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ESTE MUNDO PERFEITO / Iran Levin
SEGUNDA PARTE
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.
CONTINUA
VIVENDO
1
Entre julho de 153 e marx de 162, Quem teve quatro serviços: dois nos laboratórios de pesquisa em Usa, um rápido no Instituto de Engenharia Genética em Ind — onde assistiu a uma série de conferências sobre progressos recentes em indução de mutações — e outro de cinco anos numa fábrica de produtos sintéticos químicos em Chi. Recebeu duas promoções em sua classificação e em 162 já era taxonomista genético de segunda classe.
Durante esses anos aparentava ser um membro normal e contente da Família. Executava bem seu trabalho, participava de programas atléticos e recreativos da comunidade, tinha atividade sexual semanalmente, fazia telefonemas mensais e visitas semestrais aos pais, comparecia pontualmente à hora da televisão, aos tratamentos e às entrevistas com os conselheiros. Não possuía nenhum mal-estar, físico ou mental, a comunicar.
Intimamente, porém, estava longe de sentir-se normal. A sensação de culpa com que saíra da Academia o tinha levado a retrair-se do próximo conselheiro, pois queria conservar aquela sensação, que, embora desagradável, era a mais forte que já havia experimentado e uma ampliação, estranha, de sua sensação de existir. E retraindo-se do conselheiro — não comunicando nenhum mal-estar, interpretando o papel de um membro calmo e contente — o levou, com o correr dos anos, a retrair-se de todos os que o rodeavam, numa atitude geral de atenção precavida. Tudo parecia-lhe discutível: bolos integrais, túnicas, a padronização dos quartos e pensamentos dos membros e, especialmente, o trabalho a que se dedicava, cujo objetivo, agora percebia, seria unicamente solidificar a padronização universal. Não havia alternativas, evidentemente, nenhuma alternativa imaginável para coisa alguma, mas mesmo assim retraía-se e levantava dúvidas consigo mesmo. Só nos primeiros dias que se seguiam aos tratamentos era realmente o membro que fingia ser.
No mundo existia apenas uma coisa indiscutivelmente certa: o desenho que Karl fizera do cavalo. Emoldurou-o — não numa moldura de centro de abastecimento, mas noutra, feita por ele mesmo com as ripas de madeira arrancadas do fundo de uma gaveta e raspadas a lixa — e pendurou-o nos quartos que ocupou em Usa, Ind e Chi. Dava muito mais gosto olhar aquilo do que Wei Discursando aos Quimioterapeutas, Marx Escrevendo ou Cristo Expulsando os Vendilhões do Templo.
Em Chi pensou em casar-se, mas disseram-lhe que não poderia ter filhos e assim o casamento perdeu toda a graça para ele.
Em meados de marx de 162, pouco antes de completar vinte e sete anos, foi transferido de volta ao Instituto de Engenharia Genética em IND26110 e designado para o Centro de Subclassificação genética recentemente inaugurado. Novos microscópios tinham encontrado diferenças entre genes até então aparentemente idênticos. Ele era um dos quarenta 663B e C encarregados de definir as subclassificações. Seu quarto distava quatro prédios do Centro, o que lhe proporcionava um curto passeio duas vezes por dia, e logo achou uma namorada cujo quarto localizava-se no pavimento imediatamente inferior. Seu conselheiro, Beto RO, era um ano mais moço do que ele. A vida, pelo visto, ia continuar como sempre.
Uma noite em abril, entretanto, ao preparar-se para escovar os dentes antes de dormir, deu com um troço branco minúsculo enfiado na escova. Perplexo, puxou-o para fora. Num rolinho apertado, havia uma tira de papel dobrada três vezes. Pôs a escova de lado e desenrolou um retângulo fino todo datilografado. Você parece ser um membro bastante fora do comum — dizia. Querendo saber qual a classificação que escolheria, por exemplo. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes? Pense no assunto. Você está vivo apenas parcialmente. Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina.
A nota o espantou com o conhecimento que revelava sobre seu passado, perturbando-o com o que tinha de clandestina e aquele “Você está vivo apenas parcialmente”. O que queria dizer — essa estranha afirmativa e todo o estranho bilhete? E quem o teria posto em sua escova, logo onde? Mas ai percebeu que melhor lugar não havia, por causa da certeza de que ele e apenas ele poderia encontrá-lo. Quem então, nem tão estupidamente, o tinha posto ali? Qualquer pessoa podia ter entrado no quarto no começo da noite ou durante o dia. Pelo menos dois outros membros haviam estado ali: em cima da escrivaninha havia recados de Paz SK, sua namorada, e da secretária do clube de fotografias existente no prédio.
Escovou os dentes, deitou-se e releu o bilhete. Seu autor ou um dos outros “membros semelhantes” certamente havia tido acesso à memória do UniComp sobre os pensamentos de autoclassificação que tivera na infância, o que parecia bastar para que o grupo julgasse que ele estivesse solidário com eles. Estaria? Eles eram anormais — quanto a isso não restava dúvida. Mas e ele, o que seria? Também anormal? Nós podemos ajudá-lo mais do que você imagina. O que significava isso? Ajudá-lo como? A fazer o quê? E suponhamos que quisesse mesmo encontrar-se com eles: o que deveria fazer? Esperar, aparentemente, por outro bilhete, por alguma espécie de contato. Pense no assunto, estava escrito ali.
Soou o último toque. Tornou a enrolar o pedaço de papel e enfiou-o na lombada de A Sabedoria Viva de Wei em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz e ficou deitado, pensando. Era inquietante, mas diferente também, e interessante. Gostaria de encontrar-se com outros membros semelhantes?
Não tocou naquele assunto com Beto RO. Toda vez que voltava ao quarto, procurava outro bilhete na escova de dentes, mas nunca achava. Indo e vindo do trabalho, tomando assento no salão para assistir à televisão, parado na fila do refeitório ou do centro de abastecimento, fitava os olhos dos membros que o rodeavam, atento a qualquer comentário significativo ou mesmo a um mero olhar e movimento de cabeça que o convidassem a ir atrás. Não viu nenhum.
Passaram-se quatro dias e começou a pensar que o bilhete havia sido brincadeira de algum membro doente, ou pior, uma espécie de teste. Quem sabe não fora o próprio Beto RO que escrevera aquilo, para ver sua reação? Não, era ridículo — ele estava realmente ficando doente.
Sentira-se interessado — até empolgado, e esperançoso, embora já não soubesse bem do quê — mas agora, à medida que os dias se sucediam sem novo bilhete, sem nenhum contato, ficou decepcionado e irritadiço.
Aí então, uma semana depois do primeiro, lá estava: o mesmo rolinho de papel dobrado três vezes na escova de dentes. Puxou-o para fora, recobrando imediatamente o entusiasmo e a esperança. Desdobrou-o e leu: Se quiser encontrar-se conosco e saber como podemos ajudá-lo, esteja entre os prédios J16 e J18 na parte inferior da Praça Cristo amanhã de noite às 11h15m. Não toque em nenhum controle no caminho. Se houver membros à vista por perto de algum, mude de rumo. Esperarei até às 11h30m. Embaixo, à máquina, a assinatura: Floco de Neve.
Os raros membros que andavam pelas ruas corriam para suas camas sem desviar os olhos para os lados. Só teve que mudar de rumo uma vez; apressou o passo e chegou à parte inferior da Praça Cristo às 11h15m em ponto. Cruzou o espaço embranquecido pelo luar, onde o chafariz desligado refletia a lua, e achou J16 e o canal escuro que o separava de J18.
Não havia ninguém ali — mas depois, a poucos metros de distância na sombra, viu uma túnica branca marcada com o que parecia a cruz vermelha do centro médico. Mergulhou nas trevas, aproximando-se do membro que, parado junto à parede do J16, ficou em silêncio.
— Floco de Neve? — perguntou.
— Sim — a voz era de mulher. — Você tocou em algum controle?
— Não.
— Sensação esquisita, não é?
Ela usava uma espécie de máscara clara, fina e bem justa.
— Já fiz isso antes — explicou.
— Muito bem.
— Foi só uma vez, e alguém me empurrou.
Parecia mais velha que ele, mas não sabia até que ponto.
— Nós vamos pra um lugar que fica a cinco minutos a pé daqui — ela disse. — É onde a gente se reúne regularmente em seis, quatro mulheres e dois homens... proporção péssima que eu conto com você pra melhorar. Nós vamos propor-lhe uma coisa. Se você resolver aceitá-la, com o correr do tempo poderá entrar para o grupo. Caso contrário, nada feito, e esta noite será o nosso último contato. Mas desse jeito não podemos deixar que você saiba como é o nosso aspeto, nem o lugar onde se realizam as reuniões.
Tirou a mão do bolso, com qualquer coisa branca.
— Tenho de vendar os seus olhos — disse ela. — Por isso estou usando esta túnica do centro médico, pra que pareça normal que esteja levando você.
