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CAPÍTULO 1
Sepultura.
Como na lápide e na terra recém-cavada, como em um corpo lá em baixo, como das cinzas às cinzas e do pó ao pó.
Matthias estava nu em uma sepultura. Em meio a um cemitério que se estendia até onde seus olhos podiam enxergar.
A primeira coisa que surgiu em sua mente foi a tatuagem que fizera seus homens usarem nas costas, com o desenho do Ceifeiro da Morte pairando sobre um campo de lápides e tumbas.
Que irônico – talvez estivesse prestes a ser cortado por uma foice a qualquer momento.
Tente repetir isso três vezes, bem rápido.
Piscou os olhos tentando clarear a vista, juntou os braços para se aquecer e esperou que o cenário voltasse à realidade. Quando nada mudou, ele se perguntou aonde teria ido aquele muro em que estivera preso para toda a eternidade.
Será que finalmente estava livre daquela tortura nojenta e superlotada?
Teria escapado do Inferno?
Soltando um grunhido, tentou se erguer, mas até levantar a cabeça estava difícil. Afinal, descobrir em primeira mão que aqueles lunáticos religiosos estavam certos sobre uma porção de coisas realmente faz você querer tirar um cochilo: de fato, os pecadores iam lá para baixo, e não para o Sul, e, uma vez lá, o sofrimento faz todas as coisas de que você reclamava em vida parecerem um passeio no Universal Studios.
O Demônio existia.
E sua sala de estar era uma merda.
Mas os religiosos não sabiam de toda a história. Acontece que Satã não possuía chifres ou uma calda. Também não havia nada de tridente e pés de bode. Bom, era mesmo metade bicho – se você considerar que o bicho em questão seja uma vaca. E usa muito vermelho. Afinal, morenas ficam bem com essa cor – ao menos, era isso que ela dizia a si mesma.
Com seu olho esquerdo, que ainda funcionava, Matthias piscou novamente, preparando-se para retornar para a densa e ardente escuridão, com os gritos dos condenados ecoando em seus ouvidos e sua própria dor rasgando pela garganta e explodindo pelos lábios rachados...
Mas nada disso aconteceu. Ele ainda estava em uma sepultura. Ainda estava em um cemitério.
Completamente pelado.
Concentrando-se, enxergou, com seu único olho bom, uma paisagem cheia de túmulos de mármore branco, sepulturas de famílias marcadas com anjos e fantasmagóricas estátuas da Virgem Maria – embora as lápides simples fossem bem mais numerosas, como se os plebeus tivessem tomado conta do lugar. Pinheiros e carvalhos projetavam sombras através de gramados desalinhados e bancos de metal. As lâmpadas dos postes emitiam um brilho alaranjado, como velas num bolo de aniversário, e as passarelas estreitas poderiam até ser românticas se estivessem em outro lugar.
Mas ali, com certeza, não eram. Não naquele contexto de morte...
De repente, cenas de sua vida passaram por sua mente, fazendo-o se perguntar se estaria experimentando a morte pela segunda vez. Ou pela terceira, como seria o caso.
Não havia alegria nessa retrospectiva. Nada de esposa amorosa, nem filhos bonitos, nem uma casinha aconchegante. Apenas cadáveres, dezenas, centenas de cadáveres, todos mortos por ele próprio ou por ordem sua.
Matthias havia feito muito mal, o verdadeiro mal, durante sua vida.
Forçou-se a sentar na terra úmida. Seu corpo parecia um quebra-cabeça cujas peças não encaixavam direito: seus membros se uniam em juntas que pareciam folgadas em alguns lugares e apertadas em outros. Mas isso é o que acontece quando você se despedaça e tudo o que tem para se recompor são as habilidades limitadas de cura e medicina.
Ele direcionou seu olho para a lápide e franziu a testa.
James Heron.
Meu Deus, James Heron...
Ignorando o tremor de suas mãos, ele traçou as letras gravadas na pedra – a ponta de seus dedos percorreu o texto esculpido no granito cinzento.
Soltou um suspiro áspero, como se a dor repentina atrás de suas costelas tivesse forçado o ar para fora dos pulmões.
Matthias nunca soubera que realmente havia uma recompensa eterna após a morte, que suas ações eram de fato levadas em conta, que havia um julgamento ao final da última batida de seu coração. Mas a dor não era por causa disso. Era porque sabia que, mesmo se tivesse conhecimento do que o esperava, ele não seria capaz de fazer nada diferente.
– Sinto muito – falou, se perguntando para quem realmente dizia aquilo. – Porra, sinto muito mesmo...
Nenhuma resposta.
Olhou para o céu.
– Sinto muito.
De novo, nada de resposta, mas tudo bem. De qualquer forma, os arrependimentos estavam se acumulando em sua mente e não havia muito espaço para contribuições de terceiros.
Enquanto se esforçava para levantar, seu tronco tombou e precisou se apoiar na lápide para retomar o equilíbrio. Deus, ele estava acabado. Suas coxas estavam cobertas de cicatrizes, sua barriga cheia de lesões, uma panturrilha quase despida de carne. Os médicos realizaram um verdadeiro milagre com seus parafusos e hastes, mas, comparado com o jeito como nascera, Matthias parecia um brinquedo quebrado remendado com fita adesiva e supercola.
E o suicídio deveria ter funcionado. Mas Jim Heron foi a razão de ele ter sobrevivido por outros dois anos. Até que a morte o encontrou e o levou, provando que a Terra apenas pegava as almas emprestado – o outro lado é que realmente as possuía.
Por força do hábito, olhou ao redor procurando sua bengala, mas então se concentrou naquilo que seria mais provável encontrar: sombras que o perseguiam, fossem aquelas criaturas ardilosas do Inferno ou meros humanos.
De um jeito ou de outro, ele estava ferrado: como ex-chefe da organização secreta que eles chamavam de Operações Extraoficiais, Matthias tinha mais inimigos do que um ditador do Terceiro Mundo, e todos eles possuíam armas e podiam contratar quem as tivesse. E, como fugitivo do parquinho do diabo, nem era preciso mencionar que ele não escapara de graça da prisão.
Mais cedo ou mais tarde, alguém viria atrás dele. E, apesar de Matthias não possuir nada pelo que valesse a pena viver, seu ego era razão suficiente para lutar e se defender.
Ou pelo menos fazer de si um alvo menos fácil.
Começou a caminhar mancando e continuou com a graça de um espantalho – seu corpo sacudia com espasmos que culminavam numa marcha que doía como o diabo. Para conservar o calor, tentou abraçar a si mesmo, mas isso não durou muito. Precisava usar os braços para manter o equilíbrio.
Com movimentos de zumbi e a cabeça completamente confusa, ele continuou a caminhada, atravessando a grama desalinhada, passando pelas lápides, sentindo o toque da fria brisa que cortava sua pele. Não tinha a menor ideia de como conseguira escapar. Não sabia para onde iria. Que dia, mês, ano seria.
Roupas. Abrigo. Comida. Armas.
Assim que tivesse assegurado o básico, ele se preocuparia com o resto. Isso se não fosse abatido antes – afinal, um predador ferido se torna uma presa rapidamente. É a lei da selva.
Pensou ter encontrado mais uma sepultura ao se aproximar de uma construção de pedra com ornamentos de ferro fundido. Mas o nome “Cemitério Pine Grove” gravado no topo da fachada e a grande fechadura na porta frontal sugeriam que era uma instalação dos funcionários.
Felizmente, alguém deixara aberta uma fresta da janela dos fundos.
Mas é claro, a janela estava emperrada naquela posição.
Ele pegou um galho caído, o colocou na fresta e forçou até a madeira curvar.
A janela começou a ceder, soltando um chiado agudo.
Matthias congelou.
Pânico, uma sensação pouco familiar, que foi aprendida da maneira difícil, o fez girar e procurar as sombras. Conhecia aquele som. Era o barulho que os lacaios do demônio faziam quando estavam atrás de você...
Nada.
Apenas túmulos e postes de luz que, não importa o quanto sua adrenalina sugerisse o contrário, não se transformavam em nada.
Praguejando, ele voltou ao trabalho. Usou o galho como alavanca até abrir espaço suficiente para poder se espremer e passar. Erguer o corpo foi um sacrifício, mas, assim que seus ombros passaram, ele deixou a gravidade cuidar do resto. O chão de concreto no qual aterrissou parecia uma grade de ferro, e ele precisou de um tempo enquanto seu fôlego escapava da garganta, seu estômago embrulhava e dores surgiam em mais lugares do que ele conseguia contar.
No teto, luzes fluorescentes piscaram e depois acenderam de vez, cegando-o.
Malditos sensores de movimento. O lado bom era que, assim que seus olhos se ajustaram, ele teve uma clara visão de todo tipo de ferramenta de jardinagem. O lado ruim? Ele era um diamante em uma vitrine, pronto para ser capturado.
Pendurados em ganchos na parede, como se fossem peles de animais mortos, havia vários conjuntos de macacões impermeáveis, esperando para serem usados. Ele prontamente vestiu uma parte de baixo e uma parte de cima. Essas roupas foram feitas para ficar folgadas, mas em seu corpo pareciam grandes velas de um barco.
Melhor assim. Melhor com as roupas, mesmo elas cheirando a fertilizante, e mesmo com o atrito, que logo se tornaria um problema. Havia um boné do Boston Red Sox em um dos cantos, e Matthias o vestiu para ajudar a conservar o calor do corpo; então olhou ao redor procurando qualquer coisa que pudesse servir como bengala. As pás eram muito pesadas para ser eficientes, e os rastelos também não ajudariam.
Dane-se. Sua missão imediata era se afastar das luzes que banhavam o show de horrores do seu corpo.
Saiu da mesma maneira que entrou, forçando-se através da janela e aterrissando duramente no chão. Não tinha tempo para reclamar do impacto desta vez; precisava continuar se movendo.
Antes de morrer e ir para o Inferno, Matthias sempre fora o perseguidor. Caramba, durante sua vida inteira ele fora o caçador, aquele que espreitava, encurralava e destruía. Mas agora, retornando à escuridão daquelas sepulturas, todas as intangibilidades da noite eram perigosas até que se provasse o contrário.
Esperava que estivesse de volta em Caldwell.
Se estivesse, tudo o que precisava fazer era manter-se discreto e seguir para Nova York, onde possuía um abrigo com mantimentos.
Sim, rezava para que fosse Caldwell. Quarenta e cinco minutos ao sul pela estrada era tudo o que precisaria. Já acabara de arrombar e invadir um lugar; fazer uma ligação direta em um carro velho era outra habilidade que poderia ressuscitar.
Uma vida depois, ou pelo menos o que pareceu ser uma vida depois, ele chegou até o portão de ferro que cercava todo o terreno daqueles que descansam em paz. A coisa tinha uns três metros de altura, e as grades tinham pontas que poderiam ter sido facas em outra encarnação.
Encarando as barras que o mantinham do lado dos mortos, Matthias as agarrou e sentiu o frio do metal agarrá-lo de volta. Olhando para cima, concentrou-se no céu. As estrelas realmente cintilavam.
Engraçado, ele sempre pensou que isso fosse apenas um modo de dizer.
Respirando fundo, puxou ar puro e limpo para os pulmões e percebeu que tinha se acostumado com o fedor do Inferno. No começo, aquilo era o que mais detestava, aquele cheiro nauseante de ovo podre impregnado nas vias aéreas e que invadia a garganta e viajava até envenenar suas entranhas: mais do que um cheiro ruim, era uma infecção que entrava pelo nariz e conquistava todos os territórios que tocasse.
Mas ele se habituara.
Com o tempo, e em meio ao sofrimento, ele se acostumara ao horror, ao desespero, à dor.
Seu olho ruim, o que não conseguia usar, encheu-se de lágrimas.
Nunca conseguiria alcançar aquelas estrelas.
E essa pausa no sofrimento servia apenas para aumentar a tortura. Afinal, não existe nada como um período de alívio para revitalizar um pesadelo. Quando você retorna para a merda, o contraste aumenta tudo, eliminando a aclimatação e fazendo voltar o choque inicial.
Eles voltariam a persegui-lo. Afinal, era exatamente isso que ele merecia.
Mas, seja lá quanto tempo tivesse, lutaria contra o inevitável – não com a esperança de se livrar do Inferno, não pela possibilidade de um adiamento, mas simplesmente porque essa era uma função automática, que fazia parte do seu ser.
Matthias lutava pela mesma razão que cometera o mal.
Aquilo era simplesmente o que ele fazia.
Impulsionando a si mesmo para longe do chão, colocou contra as barras o pé que funcionava melhor e jogou seu peso para cima. Fez isso novamente. E de novo. O topo parecia estar a quilômetros de distância, o que apenas o fez concentrar-se mais em seu objetivo.
Uma eternidade depois, sua palma agarrou uma das pontas e seu braço enlaçou a perigosa lâmina.
Sangue escorreu rapidamente quando Matthias jogou a perna por cima do portão e uma das pontas cortou um pedaço de sua coxa.
Mas não havia motivo para voltar. Havia se comprometido, e de um jeito ou de outro a gravidade venceria e o puxaria para a terra – então era melhor que isso acontecesse lá fora do que dentro do cemitério.
Quando começou a cair, seus olhos focaram as estrelas. Ele chegou até a estender uma das mãos naquela direção.
O fato de que elas estavam cada vez mais distantes parecia apropriado.
CAPÍTULO 2
Mels Carmichael estava sozinha na redação. De novo.
Às nove da noite, o labirinto de cubículos do Correio de Caldwell estava povoado apenas por material de escritório, nada de pessoas – do ponto de vista do pessoal da redação, a edição do dia seguinte já zarpara para o mar: as prensas trabalhavam a todo vapor do outro lado do prédio.
Quando Mels se recostou na cadeira, as molas soltaram um chiado, e ela transformou aquele som em um instrumento, tocando uma musiquinha feliz que compusera após muitas noites iguais àquela. O título era “Rapidamente chegando a lugar nenhum”, e ela fazia um acompanhamento assoviando a parte do soprano.
– Ainda está aqui, Carmichael?
Mels se recompôs e cruzou os braços.
– Oi, Dick.
Seu chefe se esgueirou no pouco espaço que havia ali, com o sobretudo dobrado no braço e a gravata folgada ao redor do pescoço. Ele acabara de voltar da saideira no bar Charlie’s, onde os homens do jornal costumavam assistir esportes após o expediente.
– Trabalhando até tarde de novo? – Seus olhos percorreram os botões da blusa dela, como se esperasse que o uísque que tomou tivesse lhe dado poderes telecinéticos. – Tenho que dizer, você é bonita demais pra fazer isso. Você não tem namorado?
– Você me conhece, o trabalho é sempre mais importante.
– Bem... eu poderia dar algo para você trabalhar.
Mels imediatamente o encarou com firmeza:
– Obrigada, mas estou ocupada. Estou pesquisando sobre assédio sexual em mercados que antes eram dominados por homens, como companhias aéreas, esportes... jornalismo...
Dick franziu a testa como se não tivesse escutado o que esperava. O que era uma loucura. A reposta dela era a mesma desde o primeiro dia.
Mais de dois anos dando um fora nele. Deus, já tinha passado tanto tempo?
– É esclarecedor – ela esticou o braço e tocou o mouse, desativando a proteção de tela. – Muitas estatísticas. Poderia ser minha primeira reportagem de âmbito nacional. Igualdade de sexos na América pós-feminismo é um assunto quente hoje em dia... é claro, eu poderia apenas colocar no meu blog. Talvez você pudesse me dar uma declaração.
Dick arrumou o sobretudo em seu braço.
– Eu não te passei essa pauta.
– Sou uma pessoa de iniciativa.
Ele levantou a cabeça como se estivesse procurando outra pessoa para importunar.
– Só leio aquilo que eu mandei escrever.
– Você pode achar útil.
O cara tentou afrouxar a gravata e... surpresa! Já estava aberta.
– Está perdendo seu tempo, Carmichael. Vejo você amanhã.
Enquanto saía, vestiu aquele sobretudo estilo Walter Cronkite com lapelas dos anos 1970 e o cinto que ficava pendurado, fazendo parecer que parte das suas entranhas não estava onde deveria. Ele provavelmente tinha aquele casaco desde os tempos de Watergate, quando Woodward e Bernstein provavelmente o inspiraram a seguir seu próprio sonho jornalístico... que terminou no topo do expediente de um jornal de cidade pequena.
Nada mal para um emprego. Mas também não era nenhum chefe de redação do The New York Times, ou do The Wall Street Journal.
Isso parecia incomodá-lo.
Então, pois é, não era necessário ser um gênio para atribuir suas inadequações ao tédio de um ex-timoneiro calvo, amargurado por ter passado sessenta anos na intersecção entre o quase-lá e o meu-tempo-está-acabando.
Por outro lado, talvez ele fosse apenas um cretino mesmo.
O que estava claro na mente dela era que um cara mais parecido com uma rã do que com Jon Hamm não tinha nenhuma razão objetiva para acreditar que a resposta para os problemas de qualquer mulher estava dentro da calça dele.
Quando as portas duplas se fecharam, Mels respirou fundo e ficou imaginando um ônibus passando por cima daquele sobretudo anacrônico e deixando as marcas dos pneus. Mas, graças ao corte nos orçamentos, a linha de ônibus da rua Trade não passava mais depois das nove da noite e agora eram... sim, o horário já tinha acabado dezessete minutos atrás.
Ela encarou a tela do computador, sabendo que deveria ir para casa.
Seu artigo de iniciativa própria não era exatamente sobre chefes de olhar malicioso que fazem suas funcionárias pensarem que o transporte público seria uma ótima maneira de assassinar alguém. O artigo era sobre pessoas desaparecidas. As centenas de pessoas desaparecidas da cidade de Caldwell.
Caldie, como a cidade era conhecida, lar das pontes gêmeas, era também a líder nacional em desaparecimentos. Durante os últimos anos, a cidade de dois milhões de habitantes tivera o triplo de desaparecimentos de Manhattan (contando todos os seus cinco municípios) e Chicago – juntas. E o total da última década ultrapassara os números de toda a costa Leste. O que tornava tudo ainda mais estranho é que a questão não era só os números em si: acontece que as pessoas não estavam desaparecendo apenas temporariamente. Elas nunca voltavam e nunca eram encontradas. Nada de corpos, nada de vestígios e nada de relocação para outras jurisdições.
Era como se fossem sugadas para outro mundo.
Depois de toda sua pesquisa, Mels sentia que o horrível massacre em uma fazenda no mês anterior tinha algo a ver com a abundância de desaparecimentos...
Todos aqueles jovens estraçalhados.
As informações preliminares sugeriam que muitos daqueles que foram identificados já haviam sido declarados desaparecidos em algum ponto de suas vidas. Muitos deles eram casos de delinquência juvenil ou tinham antecedentes com drogas. Mas nada daquilo importava para as famílias – e nem deveria.
Não é preciso ser um santo para ser uma vítima.
A horripilante cena da zona rural de Caldwell foi notícia em âmbito nacional, com todos os canais enviando seus melhores repórteres, desde Brian Willians até Anderson Cooper. Os jornais também estavam presentes. Mas, mesmo com toda a atenção, a pressão dos políticos e o clamor por justiça de comunidades abaladas (e com razão), a verdadeira história ainda estava para surgir: a polícia de Caldwell tentava ligar as mortes a uma pessoa, qualquer pessoa, mas não conseguiu nada – mesmo trabalhando no caso dia e noite.
Mas tinha de haver uma resposta. Sempre há uma resposta.
E Mels estava determinada a descobri-la – pelo bem das vítimas e de suas famílias.
Além disso, esse era o momento para ela se destacar. Chegara a Caldwell aos 27 anos, depois de pedir transferência de Manhattan porque viver em Nova York estava muito caro e ela não estava chegando a lugar algum no New York Post. Seu plano era se mudar por seis meses, juntar algumas economias morando com sua mãe e depois se concentrar nos peixes grandes: The New York Times, The Wall Street Journal, talvez até um emprego de correspondente na CNN.
Mas não foi exatamente como as coisas aconteceram.
Voltando a focar na tela do computador, ela vasculhou as colunas que conhecia de cor, buscando padrões que ainda não tinha enxergado... pronta para encontrar a chave que abriria a porta não apenas da história, mas também de sua vida.
O tempo estava passando depressa, e Deus sabe que ela não era imortal...
Quando Mels deixou a redação, por volta das nove e meia, aquelas linhas de informação continuavam surgindo em sua mente sempre que piscava, como se fosse um videogame que ela tivesse jogado por muito tempo.
Seu carro, que batizara de Josephine, era um Honda Civic de doze anos com quase 125 mil quilômetros rodados – e a Fifi estava acostumada a esperar por ela no frio da noite. Mels deu partida naquele velho motor de máquina de costura e foi embora, deixando para trás seu emprego meia boca. E foi para a casa de sua mãe. Aos trinta anos de idade.
Que bela profissional. E pensava que iria acordar magicamente na manhã seguinte como uma Diane Sawyer sem o spray de cabelo?
Seguindo pela rua Trade para fora do centro da cidade, deixou os prédios de escritório para trás, passou pelas boates e ruas abandonadas do lado sujo do município. Ao final de todos aqueles prédios com janelas lacradas, as coisas melhoraram quando entrou nos arredores de uma vizinhança residencial, com casas bonitas e ruas com nomes de árvores...
– Meeeerda!
Virando o volante com força para a direita, tentou evitar o homem que apareceu no meio da rua, mas era tarde demais. Ela o acertou em cheio, erguendo-o com o para-choque até ele voar em seu para-brisa, cujo vidro laminado estilhaçou-se com um lampejo brilhante.
E aquele foi apenas o primeiro de três impactos.
O corpo do homem simplesmente voou pelos ares, e Mels teve a terrível visão dele atingindo o pavimento com força. E então ela teve seus próprios problemas. O impacto desviou o carro, que atingiu o meio-fio. Os freios diminuíram o impulso, mas não rápido o suficiente – e então se tornaram inúteis quando o carro também saiu do chão.
O carvalho que os faróis iluminaram fez seu cérebro realizar um raciocínio rápido: ela ia atingir a maldita coisa, e isso ia doer muito.
A colisão fez um barulho seco, um estampido ao qual ela não prestou muita atenção – estava ocupada recebendo o air bag em seu rosto, e a falta do cinto de segurança veio com tudo para morder seu traseiro. Ou a virilha, nesse caso.
Mels foi jogada para a frente e ricocheteou para trás, e um pó vindo do air bag invadiu seu olhos, nariz e pulmões, causando irritação e fazendo-a engasgar. Então tudo ficou silencioso.
No final, tudo o que podia fazer, assim como a pobre Fifi, era ficar onde estava. Debruçada sobre o air bag vazio, ela tossiu um pouco...
Alguém estava assoviando.
Não, era o motor que soltava vapor de algo que deveria estar selado.
Ela virou a cabeça com cuidado e olhou para fora através da janela do motorista. O homem estava caído no meio da rua, totalmente parado, parado demais.
– Oh... meu Deus...
O rádio do carro ganhou vida, arranhando a princípio, depois se recuperando com um curto circuito. Uma música... qual era?
Do nada, uma luz surgiu no meio da estrada, iluminando a pilha de trapos que ela sabia ser uma pessoa. Piscando, imaginou se aquele seria o momento em que descobriria as respostas sobre a vida após a morte.
Não era exatamente o furo jornalístico que ela esperava, mas aceitaria mesmo assim...
Porém, não era nenhum tipo de chegada celeste. Eram apenas faróis.
Um sedan derrapou até parar e duas pessoas saíram do carro. O homem correu para a vítima, a mulher correu até ela. A boa samaritana de Mels teve que se esforçar para abrir a porta, mas, depois de alguns puxões, ar fresco substituiu o cheiro ruim de plástico do air bag.
– Você está bem?
A mulher tinha cerca de quarenta anos e parecia rica, seu cabelo estava arrumado para cima, os brincos dourados brilhavam, suas roupas finas e elegantes não combinavam com aquele cenário de acidente.
Ela pegou um iPhone.
– Chamei a emergência; não, não se mova. Você pode ter uma lesão no pescoço.
Mels se rendeu à súbita pressão em seu ombro, mantendo-se junto ao volante.
– Ele está bem? Eu não enxerguei... apareceu do nada.
Pelo menos, foi isso que ela tentou dizer. Seus ouvidos captaram apenas murmúrios que não faziam sentido algum.
Dane-se a lesão no pescoço; estava preocupada com seu cérebro.
– Meu marido é médico – disse a mulher. – Ele sabe o que fazer com o homem. Só se preocupe com você mesma...
– Não o vi. Não o vi – ah, bom, isso soou mais inteligível. – Voltando do trabalho. Eu não...
– É claro que não. A mulher se ajoelhou. Realmente, ela parecia a esposa de um médico – e cheirava a perfume caro.
– Apenas fique parada, a ambulância está chegando...
– Ele está vivo, pelo menos? – Lágrimas surgiram nos olhos de Mels, substituindo uma irritação por outra. – Oh, meu Deus, eu matei ele?
Quando começou a tremer, ela lembrou qual era aquela canção... Blinded by the light, pensou.
– Porque meu rádio ainda está funcionando? – ela murmurou entre as lágrimas.
– Como é? – disse a mulher. – Que rádio?
– Você não está escutando?
O que se seguiu foi um gentil e alarmante toque em seu ombro.
– Apenas respire fundo e fique comigo.
– Meu rádio está tocando...
CAPÍTULO 3
– Está calor aqui? Quero dizer, você acha que está calor aqui?
O demônio cruzava e descruzava suas longas pernas à la Gisele Bündchen enquanto puxava o decote de seu vestido.
– Não, Devina, não acho – a terapeuta do outro lado da sala era exatamente como o sofá em que estava sentada: fofa e reconfortante. Até seu rosto era como um travesseiro de algodão, com as linhas de expressão parecendo bordadas em tecido macio. – Mas posso abrir uma janela se você quiser.
Devina recusou balançando a cabeça e enfiou a mão dentro de sua bolsa Prada. Além da carteira, chiclete de menta, uma garrafa de Smartwater e uma barra de chocolate Green & Black’s Organic Dark, havia vários batons YSL Rouge pur Couture. Pelo menos... deveria haver.
Enquanto ela procurava, tentou parecer casual, como se estivesse checando se não perdeu as chaves.
Na verdade, ela estava contando para se certificar de que ainda tinha treze tubos do batom: começando pelo da esquerda no fundo da bolsa, foi movendo para a direita. Treze era o número correto. Um, dois, três...
– Devina?
... quatro, cinco, seis...
– Devina.
Quando perdeu a conta, ela fechou os olhos e lutou contra a tentação de estrangular quem fizera a interrupção...
Sua terapeuta limpou a garganta. Tossiu. E depois engasgou.
Devina abriu os olhos e encontrou a mulher com as mãos no pescoço, parecendo que tinha engolido um McLanche Feliz da maneira errada. Foi bom ver a dor e a confusão, um pequeno show que fez Devina apertar os dedos dos pés, pedindo por mais.
Mas a diversão não podia ir mais longe. Se perdesse essa terapeuta, o que seria dela? Estavam fazendo progresso, e encontrar outra pessoa com quem sentisse uma conexão poderia tomar um tempo que ela não tinha.
Praguejando, o demônio chamou de volta seus cães mentais, aliviando a esganadura invisível que lançara sem perceber.
A terapeuta respirou fundo e olhou ao redor, aliviada.
– Eu... ah... acho que vou abrir a janela.
A mulher se levantou, alheia ao fato de que suas habilidades como psicóloga haviam acabado de salvar sua vida. As duas se encontravam cinco vezes por semana nos últimos dois meses, conversando por cinquenta minutos ao custo de 75 dólares por sessão. Graças a toda aquela baboseira emotiva, os sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo de Devina estavam ficando um pouco mais fáceis de aguentar. E, considerando como as coisas estavam caminhando na guerra contra aquele anjo Jim Heron, a terapia seria muito necessária na próxima rodada.
Devina não podia acreditar que estava perdendo.
Na batalha derradeira pela supremacia na Terra, aquele anjo vencera duas vezes. Havia apenas mais quatro almas na disputa. E se ela perdesse mais duas? Não sobraria nada dela ou de sua coleção: tudo desapareceria, aqueles objetos preciosos que juntara durante os milênios, cada qual uma valiosa lembrança de seu trabalho, estariam perdidos, perdidos, perdidos. E isso não era a pior parte. Suas crianças, aquelas gloriosas almas torturadas e presas em seu muro, seriam incorporadas pelo bem, pelos beatos, pelos imaculados.
Esse mero pensamento a deixava enjoada.
E, ainda por cima, ela tinha acabado de ser penalizada pelo Criador.
A terapeuta voltou a se ajeitar nas almofadas depois de sua busca por ar fresco.
– Então, Devina, conte o que está em sua mente.
– Eu... ah... – quando a ansiedade subiu, ela levantou a bolsa, procurando algum furo; não encontrou nenhum. – Tem sido difícil...
Nenhum dos batons poderia ter caído, ela disse a si mesma. E havia checado o número antes de sair de seu covil. Treze, um perfeito treze. Então, logicamente, estavam todos lá. Tinham de estar.
Mas... oh, Deus, talvez ela tivesse segurado a bolsa de lado e deitado um deles cair por não ter fechado o zíper...
– Devina – disse a terapeuta –, você parece muito nervosa. Pode me dizer o que está acontecendo, por favor?
Fale, disse a si mesma. Era a única maneira para escapar disso. Mesmo que contar, arrumar, checar e recontar parecessem a solução, ela gastaria milênios fazendo isso sem chegar a lugar algum. E esse novo jeito estava funcionando. Mais ou menos.
– Aquele novo colega de trabalho de que eu te falei... – ela abraçou a bolsa, segurando tudo com o corpo que assumia quando andava entre os macacos. – Ele é um mentiroso. Um completo mentiroso. Ele me enganou... e eu fui acusada de jogar sujo.
Desde que começara a terapia, ela vinha explicando a guerra contra o anjo Jim Heron em termos que um humano do começo do século XXI pudesse entender: ela e seu inimigo eram colegas em uma empresa de consultoria, e competiam pela vice-presidência. Cada alma que disputavam era um cliente. O Criador era o CEO, e os dois tinham um número limitado de tentativas para impressioná-lo. Blá, blá, blá. A metáfora não era perfeita, mas era melhor do que se revelar completamente e correr o risco de sua terapeuta perder a cabeça, ou pensar que Devina não era apenas compulsiva, mas digna de um manicômio.
– Pode ser mais específica?
– O CEO enviou nós dois para um cliente em potencial. No final, o homem nos contratou e queria trabalhar comigo. Tudo estava bem. Eu estava contente, o cliente estava... – bem, não contente. Matthias não estava nem um pouco contente, o que era mais uma razão para ela ficar satisfeita com a vitória: quanto mais sofrimento, melhor. – Estávamos cuidando do cliente, e tudo estava combinado, o contrato estava assinado, o assunto encerrado. Então fui chamada para uma reunião idiota e me disseram que teríamos que disputar o cliente de novo.
– Você e seu colega de trabalho, certo?
– Isso! – ela jogou as mãos para cima. – Quer dizer, qual é? Estava feito. Estava tudo combinado. A disputa tinha terminado. E agora temos que refazer tudo? Que merda é essa? E daí o CEO disse pra mim: “Bom, você ainda pode ficar com a comissão pelo contrato.” Como se isso compensasse tudo!
– Melhor do que perder tudo.
Devina balançou a cabeça. A mulher simplesmente não entendia. Uma vez que ela se apoderava de algo, se deixasse isso escapar, ou se alguém a roubasse, era como se uma parte de seu verdadeiro corpo fosse removida: Matthias fora arrancado de seus muros e colocado novamente na Terra.
Francamente, o poder do Criador era a única coisa capaz de assustá-la.
Além de suas próprias compulsões.
Não conseguiu controlar a ansiedade: abriu a bolsa novamente e recomeçou a contar...
– Devina, você trabalhou bem com o cliente, certo?
Ela fez uma pausa.
– Sim.
– E você possui um bom relacionamento com ele ou ela?
– Ele. Sim.
– Então você está numa posição mais vantajosa do que seu colega de trabalho, não é?
A terapeuta fez um gesto com as mãos, como se dissesse “então, qual o problema?”.
– Não tinha pensado assim – estivera irritada demais para isso.
– Você deveria. Mas, eu devo dizer, tem uma coisa que está me confundindo. Por que o CEO sentiu a necessidade de intervir? Especialmente se o cliente não apenas assinou um contrato, como também parecia satisfeito?
– Ele não aprovou algum dos... métodos... usados para assegurar o negócio.
– Métodos seus?
Quando Devina hesitou, os olhos da terapeuta rapidamente focaram o decote que a paciente usava.
– Sim, meus – disse o demônio. – Mas, qual é, eu consegui o cliente e ninguém pode criticar minha ética no trabalho: estou trabalhando o tempo todo. Literalmente. Não tenho vida que não seja meu trabalho.
– Você aprova as táticas que usou?
– É claro. Consegui o cliente, isso é tudo que importa.
O silêncio que se seguiu sugeria que a terapeuta não aprovava essa coisa de “fins justificando os meios”. Mas que se dane, isso era problema dela – e era provavelmente a razão de ela parecer um travesseiro e passar os dias escutando os problemas dos outros.
Em vez de governar o mundo inferior e ficar uma gostosa usando sapatos Louboutins...
Quando a ansiedade apertou de novo, Devina começou outra recontagem, jogando os batons um atrás do outro, da esquerda para a direita. Um, dois, três...
– Devina, o que você está fazendo?
Por uma fração de segundo, ela quase atacou de verdade. Mas a razão e um chamado para a realidade prevaleceram: as compulsões estavam quase dominando-a completamente. E não se pode ser efetivo contra um inimigo como Jim Heron quando se está presa em uma eterna ansiedade causada por objetos que se sabem perfeitamente bem que não foram perdidos, movidos ou tocados por nenhuma outra pessoa.
– Batom. Estou apenas me certificando de que trouxe meus batons.
– Certo. Bom, quero que você pare com isso.
Devina levantou o olhar com verdadeiro desespero.
– Eu... não consigo.
– Sim, você consegue. Lembre-se, o problema não são os objetos. Você deve lidar com seus medos de maneira mais efetiva e permanente do que simplesmente cedendo às compulsões. Você sabe, o alívio que consegue no final de um ritual nunca, nunca dura mais que uma fração de segundo; e nunca ataca a raiz do problema. O fato é que, quanto mais obedece às compulsões, mais fortemente elas controlam você. A única maneira de melhorar é aprender a suportar a ansiedade e repensar os impulsos como algo que você pode controlar; e não o contrário – a terapeuta se inclinou para frente, com uma seriedade de quem vai dizer algo cruel, mas para o seu bem. – Quero que você jogue um deles fora.
– O quê?
– Jogue um dos batons fora – a terapeuta se esticou para o lado e pegou um cesto de lixo cor-de-rosa. – Agora mesmo.
