15
“Por que você não se mata?”, perguntou certa vez alguém na escola.
Penso que era tipo de pergunta destinada a ser cruel, mas era a primeira vez que cogitava a possibilidade. Não sabia o que dizer. Talvez estivesse louca ao considerar isso, mas sempre tive a esperança de que, se fosse uma garota boa o suficiente, se fizesse tudo direito, se dissesse as coisas certas ou nada dissesse de nenhuma maneira... pensei que meus pais mudariam de ideia. Pensei que eles finalmente escutariam quando eu tentasse conversar. Pensei que me dariam uma chance. Pensei que poderiam, finalmente, me amar.
Sempre tive essa estúpida esperança.
— Bom dia.
Meus olhos abrem-se rapidamente. Jamais tive um sono tão pesado.
Warner está me encarando, sentado ao pé da própria cama, trajando casaco limpo e botas perfeitamente lustradas. Tudo nele é meticuloso. Incólume. Seu hálito é frio e fresco no revigorante ar da manhã. Posso senti-lo em meu rosto.
Leva um tempo para que eu perceba que estou enrolada nos mesmos lençóis em que Warner dorme. Meu rosto está repentinamente pegando fogo e estou remexendo-me para me libertar. Quase caio da cama.
Não o reconheço.
— Dormiu bem? — pergunta ele.
Levanto a cabeça. Seus olhos são de um estranho tom de verde: brilhantes, cristalinos, agudos do modo mais alarmante. Seu cabelo é grosso, do mais vivo ouro; seu corpo é magro e despretensioso, mas suas mãos são fortes sem fazer esforço. Reparo pela primeira vez que ele usa um anel de jade no dedo mínimo esquerdo.
Ele me surpreende encarando-o e levanta-se. Junta as mãos atrás das costas.
— Está na hora de você voltar para seu quarto.
Pisco. Faço que sim com a cabeça. Levanto-me e quase caio. Agarro-me ao lado da cama e tento firmar minha cabeça vertiginosa. Escuto Warner suspirar.
— Você não comeu a comida que lhe deixei ontem à noite.
Apanho a água com mãos trêmulas e obrigo-me a comer um pouco do pão. Meu corpo ficou tão acostumado à fome que não sei mais como reconhecê-la.
Logo que recupero a firmeza, Warner me conduz para fora do quarto. Ainda estou segurando um pedaço de queijo na mão.
Quase o derrubo quando piso além da porta.
Há ainda mais soldados aqui do que no meu andar. Cada um está equipado com, pelo menos, quatro tipos diferentes de arma, algumas penduradas no pescoço, outras amarradas ao cinto. Todos eles denunciam um olhar de terror quando veem meu rosto. Esse olhar aparece e desaparece de suas feições tão rapidamente que eu poderia tê-lo perdido, mas ele é óbvio o bastante: todos apertam um pouco mais firme suas armas enquanto passo por eles.
Warner parece satisfeito.
— O medo deles trabalhará em nosso favor — sussurra ele ao meu ouvido.
Minha humanidade está estilhaçada em um milhão de pedaços sobre o chão acarpetado.
— Nunca quis que tivessem medo de mim.
— Deveria. — Ele para. Seus olhos estão me chamando de idiota. — Se eles não a temem, perseguirão você.
— As pessoas perseguem as coisas que elas temem o tempo todo.
— Ao menos agora eles sabem o que estão enfrentando. — Ele volta a caminhar pelo corredor, mas meus pés estão pregados no chão.
A compreensão é uma água gelada e ela está me escorrendo pelo pescoço.
— Você me fez fazer aquilo... o que eu fiz... com Jenkins? De propósito?
Warner já está três passos à frente, mas posso ver o sorriso em seu rosto.
— Tudo o que faço é de propósito.
— Você quis fazer de mim um espetáculo. — Meu coração está disparando em meu punho, pulsando em meus dedos.
— Estava tentando protegê-la.
— De seus próprios soldados? — Agora estou correndo para alcançá-lo, ardendo de indignação. — À custa da vida de um homem...
— Entre. — Warner chegou ao elevador. Ele está segurando as portas para mim.
Acompanho-o.
Ele aperta os botões apropriados.
A porta se fecha.
Viro-me para falar.
Ele me encurrala.
Sou impelida à quina mais remota deste receptáculo de vidro e estou subitamente nervosa. Suas mãos estão segurando meus braços e seus lábios estão perigosamente próximos do meu rosto. Seu olhar está perdido no meu, seus olhos piscando; perigosos. Ele diz uma palavra:
— Sim.
Levo um tempo até encontrar minha voz.
— Sim, o quê?
— Sim, de meus próprios soldados. Sim, à custa da vida de um homem. — Ele trinca a mandíbula. Fala entredentes. — Você conhece muito pouco do meu mundo, Juliette.
— Estou tentando entender...
— Não você não está — fala ele rispidamente. Seus cílios são como fios de ouro flamejantes. Quase quero tocá-los. — Você não entende que poder e domínio podem escorregar de nossas mãos a qualquer momento, mesmo quando você pensa estar mais preparado. Essas são duas coisas que não são fáceis de conseguir. E são ainda mais difíceis de manter. — Tento falar, mas ele me corta. — Você acha que eu não sei quantos de meus próprios soldados me odeiam? Você acha que não sei que eles gostariam de me ver cair? Você acha que não existem outros que adorariam ter a posição que trabalho duro para ter...
— Não se iluda...
Ele rompe a barreira dos poucos centímetros que ainda nos separam e minhas palavras caem no chão. Não consigo respirar. A tensão em todo o seu corpo é tão intensa que é quase palpável e acho que meus músculos começaram a congelar.
— Você é ingênua — ele diz para mim, sua voz severa, em tom baixo, um sussurro áspero contra minha pele. — Não percebe que você é uma ameaça para todos neste edifício? Eles têm toda a razão para fazer mal a você. Você não vê que estou tentando ajudá-la...
— Me machucando! — explodo. — Machucando os outros!
Seu riso é frio, melancólico. Ele se afasta de mim, subitamente aborrecido. O elevador se abre, mas ele não sai. Posso ver minha porta daqui.
— Volte para seu quarto. Lave-se. Troque-se. Há vestidos em seu armário.
— Não gosto de vestidos.
— Também não acho que você goste de ver aquilo — diz ele inclinando a cabeça. Sigo seu olhar para ver uma sombra volumosa contra minha porta. Viro-me para que me explique, mas ele nada diz. Ele está repentinamente controlado, suas feições limpas de emoções. Ele toma minha mão, aperta meus dedos, diz: — Voltarei para buscá-la exatamente em uma hora — e fecha as portas do elevador antes que eu tenha a chance de protestar. Começo a me perguntar se é coincidência que a única pessoa que menos tem medo de me tocar seja ela mesma um monstro.
Avanço e atrevo-me a olhar mais de perto o soldado de pé na escuridão.
Adam.
Ah, Adam.
Adam, que agora sabe exatamente do que sou capaz.
Meu coração é um balão de água explodindo em meu peito. Meus pulmões estão balançando em minha caixa torácica. Sinto-me como se todos os punhos do mundo decidissem socar-me no estômago. Não deveria me importar tanto, mas me importo.
Ele agora me odiará para sempre. Ele nem sequer olhará para mim.
Espero que ele abra minha porta, mas ele não se move.
— Adam? — arrisco-me, hesitante. — Preciso de seu cartão para abrir.
Observo-o engolir em seco e tomar pouco fôlego e imediatamente sinto que algo está errado. Aproximo-me e uma rápida e firme sacudida de cabeça diz para eu não seguir. Eu não quero tocar pessoas eu não chego perto de pessoas eu sou um monstro. Ele não me quer perto dele. É claro que ele não quer. Eu nunca deveria esquecer meu lugar.
Ele abre minha porta com enorme dificuldade e eu percebo que alguém o feriu onde eu não posso ver. As palavras de Warner retornam a mim e eu reconheço seu delicado adeus como um aviso. Um aviso que corta todas as terminações nervosas de meu corpo.
Adam será punido pelos meus erros. Pela minha desobediência.
Quero inundar de lágrimas um balde de arrependimento.
Atravesso a porta e passo os olhos uma última vez em Adam, incapaz de sentir qualquer espécie de triunfo em sua dor. Apesar de tudo que ele me fez, não sei se sou capaz de odiá-lo. Não Adam. Não o garoto que eu conhecia.
— O vestido roxo — diz ele, sua voz entrecortada e um pouco ofegante, como se lhe doesse inalar. Tenho de entrelaçar as mãos para evitar sair correndo para ele.
— Use o vestido roxo. — Ele tosse. — Juliette.
Serei a modelo perfeita.
16
Assim que estou no quarto, abro o armário e tiro o vestido roxo do cabide antes de lembrar que estou sendo vigiada. As câmeras. Fico me perguntando se Adam também foi punido por me contar sobre elas. Fico me perguntando se ele correu quaisquer outros riscos comigo. Fico me perguntando por que ele o faria.
Toco o firme e moderno tecido do vestido cor de ameixa e meus dedos chegam à bainha, da mesma forma como Adam fez ontem. Não posso evitar de me perguntar por que ele gosta tanto deste vestido. Por que tem de ser este. Por que ainda tenho de vestir um vestido.
Não sou uma boneca.
Minha mão pousa sobre uma prateleira de madeira debaixo das roupas penduradas e uma textura desconhecida resvala minha pele. Ela é áspera e estranha, mas familiar ao mesmo tempo. Chego mais perto do armário e escondo-me entre as portas. Meus dedos contornam a superfície e uma onda de claridade corre pelo meu estômago até eu ter certeza de que estou explodindo de esperança e emoção e de uma felicidade estúpida tão poderosa que estou surpresa por não haver lágrimas escorrendo pelo meu rosto.
Meu caderno.
Ele salvou meu caderno. Adam salvou a única coisa que me pertence.
Apanho o vestido roxo e enfio o bloco de papel em suas pregas, antes de sair furtivamente para o banheiro.
O banheiro em que não há câmeras.
O banheiro em que não há câmeras.
O banheiro em que não há câmeras.
Ele estava tentando me contar, dou-me conta. Antes, no banheiro. Ele estava tentando me contar alguma coisa e eu estava assustada demais. Eu o afugentei
“Eu o afugentei.” Fecho a porta atrás de mim e minhas mãos estão tremendo enquanto desenrolo os íntimos papéis unidos pela cola velha. Folheio as páginas para ter certeza de que todas estão ali e meus olhos pousam sobre meu mais recente registro. Há uma mudança bem ao pé da página. Uma frase nova, não escrita na minha caligrafia.
Uma frase nova que deve ter vindo dele.
“Não é o que você pensa.”
Permaneço perfeitamente imóvel.
Cada centímetro da minha pele está esticado de tensão, carregado de emoção, e a pressão está aumentando em meu peito, esmagando-o mais ruidosamente e mais rapidamente e mais fortemente, compensando com excesso minha imobilidade. Não tremo quando estou congelada no tempo. Tento respirar mais devagar, conto coisas que não existem, invento cifras que não possuo, finjo que o tempo é uma ampulheta quebrada que escoa segundos através da areia. Ouso acreditar.
Ouso ter a esperança de que Adam está tentando se comunicar comigo. Sou doida o bastante para considerar a possibilidade.
Rasgo a página do caderninho e agarro-a contra mim, aplicadamente engolindo a histeria que excita todos os impulsos entrecortados em minha mente.
Escondo o caderno em um bolso do vestido roxo. O bolso dentro do qual Adam deve ter enfiado o caderno. O bolso do qual ele deve ter caído. O bolso do vestido roxo. O bolso do vestido roxo.
A esperança é um bolso de possibilidades.
Estou segurando-a em minha mão.
Warner não está atrasado.
Ele também não bate.
Estou colocando os sapatos quando ele entra sem uma única palavra, sem mesmo um esforço para fazer sua presença conhecida. Seus olhos descem por todo o meu corpo. Minha mandíbula enrijece por conta própria.
— Você o machucou — pego-me dizendo.
— Você não devia se importar — diz ele com uma inclinação de cabeça, fazendo um gesto para meu vestido. — Mas é óbvio que você se importa.
Cerro meus lábios e agradeço por minhas mãos não estarem tremendo tanto. Não sei onde Adam está. Não sei o quanto ele está ferido. Não sei o que Warner fará, o quão longe ele irá na busca do que quer, mas a perspectiva de que Adam sofra de dor é como uma mão fria apertando meu esôfago. Não consigo recuperar meu fôlego. Sinto-me como se estivesse lutando para engolir um palito de dente. Se Adam está tentando me ajudar, isso poderia custar-lhe a vida.
Apalpo o pedaço de papel enfiado em meu bolso.
Respiro.
Os olhos de Warner estão em minha janela.
Respiro.
— É hora de ir — diz ele.
— Aonde vamos?
Ele não responde.
Atravessamos a porta. Olho ao redor. O corredor está abandonado; vazio.
— Onde está Adam todo mundo?
— Gosto mesmo desse vestido — diz Warner enquanto desliza um braço em volta da minha cintura. Desvencilho-me de modo abrupto, mas ele me puxa, guiando-me em direção ao elevador. — O caimento é espetacular. Ajuda a me distrair de todas as suas perguntas.
— Pobre de sua mãe.
Warner quase tropeça nos próprios pés. Seus olhos estão surpresos, alarmados. Ele para a apenas alguns centímetros de nosso objetivo. Vira-se.
— O que quer dizer?
Meu estômago embrulha.
O olhar em seu rosto: a tensão desarmada, o medo hesitante, a súbita apreensão em suas feições.
Eu estava tentando fazer uma piada — é o que não lhe digo. Lamento por sua pobre mãe, é o que ia lhe dizer, por ela ter de lidar com um filho tão miserável e patético. Mas não digo nada disso.
Ele agarra minhas mãos, concentra-se em meus olhos. Urgência pulsa em suas têmporas.
— O que quer dizer? — insiste.
— N-nada — gaguejo. Minha voz parte-se ao meio. — Eu não quis... era só uma piada...
Warner solta minhas mãos como se elas o tivessem queimado. Ele desvia o olhar. Apressa-se rumo ao elevador e não espera por mim.
Pergunto-me o que ele não está me dizendo.
Apenas quando descemos vários andares e estamos seguindo por um desconhecido corredor rumo a uma saída desconhecida, ele finalmente olha para mim. Ele me oferece quatro palavras.
— Bem-vinda ao seu futuro.
17
Estou flutuando na luz do Sol.
Warner está segurando uma porta aberta que leva diretamente para o lado de fora e eu estou tão despreparada para a experiência que mal posso enxergar direito. Ele segura meu cotovelo para firmar meus passos e eu olho para ele.
— Estamos indo para o lado de fora. — Digo isso porque tenho de dizê-lo em voz alta. Porque o mundo do lado de fora é um convite que me é oferecido muito raramente. Porque não consigo descobrir se Warner está tentando ser legal novamente. Dele, meus olhos se dirigem para o que parece ser um pátio de concreto e novamente voltam para ele. — O que estamos fazendo do lado de fora?
— Temos de cuidar de alguns negócios. — Ele me puxa rumo ao centro deste novo universo e eu estou me libertando dele, estendendo a mão para tocar o céu à espera de que ele se lembre de mim. As nuvens são cinzentas como sempre foram, mas são poucas e despretensiosas. O Sol está alto alto alto, descansando contra um pano de fundo que sustenta seus raios e redireciona seu calor em nossa direção. Fico na ponta dos pés e tento tocá-lo. O vento me envolve nos braços e sorri ante minha pele. O ar fresco e macio como a seda trança uma brisa suave por meus cabelos. Este pátio quadrangular poderia ser meu salão de bailes.
Quero dançar com os elementos.
Warner agarra minha mão. Dou meia-volta.
Ele está sorrindo.
— Isso — diz ele, fazendo um gesto para o mundo frio e cinzento debaixo de nossos pés — isso te faz feliz?
Olho em volta. Percebo que o pátio não é exatamente uma cobertura, mas algum lugar entre dois edifícios. Avanço lentamente em direção à margem e posso ver a terra morta e as árvores nuas e aglomerados de prédios dispersos estendendo-se por quilômetros. — O ar frio tem aroma tão puro — digo a ele. — Fresco. Novo em folha. É o aroma mais formidável do mundo.
Seus olhos se mostram satisfeitos, perturbados, interessados e confusos, tudo de uma vez. Ele balança a cabeça. Revista seu casaco e alcança um bolso interno. Ele tira uma arma com um punho dourado que cintila à luz do sol.
Puxo um fôlego profundo.
Ele inspeciona a arma de um modo que não compreendo, supostamente para verificar se ela está ou não pronta para o disparo. Ele a escorrega na mão; seu dedo posicionado diretamente sobre o gatilho. Ele se vira e finalmente lê a expressão em meu rosto.
Ele quase ri.
— Não se preocupe. Não é para você.
— Por que você tem uma arma? — Engulo, em seco, segurando meus braços firmemente contra o peito. — O que estamos fazendo aqui?
Warner escorrega a arma de volta ao bolso e caminha até a extremidade oposta da margem. Ele faz sinal para que eu o acompanhe. Aproximo-me lentamente. Sigo seus olhos. Olho por sobre a barreira.
Todos os soldados do edifício estão a menos de quatro metros e meio abaixo de onde estamos.
Distingo quase 50 filas, cada uma perfeitamente reta, perfeitamente espaçada, tantos soldados em pé, em fila indiana, que perco a conta.
Gostaria de saber se Adam está no meio deles. Se ele pode me ver.
Gostaria de saber o que Adam pensa de mim agora.
Os soldados estão posicionados em um espaço quadrangular idêntico ao que Warner e eu ocupamos, mas eles são uma só massa organizada de preto: calças pretas, camisas pretas, botas de cano alto pretas; nem uma só arma à vista. Cada um está de pé com a mão esquerda pressionando ao coração. Congelados em sua posição.
Preto e cinza
e
preto e cinza
e
preto e cinza
e
triste.
De repente estou perfeitamente consciente da minha vestimenta prática. De repente o vento está insensível demais, frio demais, aflitivo demais conforme penetra através da multidão. Estremeço e isso nada tem a ver com a temperatura. Procuro por Warner, mas ele já tomou seu lugar no limite do pátio; é óbvio que ele já fez isso muitas vezes antes. Ele puxa de seu bolso um pequeno quadrado de metal perfurado e prensa-o contra os lábios; quando ele fala, sua voz percorre a multidão como se tivesse sido amplificada.
— Setor 45.
Uma palavra. Um número.
Todo o grupo se move: mãos esquerdas liberadas, caídas de lado; mãos direitas plantadas no lugar do peito. Eles são uma máquina oleada, funcionando em colaboração perfeita uns com os outros. Se eu não estivesse tão apreensiva, penso que estaria impressionada.
— Temos dois assuntos a tratar esta manhã. — A voz de Warner penetra na atmosfera: nítida, clara, insuportavelmente confiante. — O primeiro está em pé ao meu lado.
Milhares de olhos erguem-se bruscamente na minha direção. Quase me encolho.
— Juliette, por favor, venha até aqui. — Dois dedos dobram-se em duas posições para chamar-me para a frente.
Avanço devagar para colocar-me à vista de todos.
Warner desliza seu braço em volta de mim. Encolho-me de medo. A multidão se assusta. Meu coração bate descontrolado. Estou amedrontada demais para afastar-me dele. Sua arma está próxima demais do meu corpo.
Os soldados parecem aturdidos por Warner estar disposto a me tocar.
— Jenkins, poderia dar um passo adiante, por favor?
Meus dedos estão correndo uma maratona por minha coxa. Não consigo ficar parada. Não consigo acalmar as palpitações que desestabilizam meu sistema nervoso. Jenkins sai da fila; localizo-o imediatamente.
Ele está bem.
