30
— Você tem uma casa? — Estou chocada demais para boas maneiras.
Adam ri e se afasta do campo. O tanque é surpreendentemente rápido, surpreendentemente ligeiro e discreto. O motor aquietou-se em um zunido apaziguador, e eu me pergunto se é por isso que eles trocaram os tanques a gás pelos elétricos. É certamente menos chamativo desse modo.
— Não exatamente — responde ele. — Mas uma espécie de casa. Sim.
Quero perguntar e não quero perguntar e preciso perguntar e nunca quero perguntar. Tenho de perguntar. Tomo coragem.
— Seu pai...
— Já faz um tempo que ele morreu. — Adam não está mais sorrindo. O aperto em sua voz somente eu saberia reconhecer. Dor. Amargura. Raiva.
— Ah.
Viajamos em silêncio, cada um absorvido em seus pensamentos. Não me atrevo a perguntar o que veio a ser de sua mãe. Apenas me pergunto como ele se saiu tão bem apesar de ter um pai tão desprezível. E me pergunto por que ele entrou para o exército se ele o odeia tanto. Neste momento, sinto-me tímida demais para perguntar. Não quero ultrapassar suas fronteiras emocionais.
Deus sabe que eu mesma tenho um milhão delas.
Espio para fora da janela e estico os olhos para ver pelo que estamos passando, mas não consigo discernir muito mais que as tristes extensões de terra deserta com que cresci acostumada. Não há civis onde estamos: estamos muito longe dos assentamentos restabelecidos e dos aglomerados civis. Reparo em outro tanque patrulhando a área a 30 metros de distância, mas não acho que ele nos veja. Adam está dirigindo sem faróis, presumidamente para atrair menos atenção possível para nós. Pergunto-me como ele é capaz de pilotar. A Lua é a única lâmpada a iluminar nosso caminho.
Está misteriosamente silencioso.
Por um momento permito que meus pensamentos sejam levados de volta para Warner, perguntando-me o que deve estar acontecendo neste momento, perguntando-me quantas pessoas devem estar procurando por mim, perguntando-me até onde ele irá para ter-me de volta. Ele quer Adam morto. Ele me quer viva. Ele não vai parar até que eu esteja presa ao lado dele.
Ele nunca nunca nunca pode saber que eu posso tocá-lo.
Só posso imaginar o que ele faria se tivesse acesso a meu corpo.
Tomo um só fôlego, rápido e vacilante, e considero dizer a Adam o que aconteceu. Não. Não. Não. Não. Fecho os olhos e avalio que posso ter julgado mal a situação. Ela foi caótica. Meu cérebro estava perturbado. Talvez eu tenha imaginado isso. Sim.
“Talvez eu tenha imaginado isso.”
É estranho o bastante que Adam possa me tocar. A probabilidade de haver duas pessoas neste mundo que sejam imunes ao meu toque não me parece possível. Na realidade, quanto mais penso nisso, mais fico determinada de que devo ter cometido um erro. Qualquer coisa poderia ter tocado minha pele. Talvez um pedaço do lençol que Adam abandonou depois de usá-lo para esmurrar a janela. Talvez um travesseiro que caíra da cama. Talvez as luvas de Warner caídas no chão. Sim.
Não havia como ele ter me tocado, porque, se o tivesse, ele teria gritado de agonia.
Assim como todos os outros.
As mãos de Adam escorregam silenciosamente até as minhas e eu agarro seus dedos com as duas mãos, subitamente desesperada para confirmar a mim mesma que ele é imune a mim. Fico ansiosa por beber cada gota de seu ser, por saborear cada momento que nunca conheci antes. Subitamente me preocupo de que haja uma data para este fenômeno expirar. Um relógio batendo à meia-noite. Uma carruagem de abóbora.
A possibilidade de perdê-lo.
A possibilidade de perdê-lo.
A possibilidade de perdê-lo é como 100 anos de solidão que não quero imaginar. Não quero que meus braços sintam falta de seu calor. Seu toque. Seus lábios, Deus, seus lábios, sua boca em meu pescoço, seu corpo envolto ao meu, ligando-me como a afirmar que minha existência na Terra não é em vão.
A compreensão é um pêndulo da dimensão da Lua. Ele não para de bater em mim.
— Juliette?
Engulo a bala em minha garganta.
— Por que você está chorando...? — Sua voz é quase tão gentil quanto sua mão conforme esta se liberta de meu domínio. Ele toca as lágrimas que me escorrem a face e eu me sinto tão humilhada que quase não sei o que dizer.
— Você pode tocar em mim — digo pela primeira vez, reconheço em voz alta pela primeira vez. Minhas palavras desvanecem em um sussurro. — Você pode tocar em mim. Você se importa e eu não sei por quê. Você é bondoso comigo e você não tem que ser. Minha própria mãe não se importava o suficiente para... para... — Minha voz fica presa e eu aperto meus lábios. Colo-os um no outro. Forço-me a ficar tranquila.
Sou uma pedra. Uma estátua. Um movimento congelado no tempo. Gelo não sente absolutamente nada.
Adam não responde, não diz uma única palavra até ele ir para a margem da estrada e entrar em uma antiga garagem subterrânea. Entendo que chegamos a alguma aparente civilização, mas o subsolo é escuro como o breu. Não consigo enxergar nada próximo e mais uma vez admiro a forma como Adam está dirigindo. Meus olhos pousam sobre a tela iluminada em seu painel apenas para me dar conta de que o tanque tem visão noturna. É claro.
Adam desliga o motor. Eu o escuto suspirar. Mal consigo distinguir sua silhueta antes de sentir sua mão na minha coxa, sua outra mão subindo meu corpo para encontrar meu rosto. O calor se espalha pelos meus membros tal lava derretida. As pontas dos dedos de meus pés e mãos estão formigando e eu tenho de conter o arrepio que faz questão de estremecer meu corpo.
— Juliette — sussurra ele, e eu percebo o quão próximo ele está. Não estou certa do porquê de eu não ter evaporado. — Tem sido sempre eu e você contra o mundo — diz ele. — Sempre foi desse jeito. A culpa é minha por ter levado tanto tempo para fazer algo sobre isso.
— Não. — Sacudo a cabeça. — Não é sua culpa...
— É sim. Eu me apaixonei por você muito tempo atrás. Só não tive a coragem de agir motivado por isso.
— Porque eu poderia ter matado você.
Ele ri tranquilamente.
— Porque eu não achava que merecia você.
Sou um pedaço de assombro forjado em ser.
— O quê?
Ele toca seu nariz no meu. Recosta-se no meu pescoço. Enrola uma porção de meu cabelo em volta dos dedos e eu não consigo não consigo não consigo respirar.
— Você é... demais — sussurra ele.
— Mas minhas mãos...
— Nunca fizeram nada para machucar alguém.
Estou prestes a protestar quando ele se corrige.
— Não de propósito.
Ele se inclina para trás. Mal posso vê-lo esfregar a lateral de seu pescoço.
— Você nunca revidou — diz ele depois de um momento. — Sempre me perguntava por quê. Você nunca gritou ou ficou brava ou tentou dizer qualquer coisa para quem quer que fosse — diz ele, e eu sei que nós dois estamos de volta à terceira quarta quinta sexta sétima oitava nona série mais uma vez. — Mas, caramba, você deve ter lido um milhão de livros. — Sei que ele está sorrindo quando diz isso. Uma pausa. — Você não aborrecia ninguém, mas todos os dias você era um alvo ambulante. Você poderia ter revidado. Você poderia ter ferido todos se quisesse.
— Não quero ferir ninguém. — Minha voz é menos que um sussurro. Não consigo tirar de minha mente a imagem do Adam aos oito anos. Deitado no chão. Arruinado. Abandonado. Chorando em meio à sujeira.
As coisas que as pessoas fazem por poder.
— É por isso que você nunca será o que Warner quer que você seja.
Estou fitando um ponto na escuridão, minha mente torturada por possibilidades.
— Como pode ter certeza?
Seus lábios estão muito próximos aos meus.
— Porque você ainda se preocupa com o mundo.
Sobressalto-me e ele está me beijando, profundo e poderoso e irrefreável. Seus braços envolvem minhas costas, curvando meu corpo até que estou praticamente na posição horizontal e não me importo. Minha cabeça está no assento, seu corpo pairando sobre o meu, suas mãos segurando meus quadris por debaixo de meu vestido surrado e eu sou lambida por um milhão de labaredas de desejo tão desesperado que mal consigo inalar. Ele é um banho quente, uma falta de ar, cinco dias de verão calcados em cinco dedos que escrevem histórias em meu corpo. Sou uma constrangedora confusão de nervos indo de encontro a ele, controlados por uma corrente de eletricidade que flui através de meu íntimo. Sua essência está assaltando meus sentidos.
Seus olhos
Suas mãos
Seu peito
Seus lábios
estão ao meu ouvido quando ele fala.
— Estamos aqui, por sinal. — Ele está respirando com mais dificuldade agora do que quando ele estava correndo por sua vida. Sinto seu coração batendo contra minhas costelas. Suas palavras são um sussurro entrecortado. — A gente talvez devesse ir lá para dentro. É mais seguro. — Mas ele não se move.
Quase não entendo sobre o que ele está falando. Só concordo com a cabeça, balançando-a no pescoço, até que lembro que ele não pode me ver. Tento lembrar como se fala, mas estou concentrada demais nos dedos que ele está descendo por minhas coxas para ser capaz de formular frases. Existe algo na escuridão absoluta, em não ser capaz de ver o que está acontecendo que me deixa embriagada de uma vertigem deliciosa.
— Sim — é tudo o que falo.
Ele ajuda a me sentar novamente, recosta sua testa na minha.
— Desculpa — diz ele. — É tão difícil me segurar. — Sua voz está perigosamente rouca; suas palavras vibram sobre minha pele.
Permito que minhas mãos deslizem sob sua camisa e sinto-o firmar-se, engolir. Traço as linhas perfeitamente esculpidas de seu corpo. Ele não é nada senão músculo, massa magra.
— Você não tem que se segurar — digo a ele.
Seu coração está batendo tão rápido que não consigo distingui-lo do meu. O ar entre nós está em 5.000 graus. Seus dedos estão na curva logo abaixo do osso de meu quadril, provocando o pedacinho de pano que me mantém, até certo ponto, decente.
— Juliette...
— Adam?
Meu pescoço se ergue bruscamente em surpresa. Medo. Ansiedade. Adam para de se mover, congelado na minha frente. Não sei se ele está respirando. Olho em volta, mas não consigo encontrar um rosto para comparar com a voz que chamou por seu nome e começo a entrar em pânico antes que Adam esteja abrindo a porta com força, voando para fora antes que eu escute seu nome de novo.
— Adam... é você?
É um garoto.
— James!
O som abafado de impacto, dois corpos colidindo, duas vozes felizes demais para ser perigosas.
— Não posso acreditar que é mesmo você! Digo, bem, achei que era você porque pensei ter escutado alguma coisa e de início imaginei que não era nada, mas então decidi que talvez devesse verificar só para ter certeza porque se fosse você e... — Ele faz uma pausa. — Espera... o que você está fazendo aqui?
— Estou em casa. — Adam ri um pouco.
— Sério? — James grita. — Está em casa para sempre?
— Sim. — Ele suspira. — Caramba, como é bom ver você.