– Não! Deus, você está louca? – O pânico se espalhou pelo seu corpo. As palmas das mãos começaram a suar, seus ouvidos zumbiram, seus pés adormeceram. Logo, a onda se propagou: seu estômago embrulhou, o fôlego foi se perdendo, o coração batia mais rápido. Tudo isso pareceu durar uma eternidade. – Eu nunca vou conseguir...
– Você consegue e, além do mais, você precisa. Escolha a cor de que menos gosta e coloque no cesto.
– Não tenho uma cor de que eu não gosto, todos são da mesma cor: 1 Le Rouge.
– Então qualquer um vai servir.
– Não consigo... – lágrimas ameaçavam cair. – Não consigo...
– Pequenos passos, Devina. Essa é a chave da terapia cognitiva comportamental. Temos que tirar você da zona de conforto, te expor ao medo, e então te conduzir a superar o obstáculo para que aprenda que pode chegar inteira do outro lado. Faça isso muitas vezes e o transtorno vai começar a perder o controle sobre seus pensamentos e suas decisões. Por exemplo, o que acha que vai acontecer se jogar um deles fora?
– Terei um ataque de pânico. Principalmente quando chegar em casa e o batom não estiver comigo.
– E depois?
– Vou comprar outro para substituir, mas não vai ser o mesmo que joguei fora, então não vai adiantar nada. Vou só ficar mais compulsiva...
– Mas você não vai morrer.
É claro que não, ela era imortal. Contanto que ganhasse a guerra, obviamente.
– Não, mas...
– E o mundo não vai acabar.
Bem, não por causa do batom.
– Mas vai parecer que sim.
– Emoções vêm e vão. Não duram para sempre – a mulher balançou o cesto. – Vamos lá, Devina, vamos tentar. Se você achar que é muita coisa para aguentar, pode pegar o batom de volta. Mas precisamos começar a nos concentrar nisso.
Como previsto, um ataque de ansiedade começou a surgir, mas, ironicamente, foi o medo que a fez prosseguir: medo de ser dominada por esse problema que não conseguia controlar, medo de que Jim vencesse não porque era o melhor no jogo do Criador, mas porque ela não suportava a pressão; medo de nunca conseguir mudar...
Devina enfiou a mão na bolsa e agarrou o primeiro batom que encontrou. Então jogou fora. Apenas o deixou cair no cesto de lixo.
O som macio que o objeto fez ao acertar os lenços de papel dos pacientes anteriores pareceu o portão do Inferno se fechando atrás dela.
– Bom trabalho – disse a terapeuta, como se Devina fosse uma garotinha de cinco anos que tinha recitado o alfabeto. – Como se sente?
– Como se fosse vomitar – olhando para o cesto, a única coisa que a impediu de vomitar foi o fato de que faria isso em cima do batom.
– Você pode classificar sua ansiedade numa escala de um a dez?
Quando Devina disse “dez”, a terapeuta começou um discurso sobre respirar durante o pânico, blá, blá, blá...
A mulher se inclinou para frente de novo, como se soubesse que não estava sendo ouvida.
– O importante não é o batom, Devina. E a ansiedade que você sente agora não vai durar para sempre. Não vamos exigir demais de você, e vai ficar impressionada com os avanços. A mente humana pode ser reprogramada, podemos criar novos caminhos de experiência. A terapia de exposição funciona: é tão poderosa quanto as compulsões. Você precisa acreditar nisso, Devina.
Com a mão trêmula, o demônio limpou o suor da testa. Então, recompondo-se dentro de seu traje de carne humana, ela assentiu.
A mulher que parecia um travesseiro estava certa. O que Devina vinha fazendo até então não estava funcionando. As coisas estavam piorando, e os riscos só aumentavam.
Afinal, ela não apenas estava perdendo... também estava apaixonada pelo inimigo.
Não que gostasse de se lembrar disso.
– Você não precisa acreditar que isso vai funcionar, Devina. Apenas tem que acreditar nos resultados. É difícil, mas você consegue. Tenho fé em você.
Devina observou os olhos da humana e invejou a convicção da terapeuta. Inferno, uma pessoa com aquele tipo de confiança devia estar delirante... ou se apoiando em muita experiência e treinamento.
Houve um tempo em que Devina também tinha essa confiança em si mesma.
E precisava ter isso de volta.
Jim Heron provara ser muito mais do que um oponente digno e uma boa transa. E ela não podia deixá-lo manter a vantagem. Perder não era uma opção. Assim que a sessão de terapia terminasse, ela precisava voltar ao trabalho com a mente limpa e livre de qualquer besteira.
Devina fechou os olhos e se ajeitou na poltrona, apoiando as mãos nos braços estofados e enterrando as unhas no tecido aveludado.
– Como está se sentindo? – perguntou a terapeuta.
– Como se fosse superar isso de um jeito ou de outro.
CAPÍTULO 4
– Apenas me diga se ele está vivo ou não.
A enfermeira ao lado da cama simplesmente ignorou o pedido de Mels. Oferecendo uma caneta, a mulher disse:
– Se você assinar esses papéis eu passarei as receitas...
Danem-se os papéis.
– Preciso saber se o homem sobreviveu.
– Por lei, eu não posso divulgar a condição de nenhum paciente. Assine aqui para eu poder te liberar.
Leia-se: Não encha minha paciência e me deixe voltar a trabalhar.
Praguejando baixinho, Mels assinou no local indicado e guardou as duas folhas de papel e a cópia, enquanto a enfermeira partia para aterrorizar o próximo paciente.
Que noite! A boa notícia era que a polícia estava pelo menos chamando aquilo de acidente, reconhecendo que ela não tinha sido negligente ou bebido. Mas ainda havia problemas...
Observando seus papéis de alta, ela passou a vista nas notas. Concussão leve. Distensão no pescoço. Retorno com seu médico de preferência em uma semana ou mais cedo no caso de visão dupla, náusea, tontura ou piora da dor de cabeça.
O carro provavelmente sofrera perda total.
E não havia como o homem ter sobrevivido.
Com um grunhido, ela sentou, encostando-se nos travesseiros, e sua cabeça enfaixada registrou o movimento como se fosse o giro de uma bailarina. Enquanto esperava a tontura passar, ela observou suas roupas penduradas em uma cadeira de plástico laranja à sua frente. Ela pudera manter o sutiã e a calça durante os exames. A camisa, a jaqueta e o casaco estavam apenas esperando para ser vestidos de novo.
Mels não ligou para sua mãe.
A família já passara por um acidente automobilístico – e, naquele caso, a pessoa que não tinha sobrevivido era seu pai.
Então, pois é, apenas mandou uma mensagem de texto dizendo que sairia com os amigos e chegaria em casa mais tarde. A última coisa de que precisava era deixar sua mãe nervosa e insistindo em ir buscá-la no hospital, especialmente levando em consideração o que ela queria fazer agora.
Mels começou lentamente o esforço para vestir-se, embora esse atraso não tivesse nada a ver com ser uma boa paciente. Evidentemente, o choque de ter se sentido como um boneco de teste de colisão não era algo de que podia se livrar facilmente. Ela sentia-se velha e decrépita – e estranhamente aterrorizada.
Ter matado alguém... era inimaginável.
Ela enfiou os papéis na bolsa, abriu a cortina verde e encarou o enorme caos do hospital: pessoas com jalecos brancos e batas de enfermeira andavam para cima e para baixo, entrando e saindo de quartos, dando e obedecendo ordens.
Considerando que já estivera em uma colisão naquela noite, ela foi cuidadosa para não entrar no caminho de ninguém enquanto se dirigia para a saída.
Que ela não usou.
A sala de espera estava cheia de pessoas buscando cuidados médicos, incluindo um cara com um olho roxo e uma mão cheia de ataduras que sangrava muito. Ele levantou a cabeça, olhou para Mels e assentiu, como se compartilhassem uma ligação por terem começado uma briga em um bar.
Pois é, você deveria ver como o carvalho ficou depois que eu acabei com ele. Toca aqui.
Na recepção, ela se instalou no balcão e esperou até ser notada. Quando um homem se aproximou, Mels sorriu como se o assunto não fosse muito importante.
– Você pode me dizer o número do quarto daquele desconhecido que foi atropelado?
– Ei, eu te conheço. Você é repórter.
– Sim – ela enfiou a mão dentro da bolsa, pegou seu passe de imprensa e o mostrou, como se fosse um distintivo do FBI. – Você pode me ajudar?
– É claro – ele começou a digitar no teclado. – Ele foi transferido para um quarto hospitalar. Número 666. É só pegar o elevador e seguir as placas.
– Obrigada – Mels deu uma leve batida no balcão. Pelo menos, ele ainda estava respirando. – Você ajudou muito.
– Sabe, você não parece muito bem – disse o enfermeiro, fazendo um círculo em volta de seu olho.
– Noite difícil.
– Estou vendo.
A viagem até o sexto andar foi um exercício de processamento de informações, em que seu cérebro falhou miseravelmente. Para começar, ainda sentia tontura, e a subida fez seu ouvido zumbir tanto que foi preciso segurar no corrimão. Ótima ideia colocar um corrimão no elevador; afinal, gente com tontura era parte da rotina por ali. E o fato de a parede ser revestida com metal cinza fosco era outro benefício. Ela ainda não tinha se olhado no espelho, mas, pela maneira como o enfermeiro a olhou na recepção, o air bag que ela quase comera provavelmente não fizera muito bem à sua pele.
A campainha do elevador era alegre como se estivesse na Disneylândia, mas as portas se abriram tão vagarosamente que pareciam exaustas.
Seguindo as instruções, ela observou as placas e encontrou a direção, entrando em um longo e amplo corredor marcado por incontáveis portas largas. Tudo era mais quieto por lá, e ninguém na estação das enfermeiras se manifestou enquanto ela se aproximava. Melhor assim – não queria correr o risco de alguém começar a fazer perguntas, não gostar das repostas e enviá-la de volta.
O quarto ficava quase no final do corredor, e ela meio que esperava ver um policial de guarda na porta. Mas não havia nada nem ninguém. Apenas mais uma porta com uma placa amarela numerada no batente e uma superfície laminada, que parecia madeira de pinheiro.
Empurrando a porta, ela se inclinou para dentro. Sob a luz fraca, pôde ver o pé da cama, uma janela na parede mais distante e uma TV instalada no teto. O som de bipes e o cheiro de desinfetante provavam que aquilo não era um quarto de hotel – não que ela precisasse de ajuda para saber disso.
Mels limpou a garganta.
– Olá?
Quando não houve resposta, entrou e deixou a porta entreaberta. Passando pelo banheiro, parou quando teve uma visão clara do paciente.
Então levou as mãos ao rosto e cobriu a boca quando seu queixo caiu.
– Oh... meu Deus!
No pequeno apartamento acima da garagem que alugava na zona rural, Jim Heron não conseguia dormir.
Todos ao redor dormiam como pedras: o Cachorro estava ao pé da cama, suas patas tremendo enquanto sonhava com coelhos ou esquilos... ou talvez com sombras negras que possuem presas. Adrian estava sentado em um canto, com as costas contra a parede e o corpo tenso, apesar da respiração regular. E Eddie? Bom, o cara estava morto, então não era como se estivesse andando por aí em círculos.
Desesperado por um cigarro, Jim saiu da cama pelo lado errado, para evitar perturbar o Cachorro, e pegou seu maço de Marlboro. Antes de sair, se aproximou para checar Adrian.
Sim. Dormindo sentado.
Com uma adaga de cristal na mão, caso alguém viesse atrás de seu amigo.
Pobre coitado. A perda de Eddie fora um duro golpe na equipe... mas fora particularmente ruim para aquele maluco tatuado cheio de piercings que estava em vigília desde o dia da morte.
Por que será que, quando um homem tenta esconder sua dor, parece ser muito mais triste do que se estivesse em qualquer tipo de histeria e choradeira?
E, em uma nota não relacionada, Jim estava estranhando trabalhar com parceiros.
No tempo em que era um assassino das Operações Extraoficiais, ele agia estritamente sozinho. Agora tanta coisa tinha mudado, desde seu chefe e o tipo de trabalho, passando por suas armas – e Eddie Blackhawk era quem mostrava o caminho, ensinando o que precisavam saber, acalmando ele e Adrian quando os dois discutiam, sendo a voz da razão em situações nas quais parecia não haver lógica... como quando se está diante do próprio cadáver. Ou quando se luta contra um demônio que gosta de usar Prada e que tem uma queda por homens que a rejeitam. Ou quando se leva nas costas o futuro das boas almas, e das más, e de todas aquelas que já existiram ou que iriam existir.
Tipo de coisa que fazia a pessoa querer trocar de emprego com o cara que frita hambúrgueres na lanchonete.
Praguejando, Jim andou até o sofá, pegou uma jaqueta de couro e cobriu as pernas de Adrian. O outro anjo grunhiu e se ajeitou no chão, mas continuou debaixo da jaqueta. Ótimo – o objetivo era manter o cara aquecido, não conversar com ele.
Jim não estava a fim de conversar com ninguém.
Mas isso não era novidade.
Ele pisou no patamar no topo da escada e o ar frio percorreu a pele nua de seu peito. Antes de ter um colega de quarto e um cão, ele sempre dormira nu. Agora usava um moletom. O que o ajudava era o fato de que as noites de abril eram muito frias em Caldwell.
Não que ele dormisse muito.
O maço de Marlboro ainda estava embrulhado e Jim o bateu contra a palma da mão enquanto fechava a porta silenciosamente. Uma das vantagens de ser ao mesmo tempo imortal e corpóreo é que você não precisa se preocupar com câncer, mas a nicotina faz efeito em seu sistema nervoso.
E também não precisa procurar um isqueiro no bolso.
Ele rasgou a embalagem, retirou um cigarro, colocou-o nos lábios e levantou a mão. Quando seu dedo indicador se iluminou ao seu comando, ele pensou em Eddie novamente – e, como de costume, desejou matar Devina.
Pelo menos, os caras do bem ainda estavam com vantagem de dois a um na guerra. Se conseguisse mais duas vitórias, tudo terminaria: ele livraria a Terra das garras do demônio, manteria sua mãe segura na Mansão das Almas... e tiraria sua Sissy do Inferno.
Não que ela fosse sua.
Ele exalou o ar. Não tinha total certeza sobre Sissy, mas as coisas tinham de funcionar assim, não é? Se os anjos ganhassem e Devina deixasse de existir, ele poderia ir lá embaixo e livrar aquela pobre garota da prisão. O Inferno seria dele para fazer o que quisesse.
Certo?
Com essa deixa, começou a imaginar quem seria a próxima alma.
Pensou em seu novo chefe e ouviu a voz com sotaque britânico em sua cabeça. O som macio orgulhoso das palavras de Nigel ecoava ao redor, irritando-o: Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
– Muito obrigado – murmurou enquanto a fumaça escapava de seus lábios junto com a respiração. – Ajudou muito, cara.
Era completamente injusto que sua inimiga soubesse quem era o alvo e ele não.
Que merda.
Na última rodada, ele enganara Devina para conseguir a informação, mas ela não cairia nessa de novo – diga o que quiser sobre aquele demônio, mas ela não era uma loira burra, nem de longe. E isso significava que lá estava ele de novo, emperrado em ponto morto, enquanto o inimigo com certeza saía na frente.
Esse era precisamente o mesmo problema que ele tivera na disputa pela alma de seu antigo chefe. Durante todo o tempo, ele pensou que era outra alma que estava em jogo, mas no fim era Matthias quem estava sendo disputado.
Mas já era tarde, e o filho da puta havia feito a escolha errada.
Vencedora: Devina.
Nesse ritmo, o jogo estava destinado a ser injusto, enquanto Devina continuasse interagindo diretamente com as almas. De acordo com as regras, Jim era o único que poderia fazer isso, mas, na prática, ela fazia parte do corpo a corpo tanto quanto ele. Naturalmente, Nigel, o chefe dos escoteiros, estava convencido de que ela seria punida por pisar fora de seus limites – e talvez até fosse. Mas quem poderia saber quando e onde?
Nesse meio tempo, Jim não tinha outra escolha além de ficar esperto e torcer para não estragar tudo.
Ele precisava vencer. Por sua mãe... e por Sissy.
Ele tragou e exalou outra vez, observando a fumaça girar no ar frio e subir até desaparecer. Ao piscar os olhos, viu uma imagem de Sissy Barten, aquela linda jovem, pendurada de cabeça para baixo em uma banheira de porcelana branca, o sangue vermelho vivo manchando seus cabelos dourados, a pele marcada com símbolos que ele nunca vira antes, mas que Eddie tinha entendido muito bem...
O som discreto de algo raspando o fez perder a linha de raciocínio, então ele virou para trás e abriu a porta do apartamento. O Cachorro saiu mancando com o pelo todo desgrenhado – o que era seu estado natural, e não consequência de ter dormido em uma posição esquisita.
– Ei, amigo! – Jim disse com a voz macia enquanto fechava a porta. – Você precisa ir lá fora?
O pobre e velho cão tinha dificuldade com as escadas, então Jim geralmente o carregava até o chão. Quando ele se abaixou para pegá-lo, o Cachorro prontamente se sentou: era sua maneira de dizer que queria ser apanhado e carregado.
– Sim, senhor.
O animal, que Jim sabia ser mais do que um vira-lata qualquer, pesava quase nada em seu braço, e era quente como um bico de Bunsen.
– Eu disse pra ela pensar em você – Jim disse, segurando o cigarro longe do Cachorro, só para o caso de estar errado quanto ao cão ser especial. – Eu disse pra Sissy pensar em você mastigando minhas meias. Quero que ela imagine você brincando na grama fresca quando as coisas ficarem...
Não podia terminar aquele pensamento em voz alta.
Em seu tempo de vida, Jim fizera muitas coisas feias, horrorosas, para pessoas feias e horrorosas – o que significava que há muito tempo já se tornara durão em relação às suas emoções...
Bom, na verdade, isso tinha acontecido ainda quando era adolescente. Naquele dia, quando tudo mudou para sempre.
No dia em que sua mãe foi assassinada.
Dane-se. São águas passadas.
O fato era que a ideia de Sissy mergulhada no Poço das Almas do demônio era suficiente para fazer até um soldado endurecido pela guerra perder a cabeça.
– Eu disse a ela... pra pensar em você, quando sentisse que não conseguiria aguentar mais.
A pequena cauda do Cachorro balançou para um lado e para o outro, como se Jim tivesse feito a coisa certa.
É, esperava que ela estivesse pensando no Cachorro lá embaixo, e que isso lhe desse um pouco de alívio.
Pois não havia mais nada.
– Preciso encontrar a próxima alma – sussurrou Jim antes de fumar outro trago do cigarro. – Preciso saber quem é o próximo na lista. Precisamos vencer, Cachorro.
Aquele nariz frio e molhado encostou em seu rosto, e ele teve o cuidado de soprar a fumaça por cima do ombro.
O fato de Nigel dizer que Jim conhecia a alma não significava absolutamente nada. Ele conhecera muita gente durante sua vida.
Podia apenas rezar para que fosse alguém que ele pudesse trazer para o seu lado.
CAPÍTULO 5
Matthias percebeu o momento em que não estava mais sozinho. A luz ao redor se intensificou, significando que uma porta se abriu, e isso não acontecia por acaso.
Sua mão direita se fechou por reflexo, como se segurasse uma arma. Mas isso era tudo o que podia fazer. Seu corpo estava imóvel por causa da dor, como se uma corrente o prendesse onde quer que ele estivesse deitado... era uma cama. Sim, estava numa cama, e o som ambiente cheio de bipes lhe informava que tipo de cama. Um hospital. Ele ainda estava no hospital.
Será que nunca iria se recuperar da...
Seus pensamentos empacaram nesse ponto.
Não havia nada além de um buraco negro.
Não fazia ideia da razão de estar ali. Nenhuma pista de por que seu corpo doía tanto. Não... Deus, sabia apenas que seu nome era Matthias, e nada mais.
O pânico o fez arregalar os olhos. Havia uma mulher ao pé da cama, aterrorizada, com as mãos no rosto e uma expressão de completo choque. Um de seus olhos estava roxo e sua testa estava enfaixada. O cabelo preto estava preso para trás. Olhos bonitos. Alta... ela era alta...
Olhos lindos, na verdade.
– Eu sinto muito – ela disse, com a voz rouca.
Como é?
– Sobre...? – a voz dele estava áspera, a garganta doía. E um de seus olhos não funcionava direito.
Não, o olho estava completamente inutilizado. Perdera metade da vista no passado. Foi isso mesmo, quando ele era...
Franziu a testa e seus pensamentos caíram no abismo novamente.
– Eu te atropelei. Sinto muito... não enxerguei você. Estava tão escuro, e você apareceu na rua antes que eu pudesse frear.
Ele tentou estender a mão, em um impulso para acalmá-la que ultrapassou a dor e a confusão.
– Não foi sua culpa... não... sem lágrimas. Venha...
Por algum motivo, ele não podia acreditar que alguém choraria por ele, agora ou em qualquer tempo. Não era o tipo de homem que inspira reações assim. Não ele. Mas por que isso era assim, ele não sabia...
A mulher se aproximou um pouco, e Matthias observou com seu olho bom enquanto ela estendia a mão quente e macia... até tocar a palma dele.
O contato o fez sentir aquecido por todo o corpo, como se tivesse deitado em uma banheira quente.
Engraçado, ele nem tinha percebido que sentia frio até ela o tocar.
– Estou apertando sua mão... – ele disse, com a voz entrecortada. – Caso não consiga perceber.
Ela foi gentil e não comentou o fato de que claramente não sentia sua tentativa de retribuir o contato. Mas ele estava se esforçando. E quando seus olhos se encontraram, por alguma razão, Matthias quis dizer que nem sempre estivera quebrado. Um dia, não faz muito tempo, ele fora capaz de levantar-se orgulhoso, correr longas distâncias e usar seus músculos. Porém, agora ele era como um colchão com pulsação cardíaca.
Mas o motivo disso não fora o atropelamento. Não, ele já estava quebrado havia um bom tempo.
Talvez sua memória estivesse voltando.
– Sinto muito – ela disse novamente.
– Foi assim que você... – ele fez um gesto mostrando o próprio rosto, mas isso a fez focar ainda mais nele, e a maneira como estremeceu sugeria que para ela era difícil olhar o quanto ele estava feio. – Você também se machucou.
– Ah, estou bem. A polícia já veio conversar com você?
– Acabei de acordar. Não sei.
Ela desfez o contato entre eles e enfiou a mão em uma bolsa que mais parecia uma mala.
– Aqui. Este é o meu cartão. Eles conversaram comigo enquanto eu estava sendo medicada, e eu disse que aceito toda a responsabilidade.
Ela colocou o cartão na frente de seu rosto, mas sua visão se recusou a focar.
E Matthias não queria olhar para nada além dos olhos dela.
– Qual é o seu nome?
– Mels Carmichael. Na verdade, é Melissa – ela tocou o próprio peito. – As pessoas me chamam de Mels.
Quando ela deixou o cartão na mesa ao lado, ele franziu a testa, mesmo isso fazendo sua cabeça latejar.
– Como você se machucou?
– Me ligue se precisar de alguma coisa. Não tenho muito dinheiro, mas...
– Não estava usando cinto de segurança, não é?
A mulher olhou ao redor como se já tivesse ouvido isso da polícia.
– Ah...
– Você devia usar o cinto...
A porta abriu bruscamente, e a enfermeira que entrou parecia como se fosse a dona do lugar.
– Estou aqui – ela anunciou enquanto caminhava até os aparelhos que ficavam atrás da cama. – Ouvi o alarme.
A primeira coisa em que Matthias reparou foram os grandes peitos da mulher. Depois, na cintura pequena. E nos longos cabelos castanhos, macios como um edredom e brilhantes como porcelana.
Mas aquela imagem fez sua pele se arrepiar. Ao ponto de ele tentar se sentar para poder sair dali...
– Shh... está tudo bem – sorrindo, a enfermeira quase botou Mels para fora. – Estou aqui pra ajudar.
Olhos negros. Olhos negros que o lembravam de alguma coisa, em algum lugar... uma prisão onde você ficava sufocado pela escuridão, incapaz de se livrar...
A enfermeira se inclinou e seus seios se apertaram um contra o outro.
– Vou cuidar de você.
– Não – ele disse com veemência. – Não, você não vai...
– Ah, sim, eu vou.
Sentia seu inconsciente tentando avisá-lo sobre alguma coisa, algo que não conseguia distinguir com clareza, mas que enviava sinais como um caminho de pólvora antes de uma bomba explodir. Mas não encontrou nada específico. Suas memórias pareciam bases camufladas em um horizonte visto através de óculos de visão noturna – ele sabia que o inimigo estabelecera bases em algum lugar, mas era impossível visualizar qualquer detalhe.
– Se você não se importar – a enfermeira disse para Mels –, eu preciso cuidar do meu paciente.
– Ah, sim. Claro. Eu vou... é, vou embora – Mels se esticou sobre a mulher para poder enxergá-lo. – Bom... falo com você mais tarde.
Matthias também precisou se desviar da enfermeira, mudando a posição do corpo e fazendo os músculos da barriga se contraírem.
A enfermeira bloqueou sua visão.
– Feche a porta quando sair, certo? Obrigada.
E então ficaram a sós.
A enfermeira sorriu e encostou o quadril na beira da cama.
– Que tal eu te dar um banho?
Parecia uma ordem, não um pedido. E, cara, de repente ele sentiu-se nu – e não de um jeito bom.
– Não estou sujo – ele disse.
– Sim, você está – ela colocou a mão em seu braço, bem no lugar onde as sondas se conectavam com a veia. – Você está imundo.
Do nada, seu corpo começou a ganhar força: a energia invadia e inflava seus músculos com saúde, como se ele tivesse passado por dias de descanso, noites bem dormidas e muita comida.
Estava vindo dela, ele percebeu. Mas... como isso era possível?
– O que você está fazendo comigo?
– Nada – a enfermeira sorriu. – Se sente diferente?
Olhando em seus olhos negros, a escuridão parecia tão irresistível quanto repulsiva – e ele não saberia dizer quanto tempo ficaram ali daquele jeito, ligados pela mão dela, que transferia o que parecia uma droga miraculosa.
– Eu conheço você – ele pensou em voz alta.
– É engraçado quando a gente sente isso com uma pessoa desconhecida.
O poder que entrava nele parecia maligno e muito familiar.
– Eu não quero...
– Não quer o quê, Matthias? Não quer se sentir melhor, ficar mais forte, viver pra sempre? – ela se inclinou para ainda mais perto. – Está me dizendo que não quer ser um homem de novo?
Os lábios dele começaram a se mover, mas nenhum som saiu. Uma lentidão se apoderou de seu corpo quando ela retirou a mão. Desorientado e confuso, ele tentou se levantar, mas parecia que, afinal, fora mesmo drogado.
– Vou te dar um banho agora – ela disse com um olhar malicioso e um sorriso que faziam parecer que estava falando de sexo oral e não de esponja e sabonete.
Quando ela se aproximou da pia, Matthias aspirou profundamente, suas costelas se expandindo sem dor, e conseguiu expirar sem dificuldade. Todas as dores desapareceram, dando a impressão de que fazia anos que seu corpo não apresentava nenhuma complicação. Talvez séculos?
– Que dia é hoje? – ele murmurou, enquanto ela enchia uma bacia.
A enfermeira olhou por cima do ombro.
– É mesmo! Você está com amnésia.
Um momento depois ela voltou à cama, trazendo junto a mesa de rodinhas. Quando ela abaixou o lençol até a cintura dele e desamarrou o avental do hospital, Matthias levantou a cabeça pesada e olhou para si mesmo. A parte de cima não estava tão ruim, apenas uma cicatriz aqui e outra ali. Mas a parte de baixo estava arrasada.
Sentiu a esponja macia e quente.
Enquanto a enfermeira massageava seu peito, ele observou a maciez e a luminosidade da pele dela: era como uma pintura, e seu cabelo era mais espesso e voluptuoso do que parecia ser possível. Seus lábios pareciam até partes de uma fruta: molhados, com a promessa de doçura.
Eu não a quero, ele pensou.
Mas não conseguia se mover.
– Você precisa ganhar peso – ela comentou, passando a esponja em seu peito. – Está muito magro.
A esponja foi descendo cada vez mais, demorando-se na barriga: os cuidados estavam mais para de uma amante do que de uma enfermeira. Com súbita clareza, Matthias lembrou que houve um tempo em que ela poderia ter se impressionado – as mulheres que ele contratava para o exercício sexual sempre ficavam animadas com seu corpo...
Espere um pouco, isso realmente estava acontecendo?
Quando ela começou a baixar o lençol ainda mais, Matthias a fez parar:
– Não, pare.
– Sim, continuo.
Com os olhos dela presos aos seus, a enfermeira afastou a mão dele e arrancou o resto da roupa de cama. A violência do ato o fez lembrar de algo lá no fundo de sua mente... mas não sabia o quê.
– Fiz você lembrar de algo? – ela disse, mesmo sabendo bem a resposta. De alguma maneira... ela sabia que ele gostava de coisas perigosas. – Fiz? Matthias.
– Talvez – de repente sua voz parecia mais forte, mais profunda...
– E agora?
Ela o tocou naquele lugar que definia sua masculinidade: a esponja raspou seu pênis de leve.
Quando ela lambeu os lábios com volúpia, ele teve de rir alto. Seja lá qual fosse o seu motivo para quebrar todas as regras, a enfermeira não chegaria a lugar nenhum – o que resolveria o problema de ele não querer aquilo. Ela podia ficar nua e montá-lo; aquele pedaço mole de carne não se levantaria de jeito nenhum.
Mesmo com amnésia, sabia disso, da mesma maneira que sabia que não enxergava com um dos olhos. Era um fato, não uma lembrança.
– Minha memória não é a única coisa que perdi – ele disse secamente.
– É mesmo?
Quando ela massageou onde não deveria, Matthias deu um salto. Bom, mas a impotência não significava que você não sentia nada. Significava apenas que não podia fazer nada a respeito...
O fluxo de poder voltou a se apoderar dele, desta vez mais forte. E com um gemido, ele se arqueou, automaticamente levantando o quadril até a fonte do prazer.
– Isso mesmo – ela disse suavemente. – Sinta meu toque. Estou dentro de você.
O desejo sexual há muito esquecido explodiu por todo o corpo de Matthias; a agressividade e a necessidade de penetrar algo que ele não sentia há muito tempo. Deus, lembrar-se de que era de fato um macho, e não algum doente andrógino...
Oh, droga, isso era bom. Muito... bom.
– Olhe pra mim – ela ordenou enquanto trabalhava em seu pênis. – Olhe para mim.
Ele ficou tão distraído pela novidade que quase esqueceu quem a proporcionava, e a visão dela acabou drenando a sensação para longe: o que se tornou impotente agora foram suas emoções, mesmo que o corpo funcionasse plenamente. Ela era linda, mas... era uma beleza cheia de veneno.
– Você não gosta disto, Matthias?
Não, ele não gostava. Não gostava mesmo.
– Nem um pouco.
– Mentiroso. Precisamos terminar o que começamos, você e eu. Sim, precisamos.
Devina entrou na loja Saks Fifth Avenue no shopping Caldwell Galleria perto das cinco da manhã. Passou pelas portas de vidro e caminhou até um mostruário com manequins que vestiam tons pastéis. Ela posou junto deles por um momento, arqueando as costas e sentindo os seios apertarem o tecido da blusa sob o casaco.
A primavera estava no auge, e isso era uma boa notícia para suas coxas.
Já que estava ali, talvez pegasse algumas coisinhas.
Com uma febre de compras correndo por suas veias, ela apareceu atrás do balcão e, com um aceno das mãos, desativou os detectores de movimento. Por um segundo, pensou em deixar as câmeras de segurança ligadas, só por diversão.
Nada mais divertido do que ter uma plateia – mesmo que fosse apenas um humano gorducho sentado em uma sala de segurança ao final de um turno de trabalho durante o qual provavelmente só dormira.
Porém, ela estava ali por uma razão muito séria.
Seus sapatos de salto faziam barulho no chão de mármore, e ela gostava daquele som ecoando: pisou mais forte para que seu domínio sobre o vazio alcançasse todas as direções. Deus, ela adorava aquele cheiro no ar: chão polido, perfume, colônia... e riqueza.
Passando pelas bolsas de grife penduradas na parede, ela checou os estandes da Prada, Miu Miu e Chanel. As bolsas pareciam lindas mesmo sob o brilho fraco das luzes de segurança, e ela quase engasgou quando encontrou uma Gucci. Atravessando como um fantasma pelo painel trancado, agarrou uma bolsa de pele de cobra verde-escuro e continuou.
Fora sexo, pensou Devina, lojas de departamento de luxo proporcionam a melhor sensação que existe: milhares e milhares de metros quadrados cheios de coisas, tudo bem organizado, etiquetado e catalogado. E protegido.
Era um completo orgasmo para pessoas obsessivo-compulsivas.
Então precisava ter cuidado. Estava sentindo uma ligação surgir entre ela e todas aquelas mercadorias e, se isso acontecesse, havia o perigo de criar uma sensação de posse sobre aquelas preciosidades. E isso não seria bom para ninguém. Ela teria de matar os humanos que entrassem ali para fazer compras, e isso seria exaustivo.
Mas toda aquela organização a fez pensar que poderia usar seu notebook Lenovo e entrar para a era digital com suas próprias coleções.
Talvez o próximo virgem que sacrificaria para proteger seu espelho seria um nerd. Depois ela poderia reanimá-lo e fazê-lo trabalhar para si.
Afinal, havia muitos programadores de computador por aí que não conseguiam nem chegar perto de uma mulher. Seria muito fácil.
Entrando na parte central do primeiro andar, ela encontrou os balcões de maquiagem: o balcão da Chanel com sua conhecida maquiagem preta e brilhante, o da Lancôme cheio de recipientes de vidro... e o da Yves Saint Laurent, com muitos detalhes dourados ao redor dos mostruários.
Indo para trás do balcão, ela abriu o cadeado da prateleira que estava ao chão, e, enquanto abaixava e se apoiava na ponta dos pés, sua mão iluminou o caminho, lançando luz sobre as pequenas etiquetas grudadas nas embalagens.
A etiqueta 1 Le Rouge foi fácil de achar. Ela pegou um pacote, abriu a caixa e retirou o brilhante tubo de metal. Lindo, tão lindo, novinho em folha, intocado. Ela quase estremeceu quando girou e expôs a perfeita coluna de batom vermelho.
O perfume, delicado e com toques florais, fez Devina revirar os olhos.
A terapeuta estava certa: o ataque de pânico não durou para sempre naquele consultório, e quando Devina continuou com seus afazeres mais tarde, a ansiedade de ter jogado o batom fora acabou sendo esquecida enquanto ela dava atenção a outras coisas. Porém, a sensação ressurgiu quando ela voltou para seu espaço privado e sentou em frente ao espelho, pronta para descer até seu muro e aproveitar um pouco de tempo sozinha com suas crianças.
