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ESTE MUNDO PERFEITO / Iran Levin
5
Noite após noite, ele comia às pressas (mas não demais), depois tomava o monotrilho até o Museu do Progresso da Família e estudava seu labirinto de mapas iluminados, da altura do teto, só saindo quando fechavam as portas, às dez — hora da televisão. Uma noite, foi lá depois do último carrilhão — uma caminhada de hora e meia — mas descobriu que os mapas eram ilegíveis à luz da lanterna: as marcações se perdiam nos reflexos. E hesitou em acender as lâmpadas internas que, ligadas como pareciam estar à iluminação do saguão inteiro, poderiam causar um excesso de corrente elétrica na força capaz de alertar Uni. Um domingo ele levou Maria KK ao Museu, mandou-a olhar o mostruário do Universo do Futuro, e examinou os mapas durante três horas a fio.
Não descobriu nada: nenhuma ilha sem sua cidade ou instalação industrial, nenhum cimo de montanha que não servisse de observatório espacial ou centro de climatonomia, nenhum quilômetro quadrado de terra — ou de área oceânica, para ser mais exato — que não estivesse minerado, ceifado ou usado para fábricas, casas, aeroportos ou parques de estacionamento pelos oito bilhões de membros da Família. O dístico dourado, suspenso à entrada do setor de mapas — A Terra é o Nosso Patrimônio: Usemo-la Sabiamente, Sem Desperdício — parecia exprimir a verdade, a tal ponto que não restava espaço nem mesmo para a menor comunidade que não fizesse parte da Família.
Leopardo morreu e Pardal cantou. Rei permaneceu sentado em silêncio, mexendo no mecanismo de um aparelho da Pré-U. E Floco de Neve queria mais sexo.
— Nada — comunicou Quem a Lilás. — Absolutamente nada.
— No começo deve ter havido centenas de colônias pequenas. Uma delas deve ter sobrevivido.
— Então há meia dúzia de membros em alguma caverna por aí — disse ele.
— Por favor, continue procurando. Não pode ser que você tenha verificado todas as ilhas.
Pensou naquilo no escuro, dentro do carro do século vinte, sentado com a mão no volante, acionando os vários botões e alavancas. E quanto mais pensava, menos lhe parecia provável que houvesse alguma cidade ou mesmo colônia de incuráveis. Supondo-se que uma área abandonada tivesse passado despercebida ao examinar os mapas, como poderia existir uma comunidade desse tipo sem que Uni soubesse? As pessoas imprimem sua marca no meio-ambiente: mil pessoas, até cem, provocariam a elevação de temperatura de uma região, sujando os cursos d'água com seus detritos e talvez o ar com fogueiras primitivas. Tanto a terra como o mar, num raio de quilômetros de distância, ficariam afetados pela sua presença numa série de maneiras perceptíveis.
Portanto, há muito tempo que Uni teria tomado conhecimento da existência da hipotética cidade, e então teria... feito o quê? Despachado médicos, conselheiros e aparelhos portáteis de tratamento, “curando” os incuráveis e transformando-os em membros “sadios”.
A menos, naturalmente, que se defendessem... Seus antepassados tinham fugido da Família logo após a Unificação, quando os tratamentos eram facultativos, ou mais tarde, quando ficaram compulsórios, muito embora sem ter ainda a eficácia atual. Sem dúvida, alguns daqueles incuráveis deviam ter defendido seus refúgios à força, com armas letais. Será que não haviam transmitido a prática, e também as armas, às gerações posteriores? O que faria Uni hoje, em 162, enfrentando uma comunidade armada, defensiva, com a Família desarmada, não agressiva? Que providências tomaria há cinco ou vinte e cinco anos, ao descobrir seus indícios? Nada? Deixaria seus habitantes entregues à “doença” e aos poucos quilômetros quadrados que ocupavam no mundo? Pulverizaria a cidade com LPK? Mas e se as armas que possuíssem fossem capazes de derrubar aviões? Será que Uni decidiria em seus gélidos blocos de aço que o custo da “cura” valia mais que a sua utilidade?
Faltavam-lhe dois dias para um tratamento e estava com o espírito mais ativo do que nunca. Gostaria que ficasse mais ainda. Tinha a sensação de que havia algo que não lhe passara pela ideia, pouco além do limite de sua compreensão.
Se Uni tivesse deixado a cidade em paz, em vez de sacrificar membros, tempo e tecnologia em “ajudá-la” — então o quê? Havia outra coisa qualquer, uma noção por enquanto indecifrável, à espera do seu raciocínio e dedução.
Telefonou ao centro médico na quinta-feira, véspera do tratamento, e queixou-se de dor de dente. Propuseram-lhe uma hora marcada na sexta-feira de manhã, mas ele disse que já tinha de ir sábado de manhã para o tratamento, será que não daria para matar dois coelhos de uma vez só? O dente não estava doendo muito, apenas latejava um pouco.
Marcaram-lhe então às 8h15m, sábado de manhã.
Depois ligou para Beto RO e avisou-lhe que tinha hora marcada com o dentista sábado às 8h15m. Que tal lhe parecia se o tratamento pudesse ser feito na mesma ocasião? Matar dois coelhos de uma vez só.
— Creio que dá — disse Beto. — Espera aí — ligou o telecomputador. — Você é Li RM.„
— Trinta-e-cinco-M4419.
— Exato — confirmou Beto, batendo as teclas.
Quem sentou-se e ficou olhando, impassível.
— Sábado de manhã às 8h5m — disse Beto.
— Ótimo — respondeu Quem. — Obrigado.
— Agradeça a Uni — corrigiu Beto.
Assim obteve mais um dia de intervalo entre tratamentos do que antes.
Naquela noite — quinta-feira — choveu e ele ficou em seu quarto. Sentou-se à escrivaninha, a cabeça entre as mãos, pensando, lamentando não estar no museu, onde podia fumar.
Se existisse uma cidade de incuráveis e Uni soubesse de sua existência, deixando-a entregue a seus defensores armados... então... então...
Então Uni não queria que a Família soubesse... para que não ficasse inquieta ou, em certos casos, tentada... e estava fornecendo dados falsos ao equipamento manufator de mapas.
Claro! Como era possível mostrar regiões supostamente abandonadas em belos mapas da Família? “Veja só aquele lugar ali, Papai!” — exclamaria uma criança, visitando o MPF. — “Por que não estamos Usando o Nosso Patrimônio Sabiamente, Sem Desperdício?” E Papai responderia: — “É mesmo, que esquisito... ” De modo que a cidade seria indicada como IND99999 ou Enorme Fábrica de Lâmpadas de Escrivaninha e ninguém jamais passaria a menos de cinco quilômetros de distância. Se fosse uma ilha, então nem seria indicada: ficaria substituída pelo oceano azul.
