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ESTE MUNDO PERFEITO / Iran Levin
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Cada dia ele se sentia um pouco melhor, um pouco mais acordado e alerta, um pouco mais seguro de que doença era o que ele tinha tido e saúde aquilo para o qual se encaminhava. Na sexta-feira — três dias depois do exame — sentiu-se da maneira que geralmente se sentia na véspera de um tratamento, Mas fazia apenas uma semana que fizera o último: faltavam mais de três semanas, extensas e inexploradas, para o próximo. A diminuição de rendimento no serviço surtira efeito: Beto fora ludibriado e o tratamento reduzido. E o próximo, a julgar pelo exame, seria reduzido ainda mais. Que maravilhas de sensação não estaria experimentando dentro de cinco, de seis semanas?
Naquela sexta-feira à noite, poucos minutos antes do último carrilhão, Floco de Neve entrou no quarto.
— Não repare — disse ela, despindo a túnica. — Vim só deixar um bilhete na sua escova.
Enfiou-se na cama com ele e ajudou-o a tirar o pijama. Em suas mãos e lábios, o corpo dela era mais macio, maleável e excitante que o de Paz SK ou qualquer outra. E mesmo o seu, enquanto ela o apalpava, beijava e lambia, respondia mais vibrante do que nunca, com mais tensa sofreguidão. Introduziu-se nela com facilidade — profunda, comodamente — e se dependesse dele, ambos teriam atingido logo o orgasmo, mas ela o fez retardar, parar, retirar e introduzir novamente, colocando-se numa posição estranha, porém eficaz, e depois mudando para outra. Durante vinte minutos, ou mais, empenharam-se em inventar coisas, fazendo o menor ruído possível por causa dos vizinhos de parede e do andar embaixo.
Quando acabaram e se separaram, ela perguntou:
— Então?
— Bem, foi uma maravilha, claro — respondeu, — mas francamente, pelo que você tinha dito, eu esperava até mais.
— Paciência, irmão. Você ainda é um inválido. Dia virá em que você há de se lembrar desta noite como o nosso primeiro aperto de mãos.
Ele riu.
— Psst.
Abraçou-a e beijou-a.
— O que é que ele diz? — perguntou. — O bilhete na minha escova.
— Domingo de noite às onze, no mesmo lugar da última vez.
— Mas sem venda nos olhos.
— Sem venda nos olhos — prometeu.
Veria todos eles: Lilás, os outros.
— Já andava imaginando quando seria a próxima reunião — disse.
— Soube que você passou zunindo que nem foguete pela segunda etapa.
— Tropeçando, você quer dizer. Eu não teria conseguido passar de maneira alguma se não fosse...
Saberia ela a verdadeira identidade de Rei? Conviria falar naquilo?
— Se não fosse o quê?
— Se não fosse Rei e Lilás. Eles vieram aqui na véspera e me prepararam.
— Mas natural — retrucou. — Nem um de nós teria passado se não fossem as cápsulas e tudo mais.
— Gostaria de saber onde as conseguem.
— Tenho a impressão de que um deles trabalha em centro médico.
— Hum, assim se explica.
Ela não sabia. Ou sabia, mas não sabia que ele sabia. De repente se aborreceu com a necessidade de cautela que surgira entre ambos.
Ela sentou na cama.
— Escute — disse, — me dói dizer isto, mas não se esqueça de continuar como sempre com a sua namorada. Amanhã de noite, digo.
— Ela já tem outro. A minha namorada é você.
— Não sou, não. Em todo caso, não nas noites de sábado. Os nossos conselheiros desconfiariam se andássemos com alguém de um prédio diferente. Eu tenho um Beto normal e bonzinho lá no meu corredor e você trate de encontrar uma Yin ou Maria normal e boazinha também. Mas se você der mais do que uma bem rápida com ela, eu lhe torço o pescoço.
— Amanha de noite eu não vou nem conseguir dar uma.
— Isso não tem importância. Praticamente você ainda está convalescendo — olhou-o, bem séria. — Fora de brincadeira, você tem de se lembrar pra não se apaixonar demais, a não ser por mim. E manter sempre um sorriso de contentamento, do primeiro ao último carrilhão. E dar duro no serviço, mas sem exageros. E tão difícil permanecer sob um mínimo de tratamento como ficar daquele jeito.
Tornou a deitar-se de costas a seu lado e o fez abraçá-la.
— Que ódio. O que eu não daria pra fumar um cigarro agora!
— É de fato tão bom assim?
— Hum-hum. Especialmente em ocasiões como esta.
— Vou ter que experimentar.
Ficaram conversando e acariciando-se durante certo tempo e depois Floco de Neve tentou excitá-lo outra vez — “Quem não arrisca, não petisca”, — disse — mas tudo o que fazia não adiantou nada. Foi-se embora mais ou menos à meia-noite.
— Domingo as onze — despediu-se à porta. — Parabéns.
Sábado à noite, no salão, Quem conheceu um membro chamado Maria KK, cujo namorado tinha sido transferido para Can no começo da semana. A parte da data do nascimento do seu número era 38, o que indicava que ela estava com vinte e quatro anos de idade.
Foram participar de um concerto orfeônico, preparatório do Natal de Marx, no Parque da Igualdade. Enquanto esperavam sentados que o anfiteatro lotasse, Quem examinou Maria minuciosamente. O queixo era pontudo, mas quanto ao resto tudo normal: pele morena, olhos castanhos amendoados, cabelos preto curto, túnica amarela sobre a magra e frágil constituição. Uma das unhas do pé, semi-encoberta pela alça da sandália, estava manchada de roxo azulado. Mantinha-se sorridente, olhando para o lado oposto do anfiteatro.
— De onde você é? — perguntou ele.
— De Rus — respondeu.
— Qual é a tua classificação?
— 140 B.
— O que vem a ser isso?
— Especialista em oftalmologia.
— O que é que você faz?
Ela se virou para ele.
— Eu coloco lentes. Na seção infantil.
— E você gosta?
— Lógico — fitou-o, hesitante. — Por que você me está fazendo tantas perguntas? E por que está olhando pra mim desse jeito... como se nunca tivesse visto um membro antes?
— Porque nunca vi você antes. Quero conhecê-la.
— Sou igual a todo mundo. Não tenho nada de extraordinário.
— Q seu queixo é um pouco mais pontudo que o normal.
Ela recuou, magoada e confusa.
— Não falei isso pra ofendê-la — disse ele. — Quis apenas ressaltar que você tem algo de extraordinário, mesmo que não seja uma coisa importante.
Ela lhe lançou um olhar penetrante, depois virou-se, outra vez, para o lado oposto. Sacudiu a cabeça.
— Eu não o entendo — disse.
— Desculpe-me. Eu andei doente até terça-feira passada. Mas o meu conselheiro me levou ao Centro Médico Matriz e lá eles me curaram por completo. Agora estou melhorando. Não se preocupe.
— Puxa, ainda bem. — Fez uma pausa, depois voltou-se e sorriu-lhe, toda alegre. — Está desculpado.
— Obrigado — replicou, de repente com pena dela.
Ela virou a cabeça novamente.
— Tomara que a gente cante A Libertação das Massas — disse.
— Nós vamos cantar, sim.
— Eu adoro aquilo — disse e, sorridente, começou a cantarolar o hino.
Ele não tirava os olhos de cima dela, esforçando-se para fazer isso de um jeito aparentemente normal. O que, ela tinha dito era verdade: ela não era diferente de nenhum outro membro. O que significava um queixo pontudo ou uma unha de pé manchada? Era exatamente igual a qualquer Maria, Ana, Paz e Yin que já havia sido sua namorada: humilde e boa, prestativa e trabalhadora. E no entanto causava-lhe pena. Por quê? E teriam todas as outras despertado nele o mesmo sentimento, se as tivesse analisado tão minuciosamente como estava fazendo com ela, se tivesse escutado com tanta atenção o que elas diziam?
Olhou os membros do seu lado, que ocupavam as filas embaixo e em cima. Todos se pareciam com Maria KK, sorridentes e prontos a cantar as canções prediletas do Natal de Marx, e todos confrangedores: todo mundo que estava no anfiteatro, as centenas, os milhares, as dezenas de milhares. Seus rostos enchiam a monumental concha acústica como contas de bronze enfiadas em incomensuráveis elipses justapostas.
Os holofotes iluminaram a cruz dourada e a foice vermelha no centro da concha acústica. Soaram as quatro notas familiares dos clarins e todos cantaram:
Uma forte Família,
Raça única, pura perfeição,
Imune a todo egoísmo,
Agressividade e ambição;
Cada membro dando o que tem para dar,
Em troca do que necessita para se sustentar!