Entram os problemas.
Seus pensamentos rapidamente saíram de controle, surgiam imagens de um compactador de lixo e pilhas enormes e mal cheirosas de dejetos em grandes aterros desolados, que a faziam querer chorar.
Devina poderia ter voltado para pegar aquele batom específico, mas queria honrar a religião da terapeuta: tornar-se obcecada em conseguir de volta aquele batom, sem se importar com as consequências, seria voltar também para seu ciclo vicioso.
Mas ela não podia trilhar esse caminho o tempo todo – e por isso estava na loja e não no consultório, e agora tinha um novo e lindo batom para substituir aquele que sacrificara em nome do autoaperfeiçoamento.
Havia mais cinco batons da cor que gostava, todos empilhados formando uma bonita pirâmide. Ela esticou a mão, com vontade de pegar todos, para servirem de reservas dos reservas, mas impediu a si mesma. Fechou a prateleira. Teletransportou-se para longe.
Saiu de lá orgulhosa de si mesma.
Fim do intervalo; hora de voltar ao trabalho.
Voltando à vitrine pela qual entrara, parou em frente a um dos manequins. A coisa usava uma peruca loira e vestia uma roupa florida que Devina nunca usaria, nem morta.
Mas, então, começou a imaginar o que Jim Heron pensaria se a visse vestindo aquilo.
Sem dúvida fazia seu tipo: feminina, bonita, nada muito revelador. Modesta.
Aquele cretino. Enganador mentiroso.
Naturalmente, o fato de tê-la enganado tão bem apenas o deixava mais atraente.
Devina franziu a testa quando a voz da terapeuta surgiu em sua mente. Terapia cognitiva de comportamento... reprogramar o cérebro por meio de experiências...
O demônio se aproximou e passou a mão pelos cabelos falsos, aqueles longos e lisos fios amarelos.
Sissy Barten, a queridinha de Jim, tinha cabelos iguais àqueles. E teria adorado aquele vestido. Teria se mantido ao longe e esperado Jim se aproximar, nunca se jogaria nele, manteria sempre aquele jeitinho virginal.
O que era suficiente para fazê-la querer matar os dois – e com aquela garotinha estúpida seria a segunda vez, pois já tinha rasgado sua garganta na banheira.
Devina começou a sorrir. E então riu.
Com um rápido movimento, arrancou a peruca, deixando o manequim careca, e saiu através do vidro.
CAPÍTULO 6
Tinha de ser um sonho, não é?
Adrian tinha de estar sonhando. Mas, caramba, tudo parecia real, desde o sofá de veludo sob o seu traseiro, a cerveja gelada em sua mão, até a batida visceral do som na boate.
Estava com medo de virar a cabeça. Medo de descobrir que estava ali sozinho naquele lugar barulhento e desesperador, cheio de pessoas vazias iguais a ele.
Se estivesse sozinho, então Eddie estava mesmo morto.
Deu um gole na cerveja, preparou-se e então virou.
Adrian lentamente abaixou a garrafa, exalando todo o oxigênio para fora de seus pulmões.
– E aí, cara? – ele sussurrou.
Os olhos vermelhos de Eddie se viraram.
– Ah... oi – o cara se ajeitou no assento. – Escute, você tá bem?
– Sim, é só que...
– Por que tá olhando pra mim desse jeito?
– Senti sua falta – Ad disse com a voz grave. – Achei que nunca mais ia te ver.
– Só porque fui até o banheiro? – Eddie sorriu. – Geralmente, eu volto de lá.
Ad esticou a mão, sabendo que um toque provaria de que lado estavam...
Eddie franziu a testa e se inclinou para trás, como se Ad tivesse revelado um par de chifres.
– O que há de errado com você?
O rosto de Eddie parecia exatamente o mesmo: a pele bronzeada pelo sol, um vestígio de barba, aqueles olhos avermelhados estavam abertos para o mundo, nem desconfiados e nem ingênuos, e uma pesada trança que percorria as costas musculosas.
– Eu não sei – disse Ad esfregando o rosto.
– Quer ir embora?
– Deus, não.
– Certo – aqueles olhos vermelhos voltaram-se para a multidão. – Então, você vai me forçar a transar de novo?
Ad riu alto.
– Certo. Foi isso que aconteceu. Claro.
– Jogando mulheres para cima de mim...
– Eu nunca joguei...
– Escolhendo as que sabe que vou gostar...
– Bem, isso eu fiz...
– Arruinando minha virtude.
Quando o cara deu outro gole, Ad ficou sério.
– Ninguém poderia fazer isso.
– É, você tem razão. Antes de me tornar um anjo, eu era uma virgem imaculada.
– O que explicaria esse cabelo todo.
– Não, o cabelo me faz parecer gostosão.
Ad riu novamente e se recostou no sofá sentindo uma súbita injeção de energia percorrer seu corpo. Era uma sensação de que a vida voltara ao normal, que a tragédia não acontecera, que tudo voltara à maneira como deveria ser; era um alívio tão grande que, mesmo sentado, ele sentia como se estivesse voando. Com uma pontada de otimismo, seus olhos percorreram a multidão. Seu radar para mulheres voltava a funcionar e sua rara felicidade transformava periguetes em modelos internacionais.
– Está vendo alguma coisa que te agrade? – Eddie perguntou.
– Se não fosse por mim, você nunca conseguiria uma transa.
– Sabe, eu não acho que isso seja verdade.
– Você é sincero demais.
– Droga.
Ah, sim, aquela ruiva serviria, Ad pensou. E ela estava junto com uma morena...
Franziu a testa e ficou tenso. Havia alguém ao redor, no canto mais afastado, observando-os das sombras.
– Tá na hora – disse Eddie. – Ou fazemos isso agora, ou pedimos outra rodada. Ad? Olá?
Adrian chacoalhou a cabeça.
– Sim... claro.
Seu melhor amigo lhe lançou um olhar desconfiado novamente.
– O que há de errado com você, cara?
Boa pergunta, pensou enquanto se levantava.
– Vou ver o que posso pescar por aí.
– Sem pressa... só não demore muito.
– Isso não é uma contradição?
– Não quando se trata de você.
Os dois riram um pouco. E então Ad se concentrou nas duas mulheres. Quando se aproximou da ruiva e da morena, elas responderam com uma previsível risadinha, nada comparado com os orgasmos que resultariam daquele encontro.
– Meu nome é Adrian – ele disse. Seu lento sorriso fez as mulheres arregalarem os olhos e ajeitarem suas poses: peito levantado, barriga para dentro, pernas esticadas para expor as coxas.
– Gosto do seu perfume – ele disse, inclinando-se para perto do pescoço da ruiva.
Na verdade, não tinha sentido o cheiro ainda, e nem se importava.
Quando puxou o ar, ele congelou. Aquele cheiro. Era...
– Que bom que gostou – ela disse, enquanto acariciava as costas dele até chegar em seu traseiro. – Escolhi exatamente pra alguém como você.
Adrian se afastou, seu cérebro doía. Ou talvez fosse seu peito.
– Certo. Bom.
Olhou por cima do ombro. Eddie estava no sofá, todo espreguiçado, mas totalmente atento, como se estive pronto para o sexo.
Ou seja, estava normal.
Adrian assentiu na direção dele.
– Trouxe um amigo. E você?
– Minha amiga tem namorado – murmurou a ruiva, como se isso fosse um defeito.
– Desculpe – disse a outra mulher.
Como se isso importasse.
– Certo, só você então. Consegue aguentar os dois?
Quando a garota assentiu como se tivesse ganhado na loteria, ele tomou sua mão, e o perfume dela os seguiu, fazendo Ad desejar que a solteira fosse a morena, e que fosse aquela Jessica Rabbit com maquiagem gótica quem tivesse namorado. Mas não dava para voltar atrás – seria trabalhoso demais achar outra candidata e, além disso, o que fariam não era nada permanente. Nunca era permanente.
Mas que droga de perfume de flores – dava até arrepios.
Quando chegaram no sofá, a ruiva foi se jogando no meio, cobrindo tanto as pernas dele como as de Eddie. E, como ela acabou de frente para o outro anjo, Eddie começou a beijá-la intensamente.
Para um cara que não sabia se aproximar de mulheres, ele tinha um apetite e tanto.
Enquanto Ad assistia, e impulsionava seu quadril e peito contra o corpo da mulher, pensou que era incrível o poder que um pesadelo pode ter. Era como se toda aquela merda que ele imaginara sobre Eddie tivesse realmente acontecido: aquele lacaio do demônio aparecendo do nada e rasgando o anjo com uma lâmina, tirando a letra I da palavra imortal. E então a morte, no saguão daquele banco, não muito longe dali. E depois o sofrimento de Adrian, a sensação de ter perdido toda a razão de viver...
Adrian franziu a testa e se perguntou por que falava consigo mesmo como se aquilo realmente tivesse acontecido...
A ruiva se arqueou e abriu as pernas, claramente o convidando-o para brincar no parquinho. E quando ele obedeceu, Eddie passou a trabalhar em seus peitos, baixando um pedaço da blusa, de forma mais agressiva do que o normal, e expondo um par de seios menor do que aparentava.
Quando Adrian estava prestes a mergulhar a mão em território inexplorado, a garçonete apareceu trazendo novas garrafas. Parecia acostumada com aquele showzinho, pois nem piscou ao servir a cerveja.
– Eu pago – disse Ad, tirando a carteira do bolso da calça e entregando uma nota de vinte. Quando a garçonete foi embora, ele olhou para a cerveja, e então virou imediatamente para Eddie. – Coors Light? Que merda é essa?
O outro anjo parou o beijo e deu de ombros.
– Estou controlando meu peso.
Ad revirou os olhos e voltou ao trabalho com o prato principal. Subindo as mãos debaixo da saia curta, ficou surpreso ao descobrir uma calcinha com a resistência de vigas de aço e a elasticidade de uma tenda do exército. Que diabos? Bem, ele pensou, uma calcinha modeladora era mais barata do que uma sessão de lipo.
O perfume voltou a invadir seu nariz, sugerindo que, afinal, talvez não viesse da mulher.
Olhou ao redor, mas não enxergou nada fora do comum.
– Acho que você deveria ser o primeiro – disse Eddie, enquanto brincava com aqueles seios... que agora pareciam meio caídos.
E aquele cabelo. Antes era volumoso e ondulado, agora parecia um pouco crespo.
A mulher sorriu, revelando dentes tortos.
– Vai, Adrian... transa com ela – na escuridão, os olhos de Eddie pareciam tudo menos brilhantes. – Quero assistir vocês.
A mulher tomou a mão de Ad e a colocou de volta entre suas pernas, esfregando a si mesma contra sua palma e dedos...
No meio da multidão, uma pessoa surgiu: uma figura alta e orgulhosa, vestindo um roupão branco. Quando se aproximou, o cheiro de flores ficou mais forte e tomou todo o ar ao redor...
Eddie.
Era o Eddie real, de pé ali na sua frente, uma presença verdadeira em meio a uma multidão de mortos vivos.
– Ah, que merda! Justo agora que as coisas estavam ficando interessantes!
Ad virou a cabeça bruscamente. Devina estava ao seu lado na outra ponta do sofá, pela primeira vez mostrando sua forma verdadeira: era um cadáver animado, a carne perpetuamente caindo dos ossos, a grotesca palma apodrecida passeando pelos seios da ruiva. A expressão do demônio mostrava irritação, seu queixo e lábios estavam apertados ao máximo.
Adrian gritou e tentou se levantar rapidamente, mas a ruiva segurou sua mão no lugar – e, enquanto ele lutava contra sua imensa força, ela também revelou sua verdadeira aparência: outro corpo decrépito, a ilusão de beleza sumindo como se não fosse mais possível sustentá-la.
Enquanto ele tentava se desvencilhar, uma mancha negra começou a subir ao longo do braço, primeiro nos dedos, depois nos pulsos, seguindo seu caminho para o cotovelo.
Gritando alto, ele se sacudiu violentamente, mas estava preso como uma mosca em uma teia de aranha, como um rato em uma ratoeira, como um...
Eddie, o verdadeiro, aquele que estava morto, quebrou aquela conexão com um simples toque, não em Ad, mas na ruiva: aparecendo atrás deles de repente, apenas se inclinou e encostou o dedo iluminado no ombro do monstro. Puff! Ela simplesmente sumiu.
Enquanto Devina xingava o anjo, Adrian se libertou: seu corpo caiu para trás do sofá, com os olhos fixos em Eddie enquanto o coração se partia novamente por causa da perda.
– Vá se foder! – Devina gritou para o anjo.
O rosto de Eddie, aquele rosto esperto, gentil e maravilhoso, não mostrou reação ao insulto. Ele apenas acenou com a cabeça para a garrafa de cerveja Coors e disse:
– Na sua condição, eu estaria preocupado com muitas outras coisas mais importantes do que meu peso.
Mais xingamentos vieram, mas Devina não fez nada além disso – era de se imaginar o que Eddie tinha realmente feito com aquele dedo luminoso do E.T.
O outro anjo observou Ad por um longo tempo, como se sentisse ainda mais falta do amigo vivo.
– Nunca estarei longe – disse Eddie com um sussurro.
– Ah, merda... não vá embora – murmurou Ad. – Fique aqui.
– Que comovente – os olhos negros de Devina estavam furiosos. – Você quer dar um beijinho antes de ir embora?
Eddie começou a se mover como se fosse uma estátua em uma esteira rolante, seu corpo paralisado sendo puxado através da multidão, o perfume de flores se desvanecendo.
– Eddie! – quando Adrian levantou as mãos na direção do anjo, a mancha negra em seu braço quase chegava aos ombros.
– Estou dentro de você – disse Devina com satisfação. – E é tarde demais pra fazer qualquer coisa a respeito disso. Tarde demais!
Adrian gritou a plenos pulmões.
CAPÍTULO 7
Matthias acordou com a luz do dia batendo em seu rosto. Não tinha certeza de quando aquela enfermeira de mão boba saíra, mas ele pretendia partir assim que ela fosse embora. Um sono não natural o arrebatara, deixando-o inconsciente de tal forma que se sentiu dominado.
Francamente, estava surpreso por ter conseguido acordar.
O quarto do hospital parecia exatamente o mesmo, mas por que haveria de mudar durante a noite? E Matthias sentia-se mesmo melhor, como se seu corpo fosse um carro recém-saído do mecânico.
Quem diria que uma masturbação não solicitada poderia ter um impacto tão grande...
Mas era estranho. Quando olhou ao redor, teve a sensação de que era um milagre o fato de ele ainda estar “do lado de fora”. Mas estava fora de onde? Uma prisão? Um hospício? Algo ainda pior?
Forçando seu cérebro confuso a prestar atenção, tentou lembrar onde estivera na noite anterior, o que havia acontecido antes de acordar ali...
Eu te atropelei. Sinto muito.
Matthias fechou os olhos e se lembrou daquela mulher, Mels Carmichael. Alguma coisa nela penetrara o nevoeiro que o cercava, tocando-o onde realmente importava. Por quê? Não fazia ideia – mas sabia que, sob outras circunstâncias, gostaria de passar mais tempo com ela.
Muito mais.
Mas, qual é, ele não era do tipo romântico – sua intuição dizia isso em alto e bom som.
Levantando a cabeça dos travesseiros, ficou surpreso por não se sentir pior. Deu uma chance a seu corpo para deixar a ficha cair e começar a dar as informações corretas, algo mais consistente para alguém que fora atropelado há menos de doze horas.
Nada. Ainda sentia-se bem...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Certo, ajudaria se soubesse quem estava atrás dele, ou por que estava fugindo, mas não perderia tempo tentando decifrar essas perguntas – não quando sua adrenalina estava consistentemente apontando para a saída e gritando para ele dar o fora dali.
– Acho que você não é um anônimo, afinal.
Matthias tentou sacar uma arma que não tinha e olhou ao redor. A enfermeira estava de volta, de pé ao lado da porta, aparecendo como se fosse carregada pelo vento.
Sua aparência era diferente sob a luz do dia. Já não parecia sedutora.
Talvez ela fosse um vampiro. Há, há.
– Encontraram sua carteira – ela disse, mostrando uma carteira de couro preto. – Está tudo aqui, identidade, cartão de crédito... até seu cartão de seguro saúde! A conta no hospital vai ficar cara, mas a maioria das despesas está coberta.
Ela andou e colocou a carteira na mesa de rodinhas, bem ao lado do cartão que aquela jornalista tinha deixado. Então ela deu um passo para trás, como se soubesse que ele queria espaço.
Houve uma longa pausa.
– Obrigado – ele disse, tentando preencher o silêncio.
Ela estava vestida com roupas casuais: jeans azul, sapatos pretos, jaqueta branca folgada que parecia nova em folha. O cabelo estava solto e chegava até os ombros, e ela o alisou com a mão, mesmo já estando perfeito.
– Também trouxe algumas roupas – ela acenou com a cabeça. – Estão no armário atrás de você. Espero que sirvam.
– Então vão me liberar?
– Desde que se sinta bem esta manhã. Tem alguém te esperando em casa?
Ele não respondeu – e não por não saber a resposta. Nunca respondia nada para ninguém. Esse era seu jeito.
Mais uma longa pausa.
Ela limpou a garganta e desviou os olhos quando disse:
– Escuta, sobre ontem à noite...
Então era por isso que ela estava ali.
– Vou me esquecer disso, e você deveria fazer o mesmo – ele disse secamente.
Deus sabia que Matthias tinha problemas mais importantes do que ter sido abusado por uma mulher bonita. Pois é, que história triste. Especialmente se comparada com as coisas que ele fez com outras pessoas...
Lembranças emergiram do fundo de sua consciência, como um monstro esquecido num lago profundo ameaçando se revelar.
Afinal, quem era ele?
De repente os olhos negros da enfermeira grudaram nos seus.
– Sinto muito mesmo. Aquilo foi muito errado da minha parte. Nunca deveria ter...
Voltando ao presente, Matthias pensou que era engraçado que, à luz do dia, todo aquele poder que ela tinha sobre ele houvesse desaparecido totalmente. Ela nem parecia ser o tipo de mulher que poderia ser tão agressiva. Era apenas uma jovem enfermeira bonita, com um belo corpo e um cabelo lindo, e que agora parecia vulnerável.
Será que aquilo tinha mesmo acontecido? Ele provavelmente recebera vários analgésicos, e Deus sabe o quanto esses remédios podem bagunçar a cabeça de uma pessoa.
Por outro lado, se nada tivesse acontecido, ela não estaria ali se desculpando, não é?
– Foi uma total quebra de protocolo, eu nunca fiz nada assim antes. É só que... você estava com tanta dor, e você queria... e...
Ele queria? Lembrava-se do completo oposto. E lembrava que... teve um orgasmo. Talvez isso também não tivesse acontecido.
O que faria sentido.
– Enfim, pensei que deveria te dizer isso antes de ir embora... e você não vai mais estar aqui quando eu voltar da minha folga.
Ela parecia honestamente envergonhada e constrangida. Por alguma razão, Matthias teve a sensação de que fazia parte de sua personalidade tirar vantagem das pessoas, por nenhum motivo além de deixá-las constrangidas.
– Foi minha culpa – ele se ouviu dizer e, no instante que as palavras saíram, acreditou na confissão. – Sou eu quem deveria pedir desculpas.
Afinal, sexo por piedade acontecia sempre com um mesmo princípio, quer o ato fosse até o fim ou não: “oh, estou doente; pode cuidar do meu pau? obrigado, querida”.
A enfermeira pousou a mão na armação da cama.
– Eu só... é, bom, só não quero que pense que fico por aí fazendo essas coisas – ela riu, sem jeito. – Não sei por que isso importa. Mas importa.
– Você não precisa se explicar.
Quando ela ergueu o olhar, sua expressão cuidadosa relaxou e se transformou em um sorriso genuíno. O que o fez checar seu dedo anelar procurando por algum certificado de casamento.
Nada. Nenhuma aliança.
– Obrigada por não ficar bravo – ela olhou por cima do ombro em direção à porta. – Acho que eu deveria ir. Se cuide... e por favor lembre-se de fazer a consulta de retorno com seu médico. Lesões na cabeça e perda de memória são coisas sérias.
– Sim. Vou fazer isso.
Mentir foi muito fácil, Matthias sabia que tinha mentido muito durante sua vida. E quando acenou de volta, sua mente a analisava como se ela fosse um relatório ou uma correspondência, não uma pessoa – mas isso não era culpa dela.
Ele sentia que era assim que sua mente funcionava.
Ótimo. Nada como acordar de manhã e aprender passo a passo que você é um verdadeiro filho da puta.
Observou a mesa ao lado da cama. O cartão de visitas e a carteira estavam um ao lado do outro.
Matthias estendeu a mão, sem saber qual deles pegar.
No fim, a atração pela carteira parecia maior. Ao abrir o couro dobrado, observou a carteira de motorista que estava na parte transparente. A foto era... bem, não reconhecia aquele rosto, mas a enfermeira da mão boba parecia pensar que era ele. Era assim que se parecia? Um cara de cabelo preto e um rosto bonito, porém frio.
As informações impressas diziam que ele tinha olhos azuis – e naquela foto parecia que ambos funcionavam. A data de nascimento era naquele mesmo mês. E a data de validade já havia passado.
O primeiro nome, Matthias, de fato era como as pessoas o chamavam. O endereço ficava na cidade de Caldwell, Nova York, o que resolvia o problema geográfico... que ele nem percebera ter.
Caldwell, Nova York.
Estava de volta. Pelo menos era isso que seus instintos diziam...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Deixando a urgência de lado, começou a sair da cama devagar. Quando percebeu que estava preso, retirou as sondas intravenosas e o monitor cardíaco. Inclinando-se até os equipamentos ao lado, desligou os alarmes e arrastou-se para o banheiro.
A luz estava apagada, e quando apertou o interruptor... o show começou.
Matthias quase perdeu o fôlego ao ver a própria imagem refletida no espelho da pia. Um de seus olhos exibia um branco leitoso, e seu rosto estava esculpido com as linhas indeléveis de um passado cheio de dor – além de cicatrizes na testa onde sua lesão ocular aconteceu.
A fotografia na identidade era mesmo dele, principalmente se você adicionar um pouco de cabelo grisalho nas laterais, mas tinha sido tirada antes de...
– Senhor, preciso pedir que volte para a cama, pois está correndo o risco de escorregar e cair. E não deveria ter tirado as...
Ele ignorou a nova enfermeira.
– Estou indo embora. Agora mesmo. As regras do hospital, é, eu sei.
Fechou a porta na cara dela e abriu o chuveiro. Por alguma razão, quando voltou a focar o espelho, pensou em Mels Carmichael. Não foi à toa que a primeira reação dela ao vê-lo fora na linha do oh, meu Deus.
Ele não estava exatamente bonito...
Deus, por que estava pensando daquela maneira? Que importava o que os outros achavam dele?
Com a coordenação melhorando depressa, abriu a porta e olhou para dentro do quarto. A enfermeira não estava mais ali, mas com certeza voltaria trazendo alguém com um crachá de médico – era hora de se mexer rapidamente. Agarrou o cartão que Mels deixara e o guardou na carteira. Então pegou as roupas do armário e se trancou no banheiro.
Dez minutos mais tarde, Matthias estava com os cabelos e o corpo limpos, vestindo camiseta e jaqueta pretas e um jeans folgado.
Ao caminhar para fora do quarto, agarrou uma bengala que assumiu estar lá para ele.
O objeto parecia natural em sua mão e fez seus passos ficarem muito mais rápidos. Como se estivesse acostumado a usá-la.
Dirigindo-se para os elevadores, não pediu autorização para ninguém, não assinou nenhuma linha tracejada. O departamento de cobrança encontraria o homem que morava no endereço que aparecia na carteira de motorista.
E talvez ele também encontrasse esse homem.
O grito de Adrian acordou Jim e o fez saltar da cama, aterrissando em uma posição de luta. Com uma adaga de cristal em uma das mãos e uma pistola semiautomática na outra, estava pronto para lutar, fosse na arena dos humanos ou na de Devina. O Cachorro, que não era bobo, estava se protegendo debaixo da cama.
– Estou bem – disse Adrian, com a convicção de alguém que estava sangrando por uma veia.
Claro, com certeza, pensou Jim, que chegara correndo.
Sob a luz do sol que raiava entre as persianas, o anjo parecia completamente acabado, esparramado ali no chão, com grandes olheiras, cabelo desarrumado, mãos tremendo ao puxar a gola de sua camiseta Hanes. Seus piercings, aquelas argolas de metal que circulavam seus lábios, todo o lado da orelha e marcavam sua sobrancelha, eram as únicas coisas que brilhavam. Tudo o mais parecia sem vida.
Sua luz interior havia se apagado.
Jim estendeu a mão para o cara.
– Hora de levantar.
O outro anjo tomou sua mão, e por um momento os músculos de Jim ficaram tensos ao sentir uma desagradável pontada fluindo por seu braço e ativando seus instintos de um modo ruim. Mas então levantou Ad do chão, e aquilo desapareceu.
– Você já foi encontrar Nigel e os garotos? – perguntou Ad, enquanto andava como se tentasse se livrar da sensação ruim que tivera durante o sono.
– Por que eu faria isso?
– Boa pergunta.
Com essa deixa, Adrian foi até o banheiro e fechou a porta. Depois da descarga, o chuveiro foi ligado, e então foi a vez da pia.
Jim aproximou-se da porta e falou através da madeira fina:
– Você sonhou com o quê?
Quando não obteve resposta, fechou o punho e bateu.
– Adrian. Conte o que foi.
Deus sabia que Devina usava todo tipo de truques para conseguir o que queria. A ideia de que ela poderia invadir a cabeça de Ad pela porta dos fundos soava bem óbvia.
Bateu de novo na porta.
Quando não houve resposta novamente, Jim mandou a privacidade para o inferno e entrou.
Através da cortina de plástico do chuveiro, viu Adrian no chão de novo, desta vez com o piso frio do banheiro sob seu traseiro. Estava encolhido, com os cotovelos contra o peito, o rosto enterrado nas mãos. Não estava chorando, ou praguejando, nem parecia desesperado, mas talvez isso fosse o mais preocupante. O anjo estava apenas sentado debaixo da água quente, seu grande corpo enrolado em si próprio.
Jim abaixou o assento da privada e sentou.
– Converse comigo.
Depois de um momento, o anjo disse com a voz rouca:
– Ela era o Eddie. No meu sonho, ela era o Eddie.
Merda.
– Isso faria qualquer um gritar.
– Ele estava lá também. Foi ele quem me acordou, na verdade. Droga, Jim... ver Eddie de novo foi...
Enquanto a frase sumia, Jim inspecionou a lâmina de sua adaga com um cuidado especial.
– É, eu sei.
– Vou matá-la.
– Só se chegar antes de mim.
Adrian deixou os braços caírem para os lados e seus punhos acertaram a poça de água que se acumulava ao redor de seu corpo. Ele parecia derrotado, mas seria apenas por um momento. Sua raiva retornaria assim que aquele demônio aparecesse por perto e, francamente, a previsível resposta seria um problema: ninguém quer ver o próprio parceiro ficar cego pela raiva, e aquele sentimento não era fácil de controlar.
– Acho que você precisa pedir um novo parceiro para Nigel – Ad disse suavemente. Como se tivesse lido os pensamentos de Jim.
– Não quero outra pessoa.
Mas isso era mentira. Ainda estava aprendendo a lidar com as próprias habilidades e armas – claro, a curva de aprendizado já não era mais tão íngreme quanto nas primeiras rodadas, mas ele ainda estava longe de saber tudo. E Devina não era o tipo de inimigo contra o qual um desempenho mediano fosse aceitável.
Por causa disso, ele precisava de um parceiro sólido lhe dando cobertura.
Honestamente, Eddie era a peça que estava faltando. E fora precisamente por isso que o inimigo o abatera.
Maldita vadia!
– Você conhece mais alguém? – perguntou Jim.
– Tinha outro cara; na verdade, ele ficava acima de mim e de Eddie. Quase no nível de Nigel e Colin. Mas ele teve problemas. A última vez que ouvi falar, ele estava preso no Limbo. Bom, mas era um cara imprevisível. Talvez você fique melhor comigo mesmo, nesse caso.
– Temos que trazer Eddie de volta de alguma maneira...
– Ele era o único que saberia como fazer isso – Adrian soltou um grunhido e ficou de pé, sua figura massiva se erguendo como uma árvore. – Talvez o Colin.
Jim assentiu e voltou a observar sua adaga de cristal. A arma era transparente como um cubo de gelo, forte como aço, leve como uma pena. Fora Eddie quem lhe dera.
Ouviu um barulho de algo caindo no chão molhado e voltou os olhos para o parceiro. Ad deixara cair o sabonete, suas mãos estavam erguidas próximas ao rosto e sua boca parecia tentar praguejar.
– O que foi?
– Ah... merda... – Ad observou as costas das mãos. – Merda, não...
– O quê?
– Estão pretas – o anjo mostrou os braços. – Você não vê? Ela está dentro de mim, Devina está dentro de mim... e está me dominando...
Jim ficou aturdido por um momento, mas sabia que precisava fazer alguma coisa para trazer aquela situação de volta à realidade, e mais que depressa. Deixou a adaga na pia, tirou a cortina de plástico do caminho e agarrou os pulsos de Adrian.
Aquela sensação ruim se apoderou dele de novo, estimulando as terminações nervosas de seus dedos e palmas, como se as tivesse mergulhado em ácido. Concentrou-se na pele de Adrian e imaginou o que diabos tinha acontecido naquele sonho.
Mas a carne estava completamente normal. E pessoas que perdem seus melhores amigos têm motivos de sobra para perder também a razão. Mas não podiam permanecer assim.
– Adrian, meu amigo... – ele deu uma bela sacudida no cara – ei, olhe para mim.
Quando o pobre coitado finalmente olhou, Jim encarou aqueles olhos como se estivesse entrando em sua mente e tomando parte de seu cérebro.
– Você está bem. Não há nada de errado aqui. Ela não está dentro de você, ela não está aqui e...
– Você está errado.
As palavras sombrias fizeram Jim parar de repente. Mas então balançou a cabeça.
– Você é um anjo, Adrian.
– Eu sou?
Com a voz grave, Jim respondeu:
– Digamos que... é bom que você seja.
Após um silêncio tenso, os lábios de Jim começaram a se mover, palavras eram ditas, sílabas sensatas e apaziguadoras cruzavam a distância que os separava. Mas, no fundo de sua mente, ele rezava por quem quer que estivesse ouvindo.
Devina era um parasita, o tipo de coisa que invade as pessoas e as infecta.
Fazia sentido que alguém emocionalmente abalado fosse mais vulnerável.
Porém, a tragédia era que ele não podia ter o inimigo tão perto assim.
Não importava o quanto amasse seu amigo.
CAPÍTULO 8
– O que aconteceu com seu olho?
Mels entrou na cozinha de sua mãe, não respondeu a pergunta e foi direto para a garrafa de café. O fato de o objeto estar do outro lado, e por isso permitir que ela tomasse o café de costas para a mãe, era um bônus além da cafeína.
Maldita maquiagem. Elas supostamente serviam para cobrir aquilo que você queria esconder. Como pés de galinha, olheiras... e hematomas de acidentes de carro sobre os quais você preferia que sua família não ficasse sabendo.
– Mels?
Não precisava se virar para ver o que estava atrás dela: sua mãe, magrinha e baixinha, aparentando ser mais jovem do que era, estaria sentada do outro lado da mesa, com o Correio de Caldwell aberto ao lado de uma tigela de cereal rico em fibras e uma xícara de café. Os cabelos lisos pretos com mechas grisalhas estariam penteados num corte bem aparado, e as roupas seriam casuais, mas parecendo perfeitamente passadas a ferro.
Sua mãe era uma dessas mulheres pequeninas que sempre pareciam bem arrumadas, mesmo sem maquiagem. Como se tivesse nascido com uma lata de spray para cabelo debaixo de um braço e uma escova debaixo do outro.
Mas ela era frágil. Como um bibelô gentil e bondoso.
Era uma porcelana delicada, em contraste com o touro que fora seu pai.
Sabendo muito bem que a pergunta ainda estava no ar, Mels serviu-se de café. Tomou um gole. Manteve-se ocupada passando uma toalha de papel em um balcão que já estava limpo e seco.
– Ah, não foi nada. Escorreguei e caí. Bati a cabeça na torneira do chuveiro. Foi tão estúpido!
Houve um momento de silêncio.
– Você chegou tarde ontem à noite.
– Fiquei na casa de uma amiga.
– Você não tinha falado que ia num bar?
– Fui pra casa dela depois do bar.
– Ah. Entendi.
Mels ficou observando a janela em cima da pia. Com sorte, sua tia ligaria a qualquer momento, como geralmente fazia, e ela não teria que inventar mais uma mentira para explicar por que voltara de táxi do trabalho.
Os sons de goles de café e cereal sendo mastigado preencheram a cozinha, e Mels tentou pensar em algum assunto minimamente normal para conversarem. O clima. Esportes – não, sua mãe não tinha interesse em atividades organizadas que envolviam campos, bolas ou raquetes de qualquer tipo. Livros seria uma boa opção – porém Mels não lia nada além de estatísticas criminais, e sua mãe ainda estava no trem do Clube do Livro da Oprah, mesmo esse trem já não tendo motor ou trilhos.
Deus... momentos como esse a faziam sentir tanta falta do pai que até doía. Os dois nunca ficavam constrangidos um com o outro. Nunca. Conversavam sobre a cidade, ou sobre seu trabalho como policial, ou sobre a escola... ou simplesmente ficavam em silêncio – e, de um jeito ou de outro, nunca havia problema. Mas com sua mãe?
– Então – Mels tomou outro gole de café –, o que vai fazer de bom hoje?
Recebeu uma resposta, mas não a ouviu porque seu desejo de sair gritava alto demais.
Mels terminou o resto de seu café preto – sua mãe tomava com leite e açúcar –, colocou a xícara na lava-louça e cruzou os braços.
– Então, vejo você à noite – ela disse. – Não vou chegar tarde. Prometo.
Os olhos de sua mãe se levantaram para encontrar os dela. A tigela cheia de cereal integral era rosa e tinha pequenas flores brancas em volta, a toalha de mesa tinha flores amarelas e o papel de parede tinha flores maiores azuis.
Flores por toda a parte.
– Você está bem? – perguntou a mãe. – Precisa ir ao médico?
– É só um machucado. Nada de mais – olhou para a sala de jantar. Do outro lado da mesa de mogno, depois da cortina branca, um Chevrolet amarelo estacionou. – O táxi chegou. Deixei meu carro no bar porque bebi uma ou duas taças de vinho.
– Ah, você podia pegar o meu carro para ir trabalhar.