Deus amado.
Ele está bem.
— Jenkins teve o prazer de conhecer Juliette noite passada — continua ele. A tensão entre os homens é quase tangível. Ninguém, ao que parece, sabe onde este discurso vai dar. E ninguém, pelo que parece, desconhece a história de Jenkins. Minha história. — Espero que todos vocês a recebam com a mesma gentileza — acrescenta Warner, seus lábios rindo-se sem som. — Ela ficará conosco por algum tempo, e será um trunfo muito valioso para nossos esforços. O Restabelecimento dá-lhe as boas-vindas. Eu dou-lhe as boas-vindas. Vocês devem dar-lhe as boas-vindas.
Os soldados baixam suas mãos de uma só vez, todos exatamente ao mesmo tempo.
Eles se movem em conjunto, cinco passos para trás, cinco passos para a frente, cinco passos fixos na posição. Eles levantam o braço esquerdo ao alto e fecham os dedos em um punho.
E caem de joelhos.
Corro até o beiral, desesperada por olhar mais de perto tal rotina estranhamente coreografada. Nunca vi algo assim.
Warner faz que fiquem desse jeito, tortos desse jeito, punhos erguidos no ar desse jeito. Ele não fala por pelo menos 30 segundos. E então o faz.
— Ótimo.
Os soldados levantam-se e pousam a mão direita novamente sobre o peito.
— O segundo assunto que se coloca é ainda mais agradável que o primeiro — continua ele, ainda que pareça não sentir nenhum prazer em dizer isso. Ele fixa seus olhos nos soldados, estilhaços de esmeralda cintilam sobre seus corpos. — Delalieu tem um relato para nós.
Ele passa uma eternidade simplesmente encarando os soldados, deixando suas poucas palavras agitarem suas mentes. Deixando que a imaginação os enlouqueça. Deixando os culpados entre eles tremerem de angústia.
Warner nada diz durante muito tempo.
Ninguém se move durante muito tempo.
Começo a temer por minha vida, apesar de ele ter me tranquilizado anteriormente. Começo a me perguntar se talvez eu seja a única culpada. Se talvez a arma em seu bolso seja destinada para mim. Finalmente ouso me virar em sua direção. Ele me olha pela primeira vez e eu não faço ideia de como interpretrá-lo.
Seu rosto são 10 mil possibilidades olhando diretamente através de mim.
— Delalieu — diz ele, ainda olhando para mim. — Um passo à frente.
Um tipo de homem magro e com queda de cabelo, em uma vestimenta levemente mais decorada, sai bem da frente das cinquenta fileiras. Ele não se mostra inteiramente estável. Ele baixa um pouco a cabeça. Sua voz chilreia quando ele fala.
— Senhor.
Warner finalmente liberta-se de meus olhos e acena a cabeça, quase imperceptivelmente, na direção do homem cuja calvície progride.
Delalieu relata:
— Temos uma acusação contra o Soldado Raso 45B-76423. Fletcher, Seamus.
Os soldados estão todos congelados em fila, congelados de alívio, congelados de medo, congelados de ansiedade. Nada se move. Nada respira. Mesmo o vento teme fazer um som.
— Fletcher. — Uma palavra vinda de Warner e várias centenas de pescoços estalam na mesma direção.
Fletcher sai da fila.
Ele parece um homem gengibre. Cabelo cor gengibre. Sardas cor gengibre. Lábios quase artificialmente vermelhos. Seu rosto é vazio de toda e qualquer emoção possível.
Jamais em minha vida senti tanto medo por um estranho.
Delalieu fala novamente.
— O soldado raso Fletcher foi encontrado em territórios irregulares, confraternizando com civis que se acredita serem membros do partido dos rebeldes. Ele havia roubado comida e suprimentos das unidades de armazenamento dedicadas aos residentes do setor 45. Não se sabe se ele divulgou informações confidenciais.
Warner mira seus olhos para o homem gengibre.
— Você nega essas acusações, soldado?
As narinas de Fletcher dilatam-se. Seu maxilar tensiona-se. Sua voz falha quando ele fala.
— Não, senhor.
Warner acena com a cabeça. Toma uma fôlego breve. Lambe os lábios.
E atira-lhe na testa.
18
Ninguém se move.
O horror permanente está esculpido no rosto de Fletcher quando desmorona no chão. Estou tão impressionada pela impossibilidade disso tudo que não consigo concluir se estou sonhando ou não, não consigo determinar se estou morrendo ou não, não consigo entender se é uma boa ideia desmaiar ou não.
Os membros de Fletcher estão dobrados em ângulos estranhos sobre o frio chão de concreto. O sangue está formando uma lagoa em volta dele e ainda ninguém se move. Ninguém diz uma só palavra. Ninguém denuncia um só olhar de medo.
Continuo tocando meus lábios para ver se meus gritos escaparam.
Warner enfia sua arma de volta no bolso do casaco.
— Setor 45, estão dispensados.
Todos os soldados caem de joelho.
Warner desliza o amplificador de metal de volta para dentro de seu traje e tem de me arrancar do local onde estou colada. Estou tropeçando em meus próprios pés, meus membros fracos, doendo até o osso. Sinto-me nauseada, delirante, incapaz de segurar-me em posição vertical. Continuo tentando falar, mas as palavras estão pregando minha língua. Subitamente estou suando e subitamente congelando e subitamente tão enferma que enxergo borrões nublando minha visão.
Warner está tentando me fazer passar pela porta.
— Você deve mesmo comer mais — diz ele para mim.
Estou pasmada, com olhos e boca escancarados, visto que sinto buracos por toda parte, perfurados no terreno de meu corpo.
Meu coração deve estar sagrando no meu peito.
Olho para baixo e não consigo entender por que não há sangue em meu vestido, por que esta dor em meu coração toca-me de modo tão real.
— Você o matou — consigo murmurar. — Você simplesmente o matou...
— Você é muito astuta.
— Por que você o matou por que você o mataria como pôde fazer algo assim...
— Mantenha os olhos abertos, Juliette. Agora não é hora de adormecer.
Agarro sua camisa. Faço-o parar antes que ele entre. Uma rajada de vento bate-me no rosto e de repente estou no controle de meus sentidos. Empurro-o com força, fazendo suas costas baterem contra a parede.
— Você me enoja. — Olho severamente dentro de seus olhos frios. — Você me enoja...
Ele me gira, prende-me contra a porta em que acabei de segurá-lo. Ele pega meu rosto com as mãos em concha, mãos enluvadas, retendo meus olhos na posição. As mesmas mãos que ele acabou de usar para matar um homem.
Estou imobilizada.
Paralisada.
Levemente apavorada.
Seu polegar pinta minha bochecha.
— A vida é um lugar frio — sussurra ele. — Às vezes você tem que saber atirar primeiro.
Warner acompanha-me até meu quarto.
— Você deveria dormir — diz ele para mim. É a primeira vez que ele falou desde que deixamos o terraço. — Vou mandar comida para o seu quarto, mas só se eu tiver certeza de que você não está perturbada.
— Onde está Adam? Ele está seguro? Está saudável? Você vai machucá-lo?
Warner hesita antes de retomar a tranquilidade.
— Por que você se importa?
Eu me importo com Adam Kent desde a terceira série.
— Ele não devia estar me vigiando? Porque ele não está aqui? Isso quer dizer que você vai matá-lo também? — Estou me sentindo estúpida. Estou me sentindo valente porque estou me sentindo estúpida. Minhas palavras caem sem paraquedas de minha boca.
— Só mato pessoas se preciso.
— Generoso.
— Mais que a maioria.
Rio um riso triste, compartilhando-o apenas comigo mesma.
— Pode tirar o resto do dia para você. Nosso verdadeiro trabalho começará amanhã. Adam trará você para mim. — Ele retém meus olhos. Suprime um sorriso. — Nesse meio-tempo, tente não matar ninguém.
— Você e eu — digo-lhe, a raiva fluindo-me pelas veias — você e eu não somos iguais...
— Realmente não acredito nisso.
— Você pensa que pode comparar minha... minha doença... com a sua insanidade.
— Doença? — Ele se lança à frente, bruscamente exaltado, e eu me esforço para manter-me firme no chão. — Você acha que tem uma doença? — grita ele. — Você tem um dom! Você tem uma habilidade extraordinária que você não se preocupa em entender. Seu potencial...
— Não tenho potencial!
— Você está errada. — Ele está olhando furiosamente para mim. Não há outra maneira de descrever isso. Quase poderia dizer que neste momento ele me odeia. Odeia-me por eu odiar-me a mim mesma.
— Bem, você é o assassino — digo-lhe. — Então deve estar certo.
Seu sorriso está atado com dinamite.
— Vá dormir.
— Vá pro inferno.
Ele movimenta a mandíbula. Caminha até a porta.
— Estou trabalhando nisso.
19
A escuridão está me sufocando.
Meus sonhos são sangrentos e estão sangrando por toda minha mente e eu não posso dormir mais. Os únicos sonhos que costumavam me dar paz se foram e eu não sei como obtê-los de volta. Não sei como encontrar o pássaro branco. Não sei se ele algum dia vai voar. Tudo que sei é que agora, quando fecho os olhos, não vejo nada senão devastação. Fletcher está levando um tiro várias e várias vezes e Jenkins está morrendo em meus braços e Warner está disparando na cabeça de Adam e o vento está uivando do lado de fora de minha janela, mas ele é berrante e estranho, e eu não tenho coragem de ordenar que ele pare.
Estou congelando dentro das roupas.
A cama abaixo das minhas costas está repleta de pedaços de nuvens e neve caída há pouco; ela é tão macia, tão confortável. Ela me faz lembrar muito de dormir no quarto de Warner e não suporto isso. Estou com medo de enfiar-me debaixo destas cobertas.
Não consigo deixar de pensar se Adam está bem, se algum dia ele voltará, se Warner continuará machucando-o sempre que eu desobedecer. Realmente não devia me preocupar tanto.
A mensagem de Adam em meu caderno pode ser apenas uma parte do plano de Warner para me enlouquecer.
Engatinho no chão duro e confiro o pedaço de papel amassado que há dois dias aperto no punho. Ele é a única esperança que me restou e eu nem mesmo sei se é real.
Estou ficando sem opções.
— O que você está fazendo aqui?
Seguro um grito e cambaleio para os lados, quase batendo em Adam no ponto em que ele está deitado no chão perto de mim. Nem sequer o vi.
— Juliette? — Ele não se move um centímetro. Seu olhar está fixo em mim: calmo, imperturbável; dois baldes de água de rio à meia-noite. Gostaria de chorar em seus olhos.
Não sei por que lhe conto a verdade.
— Não conseguia dormir lá em cima.
Ele não me pergunta a razão. Ele se levanta e solta um gemido e eu me lembro de como ele está ferido. Pergunto-me que tipo de dor ele sente. Não faço perguntas enquanto ele apanha um travesseiro e o cobertor de minha cama. Ele coloca o travesseiro no chão.
— Deite-se — é tudo o que ele diz para mim. Calmamente, é como ele diz isso para mim.
Todos os dias, durante todo o dia, eternamente, quero que ele diga isso para mim.
É apenas uma palavra e eu não sei por que estou corando. Deito-me apesar das sirenes girando em meu sangue e descanso a cabeça no travesseiro. Ele coloca o cobertor sobre meu corpo. Deixo-o fazer isso. Observo enquanto seus braços curvam-se e flexionam-se à sombra da noite, o resplendor da Lua espreitando através da janela, iluminando sua figura com seu brilho. Ele se deita no chão, deixando apenas alguns centímetros de espaço entre nós. Ele não exige cobertor. Ele não usa travesseiro. Ele ainda dorme sem camisa e acabo de descobrir que não sei como respirar. Acabo de perceber que nunca irei soltar o ar na sua presença.
— Você não precisa mais gritar — sussurra ele.
O ar escapa-me por todos os poros do corpo.
Enrolo meus dedos em torno da possibilidade de Adam em minha mão e durmo o mais profundo que já dormi na vida.
Meus olhos são duas janelas arrombadas pelo caos deste mundo.
Uma brisa fresca surpreende minha pele e eu me sento, esfrego o sono de meus olhos e reparo que Adam não está mais do meu lado. Pisco os olhos e engatinho de volta para a cama, onde reponho o travesseiro e o cobertor.
Olho para a porta e me pergunto o que me espera do outro lado.
Olho para a janela e me pergunto se verei alguma vez um pássaro voar.
Olho para o relógio na parede e me pergunto o que significa viver, novamente, de acordo com os números. Pergunto-me o que 6h30 da manhã significam neste edifício.
Decido lavar o rosto. A ideia me alegra e estou um pouco envergonhada.
Abro a porta do banheiro e surpreendo o reflexo de Adam no espelho. Suas rápidas mãos puxam sua camisa para baixo antes que eu tenha a chance de pegar os detalhes, mas vi o suficiente para ver o que não podia ver na escuridão.
Ele está coberto de hematomas.
Fico sem pernas. Não sei como ajudá-lo. Gostaria de poder ajudá-lo.
— Me desculpe — diz ele rapidamente. — Não sabia que estava acordada. — Ele puxa a parte inferior da camisa como se ela não fosse comprida o bastante para eu fazer de conta que estou cega.
Aceno que sim em direção de coisa nenhuma. Olho o ladrilho debaixo de meus pés. Não sei o que dizer.
— Juliette. — Sua voz acaricia as letras de meu nome tão suavemente que morro cinco vezes nesse segundo. Seu rosto é uma floresta de emoções. Ele sacode a cabeça. — Me desculpe — diz ele tão calmamente que estou certa de que imaginei isso. — Não é... — Ele trava o maxilar e passa uma mão nervosa pelos cabelos. — Tudo isso... não é...
Abro a mão na direção dele. O papel é uma bolinha amarrotada de possibilidades.
O alívio inunda todas as feições de seu rosto e subitamente seus olhos são a única nova garantia de que vou eternamente precisar. Adam não me traiu. Não sei por que ou como ou o que ou nada mais exceto que ele ainda é meu amigo.
Ele ainda está de pé bem na minha frente e ele não quer que eu morra.
Aproximo-me e fecho a porta.
Abro a boca para falar.
— Não!
Meu queixo cai.
— Espere — diz ele com uma mão. Seus lábios se movem, mas não fazem som. Percebo na ausência de câmeras que ainda poderia haver microfones no banheiro. Adam olha em volta e de um lado para o outro por toda a parte.
Ele para de olhar.
O chuveiro é de quatro paredes de vidro em mármore e ele está abrindo o vidro antes que eu entenda o que está acontecendo. Ele vira a ducha na potência máxima e o som da água corre, ressoa pelo quarto, abafando tudo como se trovejasse no vazio ao nosso redor. O espelho já está embaçando por causa do vapor. Só quando penso estar começando a entender seu plano, ele me puxa para seus braços e me ergue para dentro do chuveiro.
Meus gritos são vapor, nuvens de suspiro que não consigo apreender.
A água quente ensopa minhas roupas. Cai em meus cabelos, escorrendo-me no pescoço, mas tudo o que sinto são suas mãos em volta de minha cintura. Quero gritar por todas as razões erradas.
Seus olhos me pregam no lugar. Sua urgência inflama meus ossos. Riachos de água serpenteiam pelos planos polidos de seu rosto e seus dedos me pressionam contra a parede.
Seus lábios seus lábios seus lábios seus lábios seus lábios.
Meus olhos lutam para não flutuar.
Minhas pernas ganharam o direito de tremer.
Minha pele está abrasada por todos os lugares em que ele não está me tocando.
Seus lábios estão tão próximos de meu ouvido que sou a água e nada e tudo e estou evaporando em um querer tão desesperado que queima à medida que engulo.
— Eu posso tocá-la — diz ele, e eu me pergunto por que há beija-flores no meu coração. — Não entendia até a outra noite — murmura ele, e estou embriagada demais para digerir o peso de qualquer coisa senão de seu corpo pairando tão próximo ao meu.
— Juliette... — Seu corpo espreme-se mais rente e eu percebo que não estou prestando atenção a nada senão aos dentes-de-leão que sopram desejos em meus pulmões. Meus olhos abrem-se abruptos e ele lambe seu lábio inferior durante o mais curto segundo e eu me maravilho com a gota gota gotas de água quente arranjadas em seus cílios como pérolas forjadas da dor. Seus dedos sobem vagarosamente pelas laterais de meu corpo como se ele se esforçasse para mantê-los em um só lugar, como se ele se esforçasse para não me tocar em todos os lugares todos os lugares todos os lugares e seus olhos estão absorvidos em meu 1,60 metro de físico e eu estou tão eu estou tão eu estou tão
arrebatada.
— Enfim agora compreendo — diz ele em meu ouvido. — Eu sei... eu sei por que Warner quer você. — As pontas de seus dedos são dez pontos de eletricidade me exterminando por meio de algo que jamais conheci. Algo que sempre quis sentir.
— Então por que você está aqui? — sussurro, submissa, morrendo em seus braços. — Por que... — Uma. Duas tentativas de aspiração. — Por que você está me tocando?
— Porque eu posso. — Ele quase irrompe um sorriso e quase me desenvolve um par de asas. — Eu já toquei.
— O quê? — Pisco, subitamente saída da embriaguez. — O que você quer dizer?
— Aquela primeira noite na cela — suspira ele. Ele olha para baixo. — Você estava gritando enquanto dormia.
Eu espero.
Eu espero.
Eu espero eternamente.
— Toquei seu rosto. — Ele me fala ao ouvido. — Sua mão. Toquei de leve a extensão de seu braço... — Ele recua e seus olhos descansam em meu ombro, seguindo para o cotovelo, pousando em meu pulso. Estou suspensa na incredulidade. — Não sabia como acordá-la. Você não acordava. Então me sentei de braços cruzados e a observei. Esperei você parar de gritar.
— Não. É. Possível. — Três palavras são tudo o que consigo.
Mas suas mãos tornam-se braços em volta da minha cintura seus lábios tornam-se um rosto pressionado ao meu rosto e seu corpo é vigoroso contra o meu, sua pele me tocando me tocando me tocando e ele não está gritando ele não está morrendo ele não está fugindo de mim e eu estou chorando
estou sufocando
estou tremendo estremecendo estilhaçando-me em lágrimas
e ele está me segurando de um modo que nunca ninguém me segurou.
Exatamente como ele me quer.
— Vou tirá-la daqui — diz ele, e sua boca está se movendo diante de meus cabelos e suas mãos estão percorrendo meus braços e eu estou reclinando e ele está olhando-me dentro dos olhos e eu devo estar sonhando.
— Por que... por que você... eu não... — Estou sacudindo a cabeça e sacudindo porque isso não pode estar acontecendo e sacudindo do rosto as lágrimas nele coladas. Isso não pode ser real.
Seus olhos suavizam, seu sorriso desengonça minhas articulações e eu queria saber o gosto de seus lábios. Queria ter a coragem de tocá-lo.
— Tenho de ir — diz ele. — Você tem de se vestir e estar lá embaixo às 8 horas.
Estou me afogando em seus olhos e não sei o que dizer.
Ele tira a camisa e eu não sei para onde olhar.
Surpreendo-me a mim mesma no painel de vidro e aperto os olhos e pisco quando algo se agita bem próximo. Seus dedos estão a um instante de meu rosto e eu estou pingando queimando derretendo por antecipação.
— Você não tem de desviar o olhar — diz ele. Ele diz isso com um sorrisinho do tamanho de Júpiter.
Espio suas feições, o sorriso torto que eu quero provar, a cor de seus olhos que eu usaria para pintar um milhão de quadros. Sigo a linha de sua face, seu pescoço abaixo até o pico de sua clavícula; memorizo as colinas e os vales esculpidos em seus braços, a perfeição de seu torso. O pássaro no seu peito.