Ele, porém, achou que a Família não era forte, mas fraca, confrangedora e deplorável, entorpecida por produtos químicos e desumanizada por pulseiras. Uni é que era forte.
Uma forte Família,
Raça única, pura nobreza,
Cujos filhos, sem medo,
Riscam dos ares a incerteza...
Cantou os versos mecanicamente, achando que Lilás tinha razão: os tratamentos atenuados provocavam uma infelicidade inédita.
No domingo de noite, às onze, encontrou-se com Floco de Neve entre os edifícios da parte inferior da Praça Cristo. Abraçaram-se e beijou-a com gratidão, contente com a sexualidade, humor, pele clara e gosto amargo de fumo que trazia — tudo coisas que só ela e mais ninguém possuía.
— Por Cristo e Wei — exclamou, — que prazer ver você.
Ela abraçou-o mais forte ainda e sorriu de alegria.
— Esse negócio de conviver com normais dá pra encher, não dá? perguntou.
— E como. Hoje de manhã, no futebol, em vez de chutar a bola, me deu vontade de chutar o time.
Ela riu.
Ele andava deprimido desde o canto orfeônico. Agora sentia-se aliviado, feliz, cheio de coragem.
— Arrumei uma namorada — anunciou, — e adivinha só: fodi com ela sem o menor problema.
— Que ódio.
— Não foi tão demorado nem tão satisfatório como conosco, mas não houve o mínimo problema. Não tive de esperar uma eternidade.
— Poupe-me os detalhes.
Ele sorriu, apalpando-lhe as ancas e detendo-se nos quadris.
— Creio que logo mais sou capaz de repetir a dose — disse, atiçando-a com os polegares.
— Teu ego está crescendo a olhos vistos.
— Não é só o meu ego.
— Vem, irmão — disse ela, livrando-se de suas mãos e segurando uma, — é melhor irmos andando antes que você se ponha a cantar.
Dirigiram-se à praça, atravessando-a em sentido diagonal. Bandeiras e grinaldas murchas do Natal de Marx pendiam das árvores, quase imperceptíveis à claridade das ruas distantes.
— Aonde é que nós vamos mesmo? — perguntou, caminhando feliz. — Onde fica o lugar secreto de reunião dos mórbidos corruptores de jovens membros sadios?
— No Pré-U.
— No Museu?
— Exatamente. Cite melhor recanto pra um grupo de anormais que enganam Uni? Não há. Tinha que ser lá mesmo. Calma — disse, puxando-o pela mão, — não ande tão depressa.
Um membro, procedente da rua para onde se encaminhavam, vinha entrando na praça. Trazia na mão uma maleta ou telecomputador.
Quem seguiu com passo mais normal ao lado de Floco de Neve. O membro, aproximando-se — era um telecomputador que ele tinha — sorriu e acenou com a cabeça. Os dois também sorriram e acenaram ao cruzar por ele.
Desceram os degraus e saíram da praça.
— Ademais — continuou Floco de Neve, — aquilo lá fica deserto das oito da noite às oito da manhã e é uma fonte inacabável de cachimbos, roupas engraçadas e camas fora do comum.
— Vocês tiram alguma coisa?
— Nós deixamos as camas. Mas de vez em quanto a gente faz uso delas. Foi só por sua causa que encenamos aquela reunião solene na sala de conferências da diretoria.
— Que mais vocês fazem?
— Ah, a gente senta pelos cantos e se queixa um pouco. Nesse setor, Lilás e Leopardo sempre levam vantagem. Eu me contento com sexo e fumo. Rei faz paródia de alguns programas de televisão. Espere só pra ver como é engraçado.
— O uso que vocês fazem das camas — perguntou Quem, é feito em base de grupo?
— Só a dois, meu bem. Não somos tão Pré-U quanto você pensa.
— Com quem você já as usou?
— Com Pardal, ora. A necessidade é a mãe dos etcéteras. Coitada, agora fico com pena dela.
— Está-se vendo.
— Fico, sim! Bom, paciência. Tem um pênis artificial nos Artefatos do Século Dezenove. Ela não vai morrer só por causa disso.
— Rei acha que devíamos arrumar um homem pra ela.
— Devíamos mesmo. Seria uma situação bem preferível, ter quatro casais.
— Foi o que Rei disse.
Enquanto percorriam o andar térreo do museu — iluminando o caminho escuro, repleto de estranhas silhuetas, com a lanterna fornecida por Floco de Neve — foram surpreendidos por outra luz lateral.
— Ei, pessoal! — chamou uma voz bem perto.
Levaram um susto.
— Desculpem. Sou eu, Leopardo.
Floco de Neve virou a lanterna para o carro do século vinte e a luz que vinha do seu interior se apagou. Aproximaram-se do lustroso veículo de metal. Leopardo, sentado ao volante, era membro idoso de cara redonda com chapéu de plumas cor de laranja. Tinha uma porção de manchas escuras no nariz e no rosto. Estendeu a mão, também manchada, pela janela do carro.
— Parabéns, Quem — disse. — Que bom que você passou no teste.
Quem apertou-lhe a mão e agradeceu.
— Vai dar um passeio? — perguntou Floco de Neve.
— Já dei — respondeu ele. — Fui até o Japão e voltei. Volvo não tem mais combustível. E pensando bem, está todo molhado.
Sorriram para ele e entre si.
— Fantástico, não é? — comentou ele, girando o volante e mexendo uma alavanca que saía do eixo. — O motorista exercia completo controle, do princípio ao fim, usando as duas mãos e os dois pés.
— Devia dar solavanco que não era brinquedo — opinou Quem.
— Sem falar no perigo. — acrescentou Floco de Neve.
— Mas também devia ser divertido, prever as estradas pra seguir até o destino, calcular os movimentos em relação aos outros carros...
— Errar o cálculo e morrer. — completou Floco de Neve.
— Acho que isso realmente não acontecia com tanta frequência como dizem — retrucou Leopardo. — Do contrário eles teriam feito a parte fronteira dos carros bem mais resistente.
— Mas assim eles ficariam muito pesados e teriam de andar ainda mais devagar — lembrou Quem.
— Onde está Cochicho? — perguntou Floco de Neve.
— Lá em cima, com Pardal — respondeu Leopardo.
Abriu a porta do carro e saiu de lanterna em punho.
— Elas estão arrumando as coisas. Botaram outros troços na sala.
Levantou o vidro da janela até a metade e fechou bem a porta. Um grosso cinto marrom, enfeitado com tachões de metal, apertava-lhe a túnica.
— E Rei e Lilás? — indagou Floco de Neve.
— Andam nalgum canto, por aí.
Fazendo uso das camas, pensou Quem — enquanto os três percorriam o museu.
Tinha pensado bastante em Rei e Lilás depois de ter conhecido Rei e ver como era velho — com cinquenta e dois, ou três, quem sabe até mais. Tinha pensado na diferença de idade entre ambos — trinta anos, com toda a certeza, no mínimo — e no modo como Rei lhe dissera para não se meter com Lilás. E nos olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás e em suas mãos, que haviam pousado, pequenas e quentes, sobre os joelhos dele quando ela se agachara a seus pés, incitando-o à vida e percepção mais amplas.
Subiram os degraus da imóvel escada rolante central e percorreram o segundo andar do museu. As duas lanternas, de Floco de Neve e Leopardo, bailavam sobre armas de fogo e punhais, lâmpadas e fios elétricos, pugilistas sangrando, reis e rainhas cobertos de jóias e roupas guarnecidas de pele, e os três mendigos, imundos e aleijados, exibindo suas deformidades e pedindo esmola. Por trás do trio de mendigos, o tabique fora corrido para o lado, abrindo uma passagem estreita que se estendia até o fundo do prédio, os primeiros metros iluminados pela luz de uma porta na parede à esquerda. Uma voz feminina falava baixinho. Leopardo tomou a dianteira e entrou pela porta, enquanto Floco de Neve, parada junto dos mendigos, tirava pedaços de esparadrapo de um estojo de emergência.
— Floco de Neve está aí com Quem — anunciou Leopardo no interior da sala.
Quem cobriu a placa da pulseira com um pedaço de esparadrapo e alisou-a com firmeza.