— Senti sua falta — diz James, de repente tranquilo.
Uma respiração profunda.
— Eu também, garoto. Eu também.
— Ei, então, você já comeu alguma coisa? Benny acabou de entregar meu jantar, e eu poderia dividir um pouco com vo...
— James?
Ele interrompe.
— Sim?
— Tem alguém que quero que você conheça.
Minhas palmas estão suadas. Meu coração está na garganta. Escuto Adam andar de volta até o tanque e não percebo que ele enfiou a cabeça ali dentro até que ele acione um botão. Uma fraca luz de emergência ilumina a cabine. Pisco algumas vezes e vejo um jovem garoto em pé, a cerca de um metro e meio de distância, cabelos loiros imundos emoldurando um rosto redondo com olhos azuis que parecem bastante familiares. Ele apertou os lábios para se concentrar. Ele está me encarando.
Adam está abrindo minha porta. Ele me ajuda a ficar de pé, mal capaz de controlar o sorriso no rosto e eu fico chocada com o nível de meu próprio nervosismo. Não sei por que estou tão nervosa, mas, Deus, estou nervosa. Este garoto é, sem sombra de dúvidas, importante para Adam. Não sei por que, mas também sinto que este momento é importante. Estou tão preocupada que eu possa estragar tudo. Tento arrumar as pregas rasgadas de meu vestido, tento suavizar as rugas no pano. Passo os dedos ao acaso pelos cabelos. É inútil.
A pobre criança está paralisada.
Adam me conduz adiante. James está um punhado de dedos abaixo da minha altura, mas é óbvio em seu rosto que ele é jovem, imaculado, intocado pelas mais duras realidades do mundo. Quero me deleitar com a beleza de sua inocência.
— James? Esta é Juliette. — Adam olha para mim.
— Juliette, este é meu irmão, James.
31
Seu irmão.
Tento controlar o ataque de nervos. Tento sorrir para o garoto que estuda meu rosto, estuda os patéticos pedaços de pano que pouco cobrem meu corpo. Como não sabia que Adam tinha um irmão? Como poderia nunca ter sabido?
James volta-se para Adam.
— Esta é Juliette?
Estou paralisada. Não me lembro das boas maneiras.
— Você sabe quem eu sou?
James vira-se de novo em minha direção.
— Ah, sim. Adam fala muito de você.
Enrubesço e não consigo evitar de olhar para Adam. Ele está encarando um ponto no chão. Ele limpa a garganta.
— É muito bom conhecer você — consigo dizer.
James inclina a cabeça.
— Então você sempre se veste assim?
Fico com um pouco de vontade de morrer.
— Ei, garoto — interrompe Adam. — Juliette ficará conosco por um tempinho. Por que você não vai dar uma olhada para ver se não deixou nenhuma cueca pelo chão, hein?
James parece amedrontado. Ele se lança à escuridão sem dizer uma palavra.
O silêncio toma tantos segundos que perco a conta. Ouço, a distância, uma espécie de goteira.
Respiro fundo. Mordo o lábio inferior. Tento encontrar as palavras certas. Fracasso.
— Não sabia que você tinha um irmão.
Adam hesita.
— Tudo bem... para você? Vamos todos dividir o mesmo espaço e eu...
Meu estômago embrulha.
— É claro que está tudo bem! Eu só... digo... você tem certeza de que está tudo bem... para ele? Se eu ficar aqui?
— Não tem mais nenhuma cueca — anuncia James, caminhando para a luz. Me pergunto para onde ele desapareceu, onde é a casa. Ele olha para mim. — Então você vai ficar com a gente?
Adam intervém.
— Sim. Ela vai morar com a gente um pouco.
James passa os olhos de mim para Adam, e volta-os para mim. Ele estica a mão.
— Bem, é bom finalmente conhecer você.
Todas as cores fogem de meu rosto. Meu coração está batendo em meus ouvidos. Meus joelhos estão prestes a quebrar. Não consigo parar de encarar esta mãozinha estendida, oferecida a mim.
— James — diz Adam um pouco secamente.
James começa a rir.
— Só estava brincando. — Ele baixa a mão.
— O quê? — Mal consigo respirar. Minha cabeça está girando, confusa.
— Não esquenta — diz James, ainda rindo. — Não vou tocar em você. Adam me contou tudo sobre seus poderes mágicos. Ele revira os olhos.
— Adam... contou... ele... o quê?
— Ei, talvez a gente deva ir para dentro. — Adam limpa a garganta um tanto ruidosamente. — Vou só apanhar bem rápido nossas mochilas... — E ele corre em direção ao tanque. Sou deixada ainda com os olhos fixos em James. Ele não esconde sua curiosidade.
— Quantos anos você tem? — pergunta para mim.
— Dezessete.
Ele concorda com a cabeça.
— Foi o que Adam disse.
Eu me irrito.
— O que mais Adam lhe contou sobre mim?
— Ele disse que você também não tem pais. Ele disse que você é como a gente.
Meu coração é um pedaço de manteiga, derretendo temerariamente em um dia quente de verão. Minha voz se acalma.
— Quantos anos você tem?
— Faço onze anos ano que vem.
Sorrio.
— Então você tem dez anos?
Ele cruza os braços. Fecha a cara.
— Terei doze daqui dois anos.
Acho que já amo este garoto.
A luz da cabine desliga e por um momento estamos imersos na absoluta escuridão. Um suave clique, e um fraco brilho circular ilumina o campo de visão. Adam tem uma lanterna.
— Ei, James? Por que você não vai na frente e nos mostra o caminho?
— Sim, senhor! — Ele derrapa até parar diante dos pés de Adam, faz para nós uma exagerada saudação, e sai correndo de maneira tão veloz que fica impossível segui-lo. Não consigo evitar um sorriso no rosto.
A mão de Adam desliza para dentro da minha enquanto avançamos.
— Você está bem?
Aperto seus dedos.
— Você contou pro seu irmão de dez anos sobre meus poderes mágicos?
Ele ri.
— Contei um monte de coisas para ele.
— Adam?
— Sim?
— Sua casa não é o primeiro lugar em que Warner vai procurar por você? Isso não é perigoso?
— Seria. Mas, de acordo com os registros públicos, eu não tenho uma casa.
— E seu irmão?
— Seria o primeiro alvo de Warner. É mais seguro para ele ficar onde eu possa protegê-lo. Warner sabe que tenho um irmão, ele só não sabe onde. E, até que ele descubra... e ele irá... temos de nos preparar.
— Para lutar?
— Para nos defender. Sim. — Mesmo sob a luz fraca deste espaço estranho eu posso enxergar a determinação que o mantém resoluto. Isso me faz querer cantar.
Fecho os olhos.
— Ótimo.
— O que tanto está segurando vocês? — James grita a distância.
E partimos.
A garagem está localizada sob um prédio comercial velho e abandonado, oculto pelas sombras. A saída de incêndio leva diretamente até o piso principal.
James está tão entusiasmado que vai pulando as escadas, correndo na frente só para, depois de alguns passos, correr de volta e reclamar que não estamos indo rápido o bastante. Adam pega-o por trás e ergue-o do chão. Ele ri.
— Vamos quebrar seu pescoço.
James protesta, mas só para fazer graça. Ele está muito feliz por ter seu irmão de volta.
Uma angústia aguda, nascida de algum tipo de emoção distante, me aperta no coração. É uma dor tão doce e amarga que não consigo reconhecer. Sinto-me estranhamente aquecida e paralisada ao mesmo tempo.
Adam digita uma senha no teclado ao lado de uma porta de aço maciço. Há um clique suave, um breve bipe e ele vira a alavanca.
Fico impressionada com o que vejo.
32
É uma sala de estar completa, aberta e luxuosa. Um tapete grosso, cadeiras macias, um sofá vai de uma ponta à outra da parede. Lâmpadas quentes, em tons verde, amarelo e laranja, clareiam suavemente o amplo espaço. A sensação de lar é mais forte do que qualquer coisa que já vi. As lembranças frias e solitárias da minha infância sequer se comparam. Sinto-me tão segura que repentinamente isso me assusta.
— Gosta? — Adam está sorrindo para mim, sem dúvida satisfeito com o aspecto de meu rosto.
— Amo — digo em voz alta para afugentar a incerteza.
— Adam que fez — diz James, orgulhoso, estufando o peito um pouco mais que o necessário. — Ele fez para mim.
— Eu não fiz isso — protesta Adam, rindo. — Só dei... uma ajeitada.
— Você mora aqui sozinho? — pergunto a James.
Ele enfia as mãos nos bolsos e faz que sim com a cabeça.
— Benny fica bastante comigo, mas na maior parte do tempo fico sozinho aqui. Mas tenho sorte.
Adam está colocando nossas mochilas sobre o sofá. Ele passa a mão pelos cabelos e eu observo enquanto os músculos de suas costas se flexionam, tensos, em esforço conjunto. Observo enquanto ele exala a tensão de seu corpo. Eu sei por que, mas mesmo assim pergunto.
— Por que você tem sorte?
— Porque eu tenho um hóspede. Nenhuma das outras crianças tem hóspedes.
— Há outras crianças aqui? — Espero não aparentar tanto medo quanto sinto.
James está balançando a cabeça tão rápido que ela está tremendo sobre o pescoço.
— Ah, sim. Esta rua toda. Todas as crianças estão aqui. Mas sou o único com o próprio quarto. — Ele faz gestos ao redor do espaço. — Isso é tudo meu porque Adam comprou para mim. Mas todo mundo tem que dividir. Temos mais ou menos uma escola. E Benny me traz pacotes de comida. Adam diz que eu posso brincar com as outras crianças, mas não posso trazê-las para dentro. — Ele encolhe os ombros. — Está tudo bem.
A realidade do que ele está dizendo se espalha como veneno na boca de meu estômago.
“Uma rua dedicada a crianças órfãs.”
Me pergunto como seus pais morreram, mas não por muito tempo.
Faço o inventário da sala e reparo em uma geladeira pequena e um micro-ondas pequeno colocado em cima, ambos encostados a um canto, vejo alguns armários colocados ao lado para despensa. Adam trouxe o máximo de produtos que conseguiu... todos os tipos de comida enlatada e itens não perecíveis. Nós dois trouxemos nossos produtos de higiene pessoal e vários conjuntos de roupas. Fizemos as malas para sobreviver por algum tempo.
James retira um pacote de papel-alumínio da geladeira e o enfia no micro-ondas.
— Espere... James... não... — Tento impedi-lo.
Seus olhos estão arregalados, congelados.
— O quê?
— O papel-alumínio... você não pode... você não pode colocar metal no micro-ondas...
— O que é um micro-ondas?
Pisco tantas vezes que a sala gira.
— O quê...?
Ele tira a tampa do recipiente de papel-alumínio para revelar um pequeno quadrado. Ele parece um caldo de carne. Ele aponta para o cubo e então acena com a cabeça para o micro-ondas.
— Está tudo bem. Sempre o coloco no Automático. Nada acontece.
— Ele pega a composição molecular da comida e a multiplica. — Adam está de pé ao meu lado. — Não acrescenta nenhum valor nutricional, mas faz você se sentir mais saciado, por mais tempo.
— E é barata! — diz James, sorrindo enquanto enfia a comida de volta ao aparelho.