– Você vai precisar dele – ela olhou para o calendário pendurado na parede, rezando para que algo estivesse marcado ali. – Hoje você tem jogo de cartas às quatro.
– Eu podia ir de carona. Ainda posso, se você quiser...
– Não, é melhor assim. Posso pegar meu carro e dirigir de volta pra casa.
Droga. Acabara de criar um problema. A única maneira de Fifi ir para qualquer lugar seria na traseira de um caminhão de guincho – a pobrezinha fora levada para um mecânico.
– Ah. Tá bom.
Quando sua mãe caiu no silêncio, Mels teve vontade de pedir desculpas, mas era difícil demais colocar aquele complicado desculpe em palavras. Inferno, talvez ela precisasse simplesmente se mudar dali. Ficar constantemente exposta àquela bondade e autossacrifício, em vez de ser uma alegria, era um peso muito grande para carregar, pois nunca tinha um fim. Sempre havia uma sugestão, uma oferta, um quer-que-eu-isso-ou-aquilo...
– Preciso ir. Mas agradeço.
– Tá bom.
– Vejo você à noite.
Mels beijou o rosto macio que sua mãe ofereceu e saiu apressada pela porta da frente. Lá fora o ar estava fresco e agradável e o sol brilhava, prometendo calor na hora do almoço.
Entrando no banco de trás do táxi, ela disse:
– Escritório do Correio de Caldwell, na rua Trade.
– Pode deixar.
A caminho do centro da cidade, as molas do banco do táxi pareciam feitas de aço, e o estofado não era muito diferente de cimento, mas ela nem se importou com a viagem desconfortável. Sua mente estava caótica demais para pensar em seu traseiro sendo castigado por um banco duro.
Aquele homem da noite anterior ainda estava em seus pensamentos – podia quase senti-lo ao seu lado.
Fora assim durante toda a noite.
Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos e relembrou o acidente, checando duas, três vezes para ter certeza de que não poderia ter feito nada para evitá-lo. Então ficou pensando em outras coisas, como a maneira como o homem ficara deitado, totalmente imóvel, naquela cama de hospital.
Mesmo machucado, em alguns lugares com gravidade, ele ainda parecia um... predador.
Um poderoso animal, ferido, mas...
Certo, agora ela realmente estava perdendo a cabeça. E talvez devesse olhar mais de perto para sua vida amorosa – que era completamente vazia...
Infelizmente, Mels não conseguia parar de pensar na estranha atração que aquele homem exercera. Que desagradável, ela deveria é estar preocupada com a saúde e o bem-estar dele, além da possibilidade de querer processá-la e tirar dela o pouco que tinha.
Em vez disso, ela ficou pensando no som daquela voz rouca, e na maneira como ele a observara, como se qualquer detalhe dela fosse uma fonte de fascinação e importância...
Ele fora ferido há algum tempo, ela pensou. As cicatrizes ao lado do olho tinham se curado com o tempo.
O que será que acontecera com ele? Como era seu nome...?
Enquanto ela vagava pela terra das perguntas sem resposta, o motorista do táxi fez seu trabalho discretamente. Dezesseis dólares, dezoito minutos e um traseiro dolorido depois, ela chegou à redação.
O local já estava barulhento, com pessoas falando e andando apressadas, e aquele caos acalmou seus nervos – da mesma maneira que uma aula de ioga a deixava nervosa.
Ela sentou em sua mesa, checou o correio de voz, entrou em seu e-mail e pegou a xícara que vinha usando desde que herdou aquele lugar, há pouco mais de um ano e meio. Caminhou até a cozinha coletiva e encontrou seis opções de potes de café: nenhum deles era descafeinado; três eram da boa e velha marca Maxwell House; e os outros eram aquele horror com essência de nozes, um daqueles macchiato-sei-lá-o-quê.
Dane-se esse último. Se quisesse uma droga de um sorvete de caramelo, ela pediria um no almoço. Aquela coisa não devia ser colocada em uma xícara de café.
Enquanto servia seu café preto e puro, pensou na verdadeira dona da xícara, Beth Randall, a jornalista que sentara naquele cubículo por... bem, devia ter sido mais de dois anos. Em uma certa tarde, a mulher partira e nunca mais voltara. Mels lamentava o desaparecimento – não que conhecesse a colega muito bem – e sentia-se mal porque foram nessas as circunstâncias que ela finalmente conseguira um lugar só para ela.
Mantivera a xícara por nenhuma razão especial. Mas agora, enquanto tomava um gole, percebeu que a guardara por ainda ter esperança de que a mulher retornasse. Ou que pelo menos estivesse bem.
Parecia que Mels estava rodeada de pessoas desaparecidas.
Ou pelo menos foi assim que se sentiu naquela manhã. Principalmente quando pensou sobre o homem da noite anterior – aquele que nunca veria novamente, mas que não conseguia tirar da cabeça.
Aquela não era sua casa.
Quando o táxi estacionou em frente a um rancho em uma vizinhança modesta, Matthias sabia que não morava sob aquele teto. Nunca tinha morado. Não iria morar.
– Você vai descer do carro ou não?
Matthias encontrou os olhos do motorista através do retrovisor.
– Me dê um minuto.
– O taxímetro está correndo.
Concordando, ele desceu e usou a bengala para andar no passeio que levava à frente da casa, balançando a perna machucada em um longo arco para não ter de dobrar os joelhos. Não havia nada de lar, doce lar: a trepadeira invadia as janelas. O gramado não estava aparado. As calhas estavam cheias de mato que subia alto em busca do sol.
A porta da frente estava trancada, então ele fez uma viseira com as mãos para tentar olhar pela janela. Viu camadas de poeira. Móveis que não combinavam. Cortinas envelhecidas.
Havia uma caixa de correio barata pregada na parede. Ele abriu a tampa. Propagandas. Um talão de cupons de desconto endereçado ao “ocupante”. Nada de contas, solicitações de cartão de crédito, cartas. A única outra correspondência era uma revista da AARP1 endereçada ao mesmo nome que havia na sua carteira de motorista.
Matthias enrolou a revista, guardou no bolso da jaqueta e voltou para o táxi. Aquela não era sua residência – e mais ninguém morava ali. A pessoa que vivia ali devia ter morrido, digamos, há umas quatro ou seis semanas – tempo suficiente para a família cuidar das contas, mas não para esvaziar a casa e colocá-la à venda.
Entrando no táxi, fixou o olhar à frente.
– Para onde?
Com um grunhido, Matthias se ajeitou e puxou a carteira. Pegou o cartão de Mels Carmichael e foi atingido por uma profunda convicção de que não deveria envolver aquela mulher.
Era perigoso demais.
– E então, chefe?
Mas, droga, ele tinha de começar por algum lugar. E seu cérebro estava como uma conexão de internet fora do ar.
– Rua Trade – murmurou.
Enquanto dirigiam-se para o centro da cidade em meio ao trânsito pesado, ele observou os outros carros, onde pessoas bebiam café, conversavam com outros passageiros, paravam nos sinais vermelhos, avançavam nos verdes. Um mundo que parecia muito distante dele. O tipo de vida em que a pessoa trabalha das nove às sete todo dia, até morrer aos setenta e poucos anos. Essa não era a maneira como Matthias vivia.
Então, como ele vivia?, perguntou ao seu cérebro idiota. Como diabos ele vivia?
Tudo o que recebeu de resposta foi uma dor de cabeça.
Quando o edifício do Correio de Caldwell surgiu, Matthias pegou uma das dez notas de vinte que tinha na carteira.
– Guarde o troco.
O motorista parecia mais do que feliz em se livrar dele.
Usando a porta da frente como apoio, Matthias emergiu do carro sob a luz do sol, tomando cuidado para não corresponder a nenhum dos olhares curiosos. E havia muitos deles. Por algum motivo, ele tinha a tendência de atrair atenção, geralmente das mulheres – se bem que ficar atraída por alguém machucado era coisa normal de mulher, e ele estava cheio de cicatrizes no rosto.
Uau, que romântico.
Por fim, sentou-se na cadeira de plástico duro do ponto de ônibus do outro lado da rua, respirando a fumaça dos fumantes impacientes que esperavam o transporte público. A espera não o incomodava. Era como se ele estivesse acostumado a espreitar. Para passar o tempo, inventou um jogo: memorizava os rostos das pessoas que entravam e saíam dos escritórios do Correio de Caldwell.
Matthias era extremamente bom nisso. Só era preciso uma olhada para adicionar a pessoa ao seu banco de dados interno.
Pelo menos sua memória de curto prazo estava funcionando...
As portas duplas se abriram e lá estava ela.
Matthias se ajeitou na cadeira quando a luz do sol atingiu os cabelos de Mels e fez brilhar vários tons de castanho. Mels Carmichael, repórter associada, estava junto de um cara bem arrumado que precisava puxar a calça cáqui para cima antes de pisar nos degraus. Os dois pareciam estar discutindo amigavelmente sobre alguma coisa e, quando Mels sorriu, parecia que ela vencera o debate.
Como se soubesse que estava sendo observada, Mels olhou para o outro lado da rua e parou de repente. Ela tocou a manga do casaco de seu colega e disse algo, então eles se separaram e ela começou a se aproximar de Matthias, andando no meio do trânsito.
Matthias cravou a bengala no chão, levantou-se e ajeitou as roupas. Não tinha ideia de por que queria se arrumar para ela, mas queria – mas não dava para parecer pior. Vestia roupas que não eram dele, ainda cheirava a quarto de hospital e lavara o cabelo com xampu antibacteriano, pois era o único disponível.
Naturalmente, a primeira coisa para a qual ela olhou foi seu olho ruim, aquela coisa feia e arruinada. Como não poderia?
– Oi – ela disse.
Mels estava linda com suas roupas normais do dia a dia: com aquela calça, a blusa de lã e o lenço bege que usava ao redor do pescoço, para Matthias ela poderia muito bem estar em uma passarela.
E continuava sem aliança.
Isso é bom, ele pensou, sem uma razão especial.
Desviando o olhar para a direita, esperando que assim seu defeito fosse menos aparente, ele respondeu:
– Oi.
Certo. Hum. E agora?
– Não estou te seguindo, eu juro – mentiroso. – Eu teria ligado, mas não tenho telefone.
– Não tem problema. Você precisa de alguma coisa? A polícia me ligou hoje de manhã, e acho que eles ainda querem falar com você.
– Pois é – deixou esse assunto do jeito que estava. – Escuta, eu...
O fato de que estava interrompendo uma frase no meio parecia pouco natural, mas seu cérebro simplesmente não conseguia produzir nada.
– Vamos sentar – ela disse, mostrando os assentos. – Não acredito que eles deixaram você sair.
Naquele momento, um ônibus chegou e parou, bloqueando a luz do sol e soltando uma fumaça que o fez tossir. Os dois sentaram e ficaram em silêncio enquanto esperavam os passageiros embarcarem.
O ônibus partiu e o sol reapareceu, banhando-a com sua luz amarela.
Por alguma razão estúpida, os olhos dele começaram a piscar com força.
– O que posso fazer por você? – ela perguntou suavemente. – Está sentindo dor?
Sim. Mas não era dor física. E piorava sempre que olhava para ela.
– Como você sabe que eu preciso de ajuda?
– Imagino que sua memória não tenha voltado magicamente.
– Não, não voltou. Mas isso não é culpa sua.
– Bom, eu te atropelei. Então estou te devendo uma.
Ele gesticulou mostrando a perna ruim.
– Eu já estava assim antes.
– Consegue lembrar de alguma coisa? Quer dizer, anterior ao acidente? – quando ele negou com a cabeça, ela murmurou: – Muitos militares também voltaram na sua condição.
Ah... ela queria dizer o Exército, Marinha, Aeronáutica. E parte disso parecia ser correto. O governo... sim, Matthias tinha alguma ligação com o Departamento de Defesa, ou com a segurança nacional... ou...
Mas não era um soldado abatido. Porque nunca fora um herói.
– Eles encontraram minha carteira – ele murmurou.
– Oh, isso é ótimo.
Por alguma razão, Matthias entregou o objeto para ela.
Quando Mels abriu e olhou a carteira de motorista, ela assentiu.
– Esse é você.
Observando o emblema do Correio de Caldwell sobre a porta da qual ela saíra, ele disse:
– Veja bem, tudo o que estou falando fica entre nós dois, certo?
– É claro.
– Gostaria de ter outra opção. Gostaria... não quero te colocar em encrenca.
– Você ainda não me pediu pra fazer nada – ela o observou. – Em que está pensando?
– Consegue descobrir quem é esse cara? – apontou para a carteira de motorista. – Porque não sou eu.
N.T.: AARP é uma ONG norte-americana destinada a defender os interesses dos cidadãos com mais de cinquenta anos.
CAPÍTULO 9
Durante o silêncio que se seguiu, tudo o que Mels podia pensar era no fato de que tivera plena certeza de que nunca mais veria aquele homem.
Pelo jeito, o destino tinha outros planos.
O homem de roupas pretas sentado ao seu lado era grande, supermalhado e dava a impressão de ser forte em todos os sentidos, com seus olhos estreitos e o queixo quadrado... mas parecia envergonhado de suas cicatrizes e do defeito na perna.
Olhando mais uma vez a carteira de motorista, ela franziu a testa. A foto parecia verdadeira, os hologramas estavam onde deveriam estar, altura, peso e data de nascimento estavam corretos, o endereço ficava ali mesmo em Caldwell – e não muito longe da casa de sua mãe, na verdade.
Ele provavelmente estava voltando para casa no momento do atropelamento. Assim como ela.
Observando agora o homem em vez da imagem, ela teve a sensação de que, para procurá-la, ele fizera um grande esforço e engolira o orgulho. Ele não parecia o tipo de pessoa que gostava de depender dos outros, mas a vida claramente não lhe deixara outra escolha.
Sem memória. Poucos recursos.
E com aqueles olhos assombrados e um corpo remendado, ele tinha de ser um militar, voltara da guerra apenas fisicamente, mas não em espírito.
Naturalmente, a jornalista dentro dela gostava de um bom mistério – e o fato de ter um pouco de culpa em relação à sua amnésia era outra razão para ela mergulhar de cabeça nisso. Mas Mels não era idiota. Não queria se envolver em algum tipo de drama, principalmente se ele fosse um maluco ou paranoico.
A foto era dele mesmo, sem dúvida.
– Odeio colocar você nessa posição – suas mãos grandes acariciaram a bengala que equilibrava nas coxas. – Mas não tenho mais ninguém. E a casa nesse endereço não é minha. Não sei onde moro, mas com certeza não é naquela casa. Eu chequei a correspondência quando fui até lá – ele recostou-se para o lado e retirou uma revista dobrada do bolso da jaqueta. – Encontrei isto. O nome está certo, mas eu não tenho mais de cinquenta e cinco anos. Por que isto estaria na minha caixa de correio, endereçado a mim?
Ela desdobrou a revista e observou o logotipo da AARP e a foto de uma graciosa modelo da terceira idade vestindo roupas de ginástica. O nome acima do endereço era Matthias Hault, e o número e rua eram os mesmos da carteira de motorista... talvez ele morasse com o pai e os dois tivessem o mesmo nome.
Mas um pai não teria ficado feliz em ver o filho aparecer na porta de casa?
– Eu poderia contratar um detetive particular – ele disse –, mas isso custa dinheiro, e nesse momento tenho apenas duzentos dólares no bolso... bom, cento e oitenta, depois que paguei o taxista.
– Tem certeza de que ninguém está tentando te encontrar? – quando ele permaneceu em silêncio, ela pensou que Matthias estava vasculhando sua memória, mas ele encontrou apenas o vazio, por culpa dela. – O que os médicos disseram? Como eu disse, honestamente, estou chocada de você estar de pé andando por aí.
– Então, você vai me ajudar? – ele respondeu.
Aquele era um momento de limite que precisava ser considerado com respeito. Mas ela decidiu cruzar a linha.
– Se eu ajudar, você vai ter que falar comigo. O que os médicos disseram?
Seu olho bom procurou ao redor, como se estivesse pensando em uma resposta.
– Fui embora sem avisar.
– O quê?! Por quê?
– Não me senti seguro. E não posso explicar mais do que isso. É tudo o que sei.
Estresse pós-traumático, ela pensou. Só podia ser.
Talvez se Mels confirmasse a identidade dele, sua mente poderia descansar e isso ajudaria na recuperação.
– Certo, vou fazer o possível – ela disse.
Matthias abaixou a cabeça, como se aceitar ajuda de outra pessoa fosse um tipo de derrota.
– Obrigado. Tudo o que preciso é de uma busca com esse nome. Um lugar para começar.
– Posso voltar pro escritório e fazer isso na minha mesa agora mesmo – ela apontou para o lado direito. – Tem um restaurante ao lado do rio, a uns dois quarteirões daqui. Você pode comer algo e eu te encontro lá assim que puder. Ah... claro, se você conseguir andar...
– Eu consigo chegar lá – ele disse, rangendo os dentes.
Ou morreria tentando, ela pensou, ao observar seu queixo contraído.
Que, por sinal, lembrava muito o ator Jon Hamm.
O homem levantou-se com a ajuda da bengala.
– Então eu te encontro lá. Não precisa se apressar.
Quando ele olhou para a rua, a luz do sol brilhou em seus olhos; tanto naquele que obviamente ainda enxergava como no que estava cego.
– Quer ficar com meus óculos escuros? – ela perguntou. – É um Ray-Ban, mais unissex que isso é impossível. E também não precisa de receita.
Ela não esperou ele dar uma de fortão e recusar. Pegou a caixa e a estendeu na sua frente.
Matthias Hault ficou observando a sua oferta por um longo tempo, como se o simples gesto fosse algo a que não estava acostumado.
– Aceite – ela disse suavemente.
Sua mão tremeu um pouco ao aceitar a caixa, e ele não a olhou mais nos olhos.
– Não vou riscá-los. E vou devolver no restaurante.
– Sem pressa.
Quando ele colocou os óculos escuros, seu rosto se transformou em algo... inegavelmente perigoso.
E definitivamente sensual.
Um calor percorreu o corpo de Mels, atingindo-a num lugar que há muito tempo não se acendia.
– Melhor? – ele disse.
– Eu acho que sim.
Ele ainda se recusava a olhar para ela. Seus ombros e costas estavam retos, os lábios tensos. Um homem tão orgulhoso, preso daquele jeito em uma posição de fraqueza...
Ela sempre lembraria daquele momento, pensou, sem qualquer motivo. Sim, este momento agora, com o sol brilhando nas feições endurecidas de seu rosto bonito.
Aquilo era um momento decisivo, concluiu. Essa intersecção aparentemente aleatória entre os dois mudaria as coisas para sempre.
– Eu queria te perguntar uma coisa – ele disse.
– O quê? – ela sussurrou, imersa em um momento que não podia compreender totalmente.
– Onde aconteceu o acidente?
Sacudindo a si mesma, ela puxou seu cérebro de volta à realidade.
– Foi, ah, bem ao lado do Cemitério Pine Grove. Perto de onde moro. Não muito longe do bairro onde fica sua casa.
– Um cemitério.
– Isso mesmo.
Ele assentiu e, quando começou a caminhar em direção ao restaurante, ela podia jurar que o ouviu dizer “Por que isso não me surpreende?”.
O Riverside Diner era um restaurante típico de cidade pequena americana. Cheio de estofados de couro sintético, cortinas com estampa xadrez e garçonetes mal-humoradas. A comida era gordurosa, mas de uma maneira gloriosa, e quando Matthias cortou seus ovos mexidos com o garfo, seu estômago roncou como se fizesse anos que não comia.
Já era tarde para o café da manhã, mas não existe acompanhamento melhor para uma xícara de café do que ovos e bacon.
Enquanto comia, os óculos escuros que recebera da repórter eram uma benção, pois lhe permitiam ficar de olho nas pessoas que entravam e saíam, nas garçonetes indo e vindo, e nos fregueses que entravam no banheiro e em quanto tempo ficavam lá.
Mas vigilância não era o motivo de Mels ter lhe emprestado os óculos.
Droga. Por que aquela mulher fazia ele desejar não ter mais seus defeitos?
– Mais café? – perguntou a garçonete.
– Sim, por favor – ele ofereceu a xícara e ela despejou o café fumegante. – E mais um prato de tudo isto também.
Ela sorriu como se estivesse calculando uma gorjeta maior.
– Você come bem.
Quando não se sabe quando ou onde vai ser a próxima refeição, é melhor fazer valer a pena, ele pensou consigo mesmo.
A repórter apareceu pouco depois de Matthias terminar o segundo café da manhã. Ela olhou para a esquerda e depois para a direita e o encontrou sentado nos fundos, ao lado da saída de emergência. Então começou a percorrer o longo caminho de mesas vazias.
Quando sentou à sua frente, seu rosto estava vermelho, como se tivesse se apressado.
– Devia estar lotado quando você chegou – ela disse.
– Estava – mentira: ele queria ficar nos fundos para o caso de precisar sair às pressas.
A garçonete voltou com o pote de café.
– Olá... gostaria de café?
– Sim, por favor – Mels tirou a blusa. – E o meu de sempre.
– Almoço ou café da manhã?
– Almoço.
– Já está saindo.
– Você almoça sempre aqui? – ele perguntou, imaginando por que se importava.
– Duas, três vezes por semana, desde que comecei a trabalhar no jornal.
– E quando começou?
– Um milhão de anos atrás.
– Engraçado, você não parece um dinossauro.
Sorrindo um pouco, ela tomou um gole do café e se preparou para a conversa. Seus lábios ficaram tensos e seus olhos se estreitaram.
Ela ficava sexy daquele jeito. A intensidade. O foco. Naquele momento, ela o fazia se lembrar de si mesmo...
E isso era um milagre, se você pensar que Matthias tinha a mesma quantidade de informação sobre os dois... sendo ela uma estranha.
– Diga o que descobriu – ele exigiu.
– Você está morto.
– E eu que achei que era só uma sensação.
Durante a pausa que se seguiu, ele podia sentir que Mels tentava entendê-lo.
– Você não está surpreso – ela disse.
Ele observou sua xícara meio vazia e balançou a cabeça.
– Eu sabia que havia algo de errado naquela casa.
– O dono verdadeiro desse nome tinha oitenta e sete anos e morreu de insuficiência cardíaca cinco semanas atrás.
– Em se tratando de identidades falsas, essa não é uma das melhores, não é?
– Você fala como se conhecesse bem o assunto – quando ele não comentou nada, ela se inclinou para frente. – Por acaso você faz parte do programa governamental de proteção a testemunhas?
Não, ele estava do outro lado da lei... seja lá o que isso significasse.
– Se for o caso – ele disse –, não estão cuidando muito bem de mim.
– Tenho uma ideia. Vamos voltar ao cemitério, no local do acidente. Vamos ver se você se lembra de alguma coisa.
– Não posso pedir pra você fazer isso.
– Não pediu. Estou oferecendo... – ela parou. Franziu a testa. Coçou a sobrancelha. – Meu Deus, espero não estar me transformando na minha mãe.
– Ela gosta de cemitérios?
– Não, é uma longa história. Enfim, peguei emprestado o carro do meu amigo. Posso te levar até lá depois que terminarmos de comer.
– Não. Mas eu agradeço.
– Por que você se deu ao trabalho de perguntar sobre o nome se não vai continuar investigando?
– Posso pegar um táxi, foi o que quis dizer.
– Ah.
A garçonete voltou com o “de sempre”, que era um sanduíche de frango em pão integral e o que parecia ser tomates extras, além de batatas fritas em vez de batatas chips.
– Acho que eu deveria levar você – ela disse, pegando o ketchup.
Matthias observou quando dois policiais entraram pela porta da frente e sentaram no balcão.
– Posso ser sincero com você?
– Por favor.
Ele abaixou o queixo e a olhou por cima dos óculos escuros.
– Não quero que fique sozinha comigo. É muito perigoso.
Ela parou com uma batata frita a meio caminho da boca.
– Sem ofensa, mas, considerando sua condição física, eu poderia quebrar suas duas pernas e te deixar inconsciente em questão de segundos – as sobrancelhas dele foram erguidas ao máximo, e ela assentiu. – Sou faixa preta, tenho permissão para porte de armas e nunca vou a lugar algum sem uma boa faca ou sem minha arma.
Ela deu um sorriso rápido, pegou o sanduíche de frango e deu uma mordida.
– Então, o que me diz?
CAPÍTULO 10
Felizmente, aquilo não era um encontro romântico, pensou Mels quando o silêncio imperou. Pois dizer a um homem que você é capaz de acabar com ele não seria um bom começo, meio ou fim para um almoço a dois.
Aquilo era trabalho – é claro que a história daquele homem, seja lá qual fosse, não terminaria nos jornais, mas era algo a ser investigado, e Deus sabia que ela nunca dispensava uma oportunidade dessas.
– É um belo currículo – ele disse depois de um bom tempo.
– Meu pai se certificou de que eu seria capaz de me defender. Ele era um policial à moda antiga.
– O que isso quer dizer?
Ela limpou a boca com um guardanapo, tomou outro gole de café e desejou ter pedido uma Coca.
– Digamos que hoje em dia, com câmeras nos carros de polícia, reuniões da corregedoria, e pastas cheias de protocolos de procedimentos, ele não teria durado nem um mês antes de ser suspenso. Mas no passado ele fazia seu trabalho, e as pessoas estavam mais seguras nesta cidade graças a ele. Ele dava conta de tudo.
– Um cara durão?
– Um cara justo.
– E você aprova esses métodos?
Ela deu de ombros.
– Ele tinha minha aprovação. Por outro lado, sua maneira de agir... digamos apenas que era outra época. Antes de testes de DNA e internet.
– Parece meu tipo de pessoa.
Mels teve que sorrir ao ouvir aquilo. Mas então uma tristeza pela perda do pai a fez virar o rosto e observar o rio e as gaivotas que seguiam a lenta correnteza.
– Ele nunca perdia o controle ou ficava bravo. Mas às vezes os criminosos só entendem as coisas quando elas são explicadas na língua deles.
– Você tem irmãos ou irmãs?
– Apenas eu. E meu pai não se importava por eu ser uma garota. Ele me tratava como trataria um filho: me treinou, ensinou autodefesa, insistiu que eu aprendesse a disparar armas de fogo – ela riu. – Minha mãe quase tinha ataques do coração por causa disso. Até hoje ela é assim.
– Ele já se aposentou?
– Faleceu – ela voltou ao sanduíche. – Foi morto em serviço.
Houve uma pausa. Então Matthias disse suavemente:
– Sinto muito.
Mels não ousou levantar os olhos, pois falara demais e, com aqueles óculos escuros, não sabia onde estavam os olhos dele – embora não fosse necessário ser um gênio para saber que estavam focados nela.
– Obrigada. Mas chega de falar de mim. E chega dessa porcaria de é-perigoso-demais. Tenho cuidado de mim mesma faz tempo, e sou muito boa nisso. Não teria oferecido ajuda se não achasse que poderia lidar com você.
Ele soltou uma risada súbita.
– Você é muito segura de si mesma.
– Sei quais são meus limites.
– Mas você não me conhece. E eu também não.
– E nós queremos consertar isso, não é?
O homem recostou-se.
– Sim.
Quando terminou o sanduíche – deixando o resto das batatas de lado – ela pagou a conta e levantou-se.
– Então, vamos lá.
Quando ele pousou os olhos nela, aquele calor a invadiu novamente, uma atração sem sentido passando por seu corpo.
– Prometa uma coisa – ele disse em voz baixa.
– Depende do que for.
– Você não vai correr nenhum risco.
– Feito.
Matthias assentiu, pegou a bengala, deslizou as pernas para fora da cadeira e esperou por um momento, como se estivesse preparando o corpo para um massacre. O primeiro instinto de Mels foi colocar um braço sob o ombro dele para ajudar, mas sabia que ele não gostaria disso. E ficar encarando sua fragilidade também não era respeitoso, então ela se virou e fingiu checar o cardápio iluminado que ficava sobre o balcão.
Um grunhido denunciou que ele se levantara, então Mels seguiu em frente até a porta. Enquanto passavam pelos outros fregueses, ela sentiu os olhos de todos pairando sobre o homem que estava atrás dela.
Deus, ela imaginava como seria a vida daquele jeito, atraindo constantemente os olhares curiosos. Se bem que as mulheres provavelmente estavam vendo apenas aquilo que ela própria enxergava. Que não tinha nada a ver com defeitos.
Muito pelo contrário.
O carro de Tony, que estava no estacionamento, parecia já ter visto dias melhores, não era como a Fifi, mantida com carinho. Aquele carro parecia mais uma lata de lixo ambulante.
– Não repara na sujeira – ela disse ao destrancar o veículo.
Ao entrar, Mels tirou do banco do passageiro as várias revistas Newsweek e The New Republics. Como era de se imaginar, Matthias levou um tempo para entrar no carro e, quando colocou os joelhos para dentro, suas botas pisaram em lixo, amassando embalagens vazias de Taco Bells, McDonald’s, Burger King e Wendy’s.
– Seu amigo gosta de fast-food – ele comentou.
– E come rápido também.
Ela acelerou e entrou no trânsito, espremendo o sedã entre um táxi e uma caminhonete.
– Cinto de segurança – disse Matthias.
Mels olhou para ele.
– Pois é. Você está usando um.
– Gosta de viver perigosamente?
– Cintos de segurança nem sempre salvam vidas.
– Então todas essas pessoas ao redor estão erradas?
– Elas podem fazer o que quiserem, e eu também.
– E as multas?
– Nunca fui parada no trânsito. E se acontecer, simplesmente pago a multa.
– Quando. Você quer dizer “quando acontecer”.
O Cemitério Pine Grove ficava a uns dez minutos – mas não do jeito que Mels dirigia. Em nenhum momento ela foi imprudente, apenas eficiente, escolhendo rotas que evitavam semáforos e as obras ao redor do parque.
– É ali, à direita – Mels se inclinou sobre o volante e olhou através do para-brisa. – Na verdade, é um lugar lindo. Há algo tão pacífico em cemitérios...
Matthias não parecia impressionado.
– Toda essa coisa de descanso eterno é uma ilusão.
– Você não acredita no Céu?
– Acredito no Inferno, isso sim.
Não houve tempo para ela responder quando chegaram na entrada.
– O acidente aconteceu por aqui... um pouco depois do portão principal. Bem... um pouco mais para frente... aqui.
Enquanto ela estacionava o carro de Tony e desligava o motor, Matthias já estava saindo. Andando rápido com sua bengala, ele parou no meio da rua, em cima das marcas onde ele havia aterrissado. Olhou para os dois lados e seguiu até as marcas dos pneus da Fifi e a árvore atingida... e finalmente chegou no portão de três metros de altura que cercava o cemitério.
Aquilo é que era estilo gótico. Feitas com barras de ferro com pontas em forma de flor de lis, as fronteiras do Pine Grove eram imponentes... e perigosas, se alguém tentasse escalá-las.
E veja só, enquanto se aproximava, Mels viu uma mancha de sangue no topo de uma das pontas – e havia também um pedaço de roupa. Como se alguém tivesse tentado pular o cercado.
– Eu pego – ela disse, pulando e agarrando o tecido. – Aqui.
Matthias segurou o pano.
– Tecido impermeável. Aposto que aquele sangue seco é meu. Tenho um ferimento recente na perna.
Mas por que ele não teria simplesmente passado pelo portão da frente? Bem, à noite ele provavelmente ficava trancado.
– Podemos entrar? – ele perguntou.
– Agora mesmo.
De volta ao carro, ela passou pela entrada e virou à esquerda, indo em direção ao ponto onde encontraram o tecido. Chegando lá, ela parou novamente, saiu e esperou que a memória dele se manifestasse. Se é que isso aconteceria.
Enquanto ele olhava ao redor, Mels ficou um pouco distante, ouvindo a brisa que soprava entre os galhos dos pinheiros e sentindo o sol brilhar em seus ombros... e tentou não pensar no lugar onde estava seu pai...
Logo atrás, a uns cem metros, no meio do cemitério, entre a família Thomas e os três irmãos Krensky.
Pelo jeito, ela se lembrava muito bem.
A última vez em que estivera ali fora no dia seguinte ao enterro do pai. Mels estivera trabalhando em Nova York por quase cinco anos. Ele estava tão orgulhoso de sua filha na cidade grande, fazendo aquilo que tinha estudado – o jornalismo...
– É por aqui – Matthias disse, distraído.
Enquanto ele caminhava pelo gramado desigual, Mels largou seu passado para se concentrar no presente dele, e juntos andaram decididamente, mesmo com os passos de Matthias se mostrando instáveis e precisando do suporte da bengala. De vez em quando ele parava, como se estivesse calibrando a direção, e Mels não o interrompia com perguntas.
A construção onde finalmente chegaram combinava com as lápides e sepulturas. Sua fachada de pedra ecoava a arquitetura usada na entrada principal e nos balaústres que se intercalavam aos portões de ferro.
– Eu estava nu – ele disse. – Vim até aqui, entrei pela janela e peguei...
Ele empurrou a porta, que rangeu enquanto se abria. Lá dentro, caminhou até a parede de trás e comparou o pedaço de tecido rasgado com um macacão impermeável que estava pendurado.
Nu?, ela pensou.
– Onde estavam suas roupas?
Ele deu de ombros.
– Só sei que estive aqui na noite passada.
Matthias voltou para fora e continuou pelo caminho que estavam fazendo, mas agora ele andava em zigue-zague – talvez para manter a trilha ou para tentar encontrá-la; Mels não sabia e também não perguntou. Apenas o seguiu, e eles passaram por dezenas de lápides, além de funcionários que cuidavam do gramado e pessoas que visitavam túmulos de parentes.
Finalmente, quando estavam a quase meio quilômetro de onde deixaram o carro, ele parou.
– Aqui. Isto é... sim, foi aqui que começou. Tenho certeza.
A lápide que ele observava pertencia a um dos túmulos mais recentes – e em cima da terra fofa que fora colocada sobre o caixão, havia realmente a silhueta de um corpo, como se uma pessoa do tamanho dele tivesse deitado ali em posição fetal.
– Foi aqui que começou – ele se apoiou na bengala e se agachou. Tocando a terra, sussurrou: – Aqui.
– James Heron – ela disse, lendo a inscrição simples na lápide. – Você conhece ele?
Matthias olhou ao redor do cemitério.
– Sim.
– Em que contexto?
– Preciso ir – ele se levantou e se afastou dela. – Obrigado.
Mels franziu a testa.
– Do que está falando?
– Você precisa ir embora agora...
– Você não tem condições de andar de volta até a cidade. E boa sorte se quiser achar um táxi.
– Por favor, você precisa ir embora.
– Diga por que e talvez eu considere.
Em um movimento súbito, o homem se aproximou dela, chegando perto... muito perto. Tomando fôlego, Mels precisou forçar para que seus pés não se mexessem... e foi um choque quando percebeu que os pés desejavam que seu corpo terminasse o que ele havia começado.