Dirigiram-se à porta e entraram num recinto abafado, cheirando a fumo, onde havia uma velha e uma moça, sentadas lado a lado em poltronas Pré-U, com duas facas e um monte de folhas marrons em cima da mesa à sua frente: Cochicho e Pardal. Apertaram a mão de Quem e o felicitaram. Cochicho tinha olhos enrugados e era sorridente. Pardal, toda angulosa e encabulada, estava com a mão quente e úmida. Leopardo colocou-se ao lado de Cochicho, segurando uma espiral térmica no fornilho de um cachimbo preto retorcido e soprando fumaça em torno do cabo.
A sala, bastante ampla, servia de depósito, atulhado até o teto de relíquias Pré-U, recentes e primitivas: máquinas, móveis, quadros e trouxas de roupas; espadas e petrechos de madeira; uma estátua de um membro com asas, um “anjo”; meia dúzia de caixotes, abertos, fechados, marcados IND26110 a estêncil, com rótulos quadrados amarelos colados nos cantos. Olhando ao redor, Quem comentou:
— Aqui tem o suficiente pra fundar outro museu.
— E é tudo autêntico — disse Leopardo. — Certas peças do mostruário não são, você sabia?
— Não.
Uma variedade de poltronas e bancos espalhava-se pela parte dianteira da sala. Quadros encostavam-se às paredes e viam- se caixas de papelão contendo relíquias menores e pilhas de livros estragados. O quadro de uma imensa represa chamou a atenção de Quem. Afastou uma poltrona para admirá-lo melhor. A represa, quase uma montanha, flutuava acima da terra sob um céu azul, pintada com minúcias e chocante para os sentidos.
— Que quadro esquisito — comentou.
— Os de Cristo — disse Cochicho, — o mostram com uma luz em torno da cabeça e ele não parece nada humano.
— Eu já vi — disse Quem, admirando a represa, — mas nunca tinha visto nada semelhante a isso. É fascinante: real e irreal ao mesmo tempo.
— Você não pode levá-lo — preveniu Floco de Neve. — Não podemos levar nada que possam dar falta.
— De qualquer maneira eu não tenho lugar pra botar — disse Quem.
— Que tal você está achando o tratamento atenuado? — perguntou Pardal.
Quem virou-se para ela. Pardal desviou os olhos, concentrando-se nas próprias mãos, que seguravam um rolo de folhas e uma faca. Cochicho estava fazendo o mesmo, tosquiando rapidamente um rolo de folhas, cortando-o em tiras finas que se empilhavam diante da faca. Floco de Neve ficara sentada, de cachimbo na boca. Leopardo segurava a espiral térmica no fornilho.
— Formidável — respondeu Quem. — Literalmente. Repleto de surpresas. E cada dia novas. Sinto-me grato a todos vocês.
— Fizemos apenas o que nos mandam fazer — disse Leopardo, sorrindo — Ajudamos um irmão.
— Não propriamente da maneira aprovada — frisou Quem.
Floco de Neve ofereceu-lhe a cachimbo.
Ele aproximou-se e aceitou. O fornilho estava quente e o fumo era cinzento, fumegante. Hesitou um momento, sorriu para os outros que o observavam, e pôs o cabo entre os lábios. Chupou- o um pouco e soprou a fumaça. Tinha um gosto forte, mas surpreendentemente agradável.
— Nada mau — comentou.
Fez tudo de novo, com mais segurança. Parte da fumaça entrou-lhe pela garganta e ele tossiu.
Leopardo, dirigindo-se sorridente à porta, avisou:
— Vou buscar um pra você.
E saiu.
Quem devolveu o cachimbo a Floco de Neve e sentou-se, pigarreando, num banco escuro de madeira gasta. Contemplou Cochicho e Pardal a cortar o fumo. Cochicho sorriu.
— Onde vocês conseguem as sementes? — perguntou-lhe.
— Nas próprias plantas.
— E de onde vieram as primeiras?
— Rei tinha.
— O que é que eu tinha? — perguntou Rei, entrando, alto, magro, de olhos brilhantes, um medalhão de ouro pendurado a uma corrente sobre o peito da túnica. Lilás surgiu logo atrás, de mãos dadas com ele. Quem levantou-se. Ela olhou para ele, extraordinária, morena, bonita, moça.
— As sementes de fumo — explicou Cochicho.
Rei estendeu a mão para Quem, sorrindo cordialmente.
— Que bom ver você por aqui — disse.
Quem apertou-lhe a mão: era firme e calorosa.
— É realmente um prazer ver uma cara nova no grupo — continuou Rei. — Especialmente uma masculina, pra me ajudar a manter essas mulheres Pré-U em seus devidos lugares!
— Hã — fez Floco de Neve.
— Gostei muito do ambiente — respondeu Quem, encantado com a cordialidade de Rei. Sua frieza, quando saíra de seu gabinete, decerto tinha sido puro fingimento, sem dúvida por causa dos médicos presentes. — Obrigado — continuou, — por tudo. A vocês dois.
— Estou contentíssima, Quem — disse Lilás, sempre de mãos dadas com Rei.
Era mais morena que o normal, de um mate adorável, levemente rosado. Tinha olhos grandes e quase horizontais, lábios nacarados que pareciam macios. Virou-se e disse:
— Olá, Floco de Neve.
Largou a mão de Rei, aproximou-se de Floco de Neve e beijou-a no rosto.
Não podia ter mais que vinte ou vinte e um anos. Os bolsos superiores da túnica continham qualquer coisa, dando-lhe o aspecto das mulheres de seios que Karl desenhara. Tinha uma aparência estranha, misteriosamente sedutora.
— Já está começando a se sentir diferente, Quem? — perguntou Rei.
Achava-se junto à mesa, debruçado, colocando fumo no fornilho de um cachimbo.
— Sim, muitíssimo — respondeu. — Exatamente como você disse que ia ser.
Leopardo aproximou-se.
— Pronto, Quem.
Entregou-lhe um cachimbo amarelo de fornilho grosso, com cabo de âmbar. Quem agradeceu e apalpou-o: tinha peso agradável e acomodava-se bem aos lábios. Levou-o à mesa, e Rei, balanceando o medalhão de ouro, mostrou-lhe a maneira certa de enchê-lo.
Leopardo conduziu-o através do departamento da diretoria do museu, mostrando-lhe outros quartos de depósitos, a sala de conferências, diversos escritórios e oficinas.
É aconselhável — explicou, — que alguém tenha uma ideia aproximada de onde os outros andam durante estas nossas reuniões, pra depois passar uma vistoria e certificar-se de que nada ficou conspicuamente fora do lugar. As mulheres podiam ser bem mais cuidadosas do que são. Em geral, quem faz isso sou eu, mas depois que eu for embora você talvez me substitua. Os normais não são tão maus observadores quanto gostaríamos que fossem.
— Você espera ser transferido?
— Oh, não. Eu morrerei dentro de pouco tempo. Já completei sessenta e dois anos há quase três meses. Cochicho está na mesma situação.
— Sinto muito — disse Quem.
— Nós também — retrucou Leopardo, — mas ninguém vive eternamente. As cinzas do fumo constituem um risco, lógico, mas todo mundo sabe tomar cuidado. Não precisa preocupar-se com o cheiro: o ar condicionado começa a funcionar às sete e quarenta e elimina logo tudo. Uma manhã eu fiquei e tirei a prova. Pardal se encarregará da plantação do fumo. Nós secamos as folhas aqui mesmo, atrás do reservatório de água quente. Vou mostrar-lhe.
Quando voltaram à sala de depósito, encontraram Rei e Floco de Neve sentados a cavalo, frente a frente em cima de um banco, concentrados numa espécie de jogo mecânico. Cochicho dormia numa poltrona e Lilás, agachada ao pé do monte de relíquias, retirava livros, um a um, de uma caixa de papelão, examinando- os e depois empilhando-os no chão. Pardal não estava presente.
— O que é isso? — perguntou Leopardo.
— Um novo jogo que receberam — respondeu Floco, sem levantar a cabeça.
Havia alavancas que eles calcavam e soltavam, uma para cada mão, fazendo com que pazinhas batessem numa bola enferrujada para trás e para frente numa taboa de beiras metálicas. As pás, algumas quebradas, rangiam a cada pressão. A bola saltava pra cá e pra lá, indo parar numa depressão da taboa no lado de Rei,
— Cinco! — exclamou Floco. — Ganhei, irmão!
Cochicho abriu os olhos, mirou os dois, e tomou a fechá-los.
— Perder ou ganhar, dá tudo no mesmo — disse Rei, acendendo o cachimbo com um isqueiro de metal.
— Dá no mesmo uma ova — retrucou Floco. — Quem? Vem, agora é sua vez.