Olhar os mapas, portanto, era inútil. Podia haver cidades de incuráveis aqui, ali, em toda parte. Ou... talvez não houvesse em lugar nenhum. Os mapas não provavam nem refutavam nada.
Era essa a grande revelação que tinha quebrado a cabeça para... chegar à conclusão que o exame dos mapas fora uma tolice desde o início? Que não havia absolutamente meio algum de se localizar a cidade, a não ser possivelmente percorrendo a Terra inteira a pé?
Lilás que se lutasse, com suas ideias malucas!
Não, que absurdo.
Uni que se lutasse.
Atormentou meia hora a cabeça com aquele problema — como encontrar uma cidade hipotética num mundo que não permitia ser explorado? — até que afinal desistiu e foi dormir.
Então lembrou-se de Lilás, do beijo a que ela resistira, do outro que consentira, e da estranha excitação que havia sentido quando ela lhe mostrara os seios cônicos que pareciam tão macios...
Na sexta-feira passou o dia todo tenso e impaciente. Bancar o normal era insuportável. No Centro, durante o jantar, a televisão, no Clube de Fotografia, nem respirava direito. Ao último toque do carrilhão, dirigiu-se ao prédio de Floco de Neve — “Ai”, queixou-se ela, “amanhã não vou poder nem caminhar!” — e depois ao Pré-U, Circulou com a lanterna pelos corredores, sem conseguir se libertar da ideia fixa. Talvez a cidade existisse, talvez até bem perto dali. Olhou o mostruário de dinheiro, o prisioneiro da cela (Nós dois, irmão), as fechaduras e as câmaras que tiravam fotografias unidimensionais.
A seu ver, havia uma solução, mas implicava em obter a adesão de dezenas de membros ao grupo. Cada um poderia então esquadrinhar os mapas segundo o seu próprio âmbito de conhecimento. Ele mesmo, por exemplo, verificaria os laboratórios genéticos, os centros de pesquisa e as cidades que conhecia pessoalmente ou de que ouvira falar por intermédio de terceiros. Lilás inspecionaria os estabelecimentos de conselho e outras cidades... Mas isso ia levar uma eternidade e precisariam de um exército de cúmplices em tratamento atenuado. Já previa a fúria de Rei.
Olhou o mapa de 19S1 e, como sempre, admirou-se dos nomes estranhos e das intrincadas redes de fronteiras. Naquela época, entretanto, os membros podiam, por assim dizer, ir aonde quisessem! Sombras esparsas assinalavam, à passagem da lanterna, os contornos bem feitos dos remendos do mapa, recortados para coincidir perfeitamente com as linhas cruzadas do quadriculado. Se não fosse pelo movimento da lanterna, os retângulos azuis ficariam com...
Retângulos azuis...
Se fosse uma ilha, então nem seria indicada: ficaria substituída pelo oceano azul.
E o mesmo teria de suceder nos mapas da Pré-U.
Não se deixou empolgar pela ideia. Passou a luz da lanterna lentamente, de um lado para outro, sobre o mapa coberto de vidro e contou os remendos assinalados pelas sombras. Havia oito, todos azuis. E todos nos oceanos, distribuídos em partes iguais. Cinco abrangiam retângulos isolados no quadriculado e três ocupavam retângulos duplos. Um dos remendos em retângulo isolado era situado bem ao largo de lnd, na “Baía de Bengala” — a Baía da Estabilidade.
Pousou a lanterna em cima de uma caixa de mostruário e agarrou o largo mapa pelos dois lados da moldura. Desprendeu-o do gancho, baixou-o até o chão, apoiou a tampa de vidro no joelho e pegou outra vez a lanterna.
A moldura era velha, mas o papel cinza do revestimento parecia relativamente novo. As letras EV estavam gravadas na parte inferior.
Saiu pelo corredor afora carregando o mapa pela alça, desceu a escada rolante, atravessou o corredor do segundo andar e entrou na sala de depósito. Acendendo a luz, levou-o até a mesa, soltando-o cuidadosamente no sentido contrário.
Com o canto da unha, rasgou o revestimento de papel esticado ao longo das partes inferior e laterais da moldura, retirando-o por baixo da alça e prensando-o de novo para que ficasse no lugar. Dentro da moldura havia papelão branco, preso por fileiras de pregos curtos.
Revistou as caixas de relíquias menores até encontrar um alicate enferrujado para arrancar os pregos da moldura, depois tirou fora o papelão e outro pedaço idêntico que estava por baixo.
O verso do mapa tinha nódoas escuras, mas nenhum furo que justificasse os remendos. Uma linha, escrita a tinta marrom, era apenas legível: Wyndham, MU 7-2161 — decerto alguma espécie de número antigo.
Pegou o mapa pelas pontas e retirou-o do vidro, virando-o pelo outro lado, e suspendeu-o acima da cabeça contra a luz clara do teto. Apareceram ilhas em todos os remendos: aqui uma grande, “Madagascar”; aqui um grupo de pequenas, “Açores”. O remendo da Baía da Estabilidade mostrava uma fila de quatro pequenas, “Ilhas Andamão". Não se lembrava de ter visto nenhuma delas nos mapas do MPF.
Tornou a colocar o mapa na moldura, voltado para cima, e pousou as mãos na mesa para examiná-lo. Sorriu ante aquela curiosidade da Pré-U, com seus oito retângulos azuis quase invisíveis. “Lilás!"; — pensou. “Espera até eu te contar esta!"
Com a parte superior da moldura encostada a pilhas de livros e a lanterna em posição vertical ao pé do vidro, copiou numa folha de papel as quatro minúsculas “Ilhas Andamão”, o traçado da costa da “Baía de Bengala”, os nomes e posições das demais ilhas e a escala do mapa, que era em “milhas” em vez de quilômetros.
Outro par de ilhas de tamanho médio, as “Falkland”, estava situada ao largo da costa de Arg (“Argentina”), defronte a “Santa Cruz”, que parecia ser ARG20400. Aquilo lhe lembrava qualquer coisa, mas não soube precisar o quê.
Mediu as Ilhas Andamão: as três mais próximas tinham ao todo cerca de cento e vinte “milhas” de extensão — uns duzentos quilômetros aproximadamente, salvo engano: suficientemente grandes para conter várias cidades! O caminho mais curto para alcançá-las seria pelo lado oposto da Baía da Estabilidade, SEA77122, se ele e Lilás (e Rei? Floco de Neve? Pardal?) resolvessem ir até lá. Se resolvessem ir até lá? Lógico que iriam, agora que ele descobrira as ilhas. Encontrariam um meio qualquer. Precisavam encontrar.
Virando-o no sentido contrário, colocou o mapa na moldura, repôs os pedaços de papelão e, com a ponta do alicate, enfiou os pregos de novo em seus buracos — enquanto pensava por que motivo ARG20400 e as “Ilhas Falkland” não lhe saíam da lembrança.
