pelo olho direito, que era verde em vez de castanho. Certa ocasião, há muito tempo, esse membro tinha adoecido, mas agora estava curado. Possuía trabalho, quarto, namorada e conselheiro. Sentia-se calmo e contente.

Um fato estranho lhe aconteceu durante a parada. Enquanto marchava, sorridente, segurando o mastro do estandarte, começou a ouvir um número que se repetia incessantemente no cérebro: Ana SG, trinta e oito P, vinte e oito, vinte e três. Ana SG, trinta e oito P, vinte e oito, vinte e três. Aquilo continuou martelando, em compasso com a marcha. Ficou imaginando a quem pertencia esse número e por que estaria repetindo-se daquela maneira em seu cérebro.

De repente lembrou-se: era do tempo de sua doença! Era o número de um dos outros doentes, o que se chamava Linda — não, Lilás. Por que, depois de tantos anos, voltava-lhe o seu número? Bateu os pés no chão com mais força, procurando não ouvir, e alegrou-se quando foi dado o sinal para cantar.

Contou ao conselheiro.

— Não tem a menor importância — disse ela. — Você provavelmente viu alguma coisa que fez lembrá-la. Talvez até ela mesma. Não há motivo pra temer recordações... a não ser, naturalmente, que se tornem incomodas. Se acontecer outra vez, me avise.

Mas não aconteceu. Ele estava curado, graças a Uni.


Um dia de Natal de Cristo, quando já tinha novo trabalho e morava noutra cidade, foi de bicicleta com a namorada e quatro outros membros a um parque distante. Levaram bolos e refrigerantes, e almoçaram no chão, perto de um arvoredo.

Ele tinha posto seu recipiente de refrigerante em cima de uma pedra quase lisa e, estendendo o braço para apanhá-lo enquanto conversava, derrubou-o. Os outros membros encheram-no de novo com o conteúdo dos seus.

Poucos minutos depois, ao dobrar o invólucro de seu bolo, reparou numa folha caída em cima da pedra úmida, com gotas de refrigerante brilhando na parte posterior, a haste enroscada para cima feito uma alça. Ele pegou a haste e levantou a folha: a pedra, embaixo, estava seca no formato oval da folha. O resto da pedra escurecera com o líquido, mas no lugar da folha continuava cinza e seca. Qualquer coisa naquele momento lhe pareceu significativa. Ficou sentado em silêncio, contemplando a folha que tinha na mão, o invólucro do bolo dobrado na outra e o contorno seco da folha em cima da pedra. Sua namorada falou-lhe algo e ele não pensou mais naquilo, juntando a folha e o invólucro e entregando-os ao membro encarregado do saco de detritos.

A imagem do contorno seco da folha em cima da pedra voltou-lhe à lembrança várias vezes naquele dia. E no dia seguinte também. Depois teve o seu tratamento e esqueceu o assunto. Em questão de semanas, porém, tomou a lembrar-se. Ficou imaginando por quê. Teria já levantado antes uma folha de cima de uma pedra úmida daquele mesmo jeito? Se tinha, não se recordava...

De vez em quando, ao caminhar por um parque ou, por estranho que pareça, ao aguardar na fila para fazer tratamento, a imagem do contorno seco da folha voltava-lhe à lembrança e o fazia franzir a testa.


Houve um terremoto. (Foi jogado longe da cadeira; a lente do microscópio quebrou e das profundezas do laboratório ele ouviu o som mais ensurdecedor de toda a sua vida.) Uma válvula- sismógrafo a meio continente de distância tinha emperrado sem que ninguém percebesse, explicou a televisão poucas noites depois. Aquilo jamais acontecera e não se repetiria mais. Constituía motivo de pesar, naturalmente, mas não era nada que causasse preocupações para o futuro.

Dezenas de prédios ruíram, centenas de membros morreram. Todos os centros médicos da cidade viram-se superlotados de feridos e mais da metade dos aparelhos de tratamento ficaram danificados, ocasionando um atraso de dez dias em cada um.

Alguns dias depois da data em que devia ter tido o seu, pensou em Lilás e em como a tinha amado de uma maneira diferente e mais — mais excitantemente — do que amara todas as outras. Ele havia querido contar uma coisa a ela. O que era? Ah sim, a propósito das ilhas. As ilhas que descobrira escondidas no mapa do Pré-U. As ilhas dos incuráveis...

O conselheiro telefonou-lhe.

— Você está bem? — perguntou.

— Acho que não, Karl — respondeu. — Preciso do meu tratamento.

— Espere um instante — disse o conselheiro, afastando- se e falando baixinho ao telecomputador. Não demorou muito, voltou. — Você pode fazê-lo hoje de noite às sete e meia — anunciou, — mas terá de ir ao centro médico em T24.

Às sete e meia ele estava esperando numa longa fila, pensando em Lilás, procurando recordar exatamente como ela era. Quando chegou perto dos aparelhos de tratamento, voltou-lhe à memória a imagem do contorno seco da folha em cima da pedra.


Lilás telefonou-lhe (ela morava ali mesmo, no próprio edifício) e ele foi para o quarto dela, que era a sala de depósito no Pré-U. Jóias verdes pendiam-lhe das orelhas e cintilavam em torno do pescoço moreno-rosa: estava com um vestido de fazenda verde fulgurante que expunha os seios cônicos macios de bicos nacarados.

— Bon soir, Quem — disse, sorrindo. — Comment vas-tu? Je m’ertnuyais tellement de toi.

Ele se aproximou, tomou-a nos braços e beijou-a — os lábios eram quentes e macios, a boca entreaberta — e acordou no escuro, desapontado: fora um sonho, apenas um sonho.

Mas estranhamente, assustadoramente, tudo persistia: o cheiro do seu perfume (parfum), o gosto do fumo, o som das canções de Pardal, o desejo por Lilás, a raiva contra Rei, o ressentimento contra Uni, a tristeza pela Família e a felicidade de sentir, de estar vivo e lúcido.

E de manhã faria o tratamento e aquilo terminaria. Às oito horas. Acendeu a luz, olhou o relógio: 4h54m. Em pouco mais de três horas...

Apagou a luz de novo e ficou deitado no escuro, de olhos abertos. Não queria perder aquilo. Doente ou não, queria guardar suas recordações, a capacidade de explorá-las e saboreá-las. Não queria pensar nas ilhas — não, nunca: isso era doença mesmo — porém queria pensar em Lilás, nas reuniões do grupo na sala de depósito cheia de relíquias e, de vez em quando, talvez, sonhar outra vez.

Mas o tratamento viria dentro de três horas e tudo terminaria. Não havia nada que pudesse fazer — a não ser esperar novo terremoto, & quais eram as possibilidades de que isso acontecesse? As válvulas-sismógrafos funcionavam perfeitamente desde então e continuariam funcionando perfeitamente no futuro. E o que, além de um terremoto, podia adiar o tratamento? Nada. Absolutamente nada. Não com Uni sabendo que ele já tinha mentido antes para conseguir um adiamento.

O contorno da folha seca sobre a pedra voltou-lhe à lembrança, mas enxotou-o para pensar em Lilás, para vê-la como a havia visto no sonho, para não desperdiçar suas três breves horas de lucidez. Tinha esquecido como eram grandes os olhos dela, como era lindo o seu sorriso, a sua pele morena-rosa, como era comovente a sua sinceridade. Tinha esquecido tanta coisa mais: o prazer de fumar, o entusiasmo em decifrar Français...

O contorno seco da folha voltou, e pensou nele, irritado tentando descobrir por que se gravara na lembrança, tentando livrar-se dele de uma vez por todas. Recapitulou o momento ridiculamente inexplicável: visualizou a folha de novo, coberta de gotas brilhantes de bebida, seus dedos levantando-a pela haste, enquanto a outra mão segurava o invólucro dobrado do bolo, e o oval seco e cinzento sobre a pedra molhada de refrigerante escuro. Tinha derramado a bebida, ia folha ficara ali, e por baixo a pedra continuava...

Soergueu-se na cama e pegou com força o braço esquerdo coberto pelo pijama.

— Cristo e Wei — exclamou, assustado.


Levantou-se antes do primeiro carrilhão, vestiu-se e arrumou a cama.

Foi o primeiro a chegar ao refeitório. Comeu e bebeu, e voltou para o quarto com o invólucro do bolo dobrado displicentemente no bolso.

Desdobrou-o, colocou-o em cima da escrivaninha e alisou- o com a mão. Dobrou o invólucro laminado bem ao meio, e a metade em três. Apertou o maço quanto pôde e apalpou-o: era fino, apesar das seis dobras. Fino demais? Largou-o de novo.

Dirigiu-se ao banheiro, tirou algodão e o rolo de esparadrapo do estojo de medicamentos que guardava no armário. Trouxe-os de volta à escrivaninha.

Pôs uma camada de algodão sobre o maço do invólucro — uma camada menor que o próprio maço — e começou a cobrir o algodão e o maço com longas tiras superpostas de esparadrapo da cor da pele. Prendeu de leve as pontas do esparadrapo em cima da escrivaninha.

A porta se abriu e ele se virou, escondendo o que estava fazendo e guardando o rolo de esparadrapo no bolso. Era Karl TK, vizinho de quarto.

— Pronto pro café? — perguntou.

— Eu já tomei — respondeu.

— Ah. Até já, então.

— O.K. — disse, e sorriu.

Karl fechou a porta.

Terminou de passar o esparadrapo e depois desprendeu as pontas de cima da escrivaninha, levando para o banheiro a atadura que tinha feito. Colocou-a com o lado do invólucro laminado para cima na beira da pia e arregaçou a manga.

Pegou a atadura e encostou o invólucro cuidadosamente à parte interna do seu braço, onde o disco da infusão tocaria. Agarrou a atadura com força e colou as pontas do esparadrapo contra a pele.

Uma folha. Um escudo. Daria certo?

Se desse, pensaria unicamente em Lilás, não nas ilhas. Se se surpreendesse pensando nelas, contaria ao conselheiro.

Abaixou a manga.

Às oito horas, entrou na fila na sala de tratamento. Ficou de braços cruzados, com a mão por cima da atadura encoberta pela manga — para esquentá-la, caso o disco de infusão fosse sensível à temperatura.

Estou doente, pensou. Vou pegar tudo quanto é doença: câncer, varíola, cólera, tudo. Crescerão pêlos no meu rosto!