Causa-me espanto ver como tudo mudou. As pessoas ficaram tão desesperadas que estão falsificando comida.
Tenho tantas perguntas que estou sujeita a explodir. Adam aperta meu ombro, delicadamente. Ele sussurra:
— Conversaremos mais tarde, prometo. — Mas eu sou uma enciclopédia com muitas páginas em branco.
James adormece com a cabeça no colo de Adam.
Ele não parou de falar desde que terminou sua comida, contando-me tudo sobre sua escola “mais ou menos”, e seus “mais ou menos amigos”, e Benny, a senhora idosa que cuida dele porque “eu acho que ela gosta mais de Adam do que de mim, mas ela me dá açúcar então está tudo bem”. Todos têm toque de recolher. Ninguém, exceto soldados, tem permissão para ficar do lado de fora depois do pôr do sol, cada soldado é armado e instruído a disparar a seu critério.
— Algumas pessoas pegam mais comida e produtos que outras — disse James, mas isso porque as pessoas são classificadas de acordo com o que elas podem fornecer para O Restabelecimento, e não porque elas são seres humanos com o direito a não morrer de fome.
Meu coração partiu-se um pouco mais a cada informação que ele compartilhou comigo.
— Você não liga que eu fale muito, né? — Ele mordeu o lábio inferior e me estudou.
— De modo algum eu ligo.
— Todo mundo diz que eu falo demais. — Ele encolhe os ombros. — Mas o que eu devo fazer quando tenho tanto a dizer?
— Ei... falando nisso... — interrompe Adam. — Você não pode contar para ninguém que estamos aqui, está bem?
A boca de James parou no lugar. Ele piscou algumas vezes. Ele olhou severamente para seu irmão.
— Nem pra Benny?
— Ninguém — disse Adam.
Por um momento infinitesimal eu vi algo que parecia um lampejo de dolorosa compreensão em seus olhos. Um garoto de dez anos em quem se pode confiar, totalmente. Ele assentiu com a cabeça várias vezes.
— Beleza. Vocês nunca estiveram aqui.
Adam tira da testa de James fios rebeldes de cabelo. Ele está olhando para o rosto adormecido de seu irmão como se tentasse memorizar cada pincelada de uma pintura a óleo. Estou fitando Adam fitando James.
Pergunto-me se ele sabe que ele está segurando meu coração em sua mão. Respiro, trêmula.
Adam levanta os olhos e eu baixo os olhos e ambos estamos constrangidos por diferentes razões.
Ele sussurra:
— Devia botá-lo na cama — mas não faz esforço para se mover. James está profunda profunda profundamente adormecido.
— Quando foi a última vez que você o viu? — pergunto, com cuidado para manter meu tom de voz baixo.
— Há cerca de seis meses. — Uma pausa. — Mas falei muito com ele por telefone. — Sorri um pouco. — Contei a ele muito sobre você.
Ruborizo. Conto meus dedos para me certificar de que eles estão todos ali.
— Warner não monitorava suas ligações?
— Sim. Mas Benny tem uma linha que não pode ser rastreada, e eu sempre fui cauteloso para restringi-la apenas a relatórios oficiais. Em todo caso, James sabe sobre você há muito tempo.
— Sério...? — Odeio precisar saber, mas mal consigo conter-me. Estou inquieta.
Ele levanta os olhos, desvia o olhar. Ele cruza com meus olhos. Suspira.
— Juliette, estive procurando por você desde o dia em que partiu.
Meu queixo cai em meu colo.
— Fiquei preocupado com você — diz ele calmamente. — Não sabia o que eles iam fazer com você.
— Como? — engasgo, engulo, tropeço nas palavras. — Como poderia se importar?
Ele recosta no sofá. Passa a mão livre pelo rosto. Estações mudam. Estrelas explodem. Alguém está caminhando sobre a Lua.
— Sabia que ainda me lembro do primeiro dia em que você apareceu na escola? — Sua risada é afável, triste. — Talvez eu fosse muito jovem, e talvez eu não soubesse muito do mundo, mas havia alguma coisa em você pela qual fui imediatamente atraído. Era como se só quisesse ficar perto de você... como se você tivesse essa... essa bondade... que eu nunca encontrei na vida. Essa doçura que nunca encontrei em casa. Só queria ouvir você falar. Queria que você me visse, sorrisse para mim. Todo santo dia eu me prometia que falaria com você. Eu queria conhecer você. Mas dia a dia eu era um covarde. E um dia você simplesmente desapareceu.
— Tinha escutado os rumores, mas sabia mais. Sabia que você nunca faria mal a ninguém. — Ele baixa os olhos. A Terra racha e eu estou caindo dentro da fissura. — Parece loucura — diz ele. — Pensar que me importei tanto sem nunca falar com você. — Ele hesita. — Mas eu não conseguia parar de pensar em você. Não conseguia parar de me perguntar para onde você tinha ido. O que aconteceria com você. Tive medo que você nunca se defendesse.
Ele fica em silêncio por tanto tempo que quero morder minha língua.
— Eu tinha de encontrá-la — sussurra ele. — Perguntei por toda parte e ninguém tinha respostas. O mundo continuava desmoronando. As coisas pioravam e eu não sabia o que fazer. Eu tinha de cuidar de James e tinha de encontrar um meio de vida e eu não sabia se ingressar no exército ajudaria, mas nunca me esqueci de você. Sempre tive esperanças — ele hesita — de que um dia voltaria a vê-la.
Fiquei sem palavras. Meus bolsos estão cheios de letras e eu não consigo concatenar e eu estou tão desesperada por dizer alguma coisa que nada digo e meu coração está a ponto de explodir no meu peito.
— Juliette...?
— Você me encontrou. — Seis sílabas. Um sussurro de admiração.
— Você está... triste?
Levanto os olhos e pela primeira vez percebo que ele está nervoso. Angustiado. Incerto de como reagirei a essa revelação. Não sei se devo rir ou gritar ou beijar cada centímetro de seu corpo. Quero adormecer ao som de seu coração batendo na atmosfera. Quero saber que ele está vivo e bem, inspirando e expirando, forte e lúcido e saudável.
— Você é o único que sempre se importou. — Meus olhos se enchem de lágrimas e eu pisco para contê-las e sinto o fogo na garganta e tudo tudo tudo dói. O peso do dia inteiro estatela em mim, ameaça quebrar meus ossos. Quero chorar de felicidade, de agonia, de alegria e pela falta de justiça. Quero apalpar o coração da única pessoa que sempre se importou.
— Eu te amo — sussurro. — Muito mais do que você jamais saberá.
Seus olhos são um instante de escuridão repleto de memórias, as únicas janelas para o meu mundo. Seu rosto está tenso. Sua boca está tensa. Ele levanta os olhos e tenta limpar a garganta e eu sei que ele precisa de um momento para se recuperar. Digo a ele que talvez fosse bom colocar James na cama. Ele concorda. Aconchega seu irmão ao peito. Levanta-se e carrega James até o quartinho do depósito transformado em quarto.
Observo-o sair com a única família que ele deixou e eu sei por que Adam ingressou no exército.
Eu sei por que ele sofreu por ser bode expiatório de Warner. Eu sei por que ele lidou com a horripilante realidade da guerra, porque ele estava tão desesperado por fugir, tão pronto a fugir o mais breve possível. Por que ele está tão determinado a revidar.
Ele está lutando por muito mais do que por si próprio.
33
— Por que você não dá uma olhada nesses machucados?
Adam está de pé na frente da porta de James, suas mãos enfiadas nos bolsos. Ele está vestindo uma camiseta vermelho-escura que lhe aperta o corpo. Seus braços são habilmente esculpidos, pintados com tatuagens profissionais. Ele me surpreende olhando para elas. Encontro-o do outro lado da sala, toco os desenhos sobre sua pele. Balanço a cabeça.
Ele quase sorri. Sacode a cabeça um milímetro apenas.
— O quê? — Tiro minha mão.
— Nada. — Ele sorri. Desliza os braços ao redor de minha cintura. — Só não consigo acreditar ainda. Você está mesmo aqui. Na minha casa.
O calor sobe-me o pescoço e eu caio de uma escada sobre um pincel mergulhado no vermelho. Elogios não são coisas que eu saiba como processar. Mordo o lábio.
— Onde você conseguiu a tatuagem?
— Estas? — Ele olha novamente para os braços.
— Não. — Estendo a mão para sua camiseta, puxando-a para cima de modo tão desastroso que ele quase perde o equilíbrio. Ele cambaleia para trás e recosta na parede. Levanto o tecido até o colarinho. Resisto ao rubor. Toco seu peito.
— Onde você conseguiu esta?
— Ah. — Ele está olhando para mim, mas de repente sou distraída pela beleza de seu corpo e as calças cargo estão situadas um pouco abaixo demais da cintura. Percebo que ele deve ter tirado o cinto. Forço meus olhos para cima. Permito que meus dedos apalpem-lhe descendo o abdome. Sua respiração é tensa.
— Eu não sei... — diz ele. — Eu só... fiquei sonhando com este pássaro branco. Os pássaros costumavam voar, você sabe.
— Você costumava sonhar com ele?
— Sim. O tempo todo. — Ele sorri um pouco, expira um pouco, a relembrar. — Era bom. Sentia-me bem... esperançoso. Quis me agarrar a essa memória porque não tinha certeza se duraria. Então a tornei permanente.
Cubro a tatuagem com a palma de minha mão.
— Costumo sonhar com este pássaro o tempo todo.
— Este pássaro? — Suas sobrancelhas poderiam tocar o céu.
Faço que sim com a cabeça.
— Exatamente este. — A compreensão toma seu devido lugar. — Até o dia em que você apareceu na cela. A partir de então não sonhei mais. — Olho para ele.
— Você está brincando? — Mas ele sabe que não estou.
Baixo sua camiseta e recosto minha testa em seu peito. Inalo seu perfume. Ele não perde tempo puxando-me para mais perto. Descansa o queixo na minha cabeça, suas mãos nas minhas costas.
E permanecemos assim até que estou velha demais para me lembrar de um mundo sem o seu calor.
Adam limpa meus cortes em um banheiro ao lado. Trata-se de uma salinha com um toalete, um espelho pequeno e um chuveiro minúsculo. Amo tudo isso. Quando saio do banheiro, depois de finalmente me trocar e lavar as mãos e o rosto para dormir, Adam está me esperando no escuro. Há cobertores e travesseiros dispostos no chão e isso parece o paraíso. Estou tão exausta que poderia dormir durante alguns séculos.
Deslizo até o seu lado e ele me encaixa em seus braços. A temperatura neste lugar é bem mais baixa, e Adam é a perfeita fornalha. Enterro meu rosto no seu peito e ele me puxa firme. Meus dedos descem suas costas nuas, sinto os músculos tensos sob meu toque. Pouso minha mão na cintura de suas calças. Engancho meu dedo em um passador do cinto. Experimento o gosto das palavras na minha língua.
— Eu pretendia isso, você sabe.
— Pretendia o quê...? — Embora ele saiba exatamente o que pretendo.
Fico tão tímida assim de repente. Tão cega, tão desnecessariamente atrevida. Não sei nada sobre o assunto em que estou me aventurando. Tudo o que sei é que eu não quero em mim as mãos de mais ninguém senão as dele. Eternamente.