O pássaro no seu peito.
Uma tatuagem.
Um pássaro branco com listras de ouro igual a uma coroa sobre sua cabeça. Ele está voando.
— Adam — tento contar para ele. — Adam — tento botar para fora. — Adam — tento dizer tantas vezes e falho.
Tento achar seus olhos apenas para perceber que ele esteve me observando estudá-lo. As partes de seu rosto estão comprimidas em linhas de emoção tão profundas que me pergunto o que devo parecer para ele. Ele toca dois dedos em meu queixo, eleva meu rosto apenas o bastante e eu sou um fio elétrico na água.
— Encontrei uma maneira de falar com você — diz ele, e suas mãos estão me puxando e meu rosto está apertado contra seu peito e o mundo está de repente mais luminoso, mais amplo, bonito. O mundo de repente significa alguma coisa para mim, a possibilidade de humanidade significa alguma coisa para mim, o universo inteiro para no lugar e gira na outra direção e eu sou o pássaro.
Sou o pássaro e estou voando para longe.
20
São oito horas da manhã e eu estou vestindo um vestido na cor de florestas mortas e latas velhas.
O ajuste é mais apertado que qualquer coisa que já vesti em minha vida, o corte moderno e angular, quase casual; o tecido é rígido e grosso, mas de algum modo arejado. Olho para minhas pernas e me admiro que possua um par.
Sinto-me mais exposta do que já estive em toda a minha vida.
Por dezessete anos cuidei de cobrir cada centímetro de pele exposta e Warner está me forçando a descascar as camadas. Posso apenas supor que ele esteja fazendo isso de propósito. Meu corpo é uma flor carnívora, uma planta doméstica envenenada, uma arma carregada com um milhão de gatilhos e ele está mais que pronto a atirar.
Toque-me e sofra as consequências. Nunca houve exceções a essa regra.
Nunca, exceto Adam.
Ele me deixou em pé encharcada no chuveiro, absorvendo um aguaceiro torrencial de lágrimas quentes. Observei através do vidro embaçado enquanto ele se enxugava e entrava em seu uniforme.
Olhava enquanto ele saia furtivamente, perguntando-me a todo momento por que por que por quê.
Por que ele pode me tocar?
Por que ele me ajudaria?
Ele se lembra de mim?
Minha pele ainda está vaporosa.
Meus ossos estão enfaixados nas pregas apertadas deste estranho vestido, o zíper, a única coisa que me mantém coesa. Isso, e a esperança de algo com que sempre jamais ousei sonhar.
Meus lábios permanecerão eternamente costurados aos segredos desta manhã, mas meu coração está tão cheio de confiança e admiração e paz e possibilidade que está prestes a explodir, e eu me pergunto se isso rasgará o vestido.
A esperança está me abraçando, segurando-me em seus braços, enxugando minhas lágrimas e dizendo-me que hoje e amanhã e daqui a dois dias eu estarei bem e eu estou tão delirante que de fato me atrevo a acreditar nisso.
Estou sentada em um quarto azul.
As paredes são revestidas por tecido na cor de um perfeito céu de verão, o chão é coberto de um carpete de cinco centímetros de espessura, o quarto inteiro vazio exceto por duas cadeiras aveludadas expelidas de uma constelação delas. Todos os matizes variados são como uma ferida, como um belo engano, como um lembrete do que eles fizeram a Adam por minha causa.
Estou sentada sozinha em uma cadeira aveludada em um quarto azul com um vestido feito de olivas. Sinto que o peso do caderno em meu bolso é como equilibrar uma bola de boliche no joelho.
— Você está linda.
Warner move-se rapidamente dentro do quarto como se esmagasse ar para viver. Ele não está acompanhado.
Meus olhos involuntariamente espiam meus tênis e eu me pergunto se quebrei alguma regra ao evitar as pernas de pau em meu closet, sobre as quais estou certa de que não são para os pés. Levanto os olhos e ele está de pé bem na minha frente.
— Verde fica incrível em você — diz ele com um sorriso estúpido. — Ele realmente salienta a cor de seus olhos.
— Qual é a cor de meus olhos? — pergunto à parede.
Ele ri.
— Não brinca.
— Quantos anos você tem?
Ele para de rir.
— Isso importa?
— Estou curiosa.
Ele se senta ao meu lado.
— Não responderei às suas perguntas se não olhar para mim quando falo com você.
— Você quer que eu torture pessoas contra minha vontade. Você quer que eu seja uma arma em sua guerra. Você quer que me torne um monstro para você. — Faço uma pausa. — Olhar para você me deixa enjoada.
— Você é muito mais teimosa do que eu pensei que você fosse.
— Estou usando seu vestido. Comi sua comida. Estou aqui. — Levanto os olhos para olhá-lo e ele já está olhando diretamente para mim. Estou momentaneamente surpreendida pelo poder de seu olhar.
— Você não fez nada disso para mim — diz ele calmamente.
Quase rio alto.
— Por que faria?
Seus olhos estão lutando com seus lábios pelo direito de falar. Desvio o olhar.
— O que você está fazendo neste quarto?
— Ah. — Ele respira fundo. — Café da manhã. Então lhe dou sua programação.
Ele aperta um botão no braço da cadeira e, quase que instantaneamente, carrinhos e bandejas são trazidos para o quarto por homens e mulheres que, claramente, não são soldados. O rosto deles é duro e craquelado e magro demais para ser saudável.
Isso quebra meu coração bem ao meio.
— Costumo comer sozinho — continua Warner, sua voz como uma ponta de gelo penetrando a carne de minhas memórias. — Mas imaginei que você e eu devêssemos nos familiarizar. Especialmente porque passaremos bastante tempo juntos.
Os criados As pessoas-que-não-são-soldados saem e Warner me oferece algo em um prato.
— Não estou com fome.
— Isso não é uma opção.
Levanto os olhos e percebo que ele está seríssimo.
— Você não tem permissão para morrer de fome. Você não come o suficiente e eu preciso que você esteja saudável. Você não tem permissão para cometer suicídio. Você não tem permissão para fazer mal a si mesma. Você é muito valiosa para mim.
— Não sou seu brinquedo — quase cuspo.
Ele solta seu prato sobre o carrinho móvel e eu estou surpresa por não se quebrar em pedaços. Ele limpa a garganta e eu posso estar realmente assustada.
— Este processo seria muito mais fácil se você apenas cooperasse — diz ele, anunciando cada palavra.
Cinco cinco cinco cinco cinco batimentos do coração.
— O mundo está desgostoso com você — diz ele, seus lábios contorcendo-se em deboche. — Todo mundo que você conheceu detesta você. Correu de você. Abandonou você. Seus próprios pais desistiram de você e ofereceram, voluntariamente, sua existência às autoridades. Eles estavam desesperados para se livrar de você, para fazer de você problema de outro, para convencer a si mesmos de que a abominação que eles criaram não era, na realidade, filha deles.
Meu rosto foi esbofeteado por uma centena de mãos.
— E ainda... — Ele agora ri abertamente. — Você insiste em fazer de mim o cara mau. — Ele encontra meus olhos. — Estou tentando ajudá-la. Estou lhe dando uma chance que ninguém jamais ofereceria a você. Estou disposto a tratá-la como igual. Estou disposto a dar-lhe tudo o que você poderia querer e, acima de tudo, posso colocar poder em suas mãos. Posso fazê-los sofrer pelo que fizeram a você. — Ele se inclina apenas o suficiente. — Posso mudar seu mundo.
Ele está errado ele está muito errado ele está mais errado que um arco-íris de cabeça para baixo.
Mas tudo o que ele disse está certo.
— Não ouse me odiar tão prontamente — continua ele. — Você poderia desfrutar desta situação muito mais que o esperado. Para sua sorte, estou disposto a ser paciente. — Ele sorri. Inclina-se para trás. — Ainda que certamente não seja de todo mal a sua beleza alarmante.
Estou pingando tinta vermelha sobre o carpete.
Ele é um mentiroso e um horrível, horrível, horrível ser humano e eu não sei se me preocupo porque ele está certo, ou porque isso é tão errado, ou porque estou tão desesperada por alguma forma de reconhecimento neste mundo. Ninguém jamais disse para mim qualquer coisa desse tipo.
Isso me faz querer olhar-me no espelho.
— Você e eu não somos tão diferentes quanto você poderia esperar. — Seu sorriso é tão arrogante que quero torcê-lo com minhas mãos.
— Você e eu não somos tão parecidos quanto você poderia esperar.
Seu sorriso é tão largo que não tenho certeza de como reagir.
— Tenho 19, a propósito.
— Perdão?
— Tenho 19 anos — esclarece ele. — Sou um espécime bastante impressionante para minha idade, eu sei.
Apanho minha colher e cutuco a substância comestível em meu prato. Não sei mais que comida realmente é.
— Não tenho respeito por você.
— Você mudará de ideia — diz ele facilmente. — Agora se apresse e coma. Temos muito trabalho a fazer.
21
Matar tempo não é tão difícil quanto parece.
Posso atirar uma centena de números no peito e vê-los sangrar pontos decimais na palma de minha mão. Posso rasgar os números de um relógio e ver os ponteiros das horas fazer tique-taque tique-taque tique-taque, seu taque final pouco antes de eu pegar no sono. Posso sufocar os segundos apenas segurando minha respiração. Há horas ando assassinando minutos e ninguém parece prestar atenção.
Passou-se uma semana desde que falei a última palavra com Adam.
Virei-me para ele uma vez. Abri minha boca apenas uma vez, mas nunca tive uma chance de dizer qualquer coisa antes de Warner me deter.
— Você não tem permissão para falar com os soldados — disse ele. — Se tiver perguntas, pode fazê-las a mim. Sou a única pessoa com quem você precisa se preocupar enquanto estiver aqui.
Possessivo não é uma palavra forte o suficiente para Warner.
Ele me escolta em todos os lugares. Fala demais comigo. Minha programação consiste em encontrar-me com Warner e comer com Warner e escutar Warner. Se ele está ocupado, sou mandada para meu quarto. Se ele está livre, ele me encontra. Ele me conta sobre os livros que eles destruíram. Os artefatos que eles estão preparando para queimar. As ideias que ele tem para um mundo novo e como lhe serei de grande ajuda tão logo estiver pronta. Tão logo eu perceba o quanto quero isto, o quanto eu o quero, o quanto quero esta nova vida triunfante e poderosa. Ele está esperando que eu canalize meu potencial. Ele me diz quão grata deveria ser por sua paciência. Sua bondade. Sua vontade de compreender que esta transição deve ser difícil.
Não posso olhar para Adam. Não posso falar com ele. Ele dorme no meu quarto, mas nunca o vejo. Ele respira tão próximo ao meu corpo, mas não aparta os lábios em minha direção. Não me segue para o banheiro. Não deixa mensagens secretas em meu caderno.
Estou começando a me perguntar se eu imaginei tudo o que ele disse para mim.
Preciso saber se alguma coisa mudou. Preciso saber se estou louca por agarrar-me a essa esperança florescendo em meu coração e preciso saber o que a mensagem de Adam significa, mas todo dia em que ele me trata como uma estranha é outro dia em que começo a duvidar de mim mesma.
Preciso falar com ele, mas não posso.
Porque agora Warner está me vigiando.
As câmeras estão vigiando tudo.
— Quero que você retire as câmeras de meu quarto.
Warner para de mastigar a comida/lixo/café da manhã/absurdo em sua boca. Ele engole cuidadosamente antes de recostar-se e olhar-me no olho.
— Certamente não.
— Se você me trata como uma prisioneira — digo a ele — agirei como uma. Não gosto de ser vigiada.
— Você não pode ser confiada à própria sorte. — Ele pega novamente sua colher.
— Cada suspiro que eu dou é monitorado. Há guardas situados em intervalos de um metro e meio por todos os corredores. Nem mesmo tenho acesso ao meu próprio quarto — protesto. — As câmeras não vão fazer diferença.
Um estranho tipo de divertimento dança em seus lábios.
— Você não é exatamente estável, você sabe. Você está sujeita a matar alguém.
— Não. — Aperto meus dedos. — Não... não mataria... eu não matei Jenkins...
— Não estou falando de Jenkins. — Seu sorriso é um tonel de ácido gotejando em minha pele.
Ele não para de olhar para mim. Sorrir para mim. Torturar-me com seus olhos.
Esta sou eu, gritando silenciosamente com a mão cerrada.
— Aquilo foi um acidente. — As palavras despencam-se da boca tão calmamente, tão rapidamente, que nem mesmo sei se na verdade falei ou se na verdade ainda estou aqui ou se na verdade tenho 14 anos tudo de novo e mais uma vez e estou gritando e morrendo e mergulhando em um lago de lembranças que nunca jamais jamais jamais jamais...
Não consigo esquecer.
Eu a vi no supermercado. Suas pernas estavam cruzadas nos tornozelos, seu filho estava em uma coleira que ela pensava que ele pensava ser uma mochila. Ela pensava que ele era burro demais/jovem demais/imaturo demais para entender que a corda amarrando-o ao pulso dela fosse um instrumento destinado a aprisioná-lo em seu círculo desinteressado de autoaprovação. Ela é jovem demais para ter um filho, para ter essas responsabilidades, para ser enterrada por uma criança que tem necessidades que não se acomodam às suas. Sua vida é tão incrivelmente insuportável tão imensamente multifacetada tão glamorosa para a encoleirada herança de seus quadris, que é mesmo natural que não compreenda.
Crianças não são estúpidas, era o que eu queria dizer a ela.
Queria dizer a ela que o sétimo grito dele não significava que ele estava tentando ser insolente, que a décima quarta repreensão dela na forma de “pirralho/você é um pirralho/você está me envergonhando seu pirralho/não faça contar para o papai que você estava sendo um pirralho” era desnecessária. Eu não pretendia assistir, mas não pude me abster. Seu rosto de três anos de idade enrugava-se de dor, suas mãozinhas tentavam desfazer as correntes que ela amarrara a seu peito e ela o puxava tão forte que ele caía e chorava e ela lhe dizia que ele merecia isso.
Queria perguntar a ela por que fazia aquilo.
Queria perguntar a ela tantas coisas, mas não o fiz porque não falamos mais com as pessoas, porque dizer alguma coisa a um estranho é mais estranho que não dizer nada a um estranho. Ele caiu no chão e se contorceu até que larguei tudo das mãos e perdi cada expressão de meu rosto.
Lamento muito — é o que nunca disse para seu filho.
Pensei que minhas mãos estivessem ajudando.
Pensei que minhas mãos estivessem ajudando.
Pensei em tantas coisas.
Eu nunca
nunca
nunca
nunca
nunca pensei.
— Você matou um garotinho.
Estou pregada na cadeira aveludada por um milhão de memórias e sou assombrada por um horror que minhas mãos nuas criaram e recordo-me a todo momento de que sou desprezada por uma boa razão. Minhas mãos podem matar pessoas. Minhas mãos podem destruir tudo.
Não deveria ter permissão para viver.
— Eu quero — arquejo, lutando para engolir o punho alojado na garganta —, eu quero que você se livre das câmeras. Livre-se delas ou morrerei lutando com você por esse direito.
— Finalmente! — Warner levanta-se e entrelaça as mãos como a congratular a si mesmo. — Ficava me perguntando quando você acordaria. Andei esperando o fogo que sei que deve estar queimando-a todo santo dia. Você está enterrada em ódio, não é? Raiva? Frustração? Coçando para fazer alguma coisa? Para ser alguém?
— Não.
— Claro que você está. Você é exatamente como eu.
— Odeio você mais do que jamais entenderá.
— Faremos uma excelente equipe.
— Não somos nada. Você é nada para mim...
— Sei o que você quer. — Ele se inclina, baixa o tom de voz. — Sei o que seu coraçãozinho sempre almejou. Posso lhe dar a aceitação que você procura. Posso ser seu amigo.
Congelo. Hesito. Não consigo falar.
— Sei tudo sobre você, amor. — Ele sorri malicioso. — Há muito tempo quero você. Sempre esperei que estivesse pronta. Não vou deixá-la ir assim tão fácil.
— Não quero ser um monstro — digo, talvez mais por minha causa do que por ele.
— Não lute contra o que você nasceu para ser. — Ele pega meus ombros. — Pare de deixar todo mundo dizer o que é errado e certo. Reivindique! Você se encolhe quando poderia conquistar. Você tem muito mais poder do que tem ideia e, muito francamente, estou — ele sacode a cabeça — fascinado.
— Não sou sua aberração — disparo. — Não vou representar para você.
Ele aperta os braços ao redor dos meus e eu não consigo me esquivar. Ele se inclina perigosamente próximo a meu rosto e eu não sei por que, mas não consigo respirar.
— Não tenho medo de você, minha querida — diz ele calmamente. — Estou completamente encantado.
— Ou você se livra das câmeras, ou encontrarei e quebrarei cada uma delas. — Sou uma mentirosa. Estou mentindo entredentes, mas estou com raiva e desesperada e amedrontada. Warner quer me transformar em um animal que se aproveita dos fracos. Dos inocentes.
Se ele quer que eu lute do seu lado, ele terá de lutar comigo primeiro.
Um sorriso lento estende-se por seu rosto. Ele toca minha bochecha com seus dedos enluvados e, pegando meu queixo, inclina minha cabeça para cima, quando então recuo.
— Você é absolutamente deliciosa quando está com raiva.
— Uma pena que meu gosto é tóxico para você. — Estou tremendo de nojo da cabeça aos pés.
— Esse detalhe torna este jogo ainda mais fascinante.
— Você é doente, você é muito doente...
Ele ri e solta meu queixo apenas para catalogar as partes de meu corpo. Seus olhos desenham um caminho preguiçoso por sua extensão e eu sinto a súbita vontade de arrebentar seu baço.
— Se eu me livrar de suas câmeras, o que você fará para mim? — Seus olhos são mal intencionados.
— Nada.
Ele sacode a cabeça.
— Isso não funciona assim. Eu posso concordar com sua proposta se você concordar com uma condição.
Travo o maxilar.
— O que você quer?
O sorriso é maior que antes.
— É uma questão perigosa.
— Qual é a sua condição? — Esclareço, impaciente.
— Toque em mim.
— O quê? — Meu arquejo é tão ruidoso que ele me surpreende na garganta apenas para correr ao redor do quarto.
— Quero saber exatamente do que você é capaz. — Sua voz é segura, suas sobrancelhas firmes, tensas.
— Não farei isso de novo! — explodo. — Viu o que você me fez fazer a Jenkins...
— Dane-se Jenkins — cospe ele. — Quero que você toque em mim... quero sentir isso por mim mesmo...
— Não... — Estou sacudindo a cabeça tão fortemente que fico zonza. — Não. Nunca. Você é louco... não vou...
— Na verdade, vai.
— Não vou...
— Você terá de... agir... em um ponto ou outro — diz ele, esforçando-se para moderar a voz. — Mesmo que renunciasse à minha condição, você está aqui por uma razão, Juliette. Convenci meu pai de que você seria um trunfo para O Restabelecimento. Que você seria capaz de reprimir quaisquer rebeldes que nós...
— Quer dizer torturar...
— Sim. — Ele sorri. — Perdoe-me, quero dizer torturar. Você será capaz de nos ajudar a torturar qualquer um que capturemos. — Uma pausa. — Infligir dor, veja você, é um método incrivelmente eficiente de tirar informação de qualquer pessoa. E quanto a você? — Ele passa os olhos em minhas mãos. — Bem, é barato. Rápido. Eficaz. — Ele sorri mais amplamente. — E, desde que a mantenhamos viva, você será vantajosa por pelo menos algumas décadas. Temos muita sorte por você não operar à bateria.
— Seu... seu... — esbravejo.