Faria aquilo só desta vez. Ao primeiro sintoma de anormalidade, correria ao conselheiro.

Talvez não desse certo.

Chegou a sua vez. Arregaçou a manga até o cotovelo, enfiou o braço bem no fundo do orifício revestido de borracha, depois puxou a manga até o ombro e no mesmo instante deslizou o braço todo no interior do aparelho.

Sentiu o controle localizando-lhe a pulseira e a leve pressão do disco de infusão sobre a atadura de algodão... Não aconteceu nada.

— Você já está pronto — advertiu o membro seguinte.

A luz azul do aparelho estava acesa.

— Ah — exclamou, abaixando a manga enquanto retirava o braço.

Tinha de rumar direto para o trabalho.

Terminado o almoço, voltou ao quarto e, no banheiro, arregaçou a manga e tirou a atadura. O invólucro laminado estava intato, mas a pele sempre ficava assim após o tratamento. Arrancou do esparadrapo o invólucro dobrado.

O algodão tinha ficado cinzento e fosco. Espremeu a atadura em cima da pia e um líquido aquoso escorreu de dentro dela.


Recuperou a lucidez, cada dia mais forte. Recuperou a memória, em pormenores nítidos, torturantes.

Recuperou o sentimento. O rancor contra Uni converteu-se em ódio; o desejo por Lilás transformou-se em fome insaciável.

Recorreu novamente às velhas simulações: era normal no trabalho, normal com o conselheiro, normal com a namorada. Mas dia a dia aquele fingimento ficava mais irritante, mais insuportável de manter.

No tratamento subsequente, fez outra atadura com invólucro de bolo, algodão e esparadrapo; e dela espremeu outro fio de líquido aquoso.

Apareceram-lhe pontinhos pretos no queixo, no rosto e acima do lábio superior — pêlos incipientes. Desmontou a tesoura, prendeu com arame uma das lâminas ao cabo e de manhã, antes do primeiro carrilhão, esfregava sabonete no rosto e raspava fora os pontinhos.

Sonhava todas as noites. As vezes os sonhos traziam-lhe orgasmos.

Simular calma e contentamento, humildade e bondade, tornava-se cada vez mais exasperante. No dia de Natal de Marx, numa praia, pôs-se a caminhar pela areia e de repente desandou a correr, a correr na frente dos membros que caminhavam a seu lado, a correr para longe da Família que tomava banho de sol, que comia bolos. Correu até que a praia se estreitou em pedras caídas e continuou correndo no meio da arrebentação e por cima de antigos contrafortes escorregadios. Então parou e sozinho e nu entre o oceano e os elevados penhascos cerrou os punhos e esmurrou os rochedos, gritando obscenidades para o claro céu azul, torcendo e tentando arrancar a corrente inquebrável de sua pulseira.

Era 169, dia 6 de maio. Tinha perdido seis anos e meio. Seis anos e meio! Estava com trinta e quatro. Morava em USA- 90058.

E onde estaria ela? Ainda em Ind, ou noutro lugar qualquer? Na Terra ou numa espaçonave?

E estaria viva, como ele, ou morta, como todos os membros da Família?


2

 

Agora era mais fácil, agora que tinha machucado as mãos e gritado. Mais fácil de caminhar com um sorriso de contentamento, de assistir à televisão e olhar pelo microscópio, de sentar com a namorada nos concertos de anfiteatro.

Pensando o tempo todo no que fazer...


— Alguma preocupação? — perguntou-lhe o conselheiro.

— Bem, um pouco — respondeu.

— Achei que você não estava com bom aspeto. O que é?

— Olha, sabe, eu andei muito doente alguns anos atrás...

— Sei.

— E agora um dos membros que esteve doente junto comigo, o que me deixou doente, pra ser mais preciso, está morando aqui no prédio. Será que não daria pra eu me mudar pra outro lugar?

O conselheiro olhou-o com ar de dúvida.

Estou meio surpreso — disse ele, — que o UniComp tenha deixado vocês dois juntos de novo.— Eu também — disse Quem. — Mas ela está morando aqui. Encontrei-a ontem à noite no refeitório e hoje de manhã outra vez.

— Você falou com ela?

— Não.

— Vou informar-me. Se ela estiver aqui e isso o incomoda, evidente que nós o mudaremos pra outro lugar. Ou então ela. Qual é o número dela?

— Não me lembro por completo — respondeu Quem. — Ana ST38P.


O conselheiro telefonou-lhe no dia seguinte de manhã cedo.

— Você se enganou, Li — disse. — Não foi aquele membro que você viu. E por falar nisso, ela é Ana SG, não ST.

— Tem certeza de que ela não mora aqui?

— Absoluta. Ela está em Afr.

— Que alívio.

— E Li, em vez de você fazer tratamento na quinta, você vai fazer hoje,

— É mesmo?

— É. A uma e meia.

— ‘Tá certo — disse. — Obrigado, Jesus.

— Agradeça a Uni.

Tinha três invólucros de bolo dobrados e escondidos no fundo da gaveta da escrivaninha. Tirou um, foi ao banheiro, e começou a preparar a atadura.


Ela estava em Afr. Era mais perto do que Ind, mas sempre a um oceano de distância. E da largura de Usa, aliás.

Os pais dele moravam lá, em ’71334. Esperaria algumas semanas e depois pediria uma visita. Fazia pouco menos de dois anos que não os via: havia bastante possibilidade de que o pedido fosse atendido. Chegando em Afr, telefonaria a ela — sob o pretexto de ter ferido o braço, conseguiria que uma criança tocasse a placa de um telefone de rua para ele — terminando por descobrir onde ela se encontrava exatamente. Alô, Ana SG. Espero que você esteja tão bem quanto eu. Qual é a cidade em que você mora?

E depois, como faria? Iria a pé até lá? Pediria uma passagem de carro para algum lugar vizinho, onde houvesse uma instalação relacionada de certa forma com genética? Uni não perceberia o que ele andava tramando?

Mas mesmo que tudo-isso acontecesse, mesmo que conseguisse chegar até ela, o que faria depois? Era esperar demais que ela também houvesse levantado uma folha de uma pedra molhada algum dia. Não, ódio, na certa estaria normal, tão normal como ele próprio estivera até há bem poucos meses. E à primeira palavra anormal que proferisse, o recolheria a um centro médico. Cristo, Marx, Wood e Wei, que podia ele fazer?

Esquecê-la: era uma solução. Partir por sua conta, agora, para a ilha livre mais próxima. AH haveria mulheres, provavelmente aos montes, e algumas decerto teriam a pele rosa-morena, olhos grandes menos-oblíquos-que-o-normal e seios cônicos de aspeto macio. Valeria a pena arriscar a lucidez conquistada em troca da remota possibilidade de despertar a dela?

Embora ela tivesse despertado a sua, agachando-se à sua frente com as mãos pousadas em seus joelhos...

Não ao risco da própria, contudo. Ou, pelo menos, não com um risco tão grande.

Foi ao Museu da Pré-U: da mesma maneira antiga, à noite, sem tocar nos controles. Era igual ao de IND26110. Algumas peças do mostruário variavam um pouco, expostas em lugares diferentes.

Encontrou outro mapa da Pré-U, este feito em 1937, com os mesmos oito retângulos azuis colados. A parte traseira havia sido cortada e presa toscamente com esparadrapo: alguém passara por ali antes dele. A ideia era empolgante: alguém tinha descoberto as ilhas, talvez estivesse a caminho de uma naquele mesmo momento.

Noutra sala de depósito — esta com apenas uma mesa, algumas caixas de papelão e uma máquina semelhante a uma cabina, com uma série de minúsculas alavancas — ele novamente segurou o mapa contra a luz, novamente viu as ilhas escondidas. Copiou no papel a mais próxima, “Cuba”, ao largo da ponta sudeste de Usa. E caso decidisse arriscar-se a encontrar Lilás, copiou o contorno de Afr e as duas ilhas que ficavam perto, “Madagascar” ao leste e a pequena “Majorca” ao norte.

Uma das caixas de papelão continha livros. Encontrou um em Français:. Spinoza et ses Contemporains. Spinoza e seus Contemporâneos. Deu uma olhada nas páginas e tirou-o.

Pôs o mapa remoldurado no lugar e foi passar o museu em revista. Tirou uma bússola de pulso que parecia ainda estar funcionando, uma “navalha” com cabo de marfim e a pedra para afiá-la.

— Não demora muito seremos transferidos — avisou o chefe de seção um dia à hora do almoço. GL4 vai substitui-nos.

— Tomara que eu vá pra Afr — disse. — Meus pais estão lá.

Era o tipo do comentário arriscado, ligeiramente impróprio para um membro, mas talvez o chefe de seção exercesse influência indireta na escalação de trabalho.

Sua namorada foi transferida e ele acompanhou-a ao aeroporto para despedir-se — e verificar se era possível entrar a bordo de um avião sem a permissão de Uni. Pelo jeito, não: a compacta fila única de passageiros não permitiria o toque falso do controle e quando chegasse a hora em que o último membro da fila estivesse tocando-o, um membro de túnica cor de laranja achava-se a seu lado, pronto para fazer parar a escada rolante e devolvê-la ao respetivo poço. Sair de um avião apresentava a mesma dificuldade: o passageiro que ficava por último tocava no controle enquanto dois membros de túnica cor de laranja observavam. Depois invertiam a escada rolante, tocavam no controle, e entravam a bordo com recipientes de aço para recolher os restos de bolo e bebida. Talvez conseguisse entrar num avião que estivesse aguardando no espaço dos hangares — e esconder-se dentro, embora não se lembrasse de nenhum esconderijo em aviões — mas como prever o destino eventual do vôo?

Via aérea, portanto, era impossível, até que Uni dissesse que ele podia viajar.

Pediu licença para visitar os pais. Não foi atendido.

Anunciaram novas transferências para a sua seção. Dois 663 foram enviados a Afr, mas ele não: tinha de ir para USA-36104. Estudou o avião durante o vôo. Não havia esconderijo: apenas a longa cabina cheia de poltronas, o banheiro na parte da frente, o compartimento de bolos e bebidas na retaguarda, e as telas de televisão, com um ator interpretando o papel de Marx em todas elas.

USA36104 ficava a sudeste, perto da ponta de Usa, com Cuba logo após. Podia sair de bicicleta um domingo, passar de cidade em cidade, dormindo nos parques intermediários e indo buscar bolos e bebida depois que anoitecesse. Eram mil e duzentos quilômetros, segundo o mapa do MPF. Em ’33037 ele podia encontrar um barco, ou negociantes vindo à costa, como os de ARG20400 de que Rei lhe falara.