Meteu o revestimento posterior da moldura por baixo da alça — domingo à noite traria esparadrapo para fazer um serviço em condições — e levou o mapa de volta ao terceiro andar. Pendurou-o no gancho, certificando-se se a parte solta por trás não aparecia dos lados.
ARG20400... Assistira recentemente pela televisão à abertura de uma nova mina de zinco na sua camada inferior. Seria por isso que lhe parecera significativa? Tinha certeza de que nunca estivera lá...
Desceu ao porão e apanhou três folhas de fumo atrás do reservatório de água quente. Trouxe-as para a sala de depósito, tirou suas coisas de fumar da caixa de papelão onde as guardava, sentou-se à mesa e começou a picar as folhas.
Que outra razão plausível haveria para as ilhas estarem encobertas, sem constar do mapa? E quem fizera os remendos?
Chega. Estava cansado de pensar. Deixou-se perder em divagações: a lâmina cintilante da faca, Cochicho e Pardal picando fumo na primeira noite que as tinha encontrado. Ele perguntara a Cochicho de onde vinham as sementes e ela respondera que fora por intermédio de Rei.
E então lembrou-se onde havia visto ARG20400 — o número, não a cidade.
Ladeada por membros de cruz vermelha na túnica, uma mulher com as vestes rasgadas e aos gritos estava sendo conduzida ao Centro Médico Matriz Eles a seguravam pelos braços, aparentemente empenhados em acalmá-la, mas ela continuava gritando — curtos gritos estridentes, idênticos, que repercutiam nas paredes dos edifícios e ecoavam ao longe na calada da noite. A mulher gritava sem parar e as paredes e a noite faziam coro.
Esperou que a mulher e os membros que a conduziam entrassem no prédio, esperou mais um pouco enquanto os ecos distantes reduziam-se a silêncio e depois atravessou a rua devagar e também entrou. Cambaleou de encontro ao controle de entrada, fingindo perder o equilíbrio, batendo a pulseira por baixo da placa de metal e dirigiu-se lenta e normalmente a uma brilhante escada rolante. Pisou no primeiro degrau e subiu apoiado ao corrimão. Ainda ouviam-se os gritos da mulher no interior do prédio.
As luzes do segundo andar estavam acesas. Um membro, passando pelo corredor com uma bandeja de copos, cumprimentou-o com a cabeça. Ele retribuiu o aceno.
O terceiro e o quarto andares também estavam iluminados, mas a escada que levava ao quinto tinha sido desligada e lá em cima só havia trevas. Galgou os degraus, primeiro até o quinto andar, depois até o sexto.
Percorreu de lanterna em punho o corredor do sexto andar — agora rapidamente, não devagar — passando pelas portas onde entrara em companhia dos dois médicos, a mulher que o chamara de “irmãozinho” e o homem com cicatriz no rosto que não despregava os olhos de cima dele. Foi até o fim do corredor, projetando luz sobre a porta marcada 600A: Chefe, Divisão de Quimioterapia.
Atravessou a ante-sala e entrou no gabinete de Rei. A grande escrivaninha estava mais bem arrumada do que antes: o telecomputador arranhado, uma pilha de pastas de arquivo, o recipiente de canetas — e os dois pesa-papéis, o quadrado insólito e o redondo comum. Pegou exte último — ARG20400 dizia a inscrição — e segurou aquele peso frio de metal laminado um instante na palma da mão. Depois largou-o ao lado da fotografia sorridente de Rei quando moço defronte à cúpula de Uni.
Contornou a escrivaninha, abriu a gaveta do meio e procurou até encontrar uma lista com capa plástica que dava os nomes dos habitantes das redondezas. Esquadrinhou a meia coluna de Jesuses e achou: Jesus HL096260. A sua classificação era 080A, sua residência, G35, quarto 1744.
Hesitou diante da porta, lembrando-se de repente que Lilás podia estar ali, dormindo ao lado de Rei sob o seu possessivo braço estendido. Ótimo! — pensou. Assim ela fica sabendo em primeira mão! Abriu a porta, entrou, e fechou-a sem ruído. Apontou a lanterna para a cama e acendeu-a.
Rei estava sozinho, a cabeça grisalha rodeada pelos braços.
Ficou contente e decepcionado. Mais contente, porém. Contaria para ela depois, surgindo em triunfo e descrevendo-lhe tudo o que tinha descoberto.
Acendeu a luz do teto, apagou a lanterna e guardou-a no bolso.
— Rei — chamou.
A cabeça e os braços encobertos pelo pijama continuaram imóveis.
— Rei — repetiu, aproximando-se e parando ao lado da cama. — Acorde, Jesus HL — disse.
Rei virou-se de frente e cobriu os olhos com a mão. Entreabriu os dedos e espiou.
— Preciso falar com você — disse Quem.
— Que é que você está fazendo aqui? — interpelou Rei.
— Que horas são?
Quem olhou o relógio na parede.
— Dez prás cinco.
Rei sentou na cama, a mão em pala sobre os olhos.
— Que ódio de história é esta? — perguntou. — Que é que você está fazendo aqui?
Quem pegou a cadeira da escrivaninha, colocou-a perto dos pés da cama e sentou-se. O quarto estava desarrumado, a túnica presa na lixeira, manchas de chá pelo chão.
Rei tossiu no pulso fechado, uma, duas vezes. Manteve a mão na boca, fitando Quem com os olhos vermelhos, o cabelo ralo e revolto mostrando falhas no crânio.
— Eu quero saber como é que é nas Ilhas Falkland — disse Quem.
Rei abaixou a mão.
— Ilhas quê?
— Falkland — repetiu Quem. — Onde você conseguiu as sementes de fumo. E o perfume que deu pra Lilás.
— O perfume fui eu que fiz.
— E as sementes de fumo? Também?
— Me deram — respondeu Rei.
— Em ARG 20400?
Rei vacilou e depois confirmou com a cabeça.
— Como foi que trouxeram?
— Não sei.
— Você não perguntou?
— Não, não perguntei. Por que você não volta pra onde você devia estar? A gente pode conversar sobre isso amanhã de noite.
— Eu não saio daqui enquanto você não me disser a verdade. Tenho de ir fazer tratamento às 8h5m. Se eu não fizer na hora marcada, vai acabar tudo... eu, você, o grupo. Você não será rei de coisa alguma.
— Seu filho da luta... — exclamou Rei, — dê o fora daqui!
— Daqui eu não saio — repetiu Quem.
— Eu já disse a verdade.
— Não acredito.
— Então vá se lutar.
E tornou a deitar-se, virando de bruços.
Quem continuou onde estava. Ficou sentado, olhando para Rei e esperando.
Passados alguns minutos, Rei voltou-se de frente e sentou na cama. Jogou longe as cobertas, tirou as pernas para fora e sentou na beirada, com os pés descalços no chão. Coçou as coxas, tapadas pelo pijama.