— Você devia estar me agradecendo. Salvei você daquele hospício... trouxe-a para uma posição de poder. Dei a você tudo o que você poderia precisar para ficar confortável. — Ele aponta seu olhar para mim. — Agora preciso que você se concentre. Preciso que você abdique de suas esperanças de viver como todos os outros. Você não é normal. Você nunca foi, e nunca será. Aceite quem você é.
— Eu... — engulo — eu não sou... eu não sou... eu sou...
— Uma assassina?
— Não...
— Um instrumento de tortura?
— Pare...
— Você está mentindo para si mesma.
Estou pronta para destruí-lo.
Ele inclina a cabeça e força um sorriso.
— Você esteve no limite da insanidade sua vida inteira, não esteve? Tantas pessoas chamaram-na maluca que você de fato começou a acreditar nisso. Você se perguntava se eles estavam certos. Você se perguntava se poderia consertar isso. Você pensou que, se pudesse apenas se esforçar um pouco mais, ser um pouco melhor, mais inteligente, mais agradável... você pensou que o mundo mudaria sua opinião sobre você. Você culpou a si mesma por tudo.
Arquejo.
Meu lábio inferior treme sem minha permissão. Mal consigo controlar a tensão no rosto.
Não quero lhe dizer que ele está certo.
— Você reprimiu toda a sua raiva e ressentimento porque queria ser amada — diz ele, já sem sorrir. — Talvez eu a entenda, Juliette. Talvez você devesse confiar em mim. Talvez devesse aceitar o fato de que tentou por muito tempo ser alguém que você não é e que, não importa o que tenha feito, aqueles canalhas nunca ficaram contentes. Nunca ficaram satisfeitos. Nunca deram a mínima, deram? — Ele olha para mim e, por um momento, ele quase parece humano. Por um momento, quero acreditar nele. Por um momento, quero sentar-me no chão e chorar convulsivamente o oceano alojado em minha garganta.
— Está na hora de parar de fingir — diz ele, muito suavemente. — Juliette... — Ele segura meu rosto em suas mãos enluvadas, com inesperada delicadeza. — Você não precisa mais ser bondosa. Você pode destruir todos eles. Você pode tirá-los de cima e assumir todo este mundo e...
Uma máquina a vapor atinge-me no rosto.
— Não quero destruir ninguém — digo a ele. — Não quero ferir pessoas...
— Mas elas merecem isso! — Ele se afasta de mim, subitamente frustrado. — Como poderia não querer retaliar? Como poderia não querer revidar...
Levanto-me lentamente, tremendo subitamente de raiva, esperando que minhas pernas não desmoronassem debaixo de mim.
— Você acha que, porque sou desprezada... porque sou negligenciada e... e descartada... — Minha voz eleva-se a cada palavra, as emoções desenfreadas de repente gritando através de meus pulmões. — Você acha que não tenho um coração? Você acha que não sinto? Acha que, só porque posso infligir dor, deveria fazer isso? Você é exatamente como os demais. Acha que eu sou um monstro como os demais. Você não me entende de modo algum...
— Juliette...
— Não.
Não quero isso. Não quero a vida dele.
Não quero ser algo para ninguém senão para mim mesma. Quero fazer minhas próprias escolhas e nunca quis ser um monstro. Minhas palavras são lentas e firmes quando falo.
— Valorizo a vida humana mais do que você, Warner.
Ele abre a boca para falar antes de se deter. Aparta seus lábios em surpresa. Ri alto e balança a cabeça.
Sorri para mim.
— O quê? — pergunto antes de me deter.
— Você acabou de dizer meu nome. — Ele sorri ainda mais. — Você nunca se dirigiu diretamente a mim. Isso deve significar que estou tendo progresso com você.
— Só disse que você não...
Ele me corta.
— Não estou preocupado com seus dilemas morais. Você só está tentando ganhar tempo porque está em negação. Não se preocupe — diz ele. — Você vai superar isso. Posso esperar um pouco mais.
— Não estou em negação...
— Claro que está. Você ainda não sabe isso, Juliette, mas você é uma garota muito má — diz ele, segurando seu coração. — Exatamente o meu tipo.
Esta conversa é impossível.
— Há um soldado morando em meu quarto. — Estou respirando com dificuldade. — Se você quer que eu fique aqui, você precisa se livrar das câmeras.
Os olhos de Warner escurecem apenas por um instante.
— Onde está seu soldado, afinal?
— Como vou saber? — Peço a Deus para não corar. — Foi você que o designou para mim.
— Sim. — Ele parece pensativo. — Gosto de vê-la sofrer. Ele a deixa desconfortável, não deixa?
Penso nas mãos de Adam sobre meu corpo e seus lábios tão próximos aos meus e o cheiro de sua pele banhada em um aguaceiro vaporoso que encharca nós dois juntos e repentinamente meu coração é como dois punhos golpeando minhas costelas e exigindo fuga.
— Sim. — Deus. — Sim. Ele me deixa muito... desconfortável.
— Você sabe por que o escolhi? — pergunta Warner, e eu sou atropelada por um caminhão de carga.
Adam foi escolhido.
É claro que ele foi. Ele não era apenas um soldado qualquer enviado para minha cela. Warner não faz nada sem uma razão. Ele deve saber que Adam e eu temos uma história. Ele é mais cruel e calculista do que eu pensava.
— Não. — Aspiro. — Não sei por quê. — Expiro. Não posso me esquecer de respirar.
— Ele se ofereceu — diz Warner simplesmente, e eu estou momentaneamente abismada. — Ele disse que estudou com você há muitos anos. Ele disse que você provavelmente não se lembraria dele, que ele está muito diferente do que naquela época. Ele montou um caso muito convincente. — Um som de suspiro. — Ele disse que ficou entusiasmado ao ouvir que você tinha sido trancafiada. — Warner finalmente olha para mim.
Meus ossos são como cubos de gelo tilintando em conjunto, resfriando-me até o coração.
— Estou curioso — continua ele, inclinando a cabeça enquanto fala. — Você se lembra dele?
— Não — minto, e não tenho certeza de que estou viva. Estou tentando desenredar a verdade do falso, dos pressupostos, das postulações, mas frases longas e desconexas torcem-me a garganta.
Adam me conhecia quando entrou naquela cela.
Ele já sabia meu nome.
Ah
Ah
Ah
Foi tudo uma armadilha.
— Esta informação a deixa... zangada? — pergunta ele, e eu quero costurar seus lábios sorridentes em uma carranca permanente.
Não digo nada e de algum modo é pior.
Warner está radiante.
— Nunca disse a ele, é claro, por que você tinha sido trancafiada... achei que a experiência no hospício não devesse ser contaminada por informação extra... mas ele disse que você sempre foi uma ameaça para os alunos. Que todo mundo sempre era avisado para ficar longe de você, embora as autoridades nunca tivessem explicado o porquê. Ele disse que queria dar uma olhada mais de perto na aberração que você se tornou.
Meu coração parte. Meus olhos flamejam. Estou tão ferida tão furiosa tão chocada tão humilhada e queimando de indignação tão crua que é como um fogo enfurecendo-se dentro de mim, um incêndio de esperanças dizimadas. Quero esmagar a espinha dorsal de Warner com a minha mão. Quero que ele saiba o que é ferir, infligir uma agonia tão insuportável aos outros. Quero que ele conheça minha dor e a dor de Jenkins e a dor de Fletcher e quero que ele sofra. Porque talvez Warner esteja certo.
Talvez algumas pessoas mereçam isso.
— Tire a camisa.
Por toda sua postura, Warner parece genuinamente surpreso, mas ele não perde tempo desabotoando o casaco, removendo as luvas e tirando a camisa de algodão fino que lhe adere o mais próximo à pele.
Seus olhos são brilhantes, repugnantemente ávidos; ele não mascara sua curiosidade.
Warner deixa cair as roupas no chão e olha para mim quase íntimo. Tenho de engolir a repulsa que borbulha em minha boca. Seu rosto perfeito. Seu corpo perfeito. Seus olhos tão duros e belos quanto pérolas congeladas. Ele me causa repugnância. Quero que seu exterior corresponda ao seu interior doente e sombrio. Quero mutilar sua ousadia com a palma de minha mão.
Ele caminha até mim até que haja poucos centímetros de distância entre nós. Sua altura e seu físico fazem com que me sinta como um galho caído.
— Você está pronta? — pergunta ele, arrogante e insensato.
Contemplo a ideia de quebrar seu pescoço.
— Se eu fizer isso, você se livrará de todas as câmeras em meu quarto. Todos os microfones. Tudo.
Ele se aproxima. Curva a cabeça. Ele está fitando meus lábios, estudando-me de um modo inteiramente novo.
— Minhas promessas não valem muito, amor — sussurra ele. — Ou já se esqueceu? — Alguns centímetros para a frente. Sua mão na minha cintura. Seu hálito puro e cálido no meu pescoço. — Sou um mentiroso excepcional.
A compreensão bate em mim como duzentas pancadas de senso comum. Não deveria estar fazendo isso. Não deveria estar fazendo acordos com ele. Não deveria estar considerando a tortura. Deus, eu perdi a cabeça. Meus punhos estão cerrados ao lado do corpo e eu estou tremendo por toda parte. Mal consigo encontrar força para falar.
— Pode ir pro inferno.
Estou fraca.
Tropeço para trás contra a parede e caio em um monte de inutilidades; desespero. Penso em Adam e meu coração esvazia.
Não posso mais ficar aqui.
Corro até as portas duplas de frente ao quarto e abro-as com um puxão antes que Warner possa me deter. Em vez dele, porém, é Adam quem me detém. Ele está de pé bem do lado de fora. Esperando. Protegendo-me aonde quer que eu vá.
Pergunto-me se ele escutou tudo e meus olhos se rebaixam tristes ao chão, o rubor de meu rosto, meu coração despedaçado na mão. É claro que ele escutou tudo. É claro que ele agora sabe que sou uma assassina. Um monstro. Uma alma sem valor empalhada em um corpo venenoso.
Warner fez isso de propósito.
E estou de pé entre eles. Warner sem camisa. Adam olhando para sua arma.
— Soldado. — Warner fala. — Leve-a de volta ao quarto e desative todas as câmeras. Ela pode almoçar sozinha se quiser, mas vou esperá-la para o jantar.
Adam vacila por um momento bastante longo.
— Sim, senhor.
— Juliette?
Congelo. Estou de costas para Warner e não me viro.
— Espero que você cumpra sua parte no acordo.
22
Leva-se cinco anos para andar até o elevador. Mais 15 para subir. Tenho um milhão de anos no momento em que entro no meu quarto. Adam está imóvel, em silêncio, perfeitamente sincronizado e mecânico em seus movimentos. Não há nada em seus olhos, em seus membros, nos gestos de seu corpo, que indiquem que ele sequer sabe meu nome.
Observo-o mover-se rapidamente, ligeiramente, cuidadosamente ao redor do quarto, buscando os pequenos aparelhos que pretendiam monitorar meu comportamento e desativando-os um a um. Se alguém perguntar por que minhas câmeras não estão funcionando, Adam não entrará em apuros. Esta ordem veio de Warner. Isso a torna oficial.
Isso me torna possível ter alguma privacidade.
Pensei que precisaria de privacidade.
Sou uma tola.
Adam não é o garoto de que me lembro.
Estava na terceira série.
Acabara de me mudar para a cidade depois de ser expulsa convidada a sair da minha antiga escola. Meus pais estavam sempre se mudando, sempre fugindo das bagunças que eu fazia, das brincadeiras de criança que eu arruinava, das amizades que nunca tive. Ninguém sequer falou sobre meu “problema”, mas o mistério que envolve minha existência de algum modo piorou as coisas. A imaginação humana é muitas vezes desastrosa quando abandonada à própria sorte. Somente ouvia os fragmentos de seus sussurros.
— Aberração!
— Você ouviu o que ela fez...?
— Que perdedora.
— ... foi expulsa de sua antiga escola...
— Psicopata!
— Ela pegou algum tipo de doença...
Ninguém falava comigo. Todo mundo encarava. Era jovem o bastante para ainda chorar. Almoçava isolada por uma cerca de tela de arames e nunca olhava no espelho. Nunca quis ver o rosto que todo mundo tanto odiava. As meninas costumavam me chutar e fugir. Os garotos costumavam jogar pedras em mim. Ainda tenho cicatrizes em alguns lugares.
Assistia ao mundo passar através daquelas cercas de tela de arames. Fitava os carros e os pais deixando seus filhos e os momentos dos quais nunca faria parte. Isso foi antes de as doenças se tornarem tão comuns e a morte ser parte natural das conversas. Isso foi antes de percebermos que as nuvens estavam na cor errada, antes de percebermos que todos os animais estavam morrendo ou infectados, antes de percebermos que todo mundo ia morrer de fome, e rápido. Isso foi na época em que ainda pensávamos que nossos problemas tinham solução. Naqueles tempos, Adam era o garoto que costumava ir a pé para a escola. Adam era o garoto que se sentava a três fileiras de mim. Suas roupas eram piores que as minhas, seu almoço, inexistente. Nunca o vi comer.
Certa manhã, ele chegou à escola em um carro.
Sei porque o vi sendo empurrado para fora dele. Seu pai estava bêbado e dirigindo, gritando e agitando as mãos por algum motivo. Adam permaneceu imóvel e encarou o chão como à espera de algo, preparando-se para o inevitável. Observei um pai esbofetear seu filho de oito anos na cara. Observei Adam cair no chão e ficar lá, imóvel, enquanto era chutado repetidamente nas costelas.
— É tudo culpa sua! É culpa sua, seu merda imprestável — gritou seu pai uma vez, outra, e mais outra vez, até que vomitei ali mesmo.
Adam não chorou. Ele ficou enrolado no chão até que seu pai desistiu, até que ele foi embora. Somente quando teve certeza de que todo mundo tinha ido embora, ele fez seu corpo romper em soluços arfantes, seu pequeno rosto manchado na sujeira, seus braços segurando o abdome machucado. Não consegui tirar os olhos.
Jamais consegui tirar aquele som da cabeça, aquela cena da cabeça.
Foi quando comecei a prestar atenção em Adam Kent.
— Juliette.
Engulo a respiração e queria que minhas mãos não estivessem tremendo. Queria não ter olhos.
— Juliette — diz ele novamente, desta vez ainda mais suave e meu corpo está em um liquidificador e eu sou feita de mingau. Meus ossos estão cobiçando cobiçando cobiçando seu calor.
Não vou me virar.
— Você sempre soube quem eu era — sussurro.
Ele não diz nada e fico subitamente desesperada por ver seus olhos. Subitamente preciso ver seus olhos. Viro-me para vê-lo de frente apesar de tudo, somente para ver que ele está encarando minhas mãos.
— Lamento — é tudo o que ele diz.
Recosto-me contra a parede e fecho as pálpebras. Tudo era uma encenação. Roubar minha cama. Perguntar meu nome. Perguntar sobre minha família. Ele estava encenando para Warner. Para os guardas. Para quem quer que estivesse assistindo. Nem mesmo sei mais no que acreditar.
Preciso dizer isso. Preciso botar isso para fora. Preciso abrir minhas feridas e sangrar para ele.
— É verdade — digo a ele. — Sobre o garotinho. — Minha voz está tremendo muito mais do que pensei que fosse. — Eu fiz aquilo.
Ele fica calado por muito tempo.
— Nunca entendi. Na primeira vez em que escutei sobre isso. Não compreendia até agora o que tinha acontecido.
— O quê? — Nunca soube que eu pudesse piscar tanto.
— Isso nunca fez sentido para mim — diz ele, e cada palavra chuta-me nas vísceras. Ele levanta os olhos e parece mais angustiado que já quis que ele estivesse. — Quando escutei sobre isso. Todos nós escutamos sobre isso. A escola toda...
— Foi um acidente — digo a duras penas, cuidando para não desmoronar. — Ele... E-le caiu... e eu estava tentando ajudá-lo... e eu só... eu não... eu pensei...
— Eu sei.
— O quê? — Solto um arquejo tão alto que é como ter engolido o quarto inteiro em uma só respiração.
— Acredito em você — diz ele para mim.
— O quê... por quê? — Meus olhos estão piscando para conter as lágrimas, minhas mãos, hesitantes, meu coração, cheio de esperança nervosa.
Ele morde o lábio inferior. Desvia o olhar. Caminha até a parede. Abre e fecha a boca várias vezes antes de as palavras irromperem.
— Porque conheci você, Juliette... eu... Deus... eu só... — Ele cobre a boca com a mão, pousa os dedos no pescoço. Coça a testa, fecha os olhos, aperta os lábios. Força-os a abrir.
— Era o dia em que eu ia falar com você. — Um estranho tipo de sorriso. Um estranho tipo de risada. Ele passa a mão pelos cabelos. Ergue os olhos para o teto. Dá as costas para mim. — Finalmente estava indo falar com você. Finalmente estava indo falar com você e eu... — Ele sacode a cabeça, insistentemente, e tenta outra risada penosa. — Deus, você não se lembra de mim.
Centenas de milhares de segundos passam e eu não consigo parar de morrer.
Quero rir e chorar e gritar e correr e não consigo escolher qual fazer primeiro.
Confesso.
— Claro que me lembro de você. — Minha voz é um sussurro estrangulado. Fecho os olhos. Lembro-me de você todos os dias, eternamente em cada simples momento de minha vida. Você foi o único que olhou para mim como um ser humano.
Ele nunca falou comigo. Ele nunca falou uma só palavra para mim, mas ele foi o único que ousou se sentar perto de minha cerca. Ele foi único que sempre me apoiou, a única pessoa que brigava por mim, o único que esmurrara alguém no rosto por ter jogado uma pedra na minha cabeça. Nem mesmo sei como agradecer.
Ele foi a coisa mais próxima de um amigo que já tive.
Abro os olhos e ele está de pé bem na minha frente. Meu coração é um campo de lírios que florescem sob um painel de vidro, tamborilando à vida tal como na precipitação de gotas de chuva. Seu maxilar está tão rígido quanto seus olhos tão rígidos quanto seus punhos tão rígidos quanto a tensão de seus braços.
— Você sempre soube? — Três palavras sussurradas e ele quebrou minha represa, arrombou meus lábios e roubou meu coração mais uma vez. Mal consigo sentir as lágrimas escorrendo pelo meu rosto.
— Adam. — Tento rir e meus lábios erram em um soluço abafado. — Reconheceria seus olhos em qualquer lugar do mundo.
E é isso.
Desta vez não há autocontrole.
Desta vez estou em seus braços e contra a parede e estou tremendo por toda parte e ele é tão gentil, tão cuidadoso, tocando-me como se eu fosse feita de porcelana e eu quero me estilhaçar.
Ele está passando as mãos pelo meu corpo, passando os olhos em meu rosto, dando voltas com seu coração e eu estou correndo maratonas com minha mente.
Tudo está pegando fogo. Minhas bochechas minhas mãos o buraco de meu estômago e eu estou afogando-me em ondas de emoção e uma tempestade de chuva fresca e tudo o que sinto é a força de sua silhueta contra a minha e eu nunca jamais jamais jamais quero esquecer este momento. Quero estampá-lo em minha pele e guardá-lo para sempre.
Ele toma minha mão e a aperta em seu rosto e eu sei que eu nunca entendi a beleza do sentimento humano antes disso. Sei que ainda estou chorando quando meus olhos tremulam cerrados.
Sussurro seu nome.
E ele está respirando mais forte do que eu e de repente seus lábios estão no meu pescoço e estou arfando e morrendo e agarrando-me em seus braços e ele está me tocando me tocando me tocando e eu sou trovão e relâmpago e estou me perguntando quando vou acordar.
Uma, duas, uma centena de vezes seus lábios provam da minha nuca e eu me pergunto se é possível morrer de euforia. Ele encontra meus olhos apenas para tomar meu rosto com as mãos em concha e eu estou corando de prazer e dor e impossibilidade através destas paredes.