Lilás, pensou, que mais posso fazer?

Pediu de novo permissão para visitar Afr e de novo não foi atendido.

Começou a andar de bicicleta aos domingos e durante a hora de folga, para exercitar as pernas. Foi ao Pré-U de ’36104 e descobriu uma bússola melhor e uma faca de fio dentado que servia para cortar galhos nos parques. Verificou o mapa que havia: a parte traseira estava intata, fechada. Escreveu por cima: Sim, existem ilhas onde os membros são livres. Abaixo Uni!

Um domingo, de manhã cedo, rumou para Cuba, com a bússola e um mapa copiado em um de seus bolsos. Na cesta da bicicleta, levava A Sabedoria Viva de Wei em cima de um cobertor dobrado, um recipiente com bebida e um bolo. Dentro do cobertor estava a sua sacola de viagem, que continha a navalha, a pedra de afiar, um sabonete, a tesoura, dois bolos, a faca, uma lanterna, algodão, um rolo de esparadrapo, uma fotografia de seus pais e Papai Jan, e uma muda extra de túnica. Debaixo da manga direita uma atadura cobria-lhe o braço, embora se fosse levado para tratamento seria quase certo que a descobririam. Usava óculos escuros e sorria, pedalando rumo a sudeste entre outros ciclistas pela estrada que conduzia a ’36081. Passavam carros chispando em sequência uniforme sobre a autopista paralela à estrada. De vez em quando zuniam pedregulhos, chutados pelos jatos aéreos dos carros contra a linha divisória de metal.

De hora em hora, mais ou menos, ele parava e descansava um pouco. Comia metade de um bolo e bebia certa quantidade do refrigerante. Pensava em Cuba e no que tiraria em ’33037 para negociar lá. Pensava nas mulheres em Cuba. Provavelmente se sentiriam atraídas por um recém-chegado. E nenhuma estaria sob tratamento, apaixonadas como nem era possível imaginar, tão bonitas como Lilás ou até mais...

Viajou cinco horas; de repente deu meia volta e refez o mesmo percurso.

Forçou-se a se concentrar no trabalho. Era o funcionário 663 da seção de pediatria de um centro médico. O tipo do serviço tedioso, com intermináveis exames de genes e mínimas variações, o tipo do serviço do qual nunca seria transferido. Ficaria ali para o resto da vida.

De mês em mês pedia permissão para visitar os pais em

Afr.

Em fevereiro de 170 o pedido foi atendido.


Saiu do avião às quatro da madrugada, hora local, e foi para a sala de espera, segurando o cotovelo direito com ar constrangido, a sacola a tiracolo no ombro esquerdo. O membro que descera do avião atrás dele, e que o ajudara a levantar-se quando caíra, colocou-lhe a pulseira diante de um telefone.

— Tem certeza de que não se machucou muito? — perguntou ela.

— Tenho, sim — garantiu, sorrindo. — Obrigado, e aproveite a visita, — E ao telefone: —AnaSG38P2823.

A mulher foi-se embora.

Houve um clarão antes da tela se definir e a ligação ser completada. De repente escureceu e não se iluminou mais. Ela foi transferida, pensou. Não está mais no continente. Esperou para ouvir a confirmação. Mas em vez disso:

— Um momento, não consigo...

E lá estava ela, ainda indefinida, sentada na beira da cama, de pijama, esfregando os olhos.

— Quem é? — perguntou.

Atrás dela um membro se virou. Era sábado de noite. Ou teria casado?

— Li RM — respondeu.

— Quem?

Ela olhou-o, inclinando-se um pouco, piscando os olhos. Era mais bonita do que ele se lembrava: estava mais velha, linda. E, depois, que olhos!

— Li RM — repetiu, forçando-se a um tom apenas cortês, típico de membro. — Não se lembra? De IND26110, lá por 162.

Ela contraiu a testa, nervosa, um instante.

— Ah, sim, lógico — sorriu. — Claro que me lembro. Como vai, Li?

— Muito bem. E você?

— Otimamente.

E parou de sorrir.

— Casou?

— Não. Que bom que você telefonou, Li. Eu quero agradecer-lhe, sabe? Por me ter ajudado.

— Agradeça a Uni.

— Não, não. A você. Um pouco atrasado.

Sorriu de novo.

— Desculpe ligar a esta hora. Estou de passagem por Afr, fui transferido.

— Não tem importância. Gostei muito.

— Onde você está? — perguntou.

— Em ’14509.

— É onde mora a minha irmã.

— Não diga.

— E, sim. Qual é o seu edifício?

— P51.

— O dela é A-não-sei-quanto.

O membro atrás dela sentou na cama e ela se voltou, dizendo-lhe qualquer coisa. Ele sorriu para Quem. Ela se virou de novo.

— Este é Li XE.

— Olá — saudou Quem, decorando '14509, P51; '14509, P51.

— Olá, irmão — fizeram os lábios de Li XE: sua voz não alcançava o aparelho.

— Que foi que houve com o seu braço? — perguntou Lilás.

Ele continuava segurando-o. Soltou-o.

— Nada — respondeu. — Eu caí ao descer do avião.

— Oh, que pena — ela olhou por cima do ombro dele. — Tem um membro aí esperando — preveniu. — Acho melhor a gente se despedir.

— Sim. Adeus. Gostei muito de revê-la. Você não mudou nada.

— Você também não. Adeus, Li.

Ela se levantou, estendeu a mão para o aparelho e a imagem desapareceu.

Ele desligou e cedeu lugar ao membro que esperava atrás.

Estava morta: um membro normal, sadio, deitada agora ao lado do seu namorado, em ’14509, P51. Como podia arriscar-se a lhe falar sobre alguma coisa que não fosse tão normal e sadia como ela? Passaria o dia com os pais e voltaria de avião para Usa.

No próximo domingo partiria de bicicleta e desta vez não daria meia volta.

Perambulou um pouco pela sala de espera. Havia um mapa geral de Afr na parede, com luzes nas principais cidades, ligadas por tênues linhas alaranjadas. Ao norte ficava ’14510, perto do lugar onde ela morava. A meio continente de distância de ’71330, que era onde ele se encontrava. Uma linha alaranjada ligava as duas luzes.

Olhou o quadro de horário dos vôos, acendendo e apagando, revisando os escalados para Domingo 18 fev. Tinha um que partia às 8h20m da noite para ’14510, quarenta minutos antes do avião que tomaria para USA33100.

Aproximou-se da vidraça que dava para o campo e ficou olhando os passageiros dirigindo-se em fila única para a escada rolante do avião que ele deixara. Um membro de túnica cor de laranja apareceu e aguardou ao lado do controle.

Virou-se de frente para a sala de espera. Estava quase vazia. Dois membros que tinham viajado no avião junto com ele, uma mulher segurando uma criança adormecida e um homem carregando duas sacolas, colocaram seus pulsos e o da criança no controle da porta que conduzia ao carroporto — sim, piscou três vezes — e saíram. Um membro de túnica cor de laranja, ajoelhado ao lado do chafariz, desatarraxava uma placa na parte inferior; outra empurrou uma enceradeira para um canto da sala de espera, tocou num controle — sim — e empurrou-a através de uma porta giratória.

Refletiu um instante, olhando o membro trabalhando no chafariz, e depois atravessou a sala, tocando no controle da porta que levava ao carroporto — sim — e saiu. Havia um carro para ’71334 à espera, já com três membros. Tocou no controle — sim — e entrou no carro, desculpando-se com os outros por tê-los feito esperar. A porta fechou-se e o carro partiu. Ele se sentou com a sacola no colo, pensativo.

Ao chegar ao apartamento dos pais, entrou sem fazer ruído, barbeou-se e depois acordou-os. Ficaram contentes, até mesmo felizes, em vê-lo.

Os três conversaram, tomaram café e voltaram a conversar. Pediram um telefonema para Paz, em Eur, que foi atendido. Falaram com ela, com o marido, e com os filhos, Beto, que tinha dez anos, e Yin, de oito. Depois, por sugestão dele, foram ao Museu dos Progressos da Família.

Terminado o almoço, ele dormiu três horas e por fim tomaram o monotrilho para os Jardins de Diversões. O pai entrou num jogo de vôlei e ele e a mãe sentaram num banco para assistir.

— Você está doente de novo? — perguntou-lhe ela.

Olhou-a.

— Não — respondeu. — Claro que não. Estou muito bem.

Ela olhou bem para ele. Tinha agora cinquenta e sete anos, o cabelo estava grisalho e a pele morena toda enrugada.

— Você esteve pensando em alguma coisa — disse. O dia todo.

— Eu estou bem. Por favor. A senhora é minha mãe, acredite em mim.

Olhou-o nos olhos, preocupada.

— Estou bem — repetiu.

Após uma pausa, ela retrucou:

— O.K., Quem.

Sentiu-se subitamente cheio de amor por ela. De amor e gratidão, com uma sensação de unidade filial. Pegou-a pelo ombro e beijou-lhe o rosto.

— Eu te amo, Suzu — disse.

Ela riu.

— Cristo e Wei — exclamou. — Que memória você tem!

— É porque sou sadio. Lembre-se disso, sim? Sou sadio e feliz. Quero que a senhora não se esqueça disso.

— Porquê?

— Porque sim.

Contou-lhes que o avião partia às oito.

— Despedir-nos-emos no carroporto — disse. O aeroporto vai estar atulhado de gente.

Mesmo assim, o pai queria ir. Mas a mãe disse que não, que ficariam em '334. Sentia-se cansada.

Às sete e meia, deu-lhes um beijo de despedida — primeiro no pai, depois na mãe, segredando-lhe ao ouvido: “Não se esqueça” — e entrou na fila de carros para o aeroporto de ’71330. O controle, quando tocou nele, piscou sim.


A sala de espera estava ainda mais repleta do que esperava que estivesse. Membros de túnicas brancas, amarelas e azul claro caminhavam, ficavam de pé, sentavam e esperavam na fila, alguns com sacola, outros sem. Uns poucos de túnica cor de laranja moviam-se no meio da multidão.

Olhou o quadro: o vôo das 8h20m para ’14510 apanharia os passageiros na pista dois. Os membros já estavam lá na fila, e além da vidraça, um avião fazia manobra para colocar-se junto de uma escada rolante. Sua porta abriu-se, deixando passar um membro, logo seguido por outro.