— Americanueva — disse, — não “Falkland”. Eles vêm à praia e negociam. Criaturas de cara peluda, vestidos com roupas de pano e couro.
Olhou para Quem.
— Selvagens doentes, repulsivos — acrescentou, — que falam de um jeito que mal se entende.
— Foi só o que souberam fazer. As mãos deles parecem de pedra de tanto trabalhar. Roubam uns dos outros e passam fome.
— Mas não voltaram à Família.
— Lucrariam mais se voltassem — retrucou Rei. — Ainda acreditam em religião. E tomam bebidas alcoólicas.
— Quanto tempo eles vivem? — perguntou Quem.
Rei não disse nada.
— Mais que sessenta e dois anos? — insistiu.
Rei apertou friamente os olhos.
— Que tem a vida de tão formidável assim pra ser prolongada indefinidamente? Que é que ela tem de tão fabulosamente belo, tanto aqui como lá, pra que sessenta e dois anos não bastem, quando já são até demais? Sim, eles vivem mais do que isso. Um pretendia mesmo ter oitenta e, olhando-se pra ele, dava pra acreditar. Mas também morrem mais moços, com trinta e até com vinte e poucos... de tanto trabalhar, de imundície, de amor ao “dinheiro” deles.
— Sim, nesse grupo de ilhas. Mas há outras sete.
— Dá tudo no mesmo — afirmou Rei. — É tudo a mesma coisa.
— Como é que você sabe?
— Por acaso podia não ser? Por Cristo e Wei, se eu pensasse que fosse possível viver dessa maneira subumana, eu teria dito alguma coisa!
— Você devia ter dito de qualquer jeito. Existem ilhas aqui perto, na Baía da Estabilidade. Leopardo e Cochicho podiam ter ido pra lá e continuar vivos.
— Já estariam mortos.
— Então devia ter deixado que escolhessem um lugar pra morrer. Você não é Uni.
Levantou-se e repôs a cadeira na posição anterior. Olhou a tela do telefone, estendeu o braço por cima da escrivaninha e tirou debaixo da beira o cartão com o número do conselheiro: Ana SG38P2823.
— Não vá dizer-me que ignora o número dela — ironizou Rei. — Como é que vocês fazem, se encontram no escuro? Ou será que você ainda não a conhece bem?
Quem guardou o cartão no bolso.
— Nós nunca nos encontramos — disse.
— Ora, deixa disso. Eu sei o que está acontecendo. Pensa que sou cego?
— Não está acontecendo nada. Ela apenas foi uma vez ao museu e eu lhe dei as listas de vocabulário em Français, mais nada.
— Faço ideia — retrucou Rei. — Dê o fora, sim? Preciso dormir.
Deitou-se de costas na cama, pôs as pernas debaixo das cobertas e puxou-as sobre o peito.
— Não está acontecendo nada — repetiu Quem. — Ela acha que deve uma infinidade de coisas a você.
— Mas em breve isso não será nenhum obstáculo, não é? — disse Rei, de olhos fechados.
Quem permaneceu um instante calado. Por fim rompeu o silêncio.
— Você devia ter falado pra gente. Sobre a Americanova.
— Americanueva — corrigiu Rei.
E não disse mais nada. Ficou de olhos fechados, o peito arfando rapidamente debaixo das cobertas.
Quem dirigiu-se à porta e apagou a luz.
— Até amanhã à noite — despediu-se.
— Faço votos de boa viagem — retrucou Rei. — Aos dois. Pra Americanueva. Vocês merecem.
Quem abriu a porta e saiu.
O ressentimento de Rei o deixou deprimido, mas depois de caminhar mais ou menos quinze minutos começou a sentir-se animado e otimista, eufórico com os resultados dessa noite de extra-lucidez. O bolso da mão direita estava recheado com o mapa da Baía da Estabilidade e das Ilhas Andamão, os nomes e as posições dos outros baluartes de incuráveis, e o cartão de número de Lilás, impresso em letras vermelhas. Por Cristo, Marx, Wood e Wei, do que ele não seria capaz se não recebesse tratamento de espécie alguma?
Tirou do bolso o cartão e leu-o enquanto caminhava. Ana SG38P2823. Ia telefonar-lhe depois do primeiro carrilhão a fim de combinar um encontro — durante a hora de folga da noite seguinte. Ana SG. Não ela, não uma Ana qualquer: Lilás era o que ela era, perfumada, delicada, bonita. (Quem teria escolhido o apelido, ela ou Rei? Incrível. Aquele ódio supunha que eles andavam-se encontrando e fodendo. Quem dera!) Trinta e oito P, vinte e oito vinte e três. Caminhou ao ritmo do número durante certo tempo, depois percebeu que estava andando depressa demais e diminuiu o passo, guardando o cartão de novo no bolso.
Estaria de volta a seu prédio antes do primeiro carrilhão, tomaria uma ducha, trocaria de roupa, telefonaria a Lilás, comeria (morria de fome), depois faria o tratamento às 8h5m, iria à hora marcada (8h15m) ao dentista (“Hoje já está muito melhor, irmã. Parou quase por completo de latejar”). O tratamento o entorpecia, que ódio, mas não ao ponto de não poder contar a Lilás tudo sobre as Ilhas Andamão e começarem a fazer planos juntos — e com Floco de Neve e Pardal, caso lhes interessasse sobre a maneira de ir para lá. Floco, provável mente, preferiria ficar. Tomara que sim: simplificaria enormemente as coisas. Sim, Floco ficaria com Rei, rindo, fumando e fodendo com ele, e jogando aquele jogo de pazinhas com bola mecânica. E ele partiria com Lilás.
Ana SG, trinta e oito P, vinte e oito vinte e três...
Chegou ao prédio às 6h22m. Dois membros madrugadores vinham vindo pelo corredor, uma nua, a outra vestida.
— Bom dia, irmãs — cumprimentou sorrindo.
— Bom dia — responderam, também sorrindo.
Entrou no quarto, acendeu a luz e deparou com Beto na cama, apoiado aos cotovelos e pestanejando. O telecomputador estava aberto no chão, com as luzes azul e âmbar acesas.
6
Ele fechou a porta. a porta.
Beto tirou as pernas de cima da cama e sentou-se, olhando-o nervoso. Tinha a túnica entreaberta.
— Onde você andou, Li? — perguntou.
— No salão — respondeu Quem. — Fui pra lá depois do Clube de Fotografia... esqueci a caneta lá... e de repente me senti muito cansado. Decerto por estar atrasado com o tratamento. Sentei pra descansar e... — sorriu — quando vi já era dia.
Beto olhou para ele, ainda nervoso, e por fim sacudiu a cabeça.
— Eu estive no salão — disse. — E no quarto de Maria KK, no ginásio. Olhei até no fundo da piscina.