— Há tanto tempo quero beijá-la. — Sua voz é rouca, irregular, profunda em meu ouvido.
Estou congelada por antecipação pela expectativa e estou tão preocupada com o fato de que ele vai me beijar, tão preocupada com o fato de que ele não vai. Estou fitando seus lábios e não percebo quão próximos estamos até nos separarmos.
Três nítidos gritos eletrônicos reverberam por todo o quarto e Adam olha por cima de mim como se por um momento não soubesse onde está. Ele pisca. E corre em direção a um interfone para apertar os botões. Reparo que ele ainda está respirando com dificuldade.
Estou tremendo.
— Nome e número — pede a voz do interfone.
— Kent, Adam. 45B-86659.
Uma pausa.
— Soldado, você está ciente de que as câmeras em seu quarto foram desativadas?
— Sim, senhor. Tive ordens diretas para desmontar os aparelhos.
— Quem autorizou esta ordem?
— Warner, senhor.
Uma pausa mais longa.
— Vamos verificar e confirmar. Mexer sem autorização em aparelhos de segurança pode resultar em dispensa imediata e desonrosa, soldado. Espero que esteja ciente disso.
— Sim, senhor.
A linha fica em silêncio.
Adam desaba contra a parede, seu peito arfando. Não tenho certeza, mas poderia jurar que seus lábios se contorciam no menor dos sorrisos. Ele fecha os olhos e expira.
Não tenho certeza do que fazer com o alívio caindo em minhas mãos.
— Venha cá — diz ele, seus olhos ainda fechados.
Avanço na ponta dos pés e ele me puxa para seus braços. Inala o perfume de meus cabelos e beija minha cabeça. Nunca senti algo tão incrível na minha vida. Nem mais sou humana. Sou muito mais. O Sol e a Lua fundiram-se e a Terra virou de cabeça para baixo. Sinto que posso ser exatamente quem eu quero ser em seus braços.
Ele me faz esquecer o terror de que sou capaz.
— Juliette — sussurra em meu ouvido. — Precisamos dar o fora daqui.
23
Tenho novamente 14 anos e estou fitando sua nuca em uma pequena sala de aula. Tenho 14 anos de idade e há anos sou apaixonada por Adam Kent. Tento ser ainda mais cuidadosa, de ser ainda mais calada, de ser ainda mais prestativa, pois não queria me mudar novamente. Não queria deixar a escola com o único rosto amigável que já conheci. Eu o vi crescer um pouco a cada dia, ficar maior a cada dia, um pouco mais forte, um pouco mais rígido, um pouco mais calado a cada dia. Ele, no final das contas, ficou grande demais para ser espancado por seu pai, mas ninguém realmente sabia o que acontecera com sua mãe. Os alunos o evitavam, o molestavam, até que ele começou a não deixar por menos, até a pressão do mundo finalmente o enlouquecer.
Mas seus olhos sempre permaneceram os mesmos.
Sempre os mesmos quando ele olhava para mim. Bondosos. Compassivos. Desesperados por compreensão. Mas ele nunca fazia perguntas. Ele nunca me puxou para dizer uma palavra. Ele apenas se certificava de que estava próximo o bastante para espantar todo mundo.
Eu pensava que talvez não fosse tão má. Talvez.
Eu pensava que talvez ele visse algo em mim. Eu pensava que talvez eu não fosse tão horrível quanto todo mundo dizia que eu era. Fazia anos que eu não tocava em ninguém. Não me atrevia a aproximar-me das pessoas. Não poderia arriscar.
Até que um dia me aproximei e arruinei tudo.
Matei um garotinho em um supermercado simplesmente por ajudá-lo a ficar de pé. Por agarrar suas mãozinhas. Não entendia por que ele estava chorando. Era minha primeira experiência em tocar alguém por um período tão longo e eu não entendia o que estava acontecendo comigo. As poucas vezes em que acidentalmente colocara as mãos em alguém eu sempre me afastara. Afastava-me quando me lembrava de que eu não deveria tocar qualquer um. Assim que escutava o primeiro grito escapar de seus lábios.
O garotinho foi diferente.
Queria ajudá-lo. Senti um surto repentino de raiva por sua mãe negligenciar seus gritos. Sua falta de compaixão como mãe me devastou e isso me fez recordar demais minha própria mãe. Só queria ajudá-lo. Queria que ele soubesse que alguém estava ouvindo... que alguém se importava. Não entendia por que era tão estranho e estimulante tocá-lo. Não sabia que eu estava drenando sua vida e não poderia compreender por que ele se tornara mole e calado em meus braços. Pensei que a carga de poder e o sentimento positivo talvez significassem que eu tivesse sido curada da minha horrível doença. Pensei tantas coisas estúpidas e arruinei tudo.
Pensei que estava ajudando.
Passei os três anos seguintes de minha vida em hospitais, escritórios de advocacia, centros de detenção juvenil e sofri com comprimidos e terapia de eletrochoque. Nada funcionava. Nada ajudava. Fora me matar, trancafiar-me em uma instituição era a única solução. O único jeito de proteger o povo do terror de Juliette.
Até entrar na minha cela, fazia três anos que não via Adam Kent.
E ele parece diferente. Mais rígido, maior, mais vigoroso, mais astuto, tatuado. Ele é musculoso, maduro, sereno e rápido. É quase como se ele não pudesse se permitir ser frágil ou vagaroso ou descontraído. Como se não pudesse ser qualquer coisa senão musculoso, qualquer coisa senão força e eficiência. As linhas de seu rosto são suaves, precisas, esculpidas por anos de vida dura e treinamento e na tentativa de sobreviver.
Ele não é mais um menino. Ele não está com medo. Ele está no exército.
Mas ele também não está tão diferente. Ele ainda tem os olhos mais extraordinariamente azuis que já vi. Sombrios e profundos e saturados de paixão. Sempre me perguntava como seria ver o mundo através de lentes tão belas. Perguntava-me se a cor do olho era indício de que a pessoa enxergava o mundo de maneira diferente. Se o mundo, como resultado, enxergava a pessoa de maneira diferente também.
Eu devia saber que era ele quando apareceu na minha cela.
Uma parte de mim sabia. Mas tentara com tanto esforço reprimir as lembranças de meu passado que recusei acreditar que isso seria possível. Porque uma parte de mim não queria lembrar. Uma parte de mim estava assustada demais para ter esperanças. Uma parte de mim não sabia se faria alguma diferença saber que era ele, apesar de tudo.
Muitas vezes me pergunto qual seria minha aparência.
Pergunto-me se sou apenas uma sombra perfurada da pessoa que eu era antes. Não me olho no espelho faz três anos. Fico assustada demais com o que vou encontrar.
Alguém bate à porta.
Sou catapultada ao outro lado do quarto à força de meu próprio medo. Adam fecha os olhos comigo antes de abrir a porta e eu decido escapar para um canto distante do quarto.
Aguço meus ouvidos apenas para escutar sussurros, vozes abafadas, e alguém limpando a garganta. Não estou certa do que fazer.
— Descerei em um minuto — diz Adam em voz um pouco alta. Percebo que ele está tentando dar fim à conversa.
— Qual é, cara, só quero vê-la...
— Ela não é um maldito espetáculo, Kenji. Dê o fora daqui.
— Pera... só me fala: ela lança chamas com os olhos? — Kenji ri e eu me encolho, caindo no chão debaixo da cama. Enrolo-me toda e tento não escutar o restante da conversa.
Falho.
Adam suspira. Posso imaginá-lo coçando a testa.
— Só dê o fora.
Kenji tenta abafar seu riso.
— Caramba, ficou sensível de repente, né? Passar o tempo com uma garota está mudando você, cara...
Adam diz algo que não consigo ouvir.
A porta se fecha com uma batida.
Espio do meu esconderijo. Adam parece constrangido.
Minhas bochechas enrubescem. Estudo os intrincados fios do tapete finamente tecido que está sob meus pés. Toco o tecido que reveste a parede e aguardo que Adam fale. Levanto-me para olhar para fora do quadradinho de uma janela apenas para ser recebida pelo cenário desolador de uma cidade arruinada. Encosto minha testa no vidro.
Cubos de metal estão agrupados a distância: aglomerados de habitação civil envoltos em múltiplas camadas, buscando refúgio contra o frio. Uma mãe segurando a mão de uma criança pequena. Soldados de olho neles, imóveis como estátuas, rifles posicionados e prontos a atirar. Montes e montes e montes de lixo, perigosas sucatas de ferro e aço cintilando no chão. Árvores solitárias tremulando ao vento.
As mãos de Adam deslizam ao redor da minha cintura.
Seus lábios estão no meu ouvido e ele não diz absolutamente nada, mas eu derreto até ser um punhado de manteiga quente pingando de sua mão. Quero devorar cada minuto deste momento.
Permito que meus olhos se fechem à verdade do lado de fora de minha janela. Só por pouco tempo.
Adam respira fundo e me puxa para ainda mais perto. Estou moldada à forma de sua silhueta; suas mãos estão circundando minha cintura e seu rosto está apertado contra minha cabeça.
— Seu toque é incrível.
Tento rir, mas pareço ter esquecido como.
— São palavras que nunca pensei que escutaria.
Adam me gira, de modo que estou de frente para ele e de repente estou olhando e não olhando para seu rosto, sou lambida por um milhão de labaredas e engolindo mais um milhão. Ele está me fitando como se nunca tivesse me visto antes. Quero banhar minha alma no azul insondável de seus olhos.
Ele se inclina até sua testa repousar sobre a minha e nossos lábios ainda não estão próximos o bastante. Ele sussurra: — Como você está? — e eu quero beijar cada belo batimento de seu coração.
“Como você está?” — Três palavras que ninguém jamais me pergunta.
— Quero dar o fora daqui — é tudo em que consigo pensar.
Ele me aperta contra seu peito e eu fico maravilhada com o poder, a glória, o milagre em um movimento tão simples. Ele parece um bloco de força, 1,80 metro de altura.
Minha barriga se torna uma placa de gelo.
— Juliette.
Inclino-me para trás, de modo a ver seu rosto.
— Você está falando sério sobre ir embora? — ele me pergunta. Seus dedos roçam meu rosto. Ele enfia uma trança desgarrada de cabelo atrás de minha orelha. — Você compreende os riscos?
Respiro fundo. Sei que o único risco real é a morte.
— Sim.
Ele assente com a cabeça. Baixa os olhos, a voz.
— As tropas estão se mobilizando para algum tipo de ataque. Houve muitos protestos de grupos que antes se mantinham em silêncio, e nosso trabalho é destruir a resistência. Penso que eles queiram que este ataque seja o último — acrescenta ele, calmamente. — Tem alguma coisa grande acontecendo, e não estou certo do que seja, não ainda. Mas, seja o que for, temos de estar prontos para ir quando eles estiverem.
Congelo.
— O que quer dizer?
— Quando as tropas estiverem prontas para combater, você e eu devemos estar prontos para fugir. É o único modo de termos tempo para desaparecer. Todos estarão focados no ataque... isso nos dará tempo antes de repararem que estamos desaparecidos ou poderem reunir gente o bastante para procurar por nós.
— Mas... quer dizer... você virá comigo...? Você estaria disposto a fazer isso por mim?
Ele sorri um sorriso miúdo. Divertido. Seus lábios se contorcem como se ele tentasse não rir. Seus olhos se abrandam conforme estudam os meus.
— Há muito pouco que eu não faria por você.
Respiro fundo e fecho os olhos, tocando meus dedos em seu peito, imaginando o pássaro levantando voo através de sua pele, e eu faço a ele a única pergunta que me assusta mais:
— Por quê?
— Como assim? — Ele recua.
— Por que, Adam? Por que você se importa? Por que você quer me ajudar? Não compreendo... não sei por que você estaria disposto a arriscar sua vida...
Mas então seus braços estão em volta de minha cintura e ele está me puxando para mais perto e seus lábios estão no meu ouvido e ele diz meu nome, uma, duas vezes e eu não fazia ideia de que podia pegar fogo tão rapidamente. Sua boca está sorrindo contra minha pele.
— Você não?
Eu não sei nada, é o que eu diria a ele se eu tivesse a menor ideia de como falar.
Ele ri um pouco e recua. Toma minha mão e a examina.
— Lembra-se na quarta série — diz ele — quando Molly Carter se inscreveu tarde demais para a viagem de campo da escola? Todos os lugares foram preenchidos, e ela ficou do lado de fora do ônibus, chorando porque queria ir?
Ele não espera por mim para responder.
— Lembro que você desceu do ônibus. Você ofereceu seu assento para ela e ela nem sequer disse obrigado. Observei você em pé na calçada enquanto nos afastávamos.
Não estou mais respirando.
— Lembra-se na quinta série? Aquela semana em que os pais de Dana quase se divorciaram? Ela chegou sem o lanche todos os dias à escola. E você ofereceu o seu para ela. — Ele faz uma pausa. — Assim que aquela semana acabou, ela voltou a fingir que você não existia.
Ainda não estou respirando.
— Na sétima série, Shelly Morrison foi pega colando na prova de matemática. Ela ficou gritando que, se reprovasse, seu pai a mataria. Você disse para a professora que era você que estava colando da prova dela. Você ganhou um zero no exame e retenção durante uma semana. — Ele levanta a cabeça, mas não olha para mim. — Você ficou com machucados nos braços durante pelo menos um mês depois disso. Sempre me perguntei de onde eles vieram.
Meu coração está batendo rápido demais. Perigosamente rápido. Aperto meus dedos para evitar que tremam. Travo a mandíbula e apago a emoção de meu rosto, mas não consigo diminuir a vibração em meu peito, não importa o quanto tente.
— Um milhão de vezes — diz ele, sua voz agora tão serena. — Vi você fazer coisas como essas um milhão de vezes. Mas você nunca dizia uma palavra a menos que fosse forçada. — Ele ri novamente, desta vez uma espécie de risada dura, pesada. Ele está fitando um ponto para além de meu ombro. — Você nunca pediu nada a ninguém. — Ele finalmente encontra meus olhos. — Mas ninguém nunca lhe deu uma chance.
Engulo em seco, tento desviar o olhar, mas ele pega meu rosto.
Ele sussurra:
— Você não faz ideia do quanto pensei em você. De quantas vezes sonhei — ele respira com firmeza —, de quantas vezes sonhei em estar tão perto de você. — Ele se move para passar uma mão pelos cabelos, antes de mudar de ideia. Baixa os olhos. Ergue os olhos. — Céus, Juliette, eu a seguiria para qualquer lugar. Você é a única coisa boa que sobrou neste mundo.
Estou implorando a mim mesma para não romper em lágrimas e não sei se isso está funcionando. Estou toda quebrada e colada de volta e ruborizando por toda parte e mal consigo encontrar forças para encará-lo.
Seus dedos encontram meu queixo. Inclina-me para cima.
— Temos três semanas no máximo — diz ele, muito suavemente. — Não acho que eles possam controlar as multidões por muito mais tempo.
Faço que sim com a cabeça. Pisco os olhos. Descanso meu rosto contra seu peito e finjo que não estou chorando.
Três semanas.
24
Duas semanas se passam.
Duas semanas de vestidos e banhos e comida que quero jogar longe. Duas semanas de Warner sorrindo e tocando em minha cintura, rindo e guiando-me com seus dedos sobre meus quadris, certificando-se de que estou impecável enquanto caminho ao seu lado. Ele pensa que sou seu troféu. Sua arma secreta.
Tenho de conter o desejo de quebrar seus dedos no concreto.
No entanto, ofereço-lhe duas semanas de cooperação, uma vez que, em uma semana, nós teremos partido.
Tenho esperança disso.
Mas então, mais que qualquer outra coisa, descobri que não odeio Warner tanto quanto pensava que odiava.
Lamento por ele.
Ele encontra um estranho tipo de conforto em minha companhia; ele acha que posso me relacionar com ele e suas noções distorcidas, sua educação cruel, seu pai ausente e ao mesmo tempo exigente.
Mas ele nunca diz uma palavra sobre sua mãe.
Adam diz que ninguém sabe nada sobre a mãe de Warner... que nunca se discutiu sobre ela e que ninguém faz ideia de quem ela seja. Ele diz que só se sabe que Warner é consequência de uma criação implacável, e de um desejo frio e calculado de poder. Ele odeia crianças felizes e pais felizes e suas vidas felizes.
Acho que Warner pensa que eu entendo. Que eu o entendo.
E eu entendo. E não entendo.
Porque não somos os mesmos.
Quero ser melhor.
Adam e eu temos pouco tempo juntos fora a noite. E, mesmo assim, não é muito. Warner me observa mais perto a cada dia; desativar as câmeras apenas o tornou mais desconfiado. Ele sempre entra de modo inesperado no meu quarto, levando-me a passeios desnecessários pelo edifício, falando sobre nada senão sobre seus planos e seus planos de fazer mais planos e de como juntos conquistaremos o mundo. Não finjo me interessar.
Talvez seja eu quem esteja piorando as coisas.
— Não acredito que Warner concordou mesmo em dar um fim às câmeras — disse-me Adam uma noite.
— Ele é louco. Não é racional. Ele é doente de um modo que nunca vou entender.
Adam suspirou.
— Ele é obcecado por você.
— O quê? — Quase quebro meu pescoço na surpresa.
— Ele só fala em você. — Adam fica em silêncio por um momento, seu maxilar bem apertado. — Ouvia histórias sobre você antes mesmo de você chegar aqui. Foi por isso que me envolvi... por isso me ofereci para ir pegá-la. Warner passou meses coletando informações sobre você: endereços, prontuários médicos, histórias pessoais, relações familiares, certificados de nascimento, testes de sangue. O exército inteiro falava sobre seu novo projeto; todos sabiam que ele estava procurando uma garota que tinha matado um garotinho em um supermercado. Uma garota chamada Juliette.
Prendo a respiração.
Adam sacode a cabeça.
— Sabia que era você. Tinha que ser. Perguntei a Warner se podia ajudar em seu projeto... disse a ele que tinha estudado com você, que tinha escutado sobre o garotinho, que a tinha visto em pessoa. — Ele riu um riso duro. — Warner ficou entusiasmado. Ele achou que isso tornaria o experimento mais interessante — acrescentou ele, revoltado. — E eu sabia que, se ele quisesse reivindicá-la como uma espécie de projeto doentio... — Ele hesitou. Desviou o olhar. Passou a mão pelo cabelo. — Só sabia que tinha de fazer alguma coisa. Pensei que pudesse tentar ajudar. Mas agora o negócio ficou pior. Warner não para de falar sobre do que você é capaz ou o quanto você é valiosa para seus esforços e o quanto ele está animado por ter você aqui. Todos estão começando a reparar. Warner é implacável... ele não tem misericórdia por ninguém. Ele ama o poder, a emoção de destruir pessoas. Mas ele está começando a rachar, Juliette. Ele está muito desesperado para que você... se junte a ele. E, apesar de todas as suas ameaças, ele não quer forçá-la. Ele quer que você o queira. Escolha-o, de certo modo. — Ele olha para o chão, respira firme. — Ele está perdendo sua superioridade. E, sempre que vejo seu rosto, fico a alguns passos de fazer alguma estupidez. Adoraria quebrar sua cara.
Sim. Warner está perdendo sua superioridade.
Ele está paranoico, embora por uma boa razão. Mas depois ele é paciente e impaciente comigo. Excitado e nervoso o tempo todo. Ele é um paradoxo ambulante.
Ele desativa minhas câmeras, mas em algumas noites ele ordena que Adam durma do lado de fora do quarto para certificar-se de que eu não escape. Ele diz que posso almoçar sozinha, mas sempre acaba me chamando para comer do seu lado. As poucas horas que Adam e eu teríamos juntos são roubadas de nós, mas as noites ainda menos corriqueiras em que Adam tem permissão para dormir dentro de meu quarto eu consigo passar aconchegada em seus braços.