— A esta hora?
— Já fizemos assim antes e não houve problema. Tem alguma objeção?
Deu de ombros.
— Creio que não.
— Segure isso sobre os olhos — pediu-lhe.
Entregou-lhe dois chumaços de algodão. Ele fechou os olhos e colocou os chumaços no lugar, segurando com o dedo. Ela começou a enrolar a atadura na cabeça, por cima dos chumaços. E continuou enrolando, enrolando, até em cima da testa e abaixo do rosto.
— Tem certeza de que você não é mesmo do centro médico? — perguntou.
Ela deu uma risadinha abafada.
— Absoluta.
Calcou a ponta da atadura, prendendo-a com força. Apalpou-a toda, inclusive nos olhos, depois tomou-o pelo braço. Virou-o — em direção à praça, sentiu — e fez com que começasse a caminhar.
— Não se esqueça da máscara — lembrou-lhe.
Ela estacou de repente.
— Obrigada pela lembrança — disse.
A mão largou o seu braço, e após um instante, voltou. Prosseguiram.
O ruído dos passos mudou, abafado pelo espaço aberto, e uma brisa refrescou-lhe o rosto abaixo da atadura — estavam em plena praça. A mão de Floco de Neve puxou-o em sentido diagonal para a esquerda, afastando-se da direção do Instituto.
— Quando chegarmos lá — avisou ela, — eu cobrirei a sua pulseira com um pedaço de esparadrapo. A minha também. Nós procuramos ignorar ao máximo os números do pessoal do grupo. O seu eu sei qual é... fui eu quem o descobriu... mas os outros não sabem. A única coisa que eles sabem é que estou trazendo um possível candidato. Mais tarde, um ou dois deles talvez precisem saber.
— Você verifica a ficha de cada membro designado pra cá?
— Não. Por quê?
— Não foi assim que você me “descobriu”, apurando que antigamente eu queria classificar-me sozinho?
— Tem três degraus pra descer — preveniu. — Não, aquilo foi só a confirmação. Dois, três. O que eu notei foi o seu olhar, um olhar de membro que não pertence cem por cento ao seio da Família... Você também aprenderá a identificá-lo, se aliar-se a nós. Eu descobri quem você era, depois fui ao seu quarto e vi aquele quadro na parede.
— O cavalo?
— Não, Marx Escrevendo — ironizou. — O cavalo, evidente. Você desenha de um jeito que nenhum membro normal se lembraria de desenhar. Aí então é que verifiquei a sua ficha, depois que vi o quadro.
Tinham deixado a praça e estavam numa das ruas do lado oeste — K ou L, não sabia com exatidão.
— Você cometeu um engano — disse ele. — Foi outra pessoa que fez aquele desenho.
— Foi você. Você pediu carvão e blocos de desenho.
— Pro membro que o desenhou. Um amigo meu da academia.
— Pois é mais interessante ainda — retrucou. — Tapear nos pedidos é o melhor sinal que existe. Seja como for, você gostou tanto do desenho que o guardou e emoldurou. Ou será que o seu amigo também fez a moldura?
Ele sorriu.
— Não, fui eu. Você não deixa escapar nada, hem?
— Vamos dobrar à direita, aqui.
— Você é conselheira?
— Eu? Que esperança.
— Mas tem acesso às fichas?
— Às vezes.
— Trabalha no Instituto?
— Não faça tantas perguntas. Escute aqui, como é que você quer que nós o chamemos? Em vez de Li RM.
— Ah — fez ele, — Quem.
— Quem? Não — retrucou ela, — não comece a dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Você devia ser qualquer coisa como Pirata ou Tigre. Os outros são Rei, Lilás, Leopardo, Cochicho e Pardal.
— Quando eu era pequeno me chamavam de Quem — disse ele. — Estou acostumado.
— Tá bom, mas não é o que eu escolheria. Sabe onde nós estamos?
— Não.
— Ótimo. Pra esquerda agora.
Cruzaram uma porta, subiram uma escada, cruzaram outra porta e entraram numa espécie de corredor com eco, onde caminharam e desviaram-se, caminharam e desviaram- se, como se estivessem passando por uma série de objetos dispostos de modo irregular. Subiram por uma escada rolante parada e desceram um corredor que dobrava à direita.
Ela o fez parar, pedindo-lhe a pulseira. Levantou o pulso e sentiu que a pulseira estava sendo apertada com força e esfregada. Apalpou-a: o lugar do número ficara liso. Isso, somado à falta de visão, deixou-o de repente com uma sensação incorpórea: como se estivesse prestes a pairar acima do solo, atravessando todas as paredes vizinhas, e a ganhar altura, dissolvendo-se no ar e transformando-se em nada,
Ela o tomou pelo braço de novo. Caminharam ainda um pouco e estacaram. Escutou uma batida, duas, uma porta que se abria e vozes que logo emudeceram.
— Oi — disse ela, levando-o por diante. — Este é Quem. Ele insiste no nome.
Arrastaram-se cadeiras no soalho, ouviu boas-vindas. Alguém apertou-lhe a mão.
— Eu sou Rei — disse um membro. — Que bom que você resolveu vir.
— Obrigado.
Outra mão deu-lhe um aperto mais forte.
— Floco de Neve disse que você é um pintor de mão cheia — falou uma voz de homem mais velho que Rei. — Eu sou Leopardo.
Outras mãos vieram, rápidas, de mulheres:
— Olá, Quem. Meu nome é Lilás.
— E o meu é Pardal. Espero que você entre pro nosso grupo.
— Eu sou Cochicho, mulher de Leopardo. Como vai, vai bem?
A mão e a voz da última eram idosas. As outras duas eram jovens.
Foi conduzido a uma cadeira, onde o sentaram. Suas mãos tatearam uma tampa de mesa lisa e vazia, a beirada ligeiramente curva — uma mesa grande, oval ou redonda. O grupo todo sentou. Floco de Neve à direita, conversando; outra pessoa à esquerda. Sentiu cheiro de queimado. Aspirou pelo nariz para se certificar. Ninguém parecia ter notado.
— Tem alguma coisa queimando — disse.
— Fumo — explicou a velha, Cochicho, à esquerda.
— Fumo?
— Nós fumamos — respondeu Floco de Neve. — Não quer provar?
— Não.
Houve risos.
— Não mata, sabe? — disse Rei, mais à esquerda. — Desconfio até que tem efeitos benéficos.
— E muito agradável — disse uma das moças, do lado oposto da mesa.
— Não, obrigado.
Riram de novo, trocando comentários, e aos poucos fez- se silêncio. Sua mão direita, apoiada à mesa, foi coberta pela de Floco de Neve. Quis retirá-la, mas conteve-se. Tinha sido bobo em vir. Que estava fazendo ali, sentado sem enxergar, entre aqueles membros, doentes e com nomes falsos? Sua própria anormalidade não era nada comparada à deles. Fumo! Aquilo fora abolido há cem anos. Onde ódio o teriam conseguido?
— Desculpe a atadura, Quem — disse Rei. — Suponho que Floco de Neve tenha explicado por que é necessária.
— Ela me explicou.
— Expliquei, sim — confirmou Floco de Neve, afastando a mão.
Ele tirou a sua de cima da mesa e aproximou-a da que se conservava no colo.
— Nós somos membros anormais, o que é bastante óbvio — continuou Rei. — Fazemos uma porção de coisas geralmente consideradas doentias. Mas não no nosso entender. Nós sabemos que não são.
Falava com voz forte, grave e autoritária; Quem imaginou-o grande e corpulento, com cerca de quarenta anos.
— Não vou entrar em pormenores porque na sua situação atual você se escandalizaria e ficaria preocupado, tal como é evidente que já está escandalizado e preocupado com o fato de que nós fumamos. Você descobrirá os detalhes por conta própria no futuro, se é que há algum futuro no que diz respeito a você e a nós.
— O que é que você quer dizer — perguntou Quem, — na minha situação atual?
Fez-se um momento de silêncio. Uma mulher tossiu.
— Enquanto você estiver entorpecido e normalizado pelo tratamento mais recente — explicou Rei.
Quem permaneceu imóvel, voltado para Rei, estarrecido com a despropósito do que ele tinha dito. Recapitulou as palavras e respondeu-as:
— Não estou entorpecido e normalizado.
— Está, sim.
— Toda a Família está — disse Floco de Neve.
E por trás dela:
— Todo mundo está, não é só você.
Era a voz de velho de Leopardo.
— Em que você acha que consiste um tratamento? — perguntou Rei.
— Em vacinas, enzimas, preventivos contra a gravidez, às vezes um tranquilizante... — respondeu Quem.
— Sempre um tranquilizante — frisou Rei. — E LPK, que atenua a agressividade, além de diminuir a alegria, a percepção e tudo quanto é coisa de que o cérebro é capaz.