— Você com certeza não me viu. Eu estava no canto atrás...
— Eu estive no salão, Li — atalhou Beto.
Apertou os botões da túnica e sacudiu a cabeça, desesperado.
Quem afastou-se da porta, fazendo uma lenta curva distante de Beto para ir ao banheiro.
— Tenho de urinar — disse.
Entrou no banheiro, abriu a túnica e urinou, procurando recuperar a extraordinária lucidez que há pouco sentia, em busca de uma explicação que satisfizesse Beto ou que, no mínimo, parecesse apenas uma extravagância passageira. Afinal de contas, por que Beto viera até ali? Há quanto tempo estaria esperando?
— Eu telefonei às onze e meia — explicou Beto, — e ninguém atendeu. Onde é que você andou desde aqueia hora?
Fechou a túnica.
— Caminhando por aí — respondeu, em voz alta, para que Beto ouvisse lá do quarto.
— Sem tocar nos controles?
Cristo e Wei.
— Acho que me esqueci — disse, abrindo a torneira e lavando os dedos. — E esta dor de dente. Agora piorou. Estou com todo o lado da cabeça dolorido.
Enxugou os dedos, olhando Beto pelo espelho, sentado na cama de costas para ele.
— Não conseguia dormir, por isso saí e fui dar uma volta. Eu inventei essa história do salão porque sei que eu devia ter descido logo para o...
— Eu também não consegui dormir — interrompeu Beto, por causa dessa sua “dor de dente”. Eu o vi durante a televisão e você me pareceu tenso e anormal. Então finalmente chamei o número do funcionário que marca horas pro dentista. Ele lhe sugeriu uma na sexta, mas você disse que o seu tratamento era no sábado.
Quem largou a toalha, virou-se e ficou encarando Beto na soleira da porta.
Soou o primeiro camihão e começou a tocar Uma Forte Família.
— Foi tudo fingimento, não é Li? — perguntou Beto. — o seu pouco rendimento no trabalho na primavera passada, o torpor e o excesso de tratamento.
Quem hesitou um pouco mas logo acenou com a cabeça.
— Ah, irmão — exclamou Beto. — O que é que você anda fazendo?
Quem não respondeu.
— Ah, irmão — repetiu Beto, curvando-se e desligando o telecomputador. Fechou-o com a tampa e passou os ferrolhos. — Você me perdoa? — Pôs o telecomputador de pé, firmando a alça entre os dedos das duas mãos, tentando mantê-lo naquela posição. — Vou-lhe contar uma coisa engraçada. Tenho resquícios de vaidade. Palavra. Perdão, tinha. Eu pensava que eu era um dos dois ou três melhores conselheiros do prédio. Do prédio, um ódio: da cidade. Alerta, observador, sensível... “E eis a cruel realidade”.
Baixou a alça e sorriu friamente para Quem.
— Portando você não é o único doente — acrescentou, — se isso lhe serve de consolo.
— Eu não estou doente, Beto — negou Quem. — Nunca estive mais sadio em toda a minha vida.
Sempre sorrindo, Beto retrucou:
— Pois a julgar pelas aparências, ninguém diria, não é?
Pegou o telecomputador e levantou-se.
— Você não pode ver as aparências — disse Quem. — Os tratamentos o deixaram apático.
Beto chamou-o com um movimento de cabeça e encaminhou-se à porta.
— Vem — disse — Vamos dar um jeito nisso.
Quem não se mexeu. Beto abriu a porta e parou, olhando para trás.
— Estou perfeitamente bem de saúde — afirmou Quem.
Beto estendeu a mão, compreensivo.
— Vem, Li — repetiu.
Após um instante, Quem aproximou-se. Beto tomou-lhe o braço e os dois saíram pelo corredor. As portas estavam abertas e havia membros por todos os cantos, conversando em voz baixa, caminhando. Um grupo de quatro ou cinco, aglomerado diante do quadro de boletins, lia os avisos do dia.
— Beto — disse Quem, — quero que você ouça o que eu lhe vou dizer.
— Não ouço sempre?
— Quero que procure entender-me. Porque você não é um membro burro, você é inteligente, tem bom coração e quer ajudar-me.
Maria KK vinha descendo a escada rolante, em direção a eles, segurando uma trouxa de túnicas com um sabonete em cima. Sorriu e cumprimentou.
— Oi. — E para Quem: — Onde você esteve?
— No salão — respondeu Beto.
— Em plena noite? — estranhou Maria.
Quem confirmou com a cabeça e Beto disse que sim. Seguiram adiante, rumo à escada rolante, Beto com a mão pousada de leve no braço de Quem.
Desceram.
— Eu sei que você pensa que já tem o espírito aberto — disse Quem, — mas por que não tenta abri-lo mais um pouco, ouvindo e raciocinando durante alguns minutos como se eu estivesse tão sadio como digo que estou?
— Está bem, Li vou tentar.
— Beto — continuou Quem, — nós não somos livres. Nenhum de nós é. Nenhum membro da Família.
— Como é que posso ouvir como se você estivesse sadio quando me diz uma coisa dessas? Lógico que somos livres. Livres da guerra, da necessidade, da fome. Livres do crime, da violência, da agressividade, do ego...
— Sim, sim, somos livres de coisas, mas não somos livres pra fazer coisas. Então você não percebe, Beto? Ser “livre de” realmente não tem nada que ver com ser completamente livre.
Beto franziu a testa.
— Ser livre pra fazer o quê? — perguntou.
Saíram da escada rolante e deram volta para tomar a seguinte.
— Pra escolher nossa própria classificação — respondeu Quem. — Ter filhos quando a gente quer. Ir aonde bem se ente- der. E fazer o que dá vontade, recusar tratamentos que não fazem falta...
Beto ficou calado.
Pisaram nos próximos degraus.
— Os tratamentos realmente nos deixam apáticos, Beto — continuou Quem. — Sei disso por experiência própria. Eles têm coisas que “nos ensinam a ser bons”... que nem naquela ciranda, não é? Já faz meio ano que venho recebendo doses menores — soou o segundo carrilhão — e estou mais acordado e vivo do que nunca. Penso com mais clareza e sinto mais profundamente. Fodo quatro ou cinco vezes por semana, você acredita?
— Não — respondeu Beto, olhando para o telecomputador apoiado no corrimão.
— Pois é verdade. Agora você está absolutamente certo de que eu estou doente, não é? Pelo amor da Família, não estou, não. Há outros como eu, milhares, milhões talvez. Há ilhas espalhadas pelo mundo afora, talvez haja também cidades nos continentes — estavam dando a volta para tomar a escada seguinte — onde as pessoas vivam em autêntica liberdade. Eu tenho uma lista aqui no bolso. Elas não figuram nos mapas porque Uni não quer que ninguém saiba que elas existem, porque eles estão defendidos contra a Família e o pessoal lá não se sujeitará a nenhum tratamento. Então, você não quer ajudar-me não? Mas ajudar mesmo?