Nós dois agora dormimos no chão, enrolados um no outro para nos aquecer, mesmo com o cobertor sobre nossos corpos. Todo momento que ele toca em mim é como uma explosão de fogo e eletricidade que incendeia meus ossos do jeito mais incrível. É o tipo de sentimento que eu gostaria de poder segurar na mão.
Adam me faz novas revelações, boatos que ele escutou de outros soldados. Ele me conta que são vários os centros de comando no que restou do país. Que o pai de Warner está no Capitólio, que ele deixou seu filho encarregado do setor inteiro. Ele diz que Warner odeia o pai, mas ama o poder. A destruição. A devastação. Ele acaricia meus cabelos e conta-me histórias e achega-me como tivesse medo que eu desaparecesse. Ele pinta o retrato de pessoas e lugares até que eu adormeça, até que esteja mergulhando em uma droga de sonhos para escapar de um mundo sem refúgio, sem alívio, sem liberdade senão em suas palavras que me restauram a confiança ao pé do ouvido. O sono é a única coisa pela qual estou ansiosa por esses dias. Mal consigo lembrar por que costumava gritar.
As coisas estão ficando cômodas demais e estou começando a entrar em pânico.
— Vista este — diz Warner para mim.
Café da manhã no quarto azul tornou-se rotina. Eu como e não pergunto de onde a comida vem, se os empregados estão sendo pagos pelo que fazem ou não, como este edifício consegue sustentar tantas vidas, bombear tanta água, ou usar tanta eletricidade. Agora espero minha hora. Coopero.
Warner não me pediu para tocá-lo novamente, e eu não me ofereço.
— Para que servem? — Vejo pequenos pedaços de pano em suas mãos e sinto uma pontada nervosa na barriga.
Ele sorri um sorriso lento e furtivo. — Um teste de aptidão. — Ele agarra meu pulso e coloca a trouxa em minha mão. — Vou me virar, só desta vez.
Quase fico nervosa demais até para sentir nojo dele.
Minhas mãos tremem enquanto visto a roupa que se releva ser um top minúsculo e shorts ainda mais curtos. Estou praticamente nua. Estou praticamente tendo convulsões pelo medo do que isso possa significar. Limpo a garganta e Warner dá meia-volta.
Ele demora muito tempo para falar; seus olhos estão ocupados viajando pelo mapa de meu corpo. Quero rasgar o tapete e costurá-lo em minha pele. Ele sorri e estende sua mão.
Sou granito e calcário e vidro de mármore. Não me movo.
Ele baixa a mão. Ele inclina a cabeça.
— Acompanhe-me.
Warner abre a porta. Adam está em pé do lado de fora. Ele ficou tão bom em mascarar suas emoções que eu mal registro a aparência de choque que aparece e desaparece de suas feições. Nada exceto a deformação em sua testa, bem como a tensão em suas têmporas, o trai. Ele sabe que algo não está certo. Ele na verdade vira o pescoço para assimilar minha aparência. Ele pisca os olhos.
— Senhor?
— Fique aqui, soldado. Assumo daqui.
Adam não responde não responde não responde...
— Sim, senhor — diz ele, sua voz subitamente rouca.
Sinto seus olhos sobre mim quando dobro o corredor.
Warner me leva para algum lugar novo. Estamos caminhando por corredores que nunca vi, mais escuros, mais frios e mais estreitos à medida que avançamos. Percebo que estamos descendo.
Para um porão.
Passamos uma, duas, quatro portas de metal. Soldados por todos os lados, seus olhos por todos os lados, apreciando-me ao mesmo tempo com medo e com alguma coisa a mais que prefiro não levar em conta. Reparei que há pouquíssimas mulheres neste edifício.
Se existe um lugar onde devo ser grata por ser intocável é este aqui.
É a única razão para eu ter segurança contra os olhos predadores de centenas de homens solitários. É a única razão para Adam permanecer comigo... porque Warner pensa que Adam é um boneco de papelão e regurgitações de baunilha. Ele pensa que Adam é uma máquina oleada por ordens e exigências. Ele pensa que Adam é uma recordação do meu passado, e ele usa isso para me deixar desconfortável. Ele nunca imaginaria que Adam pudesse colocar um dedo sobre mim.
Ninguém colocaria. Todos que encontro estão completamente petrificados.
A escuridão é como uma lona negra perfurada por uma faca cega, com feixes de luz espreitando pelos furos. Isso me faz recordar bastante da minha antiga cela. Minha pele enruga-se de medo incontrolável.
Estou cercada por armas.
— Entre — diz Warner. Sou empurrada para uma sala vazia com ligeiro cheiro de mofo. Alguém liga o interruptor e luzes fluorescentes acendem-se trêmulas para revelar paredes de amarelo pálido e tapete da cor de grama morta. A porta fecha atrás de mim com uma pancada.
Não há nada senão teias de aranha e um enorme espelho neste quarto. O espelho é da metade do tamanho da parede. Instintivamente sei que Warner e seus cúmplices devem estar me observando. Só não sei por quê.
Há segredos por todos os lugares.
Não há respostas em lugar nenhum.
Tinidos/estalos/rangidos e movimentos mecânicos sacodem o espaço em que me coloco. O chão treme à vida. O teto estremece com a promessa de caos. Pregos de metal de repente estão por todos os lugares, espalhados pelo quarto, perfurando toda e qualquer superfície em todos os diferentes níveis. A cada poucos segundos, eles desaparecem, apenas para reaparecerem com um repentino abalo de terror, cortando o ar como agulhas.
Percebo que estou em uma câmara de tortura.
Ruídos e o feedback de alto-falantes mais antigos que meu agonizante coração crepitam à vida. Sou um cavalo de corrida galopando rumo a uma falsa linha de chegada, arfando para que algum outro ganhe.
— Você está pronta? — A voz amplificada de Warner ecoa pela sala.
— Para o que deveria estar pronta? — Grito no espaço vazio, certa de que alguém pode me ouvir. Estou calma. Estou calma. Estou calma. Estou paralisada.
— Tínhamos um acordo, lembra-se? — responde.
— O que...
— Desativei suas câmeras. Agora é sua vez de cumprir sua parte no acordo.
— Não tocarei em você! — berro, girando em torno de meu eixo, apavorada, horrorizada, preocupada com que pudesse desmaiar a qualquer momento.
— Está bem — diz ele. — Estou enviando outro em meu lugar.
A porta guincha ao se abrir e um bebê anda em passos curtos e bambos, vestindo apenas uma fralda. Ele está vendado e soluçando, tremendo de medo.
Um prego estoura minha existência inteira e a transforma em nada.
— Se você não o salvar — as palavras de Warner crepitam pela sala —, nós também não vamos.
Esta criança.
Ele deve ter uma mãe um pai alguém que o ama esta criança esta criança esta criança cambaleando avante no terror. Ele poderia ser atravessado por uma estalactite de metal a qualquer segundo.
Salvá-lo é simples: preciso pegá-lo, encontrar um lugar seguro no chão e segurá-lo em meus braços até que o experimento esteja acabado.
Só existe um problema.
Se eu tocar nele, ele pode morrer.
25
Warner sabe que eu não tenho escolha. Ele quer me forçar a outra situação em que possa ver o impacto de minhas habilidades, e ele não se importa de torturar uma criança inocente para conseguir exatamente o que quer.
Neste momento eu não tenho opção.
Tenho de arriscar, antes que este garotinho avance na direção errada.
Rapidamente memorizo o tanto quanto consigo das armadilhas e desvio/salto/por pouco escapo dos pregos, até que estou o mais perto possível.
Respiro fundo, vacilante, e concentro-me nos membros trêmulos do menino na minha frente e peço a Deus para estar tomando a decisão certa. Estou prestes a tirar minha blusa para usá-la como barreira entre nós, quando percebo a leve vibração no chão. O tremor que precede o terror. Sei que tenho metade de um segundo antes de os pregos cortarem o ar e ainda menos tempo para reagir.
Puxo-o para os meus braços.
Seus gritos penetram-me como se eu estivesse sendo morta a tiros, uma bala a cada segundo. Ele está arranhando meus braços, meu peito, chutando meu corpo tão forte quanto pode, gritando de agonia, até que a dor o paralisa. Ele fica fraco em meus braços e eu estou sendo rasgada em pedaços, meus olhos, meus ossos, minhas veias, tudo saindo do lugar, tudo se virando contra mim para me torturar com memórias de horrores pelos quais sou responsável.
Dor e poder estão vazando através de seu corpo para o meu, produzindo um abalo tão intenso ao atravessar seus membros e ir de encontro a mim que quase o derrubo. É como reviver um pesadelo que passei três anos tentando esquecer.
— Absolutamente incrível — suspira Warner pelos alto-falantes, e eu percebo que ele estava certo. Ele deve estar assistindo a tudo através de um espelho bilateral. — Brilhante, amor. Estou completamente impressionado.
Estou desesperada demais para me concentrar em Warner neste momento. Não faço ideia de quanto tempo este jogo doentio vai durar, e eu preciso diminuir a quantidade de pele a que estou expondo o corpo deste garotinho.
Meus trajes minúsculos fazem muito sentido agora.
Reacomodo-o em meus braços e consigo agarrar a sua fralda. Estou sustentando-o com a palma de minha mão. Estou desesperada por acreditar que eu não pude tê-lo tocado tempo suficiente para causar-lhe lesões graves.
Ele soluça uma vez; seu corpo vibra de volta à vida.
Poderia chorar de felicidade.
Mas então os gritos recomeçam, não mais gritos de tortura, mas de medo. Ele está desesperado por escapar de mim e eu estou perdendo a força nos braços, meu pulso quase se quebrando por causa do esforço. Não me arrisco em remover sua venda. Prefiro morrer a permitir que ele veja este espaço, que ele veja meu rosto.
Aperto meu maxilar tão rápido que temo quebrar meus dentes. Se eu colocá-lo no chão, ele começará a correr. E, se começar a correr, ele está acabado. Tenho de continuar segurando-o.
O ronco de uma máquina velha ressuscita meu coração. Os pregos ressurgem no chão, um a um, até que todos desaparecem. É tão depressa que a sala volta a ser inofensiva que temo que possa ter imaginado o perigo. Solto o menino de volta ao chão e mordo o lábio para absorver a dor brotando em meu pulso.
A criança começa a correr e acidentalmente esbarra em minhas pernas desnudas.
Ele grita e treme e cai no chão, encolhido, soluçando, até que eu considero a ideia de me destruir, de me livrar deste mundo. As lágrimas estão escorrendo rápido pelo meu rosto e eu quero estender-lhe a mão e ajudá-lo, abraçá-lo, beijar suas lindas bochechas e dizer-lhe que cuidarei dele para sempre, que fugiremos juntos, que brincarei com ele e lerei histórias à noite e eu sei que não posso. Sei que nunca poderei. Sei que isso nunca será possível.
E de repente o mundo fica de fora.
Sou dominada por uma raiva, uma força, uma fúria tão potente que quase me elevo do chão. Estou fervendo de ódio cego e náusea. Nem mesmo entendo como meus pés se movem no instante seguinte. Não entendo minhas mãos e o que elas estão fazendo ou como elas decidiram lançar-se para a frente, dedos afastados, investindo rumo à janela. Só sei que quero sentir o pescoço de Warner quebrar entre as minhas duas mãos. Quero que ele experimente o mesmo terror que ele acabou de infligir a uma criança. Quero vê-lo morrer. Quero vê-lo implorar por misericórdia.
Lanço-me às paredes de concreto.
Quebro o vidro com dez dedos.
Estou segurando um punhado de cascalhos e um punhado de pano no pescoço de Warner e há cinquenta armas diferentes apontadas para minha cabeça. O ar é pesado de cimento e enxofre, o vidro ruindo em uma sinfonia agonizante de corações estilhaçados.
Bato Warner contra a pedra corroída.
— Não ousem atirar nela — diz Warner para os guardas, bufando. Ainda não toquei em sua pele, mas tenho a mais forte suspeita de que poderia esmagar seu coração na caixa torácica se eu apenas apertasse um pouco mais forte.
— Devia matá-lo. — Minha voz é um sopro profundo, uma exalação descontrolada.
— Você... — Ele tenta engolir. — Você acabou... você acabou de quebrar o concreto usando apenas as mãos.
Pisco. Não me atrevo a olhar atrás de mim. Mas eu sei, sem olhar para trás, que ele não pode estar mentindo. Devo ter quebrado. Minha mente é um labirinto de possibilidades.
Perco o foco por um instante.
As armas
clicam
clicam
clicam
Cada instante está carregado.
— Se algum de vocês feri-la, eu mesmo trato de atirar em vocês — brada Warner.
— Mas, senhor...
— Relaxe, soldado...
A raiva se foi. A súbita fúria incontrolável se foi. Minha mente já se rendeu à descrença. Confusão. Não sei o que eu fiz. Obviamente não sei do que sou capaz, pois não fazia ideia de que modo poderia destruir qualquer coisa e, de repente, estou tão apavorada tão apavorada tão apavorada com as minhas duas mãos. Cambaleio para trás, estupefata, e surpreendo Warner observando-me faminto, ávido, seus olhos de esmeralda com o brilho da fascinação infantil. Ele está praticamente tremendo de excitação.
Há uma cobra na minha garganta e não consigo engoli-la. Cruzo com o olhar de Warner.
— Se me colocar em uma situação como esta de novo, mato você. E terei prazer em fazer isto.
Nem mesmo sei se estou mentindo.
26
Adam me encontra encolhida no piso do chuveiro.
Estou chorando há tanto tempo que tenho certeza de que a água quente de nada é feita senão de minhas lágrimas. Minhas roupas estão grudadas à pele, molhadas e inúteis. Quero tirá-las. Quero afogar-me na ignorância. Quero ser estúpida, idiota, muda, completamente desprovida de cérebro. Quero decepar meus próprios membros. Quer livrar-me desta pele que pode matar e destas mãos que destroem e deste corpo que não sei sequer como compreender.
Tudo está desmoronando.
— Juliette... — Ele pressiona a mão contra o vidro. Mal consigo escutá-lo.
Como não respondo, ele abre a porta do chuveiro. Ele é atingido por chuviscos rebeldes e tira as botas antes de cair de joelhos no chão de ladrilhos. Ele chega a tocar meus braços e a sensação só me faz ficar mais desesperada por morrer. Ele suspira e me puxa para cima, apenas o suficiente para levantar minha cabeça. Suas mãos seguram meu rosto e seus olhos me perscrutam, perscrutam através de mim, até que desvio o olhar.
— Sei o que aconteceu — diz ele baixinho.
Minha garganta é um réptil, coberto de escamas.
— Alguém devia simplesmente me matar — pronuncio confusamente, fendendo-me a cada palavra.
Os braços de Adam me envolvem, até que ele me puxa para cima e eu estou com as pernas bambas e nós dois estamos de pé. Ele entra no chuveiro e fecha a porta atrás de si.
Meu peito arfa.
Ele me apoia contra a parede e eu não vejo nada senão sua camiseta branca encharcada, nada senão a água escorrendo dançante pelo seu rosto, nada senão seus olhos cheios de um mundo do qual estou morrendo para fazer parte.
— Isso não foi sua culpa — sussurra ele.
— Isso é o que eu sou — custo para respirar.
— Não. Warner está errado sobre você — diz Adam. — Ele quer que você seja alguém que você não é, e você não pode permitir que ele a corrompa. Não permita que ele entre em sua mente. Ele quer que você pense que é um monstro. Ele quer que você pense que não tem escolha a não ser se juntar a ele. Ele quer que você pense que nunca será capaz de viver uma vida normal...
— Mas eu não vou viver uma vida normal. — Engulo um soluço. — Nunca... eu nunca vou...
Adam está sacudindo a cabeça.
— Você vai. Vamos sair daqui. Não vou deixar isso acontecer com você.
— C-como você pode se importar com alguém... como eu? — Mal respiro, nervosa e petrificada, mas de algum modo fito seus lábios, estudando seu corpo, contando as gotas d’água despencando das colinas e vales de sua boca.
— Porque estou apaixonado por você.
Engulo meu estômago. Meus olhos se levantam bruscamente para ler seu rosto, mas eu sou uma confusão de eletricidade, zunindo com vida e relâmpago, quente e fria, e meu coração é errante. Estou tremendo em seus braços e meus lábios se apartaram por nenhuma razão.
Sua boca atenua-se em um sorriso. Meus ossos desapareceram.
Estou girando de desejo.
Seu nariz está tocando meu nariz, seus lábios a um suspiro de distância, seus olhos já me devorando e eu sou uma poça d’água sem braços e sem pernas. Posso cheirá-lo por toda parte. Sinto cada ponto de sua figura pressionado contra a minha. Suas mãos na minha cintura, agarrando meus quadris, suas pernas ardendo contra as minhas, seu peito dominando-me com força, seu corpo edificado por tijolos de desejo. O gosto de suas palavras demora-se em meus lábios.
— Sério...? — Tenho um sussurro de incredulidade, um esforço de consciência para acreditar no que nunca foi realizado. Sofro uma enxurrada de emoções e fico sem palavras.
Ele me olha com tanta emoção que quase racho ao meio.
— Deus, Juliette...
E ele está me beijando.
Uma, duas vezes, até que eu tenha tido a sensação do gosto e perceba que nunca terei o bastante. Ele está por toda parte acima das minhas costas e sobre os meus braços e de repente ele está me beijando com mais força, com mais intensidade, com uma necessidade urgente e fervorosa que jamais conheci. Ele interrompe para respirar somente para enterrar seus lábios no meu pescoço, ao longo de minha clavícula, acima de meu queixo e bochechas, e eu estou arfando por oxigênio e ele está me destruindo com suas mãos e nós estamos encharcados na água e na beleza e na euforia de um momento que nunca pensei que fosse possível.
Ele recua com um gemido em voz baixa e eu quero que ele tire a camisa.
Preciso ver o pássaro. Preciso contar a ele sobre o pássaro.
Meus dedos estão puxando a bainha de suas roupas molhadas e seus olhos arregalam-se por apenas um segundo antes de ele mesmo rasgar o tecido. Ele agarra minhas mãos e ergue meus braços sobre minha cabeça e me prende contra a parede, beijando-me até eu ter certeza de que estou sonhando, bebendo em meus lábios com os seus lábios e ele tem gosto de chuva e almíscar doce e eu estou prestes a explodir.
Meus joelhos estão batendo um contra o outro e meu coração tão rápido que não entendo como ele ainda funciona. Ele está me beijando e com os beijos fazendo passar a dor, a ferida, os anos de autodepreciação, as inseguranças, as esperanças frustradas por um futuro que sempre pintei obsoleto. Ele está me iluminando no fogo, extinguindo nas chamas a tortura dos jogos de Warner, a angústia que me envenena a cada dia. A intensidade de nossos corpos poderia estilhaçar estas paredes de vidro.
Quase o faz.
Por um momento, estamos apenas encarando um ao outro, respirando com dificuldade até que vou enrubescendo, até ele fechar os olhos e tomar um fôlego irregular que se vai firmando, e eu coloco minha mão sobre seu peito. Atrevo-me a traçar o contorno do pássaro que paira em sua pele, atrevo-me a dedilhar a extensão de seu abdome.
— Você é meu pássaro — digo a ele. — Você é meu pássaro e vai me ajudar a voar para longe.
Adam já se foi quando saio do chuveiro.
Ele arrancou suas roupas e secou-se e saiu para que eu tivesse privacidade para me trocar. Privacidade com a qual não sei se me importo mais. Toco dois dedos em meus lábios e sinto seu gosto por toda parte.