— E que é um sedativo sexual — acrescentou Floco de Neve.
— Também — disse Rei. — Dez minutos de sexo automático, uma vez por semana, constitui apenas uma fração do que é possível.
— Eu não acredito — retrucou Quem. — Em nada disso.
Afirmaram-lhe que era verdade.
— É mesmo, Quem.
— Realmente, é um fato.
— E a pura verdade!
— Você trabalha em genética — disse Rei. — Não é pra isso que trabalha a engenharia genética?... Pra exterminar a agressividade, controlar o impulso sexual, estabelecendo a solicitude, a docilidade e a gratidão? Nesse meio tempo, os tratamentos encarregam-se de conseguir isso, até que a engenharia genética domine o tamanho e a cor da pele. '
— Os tratamentos ajudam — protestou Quem.
— Ajudam Uni — disse a mulher do lado oposto da mesa.
— E os adoradores de Wei que programaram Uni — acrescentou Rei. — Mas não ajudam a nós, pelo menos não tanto quanto nos prejudicam. Transformam-nos em máquinas.
Quem sacudiu a cabeça uma, duas vezes.
— Floco de Neve nos contou — era Cochicho, falando numa voz baixa e seca, que justificava o apelido — que você tem tendências anormais. Nunca reparou como ficam mais fortes pouco antes de um tratamento e mais fracas logo depois?
— Aposto como você fez aquela moldura um ou dois dias antes de um tratamento — disse Floco de Neve, — e não um ou dois dias depois.
Refletiu um pouco.
— Não me lembro — respondeu, — mas quando eu era pequeno e pensei em me classificar sozinho, depois dos tratamentos parecia uma ideia tola, Pré-U, e antes dos tratamentos era... empolgante.
— Está vendo? — disse Rei.
— Mas era um entusiasmo doentio!
— Era sadio — corrigiu Rei.
E a mulher do lado oposto da mesa:
— Você estava vivo, sentindo alguma coisa. Qualquer sensação é mais sadia do que não sentir nenhuma.
Lembrou-se do sentimento de culpa que escondera de seus conselheiros a partir de Karl e da Academia. Acenou afirmativamente com a cabeça.
— Sim — disse, — sim, é possível.
Virou o rosto na direção de Rei, da mulher, de Leopardo e Floco de Neve, lamentando não poder abrir os olhos para vê-los.
— Mas não compreendo o seguinte: vocês recebem tratamentos não é? Então como é que não...
— Eles são reduzidos — disse Floco de Neve.
— É, nós recebemos tratamentos — explicou Rei, — mas conseguimos reduzi-los. fazendo com que certos componentes sejam atenuados, de modo que somos um pouco mais do que as máquinas que Uni pensa que somos.
— E é isso que estamos oferecendo a você — disse Floco de Neve. — Uma maneira de enxergar, sentir, fazer e aproveitar mais.
— E ser mais infeliz. Expliquem também isso pra ele.
Era uma voz nova, delicada mas nítida, da outra moça. Estava do lado oposto da mesa e à esquerda de Quem, perto de Rei.
— Não é verdade — retrucou Floco de Neve.
— É, sim — afirmou a voz nítida, quase de garota; não podia ter mais que vinte anos, deduziu Quem. — Haverá dias em que você odiará Cristo, Marx, Wood e Wei, e terá vontade de botar fogo em Uni. Haverá dias em que sentirá impulso de arrancar a pulseira e fugir pro alto de uma montanha, que nem os antigos incuráveis, só pra poder fazer o que você quer, escolher o que bem entender, e viver sem dar satisfações a ninguém.
— Lilás — censurou Floco de Neve.
— Haverá dias em que você nos odiará, por o termos acordado e ensinado a não ser máquina. As máquinas sentem-se bem no universo; as pessoas não.
— Lilás — repetiu Floco de Neve, — nós queremos obter a adesão de Quem. Ninguém pretende assustá-lo.
E virando-se para ele:
— Lilás é realmente anormal.
— Mas o que ela diz tem fundamento — interveio Rei.
— Acho que todos nós já tivemos momentos em que gostaríamos que houvesse um lugar aonde se pudesse ir, algum povoado ou colônia em que pudéssemos ser donos de nossos próprios narizes...
— Eu não —disse Floco de Neve.
— E como esse lugar não existe — continuou Rei, — a gente, às vezes, se sente infeliz. Você não, Floco de Neve. Eu sei. Salvo raras exceções como Floco de Neve, ser capaz de sentir alegria parece que quer dizer também ser capaz de sentir tristeza. Mas, como Pardal disse, qualquer sensação é melhor e mais sadia que não sentir nenhuma. E os momentos de tristeza não são, realmente, tão comuns assim.
— São, sim — teimou Lilás.
— Ah, besteira — retrucou Floco de Neve. — Vamos parar com esse negócio de tristeza.
— Não se preocupe, Floco de Neve — disse Pardal, do lado oposto da mesa. — Se ele se levantar pra sair correndo, você pode passar-lhe uma rasteira.
— Ah, ah, qual é a graça, sua chata? — perguntou Floco de Neve.
— Floco de Neve, Pardal — repreendeu Rei. — Então, Quem, qual é a sua resposta? Quer conseguir uma redução nos seus tratamentos? E feita por etapas. A primeira é simples, e se você não gostar da maneira que se sentir daqui a um mês, pode procurar seu conselheiro e dizer que foi contaminado por um grupo de membros muito doentes que você infelizmente não é capaz de identificar.
Quem hesitou um pouco.
— Está certo. Que devo fazer?
Floco de Neve apertou-lhe o braço.
— Ótimo — sussurrou Cochicho.
— Espere um pouco, estou acendendo o meu cachimbo — disse Rei.
— Vocês estão todos fumando ? — perguntou Quem.
O cheiro de coisa queimada era intenso, ressecando e ferindo-lhe as narinas.
— De momento não — respondeu Cochicho. — Só Rei, Lilás e Leopardo.
— Mas todos estávamos — disse Floco de Neve. — Não é uma coisa contínua. A gente fuma um pouco e depois pára.
— Onde é que vocês conseguem o fumo?
— Nós plantamos — explicou Leopardo, aparentemente lisonjeado. — Cochicho e eu. No terreno do parque.
— No terreno do parque?
— Exatamente — confirmou Leopardo.
— Temos dois canteiros — disse Cochicho, — e domingo passado achamos lugar pra um terceiro.
— Quem? — chamou Rei.
Quem virou-se para ele e escutou.
— Em princípio, a primeira etapa consiste apenas em agir como se você estivesse obtendo excesso de tratamento: diminuindo o ritmo de trabalho, dos jogos, de tudo... diminuindo aos poucos, sem chamar a atenção. Cometa um pequeno erro no serviço, e outro alguns dias mais tarde. E não se saia bem em matéria de sexo. O que você deve fazer é se masturbar antes de se encontrar com a namorada. Assim será capaz de fracassar convincentemente.
— Me masturbar?
— Ah, esses membros que recebem tratamento integral, completamente satisfeitos — exclamou Floco de Neve.
— Provocar orgasmo com a própria mão — esclareceu Rei. — E depois não ficar muito preocupado quando não conseguir outro depois. Deixe que a sua namorada fale pro conselheiro dela. Não conte nada pro seu. Não fique preocupado com coisa alguma, com os erros que cometer, impontualidade nas entrevistas, seja lá o que for. Deixe que os outros notem e comuniquem.
— Finja cochilar durante a televisão — sugeriu Pardal.
— Daqui a dez dias você terá o próximo tratamento — disse Rei. — Na entrevista que tiver com o seu conselheiro na semana que vem, caso tiver seguido as minhas instruções, ele o sondará sobre o seu torpor geral. Mais uma vez, não demonstre preocupação. Apatia. Se você fizer bem o negócio todo, os sedativos do tratamento serão levemente reduzidos, o suficiente pra que dentro de um mês você esteja ansioso pra saber como é a segunda etapa.
— Parece bastante simples — disse Quem.
— E é — afirmou Floco de Neve.
— Todos nós fizemos o mesmo — disse Leopardo. — Você também pode.
— Existe um perigo — lembrou Rei. — Ainda que o tratamento possa ser ligeiramente mais fraco que o de costume, os efeitos durante os primeiros dias continuarão sendo fortes. Você sentirá uma reação contra o que você fez e uma ânsia de confessar tudo ao conselheiro pra obter tratamentos mais fortes do que nunca. Não há maneira de saber se você conseguirá resistir a essa ânsia ou não. Nós resistimos, mas outros não. No ano passado nós descrevemos o truque pra dois membros. Eles diminuíram o ritmo, porém mais tarde confessaram, um ou dois dias depois do tratamento.
— Mas o meu conselheiro não ficará desconfiado, se eu diminuir o ritmo? Ele decerto ouviu falar nesses dois.