Pisaram nos próximos degraus. Beto olhou aflito para ele.
— Por Cristo e Wei — exclamou, — você ainda duvida, irmão?
— Muito bem. O que eu quero que você faça pra mim é o seguinte: quando nós chegarmos à sala de tratamento, diga a Uni que está tudo bem comigo, que eu peguei no sono exatamente como lhe contei. Não faça nenhuma referência ao fato de que não toquei nos controles ou à maneira com que inventei a dor de dente. Deixa apenas eu receber o tratamento que teria recebido ontem, ‘tá bom?
— E isso seria ajudá-lo? — perguntou Beto.
— Sim, seria. Eu sei que você não concorda, mas eu lhe peço como irmão e amigo... respeite o que eu penso e sinto. Hei de encontrar um meio qualquer de fugir pra uma dessas ilhas, sem prejudicar a Família de jeito nenhum. O que a Família me proporcionou eu retribuí com o trabalho que fiz. Em primeiro lugar, eu não tinha pedido nada, e não houve alternativa senão aceitar.
Deram a volta até a escada seguinte.
— Está bem — disse Beto, quando já subiam, — eu ouvi você, Li. Agora você me ouça.
A mão que segurava o braço de Quem crispou-se ligeiramente.
— Você está muito, muito doente, e a culpa é exclusivamente minha; sinto-me desprezível por causa disso. Não existem ilhas que não figurem nos mapas. Os tratamentos não deixam ninguém apático. E se tivéssemos o tipo de “liberdade” a que você se refere, haveria desordens, superpopulação, carestia, crimes e guerra. Sim, eu vou ajudá-lo, irmão. Contarei tudo a Uni, você ficará curado e me agradecerá.
Deram a volta até a escada seguinte e pisaram no degrau. Terceiro andar — Centro Médico, dizia o cartaz lá embaixo. Um membro de cruz vermelha na .túnica vinha subindo pela outra escada.
— Bom dia, Beto — cumprimentou sorrindo.
Beto acenou-lhe com a cabeça.
— Eu não quero ficar curado — disse Quem.
— O que prova que precisa ficar — retrucou Beto. — Acalme-se, Confie em mim, Li. Não, que ódio. Confie em Uni, então. Você promete? Confie nos membros que programaram o Uni.
Quem hesitou um momento.
— Está bem, eu confio.
— Estou-me sentindo um horror — confessou Beto.
Quem virou-se e afastou o braço com um gesto brusco. Beto, espantado, olhou para ele. Encostando as duas mãos às costas dele, Quem empurrou-o por diante, enquanto se voltava, apoiado ao corrimão — ouviu Beto tropeçar, e o estrondo da queda do telecomputador no chão — e, de um salto, ganhava o declive central de movimento ascendente. No mesmo instante o movimento parou. Quem arrastou-se lateralmente, segurando-se com os dedos e os joelhos às saliências metálicas, até alcançar o corrimão da escada oposta. Pegou-o, pulou por cima e caiu sobre os afiados degraus sussurrantes. Levantou-se rapidamente.
— Parem-no! gritou Beto lá de baixo e subiu correndo, de dois em dois.
O membro da cruz vermelha, já fora da escada, virou-se,
— O que é que você...”
Mas Quem tomou-o pelos ombros — era idoso, de olhos arregalados — e, empurrando-o com a mão, jogou-o longe.
Saiu disparando pelo corredor afora.
E outros membros:
— Peguem esse membro!
— Ele está doente. Parem-no!
Chegou ao refeitório e os membros que estavam na fila se viraram para ver o que havia.
— Parem esse membro! — gritou, correndo em direção a eles e apontando em frente. — Parem-no!
Passou correndo pela fila.
— Tem um membro doente aí dentro! — disse, empurrando os que se encontravam na porta, e ludibriando o controle.
— Ele precisa de ajuda lá dentro! Depressa!
No refeitório ele olhou, e correu para o lado, atravessando uma porta giratória que comunicava com a parte atrás das despensas. Diminuiu o passo, caminhou rápido, procurando normalizar a respiração, cruzando por membros que carregavam pilhas de bolos entre trilhos verticais, membros que olhavam para ele enquanto despejavam chá em pó em recipientes de aço. Viu um carrinho cheio de caixas com a marca: Guardanapos — pegou-o pelo cabo, virou-o na direção oposta e empurrou-o por diante, na frente de dois membros que comiam em pé, outros dois que juntavam bolos caídos de uma caixa de papelão rasgada.
Deparou com uma porta onde estava escrito Saída: comunicava com uma das escadas laterais. Empurrou o carrinho naquela direção, escutando vozes alteradas em seu encalço. Tomou impulso contra a porta, abriu-a com força e saiu com o carrinho no patamar. Fechou a porta, encostando nela o cabo do carrinho. Retrocedeu dois passos e puxou-o de lado em sua direção, calçando-o firmemente entre a porta e o pilar do corrimão dos degraus, com uma roda preta girando no ar.
Desceu a escada correndo.
Precisava dar o fora, sair do prédio e sumir pelas ruas e praças. Iria a pé até o museu — ainda não estaria aberto — para esconder-se na sala de depósito ou atrás do reservatório de água quente, até a noite do dia seguinte, quando Lilás e os outros esta- riam lá. Devia ter agarrado alguns bolos há pouco. Por que não tinha pensado nisso? Que ódio!
Chegou ao andar térreo e atravessou rapidamente o corredor, cumprimentando um membro que se aproximava. Ela olhou as pernas dele e mordeu os lábios, preocupada. Ele abaixou a vista e parou. A túnica estava rasgada nos joelhos, sendo que o lado direito estava machucado, com pequenas gotas de sangue por cima.
— Posso ser-lhe útil? — perguntou ela.
— Já estou indo para o centro médico — explicou. — Obrigada, irmã.
Seguiu adiante. Não havia nada que pudesse fazer. Teria de correr o risco. Quando estivesse na rua, longe do prédio, amarraria um pano no joelho e arrumaria a túnica da melhor forma possível. O joelho começou a arder, agora que ele sabia. Apressou o passo.
Entrou na parte traseira do saguão e estacou, fitando as escadas rolantes nivelando-se de ambos os lados e, mais adiante, as quatro portas de vidro, providas de controles, com a rua ensolarada lá fora. Membros conversavam e saíam; alguns entravam. Tudo parecia normal. O burburinho das vozes era baixo, sem nenhum pânico.
Dirigiu-se às portas, caminhando normalmente, olhando sempre para frente. Aplicaria o golpe de costume no controle — o joelho seria um pretexto para tropeçar, caso alguém notasse — e depois que se encontrasse lá fora... A música parou.