Mas, quando entro no quarto, ele não está mais em nenhum lugar. Ele tinha de se apresentar no andar de baixo.
Encaro as roupas no meu closet.
Sempre escolho um vestido com bolsos porque não sei mais onde guardar meu caderno. Ele não carrega qualquer informação incriminatória, e o único pedaço de papel que usava a caligrafia de Adam já foi destruído e mandado embora pelo vaso sanitário, mas eu gosto de mantê-lo próximo de mim. Ele representa muito mais do que algumas palavras rabiscadas no papel. Ele é um pequeno símbolo de minha resistência.
Enfio o caderno em um bolso e decido finalmente que estou pronta para ficar frente a frente comigo mesma. Respiro fundo, afasto dos olhos as mechas molhadas de cabelo e entro no banheiro. O vapor do chuveiro nublou o espelho. Estendo a mão em uma tentativa de fazer um pequeno círculo no vidro embaçado. Apenas grande o suficiente.
Um rosto assustado me devolve o olhar.
Toco minhas bochechas e estudo a superfície refletida, estudo a imagem de uma jovem que é ao mesmo tempo estranha e familiar para mim. Meu rosto é mais magro, mais pálido, as maçãs do rosto mais altas do que me lembro, minhas sobrancelhas soerguidas acima de dois olhos arregalados nem azuis nem verdes, mas algo entre essas duas cores. Minha pele está corada de calor e algo chamado Adam. Meus lábios estão muito rosa. Meus dentes estão extraordinariamente alinhados. Meu dedo traça a extensão de meu nariz, seguindo a forma de meu queixo, quando vejo um movimento pelo canto do olho.
— Você é tão linda — diz ele para mim.
Estou rosa e vermelha e marrom, tudo de uma vez. Baixo a cabeça e tiro os olhos do espelho apenas para que ele me tome em seus braços.
— Tinha esquecido meu próprio rosto — sussurro.
— Apenas não esqueça quem você é — diz ele.
— Eu não sei mesmo.
— Sim, você sabe. — Ele ergue meu rosto. — Eu sei.
Fito a força de seu rosto, de seus olhos, de seu corpo. Tento compreender a confiança que ele tem em quem ele acha que eu sou e percebo que seu apoio é a única coisa que me impede de mergulhar no lago de minha própria loucura. Ele sempre acreditou em mim. Mesmo furtivamente, em silêncio, ele lutou por mim. Sempre.
Ele é meu único amigo.
Ele toma minha mão e a detém em meus lábios.
— Eu sempre amei você — digo a ele.
O Sol nasce, descansa, brilha em seu rosto, e ele quase sorri, quase não consegue enfrentar meus olhos. Seus músculos relaxam, seus ombros encontram alívio no peso de um novo tipo de milagre e ele solta o ar dos pulmões. Ele toca meu rosto, toca meus lábios, toca a ponta de meu queixo e eu pisco e ele está me beijando, ele está me puxando para seus braços e para o ar e de algum modo estamos na cama e enroscados um no outro e estou entorpecida de emoção, entorpecida por todo o momento de ternura. Seus dedos deslizam em meu ombro, traçam minha silhueta, descansam em meus quadris. Ele me puxa para mais perto, sussurra meu nome, derrama beijos por minha garganta e luta com o grosso tecido de meu vestido. Suas mãos tremem muito levemente, seus olhos estão cheios de sentimento, seu coração vibra de dor e afeto e eu quero morar aqui, em seus braços, em seus olhos, pelo resto de minha vida.
Deslizo minhas mãos sob sua camisa e ele engasga com um gemido que se transforma em um beijo que necessita de mim e quer a mim e tem de me possuir tão desesperadamente que é ele a mais aguda forma de tortura. Seu peso está pressionado ao meu, em cima do meu, pontos infinitos de sentimento por todas as terminações nervosas de meu corpo e sua mão direita está atrás de meu pescoço e sua mão esquerda está me atraindo e seus lábios estão descendo minha blusa e eu não entendo por que ainda preciso usar roupas e eu sou uma nuvem carregada de trovões e relâmpagos e a possibilidade de explodir em lágrimas a qualquer momento inoportuno. Êxtase êxtase êxtase está batendo em meu peito.
Não lembro o que significa respirar.
Eu nunca
jamais
jamais
soube
o que significava sentir.
Um alarme está martelando através das paredes.
O quarto dispara um sinal sonoro barulhento e Adam endurece, recua; seu rosto entra em colapso.
— Este é um “código sete”. Todos os soldados devem se apresentar ao Quadrante imediatamente. Este é um “código sete”. Todos os soldados devem se apresentar ao Quadrante imediatamente. Este é um “código sete”. Todos os soldados devem se apresentar ao Quadra...
Adam está de pé e me puxando para cima e a voz ainda está gritando ordens por meio de um sistema de alto-falantes instalado no edifício.
— Houve uma violação — diz ele, sua voz quebrada e em sopro, seus olhos lançando-se entre mim e a porta. — Jesus, não posso simplesmente deixá-la aqui...
— Vá... — digo a ele. — Você tem de ir... ficarei bem...
Passos retumbam pelos corredores e os soldados gritam tão alto uns com os outros que posso ouvi-los através das paredes. Adam ainda está em serviço. Ele tem de representar. Ele tem de manter as aparências até que consigamos sair. Eu sei disso.
Ele me puxa para perto.
— Isso não é uma piada, Juliette... não sei o que está acontecendo... pode ser qualquer coisa...
Um clique metálico. Uma chave mecânica. A porta se abre deslizando e Adam e eu nos afastamos três metros em um pulo.
Adam corre para a saída ao mesmo tempo que Warner está entrando. Ambos congelam.
— Tenho absoluta certeza de que esse alarme está disparando há pelo menos um minuto, soldado.
— Sim, senhor. Não estava certo do que fazer com ela. — Ele, de repente, está contido, uma estátua perfeita. Ele acena com a cabeça para mim como se eu fosse algo secundário, mas eu sei que ele está apenas um pouco mais rígido nos ombros. Respirando apenas um batimento mais rápido.
— Sorte sua, estou aqui para cuidar disso. Você pode se apresentar ao seu comandante.
— Senhor. — Adam concorda com a cabeça, vira-se em um só salto e sai pela porta. Espero que Warner não tenha reparado nessa hesitação.
Warner se vira para mim com um sorriso tão calmo e casual que eu começo a perguntar se o edifício está de fato em desordem. Ele estuda meu rosto. Meu cabelo. Olha para os lençóis amarrotados atrás de mim e eu sinto como se tivesse engolido uma aranha.
— Você tirou uma soneca?
— Não consegui dormir noite passada.
— Você rasgou seu vestido.
— O que você está fazendo aqui? — Preciso que ele pare de me encarar, preciso que ele pare de se absorver dos detalhes de minha existência.
— Se você não gosta do vestido, pode sempre escolher um diferente, você sabe. Eu mesmo o escolhi.
— Está tudo bem. O vestido é bonito. — Olho sem razão nenhuma para o relógio. São quase 4h30min da tarde. — Por que você não me diz o que está havendo?
Ele está próximo demais. Ele está tão próximo e olhando para mim e meus pulmões não estão conseguindo se expandir.
— Você realmente devia se trocar.
— Eu não quero me trocar. — Não sei por que estou tão nervosa. Por que ele está me deixando tão nervosa. Por que o espaço entre nós está se estreitando tão rapidamente.
Ele engancha um dedo no rasgo próximo à cintura baixa de meu vestido e eu contenho um grito.
— Isso é inaceitável.
— Está bem...
Ele dá um puxão tão forte no rasgo que o tecido se abre e cria-se uma fenda do lado de minha perna.
— Assim está um pouco melhor.
— O que você está fazendo...
Suas mãos serpenteiam-me cintura acima e prendem meus braços no lugar e eu sei que preciso me defender, mas estou congelada e quero gritar, mas minha voz está quebrada quebrada quebrada. Sou um sopro entrecortado de desespero.
— Tenho uma pergunta — diz ele, e eu tento chutá-lo de dentro deste vestido desprezível e ele apenas me aperta contra a parede, o peso de seu corpo me pressionando, cada centímetro dele coberto de roupa, uma camada protetora entre nós. — Eu disse que tenho uma pergunta, Juliette.
Sua mão escorrega para dentro de meu bolso tão rapidamente que levo um instante para perceber o que ele fez. Estou ofegante contra a parede, tremendo e tentando recobrar o raciocínio.
— Estou curioso — diz ele. — O que é isto?
Ele está segurando meu caderno entre dois dedos.
Ah, Deus.
Este vestido é apertado demais para esconder o contorno do caderno e eu estava ocupada demais olhando meu rosto para conferir meu vestido no espelho. É tudo culpa minha tudo culpa minha tudo culpa minha Não posso acreditar nisso. É tudo culpa minha. Eu já devia saber.
Não digo nada.
Ele inclina a cabeça.
— Não me recordo de ter lhe dado um caderno. Certamente também não me lembro de ter lhe dado permissão para possuir qualquer bem.
— Eu trouxe isso comigo — minha voz trava.
— Agora você está mentindo.
— O que você quer de mim? — entro em pânico.
— Que pergunta estúpida, Juliette.
O suave som de metal polido deslizando. Alguém abriu a porta.
Clique.
— Tire suas mãos dela antes que eu enterre uma bala na sua cabeça.
27
Os olhos de Warner se fecham muito lentamente. Ele se afasta muito lentamente. Seus lábios se contorcem em um sorriso perigoso.
— Kent.
As mãos de Adam estão firmes, o cano de sua arma pressionado sobre a parte posterior do crânio de Warner.
— Você vai autorizar nossa saída daqui.
Warner verdadeiramente ri. Ele abre os olhos e retira uma arma de dentro do bolso para apontá-la diretamente na minha testa.
— Vou matá-la agora mesmo.
— Você não é tão estúpido — diz Adam.
— Se ela se mover um milímetro sequer, eu atiro. E então corto você em pedaços.
Adam se desloca rapidamente, batendo com a coronha de sua arma na cabeça de Warner. A arma de Warner erra o alvo e Adam pega seu braço e torce seu pulso até que seu controle vacila. Apanho a arma de sua mão frouxa e bato com a coronha em sua cara. Estou surpresa com meus próprios reflexos. Jamais segurei uma arma, mas suponho que exista a primeira vez para tudo.
Aponto a arma para os olhos de Warner.
— Não me subestime. — Grito para ele.
— Cacete. — Adam não se dá ao trabalho de esconder sua surpresa.
Warner tosse ao rir, firma-se, e tenta sorrir enquanto limpa o sangue do nariz.
— Nunca subestimo você — diz ele para mim. — Nunca subestimei.
Adam sacode a cabeça por menos de um segundo, antes de seu rosto cindir-se em um enorme sorriso. Ele está sorrindo de alegria para mim, ao passo que pressiona com mais força a arma no crânio de Warner.
— Vamos sair daqui.
Apanho as duas mochilas de acampamento arrumadas no armário e jogo uma para Adam. Havíamos arrumado as malas já fazia uma semana. Se ele quisesse tentar escapar mais cedo do que o esperado, eu não faria restrições.
A sorte de Warner é que fomos misericordiosos com ele.
Mas temos sorte porque o edifício todo fora evacuado. Ele não tem ninguém em quem confiar.
Warner limpa a garganta. Ele está olhando diretamente para mim quando fala.
— Posso lhe assegurar, soldado, que seu triunfo terá vida curta. Talvez você também pudesse me matar agora, porque, quando encontrá-lo, terei todo o prazer de destruir cada osso de seu corpo. Você é um tolo se pensa que pode ir longe com isso.
— Eu não sou seu soldado. — O rosto de Adam é de pedra. — Nunca fui. Você estava tão envolvido com os detalhes de suas próprias fantasias que falhou em perceber os perigos bem diante do seu nariz.
— Ainda não podemos matá-lo — acrescentei. — Você tem de nos tirar daqui.
— Você está cometendo um grande erro, Juliette — diz ele para mim. Sua voz realmente amolecida. — Você está jogando fora todo um futuro. — Ele suspira. — Como sabe que pode confiar nele?
Olho para Adam. Adam, o garoto que sempre me defendeu, até quando não tinha nada a ganhar. Sacudo a cabeça para deixar claro isso. Lembro a mim mesma que Warner é um mentiroso. Um lunático desvairado. Um assassino psicopata. Ele nunca tentaria me ajudar.
Penso eu.
— Vamos antes que seja tarde demais — digo para Adam. — Ele está apenas tentando nos atrasar até os soldados voltarem.
— Ele nem mesmo se importa com você! — explode Warner. Recuo à súbita e descontrolada intensidade em sua voz. — Ele só quer um jeito de sair daqui e está usando você! — Ele avança. — Eu poderia amá-la, Juliette... Eu a trataria como uma rainha...
Adam lhe dá uma rápida chave de braço e aponta a arma para sua têmpora.
— Você obviamente não entende o que está acontecendo aqui — diz ele muito cuidadosamente.
— Então me ensine, soldado — arqueja Warner. Seus olhos estão flamejantes; perigosos. — Diga-me o que estou deixando de entender.
— Adam — Sacudo a cabeça.
Ele encontra meus olhos. Faz que sim com a cabeça. Volta-se para Warner.
— Faça a ligação — diz ele, apertando seu pescoço um pouco mais firme. — Tire-nos daqui agora.
— Só o meu cadáver permitiria que ela saísse por aquela porta. — Warner cospe sangue no chão. — Você, eu mataria por prazer — diz para Adam. — Mas Juliette é a única que quero para sempre.
— Eu não sou seu querer. — Respiro com dificuldade. Estou ansiosa por sair daqui. Estou com raiva por ele não parar de falar, porém, por mais que eu adorasse quebrar sua cara, ele não nos seria útil inconsciente.
— Você poderia me amar, você sabe. — Ele sorri estranhamente. — Ninguém poderia nos deter. Mudaríamos o mundo. Eu poderia fazê-la feliz — diz ele para mim.
Adam parece que pode quebrar o pescoço de Warner. Seu rosto está tão firme, tão tenso, tão furioso. Nunca o vi assim antes.
— Você não tem nada a oferecer a ela, seu canalha doentio.
Warner fecha os olhos por um segundo, apertando-os.
— Juliette. Não seja apressada. Não tome uma decisão irrefletida. Fique comigo. Serei paciente com você. Darei tempo para que você se ajuste. Vou tomar conta de você...
— Você é louco. — Minhas mãos tremem, mas eu miro a arma novamente para seu rosto. Preciso tirá-lo da minha cabeça. Preciso me lembrar do que ele fez comigo. — Você quer que eu seja um monstro para você...
— Quero que você viva à altura de seu potencial!
— Deixe-me ir — digo calmamente. — Não quero ser sua criatura. Não quero ferir pessoas.
— O mundo já feriu você — rebate ele. — O mundo colocou você aqui. Você está aqui por causa deles! Acha que indo embora eles vão aceitar você? Acha que pode fugir e viver uma vida normal? Ninguém vai se importar com você. Ninguém chegará perto de você... você será uma excluída como sempre foi! Nada mudou! Você pertence a mim!
— Ela pertence a mim. — A voz de Adam poderia atravessar o aço.
Warner recua. Pela primeira vez ele parece estar entendendo o que achei que era óbvio. Seus olhos estão arregalados, chocados, incrédulos, fitando-me com um novo tipo de angústia.
— Não. — Um riso curto, enlouquecido. — Juliette. Por favor. Por favor. Não me diga que ele encheu sua cabeça com ideias românticas. Por favor, não me diga que você cedeu às suas falsas declarações...
Adam joga o joelho na coluna de Warner. Ele cai no chão com um estrondo abafado e uma tomada de fôlego acentuada. Adam dominou-o por completo. Sinto como se devesse aplaudir.
Mas estou ansiosa demais. Estou suspensa demais na descrença. Estou insegura demais para estar confiante nas minhas próprias decisões. Preciso me recompor.
— Adam...
— Eu te amo — diz ele para mim, seus olhos exatamente tão sinceros quanto me lembro deles, suas palavras exatamente tão urgentes quanto deveriam ser. — Não deixe ele confundir você...
— Você a ama? — Warner praticamente cospe. — Você nem sequer...
— Adam. — O quarto entra e sai de foco. Estou encarando a janela. Olho novamente para ele.
Ele fica perplexo.
— Você quer pular?
Faço que sim com a cabeça.
— Mas estamos no 15º andar...
— Que escolha temos se ele não coopera? — Olho para Warner. Inclino a cabeça. — Não há “código sete”, não é?
Os lábios de Warner se contorcem. Ele não diz nada.
— Por que você fez isso? — pergunto a ele. — Por que você acionou um alarme falso?
— Por que você não pergunta ao soldado por quem se afeiçoou tão de repente? — diz Warner rispidamente, indignado. — Por que você não pergunta a si mesma por que está confiando sua vida a alguém que não consegue sequer distinguir entre uma ameaça real e uma ameaça ilusória?
Adam pragueja em um sussurro.
Nossos olhares se cruzam e ele me joga sua arma.
Ele sacode a cabeça. Pragueja novamente. Abre e fechas as mãos.
— Era só um treino.
Warner agora ri de verdade.
Adam olha para a porta, para o relógio, para meu rosto.
— Não temos muito tempo.
Estou segurando a arma de Warner na mão esquerda e a arma de Adam na direita e apontando as duas para a testa de Warner, fazendo o possível para ignorar os olhos com que ele está me perfurando. Adam usa sua mão desocupada para vasculhar seu bolso em busca de algo. Ele retira um par de cordões de plástico com fecho e chuta Warner nas costas pouco antes de atar seus braços e pernas. As botas e as luvas de Warner estão inutilizadas no chão. Adam mantém um bota pressionada em seu estômago.
— Um milhão de alarmes vão disparar no minuto em que pularmos por aquela janela — diz ele para mim. — Teremos de correr, de tal modo que não podemos arriscar quebrar as pernas. Não podemos pular.
— Então o que fazemos?
Ele passa a mão pelo cabelo e morde o lábio inferior e, por um momento delirante, tudo o que quero fazer é prová-lo. Obrigo-me a voltar para o foco da situação.
— Eu tenho uma corda — diz ele. — Teremos de descer por ela. E rápido.
Ele começa a trabalhar tirando um rolo de cordas preso a um pequeno gancho em forma de garra. Perguntei-lhe um milhão de vezes por que raios ele precisaria disso, por que ele colocaria isso em sua mochila de fuga. Ele me disse que corda nunca é demais para uma pessoa. Agora, quase quero rir.
Ele se vira para mim.
— Vou descer primeiro, de modo que possa pegá-la do outro lado...
Warner ri alto, muito alto.
— Você não pode pegá-la, seu idiota. — Ele se contorce em suas algemas de plástico. — Ela não está usando quase nada. Ele vai se matar e matá-la na queda!
Meus olhos se lançam a Warner e a Adam. Não tenho tempo para cogitar as charadas de Warner nem mais um minuto. Tomo uma decisão rápida.
— Vai. Estarei logo atrás de você.
Warner parece louco, confuso.
— O que você está fazendo?
Eu o ignoro.
— Espere...
Eu o ignoro.
— Juliette.
Eu o ignoro.
— Juliette! — Sua voz é mais tensa, mais alta, atada com raiva e terror e recusa e traição. A compreensão é uma nova peça em sua mente confusa.
— Ele pode tocar você?
Adam está enrolando a mão com o lençol.
— Maldição, Juliette, me responda! — Warner está se retorcendo no chão, louco de um modo que nunca pensei ser possível. Ele parece desordenado, seus olhos, incrédulos, horrorizados. — Ele tocou você?
Não consigo entender por que as paredes repentinamente estão no teto. Tudo está cambaleando para o lado.
— Juliette...