— Sim — concordou Rei, — mas há diminuições autênticas, quando decresce a necessidade do membro tomar sedativos. De modo que, se você fizer o negócio convincentemente, ninguém suspeitará. O que você tem de se preocupar é com a ânsia de confessar.
— Repita sempre a você mesmo — era Lilás falando — que é um produto químico que o está fazendo pensar que está doente e necessitando de ajuda, um produto químico que foi instilado em você sem o seu consentimento.
— Meu consentimento? — estranhou Quem.
— Sim — disse ela. — O seu corpo é seu, não de Uni.
— Quer você confesse ou resista — disse Rei, — depende da força da resistência do cérebro à alteração química, e de um jeito ou de outro não há muito que você possa fazer. Tomando por base o que sabemos a seu respeito, eu diria que as chances são boas.
Deram-lhe mais algumas indicações sobre a técnica de diminuição de ritmo — deixar de lado uma vez que outra o bolo do meio-dia, ir pra cama antes do último carrilhão — e finalmente Rei sugeriu que Floco de Neve o levasse de volta ao local do primeiro encontro.
— Espero que a gente se reveja, Quem — disse ele. — Sem a atadura.
— Eu também — respondeu.
Levantou-se e empurrou a cadeira para trás.
— Felicidades — disse Cochicho.
Pardal e Leopardo também lhe desejaram boa sorte.
Por fim Lilás disse:
— Felicidades, Quem.
— O que é que acontece — perguntou, — se eu resistir à vontade de confessar?
— Nós ficaremos sabendo — respondeu Rei, — e um de nós entrará em contato com você mais ou menos dez dias depois do tratamento.
— Como ficarão sabendo?
— Não se preocupe.
A mão de Floco de Neve tomou-o pelo braço.
— Está bem — disse ele. — Obrigado. A todos.
— Não tem de quê — responderam.
— Às ordens, Quem.
— Foi um prazer.
Qualquer coisa soou-lhe estranho. Depois — quando Floco de Neve levou-o para fora daquela sala — descobriu o que era: ninguém dissera “Agradeça a Uni”.
Andaram devagar, Floco de Neve segurando-lhe o braço não como enfermeira mas como uma garota passeando com o primeiro namorado.
— Parece mentira — disse ele, — que o que eu sinto e vejo agora... não seja tudo o que existe.
— Não é — retrucou ela. — Nem sequer a metade. Você verá.
— Tomara que sim.
— Você verá. Tenho certeza.
Ele sorriu.
— Você não tinha certeza sobre aqueles dois que tentaram e não conseguiram?
— Não. — E após uma pausa: — Sim, de um eu tinha, mas do outro não.
Qual é a segunda etapa? — perguntou.
— Antes tem de passar pela primeira.
— Há mais de duas?
— Não. Com duas, se der certo, você obtém uma boa redução. E quando você fica realmente vivo. E por falar nisso, cuidado com os três degraus à nossa frente.
Subiram os degraus e continuaram adiante. Estavam de novo na praça. O silêncio era total. Nem brisa havia.
— A foda é a melhor parte — disse Floco de Neve. — Fica muito melhor, muito mais intensa, excitante, e a gente pode fazer quase todas as noites.
— Incrível.
— E faça o favor de lembrar-se — disse ela, — que fui eu quem o descobriu. É só eu o pegar olhando pra Pardal que eu o mato.
Quem fez um movimento brusco e quase se chamou de idiota.
— Desculpe-me — disse ela, — mas eu vou agir agressivamente com você. Ao máximo.
— Não faz mal — retrucou. — Não estou escandalizado.
— Pois sim.
— E pra Lilás? — perguntou. — Pra ela eu posso olhar?
— Quanto quiser. Ela é apaixonada pelo Rei.
— Ah é?
— Com uma paixão Pré-U. Foi ele quem formou o grupo. Primeiro ela, depois Leopardo e Cochicho, depois eu, e por fim Pardal.
Os passos ficaram mais fortes e ressonantes. Ela o deteve.
— Chegamos.
Sentiu seus dedos puxando a ponta da atadura: abaixou a cabeça. Ela começou a desenrolar, libertando trechos da pele que logo esfriavam. Continuou desenrolando e finalmente tirou os chumaços de algodão. Ele piscou e arregalou bem os olhos.
Estava perto dele, enluarada, contemplando-o de um modo que parecia provocante, enquanto guardava a atadura no bolso da túnica do centro médico. Descobrira um jeito de repor a máscara — só que não era máscara. Percebeu com um choque: era seu próprio rosto. Ela era clara. Mais clara do que qualquer membro que conhecia, com exceção de alguns de mais de sessenta anos. Era quase branca. Quase tão branca como a neve.
— Botei a máscara de novo — troçou.
— Desculpe.
— Não faz mal — sorriu. — De um jeito ou doutro, todos nós somos esquisitos. Repare só o seu olho.
Teria uns trinta e cinco anos, traços marcantes, fisionomia inteligente, cabelo recém-cortado.
— Desculpe — repetiu.
— Já disse que não faz mal.
— Você não se está arriscando, me deixando ver como você é?
— Vou dizer-lhe uma coisa. Se não der certo com você, estou-me lutando se o grupo todo ficar normalizado. Pra ser franca, acho até que prefiro.
Tomou-lhe a cabeça com as mãos e beijou-o, forçando os lábios dele com a língua. Conseguiu abri-lhe a boca e ficou palpitando lá dentro. Segurou bem firme a cabeça, encostou a virilha contra a sua e começou a esfregar-se em sentido giratório. Ele sentiu-se logo em ereção e colocou as mãos nas costas dela. Só para experimentar, retribuiu com a língua o que ela fazia com a sua.
Ela afastou a boca.
— Considerando-se que estamos no meio da semana — disse, — fico até tentada.
— Cristo, Marx, Wood e Wei — exclamou. — É assim que vocês todas beijam?
— Só eu, irmão. Só eu.
Repetiram tudo de novo.
— Agora vá pra casa — ordenou ela. — Não toque nos controles.
Ele recuou.
— Então até o mês que vem — disse.
— E ai de você se não aparecer — retrucou ela. — Felicidades.
Entrou na praça e dirigiu-se ao Instituto. Virou-se apenas uma vez. A passagem entre os prédios embranquecidos pelo luar estava deserta.
2
Sentado à escrivaninha, Beto RO levantou a cabeça e sorriu.
— Atrasado, hem?
— Desculpe — disse Quem, ocupando a cadeira.
Beto fechou uma pasta branca de arquivo com etiqueta vermelha.
— Como vai você? — perguntou.
— Bem.
— A semana foi boa?
— Hum-hum.
Beto olhou-o um instante, o cotovelo escorado ao braço da poltrona, os dedos esfregando o canto do nariz.
— Tem alguma coisa especial sobre a qual você queira falar?
Quem ficou calado. Depois sacudiu a cabeça.
— Não.
— Soube que você ontem passou metade da tarde fazendo o serviço de outra pessoa.
— Quem confirmou.
Tirei uma amostra da seção errada da caixa AE — explicou.
— Ah é?
Beto sorriu e resmungou.
Quem fitou-o sem entender.
— Piada — disse Beto. — AE, ah é?
Beto apoiou o queixo na mão, comprimindo a ponta de um dedo contra os lábios.
— Que aconteceu na sexta-feira? — perguntou.
— Sexta-feira?
— Parece que andou usando o microscópio errado.
Quem ficou perplexo um momento.
— Ah — fez ele. — Sim. Não cheguei propriamente a usar. Só entrei na sala. Não troquei nada de lugar.
— Pelo jeito a semana não foi tão boa assim.
— É, acho que não — concordou.
— Paz SK diz que você teve problema sábado à noite.
— Problema?
— Sexual.
Quem sacudiu a cabeça.
— Não tive problema nenhum. Apenas estava sem vontade, mais nada.
— Ela diz que você tentou e não conseguiu levantar.
— Bem, eu achei que devia, por causa dela, mas simplesmente não sentia a mínima vontade.
Beto continuou observando-o, sem dizer nada.
— Eu estava cansado.
— Parece que você anda muito cansado ultimamente. Foi por isso que deixou de comparecer à reunião do clube de fotografia na sexta-feira à noite?
— Foi. Deitei-me cedo.
— E como se sente agora? Cansado?
— Não. Sinto-me ótimo.
Beto olhou para ele. Depois endireitou-se na poltrona e sorriu.
— Está bem, irmão. Por hoje é só.
Quem encostou a pulseira no controle do telecomputador de Beto e pôs-se em pé.
— Até a semana que vem — despediu-se Beto,
— Até.
Na hora.
Já de costas, Quem virou-se.
— Como é?
— A semana que vem, na hora — repetiu Beto.
— Ah, sim.
Tornou a virar-se e saiu do cubículo.