— Não, prefiro assistir — recusou com um sorriso.
Leopardo também não quis jogar, e Rei e Floco de Neve começaram outra partida. Num intervalo do jogo, quando Rei tinha marcado um ponto contra Floco, Quem perguntou:
— Quer mostrar-me o isqueiro?
Rei entregou-lhe. Um dos lados tinha uma ave pintada com as asas abertas. Parecia um pato. Quem já vira isqueiros em museus, mas nunca acendera um. Abriu a tampa móvel e apertou o polegar contra a roda dentada. Na segunda tentativa a pedra pegou fogo. Fechou o isqueiro, examinou-o meticulosamente e esperou a pausa seguinte para devolvê-lo a Rei.
Acompanhou o jogo por mais alguns instantes e depois afastou-se. Dirigiu-se ao monte de relíquias, olhou-o, e por fim aproximou-se de Lilás. Ela levantou a cabeça, sorriu-lhe, e colocou um livro sobre uma das várias pilhas a seu lado.
— Não perco a esperança de achar um na nossa língua — explicou, — mas são sempre escritos nas antigas.
Agachou-se e pegou o volume que ela acabara de colocar na pilha. Na lombada, em letras minúsculas, lia-se: Bädda för död.
— Hum — fez, sacudindo a cabeça.
Folheou as velhas páginas amareladas, só encontrando palavras e frases esquisitas: allvarlig, lögnerska, dök ner pa brickorna. Os dois pontinhos e os pequenos círculos pairavam sobre várias letras.
— Alguns são bastante parecidos com a nossa língua, de modo que dá pra se entender uma palavra ou duas — disse ela, — mas tem outros que... tira só uma linha deste aqui.
Mostrou-lhe um livro que Ns invertidos e; caracteres retangulares, abertos embaixo, estavam misturados com Ps, Es e Os ordinários.
— Ora, o que isso significa? — perguntou ela, largando o volume no chão.
— Seria interessante achar um que se pudesse ler — disse, fitando a suavidade morena-rosa do rosto dela.
— Sim, seria — concordou, — mas tenho a impressão de que eles foram separados antes de virem pra cá e por isso não se encontra nenhum.
— Você acha que foram separados?
— Devia haver uma porção no nosso idioma. Como é que podia tornar-se o nosso idioma se não fosse o mais usado?
— Sim, claro. Tem razão.
— Mas não perco a esperança de que tivesse havido um lapso na separação.
Os bolsos cheios agitavam-se com os movimentos que ela fazia e de repente Quem teve a impressão de que estavam vazios, colados a seios redondos, como os que Karl desenhara: os seios, por assim dizer, de uma mulher Pré-U. Era bem possível, considerando-se a pele escura anormal e as várias anomalias físicas de quase todo o grupo. Olhou-a de novo no rosto, para não embaraçá-la se de fato possuísse seios.
— Pensei que estivesse examinando esta caixa de papelão pela segunda vez — disse ela, — mas tenho a sensação engraçada de que é pela terceira.
— Mas por que, haveriam de separar os livros? — perguntou-lhe.
Ela fez uma pausa, apoiando os cotovelos aos joelhos, as mãos morenas caídas, vazias, fitando-o solenemente com aqueles olhos grandes horizontais.
— Acho que nos ensinaram coisas erradas — respondeu. — Como era a vida antes da Unificação, por exemplo. No fim da Pré-U, não no começo.
— Que coisas?
— A violência, a agressividade, a ambição, a hostilidade. Suponho que houvesse um pouco disso, mas não posso crer que fosse unicamente o que havia, que é, de fato, o que nos ensinam. E os “patrões” castigando os “operários”, e todas as doenças, alcoolismo, fome e autodestruição. Você acredita nisso?
Ele a olhou.
— Não sei — respondeu. — Não pensei muito no assunto.
— Vou dizer-lhe o que é que eu não acredito. — interveio Floco de Neve, levantando-se do banco, a partida com Rei evidentemente acabada. — Eu não acredito que eles cortassem o prepúcio dos menininhos. No começo da Pré-U, pode ser... mas no começo, bem no começo... não no fim. É simplesmente incrível. Quero dizer, eles tinham alguma espécie de inteligência, não tinham?
— E incrível, sim — concordou Rei, batendo o cachimbo na palma da mão, — mas eu vi fotografias. Pelo menos diziam que eram fotografias.
Quem virou as costas e sentou-se no chão.
— O que é que você quer dizer? — perguntou. — as fotografias podem... não ser autênticas?
— Evidentemente — disse Lilás. — Examine bem a parte interna de algumas. Tem detalhes que foram acrescentados. E outros suprimidos.
E começou a guardar os livros na caixa.
— Nunca imaginei que fosse possível — disse Quem.
— Com as unidimensionais é — disse Rei.
— O que nós provavelmente recebemos — disse Leopardo (estava sentado numa cadeira dourada, brincando com a pluma cor de laranja do chapéu) — é uma mistura de verdade e mentira. Sabe-se lá onde começa uma e termina a outra, e qual a proporção de cada uma delas.
— Não daria pra gente estudar estes livros e aprender as línguas? — perguntou Quem. — Uma só já chegava.
— Pra quê? — estranhou Floco de Neve.
— Pra descobrir. O que é verdade e o que não é.
— Já tentei — disse Lilás.
— De fato, ela tentou — disse Rei, sorrindo para Quem. — Há pouco tempo atrás, nem quero me lembrar, passava noites inteiras perdendo tempo em decifrar estas mixórdias sem nexo. Não caia nessa, Quem, por favor.
— Por que não? — perguntou Quem. — Talvez eu tenha mais sorte.
— E suponhamos que tenha? — retrucou Rei. — Suponhamos que você decifre uma língua e leia um punhado de livros, descobrindo que nos ensinaram coisas erradas. Pode ser até que tudo seja mentira. Talvez a vida no ano 2.000 depois de Cristo fosse um interminável orgasmo, cada um escolhendo a classificação que bem entendesse, ajudando seus irmãos e completamente cheio de amor, de saúde e necessidades de vida. E daí? Você continuaria exatamente no mesmo lugar, no ano 162, depois da Unificação, com pulseira, conselheiro e tratamento mensal. Ficaria apenas mais triste. Todos nós ficaríamos.
Quem franziu a cara e olhou para Lilás. Ela estava enchendo a caixa de livros, virada para outro lado. Ele olhou para Rei, pensando na resposta que ia dar.
— Mesmo assim valeria a pena — afirmou. Estar contente ou triste... será que isso é o que realmente importa? Saber a verdade seria uma espécie de felicidade diferente... mais satisfatória, a meu ver, mesmo que resultasse em tristeza.
— Uma espécie de felicidade triste? — retrucou Rei, sorrindo. — Não vejo nada disso.
Leopardo parecia pensativo.
Floco de Neve pediu, com um gesto, para Quem se levantar.
— Vem — convidou, — tem uma coisa que eu lhe quero mostrar.
Ele se pôs em pé.
— Mas provavelmente descobriríamos apenas uma série de exageros — disse. — Que, por exemplo, havia fome, mas não tanta assim, e que a agressividade não chegava a nenhum excesso. Talvez alguns detalhes tenham sido inventados, como a circuncisão e a veneração pelas bandeiras.
— Se você pensa assim, então nem há dúvida de que não vale a pena — disse Rei. — Já pensou no trabalhão que teria? Seria tremendo.
Quem encolheu os ombros.
— Seria bom saber, mais nada — disse.
Olhou para Lilás: estava guardando os últimos livros dentro da caixa de papelão.
— Vem — disse Floco de Neve, puxando-o pelo braço. — Deixem um pouco de fumo pra nós, hem membros?
Os dois saíram para a escuridão do corredor de mostruários. A lanterna de Floco de Neve iluminava o caminho.
— O que é? — perguntou Quem. — O que que você me quer mostrar?·
— O que é que você acha? Uma cama. Livros certamente é que não havia de ser.
Em geral reuniam-se duas noites por semana, aos domingos e quartas — dia consagrado a Wood — ou quintas. Fumavam, conversavam e se divertiam com relíquias e objetos de mostruário. Pardal às vezes cantava canções que ela mesma compunha, acompanhando-se num instrumento que segurava no colo e cujas cordas, vibradas pelos dedos, produziam agradável música antiga. As canções, curtas e tristonhas, versavam sobre crianças que viviam e morriam em naves espaciais, amantes que eram transferidos, o eterno mar. Rei às vezes reencenava o programa de televisão da véspera, imitando comicamente um conferencista de controle climatológico ou um coro de cinquenta figuras cantando Minha Pulseira. Quem e Floco de Neve faziam uso da cama do século dezessete e do sofá do século dezenove, da carroça de granja do início da Pré-U e do tapete plástico do fim da Pré-U. Nas noites em que não havia reunião, às vezes iam ao quarto de um ou de outro. O número na porta de Floco era Ana PY24A9155: o 24, que Quem não resistiu calcular, dava-lhe trinta e oito anos, sendo portanto mais velha do que imaginara.