Adam inclina-se para trás e eu posso apenas distinguir o contorno de seu rosto, seus olhos sempre brilhando na escuridão. Olho para seus lábios quando digo:
— Nunca pedi para você parar. — Meus dedos pousam sobre o botão que prende suas calças. — Nenhuma vez.
Ele está me encarando, seu peito subindo e descendo algumas vezes por minuto. Ele parece quase paralisado de tão incrédulo.
Inclino-me ao seu ouvido.
— Toque em mim.
E ele está quase desvanecido.
Meu rosto está em suas mãos e meus lábios estão em seus lábios e ele está me beijando e eu sou oxigênio e ele está morrendo para respirar. Seu corpo está quase em cima do meu, uma mão em meu cabelo, a outra descendo minha silhueta, deslizando para trás de meu joelho para me puxar para mais perto, mais alto, mais firme. Ele derrama beijos por minha garganta como êxtase, energia elétrica queimando em mim, incendiando-me. Estou à beira da combustão causada pela emoção absoluta de cada momento. Quero mergulhar em seu ser, experimentá-lo com todos os cinco sentidos, afogar-me nas ondas de mistério que envolvem minha existência.
Quero provar a paisagem de seu corpo.
Ele toma minhas mãos e pressiona-as contra seu peito, guiando meus dedos conforme estes trilham a extensão de seu corpo antes que seus lábios encontrem os meus de novo e de novo e mais uma vez, embriagando-me em um delírio de que nunca desejei escapar. Mas não é o bastante. Ainda não é o bastante. Quero me fundir nele, traçar a forma de sua figura unicamente com meus lábios. Meu coração está correndo pelo meu sangue, destruindo meu autocontrole, fazendo tudo girar em um ciclone de intensidade. Ele faz uma pausa para tomar ar e eu o puxo de volta, ávida de desejo, desesperada, morrendo por seu toque. Suas mãos deslizam sob minha blusa, contornando minhas curvas, tocando-me como ele nunca antes ousou, e minha blusa está quase sobre minha cabeça quando uma porta se abre rangendo. Nós dois congelamos.
— Adam...?
Ele mal consegue respirar. Ele tenta se abaixar deitando-se em um travesseiro ao meu lado, mas ainda posso sentir seu calor, sua forma, seu coração batendo aos meus ouvidos. Estou reprimindo um milhão de gritos. Adam inclina sua cabeça para cima, apenas um pouco. Tenta parecer normal.
— James?
— Posso vir dormir aqui com vocês?
Adam senta-se ereto. Ele está respirando com dificuldade, mas fica alerta de repente.
— Claro que pode. — Uma pausa. Seu tom de voz diminuiu, amolece. — Teve sonhos ruins?
James não responde.
Adam está de pé.
Escuto o soluço abafado de lágrimas de dez anos de idade, mas mal consigo distinguir o contorno do corpo de Adam abraçando James.
— Achei que você disse que estava melhorando — escuto-o sussurrar, mas suas palavras são afáveis, não acusadoras.
James diz algo que não consigo ouvir.
Adam levanta James, e eu percebo quão pequeno James é em comparação a ele. Eles desaparecem dentro do quarto apenas para retornarem com o colchão e as roupas de cama. Somente quando James está aconchegado em um lugar a alguns centímetros de Adam é que ele finalmente se entrega à exaustão. Sua respiração pesada é o único ruído na sala.
Adam vira-se para mim. Tenho sido uma fatia do silêncio, impressionada, chocada, ferida profundamente por esta lembrança. Não faço ideia do que James testemunhou em tão tenra idade. Não faço ideia do que Adam teve de suportar ao deixá-lo para trás. Não faço mais ideia de como as pessoas vivem. De como elas sobrevivem.
Não sei o que aconteceu com meus pais.
Adam toca meu rosto. Encaixa-me em seus braços. Diz:
— Lamento — e eu o beijo, como a responder que as desculpas não são necessárias.
— Quando for a hora certa — digo a ele.
Ele engole. Recosta-se em meu pescoço. Aspira. Suas mãos estão sob minha blusa. Sobem minhas costas.
Contenho um suspiro.
— Breve.
34
Adam e eu tentamos manter um metro e meio de distância um do outro na noite passada, mas de algum modo acordei em seus braços. Ele está respirando baixinho, de maneira constante e firme, um zunido quente no ar da manhã. Pisco, olhando para a luz do dia apenas para ser surpreendida por um par de grandes olhos azuis em um rosto de dez anos.
— Como é que você pode tocar nele? — James está em pé por cima de nós, com os braços cruzados, sendo novamente o menino teimoso de que me lembro. Não há sinal de medo, não há indício de lágrimas ameaçando escorrer em seu rosto. É como se a noite passada não tivesse acontecido. — E então? — Sua impaciência me assusta.
Afasto-me de Adam dando um pulo tão rápido que ele, metade superior do corpo descoberta, acorda com o sobressalto. Um pouco.
Ele procura por mim.
— Juliette...?
— Você está tocando uma garota!
Adam senta-se ereto tão rapidamente que ele se complica nos lençóis e cai para trás sobre os cotovelos.
— Jesus, James...
— Você estava dormindo do lado de uma garota!
Adam abre e fecha a boca várias vezes. Ele olha para mim. Olha para seu irmão. Fecha os olhos e por fim suspira. Passa uma mão por seus cabelos da manhã.
— Não sei o que você quer que eu diga.
— Pensei que você tinha dito que ela não podia tocar em ninguém. — James está me encarando agora, desconfiado.
— Ela não pode.
— Exceto em você?
— Isso. Exceto em mim.
E Warner.
— Ela não pode tocar em ninguém exceto em você.
E Warner.
— Isso.
— Isso é bem conveniente. — James encolhe os olhos.
Adam ri em voz alta.
— Onde você aprendeu a falar desse jeito?
James franze as sobrancelhas.
— Benny fala muito isso. Ela diz que minhas desculpas são “bem convenientes”. — Ele faz as aspas com dois dedos. — Ela diz que isso é quando você não acredita na pessoa. E eu não acredito em você.
Adam fica de pé. A luz da manhã infiltra-se através das pequenas janelas pelo ângulo perfeito, no momento perfeito. Ele está banhado em ouro, seus músculos tensos, as calças ainda um pouco baixas nos quadris e eu tenho de me forçar para não desviar o pensamento. Estou chocada com a minha própria falta de autocontrole, e não estou certa de que sei como conter estes sentimentos. Adam me deixa ávida por coisas que eu nunca soube que pudesse ter.
Observo-o enquanto ele coloca um braço nos ombros do irmão, antes de se agachar para encontrar seus olhos.
— Posso falar com você sobre uma coisa? Em particular?
— Só eu e você? — James olha para mim de canto de olho.
— Sim. Só eu e você.
— OK.
Observo os dois desaparecendo dentro do quarto de James e fico me perguntando o que Adam vai dizer a ele. Leva um momento para eu entender que James deve se sentir ameaçado por minha repentina aparição. Ele finalmente vê seu irmão depois de quase seis meses só para tê-lo em casa na companhia de uma garota esquisita com poderes mágicos malucos. Quase rio com a ideia. Se fosse só a mágica que tivesse me tornado assim...
Não quero que James pense que estou tomando Adam dele.
Enfio-me novamente debaixo da coberta e aguardo. A manhã é fria e fresca e meus pensamentos começam a desviar-se para Warner. Preciso me lembrar de que não estamos a salvo. Não ainda, talvez nunca. Preciso me lembrar de nunca ficar à vontade demais. Sento-me ereta. Trago meus joelhos até o peito e cruzo meus braços nos tornozelos.
Pergunto-me se Adam tem um plano.
A porta do quarto de James abre-se rangendo. Os dois irmãos saem, o mais novo antes do mais velho. James parece um pouco corado e ele mal consegue me olhar nos olhos. Ele parece constrangido e fico pensando se Adam o puniu.
Meu coração falha por um momento.
Adam dá um tapinha no ombro de James. Aperta-o.
— Você está bem?
— Eu sei o que é uma namorada...
— Nunca disse que não soubesse...
— Então você é namorada dele? — James cruza os braços, olha para mim.
Há 400 bolas de algodão presas na minha traqueia. Olho para Adam porque não sei mais o que fazer.
— Ei, talvez você devesse se aprontar pra escola, hã? — Adam abre a geladeira e entrega a James um novo pacote de alumínio. Presumo que seja seu café da manhã.
— Não tenho que ir — protesta James. — Não é uma escola de verdade, ninguém tem que...
— Eu quero que você vá — corta Adam. Ele se volta para o irmão com um sorrisinho. — Relaxa. Vou estar aqui quando você voltar.
James hesita.
— Promete?
— Sim. — Outro sorriso. Faz sinal para ele se aproximar. — Venha cá.
James corre a seu encontro e agarra-se a Adam como se tivesse medo de que ele fosse desaparecer. Adam coloca o pacote de alumínio dentro do Automático e aperta um botão. Ele bagunça os cabelos de James. — Você precisa de um corte, garoto.
James franze o nariz.
— Gosto assim.
— Está um pouco comprido, não acha?
James baixa o tom de voz.
— Acho que é o cabelo dela que está muito comprido.
James e Adam olham de volta para mim e eu me transformo em uma massinha de modelar rosa. Toco meu cabelo por reflexo, repentinamente autoconsciente. Olho para baixo. Nunca tive motivo para cortar o cabelo. Nunca sequer tive os instrumentos. Ninguém me oferece objetos afiados.
Arrisco uma olhada e vejo que Adam ainda está me olhando. James está olhando para o Automático.
— Gosto do cabelo dela — diz Adam, e não estou certa de para quem ele está falando.
Observo os dois enquanto Adam ajuda seu irmão a se aprontar para a escola. James é tão cheio de vida, tão cheio de energia, tão empolgado por ter seu irmão por perto. Isso me faz perguntar o que deve ser para um garoto de dez anos viver por conta própria. O que deve ser para todos os garotos que vivem nesta rua.
Estou louca de vontade de me levantar e trocar de roupa, mas não estou certa do que devo fazer. Não quero ocupar o banheiro no caso de James precisar dele, ou se Adam precisar dele. Não quero ocupar mais nenhum espaço além do que já ocupo. Parece tão particular, tão pessoal, este relacionamento entre Adam e James. É o tipo de laço que nunca tive, que nunca terei. Mas estar rodeada de tanto amor conseguiu derreter minhas partes congeladas e transformá-las em algo humano. Sinto-me humana. Como se talvez pudesse fazer parte deste mundo. Como se talvez eu não tivesse de ser um monstro. Talvez eu não seja um monstro.
Talvez as coisas possam mudar.
35
James está na escola, Adam está no chuveiro, e eu estou olhando para uma tigela de granola que Adam deixou para que eu comesse. Parece tão errado estar comendo esta comida, quando James tem de comer a substância não identificável do recipiente de alumínio. Mas Adam diz que é reservada a James certa porção para cada refeição, e ele é obrigado a comê-la por lei. Se ele for pego desperdiçando ou jogando fora a refeição, ele pode ser punido. Espera-se que os órfãos comam a comida de alumínio que vai ao Automático. James alega que ela “não é assim tão ruim”.
Tremo levemente no ar frio da manhã e aliso com uma mão meu cabelo, ainda úmido do banho. A água aqui não é quente. Nem mesmo morna. É muito gelada. Água quente é um luxo.
Alguém está batendo à porta.