Achava que tinha feito tudo direito, mas não havia meios de saber, e à proporção que o tratamento se aproximava crescia o seu nervosismo. A ideia de um aumento perceptível de sensações ficava mais intrigante a cada hora que corria, e Floco de Neve, Rei, Lilás e os outros tornavam-se mais atraentes e admiráveis. Que importância tinha que fumassem? Eram membros felizes e sadios — membros, não, gente! — que haviam encontrado uma solução para a esterilidade, a padronização e a mecânica universal. Queria vê-los, estar perto deles. Queria beijar e abraçar a insólita brancura de Floco de Neve. Conversar com Rei de igual para igual, como dois amigos. Ouvir outras ideias estrambóticas, porém estimulantes, de Lilás. “O seu corpo é seu, não de Uni” — que coisa mais perturbadora, mais Pré-U, para dizer! Se houvesse qualquer fundamento naquilo, traria consequências capazes de levá-lo a... era-lhe impossível imaginar a quê. A uma espécie de mudança radical em sua atitude em relação a tudo!
Isso foi na véspera do tratamento. Deixou-se ficar horas acordado, depois subiu ao cume nevado de uma montanha com as mãos envoltas em ataduras, fumou com prazer sob a orientação cordial e sorridente de Rei, abriu a túnica de Floco de Neve e contemplou-a branca-como-a-neve com uma cruz vermelha que ia do pescoço à virilha, guiou um carro antigo que andava sobre rodas nos corredores de um gigantesco Centro de Asfixia Genética, ganhou pulseira nova com a inscrição Quem e uma janela em seu quarto, de onde avistava uma linda garota nua regando um canteiro de lilases. Ela acenou, impaciente, chamando-o e ele correu em sua direção — despertando com uma sensação revigorante, enérgica e alegre, apesar daqueles sonhos, mais nítidos e convincentes do que qualquer um dos cinco ou seis que tivera no passado.
Nessa manhã — era sexta-feira — recebeu tratamento. A cócega-zumbido-ferroada pareceu durar uma fração de segundo a menos que de costume e quando retirou o braço do interior do aparelho, puxando a manga para baixo, continuava sentindo-se bem e senhor de si, sonhador de sonhos nítidos, parceiro de um grupo de criaturas extraordinárias, ludibriador da Família e de Uni. Dirigiu-se com pretensa lentidão para o Centro. Lembrou-se de que, por incrível que parecesse, chegara a ocasião em que devia prosseguir com o decréscimo de ritmo para justificar a redução ainda maior que a segunda etapa, seja lá qual fosse e quando soasse a hora, se destinava a obter. Ficou no auge do contentamento por ter-se dado conta disso e pôs-se a imaginar por que motivo Rei e os outros não lhe tinham sugerido essa ideia. Talvez pensassem que não conseguiria fazer nada depois do tratamento. Pelo visto, os outros dois membros haviam fracassado por completo, pobres irmãos.
De tarde cometeu um pequeno engano excelente: começou a gravar um relatório segurando o microfone virado no sentido contrário enquanto um colega 663B estava olhando. Sentiu um pouco de remorso ao fazer aquilo, mas em todo caso fez.
Na mesma noite, para sua surpresa, realmente cochilou durante o programa de televisão, embora fosse bastante interessante: a inspeção de um novo telescópio radiofônico em Isr. E mais tarde, durante a reunião do clube de fotografia do prédio, mal podia abrir os olhos. Desculpou-se cedo e foi para o quarto. Despiu-se sem se dar ao trabalho de jogar a túnica usada na lixeira, metendo-se na cama sem vestir o pijama, e apagou a luz. Ficou imaginando que sonhos teria.
Acordou assustado, desconfiando que estava doente e precisando de ajuda. Que havia de errado? Tinha feito alguma coisa que não devia?
Então lembrou-se e sacudiu a cabeça, mal podendo acreditar. Era verdade? Seria possível? Tinha ficado tão — tão contaminado por aquele grupo de membros lamentavelmente doentes a ponto de cometer erros propositais, procurando enganar Beto RO (e talvez conseguindo!), alimentando ideias hostis a toda a amada Família? Ah, Cristo, Marx, Wood e Wei!
Pensou no que a moça, Lilás, lhe aconselhara: para repetir sempre que era um produto químico que o estava fazendo imaginar que estava doente, um produto químico que lhe fora instilado sem seu consentimento. Seu consentimento! Como se o consentimento tivesse alguma coisa que ver com o tratamento dado para conservar a saúde e o bem-estar da gente, uma parte essencial da saúde e do bem-estar da Família inteira! Mesmo antes da Unificação, mesmo no caos e loucura do século vinte, ninguém solicitava o consentimento de um membro para que ele fosse tratado contra a febre tifóide ou tifo ou seja lá o nome que tinha. Consentimento! E se limitara a ouvi-la sem discussão!
Tocou o primeiro carrilhão. Pulou fora da cama, ansioso para corrigir esses erros inconcebíveis. Jogou na lixeira a túnica da véspera, urinou, lavou-se, escovou os dentes, endireitou o cabelo, vestiu túnica limpa, arrumou a cama. Dirigiu-se à sala de refeições e pediu chá com bolo, sentando-se entre outros membros, querendo ajudá-los, dar-lhes alguma coisa, demonstrar que era leal e afetuoso, não o infrator doente que havia sido na véspera. O membro à sua esquerda comeu o último pedaço do bolo.
— Quer um pouco do meu? — perguntou Quem.
O membro ficou meio constrangido.
— Não, claro que não — disse. — Em todo caso obrigado, Você é muito amável.
— Não sou, não — protestou Quem, mas contente com a opinião do membro.
Apressou-se a ir ao Centro, chegando lá com oito minutos de antecedência. Retirou uma amostra da caixa AE correspondente à devida seção, não a de outra pessoa, e levou-a ao seu próprio microscópio. Colocou as lentes de maneira correta e seguiu o OMP ao pé da letra. Retirou respeitosamente dados de Uni (Perdoa as minhas ofensas, ó Uni onisciente) e supriu-lhe novos dados humildemente (Eis aqui a informação exata e verdadeira sobre a amostra de genes NF5049).
O chefe da seção veio ver o que ele estava fazendo.
— Como vai indo? — perguntou.
— Muito bem, Beto.
— Ótimo.
Ao meio-dia sentiu-se pior, contudo. E eles, aqueles doentes? Devia abandoná-los à doença, ao fumo, aos tratamentos reduzidos, às ideias Pré-U? Não havia alternativa. Tinham-lhe vendado os olhos. Não existia meio de encontrá-los.
Mas não era verdade: existia, sim. Floco de Neve mostrara-lhe o rosto. Quantos membros quase brancos, mulheres da mesma idade, poderia haver na cidade? Três? Quatro? Cinco? Se Beto RO perguntasse, Uni forneceria seus números num instante. E quando ela fosse encontrada e adequadamente tratada, informaria os números de alguns outros, que, por sua vez, revelariam os restantes. O grupo todo podia ser localizado e ajudado no prazo de um ou dois dias.
Tal como ele ajudara Karl.
A lembrança o paralisou. Ele ajudara Karl e se arrependera — um arrependimento que não o abandonara anos a fio, e até agora persistia, como parte integral dele. Ah, Jesus Cristo e Wei Li Chun, estava doente além de toda imaginação!
— Não se está sentindo bem, irmão?
Era o membro do outro lado da mesa, uma mulher idosa.
— Não — respondeu, — estou ótimo.
Sorriu e aproximou o bolo dos lábios.
— Por um segundo você parecia tão preocupado — disse ela.
— Estou bem — insistiu. — É que me lembrei de uma coisa que me esqueci de fazer.
— Ah.
Ajudá-los ou não? Qual era o certo, qual o errado? Ele sabia qual era o errado: não os ajudar, abandonando-os como se ele não fosse, de maneira alguma, o guarda de seu irmão.
Mas não tinha certeza se ajudá-los também não estaria errado. Mas de que modo as duas coisas podiam ser erradas?
Trabalhou com menos afinco à tarde, mas corretamente e sem cometer enganos, fazendo tudo como devia ser feito. No fim do dia voltou ao quarto e deitou-se de costas na cama, apertando o dorso das mãos contra as pálpebras caídas e provocando vibrantes auroras no interior dos olhos. Escutou a voz dos doentes, viu-se tirando a amostra da seção errada da caixa e ludibriando a Família em tempo, energia e equipamento. O carrilhão anunciou o jantar mas ele permaneceu imóvel, emaranhado demais em si mesmo para se lembrar de comer.
Mais tarde Paz SK telefonou.
— Estou no salão — disse ela. — São oito e dez. Faz vinte minutos que estou esperando.
— Desculpe. Já vou descer.
Assistiram a um concerto e depois foram ao quarto dela.
— O que é que há? — perguntou ela.
— Não sei — respondeu. — Eu ando... inquieto nestes últimos dias.
Ela sacudiu a cabeça e empenhou-se com mais energia em endurecer-lhe o pênis mole.