Dia a dia, seus sentidos se aguçavam e a inteligência ficava mais alerta, impaciente. O tratamento o continha e entorpecia de novo, mas só por uma semana, no máximo. Depois tornava a despertar, a viver. Dedicou-se a aprender a língua que Lilás tentara decifrar. Ela lhe mostrou os livros que estudara e as listas de vocabulário que organizara. Momento significava a mesma coisa; silenzio era silêncio. Tinha feito várias páginas de traduções facilmente reconhecíveis. Mas havia palavras em cada frase dos livros que só dava para adivinhar e comparar as adivinhações em outro lugar. Allora seria “então” ou “já”? O que queria dizer quale? E sporse e rimanesse? Trabalhou em cima dos livros uma hora, mais ou menos, durante cada reunião. As vezes ela se curvava sobre seu ombro, para ver o que estava fazendo. Dizia: “Ah, claro!” ou “Isso aí não podia ser um dos dias da semana?” — mas passava a maior parte do tempo perto de Rei, enchendo-lhe o cachimbo e escutando o que ele dizia. Rei observava Quem estudando e, refletido pelos vidros dos móveis Pré-U, sorria para os outros e arqueava as sobrancelhas.
Quem encontrava-se com Maria KK nas noites de sábado e nas tardes de domingo. Comportava-se normalmente com ela: passeavam sorridente pelo Jardim de Diversões e fodiam simplesmente, sem paixão. No serviço procedia como um normal, seguindo lentamente os métodos prescritos. Proceder como um normal começou a irritá-lo, cada vez mais, à medida que as semanas se sucediam.
Em julho, Cochicho morreu. Pardal escreveu uma canção em sua memória, e quando Quem voltou para seu quarto depois da reunião em que ela a cantara, ela e Karl (por que não se lembrara dele antes?) subitamente surgiram juntos em seu pensamento. Pardal era grande e desajeitada, mas ficava linda quando cantava: tinha cerca de vinte e cinco anos e vivia muito sozinha. Karl ficara presumivelmente curado depois que Quem o “ajudara”, porém quem sabe não teria tido a força, ou a capacidade genética, ou seja lá o que fosse para resistir à cura, pelo menos até certo ponto? Tal como Quem, ele era um 663: havia a possibilidade de que estivesse mesmo, nalguma parte do Instituto, o candidato ideal para ser incluído no grupo: o par ideal de Pardal. Certamente valia a pena tentar. Que prazer, realmente ajudar Karl! Com tratamento atenuado, desenharia — puxa, as coisas que desenharia! — quadros que ninguém jamais teria imaginado! Na manhã seguinte, assim que acordou, tirou da sacola de viagem a sua agencia de números mais recente, encostou a pulseira ao telefone e leu em voz alta o de Karl. A tela, porém, continuou vazia e a voz da telefonista pediu-lhe desculpas: o membro que ele tinha chamado não fora localizado.
Beto RO tocou no assunto alguns dias depois, no momento exato em que já se levantava da cadeira para ir embora.
— Ah, me diga uma coisa — disse Beto: — por que é que você se lembrou de telefonar pra aquele tal de Karl WL?
— Oh — retrucou Quem, parado em pé ao lado da cadeira.
— Queria saber como é que ele ia. Agora que já estou bem, acho que fiquei com vontade de me certificar se todo mundo também estava.
— Evidente que ele está bem — disse Beto. — Que estranho se lembrar de fazer isso depois de tantos anos.
— Acontece apenas que me lembrei — explicou Quem.
Procedia como um normal desde o primeiro carrilhão até o último e encontrava-se com o grupo duas vezes por semana. Continuava estudando a língua — chamava-se Italiano — embora suspeitasse de que Rei tinha razão e não servisse para nada. Em todo o caso, sempre era uma ocupação e parecia-lhe mais útil do que brincar com jogos mecânicos. E de vez em quando provocava a aproximação de Lilás, curvada para olhar, com uma mão sobre o forro de couro da mesa que ele ocupava e a outra no encosto da cadeira. Sentia-lhe o cheiro — não era imaginação: ela de fato recendia a flores — e podia contemplar o seu rosto moreno, o pescoço, e o peito da túnica, esticado por duas protuberâncias redondas e móveis. Eram seios. Não havia a menor dúvida que eram.
4
Uma noite, em fins de agosto, enquanto procurava mais livros em Italiano, encontrou um numa língua diferente, cujo título, Vers 1’avenir, era semelhante às palavras italianas verso e avvenire e pelo jeito significava Rumo ao Futuro. Abriu o volume, folheou as páginas e Wei Li Chun chamou-lhe a atenção, impresso na parte de cima de vinte ou trinta delas. Outros nomes ocupavam o cabeçalho de várias páginas: Mario Sofik, A. F. Liebman. Compreendeu que o livro era uma coletânea de ensaios de diversos escritores, sendo que dois eram realmente de autoria de Wei. O título de um deles, Le pas prochain en avant, ele reconheceu (pas seria passo; avant, avanti) como “O próximo passo em frente”, que constava da Primeira Parte de “A Sabedoria Viva de Wei".
O valor daquela descoberta, como logo se deu conta, deixou-o estarrecido. Ali, nesse pequeno livro de capa marrom, quase solta, preza por tênues fios, havia doze ou quinze páginas em idioma Pré-U, das quais ele possuía uma tradução exata à sua espera na gaveta da mesa de cabeceira. Milhares de vocábulos, de verbos em suas formas desconcertantemente mutantes: em vez de adivinhar e andar às cegas, como tinha feito com os fragmentos quase inúteis de Italiano, poderia ganhar base sólida nessa segunda língua em questão de horas!
Não disse nada aos outros: meteu o livro no bolso e juntou-se ao grupo. Encheu o cachimbo como se não tivesse acontecido nenhuma coisa de extraordinário. Le pas-não-sei-o-quê-avant, afinal de contas, talvez não fosse “O próximo passo em frente”. Mas era, tinha de ser.
Era: percebeu logo ao comparar as primeiras frases. Passou a noite inteira sentado no quarto, lendo e comparando cuidadosamente, com um dedo nas linhas em idioma pré-U e outro nas da tradução. Repassou duas vezes o ensaio de quatorze páginas e depois começou a fazer listas de vocábulos por ordem alfabética.
Na noite do dia seguinte sentiu cansaço e dormiu, mas na próxima, depois de uma visita de Floco de Neve, ficou acordado e trabalhou de novo.
Começou a ir ao museu nas noites em que não havia reunião. Lá dava para fumar enquanto trabalhava, podia procurar outros livros em Français — Français era o nome da língua: o gancho por baixo do C era um mistério — e perambular pelos corredores com a lanterna. No terceiro andar encontrou um mapa de 1951, habilidosamente remendado em vários lugares, onde Eur era “Europa”, com a divisão chamada “França”, onde tinham utilizado o Français, e todas aquelas cidades de nomes estranhos e sonoros: “Paris”, “Nantes”, “Lyon” e “Marselha”.
Mesmo assim, não falou nada para os outros. Queria confundir Rei com uma língua que dominasse por completo, e deslumbrar Lilás. Não estudava mais Italiano durante as reuniões. Uma noite Lilás perguntou-lhe por quê, e ele respondeu, sinceramente, que desistira de tentar decifrá-la. Ela virou-lhe as costas, com ar de decepção, e ele ficou contente, sabendo a surpresa que lhe estava preparando.
As noites de sábado eram um desperdício, deitado na cama com Maria KK, e as das reuniões também. Apesar de que, agora, depois da morte de Cochicho, Leopardo às vezes não aparecia e nessas ocasiões Quem permanecia no museu para deixar tudo em ordem e aproveitava para ficar até bem tarde, estudando.
Em três semanas já lia Français rapidamente, com apenas uma palavra aqui e outra ali indecifráveis. Encontrou vários livros em Français. Leu um, cujo título, traduzido, era Os Crimes da Foice Vermelha. E outro: Os Pigmeus da Selva Equatorial. E outro: O Pai Goriot.