Adam quebra o vidro com uma pancada rápida, um soco firme, e num instante a sala inteira está ressoando o som da histeria como nenhum alarme que jamais escutei. O quarto está retumbando debaixo de meus pés, passos estão trovejando pelos corredores, e eu sei que estamos a cerca de um minuto de ser descobertos.
Adam joga a corda pela janela e atira seu fardo sobre as costas.
— Jogue sua mochila para mim! — grita ele e eu mal posso escutá-lo. Atiro minha mochila e ele a pega logo antes de escorregar pela janela. Corro para me juntar a ele.
Warner tenta agarrar minha perna.
Sua tentativa frustrada quase me derruba, mas eu consigo cambalear até a janela sem perder muito tempo. Olho para a porta atrás de mim e sinto meu coração disparar pelos meus ossos. O som dos soldados correndo e gritando está ficando mais ruidoso, mais próximo, mais claro a cada segundo.
— Corra! — Adam está me chamando.
— Juliette, por favor...
Warner tenta pegar minha perna novamente e meu sobressalto é tão ruidoso que quase o escuto através das sirenes que rompem meus tímpanos. Não vou olhar para ele. Não vou olhar para ele. Não vou olhar para ele.
Passo uma perna pela janela e agarro-me à corda. Minhas pernas nuas vão fazer disso uma experiência dolorosa. Ambas as pernas atravessam a janela. Minhas mãos estão no lugar. Adam está me chamando lá de baixo, e eu não sei quão longe ele está. Warner está gritando meu nome e eu levanto os olhos, apesar de meus melhores esforços.
Seus olhos são dois disparos de verde atravessando a vidraça. Penetrando em mim.
Respiro fundo e espero que eu não morra.
Respiro fundo e desço lentamente a corda.
Respiro fundo e espero que Warner não perceba o que acabou de acontecer.
Espero que ele não saiba que ele acabou de tocar minha perna.
E nada aconteceu.
28
Estou queimando.
O atrito da corda está tornando minhas pernas uma massa de fogo tão dolorosa que estou surpresa por não haver fumaça. Contenho a dor porque não tenho escolha. A histeria em massa do edifício intimida meus sentidos, chovendo perigo ao nosso redor. Adam está gritando para mim lá de baixo, dizendo-me para pular, prometendo que vai me pegar. Estou tão envergonhada de admitir que estou com medo da queda.
Nunca tenho uma chance de tomar minhas decisões.
Os soldados já estão confluindo para o que costumava ser meu quarto, aos berros e aturdidos, provavelmente chocados por encontrar Warner em posição tão frágil. Foi realmente fácil demais dominá-lo. Isso me preocupa.
Isso me faz achar que fizemos algo errado.
Alguns soldados enfiam a cabeça para fora da janela estilhaçada e eu estou louca para descer a corda, mas eles já estão se movendo para soltar o gancho que a prende. Preparo-me para a sensação nauseante de queda livre apenas para perceber que eles não estão tentando fazer que eu caia. Eles estão tentando me içar de volta para dentro.
Warner deve estar lhes dizendo o que fazer.
Olho para Adam abaixo e finalmente cedo a seus gritos. Fecho os olhos e largo a corda.
E caio exatamente em seus braços abertos.
Desmoronamos no chão, mas só por um momento ficamos sem fôlego. Adam agarra minha mão e então estamos correndo.
Não há nada senão espaço estéril e vazio estendendo-se à nossa frente. Asfalto quebrado, pavimentação irregular, estradas de terra, árvores nuas, plantas agonizantes, uma cidade amarelecida, abandonada aos elementos, imersa em folhas mortas que esmigalham sob nossos pés. Os aglomerados civis são pequenos e baixos, agrupados sem nenhuma ordem particular, e Adam faz questão de ficar o mais longe possível deles. Os alto-falantes já estão operando contra nós. O som de uma voz jovem e feminina, harmoniosamente mecânica, abafa as sirenes.
“Toque de recolher em vigor. Todos retornem imediatamente a suas casas. Há rebeldes à solta. Eles estão armados e prontos para atirar. Toque de recolher em vigor. Todos retornem imediatamente a suas casas. Há rebeldes à solta. Eles estão armados e prontos para at...”
Meu corpo está com cãibras, minha pele está tensa, minha garganta, seca, desesperada por água. Não sei o quanto corremos. Tudo o que sei é sobre o som de botas esmagando a calçada, de pneus “cantando” ao sair de depósitos subterrâneos, de alarmes gemendo ao nosso encalço.
Olho para trás para ver as pessoas gritando e correndo em busca de proteção, esquivando-se dos soldados que correm por suas casas, arrombando as portas para ver se encontramos refúgio em algum lugar. Adam me afasta da civilização e se dirige rumo às ruas há uma década abandonadas: lojas e restaurantes antigos, ruas laterais estreitas e parques infantis abandonados. O solo não regulamentado de nossas vidas passadas tornou-se, terminantemente, zona fora dos limites. É território proibido. Tudo fechado. Tudo quebrado, enferrujado, sem vida. Ninguém tem permissão para atravessar aqui. Nem mesmo os soldados.
E estamos carregando armas por estas ruas, tentando permanecer fora de vista.
O Sol está deslizando pelo céu e descendo rumo ao limite da Terra. A noite chegará rapidamente, e eu não faço ideia de onde estamos. Nunca esperei que acontecesse tão depressa e nunca esperei que tudo isso acontecesse no mesmo dia. Apenas tenho de ter esperança de sobreviver, mas não faço a menor ideia de para onde podemos ir. Nunca me ocorreu perguntar a Adam sobre nosso destino.
Estamos andando em um milhão de direções. Virando bruscamente, avançando alguns passos apenas para seguir novamente pelo caminho oposto. Minha melhor hipótese é a de que Adam está tentando confundir ou distrair nossos seguidores o máximo possível. Não posso fazer nada senão tentar não ficar para trás.
E eu falho.
Adam é um soldado treinado. Ele foi treinado exatamente para esse tipo de situação. Ele entende de como fugir, de como manter-se discreto, de como mover-se silenciosamente em qualquer espaço. Eu, por outro lado, sou uma garota que não sabe há muito tempo o que são exercícios. Meus pulmões estão ardendo pelo esforço de inalar oxigênio, ofegando pelo esforço de exalar dióxido de carbono.
De repente estou arfando tão desesperadamente que Adam é obrigado a me puxar até uma rua lateral. Ele está respirando com um pouco mais de dificuldade do que o habitual, mas eu estou sem ar de uma maneira integral, sufocando-me com a fraqueza de meu corpo fraco.
Adam toma meu rosto em suas mãos e tenta focar meus olhos.
— Quero que você respire como eu, está bem?
Ofego um pouco mais.
— Concentre-se, Juliette. — Seus olhos estão muito determinados. Infinitamente pacientes. Ele parece não ter medo, e eu invejo sua tranquilidade.
— Acalme seu coração — diz ele. — Respire exatamente como eu.
Ele toma três fôlegos curtos, segura-os por alguns segundos e libera-os em uma única exalação. Tento imitá-lo. Não tenho muito sucesso nisso.
— OK. Quero que você continue respirando como... — Ele para. Seus olhos se lançam ao redor da rua abandonada durante uma fração de segundo. Sei que temos de nos mexer.
Tiros rompem a atmosfera. Nunca percebera exatamente quão ruidosos eles são ou exatamente quantos ossos esse barulho me fratura. Um calafrio penetra meu sangue e eu sei, de imediato, que eles não estão tentando me matar. Eles estão tentando matar Adam.
Fico asfixiada por uma nova espécie de ansiedade. Não posso deixar que eles o machuquem.
Não por mim.
Mas Adam não tem tempo para que eu tome fôlego e recobre o raciocínio. Ele me toma nos braços e sai correndo em disparada por outro beco.
E nós estamos correndo.
E eu estou respirando.
E ele grita:
— Envolva seus braços no meu pescoço! — e eu largo sua camiseta e sou estúpida o bastante para me sentir tímida enquanto deslizo meus braços em torno dele. Ele me ajeita de tal modo que estou mais alta, mais próxima a seu peito. Ele me carrega como se eu pesasse menos que nada.
Fecho os olhos e aperto meu rosto contra seu pescoço.
Os tiros estão em algum lugar atrás de nós, mas até posso dizer, a partir do som, que eles estão muito longe e longe demais na direção errada. Parece que os enganamos momentaneamente. Seus carros não conseguem nos encontrar, pois Adam evitou todas as ruas principais. Ele parecer ter um mapa da cidade. Ele parece saber exatamente o que está fazendo... como se estivesse planejando isso há muito tempo.
Depois de inalar exatamente 594 vezes, Adam me coloca em pé no chão em frente de um trecho com cerca de tela de arame. Percebo que ele está fazendo um grande esforço para inalar oxigênio, mas ele não está ofegante como eu. Ele sabe como regular sua respiração. Ele sabe como firmar a pulsação, acalmar o coração, manter o controle de seus órgãos. Ele sabe como sobreviver. Espero que ele também me ensine.
— Juliette — diz ele depois de um momento esbaforido. — Você consegue pular esta cerca?
Estou tão ávida por ser mais que um agregado inútil que quase corro e salto a barreira de metal. Mas sou imprudente. E apressada demais. Praticamente rasgo meu vestido e arranho minhas pernas no processo. Faço cara de dor e, já quando reabro os olhos, Adam está de pé ao meu lado.
Ele olha para minhas pernas e suspira. Ele quase ri. Me pergunto com que devo estar parecendo, surrada e descomposta neste vestido rasgado. A fenda que Warner criou agora para no osso do quadril. Devo estar parecendo um animal desvairado.
Adam não parece se importar.
Ele também reduziu a velocidade. Estamos agora em ligeira caminhada, não mais correndo pelas ruas. Entendo que devemos estar mais próximos de alguma aparente segurança, mas não sei se devo fazer perguntas agora, ou guardá-las para mais tarde. Adam responde a meus pensamentos silenciosos.
— Eles não serão capazes de me rastrear aqui — diz ele, e ocorre-me que todos os soldados devem ter em si algum tipo de dispositivo de rastreamento. Pergunto-me por que nunca tive um.
Não deveria ser tão fácil escapar.
— Nossos rastreadores não são evidentes — explica ele. Viramos à esquerda em outro beco. O Sol está imergindo no horizonte. Gostaria de saber onde estamos. Quão longe devemos estar dos assentamentos restabelecidos, uma vez que não há pessoas aqui.
— É um soro especial injetado em nossa corrente sanguínea — continua ele — e é projetado para funcionar por meio dos processos naturais de nosso corpo. Saberiam, por exemplo, se eu morresse. É um excelente modo de manter o controle dos soldados perdidos em combate. — Ele me olha de canto de olho. Ele sorri um sorriso torto que tenho vontade de beijar.
— Então como você confundiu o rastreador?
Seu sorriso fica maior. Ele me envolve em seus braços.
— Este lugar em que estamos pisando? Foi usado para uma usina de energia nuclear. Um dia a coisa toda explodiu.
Meus olhos estão tão grandes quanto meu rosto.
— Quando isso aconteceu?
— Cerca de cinco anos atrás. Eles limparam muito rápido. Ocultaram o fato da mídia, da população. Ninguém realmente sabe o que aconteceu aqui. Mas a radiação é suficiente para matar. — Ele interrompe. — Já matou.
Ele para de andar. — Já passei por esta área um milhão de vezes, e não fui afetado por ela. Warner costumava me mandar aqui para coletar amostras de solo. Ele queria estudar os efeitos. — Ele passa uma mão pelos cabelos. — Acho que ele tinha esperanças de manipular a toxicidade em algum tipo de veneno.
— A primeira vez em que vim aqui, Warner pensou que eu tinha morrido. O rastreador é conectado a todos os nossos principais sistemas de processamento... um alerta dispara sempre que um soldado está perdido. Ele sabia que havia um risco em me enviar aqui, então não acho que ele ficou muito surpreso ao escutar que eu tinha morrido. Ele ficou mais surpreso em me ver retornar. — Ele encolhe os ombros como se sua morte tivesse sido um detalhe insignificante. — Tem alguma coisa com relação às substâncias químicas daqui que neutralizam a composição molecular do rastreador. Então, em suma... todo mundo agora pensa que estou morto.
— Warner não pode suspeitar de que você esteja aqui?
— Talvez. — Ele encara com os olhos semicerrados a luz desvanecente do Sol. Nossas sombras são compridas e imóveis. — Ou poderia ter sido baleado. Em qualquer caso, isso nos dará tempo.
Ele pega minha mão e sorri para mim antes de algo acudir-me à consciência.
— E quanto a mim? — pergunto. — Esta radiação não pode me matar? — Espero não soar tão nervosa quanto me sinto. Nunca quis tanto estar viva. Não quero perder tudo tão cedo.
— Ah... não. — Ele sacode a cabeça. — Desculpe, esqueci de lhe contar... uma das razões por que Warner quis que eu coletasse estas amostras? É porque você também é imune a ela. Ele estava estudando você. Ele disse que encontrou a informação em seus registros hospitalares. Que você tinha sido testada...
— Mas ninguém nunca...
— ... provavelmente sem o seu conhecimento, e apesar do teste positivo para a radiação, você estava perfeita, biologicamente. Não havia basicamente nada de errado com você.
“Basicamente nada de errado com você.”
A observação é tão flagrantemente falsa que eu começo a rir de verdade. Tento conter minha incredulidade.
— Não há nada de errado comigo? Você está brincando, certo?
Adam me encara por tanto tempo que começo a corar. Ele inclina meu queixo para cima de tal modo que encontro seus olhos. Azuis azuis azuis perfurando-me. Sua voz é profunda, firme.
— Acho que nunca escutei você rir.
Ele é preciso de modo tão excruciante que eu não sei como responder exceto com a verdade. Meu sorriso se comprime em uma linha reta.
— O riso vem da vida. — Encolho os ombros, tento soar indiferente. — Realmente nunca estive viva antes.
Seus olhos não hesitaram em seu foco. Ele está me segurando na posição com a força de uma atração poderosa que vem de dentro dele. Quase posso sentir seu coração batendo contra minha pele. Quase posso sentir seus lábios respirando contra meus pulmões. Quase posso sentir seu gosto em minha língua.
Ele respira pouco firme e me puxa para perto. Beija-me no alto da cabeça.
— Vamos para casa — sussurra.
29
Casa.
“Casa.”
O que isso significa?
Separo os lábios para fazer a pergunta e seu sorriso furtivo é a única resposta que recebo. Estou constrangida e excitada e ansiosa e ávida. Meu estômago está repleto de tambores que batem em sincronia pelo meu coração. Estou praticamente zunindo em decorrência de nervos elétricos.
Cada passo é um passo longe do manicômio, longe de Warner, longe da futilidade da existência que sempre conheci. Cada passo é um passo que dou porque eu quero. Pela primeira vez na minha vida, avanço porque eu quero, porque sinto esperança e amor e a euforia da beleza, porque eu quero saber o que é viver. Poderia saltar para pegar uma brisa e viver para sempre nos caminhos traçados pelo vento.
Sinto-me como se tivesse ganhado asas.
Adam me conduz a um galpão abandonado às margens deste campo selvagem, coberto por vegetação inútil e tentáculos de arbustos desordenados, ásperos e hediondos, provavelmente venenosos. Fico me perguntando se este é o lugar onde Adam pretendia que ficássemos. Entro pelo espaço escuro e aperto os olhos. Um esboço chega-me ao foco.
Há um carro aqui dentro.
Pisco.
Não apenas um carro. Um tanque.
Adam quase não consegue controlar o próprio entusiasmo. Ele olha para o meu rosto esperando uma reação e parece satisfeito com meu assombro. Suas palavras despencam.
— Convenci Warner de que tinha conseguido quebrar um dos tanques que eu trouxe até aqui. Essas coisas são projetadas para funcionar à eletricidade... então eu lhe disse que o mecanismo principal fritou em contato com os resquícios químicos. Que ele foi corrompido por alguma coisa na atmosfera. Ele, depois disso, arranjou um carro para mandar me buscar, e disse que devíamos deixar o tanque onde estava. — Ele quase sorri. — Warner estava me mandando aqui contra a vontade do pai, e não queria que ninguém descobrisse que ele tinha quebrado um tanque de 500 mil dólares. O relato oficial diz que ele foi raptado por rebeldes.
— Alguém não poderia ter aparecido e visto o tanque colocado aqui?
Adam abre a porta do passageiro.
— Os civis ficam longe, muito longe deste lugar, e nenhum outro soldado esteve aqui. Ninguém mais quis correr o risco da radiação. — Ele inclina a cabeça. — Essa é uma das razões por que Warner confiava em mim ao seu lado. Ele apreciava o fato de que eu estava disposto a morrer pelo dever.
— Ele nunca pensou que você sairia da linha — murmuro, compreendendo o que ele diz
Adam sacode a cabeça.
— Não. E, depois do que aconteceu com o soro rastreador, ele não tinha razão para duvidar de que coisas malucas pudessem acontecer aqui. Eu desativei o mecanismo elétrico do tanque, só para o caso de que ele quisesse verificar. — Ele acena a cabeça para o veículo monstruoso. — Tive um pressentimento de que isso seria útil um dia. É sempre bom estar preparado.
Preparado. Ele esteve sempre preparado. Para correr. Para escapar.
Fico me perguntando por quê.
— Venha cá — diz ele, sua voz notadamente mais gentil. Ele me estende a mão à luz fraca e eu finjo ser uma feliz coincidência que suas mãos rocem minhas coxas nuas. Finjo não ser incrível a sensação de vê-lo lutando com os rasgos de meu vestido enquanto me ajuda a entrar no tanque. Finjo não poder ver o modo como ele está olhando para mim quando o último raio de Sol se despede no horizonte.
— Preciso cuidar de suas pernas — diz ele, um sussurro contra minha pele, elétrico em meu sangue. Por um momento, sequer entendo o que ele quer dizer. Sequer me importo. Meus pensamentos são tão impraticáveis que me surpreendo. Jamais tivera a liberdade de tocar alguém. Certamente ninguém jamais quisera minhas mãos sobre si. Adam é uma experiência absolutamente nova.
Tocá-lo é tudo em que quero pensar.
— Os cortes não estão tão ruins — continua ele, as pontas de seus dedos correndo pelas minhas panturrilhas. Sorvo a respiração. — Mas teremos de lavá-los, só para garantir. Às vezes é mais seguro ser cortado por uma faca de açougueiro do que ser arranhado por um pedaço qualquer de metal. Você não quer que isso infeccione.
Ele levanta os olhos. Suas mãos estão agora sobre meu joelho.
Estou acenando com a cabeça e não sei por quê. Pergunto-me se estou tremendo externamente tanto quanto estou por dentro. Espero que esteja escuro demais para que ele veja quanto meu rosto está corado, como é embaraçoso o fato de ele não poder tocar meu joelho sem que me deixe louca. Preciso dizer algo.
— Podemos ir, Adam?
— Sim. — Ele respira fundo, para retornar a si mesmo. — Sim. Temos de ir. — Ele espreita através da luz da noite. — Temos algum tempo antes que eles percebam que ainda estou vivo. E temos de usar isso a nosso favor.
— Mas, assim que deixarmos este lugar... o rastreador não vai voltar a funcionar? Eles não vão saber que você não está morto?
— Não. — Ele pula para o lado do motorista e mexe na ignição. Não há chave, apenas um botão. Pergunto-me se ele identifica a impressão digital de Adam como autorização. Uma pequena explosão, e a máquina ronca. — Warner tinha de renovar o meu soro rastreador toda vez que eu chegava. Uma vez destruído? Já era. — Ele sorri. — Então agora podemos realmente dar o fora daqui.
— Mas para onde vamos? — pergunto finalmente.
Ele muda a marcha antes de responder.
— Minha casa.