Estou de pé.
Virando-me.
Sondando.
Assustada.
Eles nos encontraram — é a única coisa em que consigo pensar. Meu estômago é um crepe fino, meu coração, um pica-pau furioso, meu sangue, um rio de ansiedade.
Adam está no chuveiro.
James está na escola.
Estou totalmente indefesa.
Vasculho dentro da mochila de acampamento de Adam até encontrar o que estou procurando. Duas armas, uma para cada mão. Duas mãos, para o caso de as armas falharem. Estou finalmente usando o tipo de roupa dentro da qual seria confortável lutar. Respiro fundo e imploro para que minhas mãos não tremam.
A batida fica mais forte.
Aponto as armas para a porta.
— Juliette...?
Viro-me para trás para ver Adam encarando a mim, as armas, a porta. Seu cabelo está molhado. Seus olhos estão arregalados. Ele acena com a cabeça para a arma extra em minha mão e sem dizer uma palavra jogo-a para ele.
— Se fosse Warner ele não estaria batendo — diz ele, embora ele não abaixe sua arma.
Sei que ele está certo. Warner teria arrombado a porta, usado explosivos, matado uma centena de pessoas para chegar a mim. Ele certamente não esperaria que eu abrisse a porta. Algo dentro de mim se acalma, mas não me permito relaxar.
— Quem você pensa...?
— Deve ser Benny... ela costuma dar uma olhada em James...
— Mas ela não saberia que agora ele está na escola?
— Ninguém mais sabe onde eu moro...
A batida está ficando mais fraca. Mais lenta. Há um som baixo e gutural de agonia.
Meus olhos se cruzam com os de Adam.
Mais um punho batendo na porta. Uma queda. Outro gemido. A pancada de um corpo contra a porta.
Recuo.
Adam passa a mão pelos cabelos.
— Adam! — grita alguém. Tosse.
— Por favor, cara, se você estiver aí dentro...
Congelo. A voz soa vagamente familiar.
A coluna de Adam se endireita em um instante. Seus lábios estão apartados, seus olhos, atônitos. Ele digita o código e vira o trinco. Aponta a arma para a porta enquanto a abre lentamente.
— Kenji?
Um chiado curto. Um gemido abafado.
— Porra, cara, por que demorou tanto?
— Que diabo você está fazendo aqui? — Clique. Mal consigo ver através da pequena brecha da porta, mas está claro que Adam não está feliz por ter companhia. — Quem mandou você aqui? Com quem você está?
Kenji pragueja mais algumas vezes em sussurro.
— Olha pra mim — exige ele, embora soe mais como um apelo. — Acha que vim aqui para te matar?
Adam respira. Hesita.
— Não tenho problema nenhum em enfiar uma bala nas suas costas.
— Não se preocupe, irmão. Já tenho uma bala nas costas. Ou na perna. Ou na merda que seja. Eu nem sei mesmo.
Adam abre a porta.
— Levanta.
— Está tudo bem, não ligo se você arrastar meu traseiro para dentro.
Adam movimenta a mandíbula.
— Não quero seu sangue no meu tapete. Não é algo que meu irmão precise ver.
Kenji levanta-se com dificuldade e entra na sala a passos trôpegos. Já escutara sua voz uma vez, mas nunca vira seu rosto. Embora esta talvez não seja a melhor hora para primeiras impressões. Seus olhos estão inchados, roxos; há um enorme corte na lateral de sua testa. Seus lábios estão rachados, sangrando levemente, seu corpo, curvado e destruído. Ele estremece, respira de modo acelerado enquanto se move. Suas roupas estão rasgadas, a parte superior de seu corpo coberta por nada mais que uma camisetinha sem manga, seus braços bem desenvolvidos agora estão cheios de cortes e escoriações. Estou surpresa por ele não ter congelado até a morte. Ele parece não reparar em mim num primeiro momento, até que repara.
Ele para. Pisca. Abre um sorriso ridículo esmaecido apenas por uma ligeira careta de dor.
— Puta merda — diz ele, ainda absorvido em mim. — Puta merda. — Ele tenta rir. — Cara, você é louco...
— O banheiro é aqui. — Adam está imóvel como uma pedra.
Kenji vai na frente, mas continua olhando para trás. Aponto a arma para sua cara. Ele ri mais forte, encolhe-se, ofega um pouco.
— Cara, você fugiu com a garota doida! Você fugiu com a psicopata! — Ele está falando com Adam de longe. — Pensei que eles que tinham feito essa merda. Que diabos você estava pensando? O que você vai fazer com a psicopata? Não é de se estranhar que Warner queira você morto... Ô! Cara, que diabo...
— Ela não é doida. E ela não é surda, imbecil.
A porta se fecha atrás deles com uma pancada e eu só consigo distinguir a discussão abafada entre eles. Tenho a impressão de que Adam não quer que eu ouça o que ele tem a dizer a Kenji. Ou isso, ou uma gritaria.
Não faço ideia do que Adam esteja fazendo, mas presumo que tenha algo que ver com desalojar uma bala do corpo de Kenji e cuidar do restante de seus ferimentos da melhor maneira possível. Adam tem um suprimento bastante amplo de primeiros-socorros e mãos fortes e firmes. Pergunto-me se ele adquiriu essas habilidades no exército. Talvez cuidando de si mesmo. Ou talvez de seu irmão. Isso faria sentido.
Seguro-saúde foi um sonho que perdemos já faz muito tempo.
Estou segurando esta arma na mão por quase uma hora. Estou escutando Kenji gritar por quase uma hora e só sei disso porque gosto de contar os segundos enquanto eles passam. Não faço ideia de que horas são. Acho que tem um relógio no quarto de James, mas não quero entrar sem permissão neste quarto.
Olho para a arma na minha mão, para o metal liso e pesado, e fico surpresa por descobrir que gosto da sensação de tê-la em minhas mãos. Como uma extensão do meu corpo. Ela não me mete mais medo.
Mete mais medo em mim o fato de que eu possa usá-la.
A porta do banheiro se abre e Adam sai. Ele tem uma pequena toalha nas mãos. Fico de pé. Ele dá um sorrisinho para mim. Ele alcança a geladeira minúscula e vai até a parte do congelador, ainda mais minúscula. Pega alguns cubos de gelo e coloca-os na toalha. Desaparece no banheiro novamente.
Sento-me de volta no sofá.
Agora está chovendo. O céu está chorando por nós.
Adam sai do banheiro, desta vez com as mãos vazias, ainda sozinho.
Fico de pé novamente.
Ele coça a testa, a parte de trás do pescoço. Encontra-me no sofá.
— Sinto muito — diz ele.
Meus olhos estão arregalados.
— Pelo quê?
— Por tudo. — Ele suspira. — Kenji era uma espécie de amigo meu lá na base. Warner o torturou depois que nós partimos. Para conseguir informação.
Inspiro.
— Ele disse que não sabia de nada... não tinha nada a dizer, de fato... mas o arrebentaram. Não faço ideia se suas costelas estão quebradas ou só contundidas, mas consegui tirar a bala de sua perna.
Pego sua mão. Aperto-a.
— Foi baleado ao fugir — diz Adam depois de um momento.
Algo me vem à consciência. Entro em pânico.
— O soro rastreador...
Ele concorda com a cabeça, seus olhos pesados, confusos.
— Acho que ele pode estar defeituoso, mas não tenho como ter certeza. Só sei que, se ele estivesse funcionando como deveria, Warner estaria aqui na mesma hora. Mas não podemos arriscar. Temos de nos mandar, e temos de nos livrar de Kenji antes de partirmos.
Sacudo a cabeça, presa entre correntes contraditórias de incredulidade.
— Como ele encontrou você?
O rosto de Adam endurece.
— Ele começou a gritar antes que eu pudesse perguntar.
— E James? — sussurro, quase temendo perguntar.
Adam baixa a cabeça entre as mãos.
— Assim que ele chegar em casa, temos de partir. Temos de usar este tempo para preparar tudo. — Ele encontra meus olhos. — Não posso deixar James para trás. Aqui não é mais seguro para ele.
Toco seu rosto e ele o recosta em minha mão, mantendo minha palma contra seu rosto. Fecha os olhos.
— Filho de uma égua...
Adam e eu nos separamos. Estou corando até o fio de cabelo. Adam parece irritado. Kenji está apoiado contra a parede do corredor do banheiro, segurando o saco de gelo improvisado no rosto. Encarando-nos.
— Você pode tocar nela? Digo... porra, acabei de ver você tocar nela, mas nem mesmo...
— Você tem que ir — Adam diz para ele. — Você já deixou um rastro químico vindo direto para minha casa. Precisamos ir embora, e você não pode ficar com a gente.
— Ah, ei... pare... espera aí. — Kenji cambaleia até a sala de estar, estremecendo à medida que coloca força sobre as pernas. — Não estou tentando te segurar, cara. Conheço um lugar. Um lugar seguro. Tipo, um lugar legal e superseguro. Posso levar você. Posso te mostrar como chegar lá. Conheço um cara.
— Papo furado. — Adam ainda está com raiva. — Como afinal você me achou? Como conseguiu aparecer na minha porta, Kenji? Não confio em você...
— Eu não sei, cara. Juro que não me lembro do que aconteceu. Não sabia mais para onde estava correndo a partir de certo ponto. Estava só pulando cercas. Encontrei um campo imenso com um galpão velho. Dormi lá por um tempo. Acho que perdi os sentidos em certo ponto, ou por causa da dor ou do frio... está um frio dos infernos lá fora... e o que eu sei também é que um cara estava me carregando. Ele me deixou na sua porta. Disse para eu calar a boca sobre Adam, porque Adam mora exatamente aqui. — Ele sorri. Tenta piscar. — Acho que eu estava sonhando com você enquanto dormia.
— Espere... o quê? — Adam inclina-se para a frente. — O que quer dizer com um cara estava carregando você? Que cara? Qual o nome dele? Como ele sabia meu nome?
— Eu não sei. Ele não me disse, e não tive coragem de perguntar. Mas o cara era enorme. Digo, ele tinha de ser, se ia arrastar meu traseiro por aí.
— Você não pode mesmo esperar que eu acredite em você.
— Você não tem escolha. — Kenji encolhe os ombros.
— É claro que tenho escolha. — Adam está de pé. — Não tenho motivo para confiar em você. Não tenho motivo para acreditar em uma só palavra que está saindo de sua boca.
— Então por que estou aqui com uma bala na minha perna? Por que Warner ainda não me encontrou? Por que estou desarmado...
— Isso poderia ser parte do seu plano!
— E de qualquer modo você me ajudou! — Kenji ousa elevar o tom de voz. — Por que simplesmente não me deixou morrer? Por que não atirou na minha cabeça? Por que você me ajudou?
Adam hesita.
— Eu não sei.
— Você sabe. Você sabe que não estou aqui para te atrapalhar. Levei uma droga de surra por sua causa...
— Você não guardava nenhuma informação sobre mim...
— Bem, porra, cara, que diabos você quer que eu diga? Eles iam me matar. Tive de fugir. Não foi culpa minha que um cara me deixou na sua porta...
— Isso não é só por causa de mim, você não entende? Dei um duro danado para encontrar um lugar seguro para meu irmão e numa manhã você destrói anos de planejamento. O que devo fazer agora? Tenho que fugir até poder achar um modo de mantê-lo a salvo. Ele é jovem demais para ter que lidar com isso...