Esperou por uma noite em que Leopardo não apareceu, e afinal contou-lhes. Rei fez uma cara de quem parecia ter recebido más notícias. Mediu Quem de alto a baixo, o rosto tenso e controlado de repente- mais velho e mais magro. Lilás dava impressão de ter ganho um presente há muito cobiçado.
— Você leu livros nessa língua? — perguntou.
E arregalou os olhos brilhantes, os lábios entreabertos.
Mas nenhuma reação podia dar a Quem o prazer que imaginara. Sentia-se grave com o peso do que agora sabia.
— Li três — respondeu a Lilás. — E já estou na metade do terceiro.
— Que beleza, Quem! — exclamou Floco de Neve.
— Pra que você fez tanto segredo?
E Pardal:
— Nunca pensei que fosse possível.
— Parabéns, Quem — disse Rei, tirando o cachimbo da boca. — E uma proeza, mesmo com o auxílio do ensaio. Você realmente me botou no meu lugar.
Contemplou o cachimbo, mexendo no tubo para deixar na posição correta.
— Que foi que você descobriu até agora? Algo interessante?
Quem olhou para ele.
— Sim — respondeu. — Uma porção de coisas que nos ensinaram é verdade. Havia crime, violência, imbecilidade e fome. Todas as portas tinham fechadura. As bandeiras e os limites dos territórios eram importantes. Os filhos esperavam que os pais morressem pra poder herdar o dinheiro deles. O desperdício de trabalho e material era fantástico.
Virou-se para Lilás com um sorriso de consolo: o presente há tanto cobiçado estava se partindo em pedaços.
— Mas apesar disso tudo — continuou, — os membros pareciam ter sentimentos mais fortes e felizes que os nossos. Iam aonde queriam, faziam o que bem entendiam, “ganhavam" coisas, “possuíam” coisas, escolhendo, sempre escolhendo... tomando-se de certo modo mais vivos que os membros de hoje.
Rei estendeu a mão para pegar fumo.
— Bem, é bastante parecido com o que você esperava encontrar, não é? — perguntou.
— Sim, bastante — disse Quem. — E tem outra coisa ainda.
— O quê? — indagou Floco de Neve.
Quem fitou Rei e respondeu:
— Cochicho não precisava ter morrido.
Rei olhou para ele. Os outros fizeram o mesmo.
— O que é que você está falando aí? — disse Rei, os dedos imóveis sobre o cachimbo que enchia.
— Não sabe?
— Não. Não compreendo.
— A que é que você se refere? — perguntou Lilás.
— Você não sabe, Rei?
— Não — respondeu Rei. — O que é que... eu não tenho a mínima ideia do que você está querendo insinuar. Como poderiam esses livros Pré-U informar-lhe algo a respeito de Cochicho? E por que é que eu devia saber o que é, caso pudessem?
— Viver até à idade de sessenta e dois anos — respondeu Quem, — não é nenhuma maravilha proporcionada pela química, educação e bolos integrais. Os pigmeus da selva equatorial, cuja vida era difícil mesmo pelos padrões Pré-U, chegavam aos cinquenta e cinco, sessenta. Um membro chamado Goriot viveu até os setenta e três e ninguém viu nisso nada de extraordinário, e olhem que foi no início do século dezenove. Os membros ultrapassavam os oitenta, os noventa inclusive!
— Não pode ser — retrucou Rei. — O corpo não duraria tanto: o coração, os pulmões...
— O livro que eu estou lendo agora — prosseguiu Quem, — é sobre alguns membros que viveram em 1991. Um deles tem um coração artificial. Ele deu dinheiro aos médicos e eles colocaram o coração nele, no lugar do que ele tinha.
— Ora, pelo... — começou Rei. — Você tem certeza que de fato entende o tal Frandês?
— Français — corrigiu Quem. ·— Sim, tenho. Absoluta. Sessenta e dois anos não é vida longa, é até relativamente curta.
— Mas é quando nós morremos — frisou Pardal. — Então por que morreríamos se não fosse... quando temos de morrer?
— Nós não morremos... — disse Lilás, olhando para Quem e depois para Rei.
— Exatamente — concordou Quem. — Somos obrigados a morrer. Por Uni. Tudo em nome da eficiência, em primeiro e último lugar, sempre em nome dela. Ele esquadrinhou todos os dados em suas comportas de memória... que não são os bonitos brinquedos cor-de-rosa que vocês viram se já estiveram lá, são feios monstros de aço... e decidiu que sessenta e dois é a idade ideal para morrer, melhor do que sessenta e um ou sessenta e três ou do que se amolar com corações artificiais. Se sessenta e dois não for um novo recorde de longevidade que tivemos a sorte de alcançar... e não é, eu sei que não é... então não há outra explicação. Os nossos substitutos são treinados, à espera, e lá nos vamos nós, com alguns meses de antecedência ou atraso, pra que tudo não desperte a suspeita de estar bem preparado demais. Por via das dúvidas, caso alguém se ache bastante doente pra ficar desconfiado.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou Floco de Neve.
— Sim — disse Quem, — Sobretudo Wood e Wei.
— Rei? — perguntou Lilás.
— Estou espantado — respondeu Rei. — Agora entendo, Quem, porque você pensou que eu soubesse.
E virando-se para Floco e Pardal:
— Ele descobriu que eu trabalho com quimioterapia.
— Você não sabia? — insistiu Quem.
— Não.
— É ou não é fato que existe um veneno nos aparelhos de tratamento? — perguntou Quem. — Isso você deve saber.
— Devagar, irmão, eu sou um membro velho — disse Rei. — Não existe veneno propriamente dito, não. Mas quase todos os componentes da instalação podem causar a morte se instilados em excesso.
— E você não sabe qual é a quantidade instilada quando o membro chega aos sessenta e dois anos?
— Não — respondeu Rei. — Os tratamentos são formulados por impulsos que passam diretamente do Uni aos aparelhos, e não há maneira de controlá-los. Eu posso perguntar a Uni, naturalmente, em que consiste, ou vai consistir, um determinado tratamento, mas se isso que você está dizendo é verdade — sorriu — ele me responderá com uma mentira, não é?
Quem respirou fundo.
— Sim — admitiu.
— E quando um membro morre — perguntou Lilás,
— os sintomas são de velhice?
— Eles são os que me ensinaram como sendo de velhice — frisou Rei. — Podem muito bem ser sintomas de algo completamente diferente.
Olhou para Quem.
— Você não encontrou nenhum livro de medicina nessa língua?
— Não.
Rei tirou o isqueiro do bolso e abriu-o com o polegar.
— É possível — disse. — Perfeitamente possível. Nunca me passou pela ideia. Os membros vivem até os sessenta e dois. Costumava ser menos, algum dia será mais. Temos dois olhos, duas orelhas, um nariz. Fatos estabelecidos.
Acendeu o isqueiro e aproximou a chama do cachimbo.
— Tem que ser verdade — afirmou Lilás. — É a consequência lógica final do pensamento de Wood e de Wei. Controle a vida de todo mundo e com o correr do tempo estará controlando a morte de todo mundo.
— É medonho — exclamou Pardal. — Ainda bem que Leopardo não está aqui. Já imaginaram como ele se sentiria? Não somente Cochicho, como ele mesmo qualquer dia destes. Não lhe podemos dizer nada: deixem que pense que vai acontecer naturalmente.
Floco de Neve lançou um olhar lúgubre sobre Quem.
— Pra que você teve de nos contar? — perguntou ela.
— Pra que pudéssemos experimentar um tipo de tristeza alegre — respondeu Rei. — Ou era um tipo de alegria triste, Quem?
— Julguei que vocês gostariam de saber — disse Quem.
— Por quê? — retrucou Floco de Neve. — Que podemos fazer? Reclamar aos nossos conselheiros?
— Vou explicar uma coisa que a gente pode fazer — disse Quem: — Começar a recrutar mais membros pra este grupo.
— Sim!—aplaudiu Lilás.
— E onde encontrá-los? — perguntou Rei. — Nós não podemos simplesmente pegar qualquer Karl ou Maria na rua, você sabe.
— Vai querer convencer-me de que no seu trabalho não há meio de obter uma cópia da lista de membros locais que possuem tendências anormais? — retrucou Quem.
— Sem dar um bom pretexto a Uni, não há — afirmou Rei. — Um passo em falso, irmão, e os médicos estarão me examinando. O que também significa, já que estamos falando nisso, que reexaminariam você.
— Há outros anormais por aí — disse Pardal. — Alguém anda escrevendo “Abaixo Uni” nos fundos dos prédios.