Só era preciso mais um passo para que seus peitos se tocassem e seus quadris se apertassem um contra o outro.
Não era a ideia mais brilhante, já que parecia que o predador dentro dele se libertara. Mas ela não queria ser sensata.
Mels o desejava.
Mas isso não fazia parte do plano.
Levantando o queixo, ela disse:
– Se pensa que essa agressividade é persuasiva, você está errado. E eu estou esperando uma explicação.
Matthias se inclinou para frente, e o movimento de seus quadris a deixou totalmente ciente do quão mais alto ele era. Quão mais forte, mesmo machucado. E o quanto seus olhos ardiam, mesmo através dos óculos escuros.
Com uma voz grave e perigosa, Matthias disse:
– Porque você vai morrer se não se afastar de mim.
CAPÍTULO 11
Local não revelado Washington, D.C.
– Este é o alvo.
A foto que caiu com a imagem para cima na lustrosa mesa chegou ao agente por força da inércia.
O rosto instantaneamente pareceu familiar. Afinal, quem nas Operações Extraoficiais não conhecia aquele homem?
O agente ergueu os olhos na direção de seu superior.
– Qual a localização?
– Caldwell, Nova York.
O endereço foi passado oralmente, assim como todas as outras instruções. E ele não podia ficar com a foto. E aquela sala, em um prédio absolutamente comum na capital da nação, não registrava nada daquela conversa. Sem rastros. Nunca.
– Obviamente, consideramos que ele está armado e é extremamente perigoso.
Com certeza. Sempre fora – mas glórias não duram para sempre, e você nunca deixa de ser um agente das Operações. As únicas classificações para um agente eram “em atividade” ou “eliminado”.
E ele seria o responsável pelo carimbo de “eliminado”, nesse caso.
– As regras normais se aplicam – disse o superior.
É claro que sim: agiria sozinho, era o único responsável pela missão e, se falhasse, era melhor rezar para morrer – ou fazer isso por si próprio. Essas regras eram muito conhecidas pelo pequeno grupo de agentes que foram escolhidos a dedo pelo diabo em pessoa...
Matthias. Aquele que os liderara nos últimos dez anos. O astuto jogador de xadrez, o mestre da manipulação, o violento sociopata que servira de modelo para todos eles.
Por um momento, parecia estranho receber ordens de outra pessoa – mas, considerando quem era o alvo...
No entanto, a organização precisava seguir em frente, e seu atual superior subira rápido na hierarquia, claramente se posicionando como o herdeiro do trono. Isso explicava o que estava fazendo agora. Pontas soltas eram inaceitáveis.
– Mais alguma coisa de que eu precise saber?
– Apenas não estrague tudo. Você tem 24 horas.
O agente esticou a mão enluvada e trouxe a foto para mais perto. Observando aquele rosto, pensou que, se alguém tivesse lhe contado sobre as mudanças que aconteceram nos últimos dois anos, ele se convenceria de que essa pessoa estava maluca.
Porém, lá estava ele, olhando para aquele poderoso homem na fotografia, que agora estava condenado à morte. Se o agente falhasse ao tentar matá-lo, a organização mandaria outro. E outro. E mais outro. Até que a missão fosse cumprida.
E, conhecendo o alvo, talvez precisassem de mais de uma tentativa.
Seu superior pegou de volta a fotografia e caminhou até uma porta que parecia normal, mas que na verdade era à prova de balas, fogo, bombas e som. Assim como as paredes, o teto e o chão.
Após um escaneamento da retina, a porta se abriu e depois fechou, deixando o agente sozinho para ponderar suas opções: uma vez que a missão fosse entregue, os métodos de execução ficavam por conta do agente designado. Os chefes se importavam apenas com os fins, não com os meios.
Caldwell, em Nova York, ficava a apenas uma hora e meia de avião, mas era melhor ir de carro. Não dava para saber que recursos tinha seu alvo, e aviões podiam ser rastreados mais facilmente do que carros sem identificação.
Enquanto o agente deixava o edifício, o fato de que poderia estar se dirigindo para a própria morte era irrelevante – e essa era parte da razão de ele ter sido selecionado dentre tantos outros soldados e civis que se “inscreviam” para as Operações Extraoficiais. Cuidadosas avaliações psicológicas e físicas eram conduzidas, não durante semanas ou meses, mas por anos, antes que o candidato recebesse o sinal verde. Afinal, o trabalho exigia uma incomum combinação de urgência e desapego, lógica e iniciativa, disciplina mental e física.
Assim como o simples prazer em matar outros seres humanos.
Ao final do dia, ele achava divertido bancar o Ceifeiro da Morte, e essa era a única maneira legal e sancionada de fazer isso. Mesmo o mais cuidadoso assassino em série acaba preso com o passar do tempo. Mas e trabalhando para o governo dos Estados Unidos?
Seu único limite era sua habilidade de permanecer vivo.
CAPÍTULO 12
Matthias precisava se afastar de Mels.
Não havia nenhuma outra opção. No cemitério, junto dela, encarando a lápide de Jim Heron, pareceu muito claro que eles estavam separados entre a vida e a morte – e ela estava no lado da vida.
Matthias queria mantê-la assim.
Depois de discutirem por um momento, ela o deixou, afastando-se com uma rapidez eficiente que ele aprovava. Matthias permaneceu no local de descanso de Jim Heron pelo tempo que julgou ser necessário até Mels chegar ao carro de seu amigo – e, como ele esperava, o Toyota não estava mais no portão principal do cemitério quando ele retornou.
E ela estava certa quanto à falta de táxis, mas havia um ponto de ônibus não muito longe e, embora isso o obrigasse a esperar, acabou conseguindo voltar ao centro da cidade por conta própria.
Melhor assim. Uma separação definitiva – ao menos fisicamente. Em sua mente, ele tinha o pressentimento de que não seria tão fácil.
Apesar de ainda possuir uma parte dela, de forma concreta: os óculos escuros. Ela não os pedira de volta, e ele esqueceu que estavam em seu rosto.
E esconder seu olho ruim seria muito útil em uma situação como a dele.
Matthias entrou no Starbucks da rua Quinze e avaliou o local através de seu Ray-Ban. O horário de pico do almoço já tinha passado e os fregueses das três da tarde ainda não tinham aparecido para lotar o local em busca de um remédio para sua sonolência vespertina. Havia apenas duas pessoas tomando café com leite, além de um par de baristas do outro lado no balcão.
Ele escolheu a barista cheia de piercings na sobrancelha e cabelo espetado azul e rosa.
Quando se aproximou, ela ergueu um olhar que parecia contar as horas para ir embora, mas sua expressão mudou rapidamente. Para algo a que ele já estava acostumado.
Era uma expressão de interesse feminino.
Matthias escolheu sabiamente.
– Olá – ela disse, enquanto pesquisava seu rosto... e depois a bengala e a jaqueta preta.
Ele sorriu, como se também estivesse momentaneamente interessado nela.
– Ah, escuta, eu combinei de encontrar um amigo aqui, mas ele não apareceu. Eu ia ligar para ele do meu celular, mas percebi que esqueci em casa. Posso usar seu telefone?
Ela deu uma olhada em seu colega de cafeteria. O cara estava encostado nos fundos ao lado das máquinas de café, braços cruzados ao redor do peito magro, como se estivesse descansando em pé.
– Sim. Pode sim. Venha aqui.
Matthias a seguiu pelo balcão, exagerando seu andar manco.
– Preciso ligar para o disque-informações primeiro, pois não lembro o número dele. Mas não se preocupe, é uma ligação local. Não acredito que esqueci meu celular!
– Acontece com todo mundo! – ela estava toda agitada, seus olhos pousavam rapidamente nele e depois se desviavam, como se ele fosse brilhante demais para se olhar por muito tempo. – Mas eu preciso discar, você não pode entrar atrás do balcão.
– Sem problema – quando ela lhe entregou o fone, ele o pegou e sorriu devagar. – Obrigado.
Ela ficou ainda mais encabulada. Ao ponto de precisar discar duas vezes até conseguir chamar o número desejado.
Matthias casualmente se virou e fingiu checar a entrada procurando por seu “amigo” quando uma voz gravada atendeu:
– Cidade e estado, por favor.
– Caldwell, Nova York – houve uma pausa. Ele esperou um atendente. – Por favor, o número de James Heron.
Enquanto Matthias esperava pela informação, a garota pegou um pano e passou casualmente pelo balcão. Mas ela estava escutando, com as sobrancelhas abaixadas.
– H-E-R-O-N – soletrou Matthias. – O primeiro nome é James.
Mas que droga, de que outro jeito dá para soletrar esse nome?
A atendente voltou a falar:
– Desculpe, mas não encontro ninguém com esse sobrenome em Caldwell. Quer tentar algum outro nome?
Que merda! Mas, de alguma forma, isso não o surpreendia. Seria muito fácil. E nem um pouco seguro.
– Não, obrigado – Matthias virou-se e entregou o fone para a garota. – Não tive sorte. O nome não está na lista.
– Você disse “Heron”? – perguntou a garota enquanto pendurava o fone. – Aquele cara que morreu?
Matthias estreitou os olhos – mas ela não podia ver, graças ao Ray-Ban.
– Mais ou menos. Meu amigo é irmão dele, na verdade. Moravam juntos. O telefone estava no nome de Jim. Como eu disse, meu amigo e eu combinamos de nos encontrar aqui pra, você sabe, conversar sobre tudo isso. É tão difícil perder alguém dessa maneira, e estou preocupado com o que isso pode fazer com a cabeça dele.
– Oh, Deus, foi triste demais – a garota jogava o pano de uma mão para outra. – Meu tio trabalhou com ele. E estava lá quando foi eletrocutado. E pensar que levou um tiro, tipo, dias depois. Quer dizer, como é possível? Sinto muito por seu amigo.
– Seu tio conhecia o Jim?
– Ele é gerente de recursos humanos na construtora em que Jim trabalhava.
Matthias respirou fundo, como se estivesse engasgando.
– Jim era um cara muito legal. Nós estivemos na guerra juntos – bateu com a bengala no balcão. – Sabe como isso é.
Quatro... três... dois... um...
– Olha, eu posso ligar pro meu tio se você quiser. Talvez ele tenha o telefone. Espera um pouco.
A garota saiu de trás do balcão, parou um pouco, depois assentiu para si mesma, como se estivesse em uma missão pelo bem, determinada a “fazer a coisa certa”.
Enquanto Matthias esperava ela voltar, ficou esperando também que sua consciência o repreendesse por causa da manipulação.
Quando não sentiu nada, ficou perturbado com a facilidade da coisa. Como se mentir fosse tão familiar e insignificante que seu cérebro registrasse essa ação como um simples reflexo.
A barista retornou cerca de cinco minutos depois com um número escrito em um papel de carta feminino, que traía completamente seu visual radical.
– Vou discar pra você.
A barista voltou para trás do balcão e entregou novamente o telefone a Matthias, que ficou escutando o som das teclas enquanto ela apertava os botões.
Ouviu o som de chamada. Um. Dois. Três. Quatro toques.
Nada de correio de voz. Nenhuma resposta.
Ele devolveu o telefone.
– Não tem ninguém em casa.
Afinal, o que ele esperava? Acordara no túmulo do cara e agora achava que Heron fosse atender o telefone? Era uma longa distância entre o caixão e a companhia telefônica.
– Talvez ele esteja a caminho?
– Talvez – Matthias encarou a garota por um momento. – Obrigado. Obrigado mesmo.
– Quer um café enquanto espera?
– Acho que vou dar uma passada na casa dele. Às vezes as pessoas reagem a uma tragédia... de um jeito estranho.
Ela assentiu, preocupada.
– Sinto muito.
E sentia mesmo. Uma completa estranha sentia pena, honestamente, por o que quer que ele estava passando.
Ele imediatamente pensou em Mels, que também parecia tão disposta a ajudar.
Pessoas boas. Pessoas gentis. E sua memória defeituosa dizia que Matthias não merecia ficar entre esse tipo de companhia.
– Obrigado – ele disse com a voz rouca antes de sair mancando pela porta.
A pistola calibre quarenta na mão de Jim pesava menos de um quilo, e já estava carregada com dez balas no pente e uma na agulha.
Ele manteve a arma abaixada ao lado da coxa enquanto saía da garagem. Depois do episódio no chuveiro, Adrian saíra para tomar ar e trazer comida, levando sua Harley, mas não o capacete. O Cachorro estava seguro no andar de cima, descansando na cama sob o sol. Jim estava de guarda.
Você não vê? Ela está dentro de mim... e está me dominando...
Merda.
Pelo menos Jim tinha um escape. O bom da garagem era que ela ficava nos fundos do terreno de uma casa de fazenda – e a casa da frente, branca, com sua varanda e chaminé de tijolos, estava vazia desde que ele começara a alugar o local.
Ninguém veria. Mas isso ainda não era suficiente.
Ele enfiou a mão livre dentro da bota e retirou um silenciador. A peça adicionava quase trezentos gramas ao peso da pistola automática e mudava seu centro de gravidade, mas Jim estava acostumado a usá-la daquela maneira.
Agora, ninguém ouviria também.
De pé sobre o cascalho solto do caminho de entrada, ele tragou o cigarro e então o segurou com a mão esquerda. Concentrando-se em um galho que estava a dez metros do chão, levantou a arma e mirou no pedaço de madeira de três centímetros.
Respirando calmamente, Jim fechou os olhos e pensou no rosto de Devina.
Crack!
Graças ao silenciador, o som da pistola foi bastante reduzido, apenas um estampido contra sua mão e o impacto na árvore.
Crack!
O gatilho, assim como o cabo e o tambor, não eram apenas uma extensão de seu braço, mas também de seu corpo, e ele não precisava dos olhos para reajustar a trajetória. Sabia exatamente onde o chumbo acertaria.
Crack!
Calmo. Concentrado. Respirando pela barriga, não pelo peito. Imóvel, exceto pelo dedo indicador e depois pelos músculos do antebraço ao absorverem o súbito coice da arma.
O impacto da última bala foi mais suave; afinal, já não restava muita madeira.
Ele abriu os olhos assim que o galho começou uma queda livre, batendo em seus irmãos até chegar ao chão duro.
Colocando o Marlboro de volta entre os dentes, Jim esmagou as pinhas e a grama rala com suas botas de combate ao andar até a árvore e pegar o galho. Foi um corte preciso, relativamente falando. Nada igual ao que uma serra faria, mas, considerando a distância e os meios, parecia bom o suficiente.
– Você é um ótimo atirador.
O sotaque inglês altivo vindo de trás de Jim o fez querer continuar apertando o gatilho.
– Nigel.
– Cheguei num momento inapropriado?
– Ainda tenho sete balas. Você decide.
– Devina sofreu uma reprimenda – Jim girou o corpo e estreitou os olhos na direção do arcanjo aristocrático, que assentiu. – Queria que soubesse. Pensei que seria muito importante te informar disso.
– Está preocupado pensando que estou perdendo o rumo?
– Mas é claro.
Jim teve de sorrir.
– Você consegue ser direto quando lhe convém. Então, o que é que seu Criador fez com minha inimiga?
– Ela é seu oponente...
– Inimiga.
Nigel colocou as mãos para trás e começou uma caminhada excêntrica. Vestia um terno fora de moda cortado à mão, do tipo que era totalmente estranho a Jim, e que continuaria desse jeito.
– Qual é o problema, chefe? – Jim murmurou. – O gato comeu sua língua?
O arcanjo lhe lançou um olhar que o faria cair morto ali mesmo, se Jim estivesse vivo do jeito convencional.
– Você não é o único com temperamento explosivo, e eu devo te lembrar de tomar cuidado com o tom e as palavras quando se dirigir a mim.
Jim guardou a arma na cintura.
– Certo. Chega de papo furado. O que posso fazer por você?
– Nada. Eu simplesmente pensei que você se acalmaria se soubesse que o Criador agiu. Eu te disse pra deixar que o demônio cruzasse os limites. Eu te disse pra esperar pelas consequências. E elas vieram.
– O que Ele fez com ela?
– As vitórias e derrotas que vocês conquistaram são permanentes. Não há nada que Ele ou qualquer um de nós possa fazer a respeito de onde as bandeiras foram... elas são imutáveis. Mas Ele decretou que as ações de Devina não podem ficar impunes.
– Espere, não estou entendendo. Se o que Devina fez afetou o resultado de uma rodada, então sua vitória tem que ser anulada.
– Não é assim que essa competição funciona. As vitórias... – o arcanjo olhou para o céu. – O paralelo seria propriedade pessoal, suponho.
– Minha?
– De certa maneira, eu diria que sim.
– Então, se ela quebrou as regras e isso mudou o resultado, o Criador deveria dar de volta aquilo que é meu de direito. E, já que estamos falando nisso, quero lembrar que, se eu soubesse que a alma em questão era o Matthias, eu não teria me concentrado no homem errado.
– E isso foi corrigido.
– Como?
Ao longe, do outro lado do campo, um carro saiu da estrada e entrou no caminho que passava pela casa da fazenda.
Merda. Visitantes não eram nada bem-vindos – e a cor amarela sugeria um táxi.
O carro não parou na residência principal.
Nigel levantou uma sobrancelha.
– Acredito que ficará evidente.
Após mais uma de suas frases enigmáticas, o chefe desapareceu.
– Obrigado, amigão – Jim murmurou. – Grande ajuda de merda. Como sempre.
Protegendo-se em um canto, Jim encostou os ombros na parede de alumínio. A arma não permaneceu na cintura. Ele a segurou mais uma vez, preparado para atirar.
O táxi estacionou na frente da garagem.
Um momento depois, um homem que ele nunca esperava ver de novo saiu do banco do passageiro... um pesadelo que vivia e respirava... um problema do passado, que Jim já resolvera.
Então esta era a solução para a trapaça de Devina?
– Filho... da puta – Jim sussurrou.
CAPÍTULO 13
Matthias saiu do táxi e pediu que o motorista esperasse. A garagem à sua frente era uma espécie de galpão de armazenamento, com escadas que levavam para o segundo andar. As portas duplas no andar térreo estavam fechadas; a do andar de cima e as cortinas também.
Na janela do andar superior, as cortinas se separaram e um cachorro desgrenhado apareceu, como se estivesse de pé com as patas da frente apoiadas na parede.
Alguém claramente vivia ali.
– Mande o táxi embora.
Matthias virou rapidamente a cabeça para a direita, e o homem que surgiu de trás da garagem o fez quase perder o equilíbrio, fazendo uma lembrança vívida e instantânea surgir em sua memória.
Jim Heron. De volta do mundo dos mortos.
O instinto de Matthias lhe dizia que o cara sempre tivera aquele grande corpo musculoso, cabelo loiro escuro, o rosto frio e de feições endurecidas. Mas não havia contexto em sua lembrança, não havia um comentário interno sobre como ele conhecia o homem, ou o que viram e fizeram juntos. Porém, uma coisa estava clara... mesmo sem a arma, era óbvio que aquele não era o tipo de cara que você quer por perto se estiver desarmado e sem um veículo de fuga.
Matthias bateu no vidro, entregou uma nota de vinte ao motorista e o deixou ir embora.
Quando o carro manobrou e partiu pelo caminho de entrada, o som dos pneus esmagando o cascalho parecia tão alto quanto disparos de uma arma.
– Isso é uma arma na sua perna ou você está apenas feliz de me ver? – Matthias disse secamente.
– É uma arma. E você quer me dizer o que está fazendo aqui?
– Diria, se soubesse. Talvez você possa me ajudar com essa pergunta.
– O quê? – quando Matthias não respondeu, os olhos azuis cínicos de Heron ficaram ainda mais estreitos. – Você está falando sério. Isso foi uma pergunta sincera.
Matthias deu de ombros.
– Interprete do jeito que quiser. E enquanto pensa, eu gostaria de comentar que você supostamente está morto.
– Como você me encontrou?
– Procurei na central de informações. De certa maneira.
Quando Heron se aproximou, Matthias percebeu que a posição da arma com o silenciador mudou e que agora o tambor estava apontado diretamente para seu peito. E podia apostar que o gatilho seria apertado em um instante, se fosse preciso. O que significava que aquele homem com estilo militar era paranoico... ou que, por alguma razão, considerava Matthias perigoso.
– Estou desarmado – Matthias anunciou.
– Não faz o seu feitio.
A arma não foi abaixada; aquele corpo não relaxou; aqueles olhos não perderam o ar de alerta.
– Você não acredita em mim – disse Matthias.
– Depois de tudo o que passamos? Nem um pouco, meu velho amigo.
– Nós éramos amigos?
– Não, você está certo. Nós fomos muitas coisas, mas nunca amigos – Heron balançou a cabeça. – Mas que merda, sempre que não espero mais te ver, você aparece.
Heron sabia as respostas, pensou Matthias. O homem que estava bem à sua frente era o caminho para ele descobrir quem era.
– Bom – murmurou Matthias –, considerando que você ainda está respirando, mas que eu visitei o seu túmulo uma hora atrás, eu não sou o único tirando coelhos da cartola. Se importa de me contar onde foi que nos vimos pela última vez?
– Você está falando sério? – quando ele assentiu, Heron balançou a cabeça novamente. – Está dizendo que não se lembra?
Matthias levantou as mãos, mostrando as palmas.
– Não tenho nada.
A atitude desconfiada de Jim foi substituída por uma breve surpresa.
– Jesus.
– Acho que não. Minha carteira de motorista diz “Matthias”.
A risada que recebeu como resposta foi um pouco assustadora.
– Se importa se eu te revistar?
Matthias encostou a bengala na perna e levantou as mãos.
– Manda ver.
Jim fez o procedimento com uma das mãos e, quando se afastou de novo, soltou outro palavrão.
– Claramente você perdeu a cabeça.
– Não, apenas minha memória. E preciso que você me diga quem sou eu.
Houve um longo silêncio, como se Heron tentasse preencher os buracos da história em sua cabeça. Finalmente, disse:
– Vou pensar bem antes de contar as coisas do seu passado. Mas vou te ajudar. Disso você pode ter certeza.
– Isso não é bom o suficiente. Preciso das informações. Agora.
– Acha mesmo que está em posição para fazer exigências?
Enquanto Jim conduzia seu antigo chefe, Matthias, o Cretino, para o andar de cima, ele não conseguia acreditar em tudo aquilo. E não importava o quanto seu cérebro se esforçasse: parecia que os porcos realmente podiam voar, que o Inferno estava cheio de bolas de neve, e que em algum lugar um cachorro velho aprendia a dirigir uma droga de um carro.
Era disso que Nigel estava falando? Uma repetição da segunda rodada?
Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
Parece que concentrar-se na alma errada não seria um problema desta vez – desde que o discurso cifrado de Nigel estivesse mesmo certo e Matthias, mais uma vez, fosse a alma em jogo.
O que não era uma maneira tão boa de penalizar Devina. Merda!
Mas havia uma boa notícia – se é que podia existir alguma notícia boa nessa história de voltar do mundo dos mortos: a perda de memória. O velho Matthias nunca se exporia com uma fraqueza como amnésia, portanto provavelmente era verdade – e Deus sabia que esse buraco negro de informações seria muito útil.
Assim, Jim precisava trabalhar apenas contra a natureza.
Abriu a porta e deu espaço para Matthias entrar.
– Humilde lar, e essas coisas.
Enquanto Matthias mancava para dentro, o Cachorro correu e balançou o rabo lhe dando boas-vindas, com suas patas fazendo barulho no chão de madeira.
Considerando a alegria do cão, parecia óbvio que Devina não estava usando o corpo daquele homem. O que foi uma boa dica.
Jim fechou a porta e observou seu ex-chefe. Mancava do mesmo jeito. Tinha a mesma voz. O mesmo rosto. Os óculos escuros não surpreendiam, considerando o estado dos olhos do cara.
– Eu ofereceria comida, mas tenho que esperar meu amigo voltar. Pode usar o sofá enquanto isso.
Matthias grunhiu quando sentou.
– Eu ainda fumo – ele disse, acenando para o maço em cima da mesa.
– Pensei que não se lembrava de nada.
– Certas coisas... eu acabo lembrando.
Jim foi até a pequena cozinha e parou em frente à pia. Por alguma razão, ele queria estar perto de Eddie.
– Então, vamos começar com exatamente o que você lembra.
– Eu sei que acordei na sua sepultura.
– A morte é relativa.
– Então, nós dois somos um milagre.
Jim levantou uma sobrancelha.
– Pelo menos um de nós é. Vamos ver quanto ao outro. Como me encontrou?
– Central de informações.
– O telefone daqui não está no meu nome.
– Mas você deu esse número no seu último emprego. Fui até a biblioteca, busquei o número na internet e achei você. Não é um esconderijo muito bom.
– Não estou me escondendo de ninguém.
– Então, por que você está morto, mas vivo?
– Vamos nos concentrar apenas em você, certo?
– Certo. Então, por que está com medo de mim? – quando Jim apertou o maxilar, Matthias sorriu do jeito que sempre fazia, mostrando todos os dentes brancos e afiados. – Aliás, isso não é uma lembrança. É a arma na sua mão. Estamos na sua casa, protegidos... se eu não fosse uma ameaça, você guardaria a arma.
Filho... da puta.
Mesmo com amnésia, o cara era um cretino.
Com essa deixa, Jim se aproximou, mantendo os olhos no Ray-Ban que o outro usava. Com a ponta da arma virada para Matthias, colocou a pistola na mesa e a empurrou para o outro lado.
– Fica com ela, se quiser.
– Você vai me dar uma arma?
– Claro, por que não? Pense nisso como um presente por sua volta pra casa.
– Estou em casa?
– Não neste lugar em particular... você não pode ficar aqui, e nunca esteve aqui. Nunca.
Matthias sorriu um pouco.
– Bom, não quero ficar na minha casa.
– E onde é isso exatamente?
O homem colocou a mão no bolso, tirou a carteira e jogou a carteira de motorista na mesa, sobre a arma.
Jim olhou a identificação. Era bem feita, com todos os hologramas no lugar certo. O sobrenome não estava correto, é claro, mas o primeiro nome e a foto estavam.
– O que você sabe sobre mim? – exigiu o homem.
– Bela foto – Jim disse ao recostar-se na parede.
– Não estou perguntando sobre meu futuro como modelo. Por que está evitando minhas perguntas?
– Estou tentando decidir como fazer esta jogada.
– Estamos em um jogo?
– Sim, estamos. E você não pode nem imaginar o que está em jogo – Jim decidiu sentar ao lado de seu hóspede. – Como eu disse antes, por que não começa contando o que você lembra?
Os óculos escuros baixaram, como se Matthias estivesse encarando o chão. Ou talvez suas botas, ou a bengala.
– Fui atropelado por um carro do lado de fora do Cemitério Pine Grove ontem à noite e acordei no hospital sem saber quem eu era ou onde estava. Hoje, tentei me lembrar refazendo meus passos, até que cheguei na sua sepultura – o Ray-Ban subiu de novo e ele olhou ao redor. – Eu reconheci seu nome no instante em que o vi. Reconheci você também, no exato momento em que saiu de trás da casa.
A expressão no rosto de Jim não mudou.
– Não é uma surpresa... nós dois temos muita história juntos. E é por isso que vou te ajudar.
– Então comece dizendo como isso tudo... – Matthias fez um gesto com a mão, mostrando todo o seu corpo – aconteceu.
– Os ferimentos?
– Não, minha roupa de balé. De que merda você acha que estou falando?
– Tire os óculos.
– Por quê?
– Quero olhar nos seus olhos quando responder.
A mão tremeu quando tirou os óculos, mas Jim apostava que era uma fraqueza física, e não mental. E ele estava certo.
– Como os ferimentos aconteceram? – seu ex-chefe repetiu, com uma voz grave.
– Você tentou se matar na minha frente. Plantou uma bomba na areia e pisou nela, bem na minha frente.
Matthias olhou para a própria perna e suas sobrancelhas se juntaram, como se o cérebro estivesse calculando dois mais dois.
– Por que eu fiz isso?
Como responder sem revelar demais?
– Você odiava o homem que era. Não podia mais continuar daquele jeito, e deu um jeito de não ter mais que fazer isso.
– Mas eu não morri.
– Não dessa vez – Jim levantou-se. – Meu amigo voltou.
Um segundo depois, o som de uma Harley invadiu o local através da janela, aumentando até parar totalmente.
– Você tem um bom ouvido – Matthias comentou.
Jim encarou o homem, pensando em como faria para trabalhar a situação em seu favor. Com um pequeno sorriso, murmurou:
– É o menor dos meus truques.
CONTINUA
CAPÍTULO 1
Sepultura.
Como na lápide e na terra recém-cavada, como em um corpo lá em baixo, como das cinzas às cinzas e do pó ao pó.
Matthias estava nu em uma sepultura. Em meio a um cemitério que se estendia até onde seus olhos podiam enxergar.
A primeira coisa que surgiu em sua mente foi a tatuagem que fizera seus homens usarem nas costas, com o desenho do Ceifeiro da Morte pairando sobre um campo de lápides e tumbas.
Que irônico – talvez estivesse prestes a ser cortado por uma foice a qualquer momento.
Tente repetir isso três vezes, bem rápido.
Piscou os olhos tentando clarear a vista, juntou os braços para se aquecer e esperou que o cenário voltasse à realidade. Quando nada mudou, ele se perguntou aonde teria ido aquele muro em que estivera preso para toda a eternidade.
Será que finalmente estava livre daquela tortura nojenta e superlotada?
Teria escapado do Inferno?
Soltando um grunhido, tentou se erguer, mas até levantar a cabeça estava difícil. Afinal, descobrir em primeira mão que aqueles lunáticos religiosos estavam certos sobre uma porção de coisas realmente faz você querer tirar um cochilo: de fato, os pecadores iam lá para baixo, e não para o Sul, e, uma vez lá, o sofrimento faz todas as coisas de que você reclamava em vida parecerem um passeio no Universal Studios.
O Demônio existia.
E sua sala de estar era uma merda.
Mas os religiosos não sabiam de toda a história. Acontece que Satã não possuía chifres ou uma calda. Também não havia nada de tridente e pés de bode. Bom, era mesmo metade bicho – se você considerar que o bicho em questão seja uma vaca. E usa muito vermelho. Afinal, morenas ficam bem com essa cor – ao menos, era isso que ela dizia a si mesma.
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Com seu olho esquerdo, que ainda funcionava, Matthias piscou novamente, preparando-se para retornar para a densa e ardente escuridão, com os gritos dos condenados ecoando em seus ouvidos e sua própria dor rasgando pela garganta e explodindo pelos lábios rachados...
Mas nada disso aconteceu. Ele ainda estava em uma sepultura. Ainda estava em um cemitério.
Completamente pelado.
Concentrando-se, enxergou, com seu único olho bom, uma paisagem cheia de túmulos de mármore branco, sepulturas de famílias marcadas com anjos e fantasmagóricas estátuas da Virgem Maria – embora as lápides simples fossem bem mais numerosas, como se os plebeus tivessem tomado conta do lugar. Pinheiros e carvalhos projetavam sombras através de gramados desalinhados e bancos de metal. As lâmpadas dos postes emitiam um brilho alaranjado, como velas num bolo de aniversário, e as passarelas estreitas poderiam até ser românticas se estivessem em outro lugar.
Mas ali, com certeza, não eram. Não naquele contexto de morte...
De repente, cenas de sua vida passaram por sua mente, fazendo-o se perguntar se estaria experimentando a morte pela segunda vez. Ou pela terceira, como seria o caso.
Não havia alegria nessa retrospectiva. Nada de esposa amorosa, nem filhos bonitos, nem uma casinha aconchegante. Apenas cadáveres, dezenas, centenas de cadáveres, todos mortos por ele próprio ou por ordem sua.
Matthias havia feito muito mal, o verdadeiro mal, durante sua vida.
Forçou-se a sentar na terra úmida. Seu corpo parecia um quebra-cabeça cujas peças não encaixavam direito: seus membros se uniam em juntas que pareciam folgadas em alguns lugares e apertadas em outros. Mas isso é o que acontece quando você se despedaça e tudo o que tem para se recompor são as habilidades limitadas de cura e medicina.
Ele direcionou seu olho para a lápide e franziu a testa.
James Heron.
Meu Deus, James Heron...
Ignorando o tremor de suas mãos, ele traçou as letras gravadas na pedra – a ponta de seus dedos percorreu o texto esculpido no granito cinzento.
Soltou um suspiro áspero, como se a dor repentina atrás de suas costelas tivesse forçado o ar para fora dos pulmões.
Matthias nunca soubera que realmente havia uma recompensa eterna após a morte, que suas ações eram de fato levadas em conta, que havia um julgamento ao final da última batida de seu coração. Mas a dor não era por causa disso. Era porque sabia que, mesmo se tivesse conhecimento do que o esperava, ele não seria capaz de fazer nada diferente.
– Sinto muito – falou, se perguntando para quem realmente dizia aquilo. – Porra, sinto muito mesmo...
Nenhuma resposta.
Olhou para o céu.
– Sinto muito.
De novo, nada de resposta, mas tudo bem. De qualquer forma, os arrependimentos estavam se acumulando em sua mente e não havia muito espaço para contribuições de terceiros.
Enquanto se esforçava para levantar, seu tronco tombou e precisou se apoiar na lápide para retomar o equilíbrio. Deus, ele estava acabado. Suas coxas estavam cobertas de cicatrizes, sua barriga cheia de lesões, uma panturrilha quase despida de carne. Os médicos realizaram um verdadeiro milagre com seus parafusos e hastes, mas, comparado com o jeito como nascera, Matthias parecia um brinquedo quebrado remendado com fita adesiva e supercola.
E o suicídio deveria ter funcionado. Mas Jim Heron foi a razão de ele ter sobrevivido por outros dois anos. Até que a morte o encontrou e o levou, provando que a Terra apenas pegava as almas emprestado – o outro lado é que realmente as possuía.
Por força do hábito, olhou ao redor procurando sua bengala, mas então se concentrou naquilo que seria mais provável encontrar: sombras que o perseguiam, fossem aquelas criaturas ardilosas do Inferno ou meros humanos.
De um jeito ou de outro, ele estava ferrado: como ex-chefe da organização secreta que eles chamavam de Operações Extraoficiais, Matthias tinha mais inimigos do que um ditador do Terceiro Mundo, e todos eles possuíam armas e podiam contratar quem as tivesse. E, como fugitivo do parquinho do diabo, nem era preciso mencionar que ele não escapara de graça da prisão.
Mais cedo ou mais tarde, alguém viria atrás dele. E, apesar de Matthias não possuir nada pelo que valesse a pena viver, seu ego era razão suficiente para lutar e se defender.
Ou pelo menos fazer de si um alvo menos fácil.
Começou a caminhar mancando e continuou com a graça de um espantalho – seu corpo sacudia com espasmos que culminavam numa marcha que doía como o diabo. Para conservar o calor, tentou abraçar a si mesmo, mas isso não durou muito. Precisava usar os braços para manter o equilíbrio.