— Isto não tem cabimento — disse. — Você não falou pro seu conselheiro? Eu contei ao meu.
— Falei, sim. Olha — afastou-lhe a mão, — um grupo inteiro de membros novos de dezesseis anos chegou no outro dia. Por que você não vai até o salão e procura um deles?
Ela parecia descontente.
— Acho que devia ir mesmo — disse.
— Eu também — concordou ele. — Vai de uma vez.
— Só que não tem o menor cabimento — insistiu, levantando-se da cama.
Ele se vestiu, voltou para seu quarto e se despiu de novo. Pensou que teria problema para adormecer, mas não teve.
No domingo sentiu-se pior ainda. Começou a torcer para que Beto telefonasse e, notando que ele não estava bom, lhe arrancasse a confissão. Desse modo não haveria arrependimento nem responsabilidade, apenas alívio. Permaneceu no quarto, olhando a tela do telefone. Alguém do time de futebol ligou para ele; desculpou-se, dizendo que não estava se sentindo bem.
Ao meio-dia foi para o refeitório, comeu um bolo às pressas e voltou ao quarto. Alguém do Centro telefonou, para ver se ele sabia o número de um outro membro.
Será que a essa altura Beto ainda não fora informado de que ele não andava agindo de maneira normal? Paz não teria dito nada? Nem quem lhe telefonara do time de futebol? E aquele membro do outro lado da mesa, ontem, será que não fora suficientemente esperta para compreender o significado de sua desculpa e obter seu número? (Vejam só, esperando auxílio alheio — e quem é que ele estava ajudando na Família?) Onde andaria Beto? Que espécie de conselheiro era?
Não houve mais telefonemas, nem de tarde, nem de noite. A música parou uma vez para um boletim interespacial.
Na segunda-feira de manhã, depois do café, desceu ao centro médico. O controle disse não, mas ele avisou ao funcionário que precisava falar com seu conselheiro. O funcionário ligou o telecomputador e aí então as luzes dos controles repetiram sim, sim, sim, durante todo o percurso até os escritórios de conselho, que estavam semidesertos. Eram apenas 7h50m.
Dirigiu-se ao cubículo vazio de Beto, sentou-se e esperou por ele, de mãos no colo. Recapitulou de memória a ordem dos assuntos que abordaria: primeiro, sobre o decréscimo proposital de ritmo; depois, sobre o grupo, o que tinham dito e feito, e a forma como todos podiam ser encontrados por intermédio da brancura de Floco de Neve; e, finalmente, sobre o sentimento de culpa doentio e irracional que dissimulara anos a fio, desde que ajudara Karl. Um, dois, três. Receberia tratamento extra para compensar tudo o que talvez não houvesse recebido na sexta-feira, e sairia do centro médico curado de corpo e alma, um membro sadio e contente.
O seu corpo é seu, não de Uni.
Doente, Pré-U. Uni era a vontade e a sabedoria da Família inteira. Tinha-o criado. Fornecera-lhe comida, roupa, casa, instrução. Concedera até a permissão para a sua própria concepção. Sim, tinha-o criado, e de agora em diante ele seria...
Beto entrou sacudindo o telecomputador e logo estacou.
— Li — exclamou. — Olá. Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou para Beto. Sim, acontecera: o nome estava errado. Ele se chamava Quem e não Li. Baixou os olhos para a pulseira: Li RM35M4419, Esperava encontrar Quem. Quando é que havia tido uma que dizia Quem? Num sonho, num estranho sonho feliz, uma garota chamando...
— Li? — disse Beto, largando o telecomputador no chão.
Uni o tornara Li. Por causa de Wei. Mas ele se chamava Quem. “Quem sai aos seus não degenera”. Qual dos dois era ele? Li? Quem? Li?
— Que é que há, irmão? — perguntou Beto, curvando-se perto, pegando-o pelo braço.
— Eu queria falar com você — respondeu.
— Sobre o quê?
Não sabia o que dizer.
— Você pediu pra eu não me atrasar — olhou nervoso para Beto: — Cheguei na hora?
— Na hora? — Beto recuou um passo e franziu os olhos. — Irmão, você chegou com um dia de antecedência. Você tem hora marcada na terça, não na segunda.
Quem se levantou.
— Desculpe — disse. — E melhor eu voltar pro Centro.
E fez menção de sair.
Beto pegou-o pelo braço.
— Espere aí — disse, derrubando o telecomputador de lado, batendo com força no chão.
— Vai tudo bem comigo — explicou Quem. — Fiz confusão. Amanhã eu volto.
Desvencilhou-se da mão de Beto e saiu do cubículo.
— Li — chamou Beto.
Ele, porém, não se virou.
Assistiu atentamente à televisão naquela noite — uma junção de trilhos em Arg, uma retransmissão de Vênus, o noticioso, um programa de danças e A Sabedoria Viva de Wei. Depois foi para seu quarto. Tateou o interruptor, mas havia qualquer coisa por cima e a luz não acendeu. A porta bateu com força, fechada por alguém que estava perto dele no escuro, respirando.
— Quem é? — perguntou.
— Rei e Lilás — disse Rei.
— Que aconteceu hoje de manhã? — perguntou Lilás, de um canto próximo à escrivaninha. — Por que você procurou o conselheiro?
— Pra contar — respondeu.
— Mas você não contou.
— Devia ter contado. Saiam daqui, por favor.
— Está vendo? — disse Rei.
— Temos de tentar — insistiu Lilás.
— Vão embora, por favor — pediu Quem. — Não quero meter-me de novo com vocês, com nenhum de vocês. Já não sei mais o que está certo ou errado. Nem sequer sei quem eu sou.
— Você tem cerca de dez horas pra descobrir — disse Rei — O seu conselheiro vai vir amanhã de manhã aqui pra levá-lo ao Centro Médico Matriz. Lá eles examinarão você. Isso só era pra ser dentro de três semanas, aproximadamente, depois de um pouco mais de decréscimo no rendimento do trabalho. Teria sido a segunda etapa. Mas será amanhã e você, provavelmente, voltará à estaca zero.
— Mas não é preciso que seja assim — interveio Lilás. — Você ainda pode tentar a segunda etapa se fizer o que nós mandarmos.
— Não quero saber. Vão embora, por favor.
Os dois ficaram calados. Ele ouviu Rei fazer um movimento.
— Não compreende? — perguntou Lilás. — Se você fizer o que nós mandarmos, seus tratamentos ficarão tão reduzidos quanto os nossos. Caso contrário, voltarão a ser como antes. De fato, no mínimo até aumentarão, não é, Rei?
— É — concordou.
— Pra protegê-lo — continuou Lilás. — Pra que você nunca mais tente sequer escapar do jugo. Não percebe, Quem?
A voz dela aproximou-se.
— É a única oportunidade que você jamais terá. Ficará sendo uma máquina pro resto da vida.
— Não, uma máquina não, um membro — protestou. — Um membro sadio cumprindo sua missão: ajudando a Família em vez de enganá-la.
— Não perca seu tempo, Lilás — disse Rei. — Se tivessem passado alguns dias, talvez conseguisse algum resultado, mas agora é cedo demais.
— Por que você não contou hoje de manhã? — perguntou-lhe Lilás. — Foi procurar o conselheiro. Por que não lhe contou? Isso já aconteceu.
— Eu pretendia contar.
— Então por que não o fez?
Virou as costas à voz dela.
— Ele me chamou de Li. E eu achei que era Quem. Ficou tudo... fora dos eixos.
— Mas você ê Quem — disse ela, aproximando-se ainda mais. — Alguém com um nome diferente do número que Uni lhe deu. Alguém que pensou em escolher sua própria classificação em vez de deixá-la ao encargo de Uni.
Perturbado, afastou-se. Depois virou-se e enfrentou aquelas vagas silhuetas de túnica: Lilás, pequena, diante dele a poucos metros de distância — Rei à direita, emoldurado pela claridade da porta.
— Como é que você pode falar contra Uni? — exclamou. — Ele nos dá tudo!
— Apenas o que lhe demos pra dar — retrucou Lilás. — O que ele nos nega é cem vezes mais!
— Foi ele quem nos deixou nascer!
— E quantos não deixará? Que nem seus filhos. Ou os meus.
— O que é que você quer dizer? Que todo mundo que quisesse ter filhos... deveria tê-los?
— Sim. E exatamente o que eu quero dizer.
Sacudindo a cabeça, ele recuou até a cama e sentou-se. Ela se aproximou dele, agachou-se e segurou-lhe os joelhos.
— Quem, por favor. Eu não devia dizer essas coisas enquanto você ainda está deste jeito, mas por favor, por favor, acredite em mim. Acredite em nós. Nós não estamos doentes, nós somos sadios. É o mundo que está doente... de química, eficiência, humildade e solicitude. Faça o que nós lhe disséramos. Fique sadio. Por favor, Quem.