— Precisamos achar um meio pra que eles nos descubram — sugeriu Quem. — Uma espécie de sinal.
— E aí? — perguntou Rei. — Que faremos quando formos vinte ou trinta? Pedir uma visita em grupo e explodir Uni em pedaços?
— Já tive essa ideia — disse Quem.
— Quem! — exclamou Floco de Neve.
Lilás ficou olhando para ele.
— Antes de mais nada — objetou Rei com um sorriso, — ele é inexpugnável. E em segundo lugar, quase todos nós já estivemos lá, de maneira que não nos concederiam outra visita. Ou será que iríamos a pé, daqui até Eur? E o que faríamos com o mundo, depois que tudo ficasse descontrolado... as fábricas paradas, os carros espatifados e os carrilhões sem funcionar... imitar o pessoal da Pré-U e rezar uma oração?
— Se pudéssemos encontrar membros que conhecessem a teoria dos computadores e microondas — disse Quem, — membros que conhecessem Uni, talvez desse pra descobrir um jeito de mudar o funcionamento dele.
— Se pudéssemos descobrir esses membros — replicou Rei. — Se pudéssemos recrutá-los. Se pudéssemos chegar a Eur num abrir e fechar de olhos. Não vê o que você está pedindo? O impossível, simplesmente. Foi por isso que o aconselhei a não perder tempo com esses livros. Nós não podemos fazer nada sobre coisa alguma. Isto aqui é o mundo de Uni, quando será que você há de meter isso na cabeça? Foi-lhe entregue há cinquenta anos, e ele executará o serviço de que foi incumbido... disseminando a maldita Família por todo esse universo filho da luta... e nós faremos o nosso serviço, inclusive morrendo aos sessenta e dois anos, sem nunca deixar de assistir à televisão. O negócio está aqui mesmo, irmão: toda a liberdade que podemos almejar... um cachimbo, algumas piadas, um pouco de foda a mais. Não percamos o que conseguimos, ‘tá bom?
— Mas se nós recrutássemos outros...
— Canta uma canção, Pardal — disse Rei.
— Não estou com vontade.
— Canta uma canção!
— ‘Tá bem, eu canto.
Quem olhou furioso para Rei, levantou-se e saiu acintosamente da sala. Caminhou a passos largos pelo corredor escuro, bateu o quadril contra qualquer coisa dura, e seguiu adiante, praguejando. Afastou-se bem distante da passagem e da sala de depósito; ficou parado, esfregando a testa e sacudindo-se nos calcanhares diante daqueles reis e rainhas cintilantes de jóias, vigias mudos mais escuros que a treva.
— Rei — murmurou. — É o que ele acha que realmente é, o filho da luta...
Ouviu indistintamente o canto de Pardal e o tilintar da corda do instrumento Pré-U. E o ruído de passos, cada vez mais próximos.
— Quem?
Era Floco de Neve. Ele não se virou. Sentiu um puxão no braço.
— Vem, vamos voltar — disse ela.
— Me deixa em paz, sim? — pediu. — Preciso ficar um pouco sozinho.
— Anda — insistiu. — Não seja criança.
— Olha — respondeu, virando-se para ela. — Vai escutar Pardal, viu? Vai fumar o seu cachimbo.
Ela ficou em silêncio e depois disse:
— Está bem.
E foi embora.
Respirando fundo, tomou a se virar para os reis e rainhas. O quadril doía. Esfregou-o. Era enfurecedora a maneira como Rei repudiava cada ideia que tinha, obrigando todo mundo a fazer exatamente o que ele...
Ela vinha voltando. Preparou-se para mandá-la para o ódio, porém conteve-se. Tomou fôlego de dentes cerrados e virou-se.
Era Rei que se aproximava, o cabelo grisalho e a túnica iluminados pela fraca claridade da passagem. Chegou perto e parou. Olharam-se.
— Fui brusco sem querer — disse Rei.
— Como é que você ainda não pegou uma destas coroas? — interpelou Quem. — E um manto. Só aquele medalhão... ódio, isso não basta pra um verdadeiro rei Pré-U.
Rei conservou-se calado um momento.
— Desculpe — disse finalmente.
Quem respirou fundo e depois bufou.
— Cada membro que se conseguisse pro grupo — disse — significaria novas ideias, nova informação que a gente podia obter, possibilidades talvez nem imaginadas.
— E novos riscos também. Procure encarar do meu ponto de vista.
— Não posso. Prefiro voltar aos tratamentos completos do que me conformar só com isso.
— “Só com isso” parece muito bom pra um membro da minha idade.
— Você está vinte ou trinta anos mais perto dos sessenta e dois do que eu. Você é que devia querer mudar a situação.
— Se fosse possível mudar, talvez eu quisesse — retrucou Rei. — Mas quimioterapia mais computarização é igual a zero em matéria de mudança.
— Nem tanto — disse Quem.
— É, sim — afirmou Rei, — e eu não quero ver “só isso” ir por águas abaixo. O próprio fato de você vir aqui fora das noites de reunião constitui um risco desnecessário. Mas não se ofenda — ergueu a mão, — eu não estou pedindo pra que deixe de vir.
— Eu não deixaria mesmo. Não se preocupe, tomarei cuidado.
— Ótimo. E continuaremos a procurar anormais com a máxima prudência. Sem sinais.
Estendeu a mão. Depois de leve hesitação, Quem apertou-a.
— Agora volte comigo — pediu Rei. — As mulheres estão preocupadas.
Quem acompanhou-o em direção à passagem.
— Que foi aquilo que você falou antes, sobre as comportas da memória serem “monstros de aço”? — perguntou Rei.
— É o que elas são. Enormes blocos gelados, aos milhares. Meu avô me mostrou quando eu era menino. Ele ajudou a montar o Uni.
— O filho da luta...
— Não, ele estava arrependido. Preferia não ter ajudado. Por Cristo e Wei, se ele estivesse vivo, seria um membro maravilhoso que teríamos conosco.
Na noite do dia seguinte Quem estava sentado na sala de depósito, fumando e lendo, quando ouviu:
— Olá.
Era Lilás, parada na porta de lanterna na mão.
Levantou-se, olhando para ela.
— Não leva a mal a interrupção? — perguntou-lhe.
— Claro que não, estou contente por ver você. Rei também veio?
— Não.
— Entre — disse.
Ela permaneceu na porta.
— Eu quero que você me ensine aquela língua.
— Com todo o prazer. Ia mesmo perguntar se você não queria as listas. Mas entre.
Esperou que ela entrasse, depois reparou que continuava de cachimbo na mão, soltou-o e foi até ao monte de relíquias. Pegando pelas pernas uma das cadeiras que usavam, virou-a no sentido contrário e trouxe-a para junto da mesa. Ela já guardara a lanterna no bolso e estava olhando as páginas do livro que ele deixara aberto. Pôs a cadeira no chão, puxou a sua para o lado e colocou a segunda cadeira perto dela.
Ela virou a parte da frente do livro e contemplou a capa.
— Significa Um Motivo de Paixão — explicou-lhe. — O que é bastante óbvio. Mas de modo geral ele não é.
Ela examinou novamente as páginas abertas.
— Tem trechos que parecem Italiano — disse.
— Foi por isso que me interessei.
Segurava o encosto da cadeira que lhe trouxera.
— Passei o dia inteiro sentada. Sente-se você. Não faça cerimônia,
Ele sentou e tirou as listas dobradas de baixo da pilha de livros em Français.
— Pode ficar com elas o tempo que quiser — disse, abrindo-as e espalhando-as em cima da mesa. — Já sei praticamente tudo de cor.
Mostrou-lhe como os verbos se dividiam em conjugações, segundo modos diferentes de expressão, que mudavam para exprimir tempo e pessoa, e a maneira como os adjetivos assumiam uma ou outra forma, dependendo dos substantivos a que se referissem.
— É complicado — avisou, — mas depois que a gente encontra o fio da meada a tradução fica bastante fácil.
Traduziu-lhe uma pagina de Um Motivo de Paixão. Vítor, corretor de ações de várias firmas industriais — o membro que tinha recebido o coração artificial — censurava a esposa, Carolina, por ter tratado mal um legislador influente.
— Que fascinante — comentou Lilás.
— O que me surpreende é a quantidade de membros improdutivos que existia. Esses corretores e legisladores, soldados e polícias, banqueiros, coletores de impostos...
— Eles não eram improdutivos. Não produziam coisas, porém forneciam os meios pros membros viverem como viviam. Produziam a liberdade, ou pelo menos a mantinham.