— Desculpem — disse uma voz feminina pelo alto-falante, — mas queiram, por um momento, permanecer exatamente onde estão. Façam o obséquio de não sair de seus lugares.
Ele se deteve, no meio do saguão.
Todo mundo parou, olhando em torno com ar interrogativo, e aguardou. Somente os membros que ocupavam as escadas rolantes continuaram a se mexer, mas logo também pararam, olhando para os pés. Um membro desceu os degraus caminhando.
— Não se mova! — gritaram-lhe várias vozes.
Ela parou, ruborizada.
Ele permaneceu imóvel, contemplando as gigantescas fisionomias dos vitrais que dominavam as portas: os barbudos Cristo e Marx, o calvo Wood, os sorridentes olhos amendoados de Wei. Sentiu qualquer coisa escorrendo canela abaixo: uma gota de sangue.
— Irmãos, irmãs — prosseguiu a mulher pelo alto-falante, — surgiu uma emergência. Há um membro no prédio que está doente, muito doente. Comportou-se agressivamente e fugiu do seu conselheiro — todos prenderam a respiração — e ele precisa que todos nós o ajudemos a ser encontrado, para levá-lo à sala de tratamento o mais rápido possível.
— Que devemos fazer? — perguntou outro.
— Supõe-se que ele esteja em algum canto abaixo do quarto andar — respondeu a mulher — Tem vinte e sete anos...
Uma segunda voz falou com ela, uma voz de homem, rápida e ininteligível. Um membro, prestes a pisar na escada mais próxima, olhava os joelhos de Quem. Quem fitou o retrato de Wood.
— Ele decerto tentará sair do prédio — continuou a mulher, — de maneira que os dois membros que estiverem mais perto de cada porta de saída queiram, por favor, adiantar-se e bloqueá-las. Ninguém mais deve mexer-se. Só os dois membros que estiverem mais perto de cada porta de saída.
Os membros mais próximos às portas entreolharam-se. Dois tomaram logo a iniciativa, postando-se, contrafeitos, lado a lado, paralelos aos controles.
— Que horror! — exclamou alguém.
O membro que estivera olhando os joelhos de Quem agora estava encarando-o. Quem sustentou o olhar. Era um homem de quarenta anos, mais ou menos: desviou os olhos para outro lado.
— O membro que estamos procurando — disse uma voz no alto-falante — é do sexo masculino, tem vinte e sete anos, e seu número é Li RM35M4419. Repito: Li, RM, 35M, 4419. Vamos, em primeiro lugar, verificar entre nós mesmos e depois revistaremos andar por andar. Um momento, por favor, um momento. UniComp avisa que o membro é o único Li RM no prédio, portanto podemos deixar de lado o resto do número. Precisamos apenas procurar por Li RM. Li RM. Examinem as pulseiras dos membros que os rodeiam. Estamos procurando por Li RM. Certifiquem-se de que cada membro à vista seja verificado por, no mínimo, outro membro. Os membros que se encontrarem em seus quartos queiram ter a gentileza de sair para os corredores. Li RM. Estamos procurando por Li RM.
Quem virou-se para o membro mais próximo, tomou-lhe a mão e olhou a sua pulseira.
— Deixe-me ver a sua — disse o outro.
Quem ergueu o pulso e afastou-se, dirigindo-se a um segundo membro.
— Não deu pra ver — queixou-se o primeiro.
Quem pegou a mão do segundo. Sentiu que alguém o agarrava delicadamente pelo braço.
— Não deu pra ver, irmão — repetiu o primeiro.
Correu em direção às portas. Foi pego e obrigado a virar-se de frente — pelo membro que estivera olhando para ele. Cerrou os punhos, aplicou-lhe um soco na cara e ele caiu longe.
Os membros gritavam.
— É ele!
— Lá está ele!
— Ajudem-no!
— Parem-no!
Correu até a porta e esmurrou um dos membros de guarda. Mas o outro prendeu-o pelo braço, dizendo-lhe ao ouvido:
— Irmão, irmão!
O braço livre foi preso por outros membros: sujeitaram-lhe o peito pelas costas.
— Estamos procurando por Li RM — repetiu o homem no alto-falante. — Ele talvez se comporte agressivamente quando o encontrarmos, mas não devemos ter medo. Ele depende de nós, da nossa ajuda e da nossa compreensão.
— Larguem-me! — gritou, tentando desvencilhar-se dos braços que o seguravam com força.
— Ajudem-no! — clamavam. — Levem-no para a sala de tratamento!
— Ajudem-no!
— Deixem-me em paz! — berrou. — Eu não quero ajuda nenhuma! Deixem-me em paz, seus filhos da luta...
Foi arrastado escada rolante acima por membros ofegantes e vacilantes. Um deles tinha lágrimas nos olhos.
— Calma, calma — diziam-lhe, — estamos ajudando-o. Você vai ficar bem, estamos ajudando-o.
Esperneou, mas pegaram-lhe as pernas e as imobilizaram.
— Eu não quero ajuda nenhuma! — repetiu aos berros.
— Quero que me deixem em paz! Eu sou sadio! Sou sadio! Não estou doente!
Foi arrastado diante de membros que paravam com as mãos nos ouvidos, boquiabertos, de olhos arregalados.
— Você é que está doente — disse ao membro que esmurrara no rosto. Ele tinha sangue pingando das narinas e o nariz e a face inchados. O braço de Quem estava preso pelo dele.
— Você está apático e drogado. Está morto. Você é um homem morto. Você está morto!
— Psiu, nós todos te amamos, estamos te ajudando — disse o membro.
— Por Cristo e Wei, me LARGUEM!
Foi arrastado mais alguns degraus acima.
— Ele foi encontrado — disse o homem no alto-falante. — Li RM foi encontrado, membros. Está sendo conduzido ao centro médico. Permitam que eu repita: Li RM foi encontrado, e está sendo conduzido ao centro médico. Terminou a emergência, irmãos e irmãs. Agora podem prosseguir com seus afazeres. Obrigado. Obrigado a todos pela ajuda e cooperação. Obrigado em nome da Família, obrigado a todos em nome de Li RM.
Foi arrastado pelo corredor do centro médico.
A música recomeçou no meio da melodia.
— Vocês estão todos mortos — disse ele. — A Família inteira está morta. Uni está vivo, só Uni. Mas há ilhas onde há gente vivendo! Olhem no mapa! Olhem no mapa no Museu da Pré-U!
Foi arrastado para dentro da sala de tratamento. Beto estava ali, pálido e suado, com um corte sangrento em cima da sobrancelha: dedilhava as teclas de seu telecomputador, que uma moça de avental azul segurava para ele.
— Beto — disse Quem, — Beto, me faz um favor, sim? Olha no mapa do Museu da Pré-U. Olha no mapa de 1951.