Quem abriu caminho entre a multidão até chegar à porta giratória no canto da sala, fingindo que tocava no controle e empurrando-a para sair: encontrou-se numa parte de depósito, onde havia engradados e caixas de papelão enfileirados sob uma luz ofuscante, semelhantes às comportas de memória de Uni. Tirou a sacola do ombro e escondeu-a entre uma caixa de papelão e a parede.

Seguiu adiante normalmente. Um carrinho com recipientes de aço passou por ele, empurrado por um membro de túnica cor de laranja que o olhou de relance, cumprimentando com a cabeça.

Retribuiu o aceno, continuou andando, e viu o membro empurrar o carrinho por um grande portão aberto e sair para o campo profusamente iluminado.

Tomou a direção de onde o membro tinha vindo, chegando a uma área em que membros de túnica cor de laranja colocavam recipientes de aço sobre a esteira de transporte de uma máquina de lavar, enchendo outros com refrigerantes e chá fumegante provenientes das torneiras de gigantescos cilindros. Seguiu adiante.

Fingiu tocar num controle e entrou numa sala cheia de túnicas comuns penduradas em ganchos. Dois membros despiam túnicas cor de laranja.

— Olá — saudou.

— Olá — responderam.

Dirigiu-se à porta de um armário e entreabriu-a: continha uma enceradeira e frascos de líquido verde.

— Onde estão as túnicas? — perguntou.

— Ali dentro — informou um deles, acenando com a cabeça para outro armário.

Foi até lá e abriu-o. Havia túnicas cor de laranja nas prateleiras. Biqueiras de calçado e pares de luvas grossas, tudo da mesma cor.

— De onde você é? — perguntou o mesmo.

— RUS50937 — mentiu, tirando uma túnica e um par de biqueiras. — Lá nós guardamos as túnicas ali.

— Elas devem ficar aí — teimou o membro, fechando a túnica branca.

— Já estive em Rus — disse o outro, que era uma mulher. — Tive dois trabalhos lá. O primeiro levou quatro anos e o segundo três.

Não se apressou em colocar as biqueiras, só terminando quando os dois jogaram as túnicas cor de laranja na lixeira e saíram.

Enfiou a túnica cor de laranja por cima da branca e fechou-a até o pescoço. Era mais grossa que a comum e possuía bolsos extras.

Examinou os outros armários, encontrou uma chave inglesa e um pedaço de paplão amarelo de bom tamanho.

Voltou ao lugar onde deixara a sacola, tirou-a e embrulhou-a no paplão. A porta giratória deu um encontrão nele.

— Desculpe — disse um membro, entrando. — Machucou-se?

— Não — respondeu, segurando a sacola embrulhada.

O membro de túnica cor de laranja seguiu adiante.

Esperou um pouco, observando-o, depois meteu a sacola debaixo do braço esquerdo e tirou a chave inglesa do bolso. Agarrou-a com a mão direita, de um jeito que esperava que parecesse natural.

Foi atrás do membro, depois dobrou e dirigiu-se ao portão que comunicava com o campo.

A escada rolante apoiada ao flanco do avião na pista dois estava vazia. Um carrinho, provavelmente o que tinha visto ser empurrado, achava-se parado ao pé dos degraus, junto do controle.

Havia outra escada rolante, sendo recolhida ao poço, e o avião que ela atendera já rodava, pronto para a decolagem. Devia ser o vôo das 8hl0 para Chi, provavelmente.

Agachou-se sobre um joelho, largando a sacola e a chave inglesa em cima do cimento, e simulou ter problema com a biqueira. Todo mundo na sala de espera estaria assistindo à decolagem do avião para Chi: era o momento em que ele subiria a escada rolante. Pernas cor de laranja passaram farfalhando a seu lado: um membro voltava aos hangares. Tirou a biqueira e tomou a enfiá-la, olhando o avião girar...

A decolagem começou. Juntou a sacola e a chave inglesa, levantou-se e caminhou normalmente. O clarão dos holofotes o enervava, mas disse consigo mesmo que ninguém o estava olhando, todo mundo prestando atenção ao avião. Dirigiu-se à escada rolante, fingiu tocar no controle — o carrinho ao lado o favorecia, justificando-lhe a falta de jeito — e pisou nos degraus ascendentes. Agarrou-se com força à sacola enrolada em paplão e ao cabo úmido da chave inglesa enquanto subia rapidamente até a porta aberta do avião. Saltou fora da escada rolante e entrou a bordo.

Dois membros com túnica cor de laranja estavam ocupados na despensa. Olharam na sua direção e ele acenou com a cabeça. Retribuíram-lhe o cumprimento. Desceu o corredor, rumo ao banheiro.

Entrou, deixando a porta aberta, e pousou a sacola no chão. Virou-se para a pia, experimentou as torneiras e bateu-as com a chave inglesa. Ajoelhou-se e fez o mesmo no cano de esgoto. Abriu as tenazes da chave inglesa e colocou-as em torno do cano.

Escutou a escada parar, e depois recomeçar. Inclinou-se para o lado de fora e espiou. Os membros tinham ido embora.

Largou a chave no chão, levantou-se, fechou a porta e abriu a túnica cor de laranja. Despiu-a, dobrou-a pelo comprido e enrolou-a numa trouxa tão compacta quanto pôde. Tornou a ajoelhar-se, desembrulhou a sacola e abriu-a. Guardou a túnica, dobrou o paplão amarelo e também meteu junto na sacola. Tirou as biqueiras das sandálias, apertou-as bem e enfiou num dos cantos da sacola. Incluiu a chave inglesa, esticou a tampa com força e comprimiu-a para fechar.

De sacola no ombro, lavou as mãos e o rosto com água fria. Seu coração batia depressa, mas sentia-se bem, entusiasmado, vivo. Olhou no espelho aquela sua cara com um olho verde e o outro castanho. Abaixo Uni!

Ouviu vozes de membros subindo a bordo do avião. Ficou junto da pia, enxugando as mãos que já estavam secas.

A porta se abriu, dando passagem a um menino de mais ou menos dez anos.

— Oi — disse Quem, secando as mãos. — O dia foi bom pra você?

— Foi, sim — respondeu o garoto.

Quem jogou a toalha na lixeira.

— É a primeira vez que você anda de avião?

— Não — disse o garoto, abrindo a túnica. — Já andei uma porção de vezes.

E sentou-se numa das toaletes.

— Até já — disse Quem, e saiu.

A terça parte do avião já estava cheia, e novos membros entravam. Ocupou a poltrona vazia mais próxima que havia no corredor, verificou se a sacola ficara bem fechada e acomodou-a embaixo do assento.

Na chegada faria a mesma coisa. Quando todo mundo estivesse descendo do avião, iria para o banheiro e vestiria a túnica cor de laranja. Quando os membros viessem a bordo com os recipientes de reabastecimento, o encontrariam trabalhando na pia e ele sairia depois deles. Na área de depósito, atrás de um engradado ou dentro de um armário, ele se livraria da túnica, das biqueiras e da chave inglesa. E depois fingiria tocar o controle para dar o fora do aeroporto e caminhar a pé até ’14509. Ficava a oito quilômetros a leste de ’510. Verificara de manhã num mapa do MPF, Tendo sorte, chegaria lá por volta da meia-noite.

— Que coisa estranha — exclamou o membro a seu lado.

Virou-se.

Ela estava olhando para o fundo do avião.

— Não há lugar vago pra aquele membro — disse.

O homem percorria lentamente o corredor, olhando para todos os lados. O avião estava lotado. Membros olhavam em torno, procurando dar-lhe ajuda.

— Tem que ter — disse Quem, levantando-se da poltrona e olhando ao redor. — Uni não pode ter cometido um engano.

— Não tem — disse a vizinha de assento. — Todos os lugares estão ocupados.

Formou-se um burburinho a bordo. De fato não havia lugar para o membro. Uma mulher pegou uma criança no colo e chamou-o.

O avião começou a se mover e as telas de televisão se iluminaram, com um programa sobre a geografia e os recursos de Afr.

Tentou prestar atenção ao programa, pensando que talvez lhe trouxesse alguma informação útil, mas não conseguiu. Se fosse descoberto e tratado agora, nunca mais ficaria lúcido. Desta vez Uni tomaria todas as precauções para que não entendesse nem o significado de mil folhas sobre mil pedras úmidas.


Chegou a ’14509 à meia-noite e vinte. Estava bem acordado, ainda segundo a hora de Usa, com o vigor da tarde.

Primeiro foi ao Pré-U, e depois ao ponto de bicicletas na praça mais próxima ao prédio P51. Fez duas viagens até o ponto de bicicletas e uma até o refeitório do P51 e seu centro de abastecimento.

Às três horas, entrou no quarto de Lilás. Olhou-a à luz da lanterna enquanto dormia — o rosto, o pescoço, mão morena pousada no travesseiro — e depois aproximou-se da escrivaninha e acendeu a lâmpada.

— Ana — chamou, parado ao pé da cama. — Ana, você tem que levantar agora.

Ela resmungou qualquer coisa.

— Você tem que levantar agora, Ana — repetiu. — Anda, levanta.

Ela se ergueu, cobrindo os olhos com a mão, queixando-se baixinho. Sentando-se, tirou a mão e fitou-o, reconhecendo-o e franzindo intrigada a testa.

— Eu quero que você venha dar uma volta comigo — disse.

— De bicicleta. Você não deve falar alto, nem pedir socorro.

Enfiou a mão no bolso e tirou um revólver. Empunhou-o do modo que lhe parecia adequado, com o indicador no gatilho, o resto da mão segurando o cabo, e a ponta fazendo mira no rosto dela.

— Eu a mato se você não fizer o que eu mando — acrescentou. — Não grite, Ana.


CONTINUA

TERCEIRA PARTE

 

FUGINDO


1

 

Velhas cidades foram demolidas, novas construídas. As novas tinham edifícios mais altos, praças mais amplas, parques mais vastos, monotrilhos cujos carros desenvolviam maior velocidade, embora com menos frequência.

Outras duas espaçonaves foram lançadas, em direção a Sírio B e Cisnes 61. As colônias marcianas, agora repovoadas e protegidas da devastação de 152, expandiam-se diariamente. O mesmo acontecendo com as colônias em Vênus e na Lua, os postos avançados em Titã e Mercúrio.