— Sim — concordou, — creio que você tem razão.
— Eu sei que eu tenho — retrucou, afastando-se nervosa da mesa.
Ele refletiu um pouco.
— Os membros da Pré-U — disse. — sacrificavam a eficiência... em prol da liberdade. E nós fazemos o oposto.
— Não somos nós que fazemos. Foi feito pra nós — virou-se e encarou-o: — Você acha possível que os incuráveis ainda estejam vivos?
Ele olhou para ela.
— Que os seus descendentes tenham encontrado uma maneira de sobreviver? — confirmou Lilás, — e formado uma... sociedade num lugar qualquer? Em uma ilha ou região que a Família não esteja usando?
— Puxa! — exclamou, esfregando a testa. — Lógico que é possível. Os membros sobreviveram em ilhas antes da Unificação; por que não depois?
— É isso que eu acho — disse ela, voltando para junto dele. — Já houve cinco gerações desde as últimas...
— Destruídas por doenças e privações...
— Mas procriando à vontade!
— Quanto a uma sociedade, não sei. Porém é capaz que exista alguma colônia...
— Uma cidade — alvitrou ela. — Eram espertos, fortes.
— Que ideia.
— É possível, não é?
Estava debruçada sobre ele, mãos apoiadas à mesa, interrogando com aqueles olhos enormes, as faces afogueadas numa morenice ainda mais rosada.
Fitou-a.
— O que é que Rei acha? — perguntou-lhe. Ela recuou um pouco. — Como se eu não soubesse.
De repente ela ficou braba, com fúria nos olhos.
— Ontem à noite você foi horrível com ele!
— Horrível? Eu? Com ele?
— Foi, sim! — afastou-se bruscamente da mesa. — Você o interrogou como se você fosse... Como é que você pôde sequer pensar que ele soubesse que Uni nos matava e nunca nos tivesse dito?
— Eu ainda acho que ele sabia.
Ela o enfrentou, indignada.
— Não sabia, não! — protestou. — Comigo ele não tem segredos!
— Por quê? Você é conselheira dele?
— Sou! É exatamente o que eu sou, caso lhe interesse saber.
— Não é, não.
— Sou.
— Por Cristo e Wei — exclamou. — É mesmo? Você, conselheira? Seria a última classificação que me ocorreria. Que idade você tem?
— Vinte e quatro.
— E é conselheira dele?
Ela confirmou com a cabeça.
Ele soltou uma risada.
— Pensei que você trabalhasse nos jardins — disse. — Você recende a flor, sabia? É fato.
— Eu uso perfume — explicou.
— Você usa?
— O perfume de flores, em líquido. Rei fez pra mim.
Olhou-a espantado.
— Parfum! — exclamou, batendo no livro aberto à sua frente. — Eu julguei que fosse uma espécie de germicida. Ela põe na banheira. Evidente!
Apalpou as listas, pegou a caneta, riscou e escreveu.
— Que burrice a minha. Parfum é igual a perfume. Flores em líquido. Como foi que ele fez?
— Pare de acusá-lo de nos tapear.
— ’Tá bem, eu paro.
Largou a caneta.
— Tudo o que temos — disse ela — nós devemos a ele.
— E o que é que nós temos, afinal? Nada... a não ser que nos esforçássemos pra conseguir mais. E parece que isso ele não quer.
— Porque é mais sensato do que nós.
Olhou-a, parada em pé a poucos metros de distância, diante de um monte de relíquias.
— O que é que você faria, — perguntou-lhe, — em todo caso, se descobríssemos que existe uma cidade de incuráveis?
Ela não desviou os olhos de cima dele.
— Iria pra lá — respondeu.
— Pra viver de plantas e animais?
— Se necessário — olhou para o livro e moveu a cabeça naquela direção. — Parece que Vítor e Carolina gostavam do que comiam.
Ele sorriu.
— Você é mesmo uma mulher da Pré-U, hem?
Ela não respondeu.
— Quer mostrar-me os seios?
— Pra quê?
— Curiosidade, apenas.
Ela abriu a parte superior da túnica e segurou os dois lados. Os seios eram cones de pele morena rosada e aspeto macio que se agitavam quando ela respirava, tesos em cima e redondos em baixo. Os bicos, rombudos e cor-de-rosa, pareciam contrair-se e escurecer sob o seu olhar. Sentiu uma estranha excitação, como se estivesse sendo acariciado.
— São bonitos — disse.
— Eu sei que são — retrucou, fechando a túnica e apertando a pressão. — E outra coisa que devo a Rei. Antigamente eu pensava que era o membro mais feio de toda a Família.
— Você?
— Até que ele me convenceu do contrário.
— Está bem, você deve uma porção de coisas a Rei. Todos nós devemos. Por que que você veio procurar-me?
— Já lhe disse. Pra aprender essa língua.
— Mentira — disse, pondo-se em pé. Você quer que eu comece a procurar lugares que a Família não esteja usando, em busca de indícios que a sua “cidade” existe. Porque eu vou procurar e ele não. Porque eu não sou “sensato”, nem velho, nem me contento em debochar da televisão.
Ela se virou em direção da porta, mas ele pegou-a pelo ombro e obrigou-a a dar meia volta.
— Fique aqui! — ordenou.
Ela olhou-o, assustada. Segurou-a pelo queixo e beijou- lhe a boca: agarrou-a pela cabeça com as duas mãos e enfiou a língua entre os dentes fechados. Empurrando-lhe o peito, ela desviou a cabeça. Pensou que ela fosse parar, cedendo e aceitando o beijo, mas ela não parou: continuou resistindo com força cada vez maior. Finalmente soltou-a. Ela se afastou para longe.
— Que coisa... que coisa horrível! — gritou. — Me forçando! Isso é uma... nunca ninguém me agarrou desse jeito!
— Eu te amo.
— Veja só como estou trêmula. Por Wei Li Chun, é assim que você ama, comportando-se feito um bicho? Que horror!
— Sou humano — disse. — Como você.
— Não — exclamou. — Eu não machucaria ninguém, não seguraria ninguém desse jeito!
De mão no queixo, deslocou-o de um lado para outro.
— Como é que você pensa que os incuráveis beijam? — perguntou-lhe.
— Como gente, não como bicho.
— Me perdoa. Eu te amo.
— Ótimo. Eu também te amo... da maneira que amo Leopardo, Floco de Neve e Pardal.
— Não foi isso que eu quis dizer.
— Mas eu sim.
Olhou para ele. Afastou-se de lado até a porta.
— Não faça isso de novo. É horrível!
— Você não quer as listas? — perguntou.
Parecia que ela ia dizer não, porém hesitou.
— Quero. Foi pra isso que eu vim.
Ele se virou, juntou as listas em cima da mesa, dobrou- as juntas e tirou Père Goriot da pilha de livros. Ela se aproximou para apanhar tudo.
— Se machuquei você, não foi de propósito.
— Está bem. Só quero que isso não se repita.
— Eu vou procurar os lugares que a Família não está usando — prometeu-lhe. — Examinarei os mapas no MPF pra ver se...
— Eu já fiz isso.
— Minuciosamente?
— Bastante.
— Eu examinarei de novo. É a única forma de começar. Milímetro por milímetro.
— Está bem.
— Espere um instante, eu também já vou embora.
Ela esperou enquanto ele guardava suas coisas de fumar, deixando a sala exatamente como devia ficar. Depois saíram juntos pelo corredor do mostruário e desceram a escada rolante.
— Uma cidade de incuráveis — disse ele.
— É possível.
— De qualquer maneira, vale a pena tentar.
Estavam na rua.
— Pra que lado você vai? — perguntou ele.
— Eu a acompanho um pedaço.
— Não — protestou. — Francamente, quanto mais você se afasta, maiores são as possibilidades de que alguém veja que você não está tocando os controles.
— Eu encosto na beira e cubro com meu corpo. E complicado à beça.
— Não — insistiu. — Por favor, vá pra casa.
— Está bem. Boa noite.
— Boa noite.
Pôs a mão no ombro dela e beijou-lhe o rosto.
Ela não se moveu: estava tensa, esperando, sob o contato da mão.
Beijou-lhe os lábios. Eram quentes e macios, entreabertos.
Ela se virou e afastou-se rapidamente.
— Lilás — chamou, correndo atrás dela.
Ela estacou.
— Não. Por favor, Quem, vá-se embora.
E virando de novo as costas, seguiu adiante.
Ele ficou parado, hesitante. Outro membro, ao longe, vinha vindo em sua direção.
Observou-a afastar-se, odiando-a, amando-a.