Com movimentos de zumbi e a cabeça completamente confusa, ele continuou a caminhada, atravessando a grama desalinhada, passando pelas lápides, sentindo o toque da fria brisa que cortava sua pele. Não tinha a menor ideia de como conseguira escapar. Não sabia para onde iria. Que dia, mês, ano seria.
Roupas. Abrigo. Comida. Armas.
Assim que tivesse assegurado o básico, ele se preocuparia com o resto. Isso se não fosse abatido antes – afinal, um predador ferido se torna uma presa rapidamente. É a lei da selva.
Pensou ter encontrado mais uma sepultura ao se aproximar de uma construção de pedra com ornamentos de ferro fundido. Mas o nome “Cemitério Pine Grove” gravado no topo da fachada e a grande fechadura na porta frontal sugeriam que era uma instalação dos funcionários.
Felizmente, alguém deixara aberta uma fresta da janela dos fundos.
Mas é claro, a janela estava emperrada naquela posição.
Ele pegou um galho caído, o colocou na fresta e forçou até a madeira curvar.
A janela começou a ceder, soltando um chiado agudo.
Matthias congelou.
Pânico, uma sensação pouco familiar, que foi aprendida da maneira difícil, o fez girar e procurar as sombras. Conhecia aquele som. Era o barulho que os lacaios do demônio faziam quando estavam atrás de você...
Nada.
Apenas túmulos e postes de luz que, não importa o quanto sua adrenalina sugerisse o contrário, não se transformavam em nada.
Praguejando, ele voltou ao trabalho. Usou o galho como alavanca até abrir espaço suficiente para poder se espremer e passar. Erguer o corpo foi um sacrifício, mas, assim que seus ombros passaram, ele deixou a gravidade cuidar do resto. O chão de concreto no qual aterrissou parecia uma grade de ferro, e ele precisou de um tempo enquanto seu fôlego escapava da garganta, seu estômago embrulhava e dores surgiam em mais lugares do que ele conseguia contar.
No teto, luzes fluorescentes piscaram e depois acenderam de vez, cegando-o.
Malditos sensores de movimento. O lado bom era que, assim que seus olhos se ajustaram, ele teve uma clara visão de todo tipo de ferramenta de jardinagem. O lado ruim? Ele era um diamante em uma vitrine, pronto para ser capturado.
Pendurados em ganchos na parede, como se fossem peles de animais mortos, havia vários conjuntos de macacões impermeáveis, esperando para serem usados. Ele prontamente vestiu uma parte de baixo e uma parte de cima. Essas roupas foram feitas para ficar folgadas, mas em seu corpo pareciam grandes velas de um barco.
Melhor assim. Melhor com as roupas, mesmo elas cheirando a fertilizante, e mesmo com o atrito, que logo se tornaria um problema. Havia um boné do Boston Red Sox em um dos cantos, e Matthias o vestiu para ajudar a conservar o calor do corpo; então olhou ao redor procurando qualquer coisa que pudesse servir como bengala. As pás eram muito pesadas para ser eficientes, e os rastelos também não ajudariam.
Dane-se. Sua missão imediata era se afastar das luzes que banhavam o show de horrores do seu corpo.
Saiu da mesma maneira que entrou, forçando-se através da janela e aterrissando duramente no chão. Não tinha tempo para reclamar do impacto desta vez; precisava continuar se movendo.
Antes de morrer e ir para o Inferno, Matthias sempre fora o perseguidor. Caramba, durante sua vida inteira ele fora o caçador, aquele que espreitava, encurralava e destruía. Mas agora, retornando à escuridão daquelas sepulturas, todas as intangibilidades da noite eram perigosas até que se provasse o contrário.
Esperava que estivesse de volta em Caldwell.
Se estivesse, tudo o que precisava fazer era manter-se discreto e seguir para Nova York, onde possuía um abrigo com mantimentos.
Sim, rezava para que fosse Caldwell. Quarenta e cinco minutos ao sul pela estrada era tudo o que precisaria. Já acabara de arrombar e invadir um lugar; fazer uma ligação direta em um carro velho era outra habilidade que poderia ressuscitar.
Uma vida depois, ou pelo menos o que pareceu ser uma vida depois, ele chegou até o portão de ferro que cercava todo o terreno daqueles que descansam em paz. A coisa tinha uns três metros de altura, e as grades tinham pontas que poderiam ter sido facas em outra encarnação.
Encarando as barras que o mantinham do lado dos mortos, Matthias as agarrou e sentiu o frio do metal agarrá-lo de volta. Olhando para cima, concentrou-se no céu. As estrelas realmente cintilavam.
Engraçado, ele sempre pensou que isso fosse apenas um modo de dizer.
Respirando fundo, puxou ar puro e limpo para os pulmões e percebeu que tinha se acostumado com o fedor do Inferno. No começo, aquilo era o que mais detestava, aquele cheiro nauseante de ovo podre impregnado nas vias aéreas e que invadia a garganta e viajava até envenenar suas entranhas: mais do que um cheiro ruim, era uma infecção que entrava pelo nariz e conquistava todos os territórios que tocasse.
Mas ele se habituara.
Com o tempo, e em meio ao sofrimento, ele se acostumara ao horror, ao desespero, à dor.
Seu olho ruim, o que não conseguia usar, encheu-se de lágrimas.
Nunca conseguiria alcançar aquelas estrelas.
E essa pausa no sofrimento servia apenas para aumentar a tortura. Afinal, não existe nada como um período de alívio para revitalizar um pesadelo. Quando você retorna para a merda, o contraste aumenta tudo, eliminando a aclimatação e fazendo voltar o choque inicial.
Eles voltariam a persegui-lo. Afinal, era exatamente isso que ele merecia.
Mas, seja lá quanto tempo tivesse, lutaria contra o inevitável – não com a esperança de se livrar do Inferno, não pela possibilidade de um adiamento, mas simplesmente porque essa era uma função automática, que fazia parte do seu ser.
Matthias lutava pela mesma razão que cometera o mal.
Aquilo era simplesmente o que ele fazia.
Impulsionando a si mesmo para longe do chão, colocou contra as barras o pé que funcionava melhor e jogou seu peso para cima. Fez isso novamente. E de novo. O topo parecia estar a quilômetros de distância, o que apenas o fez concentrar-se mais em seu objetivo.
Uma eternidade depois, sua palma agarrou uma das pontas e seu braço enlaçou a perigosa lâmina.
Sangue escorreu rapidamente quando Matthias jogou a perna por cima do portão e uma das pontas cortou um pedaço de sua coxa.
Mas não havia motivo para voltar. Havia se comprometido, e de um jeito ou de outro a gravidade venceria e o puxaria para a terra – então era melhor que isso acontecesse lá fora do que dentro do cemitério.
Quando começou a cair, seus olhos focaram as estrelas. Ele chegou até a estender uma das mãos naquela direção.
O fato de que elas estavam cada vez mais distantes parecia apropriado.
CAPÍTULO 2
Mels Carmichael estava sozinha na redação. De novo.
Às nove da noite, o labirinto de cubículos do Correio de Caldwell estava povoado apenas por material de escritório, nada de pessoas – do ponto de vista do pessoal da redação, a edição do dia seguinte já zarpara para o mar: as prensas trabalhavam a todo vapor do outro lado do prédio.
Quando Mels se recostou na cadeira, as molas soltaram um chiado, e ela transformou aquele som em um instrumento, tocando uma musiquinha feliz que compusera após muitas noites iguais àquela. O título era “Rapidamente chegando a lugar nenhum”, e ela fazia um acompanhamento assoviando a parte do soprano.
– Ainda está aqui, Carmichael?
Mels se recompôs e cruzou os braços.
– Oi, Dick.
Seu chefe se esgueirou no pouco espaço que havia ali, com o sobretudo dobrado no braço e a gravata folgada ao redor do pescoço. Ele acabara de voltar da saideira no bar Charlie’s, onde os homens do jornal costumavam assistir esportes após o expediente.
– Trabalhando até tarde de novo? – Seus olhos percorreram os botões da blusa dela, como se esperasse que o uísque que tomou tivesse lhe dado poderes telecinéticos. – Tenho que dizer, você é bonita demais pra fazer isso. Você não tem namorado?
– Você me conhece, o trabalho é sempre mais importante.
– Bem... eu poderia dar algo para você trabalhar.
Mels imediatamente o encarou com firmeza:
– Obrigada, mas estou ocupada. Estou pesquisando sobre assédio sexual em mercados que antes eram dominados por homens, como companhias aéreas, esportes... jornalismo...
Dick franziu a testa como se não tivesse escutado o que esperava. O que era uma loucura. A reposta dela era a mesma desde o primeiro dia.
Mais de dois anos dando um fora nele. Deus, já tinha passado tanto tempo?
– É esclarecedor – ela esticou o braço e tocou o mouse, desativando a proteção de tela. – Muitas estatísticas. Poderia ser minha primeira reportagem de âmbito nacional. Igualdade de sexos na América pós-feminismo é um assunto quente hoje em dia... é claro, eu poderia apenas colocar no meu blog. Talvez você pudesse me dar uma declaração.
Dick arrumou o sobretudo em seu braço.
– Eu não te passei essa pauta.
– Sou uma pessoa de iniciativa.
Ele levantou a cabeça como se estivesse procurando outra pessoa para importunar.
– Só leio aquilo que eu mandei escrever.
– Você pode achar útil.
O cara tentou afrouxar a gravata e... surpresa! Já estava aberta.
– Está perdendo seu tempo, Carmichael. Vejo você amanhã.
Enquanto saía, vestiu aquele sobretudo estilo Walter Cronkite com lapelas dos anos 1970 e o cinto que ficava pendurado, fazendo parecer que parte das suas entranhas não estava onde deveria. Ele provavelmente tinha aquele casaco desde os tempos de Watergate, quando Woodward e Bernstein provavelmente o inspiraram a seguir seu próprio sonho jornalístico... que terminou no topo do expediente de um jornal de cidade pequena.
Nada mal para um emprego. Mas também não era nenhum chefe de redação do The New York Times, ou do The Wall Street Journal.
Isso parecia incomodá-lo.
Então, pois é, não era necessário ser um gênio para atribuir suas inadequações ao tédio de um ex-timoneiro calvo, amargurado por ter passado sessenta anos na intersecção entre o quase-lá e o meu-tempo-está-acabando.
Por outro lado, talvez ele fosse apenas um cretino mesmo.
O que estava claro na mente dela era que um cara mais parecido com uma rã do que com Jon Hamm não tinha nenhuma razão objetiva para acreditar que a resposta para os problemas de qualquer mulher estava dentro da calça dele.
Quando as portas duplas se fecharam, Mels respirou fundo e ficou imaginando um ônibus passando por cima daquele sobretudo anacrônico e deixando as marcas dos pneus. Mas, graças ao corte nos orçamentos, a linha de ônibus da rua Trade não passava mais depois das nove da noite e agora eram... sim, o horário já tinha acabado dezessete minutos atrás.
Ela encarou a tela do computador, sabendo que deveria ir para casa.
Seu artigo de iniciativa própria não era exatamente sobre chefes de olhar malicioso que fazem suas funcionárias pensarem que o transporte público seria uma ótima maneira de assassinar alguém. O artigo era sobre pessoas desaparecidas. As centenas de pessoas desaparecidas da cidade de Caldwell.
Caldie, como a cidade era conhecida, lar das pontes gêmeas, era também a líder nacional em desaparecimentos. Durante os últimos anos, a cidade de dois milhões de habitantes tivera o triplo de desaparecimentos de Manhattan (contando todos os seus cinco municípios) e Chicago – juntas. E o total da última década ultrapassara os números de toda a costa Leste. O que tornava tudo ainda mais estranho é que a questão não era só os números em si: acontece que as pessoas não estavam desaparecendo apenas temporariamente. Elas nunca voltavam e nunca eram encontradas. Nada de corpos, nada de vestígios e nada de relocação para outras jurisdições.
Era como se fossem sugadas para outro mundo.
Depois de toda sua pesquisa, Mels sentia que o horrível massacre em uma fazenda no mês anterior tinha algo a ver com a abundância de desaparecimentos...
Todos aqueles jovens estraçalhados.
As informações preliminares sugeriam que muitos daqueles que foram identificados já haviam sido declarados desaparecidos em algum ponto de suas vidas. Muitos deles eram casos de delinquência juvenil ou tinham antecedentes com drogas. Mas nada daquilo importava para as famílias – e nem deveria.
Não é preciso ser um santo para ser uma vítima.
A horripilante cena da zona rural de Caldwell foi notícia em âmbito nacional, com todos os canais enviando seus melhores repórteres, desde Brian Willians até Anderson Cooper. Os jornais também estavam presentes. Mas, mesmo com toda a atenção, a pressão dos políticos e o clamor por justiça de comunidades abaladas (e com razão), a verdadeira história ainda estava para surgir: a polícia de Caldwell tentava ligar as mortes a uma pessoa, qualquer pessoa, mas não conseguiu nada – mesmo trabalhando no caso dia e noite.
Mas tinha de haver uma resposta. Sempre há uma resposta.
E Mels estava determinada a descobri-la – pelo bem das vítimas e de suas famílias.
Além disso, esse era o momento para ela se destacar. Chegara a Caldwell aos 27 anos, depois de pedir transferência de Manhattan porque viver em Nova York estava muito caro e ela não estava chegando a lugar algum no New York Post. Seu plano era se mudar por seis meses, juntar algumas economias morando com sua mãe e depois se concentrar nos peixes grandes: The New York Times, The Wall Street Journal, talvez até um emprego de correspondente na CNN.
Mas não foi exatamente como as coisas aconteceram.
Voltando a focar na tela do computador, ela vasculhou as colunas que conhecia de cor, buscando padrões que ainda não tinha enxergado... pronta para encontrar a chave que abriria a porta não apenas da história, mas também de sua vida.
O tempo estava passando depressa, e Deus sabe que ela não era imortal...
Quando Mels deixou a redação, por volta das nove e meia, aquelas linhas de informação continuavam surgindo em sua mente sempre que piscava, como se fosse um videogame que ela tivesse jogado por muito tempo.
Seu carro, que batizara de Josephine, era um Honda Civic de doze anos com quase 125 mil quilômetros rodados – e a Fifi estava acostumada a esperar por ela no frio da noite. Mels deu partida naquele velho motor de máquina de costura e foi embora, deixando para trás seu emprego meia boca. E foi para a casa de sua mãe. Aos trinta anos de idade.
Que bela profissional. E pensava que iria acordar magicamente na manhã seguinte como uma Diane Sawyer sem o spray de cabelo?
Seguindo pela rua Trade para fora do centro da cidade, deixou os prédios de escritório para trás, passou pelas boates e ruas abandonadas do lado sujo do município. Ao final de todos aqueles prédios com janelas lacradas, as coisas melhoraram quando entrou nos arredores de uma vizinhança residencial, com casas bonitas e ruas com nomes de árvores...
– Meeeerda!
Virando o volante com força para a direita, tentou evitar o homem que apareceu no meio da rua, mas era tarde demais. Ela o acertou em cheio, erguendo-o com o para-choque até ele voar em seu para-brisa, cujo vidro laminado estilhaçou-se com um lampejo brilhante.
E aquele foi apenas o primeiro de três impactos.
O corpo do homem simplesmente voou pelos ares, e Mels teve a terrível visão dele atingindo o pavimento com força. E então ela teve seus próprios problemas. O impacto desviou o carro, que atingiu o meio-fio. Os freios diminuíram o impulso, mas não rápido o suficiente – e então se tornaram inúteis quando o carro também saiu do chão.
O carvalho que os faróis iluminaram fez seu cérebro realizar um raciocínio rápido: ela ia atingir a maldita coisa, e isso ia doer muito.
A colisão fez um barulho seco, um estampido ao qual ela não prestou muita atenção – estava ocupada recebendo o air bag em seu rosto, e a falta do cinto de segurança veio com tudo para morder seu traseiro. Ou a virilha, nesse caso.
Mels foi jogada para a frente e ricocheteou para trás, e um pó vindo do air bag invadiu seu olhos, nariz e pulmões, causando irritação e fazendo-a engasgar. Então tudo ficou silencioso.
No final, tudo o que podia fazer, assim como a pobre Fifi, era ficar onde estava. Debruçada sobre o air bag vazio, ela tossiu um pouco...
Alguém estava assoviando.
Não, era o motor que soltava vapor de algo que deveria estar selado.
Ela virou a cabeça com cuidado e olhou para fora através da janela do motorista. O homem estava caído no meio da rua, totalmente parado, parado demais.
– Oh... meu Deus...
O rádio do carro ganhou vida, arranhando a princípio, depois se recuperando com um curto circuito. Uma música... qual era?
Do nada, uma luz surgiu no meio da estrada, iluminando a pilha de trapos que ela sabia ser uma pessoa. Piscando, imaginou se aquele seria o momento em que descobriria as respostas sobre a vida após a morte.
Não era exatamente o furo jornalístico que ela esperava, mas aceitaria mesmo assim...
Porém, não era nenhum tipo de chegada celeste. Eram apenas faróis.
Um sedan derrapou até parar e duas pessoas saíram do carro. O homem correu para a vítima, a mulher correu até ela. A boa samaritana de Mels teve que se esforçar para abrir a porta, mas, depois de alguns puxões, ar fresco substituiu o cheiro ruim de plástico do air bag.
– Você está bem?
A mulher tinha cerca de quarenta anos e parecia rica, seu cabelo estava arrumado para cima, os brincos dourados brilhavam, suas roupas finas e elegantes não combinavam com aquele cenário de acidente.
Ela pegou um iPhone.
– Chamei a emergência; não, não se mova. Você pode ter uma lesão no pescoço.
Mels se rendeu à súbita pressão em seu ombro, mantendo-se junto ao volante.
– Ele está bem? Eu não enxerguei... apareceu do nada.
Pelo menos, foi isso que ela tentou dizer. Seus ouvidos captaram apenas murmúrios que não faziam sentido algum.
Dane-se a lesão no pescoço; estava preocupada com seu cérebro.
– Meu marido é médico – disse a mulher. – Ele sabe o que fazer com o homem. Só se preocupe com você mesma...
– Não o vi. Não o vi – ah, bom, isso soou mais inteligível. – Voltando do trabalho. Eu não...
– É claro que não. A mulher se ajoelhou. Realmente, ela parecia a esposa de um médico – e cheirava a perfume caro.
– Apenas fique parada, a ambulância está chegando...
– Ele está vivo, pelo menos? – Lágrimas surgiram nos olhos de Mels, substituindo uma irritação por outra. – Oh, meu Deus, eu matei ele?
Quando começou a tremer, ela lembrou qual era aquela canção... Blinded by the light, pensou.
– Porque meu rádio ainda está funcionando? – ela murmurou entre as lágrimas.
– Como é? – disse a mulher. – Que rádio?
– Você não está escutando?
O que se seguiu foi um gentil e alarmante toque em seu ombro.
– Apenas respire fundo e fique comigo.
– Meu rádio está tocando...
CAPÍTULO 3
– Está calor aqui? Quero dizer, você acha que está calor aqui?
O demônio cruzava e descruzava suas longas pernas à la Gisele Bündchen enquanto puxava o decote de seu vestido.
– Não, Devina, não acho – a terapeuta do outro lado da sala era exatamente como o sofá em que estava sentada: fofa e reconfortante. Até seu rosto era como um travesseiro de algodão, com as linhas de expressão parecendo bordadas em tecido macio. – Mas posso abrir uma janela se você quiser.
Devina recusou balançando a cabeça e enfiou a mão dentro de sua bolsa Prada. Além da carteira, chiclete de menta, uma garrafa de Smartwater e uma barra de chocolate Green & Black’s Organic Dark, havia vários batons YSL Rouge pur Couture. Pelo menos... deveria haver.
Enquanto ela procurava, tentou parecer casual, como se estivesse checando se não perdeu as chaves.
Na verdade, ela estava contando para se certificar de que ainda tinha treze tubos do batom: começando pelo da esquerda no fundo da bolsa, foi movendo para a direita. Treze era o número correto. Um, dois, três...
– Devina?
... quatro, cinco, seis...
– Devina.
Quando perdeu a conta, ela fechou os olhos e lutou contra a tentação de estrangular quem fizera a interrupção...
Sua terapeuta limpou a garganta. Tossiu. E depois engasgou.
Devina abriu os olhos e encontrou a mulher com as mãos no pescoço, parecendo que tinha engolido um McLanche Feliz da maneira errada. Foi bom ver a dor e a confusão, um pequeno show que fez Devina apertar os dedos dos pés, pedindo por mais.
Mas a diversão não podia ir mais longe. Se perdesse essa terapeuta, o que seria dela? Estavam fazendo progresso, e encontrar outra pessoa com quem sentisse uma conexão poderia tomar um tempo que ela não tinha.
Praguejando, o demônio chamou de volta seus cães mentais, aliviando a esganadura invisível que lançara sem perceber.
A terapeuta respirou fundo e olhou ao redor, aliviada.
– Eu... ah... acho que vou abrir a janela.
A mulher se levantou, alheia ao fato de que suas habilidades como psicóloga haviam acabado de salvar sua vida. As duas se encontravam cinco vezes por semana nos últimos dois meses, conversando por cinquenta minutos ao custo de 75 dólares por sessão. Graças a toda aquela baboseira emotiva, os sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo de Devina estavam ficando um pouco mais fáceis de aguentar. E, considerando como as coisas estavam caminhando na guerra contra aquele anjo Jim Heron, a terapia seria muito necessária na próxima rodada.
Devina não podia acreditar que estava perdendo.
Na batalha derradeira pela supremacia na Terra, aquele anjo vencera duas vezes. Havia apenas mais quatro almas na disputa. E se ela perdesse mais duas? Não sobraria nada dela ou de sua coleção: tudo desapareceria, aqueles objetos preciosos que juntara durante os milênios, cada qual uma valiosa lembrança de seu trabalho, estariam perdidos, perdidos, perdidos. E isso não era a pior parte. Suas crianças, aquelas gloriosas almas torturadas e presas em seu muro, seriam incorporadas pelo bem, pelos beatos, pelos imaculados.
Esse mero pensamento a deixava enjoada.
E, ainda por cima, ela tinha acabado de ser penalizada pelo Criador.
A terapeuta voltou a se ajeitar nas almofadas depois de sua busca por ar fresco.
– Então, Devina, conte o que está em sua mente.
– Eu... ah... – quando a ansiedade subiu, ela levantou a bolsa, procurando algum furo; não encontrou nenhum. – Tem sido difícil...
Nenhum dos batons poderia ter caído, ela disse a si mesma. E havia checado o número antes de sair de seu covil. Treze, um perfeito treze. Então, logicamente, estavam todos lá. Tinham de estar.
Mas... oh, Deus, talvez ela tivesse segurado a bolsa de lado e deitado um deles cair por não ter fechado o zíper...
– Devina – disse a terapeuta –, você parece muito nervosa. Pode me dizer o que está acontecendo, por favor?
Fale, disse a si mesma. Era a única maneira para escapar disso. Mesmo que contar, arrumar, checar e recontar parecessem a solução, ela gastaria milênios fazendo isso sem chegar a lugar algum. E esse novo jeito estava funcionando. Mais ou menos.
– Aquele novo colega de trabalho de que eu te falei... – ela abraçou a bolsa, segurando tudo com o corpo que assumia quando andava entre os macacos. – Ele é um mentiroso. Um completo mentiroso. Ele me enganou... e eu fui acusada de jogar sujo.
Desde que começara a terapia, ela vinha explicando a guerra contra o anjo Jim Heron em termos que um humano do começo do século XXI pudesse entender: ela e seu inimigo eram colegas em uma empresa de consultoria, e competiam pela vice-presidência. Cada alma que disputavam era um cliente. O Criador era o CEO, e os dois tinham um número limitado de tentativas para impressioná-lo. Blá, blá, blá. A metáfora não era perfeita, mas era melhor do que se revelar completamente e correr o risco de sua terapeuta perder a cabeça, ou pensar que Devina não era apenas compulsiva, mas digna de um manicômio.
– Pode ser mais específica?
– O CEO enviou nós dois para um cliente em potencial. No final, o homem nos contratou e queria trabalhar comigo. Tudo estava bem. Eu estava contente, o cliente estava... – bem, não contente. Matthias não estava nem um pouco contente, o que era mais uma razão para ela ficar satisfeita com a vitória: quanto mais sofrimento, melhor. – Estávamos cuidando do cliente, e tudo estava combinado, o contrato estava assinado, o assunto encerrado. Então fui chamada para uma reunião idiota e me disseram que teríamos que disputar o cliente de novo.
– Você e seu colega de trabalho, certo?
– Isso! – ela jogou as mãos para cima. – Quer dizer, qual é? Estava feito. Estava tudo combinado. A disputa tinha terminado. E agora temos que refazer tudo? Que merda é essa? E daí o CEO disse pra mim: “Bom, você ainda pode ficar com a comissão pelo contrato.” Como se isso compensasse tudo!
– Melhor do que perder tudo.
Devina balançou a cabeça. A mulher simplesmente não entendia. Uma vez que ela se apoderava de algo, se deixasse isso escapar, ou se alguém a roubasse, era como se uma parte de seu verdadeiro corpo fosse removida: Matthias fora arrancado de seus muros e colocado novamente na Terra.
Francamente, o poder do Criador era a única coisa capaz de assustá-la.
Além de suas próprias compulsões.
Não conseguiu controlar a ansiedade: abriu a bolsa novamente e recomeçou a contar...
– Devina, você trabalhou bem com o cliente, certo?
Ela fez uma pausa.
– Sim.
– E você possui um bom relacionamento com ele ou ela?
– Ele. Sim.
– Então você está numa posição mais vantajosa do que seu colega de trabalho, não é?
A terapeuta fez um gesto com as mãos, como se dissesse “então, qual o problema?”.
– Não tinha pensado assim – estivera irritada demais para isso.
– Você deveria. Mas, eu devo dizer, tem uma coisa que está me confundindo. Por que o CEO sentiu a necessidade de intervir? Especialmente se o cliente não apenas assinou um contrato, como também parecia satisfeito?
– Ele não aprovou algum dos... métodos... usados para assegurar o negócio.
– Métodos seus?
Quando Devina hesitou, os olhos da terapeuta rapidamente focaram o decote que a paciente usava.
– Sim, meus – disse o demônio. – Mas, qual é, eu consegui o cliente e ninguém pode criticar minha ética no trabalho: estou trabalhando o tempo todo. Literalmente. Não tenho vida que não seja meu trabalho.
– Você aprova as táticas que usou?
– É claro. Consegui o cliente, isso é tudo que importa.
O silêncio que se seguiu sugeria que a terapeuta não aprovava essa coisa de “fins justificando os meios”. Mas que se dane, isso era problema dela – e era provavelmente a razão de ela parecer um travesseiro e passar os dias escutando os problemas dos outros.
Em vez de governar o mundo inferior e ficar uma gostosa usando sapatos Louboutins...
Quando a ansiedade apertou de novo, Devina começou outra recontagem, jogando os batons um atrás do outro, da esquerda para a direita. Um, dois, três...
– Devina, o que você está fazendo?
Por uma fração de segundo, ela quase atacou de verdade. Mas a razão e um chamado para a realidade prevaleceram: as compulsões estavam quase dominando-a completamente. E não se pode ser efetivo contra um inimigo como Jim Heron quando se está presa em uma eterna ansiedade causada por objetos que se sabem perfeitamente bem que não foram perdidos, movidos ou tocados por nenhuma outra pessoa.
– Batom. Estou apenas me certificando de que trouxe meus batons.
– Certo. Bom, quero que você pare com isso.
Devina levantou o olhar com verdadeiro desespero.
– Eu... não consigo.
– Sim, você consegue. Lembre-se, o problema não são os objetos. Você deve lidar com seus medos de maneira mais efetiva e permanente do que simplesmente cedendo às compulsões. Você sabe, o alívio que consegue no final de um ritual nunca, nunca dura mais que uma fração de segundo; e nunca ataca a raiz do problema. O fato é que, quanto mais obedece às compulsões, mais fortemente elas controlam você. A única maneira de melhorar é aprender a suportar a ansiedade e repensar os impulsos como algo que você pode controlar; e não o contrário – a terapeuta se inclinou para frente, com uma seriedade de quem vai dizer algo cruel, mas para o seu bem. – Quero que você jogue um deles fora.
– O quê?
– Jogue um dos batons fora – a terapeuta se esticou para o lado e pegou um cesto de lixo cor-de-rosa. – Agora mesmo.
– Não! Deus, você está louca? – O pânico se espalhou pelo seu corpo. As palmas das mãos começaram a suar, seus ouvidos zumbiram, seus pés adormeceram. Logo, a onda se propagou: seu estômago embrulhou, o fôlego foi se perdendo, o coração batia mais rápido. Tudo isso pareceu durar uma eternidade. – Eu nunca vou conseguir...
– Você consegue e, além do mais, você precisa. Escolha a cor de que menos gosta e coloque no cesto.
– Não tenho uma cor de que eu não gosto, todos são da mesma cor: 1 Le Rouge.
– Então qualquer um vai servir.
– Não consigo... – lágrimas ameaçavam cair. – Não consigo...
– Pequenos passos, Devina. Essa é a chave da terapia cognitiva comportamental. Temos que tirar você da zona de conforto, te expor ao medo, e então te conduzir a superar o obstáculo para que aprenda que pode chegar inteira do outro lado. Faça isso muitas vezes e o transtorno vai começar a perder o controle sobre seus pensamentos e suas decisões. Por exemplo, o que acha que vai acontecer se jogar um deles fora?
– Terei um ataque de pânico. Principalmente quando chegar em casa e o batom não estiver comigo.
– E depois?
– Vou comprar outro para substituir, mas não vai ser o mesmo que joguei fora, então não vai adiantar nada. Vou só ficar mais compulsiva...
– Mas você não vai morrer.
É claro que não, ela era imortal. Contanto que ganhasse a guerra, obviamente.
– Não, mas...
– E o mundo não vai acabar.
Bem, não por causa do batom.
– Mas vai parecer que sim.
– Emoções vêm e vão. Não duram para sempre – a mulher balançou o cesto. – Vamos lá, Devina, vamos tentar. Se você achar que é muita coisa para aguentar, pode pegar o batom de volta. Mas precisamos começar a nos concentrar nisso.
Como previsto, um ataque de ansiedade começou a surgir, mas, ironicamente, foi o medo que a fez prosseguir: medo de ser dominada por esse problema que não conseguia controlar, medo de que Jim vencesse não porque era o melhor no jogo do Criador, mas porque ela não suportava a pressão; medo de nunca conseguir mudar...
Devina enfiou a mão na bolsa e agarrou o primeiro batom que encontrou. Então jogou fora. Apenas o deixou cair no cesto de lixo.
O som macio que o objeto fez ao acertar os lenços de papel dos pacientes anteriores pareceu o portão do Inferno se fechando atrás dela.
– Bom trabalho – disse a terapeuta, como se Devina fosse uma garotinha de cinco anos que tinha recitado o alfabeto. – Como se sente?
– Como se fosse vomitar – olhando para o cesto, a única coisa que a impediu de vomitar foi o fato de que faria isso em cima do batom.
– Você pode classificar sua ansiedade numa escala de um a dez?
Quando Devina disse “dez”, a terapeuta começou um discurso sobre respirar durante o pânico, blá, blá, blá...
A mulher se inclinou para frente de novo, como se soubesse que não estava sendo ouvida.
– O importante não é o batom, Devina. E a ansiedade que você sente agora não vai durar para sempre. Não vamos exigir demais de você, e vai ficar impressionada com os avanços. A mente humana pode ser reprogramada, podemos criar novos caminhos de experiência. A terapia de exposição funciona: é tão poderosa quanto as compulsões. Você precisa acreditar nisso, Devina.
Com a mão trêmula, o demônio limpou o suor da testa. Então, recompondo-se dentro de seu traje de carne humana, ela assentiu.
A mulher que parecia um travesseiro estava certa. O que Devina vinha fazendo até então não estava funcionando. As coisas estavam piorando, e os riscos só aumentavam.
Afinal, ela não apenas estava perdendo... também estava apaixonada pelo inimigo.
Não que gostasse de se lembrar disso.
– Você não precisa acreditar que isso vai funcionar, Devina. Apenas tem que acreditar nos resultados. É difícil, mas você consegue. Tenho fé em você.
Devina observou os olhos da humana e invejou a convicção da terapeuta. Inferno, uma pessoa com aquele tipo de confiança devia estar delirante... ou se apoiando em muita experiência e treinamento.
Houve um tempo em que Devina também tinha essa confiança em si mesma.
E precisava ter isso de volta.
Jim Heron provara ser muito mais do que um oponente digno e uma boa transa. E ela não podia deixá-lo manter a vantagem. Perder não era uma opção. Assim que a sessão de terapia terminasse, ela precisava voltar ao trabalho com a mente limpa e livre de qualquer besteira.
Devina fechou os olhos e se ajeitou na poltrona, apoiando as mãos nos braços estofados e enterrando as unhas no tecido aveludado.
– Como está se sentindo? – perguntou a terapeuta.
– Como se fosse superar isso de um jeito ou de outro.
CAPÍTULO 4
– Apenas me diga se ele está vivo ou não.
A enfermeira ao lado da cama simplesmente ignorou o pedido de Mels. Oferecendo uma caneta, a mulher disse:
– Se você assinar esses papéis eu passarei as receitas...
Danem-se os papéis.
– Preciso saber se o homem sobreviveu.
– Por lei, eu não posso divulgar a condição de nenhum paciente. Assine aqui para eu poder te liberar.
Leia-se: Não encha minha paciência e me deixe voltar a trabalhar.
Praguejando baixinho, Mels assinou no local indicado e guardou as duas folhas de papel e a cópia, enquanto a enfermeira partia para aterrorizar o próximo paciente.
Que noite! A boa notícia era que a polícia estava pelo menos chamando aquilo de acidente, reconhecendo que ela não tinha sido negligente ou bebido. Mas ainda havia problemas...
Observando seus papéis de alta, ela passou a vista nas notas. Concussão leve. Distensão no pescoço. Retorno com seu médico de preferência em uma semana ou mais cedo no caso de visão dupla, náusea, tontura ou piora da dor de cabeça.
O carro provavelmente sofrera perda total.
E não havia como o homem ter sobrevivido.
Com um grunhido, ela sentou, encostando-se nos travesseiros, e sua cabeça enfaixada registrou o movimento como se fosse o giro de uma bailarina. Enquanto esperava a tontura passar, ela observou suas roupas penduradas em uma cadeira de plástico laranja à sua frente. Ela pudera manter o sutiã e a calça durante os exames. A camisa, a jaqueta e o casaco estavam apenas esperando para ser vestidos de novo.
Mels não ligou para sua mãe.
A família já passara por um acidente automobilístico – e, naquele caso, a pessoa que não tinha sobrevivido era seu pai.