O ardor dela o prendeu. Procurou enxergar-lhe o rosto.
— Por que você se interessa tanto? — perguntou ele.
As mãos segurando os joelhos eram pequenas e quentes. Sentiu um impulso de tocar nelas, cobri-las com as suas. Divisou vagamente os olhos, grandes e menos oblíquos que o normal, insólitos e belos.
— Nós somos tão poucos — respondeu ela, — e eu penso que talvez, se fossemos em maior número, poderíamos fazer alguma coisa: dar um jeito de fugir e formar um lugar para nós.
— Como os incuráveis.
— Foi assim que nos ensinaram a chamá-los. Talvez eles fossem os invencíveis, os infensos às drogas.
Olhou-a, tentando divisar melhor o rosto.
— Nós temos algumas cápsulas — continuou ela, — que atrasarão os seus reflexos e baixarão a pressão arterial, infiltrando coisas no seu sangue. Darão a impressão que os seus tratamentos estão fortes demais. Se você tomá-las amanhã de manhã, antes que chegue o conselheiro, e comportar- se no centro médico de acordo com as nossas instruções, respondendo a certas perguntas da maneira que lhe ensinarmos... então amanhã será a segunda etapa, e você conseguirá completá-la e ficará sadio.
— E infeliz — disse ele.
— Sim — concordou, com um sorriso na voz, — infeliz também, embora não tanto quanto eu falei. Às vezes eu me deixo levar pelo entusiasmo.
— De cinco em cinco minutos, mais ou menos — ironizou Rei.
Ela retirou as mãos dos joelhos e levantou-se.
— Você topa? — perguntou.
Ele queria dizer-lhe que sim, mas também sentia vontade de dizer não.
— Deixe-me ver as cápsulas — pediu.
Rei aproximou-se.
— Você poderá vê-las depois que formos embora. Estão aqui dentro.
Entregou uma caixinha lisa a Quem.
— A vermelha é pra ser tomada agora de noite e as outras duas assim que você acordar.
— Onde foi que vocês conseguiram?
— Um do grupo trabalha no centro médico.
— Resolva — disse Lilás. — Quer escutar o que você tem que dizer e fazer?
Sacudiu a caixinha mas não obteve nenhum ruído. Fitou as duas vagas silhuetas esperando diante dele. Acenou afirmativamente.
— Está bem — disse.
Os dois sentaram e falaram-lhe. Lilás na cama a seu lado, Rei na cadeira da escrivaninha que tinha puxado para perto. Explicaram-lhe um truque para retesar os músculos antes do exame de metabolismo e outro para olhar para cima do objetivo durante o teste de percepção de profundidade. Explicaram-lhe o que devia dizer ao médico que o examinasse e ao conselheiro veterano que o entrevistasse. Explicaram-lhe os truques que talvez lhe aplicassem: ruídos súbitos pelas costas, ficar completamente sozinho, mas não de fato, com o formulário de relatório do médico convenientemente à mão. Lilás foi quem falou mais. Tocou-o duas vezes, a primeira vez com a perna, a segunda com o braço. E num determinado momento, quando estava com a mão bem perto dele, ele roçou a sua. Mas a dela se afastou com um movimento que talvez até se antecipasse ao contato.
— Isso é tremendamente importante — advertiu Rei.
— Desculpe, o que é mesmo?
— Não o ignore por completo — disse Rei. — O formulário do relatório.
— Repare nele — disse Lilás. — Olhe-o de relance e depois aja como se realmente não valesse a pena pegá-lo pra ler. Como se você, de qualquer maneira, não lhe atribuísse muita importância.
Já era tarde quando terminaram: o último carrilhão tinha tocado meia hora antes.
— E melhor sairmos separados — sugeriu Rei. — Você vai na frente. Espere ao lado do prédio.
Lilás levantou-se e Quem fez o mesmo.
As mãos de ambos se encontraram.
— Eu sei que você há de conseguir, Quem.
— Vou tentar. Obrigado por ter vindo.
— Não tem de quê.
Ela dirigiu-se à porta. Ele pensou que a veria à luz do corredor quando saísse, mas Rei também se levantou, interpondo-se na claridade e a porta fechou-se.
Ficaram em pé calados por um instante, ele e Rei, frente a frente.
— Não se esqueça — disse Rei. — A cápsula vermelha agora e as outras duas quando você levantar.
— O.K. — respondeu, apalpando a caixinha no bolso.
— Você não terá nenhum problema.
— Sei lá. Preciso lembrar-me de tanta coisa.
Ficaram calados novamente.
— Muito obrigado, Rei — agradeceu, estendendo-lhe a mão no escuro.
— Você é um homem de sorte — disse Rei. — Floco de Neve é uma mulher muito apaixonada. Você e ela vão se divertir à beça.
Quem não compreendeu por que ele havia dito isso.
— Tomara — replicou. — Parece mentira que seja possível ter mais de um orgasmo por semana.
— O que precisamos agora é encontrar um homem pra Pardal. Aí então todos terão seu par. Assim fica melhor. Quatro casais. Nenhum atrito.
Quem baixou a mão. De repente achou que Rei estava-lhe avisando para não se meter com Lilás, definindo a situação mandando-lhe obedecer à definição. Teria Rei visto, de algum modo, ele tocar na mão de Lilás?
— Já vou indo — disse Rei. — Vire de costas, por favor.
Quem virou-se e ouviu Rei afastando-se. O quarto clareou ligeiramente quando a porta se abriu, uma sombra deslizou para o corredor e desapareceu assim que a porta se fechou.
Quem girou nos calcanhares. Que coisa estranha pensar que alguém gostava tanto de um determinado membro que nem queria que outro a tocasse! Será que ele também ficaria assim se seus tratamentos fossem reduzidos? Parecia — como tantas outras coisas — difícil de acreditar.
Dirigiu-se ao interruptor e apalpou o que havia por cima: um pedaço de esparadrapo, com algo quadrado e liso por baixo. Puxou a fita, retirou-a e acendeu a luz. Fechou os olhos à claridade do teto.
Quando pôde enxergar, examinou o esparadrapo: era da cor da pele e estava colado a um quadrado de papelão azul. Jogou-o na lixeira e tirou a caixinha do bolso. Era de plástico branco com tampa de dobradiça. Abriu-a. Continha uma cápsula vermelha, outra branca e uma terceira cuja metade era branca e metade amarela, colocadas sobre um forro de algodão.
Levou a caixinha ao banheiro e acendeu a luz. Pondo a caixinha aberta na beira da pia, abriu a torneira, tirou um copo pela fenda do tubo e encheu-o de água. Em seguida fechou a torneira.
Parou para pensar, mas antes que pudesse se arrepender pegou a cápsula vermelha, colocou-a na polpa da língua e tomou água em cima.
Em vez de um, dois médicos o examinaram. Levaram-no de avental azul claro de uma sala de exame a outra, confabulando com vários médicos, confabulando entre si, verificando e fazendo anotações em um formulário de relatório, preso a uma prancha, que a cada instante trocava de mãos. Um era uma quarentona, o outro devia andar pelos trinta. A mulher, de vez em quando, caminhava com o braço em torno dos ombros de Quem, sorrindo e chamando-o de “irmãozinho”. O homem fitava-o impassível, com olhos menores e mais juntos que o normal. Tinha uma cicatriz recente na face, que ia da têmpora ao canto da boca, e equimoses escuras no rosto e na testa. Nunca desviara o olhar de cima de Quem, a não ser para examinar o formulário. Mesmo quando confabulava com outros médicos ficava de olho nele. Quando os três precisavam passar à saia de exame seguinte, geralmente mantinha-se atrás de Quem e da sorridente doutora. Quem sempre esperava que ele fizesse algum ruído súbito, mas ele não fazia.
A entrevista com o conselheiro veterano, uma moça, transcorreu bem, segundo Quem, mas também foi só. Teve medo de retesar os músculos antes do exame de metabolismo porque o médico estava observando e esqueceu de olhar para cima do objetivo no teste de percepção de profundidade, lembrando-se unicamente quando já era tarde demais.
— É uma pena que você esteja perdendo um dia de trabalho — comentou o vigilante médico.
— Depois eu compenso — disse.
Então percebeu que cometera um erro. Devia ter dito: Mas vale a pena, ou Terei de ficar aqui o dia inteiro? ou, simplesmente, o Sim apático de quem recebe excesso de tratamento.
Ao meio-dia, em vez do bolo integral, deram-lhe um copo com um líquido branco e amargo para beber. Depois fez novos testes e exames. A doutora ausentou-se durante meia hora mas o homem não.
Por volta das três da tarde, estavam aparentemente prontos e dirigiram-se a um pequeno gabinete. O homem sentou-se à escrivaninha e Quem ocupou a cadeira em frente.
— Com licença — disse a mulher, — eu já volto.