— Todos nós somos jovens demais para ter que lidar com esta merda. —Kenji está respirando com dificuldade. — Não se engane, irmão. Ninguém deveria ter que ver o que nós vimos. Ninguém deveria ter que acordar de manhã e encontrar cadáveres na sala de estar, mas acontece. Nós lidamos com isso, e encontramos um jeito de sobreviver. Você não é o único com problemas.
Adam afunda no sofá. Trinta e seis quilos de preocupação pesando-lhe sobre os ombros. Ele se inclina para a frente com a cabeça entre as mãos.
Kenji olha para mim. Olho de volta.
Ele sorri e avança mancando.
— Sabe, você é muito sexy para uma psicopata.
Clique.
Kenji recua com as mãos para o alto. Adam pressiona a arma na sua testa.
— Mostre respeito, ou enfio esta bala no seu crânio.
— Estava só brincando...
— Como se você estivesse.
— Droga, Adam, se acalma...
— Onde fica o “lugar superseguro” para onde você pode nos levar? — Estou de pé, com a arma ainda em minhas mãos. Movo-me para uma posição ao lado de Adam. — Ou você está inventando isso?
Kenji se alegra.
— Não, isso é real. Muito real. Na verdade, eu posso ou não posso ter mencionado algo sobre você. E o cara que administra o lugar pode ou não pode estar absurdamente interessado em conhecê-la.
— Você acha que eu sou algum tipo de aberração que você pode exibir para seus amigos? — Travada. Carregada.
Kenji limpa a garganta.
— Não uma aberração. Apenas... algo interessante.
Aponto minha arma para seu nariz.
— Eu sou tão interessante que posso matar você apenas usando as mãos.
Um clarão pouco perceptível de medo tremeluz em seus olhos. Ele engole alguns tonéis de humilhação. Tenta sorrir.
— Você tem certeza de que não está louca?
— Não. — Inclino a cabeça. — Não tenho certeza.
Kenji sorri. Olha para mim de cima a baixo.
— Droga. Mas você faz a loucura parecer algo tão bom.
— Estou a uns doze centímetros de quebrar sua cara — Adam avisa-o, sua voz como o aço, seu corpo duro de raiva, seus olhos encolhidos, inflexíveis. Não há indício nenhum de humor em sua expressão. — Não preciso de outro motivo.
— O quê? — Kenji ri, sem recuar. — Há muito tempo não fico próximo assim de uma garota, irmão. E doida ou não...
— Não estou interessada.
Kenji vira seu rosto para mim.
— Bem, não sei se devo culpar você por isso. Pareço o capeta neste momento. Mas vou me limpar, OK — Ele tenta um sorriso. — Me dê alguns dias. Você pode mudar de ideia...
Adam mete os cotovelos em seu rosto e não pede desculpas.
36
Kenji está xingando, sangrando, esgotando todos os seus palavrões e cambaleando em direção ao banheiro, segurando o nariz.
Adam me puxa para dentro do quarto de James.
— Diga-me alguma coisa — diz ele. Ele encara o teto, respira com dificuldade. — Diga-me qualquer coisa...
Tento concentrar-me em seus olhos, agarro suas mãos, macias macias macias. Espero até que ele esteja olhando para mim.
— Nada vai acontecer a James. Vamos mantê-lo a salvo. Prometo.
Seus olhos estão cheio de dor como nunca vira antes. Ele aparta os lábios. Aperta-os. Muda de ideia um milhão de vezes até suas palavras caírem no ar entre nós.
— Ele nem mesmo sabe sobre nosso pai. — É a primeira vez que ele admite o problema. É a primeira vez que ele admite que eu saiba alguma coisa sobre isso. — Nunca quis que ele soubesse. Inventava histórias para ele. Queria que ele tivesse uma chance de ser normal. — Seus lábios estão soletrando segredos e meus ouvidos estão derramando tinta, manchando minha pele com suas histórias. — Não quero que ninguém mais o toque. Não quero que ele fique perturbado. Não posso... Deus, não posso deixar isso acontecer — ele diz para mim. Voz abafada. Sereno.
Revirei o mundo na busca pelas palavras certas e minha boca está cheia de nada.
— Nunca é o bastante — sussurra ele. — Nunca consigo fazer o bastante. Ele ainda acorda gritando. Ele ainda chora para dormir. Ele vê coisas que eu não consigo controlar. — Ele pisca um milhão de vezes. — Tantas pessoas, Juliette.
Prendo a respiração.
Mortas.
Toco a palavra em seus lábios e ele beija meus dedos. Seus olhos são dois lagos de perfeição, abertos, honestos, humildes.
— Não sei o que fazer — diz ele, e é como uma confissão que lhe custa muito mais do que posso entender. O controle está escorregando por entre seus dedos e ele está desesperado por retê-lo. — Diga-me o que fazer.
Posso ouvir o batimento de nossos corações no silêncio entre nós. Estudo o formato de seus lábios, as linhas fortes de seu rosto, os cílios que qualquer garota morreria para ter, o azul profundo e escuro de seus olhos no qual aprendi a nadar. Ofereço-lhe a única possibilidade que tenho.
— Vale a pena considerar o plano de Kenji.
— Você confia nele? — Adam recosta-se, subitamente surpreso.
— Não acho que ele esteja mentindo sobre conhecer um lugar para onde possamos ir.
— Não sei se é uma boa ideia.
— Por que não...?
Algo que pode não ter graça alguma.
— Poderia matá-lo antes mesmo de chegarmos lá.
Meus lábios se contorcem em um sorriso triste.
— Não tem nenhum outro lugar em que a gente possa se esconder, tem?
O Sol está girando ao redor da Lua quando ele responde. Ele sacode a cabeça. Uma vez. Rápido. Firme.
Aperto sua mão.
— Então temos de tentar.
— Que diabos vocês estão fazendo aí dentro? — Kenji grita através da porta. Esmurra-a algumas vezes. — Digo, merda, cara, não acho que haja sempre uma hora ruim para ficar peladinho, mas agora provavelmente não é a melhor hora para uma rapidinha. Então, a menos que você queira ser morto, sugiro que traga seu traseiro aqui pra fora. Temos de nos preparar para dar no pé.
— Poderia matá-lo agora. — Adam muda de ideia.
Tomo seu rosto em minhas mãos, fico na ponta dos pés e dou-lhe um beijo. Seus lábios são dois travesseiros, tão suaves, tão doces.
— Eu te amo.
Ele está olhando dentro de meus olhos e olhando para minha boca e sua voz é uma rouquidão sussurrante:
— Mesmo?
— Sem sombra de dúvidas.
Antes de James voltar da escola, já estamos de malas feitas e prontos para partir. Adam e eu pegamos os itens mais importantes de necessidade básica: comida, roupas, dinheiro que Adam economizou. Ele fica olhando ao redor do pequeno espaço como se não pudesse acreditar que o está perdendo com tanta facilidade. Só consigo imaginar quanto trabalho ele colocou nele, o quanto deu duro para tentar fazer dele um lar para seu irmão mais novo. Meu coração está em pedaços por ele.
Seu amigo é de uma espécie completamente diferente.
Kenji está cuidando de novas contusões, mas parece em um estado de espírito razoável, animado por motivos que não consigo compreender. Ele está estranhamente alegre e otimista. Parece impossível desencorajá-lo e eu não consigo deixar de admirar sua determinação. Mas ele não para de me encarar.
— Então como você pode tocar Adam? — diz ele depois de um momento.
— Eu não sei.
Ele ri em deboche.
— Lorota.
Encolho os ombros. Não sinto a necessidade de convencê-lo de que não faço a menor ideia de como tive tanta sorte.
— Como é que você soube que poderia tocá-lo? Algum tipo de experimento doentio?
Espero não estar ruborizando.
— Onde é este lugar para onde você está nos levando?
— Por que você está mudando de assunto? — Ele está sorrindo. Tenho certeza de que ele está sorrindo. Mas me recuso a olhar para ele.
— Talvez você possa me tocar também. Por que você não tenta?
— Você não quer que eu toque em você.
— Talvez eu queira. — Ele definitivamente está sorrindo.
— Talvez você devesse deixá-la em paz antes de eu enfiar aquela bala de volta na sua perna — propõe Adam.
— Sinto muito... um homem solitário não tem permissão para tentar a sorte, Kent? Talvez eu esteja interessado de verdade. Talvez você devesse se retirar e deixá-la falar por si mesma.
Adam passa uma mão pelos cabelos. Sempre a mesma mão. Sempre pelos cabelos. Ele está aturdido. Frustrado. Talvez constrangido.
— Ainda não estou interessada — faço-o lembrar, com o tom de voz um pouco agressivo.
— Sim, mas não vamos esquecer que isso — ele faz sinal para o seu rosto espancado — não é permanente.
— Bem, estou permanentemente desinteressada. — Quero muito dizer a ele que não estou disponível. Quero dizer a ele que estou em um relacionamento sério. Quero dizer a ele que Adam me fez promessas.
Mas não posso.
Não faço ideia do que significa estar em um relacionamento. Não sei se dizer “eu te amo” é código para “exclusividade recíproca”. E eu não sei se Adam falava sério quando disse a James que eu era sua namorada. Talvez fosse uma desculpa, um disfarce, uma resposta fácil para uma questão complicada. Gostaria que ele dissesse algo para Kenji... gostaria que ele contasse para ele que nós estamos juntos oficialmente, exclusivamente.
Mas ele não diz nada.
E eu não sei por quê.
— Não acho que você deva decidir até o inchaço diminuir — continua Kenji sem rodeios. — Acho justo. Tenho um rosto espetacular.
Adam se engasga em uma tosse que eu pensei ser uma risada.
— Eu sei, poderia jurar que costumávamos ser boas-pintas — diz Kenji, nivelando seu olhar ao de Adam.
— Não consigo lembrar por quê.
Kenji encrespa-se.
— Tem alguma coisa que você queira me dizer?
— Não confio em você.
— Então por que ainda estou aqui?
— Porque confio nela.
Kenji se vira para olhar para mim. Ele esboça um sorriso imbecil.
— Hum, você confia em mim?
— Desde que você esteja na minha mira. — Aperto a arma na mão.
Seu sorriso está torto.
— Não sei por que, mas acho que gosto quando você me ameaça.
— É porque você é um idiota.
— Não. — Ele sacode a cabeça. — Você tem uma voz sexy. Faz tudo parecer indecente.
Adam levanta-se tão depressa que quase derruba a mesa do café.
Kenji explode em risadas, chiando em decorrência da dor de seus ferimentos.
— Acalme-se, Kent, porra. Só estou brincando com você. Gosto de ver a psicopata ficar toda nervosinha. — Ele olha para mim, baixa o tom de voz. — Digo isso como um elogio... porque, você sabe — ele abana uma mão na minha direção —, psicose é tipo uma ocupação para você.
— Qual é o seu problema? —Adam se dirige com raiva para ele.
— Qual é o seu problema? — Kenji cruza os braços, irritado. — Tá todo mundo tão tenso aqui.
Adam aperta a arma na mão. Caminha até a porta. Retorna. Ele está marchando.
— E não se preocupe com seu irmão — acrescenta Kenji. — Estou certo de que ele estará aqui em breve.