A hora de folga teve uma prolongação de cinco minutos. A ligação de telecomputadores pela voz começou a substituir as teclas e os bolos integrais ganharam um agradável segundo sabor. O limite de longevidade aumentou para 62.4.

Os membros trabalhavam e comiam, assistiam à televisão e dormiam. Cantavam, visitavam museus e passeavam pelos jardins de diversão.

No segundo centenário do nascimento de Wei, durante a parada numa cidade nova, um imenso estandarte com o retrato de Wei sorrindo teve um de seus mastros carregado por um membro de mais ou menos trinta anos, cujo aspeto era normal em todos os sentidos, a não ser pelo olho direito, que era verde em vez de castanho. Certa ocasião, há muito tempo, esse membro tinha adoecido, mas agora estava curado. Possuía trabalho, quarto, namorada e conselheiro. Sentia-se calmo e contente.

Um fato estranho lhe aconteceu durante a parada. Enquanto marchava, sorridente, segurando o mastro do estandarte, começou a ouvir um número que se repetia incessantemente no cérebro: Ana SG, trinta e oito P, vinte e oito, vinte e três. Ana SG, trinta e oito P, vinte e oito, vinte e três. Aquilo continuou martelando, em compasso com a marcha. Ficou imaginando a quem pertencia esse número e por que estaria repetindo-se daquela maneira em seu cérebro.

De repente lembrou-se: era do tempo de sua doença! Era o número de um dos outros doentes, o que se chamava Linda — não, Lilás. Por que, depois de tantos anos, voltava-lhe o seu número? Bateu os pés no chão com mais força, procurando não ouvir, e alegrou-se quando foi dado o sinal para cantar.

Contou ao conselheiro.

— Não tem a menor importância — disse ela. — Você provavelmente viu alguma coisa que fez lembrá-la. Talvez até ela mesma. Não há motivo pra temer recordações... a não ser, naturalmente, que se tornem incomodas. Se acontecer outra vez, me avise.

Mas não aconteceu. Ele estava curado, graças a Uni.


Um dia de Natal de Cristo, quando já tinha novo trabalho e morava noutra cidade, foi de bicicleta com a namorada e quatro outros membros a um parque distante. Levaram bolos e refrigerantes, e almoçaram no chão, perto de um arvoredo.

Ele tinha posto seu recipiente de refrigerante em cima de uma pedra quase lisa e, estendendo o braço para apanhá-lo enquanto conversava, derrubou-o. Os outros membros encheram-no de novo com o conteúdo dos seus.

Poucos minutos depois, ao dobrar o invólucro de seu bolo, reparou numa folha caída em cima da pedra úmida, com gotas de refrigerante brilhando na parte posterior, a haste enroscada para cima feito uma alça. Ele pegou a haste e levantou a folha: a pedra, embaixo, estava seca no formato oval da folha. O resto da pedra escurecera com o líquido, mas no lugar da folha continuava cinza e seca. Qualquer coisa naquele momento lhe pareceu significativa. Ficou sentado em silêncio, contemplando a folha que tinha na mão, o invólucro do bolo dobrado na outra e o contorno seco da folha em cima da pedra. Sua namorada falou-lhe algo e ele não pensou mais naquilo, juntando a folha e o invólucro e entregando-os ao membro encarregado do saco de detritos.

A imagem do contorno seco da folha em cima da pedra voltou-lhe à lembrança várias vezes naquele dia. E no dia seguinte também. Depois teve o seu tratamento e esqueceu o assunto. Em questão de semanas, porém, tomou a lembrar-se. Ficou imaginando por quê. Teria já levantado antes uma folha de cima de uma pedra úmida daquele mesmo jeito? Se tinha, não se recordava...

De vez em quando, ao caminhar por um parque ou, por estranho que pareça, ao aguardar na fila para fazer tratamento, a imagem do contorno seco da folha voltava-lhe à lembrança e o fazia franzir a testa.


Houve um terremoto. (Foi jogado longe da cadeira; a lente do microscópio quebrou e das profundezas do laboratório ele ouviu o som mais ensurdecedor de toda a sua vida.) Uma válvula- sismógrafo a meio continente de distância tinha emperrado sem que ninguém percebesse, explicou a televisão poucas noites depois. Aquilo jamais acontecera e não se repetiria mais. Constituía motivo de pesar, naturalmente, mas não era nada que causasse preocupações para o futuro.

Dezenas de prédios ruíram, centenas de membros morreram. Todos os centros médicos da cidade viram-se superlotados de feridos e mais da metade dos aparelhos de tratamento ficaram danificados, ocasionando um atraso de dez dias em cada um.

Alguns dias depois da data em que devia ter tido o seu, pensou em Lilás e em como a tinha amado de uma maneira diferente e mais — mais excitantemente — do que amara todas as outras. Ele havia querido contar uma coisa a ela. O que era? Ah sim, a propósito das ilhas. As ilhas que descobrira escondidas no mapa do Pré-U. As ilhas dos incuráveis...

O conselheiro telefonou-lhe.

— Você está bem? — perguntou.

— Acho que não, Karl — respondeu. — Preciso do meu tratamento.

— Espere um instante — disse o conselheiro, afastando- se e falando baixinho ao telecomputador. Não demorou muito, voltou. — Você pode fazê-lo hoje de noite às sete e meia — anunciou, — mas terá de ir ao centro médico em T24.

Às sete e meia ele estava esperando numa longa fila, pensando em Lilás, procurando recordar exatamente como ela era. Quando chegou perto dos aparelhos de tratamento, voltou-lhe à memória a imagem do contorno seco da folha em cima da pedra.


Lilás telefonou-lhe (ela morava ali mesmo, no próprio edifício) e ele foi para o quarto dela, que era a sala de depósito no Pré-U. Jóias verdes pendiam-lhe das orelhas e cintilavam em torno do pescoço moreno-rosa: estava com um vestido de fazenda verde fulgurante que expunha os seios cônicos macios de bicos nacarados.

— Bon soir, Quem — disse, sorrindo. — Comment vas-tu? Je m’ertnuyais tellement de toi.

Ele se aproximou, tomou-a nos braços e beijou-a — os lábios eram quentes e macios, a boca entreaberta — e acordou no escuro, desapontado: fora um sonho, apenas um sonho.

Mas estranhamente, assustadoramente, tudo persistia: o cheiro do seu perfume (parfum), o gosto do fumo, o som das canções de Pardal, o desejo por Lilás, a raiva contra Rei, o ressentimento contra Uni, a tristeza pela Família e a felicidade de sentir, de estar vivo e lúcido.

E de manhã faria o tratamento e aquilo terminaria. Às oito horas. Acendeu a luz, olhou o relógio: 4h54m. Em pouco mais de três horas...

Apagou a luz de novo e ficou deitado no escuro, de olhos abertos. Não queria perder aquilo. Doente ou não, queria guardar suas recordações, a capacidade de explorá-las e saboreá-las. Não queria pensar nas ilhas — não, nunca: isso era doença mesmo — porém queria pensar em Lilás, nas reuniões do grupo na sala de depósito cheia de relíquias e, de vez em quando, talvez, sonhar outra vez.

Mas o tratamento viria dentro de três horas e tudo terminaria. Não havia nada que pudesse fazer — a não ser esperar novo terremoto, & quais eram as possibilidades de que isso acontecesse? As válvulas-sismógrafos funcionavam perfeitamente desde então e continuariam funcionando perfeitamente no futuro. E o que, além de um terremoto, podia adiar o tratamento? Nada. Absolutamente nada. Não com Uni sabendo que ele já tinha mentido antes para conseguir um adiamento.

O contorno da folha seca sobre a pedra voltou-lhe à lembrança, mas enxotou-o para pensar em Lilás, para vê-la como a havia visto no sonho, para não desperdiçar suas três breves horas de lucidez. Tinha esquecido como eram grandes os olhos dela, como era lindo o seu sorriso, a sua pele morena-rosa, como era comovente a sua sinceridade. Tinha esquecido tanta coisa mais: o prazer de fumar, o entusiasmo em decifrar Français...

O contorno seco da folha voltou, e pensou nele, irritado tentando descobrir por que se gravara na lembrança, tentando livrar-se dele de uma vez por todas. Recapitulou o momento ridiculamente inexplicável: visualizou a folha de novo, coberta de gotas brilhantes de bebida, seus dedos levantando-a pela haste, enquanto a outra mão segurava o invólucro dobrado do bolo, e o oval seco e cinzento sobre a pedra molhada de refrigerante escuro. Tinha derramado a bebida, ia folha ficara ali, e por baixo a pedra continuava...

Soergueu-se na cama e pegou com força o braço esquerdo coberto pelo pijama.

— Cristo e Wei — exclamou, assustado.


Levantou-se antes do primeiro carrilhão, vestiu-se e arrumou a cama.

Foi o primeiro a chegar ao refeitório. Comeu e bebeu, e voltou para o quarto com o invólucro do bolo dobrado displicentemente no bolso.

Desdobrou-o, colocou-o em cima da escrivaninha e alisou- o com a mão. Dobrou o invólucro laminado bem ao meio, e a metade em três. Apertou o maço quanto pôde e apalpou-o: era fino, apesar das seis dobras. Fino demais? Largou-o de novo.

Dirigiu-se ao banheiro, tirou algodão e o rolo de esparadrapo do estojo de medicamentos que guardava no armário. Trouxe-os de volta à escrivaninha.

Pôs uma camada de algodão sobre o maço do invólucro — uma camada menor que o próprio maço — e começou a cobrir o algodão e o maço com longas tiras superpostas de esparadrapo da cor da pele. Prendeu de leve as pontas do esparadrapo em cima da escrivaninha.

A porta se abriu e ele se virou, escondendo o que estava fazendo e guardando o rolo de esparadrapo no bolso. Era Karl TK, vizinho de quarto.

— Pronto pro café? — perguntou.

— Eu já tomei — respondeu.

— Ah. Até já, então.

— O.K. — disse, e sorriu.

Karl fechou a porta.

Terminou de passar o esparadrapo e depois desprendeu as pontas de cima da escrivaninha, levando para o banheiro a atadura que tinha feito. Colocou-a com o lado do invólucro laminado para cima na beira da pia e arregaçou a manga.

Pegou a atadura e encostou o invólucro cuidadosamente à parte interna do seu braço, onde o disco da infusão tocaria. Agarrou a atadura com força e colou as pontas do esparadrapo contra a pele.