Sorriu para Quem e retirou-se.
O homem analisou o formulário durante uns dois minutos, correndo a ponta do dedo ao longo da cicatriz, para cima e para baixo. Por fim olhou o relógio da parede e largou a prancha,
— Eu vou buscá-la — disse, levantando-se e saindo, e deixou a porta entreaberta,
Quem não se mexeu. Fungou e olhou para a prancha. Curvou-se, torceu a cabeça, leu no formulário as palavras fator de absorção de colinestérase: sem aumento, e recostou-se de novo no assento. Teria demorado muito para olhar? — não tinha certeza. Esfregou o polegar e examinou-o; depois contemplou os quadros da sala: Marx Escrevendo e Wood Apresentando o Tratado de Unificação.
Os dois voltaram. A doutora sentou-se à escrivaninha e o homem ocupou a cadeira contígua. Ela fitou Quem. Não estava sorridente. Parecia inquieta.
— Irmãozinho — disse, — estou preocupada com você. Acho que você andou tentando enganar-nos.
Quem olhou para ela.
— Enganar? — perguntou.
— Há membros doentes nesta cidade — continuou ela, — você sabia disso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Há sim. Doentes a mais não poder. Vendam os olhos dos membros, levando-os para um lugar qualquer e aconselhando- os a diminuir o rendimento do serviço, a cometer enganos e fingir que perderam interesse por sexo. Procuram tornar os outros membros tão doentes quanto eles. Você não conhece nenhum membro assim?
— Não.
— Ana — disse o homem. — Eu observei o rapaz. Não há motivo pra pensar que haja qualquer coisa errada, além do que os testes revelaram.
Virou-se para Quem:
— Facílimo de curar. Não precisa inquietar-se.
A mulher sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Não, não me parece. Por favor, irmãozinho, você quer que nós o ajudemos, não quer?
— Ninguém me mandou cometer enganos — protestou Quem. — Por quê? A troco de quê?
O homem bateu no formulário de relatório.
— Veja o sumário enzimológico — disse à mulher.
— Já vi, já vi.
— Ele teve um péssimo OT ali, ali, ali e ali. Vamos entregar os dados a Uni e deixá-lo em forma de novo.
— Eu quero que Jesus HL fale com ele.
— Por quê?
— Porque estou preocupada.
— Não conheço nenhum membro doente — repetiu Quem. — Se eu conhecesse, avisaria meu conselheiro.
— Sim — retrucou a mulher, — e por que você queria falar com ele ontem de manhã?
— Ontem? Achei que era o meu dia. Confundi a data.
— Vamos, por favor — disse a mulher, levantando-se com a prancha na mão.
Saíram do gabinete e atravessaram o corredor. A mulher passou o braço pelos ombros de Quem, sem sorrir. O homem se manteve atrás.
Chegaram ao fim do corredor, onde uma porta marcada 600A tinha uma placa marrom e os seguintes dizeres em branco: Chefe, Divisão de Quimioterapia. Entraram numa sala de espera onde um membro ocupava uma escrivaninha. A doutora disse a ela que eles queriam consultar Jesus HL sobre um problema de diagnóstico. O membro levantou-se e saiu por outra porta.
— Uma completa perda de tempo — disse o médico.
— É o que eu espero, pode crer — retrucou a mulher.
Havia duas poltronas na sala, uma mesa baixa e vazia e Wei Discursando aos Quimioterapeutas. Quem resolveu que, mesmo que o obrigassem a confessar, não mencionaria a pele clara de Floco de Neve, nem os olhos menos-oblíquos-que-o-normal de Lilás.
O membro voltou e segurou a porta aberta.
Passaram a um amplo gabinete. Um membro grisalho e magro que devia andar pelos cinquenta — Jesus HL — estava sentado a uma grande escrivaninha desarrumada. Acenou com a cabeça para os dois médicos que se aproximavam e olhou distraidamente para Quem. Indicou-lhe com a mão uma cadeira diante da escrivaninha. Quem sentou-se nela.
A doutora entregou a prancha a Jesus HL.
— Isso não me cheira bem — disse ela. — Acho que ele está simulando.
— O que não condiz com a prova enzimológica — frisou o outro doutor.
Jesus HL recostou-se na cadeira e estudou o formulário. Os dois médicos, parados junto da escrivaninha, acompanhavam-lhe as reações. Quem tentou aparentar curiosidade, mas sem nervosismo. Olhou um instante para Jesus HL e depois concentrou-se na escrivaninha, coberta por pilhas de papéis de toda a espécie, espalhados ou amontados em cima de um modelo antigo de telecomputador, cujo estojo estava bem arranhado. Ao lado de um recipiente de bebida, cheio de canetas e réguas, uma fotografia emoldurada de Jesus HL mostrava-o mais jovem, sorridente, defronte à cúpula de Uni. Havia dois pesa-papéis de lembrança, um quadrado, insólito, de CHI61332 e o outro redondo de ARG20400, ambos desocupados.
Jesus HL virou a prancha no sentido longitudinal, despregou o formulário e leu o que havia escrito no verso.
— O que eu gostaria de fazer, Jesus — disse a médica, — seria manter o rapaz aqui hoje à noite pra amanhã de manhã repassar parte dos testes.
— Pura perda... — começou o homem.
— Ou melhor ainda — atalhou a mulher, mais alto, — interrogá-lo agora sob efeito de TP.
— Pura perda de tempo e provisões — insistiu o homem.
— O que é que nós somos? — retrucou-lhe a mulher com brusquidão. — Médicos ou analisadores de eficiência?
Jesus HL largou a prancha e fitou Quem. Levantou-se da cadeira e contornou a escrivaninha, os outros dois recuando rapidamente para deixar-lhe passagem. Ele veio e parou bem defronte à poltrona de Quem. Alto e magro, a túnica com a cruz vermelha toda suja de manchas amarelas.
Retirou as mãos de Quem dos braços da poltrona, virou-as para cima e examinou as palmas, brilhantes de suor.
Soltou uma e reteve a outra, segurando o pulso com os dedos. Quem forçou-se a erguer os olhos, sem demonstrar nervosismo. Jesus HL encarou-o com uma expressão interrogativa durante algum tempo, depois desconfiou — não, viu — e sorriu com desdém ante a descoberta. Quem sentiu-se oco, arrasado.
Jesus HL agarrou-lhe o queixo e inclinou-se para ele.
— Abra bem os olhos — disse.
Era a voz de Rei. Quem arregalou os olhos.
— Isso mesmo — disse ele. — Olhe pra mim como se eu tivesse dito uma coisa chocante.
Não havia dúvida: era a voz de Rei. Quem ficou boquiaberto.
— Não fale, por favor — disse Rei, Jesus HL, espremendo- lhe dolorosamente o queixo. Encarou-o nos olhos, virou-lhe a cabeça primeiro para um lado, depois para outro, por fim soltou-a e recuou. Contornou a escrivaninha e tornou a sentar-se. Pegou a prancha, deu uma olhada e devolveu-a à doutora com um sorriso. — Você está enganada, Ana. Não canse mais a cabeça. Já vi muitos membros que estavam dissimulando. Não é o caso deste. Felicito-a pelo zelo, entretanto.
E para o homem:
Ela tem razão, sabe, Jesus? Nós não devemos ser analisadores de eficiência. A Família pode arcar com um pouco de desperdício quando se trata da saúde de um membro. Afinal de contas, o que é a Família senão a soma de seus membros?
— Obrigada, Jesus — disse a mulher, sorrindo. — Ainda bem que me enganei.
— Entreguem esses dados a Uni — disse Rei, virando-se e olhando para Quem, — pra que o nosso irmão aqui possa ser tratado como deve de hoje em diante.
— Sim, em seguida.
A mulher fez sinal para Quem. Ele se levantou da poltrona.
Saíram do gabinete. Na soleira da porta Quem se virou.
— Obrigado — disse.
Detrás da desordem da escrivaninha, Rei olhou para ele — um mero olhar, sem sorriso, sem nenhum lampejo de amizade.
— Agradeça a Uni — corrigiu.
Menos de um minuto depois de voltar ao quarto, Beto telefonou.
— Acabo de receber um relatório do Centro Médico Matriz — disse. — Os seus tratamentos têm sido ligeiramente deficientes mas de agora em diante vão ser exatamente como devem.
— Ótimo — respondeu Quem.
— Essa confusão e cansaço que você andou sentindo desaparecerão gradativamente durante a próxima semana, mais ou menos, e depois você voltará a ser como antes.
— Tomara.
— É, sim. Ouça, não quer que eu dê um jeito de incluí-lo amanhã, Li? Ou quem sabe a gente deixa pra terça-feira que vem?
— Terça-feira que vem fica bom.
— Ótimo — Beto sorriu. — Sabe de uma coisa? Você já está com bom aspecto.
— É que me estou sentindo um pouco melhor.