Adam não ri. Ele não para de marchar. Seu maxilar estremece.
— Não estou preocupado com meu irmão. Estou tentando me decidir se atiro em você agora ou mais tarde.
— Mais tarde — diz Kenji, desmoronando no sofá. — Você ainda precisa de mim.
Adam tenta falar, mas perde o momento.
Um clique, um bipe e a porta destrava.
James está em casa.
37
— Realmente estou feliz por você estar levando isso tão bem... eu estou... mas James, isso não é algo com que se fique entusiasmado. Estamos fugindo para salvar nossas vidas.
— Mas estamos fazendo isso juntos — diz ele pela quinta vez, um sorriso enorme tomando-lhe o rosto. Ele foi logo indo com a cara de Kenji, e agora os dois estão conspirando para transformar nossa situação periclitante em alguma espécie de missão elaborada. — E eu posso ajudar!
— Não, isso não é...
— Claro que pode...
Adam e Kenji falam ao mesmo tempo. Kenji retoma primeiro.
— Por que ele não pode ajudar? Dez anos é idade suficiente para ajudar.
— Essa decisão não é sua — diz Adam, cuidando para controlar a voz. Eu sei que ele está mantendo a calma por causa do irmão. — E isso não é da sua conta.
— Finalmente vou poder ficar com você — diz James, sem perder o ânimo. — E eu quero ajudar.
James aceita as notícias com calma. Ele sequer demonstrou medo quando Adam explicou o verdadeiro motivo por ele estar em casa, e por que estávamos juntos. Pensei que ver o rosto espancado de Kenji pudesse assustá-lo, desencorajá-lo, incutir um sentimento de medo em seu coração, mas James ficou estranhamente impassível. Ocorreu-me que ele deve ter visto coisa muito pior.
Adam respira fundo algumas vezes antes de se voltar para Kenji.
— Qual a distância?
— A pé? — Kenji parece incerto pela primeira vez. — Algumas horas pelo menos. Se não fizermos nenhuma estupidez, devemos estar lá ao cair da noite.
— E se pegarmos um carro?
Kenji pisca. Sua surpresa se dissolve em um gigantesco sorriso.
— Ora, porra, Kent, por que não disse isso antes?
— Cuidado com o que fala perto de meu irmão.
James revira os olhos.
— Escuto coisa pior que isso todo dia. Até Benny usa palavrão.
— Benny? — As sobrancelhas de Adam encontram a testa.
— Sim.
— O que ela... — Ele para. Muda de ideia. — Isso não significa que você possa continuar escutando isso.
— Tenho quase onze!
— Ei, homenzinho — interrompe Kenji. — Está tudo bem. A culpa é minha. Devia ser mais cuidadoso. Além disso, há damas presentes. — Kenji pisca para mim.
Desvio o olhar. Olho em volta.
Para mim é difícil deixar esta humilde casa, então só consigo imaginar o que Adam deve estar sentindo neste momento. Acho que James está entusiasmado demais com o caminho perigoso à nossa frente para se dar conta do que está acontecendo. Para entender verdadeiramente que ele nunca mais voltará aqui.
Somos todos fugitivos correndo por nossa vida.
— Então... você roubou um carro? — pergunta Kenji.
— Um tanque.
Kenji solta uma risada.
— Excelente.
— Mas é um pouco ostensivo para a luz do dia.
— O que “ostensivo” quer dizer? — pergunta James.
— É um pouco... chamativo. — Adam se encolhe.
— Merda. — Kenji levanta-se cambaleante.
— Disse para ter cuidado com o que fala...
— Você escuta isso?
— Escuta o quê...?
Os olhos de Kenji estão se lançando em todas as direções.
— Existe outra maneira de sair daqui?
Adam está de pé.
— James...
James corre para o lado de seu irmão. Adam verifica sua arma. Estou pendurando mochilas nas costas, Adam está fazendo o mesmo, sua atenção desviada pela porta da frente.
— Corre... — Estamos per...
— Não temos tempo...
— O que você...
— Kent, corre...
E estamos correndo, seguindo Adam para dentro do quarto de James. Adam rasga uma cortina de uma parede para revelar uma porta escondida, no momento em que três bipes são emitidos da sala de estar.
Adam atira no cadeado da porta de saída.
Alguma coisa explode nem a cinco metros atrás de nós. O som arrebenta em meus ouvidos, vibra através de meu corpo. Quase desabo com o impacto. Tiros estão por toda parte. Passos entram em casa, mas já estamos correndo pela saída. Adam puxa James para seus braços e nós estamos fugindo através da súbita explosão de luz que ofusca nosso caminho pelas ruas. A chuva parou. As vias estão escorregadias e lamacentas. Há crianças por toda parte, cores brilhantes de corpos pequeninos que subitamente gritam à nossa aproximação. Não há mais razão para sermos discretos.
Eles já nos encontraram.
Kenji está ficando para trás, cambaleando até o fim de sua adrenalina. Viramos em um beco estreito e ele tomba contra a parede.
— Desculpem-me — diz ofegante — não consigo... podem me deixar...
— Não podemos deixar você — grita Adam, olhando por toda parte, absorvido em tudo que nos cerca.
— Obrigado, irmão, mas está tudo bem...
— Precisamos de você para nos mostrar aonde ir!
— Ora, merda...
— Você disse que nos ajudaria...
— Pensei que você tinha dito que tinha um tanque...
— Se você não reparou, houve uma mudança inesperada de planos...
— Não consigo continuar, Kent. Mas posso andar...
— Você tem que tentar...
“Há rebeldes à solta. Eles estão armados e prontos para atirar. Toque de recolher em vigor. Todos retornem imediatamente a suas casas. Há rebeldes à solta. Eles estão armados e prontos para ati...”
Os alto-falantes soam pelas ruas, atraindo atenção para nossos corpos reunidos no beco estreito. Algumas pessoas nos veem e gritam. As botas estão ficando mais ruidosas. Os tiros estão ficando mais frenéticos.
Tiro um momento para analisar os edifícios ao redor e percebo que não estamos em uma área assentada: a rua onde James vive é um território não regulamentado; uma série de edifícios comerciais abandonados, amontoados, restos de nossa antiga vida. Não compreendo por que ele não está vivendo em uma área igual à do restante da população. Não tenho tempo para entender por que vejo apenas dois grupos de idade representados. Por que os idosos e os órfãos são os únicos residentes? Por que eles foram despejados em terrenos ilegais com soldados que não deveriam estar aqui? Tenho medo de considerar as respostas às minhas próprias perguntas e, num momento de pânico, temo pela vida de James. Enquanto fugimos, entrevendo seu pequeno corpo entrouxado nos braços de Adam.
Seus olhos estão fechados com tanta força que tenho certeza de que doem.
Adam pragueja em sussurro. Ele arromba a primeira porta que encontramos de um prédio abandonado e grita para que nós o sigamos para dentro.
— Preciso que você fique aqui — diz para Kenji. — E, posso não estar batendo bem, mas preciso deixar James com você. Preciso que você tome conta dele. Eles estão procurando por Juliette, e eles estão procurando por mim. Eles não esperam mesmo encontrar vocês dois.
— O que você vai fazer? — pergunta Kenji.
— Preciso roubar um carro. Então voltarei para buscá-los. — James nem mesmo reclama quando Adam o coloca no chão. Seus pequeninos lábios estão brancos. Seus olhos, arregalados. Suas mãos, trêmulas. — Voltarei para buscá-lo, James — diz Adam novamente. — Eu prometo.
James concorda com a cabeça várias e várias vezes. Adam o beija, uma vez, com firmeza, rapidamente. Larga no chão as mochilas de acampamento. Volta-se para Kenji.
— Se acontecer qualquer coisa a ele, mato você.
Kenji não ri. Ele não olha de cara feia. Ele respira fundo.
— Cuidarei dele.
— Juliette?
Ele pega minha mão, e nós desaparecemos pelas ruas.
38
As ruas estão abarrotadas de pedestres tentando escapar. Adam e eu escondemos nossas armas no cinto de nossas calças, mas nossos olhos frenéticos e movimentos bruscos parecem nos entregar. Todo mundo se afasta de nós, lançando-se em direções opostas, alguns chiando, gritando, chorando, deixando cair as coisas das mãos. Todavia, apesar de todas as pessoas, não vejo um só carro. Deve ser difícil encontrá-los, especialmente nesta área.
Adam me empurra para o chão no momento em que uma bala passa sobre minha cabeça. Ele arromba uma porta e nós corremos por entre as ruínas rumo a outra saída, presos no labirinto do que costumava ser uma loja de roupas. Tiros e passos estão logo atrás. Deve haver pelo menos uma centena de soldados seguindo-nos por estas ruas, divididos em diferentes grupos, dispersos em diferentes áreas da cidade, prontos para capturar e matar.
Mas eu sei que eles não vão me matar.
É com Adam que estou preocupada.
Tento ficar o mais próximo possível de seu corpo, pois estou certa de que Warner deu ordens para me levar viva. No entanto, meus esforços são, na melhor das hipóteses, frágeis. Adam tem altura e músculos suficientes para me superar com folga. Qualquer um com uma excelente pontaria seria capaz de alvejá-lo. Poderiam atirar direto na cabeça dele.
Bem na minha frente.
Ele se vira para disparar dois tiros. Um não alcança a meta. O outro provoca um grito abafado. Ainda estamos correndo.
Adam não diz nada. Ele não me diz para ser corajosa. Não me pergunta se estou bem, se estou assustada. Ele não me encoraja nem assegura que vamos ficar bem. Ele não me diz para deixá-lo para trás e salvar a própria pele. Não diz para cuidar de seu irmão caso ele morra.
Ele não precisa.
Nós dois compreendemos a realidade da situação. Adam poderia levar um tiro neste exato instante. Eu poderia ser capturada a qualquer momento. Este prédio inteiro poderia explodir de repente. Alguém poderia ter descoberto Kenji e James. Todos nós poderíamos morrer hoje. Os fatos são óbvios.
Entretanto, sabemos que, mesmo assim, precisamos arriscar.
Porque ir em frente é o único modo de sobreviver.
A arma está ficando escorregadia na minha mão, mas eu, seja como for, me agarro a ela. Minhas pernas estão gritando de dor, mas eu, seja como for, as impulsiono com mais velocidade. Meus pulmões estão serrando minhas costelas ao meio, mas eu, seja como for, os forço a processar oxigênio. Tenho que continuar me movendo. Não há tempo para deficiências humanas.
É quase impossível encontrar a saída de emergência deste edifício. Nossos pés pisam os ladrilhos, nossas mãos procuram pela luz fria, por algum tipo de saída, algum tipo de acesso às ruas. Este prédio é maior do que esperávamos, gigantesco, com centenas de direções possíveis. Percebo que deve ter sido um depósito, e não apenas uma loja. Adam se abaixa atrás de um balcão abandonado, puxando-me com ele.
— Não seja estúpido, Kent... você só pode fugir por algum tempo — grita alguém. A voz não está a mais que três metros de distância.
Adam engole em seco. Tensiona o rosto. As pessoas que tentam matá-lo são as mesmas com quem ele costumava almoçar. Treinar. Morar. Ele conhece esses caras. Gostaria de saber se esse fator torna tudo pior.