Uma folha. Um escudo. Daria certo?

Se desse, pensaria unicamente em Lilás, não nas ilhas. Se se surpreendesse pensando nelas, contaria ao conselheiro.

Abaixou a manga.

Às oito horas, entrou na fila na sala de tratamento. Ficou de braços cruzados, com a mão por cima da atadura encoberta pela manga — para esquentá-la, caso o disco de infusão fosse sensível à temperatura.

Estou doente, pensou. Vou pegar tudo quanto é doença: câncer, varíola, cólera, tudo. Crescerão pêlos no meu rosto!

Faria aquilo só desta vez. Ao primeiro sintoma de anormalidade, correria ao conselheiro.

Talvez não desse certo.

Chegou a sua vez. Arregaçou a manga até o cotovelo, enfiou o braço bem no fundo do orifício revestido de borracha, depois puxou a manga até o ombro e no mesmo instante deslizou o braço todo no interior do aparelho.

Sentiu o controle localizando-lhe a pulseira e a leve pressão do disco de infusão sobre a atadura de algodão... Não aconteceu nada.

— Você já está pronto — advertiu o membro seguinte.

A luz azul do aparelho estava acesa.

— Ah — exclamou, abaixando a manga enquanto retirava o braço.

Tinha de rumar direto para o trabalho.

Terminado o almoço, voltou ao quarto e, no banheiro, arregaçou a manga e tirou a atadura. O invólucro laminado estava intato, mas a pele sempre ficava assim após o tratamento. Arrancou do esparadrapo o invólucro dobrado.

O algodão tinha ficado cinzento e fosco. Espremeu a atadura em cima da pia e um líquido aquoso escorreu de dentro dela.


Recuperou a lucidez, cada dia mais forte. Recuperou a memória, em pormenores nítidos, torturantes.

Recuperou o sentimento. O rancor contra Uni converteu-se em ódio; o desejo por Lilás transformou-se em fome insaciável.

Recorreu novamente às velhas simulações: era normal no trabalho, normal com o conselheiro, normal com a namorada. Mas dia a dia aquele fingimento ficava mais irritante, mais insuportável de manter.

No tratamento subsequente, fez outra atadura com invólucro de bolo, algodão e esparadrapo; e dela espremeu outro fio de líquido aquoso.

Apareceram-lhe pontinhos pretos no queixo, no rosto e acima do lábio superior — pêlos incipientes. Desmontou a tesoura, prendeu com arame uma das lâminas ao cabo e de manhã, antes do primeiro carrilhão, esfregava sabonete no rosto e raspava fora os pontinhos.

Sonhava todas as noites. As vezes os sonhos traziam-lhe orgasmos.

Simular calma e contentamento, humildade e bondade, tornava-se cada vez mais exasperante. No dia de Natal de Marx, numa praia, pôs-se a caminhar pela areia e de repente desandou a correr, a correr na frente dos membros que caminhavam a seu lado, a correr para longe da Família que tomava banho de sol, que comia bolos. Correu até que a praia se estreitou em pedras caídas e continuou correndo no meio da arrebentação e por cima de antigos contrafortes escorregadios. Então parou e sozinho e nu entre o oceano e os elevados penhascos cerrou os punhos e esmurrou os rochedos, gritando obscenidades para o claro céu azul, torcendo e tentando arrancar a corrente inquebrável de sua pulseira.

Era 169, dia 6 de maio. Tinha perdido seis anos e meio. Seis anos e meio! Estava com trinta e quatro. Morava em USA- 90058.

E onde estaria ela? Ainda em Ind, ou noutro lugar qualquer? Na Terra ou numa espaçonave?

E estaria viva, como ele, ou morta, como todos os membros da Família?


2

 

Agora era mais fácil, agora que tinha machucado as mãos e gritado. Mais fácil de caminhar com um sorriso de contentamento, de assistir à televisão e olhar pelo microscópio, de sentar com a namorada nos concertos de anfiteatro.

Pensando o tempo todo no que fazer...


— Alguma preocupação? — perguntou-lhe o conselheiro.

— Bem, um pouco — respondeu.

— Achei que você não estava com bom aspeto. O que é?

— Olha, sabe, eu andei muito doente alguns anos atrás...

— Sei.

— E agora um dos membros que esteve doente junto comigo, o que me deixou doente, pra ser mais preciso, está morando aqui no prédio. Será que não daria pra eu me mudar pra outro lugar?

O conselheiro olhou-o com ar de dúvida.

Estou meio surpreso — disse ele, — que o UniComp tenha deixado vocês dois juntos de novo.— Eu também — disse Quem. — Mas ela está morando aqui. Encontrei-a ontem à noite no refeitório e hoje de manhã outra vez.

— Você falou com ela?

— Não.

— Vou informar-me. Se ela estiver aqui e isso o incomoda, evidente que nós o mudaremos pra outro lugar. Ou então ela. Qual é o número dela?

— Não me lembro por completo — respondeu Quem. — Ana ST38P.


O conselheiro telefonou-lhe no dia seguinte de manhã cedo.

— Você se enganou, Li — disse. — Não foi aquele membro que você viu. E por falar nisso, ela é Ana SG, não ST.

— Tem certeza de que ela não mora aqui?

— Absoluta. Ela está em Afr.

— Que alívio.

— E Li, em vez de você fazer tratamento na quinta, você vai fazer hoje,

— É mesmo?

— É. A uma e meia.

— ‘Tá certo — disse. — Obrigado, Jesus.

— Agradeça a Uni.

Tinha três invólucros de bolo dobrados e escondidos no fundo da gaveta da escrivaninha. Tirou um, foi ao banheiro, e começou a preparar a atadura.


Ela estava em Afr. Era mais perto do que Ind, mas sempre a um oceano de distância. E da largura de Usa, aliás.

Os pais dele moravam lá, em ’71334. Esperaria algumas semanas e depois pediria uma visita. Fazia pouco menos de dois anos que não os via: havia bastante possibilidade de que o pedido fosse atendido. Chegando em Afr, telefonaria a ela — sob o pretexto de ter ferido o braço, conseguiria que uma criança tocasse a placa de um telefone de rua para ele — terminando por descobrir onde ela se encontrava exatamente. Alô, Ana SG. Espero que você esteja tão bem quanto eu. Qual é a cidade em que você mora?

E depois, como faria? Iria a pé até lá? Pediria uma passagem de carro para algum lugar vizinho, onde houvesse uma instalação relacionada de certa forma com genética? Uni não perceberia o que ele andava tramando?

Mas mesmo que tudo-isso acontecesse, mesmo que conseguisse chegar até ela, o que faria depois? Era esperar demais que ela também houvesse levantado uma folha de uma pedra molhada algum dia. Não, ódio, na certa estaria normal, tão normal como ele próprio estivera até há bem poucos meses. E à primeira palavra anormal que proferisse, o recolheria a um centro médico. Cristo, Marx, Wood e Wei, que podia ele fazer?

Esquecê-la: era uma solução. Partir por sua conta, agora, para a ilha livre mais próxima. AH haveria mulheres, provavelmente aos montes, e algumas decerto teriam a pele rosa-morena, olhos grandes menos-oblíquos-que-o-normal e seios cônicos de aspeto macio. Valeria a pena arriscar a lucidez conquistada em troca da remota possibilidade de despertar a dela?

Embora ela tivesse despertado a sua, agachando-se à sua frente com as mãos pousadas em seus joelhos...

Não ao risco da própria, contudo. Ou, pelo menos, não com um risco tão grande.

Foi ao Museu da Pré-U: da mesma maneira antiga, à noite, sem tocar nos controles. Era igual ao de IND26110. Algumas peças do mostruário variavam um pouco, expostas em lugares diferentes.

Encontrou outro mapa da Pré-U, este feito em 1937, com os mesmos oito retângulos azuis colados. A parte traseira havia sido cortada e presa toscamente com esparadrapo: alguém passara por ali antes dele. A ideia era empolgante: alguém tinha descoberto as ilhas, talvez estivesse a caminho de uma naquele mesmo momento.

Noutra sala de depósito — esta com apenas uma mesa, algumas caixas de papelão e uma máquina semelhante a uma cabina, com uma série de minúsculas alavancas — ele novamente segurou o mapa contra a luz, novamente viu as ilhas escondidas. Copiou no papel a mais próxima, “Cuba”, ao largo da ponta sudeste de Usa. E caso decidisse arriscar-se a encontrar Lilás, copiou o contorno de Afr e as duas ilhas que ficavam perto, “Madagascar” ao leste e a pequena “Majorca” ao norte.

Uma das caixas de papelão continha livros. Encontrou um em Français:. Spinoza et ses Contemporains. Spinoza e seus Contemporâneos. Deu uma olhada nas páginas e tirou-o.

Pôs o mapa remoldurado no lugar e foi passar o museu em revista. Tirou uma bússola de pulso que parecia ainda estar funcionando, uma “navalha” com cabo de marfim e a pedra para afiá-la.

— Não demora muito seremos transferidos — avisou o chefe de seção um dia à hora do almoço. GL4 vai substitui-nos.

— Tomara que eu vá pra Afr — disse. — Meus pais estão lá.

Era o tipo do comentário arriscado, ligeiramente impróprio para um membro, mas talvez o chefe de seção exercesse influência indireta na escalação de trabalho.

Sua namorada foi transferida e ele acompanhou-a ao aeroporto para despedir-se — e verificar se era possível entrar a bordo de um avião sem a permissão de Uni. Pelo jeito, não: a compacta fila única de passageiros não permitiria o toque falso do controle e quando chegasse a hora em que o último membro da fila estivesse tocando-o, um membro de túnica cor de laranja achava-se a seu lado, pronto para fazer parar a escada rolante e devolvê-la ao respetivo poço. Sair de um avião apresentava a mesma dificuldade: o passageiro que ficava por último tocava no controle enquanto dois membros de túnica cor de laranja observavam. Depois invertiam a escada rolante, tocavam no controle, e entravam a bordo com recipientes de aço para recolher os restos de bolo e bebida. Talvez conseguisse entrar num avião que estivesse aguardando no espaço dos hangares — e esconder-se dentro, embora não se lembrasse de nenhum esconderijo em aviões — mas como prever o destino eventual do vôo?

Via aérea, portanto, era impossível, até que Uni dissesse que ele podia viajar.

Pediu licença para visitar os pais. Não foi atendido.