Arrastado até um aparelho de luzes azuis, agarrou-se à beira da abertura, mas ergueram-lhe o polegar e o forçaram a enfiar a mão: a manga foi rasgada para trás e meteram o braço todo até ao ombro.
Acariciaram-lhe o rosto — era Beto, trêmulo.
— Você vai ficar bom, Li — disse. — Confie em Uni.
Três listras de sangue do corte escorriam entre os pêlos das sobrancelhas.
Sua pulseira foi surpreendida pelo controle, o braço tocado pelo disco de infusão. Fechou bem os olhos. Não hei de ficar como morto! pensou. Não hei de ficar como morto! Lembrarei das ilhas, lembrarei de Lilás! Não hei de ficar como morto! Não hei de ficar como morto! Abriu os olhos. Beto sorria-lhe. Estava com uma tira de esparadrapo da cor da pele em cima da sobrancelha.
— Eles disseram três horas e não se enganaram — disse ele.
— A que é que você se refere?
Estava deitado numa cama e Beto sentado a seu lado.
— Foi a hora que os médicos disseram que você ia acordar — respondeu Beto. — Às três. E é o que agora são. Nem um minuto a mais, nem a menos. Três em ponto. Esses membros são tão inteligentes que até fico assustado.
— Onde estou? — perguntou.
— No Centro Médico Matriz.
Então lembrou-se das coisas que tinha pensado e dito e, o pior de tudo, feito.
— Ah, Cristo — exclamou. — Ah, Marx. Ah, Cristo e Wei.
— Fique calmo Li — recomendou Beto, tocando-lhe a mão.
— Beto — disse, — ah, Cristo e Wei, Beto, eu... eu te empurrei pra baixo na...
— Na escada rolante — completou Beto. — E empurrou mesmo, irmão. Aquele foi o momento mais surpreendente da minha vida. Mas estou ótimo. — bateu de leve no esparadrapo acima da sobrancelha. — Já cicatrizou bem. Está como novo. Ou estará, daqui a um ou dois dias.
— Agredi um membro! Com minha mão!
Ele também não sofreu nada — assegurou Beto. — Duas daquelas ali são dele.
Acenou para o outro lado da cama: havia um vaso de rosas vermelhas em cima da mesa.
— E duas de Maria KK, e duas dos membros de tua seção.
Olhou as rosas, enviadas pelos membros que agredira, iludira e traíra. Vieram-lhe lágrimas aos olhos e começou a tremer.
— Ei, o que é isso? Calma, vamos — disse Beto.
Mas, por Cristo e Wei, ele estava pensando exclusivamente em si mesmo!
— Beto, ouça — pediu, voltando-se para o conselheiro soerguendo-se apoiado ao cotovelo e protegendo os olhos com a mão virada ao contrário.
— Vai com calma — disse Beto.
— Beto, há outros — disse, — outros que estão tão doentes como eu estava! Temos de encontrá-los e ajudá-los!
— Nós sabemos.
— Existe um membro chamado Lilás, Ana SG38P2823, e um outro...
— Nós sabemos, nós sabemos — repetiu Beto. — Elas já foram socorridas. Todas foram.
— É fato?
Beto confirmou com a cabeça.
— Você foi interrogado enquanto esteve desacordado — explicou. — Hoje é segunda-feira. Segunda-feira de manhã. Já as localizamos e ajudamos... Ana SG, a que você chamou de Floco de Neve, Ana PY. E Yin GU, Pardal.
— E Rei... Jesus HL. Ele trabalha aqui neste prédio. Ele é...
— Não — interrompeu Beto, sacudindo a cabeça. — Não, nós chegamos tarde demais. Esse... esse está morto.
— Morto?
— Ele se enforcou — disse.
Quem ficou olhando para ele.
— No chuveiro, com uma tira de cobertor.
— Ah, Cristo e Wei — exclamou Quem, recostando-se ao travesseiro.
Doença, doença, doença: e ele participara daquilo.
— Mas todos os outros ficaram bons — tranquilizou Beto, batendo-lhe de leve na mão. — E você também ficará. Você vai pra um centro de recuperação, irmão. Terá uma semana de férias. Até mais, talvez.
— Sinto-me tão envergonhado, Beto, tão tremendamente envergonhado de mim mesmo...
— Deixe disso — retrucou Beto. — Você acaso sentiria vergonha se escorregasse e quebrasse o tornozelo? É a mesma coisa. Se há alguém aqui que devia sentir-se envergonhado, sou eu.
— Eu menti pra você!
— Porque eu deixei. Olhe, ninguém é realmente responsável por coisa alguma. Em breve você compreenderá.
Abaixou-se, pegou uma sacola de viagem que estava no chão, e abriu-a no colo.
— Isto aqui é seu. Diga-me se eu esqueci alguma coisa. Escova, chinelos, retratos, agendas de números, o desenho de um cavalo, a sua...
— Isso é mórbido. Não quero. Joga na lixeira.
— O quadro?
— É.
Beto tirou-o da sacola e ficou olhando.
— Está muito bem feito. Não é fiel, mas é... de certo modo, bem feito.
— E mórbido. Foi feito por um membro doente. Bote fora.
— Você é quem manda.
Pousou a sacola em cima da cama, levantou-se e atravessou o quarto. Abriu a lixeira e jogou o quadro lá dentro.
— Há ilhas cheias de membros doentes — disse Quem. — No mundo inteiro.
— Eu sei. Você nos contou.
— Por que não podemos ajudá-los?
— Isso eu não sei. Mas Uni sabe. Já lhe disse, Li: confie em Uni.
— Eu confio — respondeu ele. — Eu confio.
E tornou a encher os olhos de lágrimas.
Um membro de cruz vermelha na túnica entrou no quarto.
— Como é que vamos? — indagou.
Quem olhou para ele.
— Ele está muito abatido — explicou Beto.
— Era de se esperar — disse o membro. — Não se preocupe. Nós o deixaremos em forma.
Aproximou-se e tomou o pulso de Quem.
— Li, eu agora tenho que ir — avisou Beto.
— Está bem — respondeu Quem.
Beto chegou perto e beijou-lhe o rosto.
— Caso você não seja mandado de volta pra cá, adeus, irmão — disse.
— Adeus, Beto. Obrigado. Por tudo.
— Agradeça a Uni.
Beto estreitou-lhe a mão e sorriu. Despediu-se do membro da cruz vermelha na túnica e saiu.
O membro tirou do bolso uma seringa de infusão e destampou-a.
— Você vai-se sentir perfeitamente normal num instante — prometeu-lhe.
Quem permaneceu imóvel de olhos fechados, secando as lágrimas com a mão, enquanto o membro arregaçava a outra manga.
— Eu estive tão doente — murmurou. — Tão doente.
Psiu, não pense mais nisso — pediu o membro, aplicando delicadamente a infusão. — Não foi nada. Você já vai ficar bom.