Então, pois é, apenas mandou uma mensagem de texto dizendo que sairia com os amigos e chegaria em casa mais tarde. A última coisa de que precisava era deixar sua mãe nervosa e insistindo em ir buscá-la no hospital, especialmente levando em consideração o que ela queria fazer agora.
Mels começou lentamente o esforço para vestir-se, embora esse atraso não tivesse nada a ver com ser uma boa paciente. Evidentemente, o choque de ter se sentido como um boneco de teste de colisão não era algo de que podia se livrar facilmente. Ela sentia-se velha e decrépita – e estranhamente aterrorizada.
Ter matado alguém... era inimaginável.
Ela enfiou os papéis na bolsa, abriu a cortina verde e encarou o enorme caos do hospital: pessoas com jalecos brancos e batas de enfermeira andavam para cima e para baixo, entrando e saindo de quartos, dando e obedecendo ordens.
Considerando que já estivera em uma colisão naquela noite, ela foi cuidadosa para não entrar no caminho de ninguém enquanto se dirigia para a saída.
Que ela não usou.
A sala de espera estava cheia de pessoas buscando cuidados médicos, incluindo um cara com um olho roxo e uma mão cheia de ataduras que sangrava muito. Ele levantou a cabeça, olhou para Mels e assentiu, como se compartilhassem uma ligação por terem começado uma briga em um bar.
Pois é, você deveria ver como o carvalho ficou depois que eu acabei com ele. Toca aqui.
Na recepção, ela se instalou no balcão e esperou até ser notada. Quando um homem se aproximou, Mels sorriu como se o assunto não fosse muito importante.
– Você pode me dizer o número do quarto daquele desconhecido que foi atropelado?
– Ei, eu te conheço. Você é repórter.
– Sim – ela enfiou a mão dentro da bolsa, pegou seu passe de imprensa e o mostrou, como se fosse um distintivo do FBI. – Você pode me ajudar?
– É claro – ele começou a digitar no teclado. – Ele foi transferido para um quarto hospitalar. Número 666. É só pegar o elevador e seguir as placas.
– Obrigada – Mels deu uma leve batida no balcão. Pelo menos, ele ainda estava respirando. – Você ajudou muito.
– Sabe, você não parece muito bem – disse o enfermeiro, fazendo um círculo em volta de seu olho.
– Noite difícil.
– Estou vendo.
A viagem até o sexto andar foi um exercício de processamento de informações, em que seu cérebro falhou miseravelmente. Para começar, ainda sentia tontura, e a subida fez seu ouvido zumbir tanto que foi preciso segurar no corrimão. Ótima ideia colocar um corrimão no elevador; afinal, gente com tontura era parte da rotina por ali. E o fato de a parede ser revestida com metal cinza fosco era outro benefício. Ela ainda não tinha se olhado no espelho, mas, pela maneira como o enfermeiro a olhou na recepção, o air bag que ela quase comera provavelmente não fizera muito bem à sua pele.
A campainha do elevador era alegre como se estivesse na Disneylândia, mas as portas se abriram tão vagarosamente que pareciam exaustas.
Seguindo as instruções, ela observou as placas e encontrou a direção, entrando em um longo e amplo corredor marcado por incontáveis portas largas. Tudo era mais quieto por lá, e ninguém na estação das enfermeiras se manifestou enquanto ela se aproximava. Melhor assim – não queria correr o risco de alguém começar a fazer perguntas, não gostar das repostas e enviá-la de volta.
O quarto ficava quase no final do corredor, e ela meio que esperava ver um policial de guarda na porta. Mas não havia nada nem ninguém. Apenas mais uma porta com uma placa amarela numerada no batente e uma superfície laminada, que parecia madeira de pinheiro.
Empurrando a porta, ela se inclinou para dentro. Sob a luz fraca, pôde ver o pé da cama, uma janela na parede mais distante e uma TV instalada no teto. O som de bipes e o cheiro de desinfetante provavam que aquilo não era um quarto de hotel – não que ela precisasse de ajuda para saber disso.
Mels limpou a garganta.
– Olá?
Quando não houve resposta, entrou e deixou a porta entreaberta. Passando pelo banheiro, parou quando teve uma visão clara do paciente.
Então levou as mãos ao rosto e cobriu a boca quando seu queixo caiu.
– Oh... meu Deus!
No pequeno apartamento acima da garagem que alugava na zona rural, Jim Heron não conseguia dormir.
Todos ao redor dormiam como pedras: o Cachorro estava ao pé da cama, suas patas tremendo enquanto sonhava com coelhos ou esquilos... ou talvez com sombras negras que possuem presas. Adrian estava sentado em um canto, com as costas contra a parede e o corpo tenso, apesar da respiração regular. E Eddie? Bom, o cara estava morto, então não era como se estivesse andando por aí em círculos.
Desesperado por um cigarro, Jim saiu da cama pelo lado errado, para evitar perturbar o Cachorro, e pegou seu maço de Marlboro. Antes de sair, se aproximou para checar Adrian.
Sim. Dormindo sentado.
Com uma adaga de cristal na mão, caso alguém viesse atrás de seu amigo.
Pobre coitado. A perda de Eddie fora um duro golpe na equipe... mas fora particularmente ruim para aquele maluco tatuado cheio de piercings que estava em vigília desde o dia da morte.
Por que será que, quando um homem tenta esconder sua dor, parece ser muito mais triste do que se estivesse em qualquer tipo de histeria e choradeira?
E, em uma nota não relacionada, Jim estava estranhando trabalhar com parceiros.
No tempo em que era um assassino das Operações Extraoficiais, ele agia estritamente sozinho. Agora tanta coisa tinha mudado, desde seu chefe e o tipo de trabalho, passando por suas armas – e Eddie Blackhawk era quem mostrava o caminho, ensinando o que precisavam saber, acalmando ele e Adrian quando os dois discutiam, sendo a voz da razão em situações nas quais parecia não haver lógica... como quando se está diante do próprio cadáver. Ou quando se luta contra um demônio que gosta de usar Prada e que tem uma queda por homens que a rejeitam. Ou quando se leva nas costas o futuro das boas almas, e das más, e de todas aquelas que já existiram ou que iriam existir.
Tipo de coisa que fazia a pessoa querer trocar de emprego com o cara que frita hambúrgueres na lanchonete.
Praguejando, Jim andou até o sofá, pegou uma jaqueta de couro e cobriu as pernas de Adrian. O outro anjo grunhiu e se ajeitou no chão, mas continuou debaixo da jaqueta. Ótimo – o objetivo era manter o cara aquecido, não conversar com ele.
Jim não estava a fim de conversar com ninguém.
Mas isso não era novidade.
Ele pisou no patamar no topo da escada e o ar frio percorreu a pele nua de seu peito. Antes de ter um colega de quarto e um cão, ele sempre dormira nu. Agora usava um moletom. O que o ajudava era o fato de que as noites de abril eram muito frias em Caldwell.
Não que ele dormisse muito.
O maço de Marlboro ainda estava embrulhado e Jim o bateu contra a palma da mão enquanto fechava a porta silenciosamente. Uma das vantagens de ser ao mesmo tempo imortal e corpóreo é que você não precisa se preocupar com câncer, mas a nicotina faz efeito em seu sistema nervoso.
E também não precisa procurar um isqueiro no bolso.
Ele rasgou a embalagem, retirou um cigarro, colocou-o nos lábios e levantou a mão. Quando seu dedo indicador se iluminou ao seu comando, ele pensou em Eddie novamente – e, como de costume, desejou matar Devina.
Pelo menos, os caras do bem ainda estavam com vantagem de dois a um na guerra. Se conseguisse mais duas vitórias, tudo terminaria: ele livraria a Terra das garras do demônio, manteria sua mãe segura na Mansão das Almas... e tiraria sua Sissy do Inferno.
Não que ela fosse sua.
Ele exalou o ar. Não tinha total certeza sobre Sissy, mas as coisas tinham de funcionar assim, não é? Se os anjos ganhassem e Devina deixasse de existir, ele poderia ir lá embaixo e livrar aquela pobre garota da prisão. O Inferno seria dele para fazer o que quisesse.
Certo?
Com essa deixa, começou a imaginar quem seria a próxima alma.
Pensou em seu novo chefe e ouviu a voz com sotaque britânico em sua cabeça. O som macio orgulhoso das palavras de Nigel ecoava ao redor, irritando-o: Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
– Muito obrigado – murmurou enquanto a fumaça escapava de seus lábios junto com a respiração. – Ajudou muito, cara.
Era completamente injusto que sua inimiga soubesse quem era o alvo e ele não.
Que merda.
Na última rodada, ele enganara Devina para conseguir a informação, mas ela não cairia nessa de novo – diga o que quiser sobre aquele demônio, mas ela não era uma loira burra, nem de longe. E isso significava que lá estava ele de novo, emperrado em ponto morto, enquanto o inimigo com certeza saía na frente.
Esse era precisamente o mesmo problema que ele tivera na disputa pela alma de seu antigo chefe. Durante todo o tempo, ele pensou que era outra alma que estava em jogo, mas no fim era Matthias quem estava sendo disputado.
Mas já era tarde, e o filho da puta havia feito a escolha errada.
Vencedora: Devina.
Nesse ritmo, o jogo estava destinado a ser injusto, enquanto Devina continuasse interagindo diretamente com as almas. De acordo com as regras, Jim era o único que poderia fazer isso, mas, na prática, ela fazia parte do corpo a corpo tanto quanto ele. Naturalmente, Nigel, o chefe dos escoteiros, estava convencido de que ela seria punida por pisar fora de seus limites – e talvez até fosse. Mas quem poderia saber quando e onde?
Nesse meio tempo, Jim não tinha outra escolha além de ficar esperto e torcer para não estragar tudo.
Ele precisava vencer. Por sua mãe... e por Sissy.
Ele tragou e exalou outra vez, observando a fumaça girar no ar frio e subir até desaparecer. Ao piscar os olhos, viu uma imagem de Sissy Barten, aquela linda jovem, pendurada de cabeça para baixo em uma banheira de porcelana branca, o sangue vermelho vivo manchando seus cabelos dourados, a pele marcada com símbolos que ele nunca vira antes, mas que Eddie tinha entendido muito bem...
O som discreto de algo raspando o fez perder a linha de raciocínio, então ele virou para trás e abriu a porta do apartamento. O Cachorro saiu mancando com o pelo todo desgrenhado – o que era seu estado natural, e não consequência de ter dormido em uma posição esquisita.
– Ei, amigo! – Jim disse com a voz macia enquanto fechava a porta. – Você precisa ir lá fora?
O pobre e velho cão tinha dificuldade com as escadas, então Jim geralmente o carregava até o chão. Quando ele se abaixou para pegá-lo, o Cachorro prontamente se sentou: era sua maneira de dizer que queria ser apanhado e carregado.
– Sim, senhor.
O animal, que Jim sabia ser mais do que um vira-lata qualquer, pesava quase nada em seu braço, e era quente como um bico de Bunsen.
– Eu disse pra ela pensar em você – Jim disse, segurando o cigarro longe do Cachorro, só para o caso de estar errado quanto ao cão ser especial. – Eu disse pra Sissy pensar em você mastigando minhas meias. Quero que ela imagine você brincando na grama fresca quando as coisas ficarem...
Não podia terminar aquele pensamento em voz alta.
Em seu tempo de vida, Jim fizera muitas coisas feias, horrorosas, para pessoas feias e horrorosas – o que significava que há muito tempo já se tornara durão em relação às suas emoções...
Bom, na verdade, isso tinha acontecido ainda quando era adolescente. Naquele dia, quando tudo mudou para sempre.
No dia em que sua mãe foi assassinada.
Dane-se. São águas passadas.
O fato era que a ideia de Sissy mergulhada no Poço das Almas do demônio era suficiente para fazer até um soldado endurecido pela guerra perder a cabeça.
– Eu disse a ela... pra pensar em você, quando sentisse que não conseguiria aguentar mais.
A pequena cauda do Cachorro balançou para um lado e para o outro, como se Jim tivesse feito a coisa certa.
É, esperava que ela estivesse pensando no Cachorro lá embaixo, e que isso lhe desse um pouco de alívio.
Pois não havia mais nada.
– Preciso encontrar a próxima alma – sussurrou Jim antes de fumar outro trago do cigarro. – Preciso saber quem é o próximo na lista. Precisamos vencer, Cachorro.
Aquele nariz frio e molhado encostou em seu rosto, e ele teve o cuidado de soprar a fumaça por cima do ombro.
O fato de Nigel dizer que Jim conhecia a alma não significava absolutamente nada. Ele conhecera muita gente durante sua vida.
Podia apenas rezar para que fosse alguém que ele pudesse trazer para o seu lado.
CAPÍTULO 5
Matthias percebeu o momento em que não estava mais sozinho. A luz ao redor se intensificou, significando que uma porta se abriu, e isso não acontecia por acaso.
Sua mão direita se fechou por reflexo, como se segurasse uma arma. Mas isso era tudo o que podia fazer. Seu corpo estava imóvel por causa da dor, como se uma corrente o prendesse onde quer que ele estivesse deitado... era uma cama. Sim, estava numa cama, e o som ambiente cheio de bipes lhe informava que tipo de cama. Um hospital. Ele ainda estava no hospital.
Será que nunca iria se recuperar da...
Seus pensamentos empacaram nesse ponto.
Não havia nada além de um buraco negro.
Não fazia ideia da razão de estar ali. Nenhuma pista de por que seu corpo doía tanto. Não... Deus, sabia apenas que seu nome era Matthias, e nada mais.
O pânico o fez arregalar os olhos. Havia uma mulher ao pé da cama, aterrorizada, com as mãos no rosto e uma expressão de completo choque. Um de seus olhos estava roxo e sua testa estava enfaixada. O cabelo preto estava preso para trás. Olhos bonitos. Alta... ela era alta...
Olhos lindos, na verdade.
– Eu sinto muito – ela disse, com a voz rouca.
Como é?
– Sobre...? – a voz dele estava áspera, a garganta doía. E um de seus olhos não funcionava direito.
Não, o olho estava completamente inutilizado. Perdera metade da vista no passado. Foi isso mesmo, quando ele era...
Franziu a testa e seus pensamentos caíram no abismo novamente.
– Eu te atropelei. Sinto muito... não enxerguei você. Estava tão escuro, e você apareceu na rua antes que eu pudesse frear.
Ele tentou estender a mão, em um impulso para acalmá-la que ultrapassou a dor e a confusão.
– Não foi sua culpa... não... sem lágrimas. Venha...
Por algum motivo, ele não podia acreditar que alguém choraria por ele, agora ou em qualquer tempo. Não era o tipo de homem que inspira reações assim. Não ele. Mas por que isso era assim, ele não sabia...
A mulher se aproximou um pouco, e Matthias observou com seu olho bom enquanto ela estendia a mão quente e macia... até tocar a palma dele.
O contato o fez sentir aquecido por todo o corpo, como se tivesse deitado em uma banheira quente.
Engraçado, ele nem tinha percebido que sentia frio até ela o tocar.
– Estou apertando sua mão... – ele disse, com a voz entrecortada. – Caso não consiga perceber.
Ela foi gentil e não comentou o fato de que claramente não sentia sua tentativa de retribuir o contato. Mas ele estava se esforçando. E quando seus olhos se encontraram, por alguma razão, Matthias quis dizer que nem sempre estivera quebrado. Um dia, não faz muito tempo, ele fora capaz de levantar-se orgulhoso, correr longas distâncias e usar seus músculos. Porém, agora ele era como um colchão com pulsação cardíaca.
Mas o motivo disso não fora o atropelamento. Não, ele já estava quebrado havia um bom tempo.
Talvez sua memória estivesse voltando.
– Sinto muito – ela disse novamente.
– Foi assim que você... – ele fez um gesto mostrando o próprio rosto, mas isso a fez focar ainda mais nele, e a maneira como estremeceu sugeria que para ela era difícil olhar o quanto ele estava feio. – Você também se machucou.
– Ah, estou bem. A polícia já veio conversar com você?
– Acabei de acordar. Não sei.
Ela desfez o contato entre eles e enfiou a mão em uma bolsa que mais parecia uma mala.
– Aqui. Este é o meu cartão. Eles conversaram comigo enquanto eu estava sendo medicada, e eu disse que aceito toda a responsabilidade.
Ela colocou o cartão na frente de seu rosto, mas sua visão se recusou a focar.
E Matthias não queria olhar para nada além dos olhos dela.
– Qual é o seu nome?
– Mels Carmichael. Na verdade, é Melissa – ela tocou o próprio peito. – As pessoas me chamam de Mels.
Quando ela deixou o cartão na mesa ao lado, ele franziu a testa, mesmo isso fazendo sua cabeça latejar.
– Como você se machucou?
– Me ligue se precisar de alguma coisa. Não tenho muito dinheiro, mas...
– Não estava usando cinto de segurança, não é?
A mulher olhou ao redor como se já tivesse ouvido isso da polícia.
– Ah...
– Você devia usar o cinto...
A porta abriu bruscamente, e a enfermeira que entrou parecia como se fosse a dona do lugar.
– Estou aqui – ela anunciou enquanto caminhava até os aparelhos que ficavam atrás da cama. – Ouvi o alarme.
A primeira coisa em que Matthias reparou foram os grandes peitos da mulher. Depois, na cintura pequena. E nos longos cabelos castanhos, macios como um edredom e brilhantes como porcelana.
Mas aquela imagem fez sua pele se arrepiar. Ao ponto de ele tentar se sentar para poder sair dali...
– Shh... está tudo bem – sorrindo, a enfermeira quase botou Mels para fora. – Estou aqui pra ajudar.
Olhos negros. Olhos negros que o lembravam de alguma coisa, em algum lugar... uma prisão onde você ficava sufocado pela escuridão, incapaz de se livrar...
A enfermeira se inclinou e seus seios se apertaram um contra o outro.
– Vou cuidar de você.
– Não – ele disse com veemência. – Não, você não vai...
– Ah, sim, eu vou.
Sentia seu inconsciente tentando avisá-lo sobre alguma coisa, algo que não conseguia distinguir com clareza, mas que enviava sinais como um caminho de pólvora antes de uma bomba explodir. Mas não encontrou nada específico. Suas memórias pareciam bases camufladas em um horizonte visto através de óculos de visão noturna – ele sabia que o inimigo estabelecera bases em algum lugar, mas era impossível visualizar qualquer detalhe.
– Se você não se importar – a enfermeira disse para Mels –, eu preciso cuidar do meu paciente.
– Ah, sim. Claro. Eu vou... é, vou embora – Mels se esticou sobre a mulher para poder enxergá-lo. – Bom... falo com você mais tarde.
Matthias também precisou se desviar da enfermeira, mudando a posição do corpo e fazendo os músculos da barriga se contraírem.
A enfermeira bloqueou sua visão.
– Feche a porta quando sair, certo? Obrigada.
E então ficaram a sós.
A enfermeira sorriu e encostou o quadril na beira da cama.
– Que tal eu te dar um banho?
Parecia uma ordem, não um pedido. E, cara, de repente ele sentiu-se nu – e não de um jeito bom.
– Não estou sujo – ele disse.
– Sim, você está – ela colocou a mão em seu braço, bem no lugar onde as sondas se conectavam com a veia. – Você está imundo.
Do nada, seu corpo começou a ganhar força: a energia invadia e inflava seus músculos com saúde, como se ele tivesse passado por dias de descanso, noites bem dormidas e muita comida.
Estava vindo dela, ele percebeu. Mas... como isso era possível?
– O que você está fazendo comigo?
– Nada – a enfermeira sorriu. – Se sente diferente?
Olhando em seus olhos negros, a escuridão parecia tão irresistível quanto repulsiva – e ele não saberia dizer quanto tempo ficaram ali daquele jeito, ligados pela mão dela, que transferia o que parecia uma droga miraculosa.
– Eu conheço você – ele pensou em voz alta.
– É engraçado quando a gente sente isso com uma pessoa desconhecida.
O poder que entrava nele parecia maligno e muito familiar.
– Eu não quero...
– Não quer o quê, Matthias? Não quer se sentir melhor, ficar mais forte, viver pra sempre? – ela se inclinou para ainda mais perto. – Está me dizendo que não quer ser um homem de novo?
Os lábios dele começaram a se mover, mas nenhum som saiu. Uma lentidão se apoderou de seu corpo quando ela retirou a mão. Desorientado e confuso, ele tentou se levantar, mas parecia que, afinal, fora mesmo drogado.
– Vou te dar um banho agora – ela disse com um olhar malicioso e um sorriso que faziam parecer que estava falando de sexo oral e não de esponja e sabonete.
Quando ela se aproximou da pia, Matthias aspirou profundamente, suas costelas se expandindo sem dor, e conseguiu expirar sem dificuldade. Todas as dores desapareceram, dando a impressão de que fazia anos que seu corpo não apresentava nenhuma complicação. Talvez séculos?
– Que dia é hoje? – ele murmurou, enquanto ela enchia uma bacia.
A enfermeira olhou por cima do ombro.
– É mesmo! Você está com amnésia.
Um momento depois ela voltou à cama, trazendo junto a mesa de rodinhas. Quando ela abaixou o lençol até a cintura dele e desamarrou o avental do hospital, Matthias levantou a cabeça pesada e olhou para si mesmo. A parte de cima não estava tão ruim, apenas uma cicatriz aqui e outra ali. Mas a parte de baixo estava arrasada.
Sentiu a esponja macia e quente.
Enquanto a enfermeira massageava seu peito, ele observou a maciez e a luminosidade da pele dela: era como uma pintura, e seu cabelo era mais espesso e voluptuoso do que parecia ser possível. Seus lábios pareciam até partes de uma fruta: molhados, com a promessa de doçura.
Eu não a quero, ele pensou.
Mas não conseguia se mover.
– Você precisa ganhar peso – ela comentou, passando a esponja em seu peito. – Está muito magro.
A esponja foi descendo cada vez mais, demorando-se na barriga: os cuidados estavam mais para de uma amante do que de uma enfermeira. Com súbita clareza, Matthias lembrou que houve um tempo em que ela poderia ter se impressionado – as mulheres que ele contratava para o exercício sexual sempre ficavam animadas com seu corpo...
Espere um pouco, isso realmente estava acontecendo?
Quando ela começou a baixar o lençol ainda mais, Matthias a fez parar:
– Não, pare.
– Sim, continuo.
Com os olhos dela presos aos seus, a enfermeira afastou a mão dele e arrancou o resto da roupa de cama. A violência do ato o fez lembrar de algo lá no fundo de sua mente... mas não sabia o quê.
– Fiz você lembrar de algo? – ela disse, mesmo sabendo bem a resposta. De alguma maneira... ela sabia que ele gostava de coisas perigosas. – Fiz? Matthias.
– Talvez – de repente sua voz parecia mais forte, mais profunda...
– E agora?
Ela o tocou naquele lugar que definia sua masculinidade: a esponja raspou seu pênis de leve.
Quando ela lambeu os lábios com volúpia, ele teve de rir alto. Seja lá qual fosse o seu motivo para quebrar todas as regras, a enfermeira não chegaria a lugar nenhum – o que resolveria o problema de ele não querer aquilo. Ela podia ficar nua e montá-lo; aquele pedaço mole de carne não se levantaria de jeito nenhum.
Mesmo com amnésia, sabia disso, da mesma maneira que sabia que não enxergava com um dos olhos. Era um fato, não uma lembrança.
– Minha memória não é a única coisa que perdi – ele disse secamente.
– É mesmo?
Quando ela massageou onde não deveria, Matthias deu um salto. Bom, mas a impotência não significava que você não sentia nada. Significava apenas que não podia fazer nada a respeito...
O fluxo de poder voltou a se apoderar dele, desta vez mais forte. E com um gemido, ele se arqueou, automaticamente levantando o quadril até a fonte do prazer.
– Isso mesmo – ela disse suavemente. – Sinta meu toque. Estou dentro de você.
O desejo sexual há muito esquecido explodiu por todo o corpo de Matthias; a agressividade e a necessidade de penetrar algo que ele não sentia há muito tempo. Deus, lembrar-se de que era de fato um macho, e não algum doente andrógino...
Oh, droga, isso era bom. Muito... bom.
– Olhe pra mim – ela ordenou enquanto trabalhava em seu pênis. – Olhe para mim.
Ele ficou tão distraído pela novidade que quase esqueceu quem a proporcionava, e a visão dela acabou drenando a sensação para longe: o que se tornou impotente agora foram suas emoções, mesmo que o corpo funcionasse plenamente. Ela era linda, mas... era uma beleza cheia de veneno.
– Você não gosta disto, Matthias?
Não, ele não gostava. Não gostava mesmo.
– Nem um pouco.
– Mentiroso. Precisamos terminar o que começamos, você e eu. Sim, precisamos.
Devina entrou na loja Saks Fifth Avenue no shopping Caldwell Galleria perto das cinco da manhã. Passou pelas portas de vidro e caminhou até um mostruário com manequins que vestiam tons pastéis. Ela posou junto deles por um momento, arqueando as costas e sentindo os seios apertarem o tecido da blusa sob o casaco.
A primavera estava no auge, e isso era uma boa notícia para suas coxas.
Já que estava ali, talvez pegasse algumas coisinhas.
Com uma febre de compras correndo por suas veias, ela apareceu atrás do balcão e, com um aceno das mãos, desativou os detectores de movimento. Por um segundo, pensou em deixar as câmeras de segurança ligadas, só por diversão.
Nada mais divertido do que ter uma plateia – mesmo que fosse apenas um humano gorducho sentado em uma sala de segurança ao final de um turno de trabalho durante o qual provavelmente só dormira.
Porém, ela estava ali por uma razão muito séria.
Seus sapatos de salto faziam barulho no chão de mármore, e ela gostava daquele som ecoando: pisou mais forte para que seu domínio sobre o vazio alcançasse todas as direções. Deus, ela adorava aquele cheiro no ar: chão polido, perfume, colônia... e riqueza.
Passando pelas bolsas de grife penduradas na parede, ela checou os estandes da Prada, Miu Miu e Chanel. As bolsas pareciam lindas mesmo sob o brilho fraco das luzes de segurança, e ela quase engasgou quando encontrou uma Gucci. Atravessando como um fantasma pelo painel trancado, agarrou uma bolsa de pele de cobra verde-escuro e continuou.
Fora sexo, pensou Devina, lojas de departamento de luxo proporcionam a melhor sensação que existe: milhares e milhares de metros quadrados cheios de coisas, tudo bem organizado, etiquetado e catalogado. E protegido.
Era um completo orgasmo para pessoas obsessivo-compulsivas.
Então precisava ter cuidado. Estava sentindo uma ligação surgir entre ela e todas aquelas mercadorias e, se isso acontecesse, havia o perigo de criar uma sensação de posse sobre aquelas preciosidades. E isso não seria bom para ninguém. Ela teria de matar os humanos que entrassem ali para fazer compras, e isso seria exaustivo.
Mas toda aquela organização a fez pensar que poderia usar seu notebook Lenovo e entrar para a era digital com suas próprias coleções.
Talvez o próximo virgem que sacrificaria para proteger seu espelho seria um nerd. Depois ela poderia reanimá-lo e fazê-lo trabalhar para si.
Afinal, havia muitos programadores de computador por aí que não conseguiam nem chegar perto de uma mulher. Seria muito fácil.
Entrando na parte central do primeiro andar, ela encontrou os balcões de maquiagem: o balcão da Chanel com sua conhecida maquiagem preta e brilhante, o da Lancôme cheio de recipientes de vidro... e o da Yves Saint Laurent, com muitos detalhes dourados ao redor dos mostruários.
Indo para trás do balcão, ela abriu o cadeado da prateleira que estava ao chão, e, enquanto abaixava e se apoiava na ponta dos pés, sua mão iluminou o caminho, lançando luz sobre as pequenas etiquetas grudadas nas embalagens.
A etiqueta 1 Le Rouge foi fácil de achar. Ela pegou um pacote, abriu a caixa e retirou o brilhante tubo de metal. Lindo, tão lindo, novinho em folha, intocado. Ela quase estremeceu quando girou e expôs a perfeita coluna de batom vermelho.
O perfume, delicado e com toques florais, fez Devina revirar os olhos.
A terapeuta estava certa: o ataque de pânico não durou para sempre naquele consultório, e quando Devina continuou com seus afazeres mais tarde, a ansiedade de ter jogado o batom fora acabou sendo esquecida enquanto ela dava atenção a outras coisas. Porém, a sensação ressurgiu quando ela voltou para seu espaço privado e sentou em frente ao espelho, pronta para descer até seu muro e aproveitar um pouco de tempo sozinha com suas crianças.
Entram os problemas.
Seus pensamentos rapidamente saíram de controle, surgiam imagens de um compactador de lixo e pilhas enormes e mal cheirosas de dejetos em grandes aterros desolados, que a faziam querer chorar.
Devina poderia ter voltado para pegar aquele batom específico, mas queria honrar a religião da terapeuta: tornar-se obcecada em conseguir de volta aquele batom, sem se importar com as consequências, seria voltar também para seu ciclo vicioso.
Mas ela não podia trilhar esse caminho o tempo todo – e por isso estava na loja e não no consultório, e agora tinha um novo e lindo batom para substituir aquele que sacrificara em nome do autoaperfeiçoamento.
Havia mais cinco batons da cor que gostava, todos empilhados formando uma bonita pirâmide. Ela esticou a mão, com vontade de pegar todos, para servirem de reservas dos reservas, mas impediu a si mesma. Fechou a prateleira. Teletransportou-se para longe.
Saiu de lá orgulhosa de si mesma.
Fim do intervalo; hora de voltar ao trabalho.
Voltando à vitrine pela qual entrara, parou em frente a um dos manequins. A coisa usava uma peruca loira e vestia uma roupa florida que Devina nunca usaria, nem morta.
Mas, então, começou a imaginar o que Jim Heron pensaria se a visse vestindo aquilo.
Sem dúvida fazia seu tipo: feminina, bonita, nada muito revelador. Modesta.
Aquele cretino. Enganador mentiroso.
Naturalmente, o fato de tê-la enganado tão bem apenas o deixava mais atraente.
Devina franziu a testa quando a voz da terapeuta surgiu em sua mente. Terapia cognitiva de comportamento... reprogramar o cérebro por meio de experiências...
O demônio se aproximou e passou a mão pelos cabelos falsos, aqueles longos e lisos fios amarelos.
Sissy Barten, a queridinha de Jim, tinha cabelos iguais àqueles. E teria adorado aquele vestido. Teria se mantido ao longe e esperado Jim se aproximar, nunca se jogaria nele, manteria sempre aquele jeitinho virginal.
O que era suficiente para fazê-la querer matar os dois – e com aquela garotinha estúpida seria a segunda vez, pois já tinha rasgado sua garganta na banheira.
Devina começou a sorrir. E então riu.
Com um rápido movimento, arrancou a peruca, deixando o manequim careca, e saiu através do vidro.
CAPÍTULO 6
Tinha de ser um sonho, não é?
Adrian tinha de estar sonhando. Mas, caramba, tudo parecia real, desde o sofá de veludo sob o seu traseiro, a cerveja gelada em sua mão, até a batida visceral do som na boate.
Estava com medo de virar a cabeça. Medo de descobrir que estava ali sozinho naquele lugar barulhento e desesperador, cheio de pessoas vazias iguais a ele.
Se estivesse sozinho, então Eddie estava mesmo morto.
Deu um gole na cerveja, preparou-se e então virou.
Adrian lentamente abaixou a garrafa, exalando todo o oxigênio para fora de seus pulmões.
– E aí, cara? – ele sussurrou.
Os olhos vermelhos de Eddie se viraram.
– Ah... oi – o cara se ajeitou no assento. – Escute, você tá bem?
– Sim, é só que...
– Por que tá olhando pra mim desse jeito?
– Senti sua falta – Ad disse com a voz grave. – Achei que nunca mais ia te ver.
– Só porque fui até o banheiro? – Eddie sorriu. – Geralmente, eu volto de lá.
Ad esticou a mão, sabendo que um toque provaria de que lado estavam...
Eddie franziu a testa e se inclinou para trás, como se Ad tivesse revelado um par de chifres.
– O que há de errado com você?
O rosto de Eddie parecia exatamente o mesmo: a pele bronzeada pelo sol, um vestígio de barba, aqueles olhos avermelhados estavam abertos para o mundo, nem desconfiados e nem ingênuos, e uma pesada trança que percorria as costas musculosas.
– Eu não sei – disse Ad esfregando o rosto.
– Quer ir embora?
– Deus, não.
– Certo – aqueles olhos vermelhos voltaram-se para a multidão. – Então, você vai me forçar a transar de novo?
Ad riu alto.
– Certo. Foi isso que aconteceu. Claro.
– Jogando mulheres para cima de mim...
– Eu nunca joguei...
– Escolhendo as que sabe que vou gostar...
– Bem, isso eu fiz...
– Arruinando minha virtude.
Quando o cara deu outro gole, Ad ficou sério.
– Ninguém poderia fazer isso.
– É, você tem razão. Antes de me tornar um anjo, eu era uma virgem imaculada.
– O que explicaria esse cabelo todo.
– Não, o cabelo me faz parecer gostosão.
Ad riu novamente e se recostou no sofá sentindo uma súbita injeção de energia percorrer seu corpo. Era uma sensação de que a vida voltara ao normal, que a tragédia não acontecera, que tudo voltara à maneira como deveria ser; era um alívio tão grande que, mesmo sentado, ele sentia como se estivesse voando. Com uma pontada de otimismo, seus olhos percorreram a multidão. Seu radar para mulheres voltava a funcionar e sua rara felicidade transformava periguetes em modelos internacionais.
– Está vendo alguma coisa que te agrade? – Eddie perguntou.
– Se não fosse por mim, você nunca conseguiria uma transa.
– Sabe, eu não acho que isso seja verdade.
– Você é sincero demais.
– Droga.
Ah, sim, aquela ruiva serviria, Ad pensou. E ela estava junto com uma morena...
Franziu a testa e ficou tenso. Havia alguém ao redor, no canto mais afastado, observando-os das sombras.
– Tá na hora – disse Eddie. – Ou fazemos isso agora, ou pedimos outra rodada. Ad? Olá?
Adrian chacoalhou a cabeça.
– Sim... claro.
Seu melhor amigo lhe lançou um olhar desconfiado novamente.
– O que há de errado com você, cara?
Boa pergunta, pensou enquanto se levantava.
– Vou ver o que posso pescar por aí.
– Sem pressa... só não demore muito.
– Isso não é uma contradição?
– Não quando se trata de você.
Os dois riram um pouco. E então Ad se concentrou nas duas mulheres. Quando se aproximou da ruiva e da morena, elas responderam com uma previsível risadinha, nada comparado com os orgasmos que resultariam daquele encontro.
– Meu nome é Adrian – ele disse. Seu lento sorriso fez as mulheres arregalarem os olhos e ajeitarem suas poses: peito levantado, barriga para dentro, pernas esticadas para expor as coxas.