Anunciaram novas transferências para a sua seção. Dois 663 foram enviados a Afr, mas ele não: tinha de ir para USA-36104. Estudou o avião durante o vôo. Não havia esconderijo: apenas a longa cabina cheia de poltronas, o banheiro na parte da frente, o compartimento de bolos e bebidas na retaguarda, e as telas de televisão, com um ator interpretando o papel de Marx em todas elas.

USA36104 ficava a sudeste, perto da ponta de Usa, com Cuba logo após. Podia sair de bicicleta um domingo, passar de cidade em cidade, dormindo nos parques intermediários e indo buscar bolos e bebida depois que anoitecesse. Eram mil e duzentos quilômetros, segundo o mapa do MPF. Em ’33037 ele podia encontrar um barco, ou negociantes vindo à costa, como os de ARG20400 de que Rei lhe falara.

Lilás, pensou, que mais posso fazer?

Pediu de novo permissão para visitar Afr e de novo não foi atendido.

Começou a andar de bicicleta aos domingos e durante a hora de folga, para exercitar as pernas. Foi ao Pré-U de ’36104 e descobriu uma bússola melhor e uma faca de fio dentado que servia para cortar galhos nos parques. Verificou o mapa que havia: a parte traseira estava intata, fechada. Escreveu por cima: Sim, existem ilhas onde os membros são livres. Abaixo Uni!

Um domingo, de manhã cedo, rumou para Cuba, com a bússola e um mapa copiado em um de seus bolsos. Na cesta da bicicleta, levava A Sabedoria Viva de Wei em cima de um cobertor dobrado, um recipiente com bebida e um bolo. Dentro do cobertor estava a sua sacola de viagem, que continha a navalha, a pedra de afiar, um sabonete, a tesoura, dois bolos, a faca, uma lanterna, algodão, um rolo de esparadrapo, uma fotografia de seus pais e Papai Jan, e uma muda extra de túnica. Debaixo da manga direita uma atadura cobria-lhe o braço, embora se fosse levado para tratamento seria quase certo que a descobririam. Usava óculos escuros e sorria, pedalando rumo a sudeste entre outros ciclistas pela estrada que conduzia a ’36081. Passavam carros chispando em sequência uniforme sobre a autopista paralela à estrada. De vez em quando zuniam pedregulhos, chutados pelos jatos aéreos dos carros contra a linha divisória de metal.

De hora em hora, mais ou menos, ele parava e descansava um pouco. Comia metade de um bolo e bebia certa quantidade do refrigerante. Pensava em Cuba e no que tiraria em ’33037 para negociar lá. Pensava nas mulheres em Cuba. Provavelmente se sentiriam atraídas por um recém-chegado. E nenhuma estaria sob tratamento, apaixonadas como nem era possível imaginar, tão bonitas como Lilás ou até mais...

Viajou cinco horas; de repente deu meia volta e refez o mesmo percurso.

Forçou-se a se concentrar no trabalho. Era o funcionário 663 da seção de pediatria de um centro médico. O tipo do serviço tedioso, com intermináveis exames de genes e mínimas variações, o tipo do serviço do qual nunca seria transferido. Ficaria ali para o resto da vida.

De mês em mês pedia permissão para visitar os pais em

Afr.

Em fevereiro de 170 o pedido foi atendido.


Saiu do avião às quatro da madrugada, hora local, e foi para a sala de espera, segurando o cotovelo direito com ar constrangido, a sacola a tiracolo no ombro esquerdo. O membro que descera do avião atrás dele, e que o ajudara a levantar-se quando caíra, colocou-lhe a pulseira diante de um telefone.

— Tem certeza de que não se machucou muito? — perguntou ela.

— Tenho, sim — garantiu, sorrindo. — Obrigado, e aproveite a visita, — E ao telefone: —AnaSG38P2823.

A mulher foi-se embora.

Houve um clarão antes da tela se definir e a ligação ser completada. De repente escureceu e não se iluminou mais. Ela foi transferida, pensou. Não está mais no continente. Esperou para ouvir a confirmação. Mas em vez disso:

— Um momento, não consigo...

E lá estava ela, ainda indefinida, sentada na beira da cama, de pijama, esfregando os olhos.

— Quem é? — perguntou.

Atrás dela um membro se virou. Era sábado de noite. Ou teria casado?

— Li RM — respondeu.

— Quem?

Ela olhou-o, inclinando-se um pouco, piscando os olhos. Era mais bonita do que ele se lembrava: estava mais velha, linda. E, depois, que olhos!

— Li RM — repetiu, forçando-se a um tom apenas cortês, típico de membro. — Não se lembra? De IND26110, lá por 162.

Ela contraiu a testa, nervosa, um instante.

— Ah, sim, lógico — sorriu. — Claro que me lembro. Como vai, Li?

— Muito bem. E você?

— Otimamente.

E parou de sorrir.

— Casou?

— Não. Que bom que você telefonou, Li. Eu quero agradecer-lhe, sabe? Por me ter ajudado.

— Agradeça a Uni.

— Não, não. A você. Um pouco atrasado.

Sorriu de novo.

— Desculpe ligar a esta hora. Estou de passagem por Afr, fui transferido.

— Não tem importância. Gostei muito.

— Onde você está? — perguntou.

— Em ’14509.

— É onde mora a minha irmã.

— Não diga.

— E, sim. Qual é o seu edifício?

— P51.

— O dela é A-não-sei-quanto.

O membro atrás dela sentou na cama e ela se voltou, dizendo-lhe qualquer coisa. Ele sorriu para Quem. Ela se virou de novo.

— Este é Li XE.

— Olá — saudou Quem, decorando '14509, P51; '14509, P51.

— Olá, irmão — fizeram os lábios de Li XE: sua voz não alcançava o aparelho.

— Que foi que houve com o seu braço? — perguntou Lilás.

Ele continuava segurando-o. Soltou-o.

— Nada — respondeu. — Eu caí ao descer do avião.

— Oh, que pena — ela olhou por cima do ombro dele. — Tem um membro aí esperando — preveniu. — Acho melhor a gente se despedir.

— Sim. Adeus. Gostei muito de revê-la. Você não mudou nada.

— Você também não. Adeus, Li.

Ela se levantou, estendeu a mão para o aparelho e a imagem desapareceu.

Ele desligou e cedeu lugar ao membro que esperava atrás.

Estava morta: um membro normal, sadio, deitada agora ao lado do seu namorado, em ’14509, P51. Como podia arriscar-se a lhe falar sobre alguma coisa que não fosse tão normal e sadia como ela? Passaria o dia com os pais e voltaria de avião para Usa.

No próximo domingo partiria de bicicleta e desta vez não daria meia volta.

Perambulou um pouco pela sala de espera. Havia um mapa geral de Afr na parede, com luzes nas principais cidades, ligadas por tênues linhas alaranjadas. Ao norte ficava ’14510, perto do lugar onde ela morava. A meio continente de distância de ’71330, que era onde ele se encontrava. Uma linha alaranjada ligava as duas luzes.

Olhou o quadro de horário dos vôos, acendendo e apagando, revisando os escalados para Domingo 18 fev. Tinha um que partia às 8h20m da noite para ’14510, quarenta minutos antes do avião que tomaria para USA33100.

Aproximou-se da vidraça que dava para o campo e ficou olhando os passageiros dirigindo-se em fila única para a escada rolante do avião que ele deixara. Um membro de túnica cor de laranja apareceu e aguardou ao lado do controle.

Virou-se de frente para a sala de espera. Estava quase vazia. Dois membros que tinham viajado no avião junto com ele, uma mulher segurando uma criança adormecida e um homem carregando duas sacolas, colocaram seus pulsos e o da criança no controle da porta que conduzia ao carroporto — sim, piscou três vezes — e saíram. Um membro de túnica cor de laranja, ajoelhado ao lado do chafariz, desatarraxava uma placa na parte inferior; outra empurrou uma enceradeira para um canto da sala de espera, tocou num controle — sim — e empurrou-a através de uma porta giratória.

Refletiu um instante, olhando o membro trabalhando no chafariz, e depois atravessou a sala, tocando no controle da porta que levava ao carroporto — sim — e saiu. Havia um carro para ’71334 à espera, já com três membros. Tocou no controle — sim — e entrou no carro, desculpando-se com os outros por tê-los feito esperar. A porta fechou-se e o carro partiu. Ele se sentou com a sacola no colo, pensativo.

Ao chegar ao apartamento dos pais, entrou sem fazer ruído, barbeou-se e depois acordou-os. Ficaram contentes, até mesmo felizes, em vê-lo.

Os três conversaram, tomaram café e voltaram a conversar. Pediram um telefonema para Paz, em Eur, que foi atendido. Falaram com ela, com o marido, e com os filhos, Beto, que tinha dez anos, e Yin, de oito. Depois, por sugestão dele, foram ao Museu dos Progressos da Família.

Terminado o almoço, ele dormiu três horas e por fim tomaram o monotrilho para os Jardins de Diversões. O pai entrou num jogo de vôlei e ele e a mãe sentaram num banco para assistir.

— Você está doente de novo? — perguntou-lhe ela.

Olhou-a.

— Não — respondeu. — Claro que não. Estou muito bem.

Ela olhou bem para ele. Tinha agora cinquenta e sete anos, o cabelo estava grisalho e a pele morena toda enrugada.

— Você esteve pensando em alguma coisa — disse. O dia todo.

— Eu estou bem. Por favor. A senhora é minha mãe, acredite em mim.

Olhou-o nos olhos, preocupada.

— Estou bem — repetiu.

Após uma pausa, ela retrucou:

— O.K., Quem.

Sentiu-se subitamente cheio de amor por ela. De amor e gratidão, com uma sensação de unidade filial. Pegou-a pelo ombro e beijou-lhe o rosto.

— Eu te amo, Suzu — disse.

Ela riu.

— Cristo e Wei — exclamou. — Que memória você tem!

— É porque sou sadio. Lembre-se disso, sim? Sou sadio e feliz. Quero que a senhora não se esqueça disso.

— Porquê?

— Porque sim.

Contou-lhes que o avião partia às oito.

— Despedir-nos-emos no carroporto — disse. O aeroporto vai estar atulhado de gente.

Mesmo assim, o pai queria ir. Mas a mãe disse que não, que ficariam em '334. Sentia-se cansada.

Às sete e meia, deu-lhes um beijo de despedida — primeiro no pai, depois na mãe, segredando-lhe ao ouvido: “Não se esqueça” — e entrou na fila de carros para o aeroporto de ’71330. O controle, quando tocou nele, piscou sim.