— Apenas nos dê a garota — acrescenta uma nova voz. — Dê a garota e nós não atiraremos em você. Vamos fingir que o perdemos. Vamos deixá-lo ir. Warner quer apenas a garota.
Adam está respirando com dificuldade. Ele segura a arma na mão. Mete a cabeça para fora por uma fração de segundo e dispara. Alguém cai no chão, gritando.
— Kent, seu filho de uma... Adam aproveita o momento para correr. Saltamos por cima do balcão e corremos até uma escadaria. Tiros erram por milímetros. Pergunto-me se esses dois homens são os únicos que nos perseguiram por dentro do prédio.
A escadaria em espiral leva a um nível inferior, algum tipo de porão. Alguém está tentando mirar em Adam, mas nossos movimentos erráticos tornam a tarefa impossível. A chance de ele me atingir no lugar de Adam é muito grande. Ele solta um monte de palavrões em nosso encalço.
Adam derruba coisas no chão enquanto corremos, tentando criar qualquer tipo de distração, qualquer coisa para atrasar os soldados atrás de nós. Localizo duas portas de um abrigo subterrâneo. Esta área deve ter sido desolada por tornados. O tempo está turbulento; desastres naturais são comuns. Ciclones devem ter despedaçado esta cidade.
— Adam — puxo seu braço. Nós nos escondemos atrás de um muro baixo. Aponto para a única rota de fuga possível.
Ele aperta minha mão.
— Que olho! — Mas não nos movemos até que passa por nós uma corrente de ar. Um passo em falso. Um grito abafado. Está quase totalmente escuro aqui embaixo; é óbvio que a eletricidade foi cortada há muito tempo. O soldado tropeçou em um obstáculo que Adam deixou para trás.
Adam segura a arma próximo ao peito. Respira fundo. Ele se vira e dá um tiro rápido.
Sua mira é excelente.
Uma explosão descontrolada de palavrões confirma isso. Adam respira fundo.
— Só estou atirando para mutilar — diz ele. — Não para matar.
— Eu sei — digo a ele. Embora não tivesse certeza.
Corremos em direção às portas e Adam luta para abrir o trinco. Ele está enferrujado. Estamos ficando desesperados. Não sei quanto tempo isso ainda vai durar, até que sejamos descobertos por outro grupo de soldados. Estou prestes a sugerir que comecemos a atirar no trinco, quando Adam finalmente consegue desemperrá-lo.
Ele abre as portas com um chute e nós cambaleamos para a rua. Há três carros para ser escolhidos.
Estou tão feliz que poderia gritar.
— Já não era sem tempo! — diz ele.
Mas não é Adam quem diz isso.
39
Há sangue por toda parte.
Adam está no chão, apertando o corpo, mas eu não sei onde ele foi baleado. Um enxame de soldados vai se reunindo em volta dele e eu estou arranhando os braços que me seguram por trás, chutando o ar, gritando no vazio. Alguém está me arrastando e eu não consigo ver o que eles fizeram com Adam. A dor está amarrando meus membros, travando minhas articulações, quebrando cada osso de meu corpo. Quero gritar para o céu, quero cair de joelhos e chorar na terra. Não entendo por que a agonia não está encontrando fuga em meus gritos. Por que minha boca está coberta com a mão de alguém?
— Se eu soltá-la, você tem que prometer não gritar — diz ele para mim.
Ele está tocando meu rosto com suas mãos nuas e eu não sei onde deixei cair minha arma.
Warner me arrasta até um prédio ainda em funcionamento e arromba a porta com um chute. Acende um interruptor. Luzes fluorescentes acendem-se e ficam piscando com um zunido abafado. Há pinturas coladas nas paredes, arco-íris de abecedário alfinetados em quadros de cortiça. Mesinhas espalhadas pela sala. Estamos em uma sala de aula.
Fico me perguntando se esta é a classe onde James estuda.
Warner baixa a mão. Seus olhos verdes vítreos refletem tamanho encanto que estou petrificada.
— Deus, senti sua falta — diz ele para mim. — Você achou mesmo que eu deixaria você ir tão facilmente?
— Você atirou em Adam — são as únicas palavras que consigo dizer. Minha mente está confusa pela incredulidade. Continuo vendo seu belo corpo dobrado no chão, vermelho vermelho vermelho. Preciso saber se ele está vivo. Ele tem de estar vivo.
Os olhos de Warner lampejam.
— Adam está morto.
— Não...
Warner me empurra para um canto e eu percebo que nunca estive tão indefesa em minha vida. Nunca tão vulnerável. Dezessete anos passei desejando que minha maldição terminasse, mas neste momento estou mais desesperada do que nunca por tê-la de volta. Os olhos de Warner empolgam-se inesperadamente. As mudanças em suas emoções são difíceis de antecipar. Difíceis de deter.
— Juliette — diz ele. Ele toca minha mão de modo tão delicado que me assusta. — Você reparou? Parece que sou imune ao seu dom. — Ele estuda meus olhos. — Isso não é incrível? Você reparou? — pergunta novamente. — Quando você tentou escapar... você sentiu isso...?
Absolutamente nada escapa a Warner. Warner absorve cada detalhe.
É claro que ele sabe.
Mas estou sob o impacto da ternura em sua voz. A sinceridade com a qual ele deseja saber. Ele é como um cão selvagem, enlouquecido e feroz, sedento de caos, ao mesmo tempo que deseja reconhecimento e aceitação.
Amor.
— Podemos mesmo ficar juntos — diz para mim, sem se deixar desanimar com o meu silêncio. Ele me puxa para mais perto, perto demais. Estou congelada em quinhentas camadas de medo. Atordoada de sofrimento, de incredulidade.
Suas mãos alcançam meu rosto, seus lábios, os meus. Meu cérebro está pegando fogo, pronto para explodir em virtude da impossibilidade deste momento. Sinto como se estivesse assistindo a isso acontecer, desprendida de meu próprio corpo, incapaz de intervir. Mais do que qualquer outra coisa, estou surpreendida por suas mãos delicadas, seus olhos ardentes.
— Quero que você me escolha — diz ele. — Quero que você escolha ficar comigo. Quero que você queira isso...
— Você é louco — custa-me respirar. — Você é psicopata...
— Você só está com medo daquilo de que é capaz. — Sua voz é suave. Agradável. Lenta. Enganosamente persuasiva. Antes, não percebera como sua voz poderia ser atraente. — Admita — diz ele. — Somos perfeitos um para o outro. Você tem o poder. Ama a sensação de uma arma em sua mão. Você está... atraída por mim.
Tento lhe dar um soco, mas ele prende meus braços. Imobiliza-os de lado. Aperta-me contra a parede. Ele é muito mais forte do que parece.
— Não minta para si mesma, Juliette. Você vai voltar comigo querendo ou não. Mas pode escolher querer isso. Pode escolher gostar disso...
— Nunca irei... — Respiro, sem ar. — Você é doente... é um monstro doente e deformado.
— Essa não é a resposta certa — diz ele, e parece genuinamente desapontado.
— Essa é a única resposta que você sempre terá de mim.
Seus lábios chegam perto demais.
— Mas eu te amo.
— Não, você não ama.
Seus olhos se fecham. Ele recosta sua testa na minha.
— Você não tem ideia do que faz comigo.
— Eu te odeio.
Ele sacode a cabeça muito lentamente. Desce. Seu nariz roça minha nuca, e eu contenho um calafrio de horror que ele interpreta mal. Seus lábios tocam minha pele e eu, de fato, choro sem voz.
— Deus, adoraria arrancar um pedacinho de você.
Reparo no brilho prateado dentro do bolso de seu casaco.
Sinto um arrepio de esperança. Um arrepio de horror. Preparo-me para o que preciso fazer. Passo um momento em luto pela perda de minha dignidade.
E relaxo.
Ele sente a tensão escoar de meu corpo e, por sua vez, corresponde. Ele sorri, solta suas garras em meus ombros. Desliza os braços ao redor de minha cintura. Engulo o vômito que ameaça me trair.
Seu casaco militar tem um milhão de botões e pergunto-me quantos terei de desabotoar antes que eu consiga colocar a mão na arma. Suas mãos estão explorando meu corpo, deslizando pelas minhas costas para sentir o formato de meu corpo e isso é tudo o que eu posso fazer para evitar fazer algo imprudente. Não sou hábil o bastante para dominá-lo e não faço ideia de por que ele é capaz de tocar em mim. Não faço ideia de por que fui capaz de estraçalhar o concreto. Não faço ideia de onde essa energia veio.
Hoje ele tem toda a vantagem e não é hora de me entregar.
Ainda não.
Coloco minhas mãos em seu peito. Ele me pressiona contra a curva do seu corpo. Ergue meu queixo para encontrar meus olhos.
— Serei bom para você — sussurra ele. — Serei tão bom para você, Juliette. Prometo.
Espero não estar visivelmente trêmula.
E ele me beija. Faminto. Desesperado. Ávido por me escancarar e provar meu gosto. Estou tão atordoada, tão aterrorizada, tão envolvida pela insanidade que me esqueço de mim mesma. Fico lá congelada, enojada. Minhas mãos deslizam de seu peito. Tudo em que consigo pensar é em Adam e sangue e Adam e o som de tiros e Adam deitado em uma poça de sangue e eu quase o empurro de cima de mim. Mas Warner não será desencorajado.
Ele interrompe o beijo. Sussurra algo em meu ouvido que soa absurdo. Pega meu rosto com suas mãos e, desta vez, lembro-me de fingir. Puxo-o para mais perto, agarro um punhado de seu casaco, meus dedos já no afã de libertar o primeiro de seus botões. Warner segura meus quadris e suas mãos conquistam meu corpo. Ele tem gosto de menta, cheira a gardênias. Seus braços são fortes ao redor de mim, seus lábios, suaves, quase doces contra minha pele. Há uma carga elétrica entre nós que eu não previra.
Minha cabeça está girando.
Seus lábios estão no meu pescoço, provando-me, devorando-me, e eu me forço a não desviar do foco. Forço-me a compreender a perversão desta situação. Não sei como conciliar a confusão em minha mente, minha hesitante repulsa, minha inexplicável reação química a seus lábios. Preciso acabar com isso. Já.
Alcanço seus botões.
E ele está desnecessariamente encorajado.
Warner me levanta pela cintura, suspende-me contra a parede, suas mãos no meu traseiro, forçando minhas pernas a envolvê-lo. Ele não percebe que me deu o ângulo perfeito para chegar a seu casaco.
Seus lábios encontram os meus, suas mãos deslizam sob minha blusa e ele está respirando pesado, enrijecendo seu domínio em volta de mim, e eu praticamente rasgo seu casaco no desespero. Não posso deixar isto continuar por mais tempo. Não faço ideia de até onde Warner quer levar as coisas, mas não posso continuar encorajando sua insanidade.
Preciso que ele se incline só um centímetro a mais para a frente...
Minhas mãos envolvem a arma.
Sinto que congela. Recua. Observo seu rosto passar por fases de confusão/medo/angústia/horror/raiva. Ele me larga no chão no momento em que meus dedos puxam o gatilho pela primeira vez.
A arma está desarmada de seu poder e de sua força, o som muito mais ruidoso do que eu previa. As reverberações vibram em meus ouvidos e cada pulsação de meu corpo.
É uma espécie de doce melodia.
É uma espécie de pequena vitória.
Porque, desta vez, o sangue não é de Adam.