A sala de espera estava ainda mais repleta do que esperava que estivesse. Membros de túnicas brancas, amarelas e azul claro caminhavam, ficavam de pé, sentavam e esperavam na fila, alguns com sacola, outros sem. Uns poucos de túnica cor de laranja moviam-se no meio da multidão.

Olhou o quadro: o vôo das 8h20m para ’14510 apanharia os passageiros na pista dois. Os membros já estavam lá na fila, e além da vidraça, um avião fazia manobra para colocar-se junto de uma escada rolante. Sua porta abriu-se, deixando passar um membro, logo seguido por outro.

Quem abriu caminho entre a multidão até chegar à porta giratória no canto da sala, fingindo que tocava no controle e empurrando-a para sair: encontrou-se numa parte de depósito, onde havia engradados e caixas de papelão enfileirados sob uma luz ofuscante, semelhantes às comportas de memória de Uni. Tirou a sacola do ombro e escondeu-a entre uma caixa de papelão e a parede.

Seguiu adiante normalmente. Um carrinho com recipientes de aço passou por ele, empurrado por um membro de túnica cor de laranja que o olhou de relance, cumprimentando com a cabeça.

Retribuiu o aceno, continuou andando, e viu o membro empurrar o carrinho por um grande portão aberto e sair para o campo profusamente iluminado.

Tomou a direção de onde o membro tinha vindo, chegando a uma área em que membros de túnica cor de laranja colocavam recipientes de aço sobre a esteira de transporte de uma máquina de lavar, enchendo outros com refrigerantes e chá fumegante provenientes das torneiras de gigantescos cilindros. Seguiu adiante.

Fingiu tocar num controle e entrou numa sala cheia de túnicas comuns penduradas em ganchos. Dois membros despiam túnicas cor de laranja.

— Olá — saudou.

— Olá — responderam.

Dirigiu-se à porta de um armário e entreabriu-a: continha uma enceradeira e frascos de líquido verde.

— Onde estão as túnicas? — perguntou.

— Ali dentro — informou um deles, acenando com a cabeça para outro armário.

Foi até lá e abriu-o. Havia túnicas cor de laranja nas prateleiras. Biqueiras de calçado e pares de luvas grossas, tudo da mesma cor.

— De onde você é? — perguntou o mesmo.

— RUS50937 — mentiu, tirando uma túnica e um par de biqueiras. — Lá nós guardamos as túnicas ali.

— Elas devem ficar aí — teimou o membro, fechando a túnica branca.

— Já estive em Rus — disse o outro, que era uma mulher. — Tive dois trabalhos lá. O primeiro levou quatro anos e o segundo três.

Não se apressou em colocar as biqueiras, só terminando quando os dois jogaram as túnicas cor de laranja na lixeira e saíram.

Enfiou a túnica cor de laranja por cima da branca e fechou-a até o pescoço. Era mais grossa que a comum e possuía bolsos extras.

Examinou os outros armários, encontrou uma chave inglesa e um pedaço de paplão amarelo de bom tamanho.

Voltou ao lugar onde deixara a sacola, tirou-a e embrulhou-a no paplão. A porta giratória deu um encontrão nele.

— Desculpe — disse um membro, entrando. — Machucou-se?

— Não — respondeu, segurando a sacola embrulhada.

O membro de túnica cor de laranja seguiu adiante.

Esperou um pouco, observando-o, depois meteu a sacola debaixo do braço esquerdo e tirou a chave inglesa do bolso. Agarrou-a com a mão direita, de um jeito que esperava que parecesse natural.

Foi atrás do membro, depois dobrou e dirigiu-se ao portão que comunicava com o campo.

A escada rolante apoiada ao flanco do avião na pista dois estava vazia. Um carrinho, provavelmente o que tinha visto ser empurrado, achava-se parado ao pé dos degraus, junto do controle.

Havia outra escada rolante, sendo recolhida ao poço, e o avião que ela atendera já rodava, pronto para a decolagem. Devia ser o vôo das 8hl0 para Chi, provavelmente.

Agachou-se sobre um joelho, largando a sacola e a chave inglesa em cima do cimento, e simulou ter problema com a biqueira. Todo mundo na sala de espera estaria assistindo à decolagem do avião para Chi: era o momento em que ele subiria a escada rolante. Pernas cor de laranja passaram farfalhando a seu lado: um membro voltava aos hangares. Tirou a biqueira e tomou a enfiá-la, olhando o avião girar...

A decolagem começou. Juntou a sacola e a chave inglesa, levantou-se e caminhou normalmente. O clarão dos holofotes o enervava, mas disse consigo mesmo que ninguém o estava olhando, todo mundo prestando atenção ao avião. Dirigiu-se à escada rolante, fingiu tocar no controle — o carrinho ao lado o favorecia, justificando-lhe a falta de jeito — e pisou nos degraus ascendentes. Agarrou-se com força à sacola enrolada em paplão e ao cabo úmido da chave inglesa enquanto subia rapidamente até a porta aberta do avião. Saltou fora da escada rolante e entrou a bordo.

Dois membros com túnica cor de laranja estavam ocupados na despensa. Olharam na sua direção e ele acenou com a cabeça. Retribuíram-lhe o cumprimento. Desceu o corredor, rumo ao banheiro.

Entrou, deixando a porta aberta, e pousou a sacola no chão. Virou-se para a pia, experimentou as torneiras e bateu-as com a chave inglesa. Ajoelhou-se e fez o mesmo no cano de esgoto. Abriu as tenazes da chave inglesa e colocou-as em torno do cano.

Escutou a escada parar, e depois recomeçar. Inclinou-se para o lado de fora e espiou. Os membros tinham ido embora.

Largou a chave no chão, levantou-se, fechou a porta e abriu a túnica cor de laranja. Despiu-a, dobrou-a pelo comprido e enrolou-a numa trouxa tão compacta quanto pôde. Tornou a ajoelhar-se, desembrulhou a sacola e abriu-a. Guardou a túnica, dobrou o paplão amarelo e também meteu junto na sacola. Tirou as biqueiras das sandálias, apertou-as bem e enfiou num dos cantos da sacola. Incluiu a chave inglesa, esticou a tampa com força e comprimiu-a para fechar.

De sacola no ombro, lavou as mãos e o rosto com água fria. Seu coração batia depressa, mas sentia-se bem, entusiasmado, vivo. Olhou no espelho aquela sua cara com um olho verde e o outro castanho. Abaixo Uni!

Ouviu vozes de membros subindo a bordo do avião. Ficou junto da pia, enxugando as mãos que já estavam secas.

A porta se abriu, dando passagem a um menino de mais ou menos dez anos.

— Oi — disse Quem, secando as mãos. — O dia foi bom pra você?

— Foi, sim — respondeu o garoto.

Quem jogou a toalha na lixeira.

— É a primeira vez que você anda de avião?

— Não — disse o garoto, abrindo a túnica. — Já andei uma porção de vezes.

E sentou-se numa das toaletes.

— Até já — disse Quem, e saiu.

A terça parte do avião já estava cheia, e novos membros entravam. Ocupou a poltrona vazia mais próxima que havia no corredor, verificou se a sacola ficara bem fechada e acomodou-a embaixo do assento.

Na chegada faria a mesma coisa. Quando todo mundo estivesse descendo do avião, iria para o banheiro e vestiria a túnica cor de laranja. Quando os membros viessem a bordo com os recipientes de reabastecimento, o encontrariam trabalhando na pia e ele sairia depois deles. Na área de depósito, atrás de um engradado ou dentro de um armário, ele se livraria da túnica, das biqueiras e da chave inglesa. E depois fingiria tocar o controle para dar o fora do aeroporto e caminhar a pé até ’14509. Ficava a oito quilômetros a leste de ’510. Verificara de manhã num mapa do MPF, Tendo sorte, chegaria lá por volta da meia-noite.

— Que coisa estranha — exclamou o membro a seu lado.

Virou-se.

Ela estava olhando para o fundo do avião.

— Não há lugar vago pra aquele membro — disse.

O homem percorria lentamente o corredor, olhando para todos os lados. O avião estava lotado. Membros olhavam em torno, procurando dar-lhe ajuda.

— Tem que ter — disse Quem, levantando-se da poltrona e olhando ao redor. — Uni não pode ter cometido um engano.

— Não tem — disse a vizinha de assento. — Todos os lugares estão ocupados.

Formou-se um burburinho a bordo. De fato não havia lugar para o membro. Uma mulher pegou uma criança no colo e chamou-o.

O avião começou a se mover e as telas de televisão se iluminaram, com um programa sobre a geografia e os recursos de Afr.

Tentou prestar atenção ao programa, pensando que talvez lhe trouxesse alguma informação útil, mas não conseguiu. Se fosse descoberto e tratado agora, nunca mais ficaria lúcido. Desta vez Uni tomaria todas as precauções para que não entendesse nem o significado de mil folhas sobre mil pedras úmidas.


Chegou a ’14509 à meia-noite e vinte. Estava bem acordado, ainda segundo a hora de Usa, com o vigor da tarde.

Primeiro foi ao Pré-U, e depois ao ponto de bicicletas na praça mais próxima ao prédio P51. Fez duas viagens até o ponto de bicicletas e uma até o refeitório do P51 e seu centro de abastecimento.

Às três horas, entrou no quarto de Lilás. Olhou-a à luz da lanterna enquanto dormia — o rosto, o pescoço, mão morena pousada no travesseiro — e depois aproximou-se da escrivaninha e acendeu a lâmpada.

— Ana — chamou, parado ao pé da cama. — Ana, você tem que levantar agora.

Ela resmungou qualquer coisa.

— Você tem que levantar agora, Ana — repetiu. — Anda, levanta.

Ela se ergueu, cobrindo os olhos com a mão, queixando-se baixinho. Sentando-se, tirou a mão e fitou-o, reconhecendo-o e franzindo intrigada a testa.

— Eu quero que você venha dar uma volta comigo — disse.

— De bicicleta. Você não deve falar alto, nem pedir socorro.

Enfiou a mão no bolso e tirou um revólver. Empunhou-o do modo que lhe parecia adequado, com o indicador no gatilho, o resto da mão segurando o cabo, e a ponta fazendo mira no rosto dela.

— Eu a mato se você não fizer o que eu mando — acrescentou. — Não grite, Ana.

 


                                         CONTINUA