– Gosto do seu perfume – ele disse, inclinando-se para perto do pescoço da ruiva.
Na verdade, não tinha sentido o cheiro ainda, e nem se importava.
Quando puxou o ar, ele congelou. Aquele cheiro. Era...
– Que bom que gostou – ela disse, enquanto acariciava as costas dele até chegar em seu traseiro. – Escolhi exatamente pra alguém como você.
Adrian se afastou, seu cérebro doía. Ou talvez fosse seu peito.
– Certo. Bom.
Olhou por cima do ombro. Eddie estava no sofá, todo espreguiçado, mas totalmente atento, como se estive pronto para o sexo.
Ou seja, estava normal.
Adrian assentiu na direção dele.
– Trouxe um amigo. E você?
– Minha amiga tem namorado – murmurou a ruiva, como se isso fosse um defeito.
– Desculpe – disse a outra mulher.
Como se isso importasse.
– Certo, só você então. Consegue aguentar os dois?
Quando a garota assentiu como se tivesse ganhado na loteria, ele tomou sua mão, e o perfume dela os seguiu, fazendo Ad desejar que a solteira fosse a morena, e que fosse aquela Jessica Rabbit com maquiagem gótica quem tivesse namorado. Mas não dava para voltar atrás – seria trabalhoso demais achar outra candidata e, além disso, o que fariam não era nada permanente. Nunca era permanente.
Mas que droga de perfume de flores – dava até arrepios.
Quando chegaram no sofá, a ruiva foi se jogando no meio, cobrindo tanto as pernas dele como as de Eddie. E, como ela acabou de frente para o outro anjo, Eddie começou a beijá-la intensamente.
Para um cara que não sabia se aproximar de mulheres, ele tinha um apetite e tanto.
Enquanto Ad assistia, e impulsionava seu quadril e peito contra o corpo da mulher, pensou que era incrível o poder que um pesadelo pode ter. Era como se toda aquela merda que ele imaginara sobre Eddie tivesse realmente acontecido: aquele lacaio do demônio aparecendo do nada e rasgando o anjo com uma lâmina, tirando a letra I da palavra imortal. E então a morte, no saguão daquele banco, não muito longe dali. E depois o sofrimento de Adrian, a sensação de ter perdido toda a razão de viver...
Adrian franziu a testa e se perguntou por que falava consigo mesmo como se aquilo realmente tivesse acontecido...
A ruiva se arqueou e abriu as pernas, claramente o convidando-o para brincar no parquinho. E quando ele obedeceu, Eddie passou a trabalhar em seus peitos, baixando um pedaço da blusa, de forma mais agressiva do que o normal, e expondo um par de seios menor do que aparentava.
Quando Adrian estava prestes a mergulhar a mão em território inexplorado, a garçonete apareceu trazendo novas garrafas. Parecia acostumada com aquele showzinho, pois nem piscou ao servir a cerveja.
– Eu pago – disse Ad, tirando a carteira do bolso da calça e entregando uma nota de vinte. Quando a garçonete foi embora, ele olhou para a cerveja, e então virou imediatamente para Eddie. – Coors Light? Que merda é essa?
O outro anjo parou o beijo e deu de ombros.
– Estou controlando meu peso.
Ad revirou os olhos e voltou ao trabalho com o prato principal. Subindo as mãos debaixo da saia curta, ficou surpreso ao descobrir uma calcinha com a resistência de vigas de aço e a elasticidade de uma tenda do exército. Que diabos? Bem, ele pensou, uma calcinha modeladora era mais barata do que uma sessão de lipo.
O perfume voltou a invadir seu nariz, sugerindo que, afinal, talvez não viesse da mulher.
Olhou ao redor, mas não enxergou nada fora do comum.
– Acho que você deveria ser o primeiro – disse Eddie, enquanto brincava com aqueles seios... que agora pareciam meio caídos.
E aquele cabelo. Antes era volumoso e ondulado, agora parecia um pouco crespo.
A mulher sorriu, revelando dentes tortos.
– Vai, Adrian... transa com ela – na escuridão, os olhos de Eddie pareciam tudo menos brilhantes. – Quero assistir vocês.
A mulher tomou a mão de Ad e a colocou de volta entre suas pernas, esfregando a si mesma contra sua palma e dedos...
No meio da multidão, uma pessoa surgiu: uma figura alta e orgulhosa, vestindo um roupão branco. Quando se aproximou, o cheiro de flores ficou mais forte e tomou todo o ar ao redor...
Eddie.
Era o Eddie real, de pé ali na sua frente, uma presença verdadeira em meio a uma multidão de mortos vivos.
– Ah, que merda! Justo agora que as coisas estavam ficando interessantes!
Ad virou a cabeça bruscamente. Devina estava ao seu lado na outra ponta do sofá, pela primeira vez mostrando sua forma verdadeira: era um cadáver animado, a carne perpetuamente caindo dos ossos, a grotesca palma apodrecida passeando pelos seios da ruiva. A expressão do demônio mostrava irritação, seu queixo e lábios estavam apertados ao máximo.
Adrian gritou e tentou se levantar rapidamente, mas a ruiva segurou sua mão no lugar – e, enquanto ele lutava contra sua imensa força, ela também revelou sua verdadeira aparência: outro corpo decrépito, a ilusão de beleza sumindo como se não fosse mais possível sustentá-la.
Enquanto ele tentava se desvencilhar, uma mancha negra começou a subir ao longo do braço, primeiro nos dedos, depois nos pulsos, seguindo seu caminho para o cotovelo.
Gritando alto, ele se sacudiu violentamente, mas estava preso como uma mosca em uma teia de aranha, como um rato em uma ratoeira, como um...
Eddie, o verdadeiro, aquele que estava morto, quebrou aquela conexão com um simples toque, não em Ad, mas na ruiva: aparecendo atrás deles de repente, apenas se inclinou e encostou o dedo iluminado no ombro do monstro. Puff! Ela simplesmente sumiu.
Enquanto Devina xingava o anjo, Adrian se libertou: seu corpo caiu para trás do sofá, com os olhos fixos em Eddie enquanto o coração se partia novamente por causa da perda.
– Vá se foder! – Devina gritou para o anjo.
O rosto de Eddie, aquele rosto esperto, gentil e maravilhoso, não mostrou reação ao insulto. Ele apenas acenou com a cabeça para a garrafa de cerveja Coors e disse:
– Na sua condição, eu estaria preocupado com muitas outras coisas mais importantes do que meu peso.
Mais xingamentos vieram, mas Devina não fez nada além disso – era de se imaginar o que Eddie tinha realmente feito com aquele dedo luminoso do E.T.
O outro anjo observou Ad por um longo tempo, como se sentisse ainda mais falta do amigo vivo.
– Nunca estarei longe – disse Eddie com um sussurro.
– Ah, merda... não vá embora – murmurou Ad. – Fique aqui.
– Que comovente – os olhos negros de Devina estavam furiosos. – Você quer dar um beijinho antes de ir embora?
Eddie começou a se mover como se fosse uma estátua em uma esteira rolante, seu corpo paralisado sendo puxado através da multidão, o perfume de flores se desvanecendo.
– Eddie! – quando Adrian levantou as mãos na direção do anjo, a mancha negra em seu braço quase chegava aos ombros.
– Estou dentro de você – disse Devina com satisfação. – E é tarde demais pra fazer qualquer coisa a respeito disso. Tarde demais!
Adrian gritou a plenos pulmões.
CAPÍTULO 7
Matthias acordou com a luz do dia batendo em seu rosto. Não tinha certeza de quando aquela enfermeira de mão boba saíra, mas ele pretendia partir assim que ela fosse embora. Um sono não natural o arrebatara, deixando-o inconsciente de tal forma que se sentiu dominado.
Francamente, estava surpreso por ter conseguido acordar.
O quarto do hospital parecia exatamente o mesmo, mas por que haveria de mudar durante a noite? E Matthias sentia-se mesmo melhor, como se seu corpo fosse um carro recém-saído do mecânico.
Quem diria que uma masturbação não solicitada poderia ter um impacto tão grande...
Mas era estranho. Quando olhou ao redor, teve a sensação de que era um milagre o fato de ele ainda estar “do lado de fora”. Mas estava fora de onde? Uma prisão? Um hospício? Algo ainda pior?
Forçando seu cérebro confuso a prestar atenção, tentou lembrar onde estivera na noite anterior, o que havia acontecido antes de acordar ali...
Eu te atropelei. Sinto muito.
Matthias fechou os olhos e se lembrou daquela mulher, Mels Carmichael. Alguma coisa nela penetrara o nevoeiro que o cercava, tocando-o onde realmente importava. Por quê? Não fazia ideia – mas sabia que, sob outras circunstâncias, gostaria de passar mais tempo com ela.
Muito mais.
Mas, qual é, ele não era do tipo romântico – sua intuição dizia isso em alto e bom som.
Levantando a cabeça dos travesseiros, ficou surpreso por não se sentir pior. Deu uma chance a seu corpo para deixar a ficha cair e começar a dar as informações corretas, algo mais consistente para alguém que fora atropelado há menos de doze horas.
Nada. Ainda sentia-se bem...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Certo, ajudaria se soubesse quem estava atrás dele, ou por que estava fugindo, mas não perderia tempo tentando decifrar essas perguntas – não quando sua adrenalina estava consistentemente apontando para a saída e gritando para ele dar o fora dali.
– Acho que você não é um anônimo, afinal.
Matthias tentou sacar uma arma que não tinha e olhou ao redor. A enfermeira estava de volta, de pé ao lado da porta, aparecendo como se fosse carregada pelo vento.
Sua aparência era diferente sob a luz do dia. Já não parecia sedutora.
Talvez ela fosse um vampiro. Há, há.
– Encontraram sua carteira – ela disse, mostrando uma carteira de couro preto. – Está tudo aqui, identidade, cartão de crédito... até seu cartão de seguro saúde! A conta no hospital vai ficar cara, mas a maioria das despesas está coberta.
Ela andou e colocou a carteira na mesa de rodinhas, bem ao lado do cartão que aquela jornalista tinha deixado. Então ela deu um passo para trás, como se soubesse que ele queria espaço.
Houve uma longa pausa.
– Obrigado – ele disse, tentando preencher o silêncio.
Ela estava vestida com roupas casuais: jeans azul, sapatos pretos, jaqueta branca folgada que parecia nova em folha. O cabelo estava solto e chegava até os ombros, e ela o alisou com a mão, mesmo já estando perfeito.
– Também trouxe algumas roupas – ela acenou com a cabeça. – Estão no armário atrás de você. Espero que sirvam.
– Então vão me liberar?
– Desde que se sinta bem esta manhã. Tem alguém te esperando em casa?
Ele não respondeu – e não por não saber a resposta. Nunca respondia nada para ninguém. Esse era seu jeito.
Mais uma longa pausa.
Ela limpou a garganta e desviou os olhos quando disse:
– Escuta, sobre ontem à noite...
Então era por isso que ela estava ali.
– Vou me esquecer disso, e você deveria fazer o mesmo – ele disse secamente.
Deus sabia que Matthias tinha problemas mais importantes do que ter sido abusado por uma mulher bonita. Pois é, que história triste. Especialmente se comparada com as coisas que ele fez com outras pessoas...
Lembranças emergiram do fundo de sua consciência, como um monstro esquecido num lago profundo ameaçando se revelar.
Afinal, quem era ele?
De repente os olhos negros da enfermeira grudaram nos seus.
– Sinto muito mesmo. Aquilo foi muito errado da minha parte. Nunca deveria ter...
Voltando ao presente, Matthias pensou que era engraçado que, à luz do dia, todo aquele poder que ela tinha sobre ele houvesse desaparecido totalmente. Ela nem parecia ser o tipo de mulher que poderia ser tão agressiva. Era apenas uma jovem enfermeira bonita, com um belo corpo e um cabelo lindo, e que agora parecia vulnerável.
Será que aquilo tinha mesmo acontecido? Ele provavelmente recebera vários analgésicos, e Deus sabe o quanto esses remédios podem bagunçar a cabeça de uma pessoa.
Por outro lado, se nada tivesse acontecido, ela não estaria ali se desculpando, não é?
– Foi uma total quebra de protocolo, eu nunca fiz nada assim antes. É só que... você estava com tanta dor, e você queria... e...
Ele queria? Lembrava-se do completo oposto. E lembrava que... teve um orgasmo. Talvez isso também não tivesse acontecido.
O que faria sentido.
– Enfim, pensei que deveria te dizer isso antes de ir embora... e você não vai mais estar aqui quando eu voltar da minha folga.
Ela parecia honestamente envergonhada e constrangida. Por alguma razão, Matthias teve a sensação de que fazia parte de sua personalidade tirar vantagem das pessoas, por nenhum motivo além de deixá-las constrangidas.
– Foi minha culpa – ele se ouviu dizer e, no instante que as palavras saíram, acreditou na confissão. – Sou eu quem deveria pedir desculpas.
Afinal, sexo por piedade acontecia sempre com um mesmo princípio, quer o ato fosse até o fim ou não: “oh, estou doente; pode cuidar do meu pau? obrigado, querida”.
A enfermeira pousou a mão na armação da cama.
– Eu só... é, bom, só não quero que pense que fico por aí fazendo essas coisas – ela riu, sem jeito. – Não sei por que isso importa. Mas importa.
– Você não precisa se explicar.
Quando ela ergueu o olhar, sua expressão cuidadosa relaxou e se transformou em um sorriso genuíno. O que o fez checar seu dedo anelar procurando por algum certificado de casamento.
Nada. Nenhuma aliança.
– Obrigada por não ficar bravo – ela olhou por cima do ombro em direção à porta. – Acho que eu deveria ir. Se cuide... e por favor lembre-se de fazer a consulta de retorno com seu médico. Lesões na cabeça e perda de memória são coisas sérias.
– Sim. Vou fazer isso.
Mentir foi muito fácil, Matthias sabia que tinha mentido muito durante sua vida. E quando acenou de volta, sua mente a analisava como se ela fosse um relatório ou uma correspondência, não uma pessoa – mas isso não era culpa dela.
Ele sentia que era assim que sua mente funcionava.
Ótimo. Nada como acordar de manhã e aprender passo a passo que você é um verdadeiro filho da puta.
Observou a mesa ao lado da cama. O cartão de visitas e a carteira estavam um ao lado do outro.
Matthias estendeu a mão, sem saber qual deles pegar.
No fim, a atração pela carteira parecia maior. Ao abrir o couro dobrado, observou a carteira de motorista que estava na parte transparente. A foto era... bem, não reconhecia aquele rosto, mas a enfermeira da mão boba parecia pensar que era ele. Era assim que se parecia? Um cara de cabelo preto e um rosto bonito, porém frio.
As informações impressas diziam que ele tinha olhos azuis – e naquela foto parecia que ambos funcionavam. A data de nascimento era naquele mesmo mês. E a data de validade já havia passado.
O primeiro nome, Matthias, de fato era como as pessoas o chamavam. O endereço ficava na cidade de Caldwell, Nova York, o que resolvia o problema geográfico... que ele nem percebera ter.
Caldwell, Nova York.
Estava de volta. Pelo menos era isso que seus instintos diziam...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Deixando a urgência de lado, começou a sair da cama devagar. Quando percebeu que estava preso, retirou as sondas intravenosas e o monitor cardíaco. Inclinando-se até os equipamentos ao lado, desligou os alarmes e arrastou-se para o banheiro.
A luz estava apagada, e quando apertou o interruptor... o show começou.
Matthias quase perdeu o fôlego ao ver a própria imagem refletida no espelho da pia. Um de seus olhos exibia um branco leitoso, e seu rosto estava esculpido com as linhas indeléveis de um passado cheio de dor – além de cicatrizes na testa onde sua lesão ocular aconteceu.
A fotografia na identidade era mesmo dele, principalmente se você adicionar um pouco de cabelo grisalho nas laterais, mas tinha sido tirada antes de...
– Senhor, preciso pedir que volte para a cama, pois está correndo o risco de escorregar e cair. E não deveria ter tirado as...
Ele ignorou a nova enfermeira.
– Estou indo embora. Agora mesmo. As regras do hospital, é, eu sei.
Fechou a porta na cara dela e abriu o chuveiro. Por alguma razão, quando voltou a focar o espelho, pensou em Mels Carmichael. Não foi à toa que a primeira reação dela ao vê-lo fora na linha do oh, meu Deus.
Ele não estava exatamente bonito...
Deus, por que estava pensando daquela maneira? Que importava o que os outros achavam dele?
Com a coordenação melhorando depressa, abriu a porta e olhou para dentro do quarto. A enfermeira não estava mais ali, mas com certeza voltaria trazendo alguém com um crachá de médico – era hora de se mexer rapidamente. Agarrou o cartão que Mels deixara e o guardou na carteira. Então pegou as roupas do armário e se trancou no banheiro.
Dez minutos mais tarde, Matthias estava com os cabelos e o corpo limpos, vestindo camiseta e jaqueta pretas e um jeans folgado.
Ao caminhar para fora do quarto, agarrou uma bengala que assumiu estar lá para ele.
O objeto parecia natural em sua mão e fez seus passos ficarem muito mais rápidos. Como se estivesse acostumado a usá-la.
Dirigindo-se para os elevadores, não pediu autorização para ninguém, não assinou nenhuma linha tracejada. O departamento de cobrança encontraria o homem que morava no endereço que aparecia na carteira de motorista.
E talvez ele também encontrasse esse homem.
O grito de Adrian acordou Jim e o fez saltar da cama, aterrissando em uma posição de luta. Com uma adaga de cristal em uma das mãos e uma pistola semiautomática na outra, estava pronto para lutar, fosse na arena dos humanos ou na de Devina. O Cachorro, que não era bobo, estava se protegendo debaixo da cama.
– Estou bem – disse Adrian, com a convicção de alguém que estava sangrando por uma veia.
Claro, com certeza, pensou Jim, que chegara correndo.
Sob a luz do sol que raiava entre as persianas, o anjo parecia completamente acabado, esparramado ali no chão, com grandes olheiras, cabelo desarrumado, mãos tremendo ao puxar a gola de sua camiseta Hanes. Seus piercings, aquelas argolas de metal que circulavam seus lábios, todo o lado da orelha e marcavam sua sobrancelha, eram as únicas coisas que brilhavam. Tudo o mais parecia sem vida.
Sua luz interior havia se apagado.
Jim estendeu a mão para o cara.
– Hora de levantar.
O outro anjo tomou sua mão, e por um momento os músculos de Jim ficaram tensos ao sentir uma desagradável pontada fluindo por seu braço e ativando seus instintos de um modo ruim. Mas então levantou Ad do chão, e aquilo desapareceu.
– Você já foi encontrar Nigel e os garotos? – perguntou Ad, enquanto andava como se tentasse se livrar da sensação ruim que tivera durante o sono.
– Por que eu faria isso?
– Boa pergunta.
Com essa deixa, Adrian foi até o banheiro e fechou a porta. Depois da descarga, o chuveiro foi ligado, e então foi a vez da pia.
Jim aproximou-se da porta e falou através da madeira fina:
– Você sonhou com o quê?
Quando não obteve resposta, fechou o punho e bateu.
– Adrian. Conte o que foi.
Deus sabia que Devina usava todo tipo de truques para conseguir o que queria. A ideia de que ela poderia invadir a cabeça de Ad pela porta dos fundos soava bem óbvia.
Bateu de novo na porta.
Quando não houve resposta novamente, Jim mandou a privacidade para o inferno e entrou.
Através da cortina de plástico do chuveiro, viu Adrian no chão de novo, desta vez com o piso frio do banheiro sob seu traseiro. Estava encolhido, com os cotovelos contra o peito, o rosto enterrado nas mãos. Não estava chorando, ou praguejando, nem parecia desesperado, mas talvez isso fosse o mais preocupante. O anjo estava apenas sentado debaixo da água quente, seu grande corpo enrolado em si próprio.
Jim abaixou o assento da privada e sentou.
– Converse comigo.
Depois de um momento, o anjo disse com a voz rouca:
– Ela era o Eddie. No meu sonho, ela era o Eddie.
Merda.
– Isso faria qualquer um gritar.
– Ele estava lá também. Foi ele quem me acordou, na verdade. Droga, Jim... ver Eddie de novo foi...
Enquanto a frase sumia, Jim inspecionou a lâmina de sua adaga com um cuidado especial.
– É, eu sei.
– Vou matá-la.
– Só se chegar antes de mim.
Adrian deixou os braços caírem para os lados e seus punhos acertaram a poça de água que se acumulava ao redor de seu corpo. Ele parecia derrotado, mas seria apenas por um momento. Sua raiva retornaria assim que aquele demônio aparecesse por perto e, francamente, a previsível resposta seria um problema: ninguém quer ver o próprio parceiro ficar cego pela raiva, e aquele sentimento não era fácil de controlar.
– Acho que você precisa pedir um novo parceiro para Nigel – Ad disse suavemente. Como se tivesse lido os pensamentos de Jim.
– Não quero outra pessoa.
Mas isso era mentira. Ainda estava aprendendo a lidar com as próprias habilidades e armas – claro, a curva de aprendizado já não era mais tão íngreme quanto nas primeiras rodadas, mas ele ainda estava longe de saber tudo. E Devina não era o tipo de inimigo contra o qual um desempenho mediano fosse aceitável.
Por causa disso, ele precisava de um parceiro sólido lhe dando cobertura.
Honestamente, Eddie era a peça que estava faltando. E fora precisamente por isso que o inimigo o abatera.
Maldita vadia!
– Você conhece mais alguém? – perguntou Jim.
– Tinha outro cara; na verdade, ele ficava acima de mim e de Eddie. Quase no nível de Nigel e Colin. Mas ele teve problemas. A última vez que ouvi falar, ele estava preso no Limbo. Bom, mas era um cara imprevisível. Talvez você fique melhor comigo mesmo, nesse caso.
– Temos que trazer Eddie de volta de alguma maneira...
– Ele era o único que saberia como fazer isso – Adrian soltou um grunhido e ficou de pé, sua figura massiva se erguendo como uma árvore. – Talvez o Colin.
Jim assentiu e voltou a observar sua adaga de cristal. A arma era transparente como um cubo de gelo, forte como aço, leve como uma pena. Fora Eddie quem lhe dera.
Ouviu um barulho de algo caindo no chão molhado e voltou os olhos para o parceiro. Ad deixara cair o sabonete, suas mãos estavam erguidas próximas ao rosto e sua boca parecia tentar praguejar.
– O que foi?
– Ah... merda... – Ad observou as costas das mãos. – Merda, não...
– O quê?
– Estão pretas – o anjo mostrou os braços. – Você não vê? Ela está dentro de mim, Devina está dentro de mim... e está me dominando...
Jim ficou aturdido por um momento, mas sabia que precisava fazer alguma coisa para trazer aquela situação de volta à realidade, e mais que depressa. Deixou a adaga na pia, tirou a cortina de plástico do caminho e agarrou os pulsos de Adrian.
Aquela sensação ruim se apoderou dele de novo, estimulando as terminações nervosas de seus dedos e palmas, como se as tivesse mergulhado em ácido. Concentrou-se na pele de Adrian e imaginou o que diabos tinha acontecido naquele sonho.
Mas a carne estava completamente normal. E pessoas que perdem seus melhores amigos têm motivos de sobra para perder também a razão. Mas não podiam permanecer assim.
– Adrian, meu amigo... – ele deu uma bela sacudida no cara – ei, olhe para mim.
Quando o pobre coitado finalmente olhou, Jim encarou aqueles olhos como se estivesse entrando em sua mente e tomando parte de seu cérebro.
– Você está bem. Não há nada de errado aqui. Ela não está dentro de você, ela não está aqui e...
– Você está errado.
As palavras sombrias fizeram Jim parar de repente. Mas então balançou a cabeça.
– Você é um anjo, Adrian.
– Eu sou?
Com a voz grave, Jim respondeu:
– Digamos que... é bom que você seja.
Após um silêncio tenso, os lábios de Jim começaram a se mover, palavras eram ditas, sílabas sensatas e apaziguadoras cruzavam a distância que os separava. Mas, no fundo de sua mente, ele rezava por quem quer que estivesse ouvindo.
Devina era um parasita, o tipo de coisa que invade as pessoas e as infecta.
Fazia sentido que alguém emocionalmente abalado fosse mais vulnerável.
Porém, a tragédia era que ele não podia ter o inimigo tão perto assim.
Não importava o quanto amasse seu amigo.
CAPÍTULO 8
– O que aconteceu com seu olho?
Mels entrou na cozinha de sua mãe, não respondeu a pergunta e foi direto para a garrafa de café. O fato de o objeto estar do outro lado, e por isso permitir que ela tomasse o café de costas para a mãe, era um bônus além da cafeína.
Maldita maquiagem. Elas supostamente serviam para cobrir aquilo que você queria esconder. Como pés de galinha, olheiras... e hematomas de acidentes de carro sobre os quais você preferia que sua família não ficasse sabendo.
– Mels?
Não precisava se virar para ver o que estava atrás dela: sua mãe, magrinha e baixinha, aparentando ser mais jovem do que era, estaria sentada do outro lado da mesa, com o Correio de Caldwell aberto ao lado de uma tigela de cereal rico em fibras e uma xícara de café. Os cabelos lisos pretos com mechas grisalhas estariam penteados num corte bem aparado, e as roupas seriam casuais, mas parecendo perfeitamente passadas a ferro.
Sua mãe era uma dessas mulheres pequeninas que sempre pareciam bem arrumadas, mesmo sem maquiagem. Como se tivesse nascido com uma lata de spray para cabelo debaixo de um braço e uma escova debaixo do outro.
Mas ela era frágil. Como um bibelô gentil e bondoso.
Era uma porcelana delicada, em contraste com o touro que fora seu pai.
Sabendo muito bem que a pergunta ainda estava no ar, Mels serviu-se de café. Tomou um gole. Manteve-se ocupada passando uma toalha de papel em um balcão que já estava limpo e seco.
– Ah, não foi nada. Escorreguei e caí. Bati a cabeça na torneira do chuveiro. Foi tão estúpido!
Houve um momento de silêncio.
– Você chegou tarde ontem à noite.
– Fiquei na casa de uma amiga.
– Você não tinha falado que ia num bar?
– Fui pra casa dela depois do bar.
– Ah. Entendi.
Mels ficou observando a janela em cima da pia. Com sorte, sua tia ligaria a qualquer momento, como geralmente fazia, e ela não teria que inventar mais uma mentira para explicar por que voltara de táxi do trabalho.
Os sons de goles de café e cereal sendo mastigado preencheram a cozinha, e Mels tentou pensar em algum assunto minimamente normal para conversarem. O clima. Esportes – não, sua mãe não tinha interesse em atividades organizadas que envolviam campos, bolas ou raquetes de qualquer tipo. Livros seria uma boa opção – porém Mels não lia nada além de estatísticas criminais, e sua mãe ainda estava no trem do Clube do Livro da Oprah, mesmo esse trem já não tendo motor ou trilhos.
Deus... momentos como esse a faziam sentir tanta falta do pai que até doía. Os dois nunca ficavam constrangidos um com o outro. Nunca. Conversavam sobre a cidade, ou sobre seu trabalho como policial, ou sobre a escola... ou simplesmente ficavam em silêncio – e, de um jeito ou de outro, nunca havia problema. Mas com sua mãe?
– Então – Mels tomou outro gole de café –, o que vai fazer de bom hoje?
Recebeu uma resposta, mas não a ouviu porque seu desejo de sair gritava alto demais.
Mels terminou o resto de seu café preto – sua mãe tomava com leite e açúcar –, colocou a xícara na lava-louça e cruzou os braços.
– Então, vejo você à noite – ela disse. – Não vou chegar tarde. Prometo.
Os olhos de sua mãe se levantaram para encontrar os dela. A tigela cheia de cereal integral era rosa e tinha pequenas flores brancas em volta, a toalha de mesa tinha flores amarelas e o papel de parede tinha flores maiores azuis.
Flores por toda a parte.
– Você está bem? – perguntou a mãe. – Precisa ir ao médico?
– É só um machucado. Nada de mais – olhou para a sala de jantar. Do outro lado da mesa de mogno, depois da cortina branca, um Chevrolet amarelo estacionou. – O táxi chegou. Deixei meu carro no bar porque bebi uma ou duas taças de vinho.
– Ah, você podia pegar o meu carro para ir trabalhar.
– Você vai precisar dele – ela olhou para o calendário pendurado na parede, rezando para que algo estivesse marcado ali. – Hoje você tem jogo de cartas às quatro.
– Eu podia ir de carona. Ainda posso, se você quiser...
– Não, é melhor assim. Posso pegar meu carro e dirigir de volta pra casa.
Droga. Acabara de criar um problema. A única maneira de Fifi ir para qualquer lugar seria na traseira de um caminhão de guincho – a pobrezinha fora levada para um mecânico.
– Ah. Tá bom.
Quando sua mãe caiu no silêncio, Mels teve vontade de pedir desculpas, mas era difícil demais colocar aquele complicado desculpe em palavras. Inferno, talvez ela precisasse simplesmente se mudar dali. Ficar constantemente exposta àquela bondade e autossacrifício, em vez de ser uma alegria, era um peso muito grande para carregar, pois nunca tinha um fim. Sempre havia uma sugestão, uma oferta, um quer-que-eu-isso-ou-aquilo...
– Preciso ir. Mas agradeço.
– Tá bom.
– Vejo você à noite.
Mels beijou o rosto macio que sua mãe ofereceu e saiu apressada pela porta da frente. Lá fora o ar estava fresco e agradável e o sol brilhava, prometendo calor na hora do almoço.
Entrando no banco de trás do táxi, ela disse:
– Escritório do Correio de Caldwell, na rua Trade.
– Pode deixar.
A caminho do centro da cidade, as molas do banco do táxi pareciam feitas de aço, e o estofado não era muito diferente de cimento, mas ela nem se importou com a viagem desconfortável. Sua mente estava caótica demais para pensar em seu traseiro sendo castigado por um banco duro.
Aquele homem da noite anterior ainda estava em seus pensamentos – podia quase senti-lo ao seu lado.
Fora assim durante toda a noite.
Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos e relembrou o acidente, checando duas, três vezes para ter certeza de que não poderia ter feito nada para evitá-lo. Então ficou pensando em outras coisas, como a maneira como o homem ficara deitado, totalmente imóvel, naquela cama de hospital.
Mesmo machucado, em alguns lugares com gravidade, ele ainda parecia um... predador.
Um poderoso animal, ferido, mas...
Certo, agora ela realmente estava perdendo a cabeça. E talvez devesse olhar mais de perto para sua vida amorosa – que era completamente vazia...
Infelizmente, Mels não conseguia parar de pensar na estranha atração que aquele homem exercera. Que desagradável, ela deveria é estar preocupada com a saúde e o bem-estar dele, além da possibilidade de querer processá-la e tirar dela o pouco que tinha.
Em vez disso, ela ficou pensando no som daquela voz rouca, e na maneira como ele a observara, como se qualquer detalhe dela fosse uma fonte de fascinação e importância...
Ele fora ferido há algum tempo, ela pensou. As cicatrizes ao lado do olho tinham se curado com o tempo.
O que será que acontecera com ele? Como era seu nome...?
Enquanto ela vagava pela terra das perguntas sem resposta, o motorista do táxi fez seu trabalho discretamente. Dezesseis dólares, dezoito minutos e um traseiro dolorido depois, ela chegou à redação.
O local já estava barulhento, com pessoas falando e andando apressadas, e aquele caos acalmou seus nervos – da mesma maneira que uma aula de ioga a deixava nervosa.
Ela sentou em sua mesa, checou o correio de voz, entrou em seu e-mail e pegou a xícara que vinha usando desde que herdou aquele lugar, há pouco mais de um ano e meio. Caminhou até a cozinha coletiva e encontrou seis opções de potes de café: nenhum deles era descafeinado; três eram da boa e velha marca Maxwell House; e os outros eram aquele horror com essência de nozes, um daqueles macchiato-sei-lá-o-quê.
Dane-se esse último. Se quisesse uma droga de um sorvete de caramelo, ela pediria um no almoço. Aquela coisa não devia ser colocada em uma xícara de café.
Enquanto servia seu café preto e puro, pensou na verdadeira dona da xícara, Beth Randall, a jornalista que sentara naquele cubículo por... bem, devia ter sido mais de dois anos. Em uma certa tarde, a mulher partira e nunca mais voltara. Mels lamentava o desaparecimento – não que conhecesse a colega muito bem – e sentia-se mal porque foram nessas as circunstâncias que ela finalmente conseguira um lugar só para ela.
Mantivera a xícara por nenhuma razão especial. Mas agora, enquanto tomava um gole, percebeu que a guardara por ainda ter esperança de que a mulher retornasse. Ou que pelo menos estivesse bem.
Parecia que Mels estava rodeada de pessoas desaparecidas.
Ou pelo menos foi assim que se sentiu naquela manhã. Principalmente quando pensou sobre o homem da noite anterior – aquele que nunca veria novamente, mas que não conseguia tirar da cabeça.
Aquela não era sua casa.
Quando o táxi estacionou em frente a um rancho em uma vizinhança modesta, Matthias sabia que não morava sob aquele teto. Nunca tinha morado. Não iria morar.
– Você vai descer do carro ou não?
Matthias encontrou os olhos do motorista através do retrovisor.
– Me dê um minuto.
– O taxímetro está correndo.
Concordando, ele desceu e usou a bengala para andar no passeio que levava à frente da casa, balançando a perna machucada em um longo arco para não ter de dobrar os joelhos. Não havia nada de lar, doce lar: a trepadeira invadia as janelas. O gramado não estava aparado. As calhas estavam cheias de mato que subia alto em busca do sol.
A porta da frente estava trancada, então ele fez uma viseira com as mãos para tentar olhar pela janela. Viu camadas de poeira. Móveis que não combinavam. Cortinas envelhecidas.
Havia uma caixa de correio barata pregada na parede. Ele abriu a tampa. Propagandas. Um talão de cupons de desconto endereçado ao “ocupante”. Nada de contas, solicitações de cartão de crédito, cartas. A única outra correspondência era uma revista da AARP1 endereçada ao mesmo nome que havia na sua carteira de motorista.
Matthias enrolou a revista, guardou no bolso da jaqueta e voltou para o táxi. Aquela não era sua residência – e mais ninguém morava ali. A pessoa que vivia ali devia ter morrido, digamos, há umas quatro ou seis semanas – tempo suficiente para a família cuidar das contas, mas não para esvaziar a casa e colocá-la à venda.
Entrando no táxi, fixou o olhar à frente.
– Para onde?
Com um grunhido, Matthias se ajeitou e puxou a carteira. Pegou o cartão de Mels Carmichael e foi atingido por uma profunda convicção de que não deveria envolver aquela mulher.
Era perigoso demais.
– E então, chefe?
Mas, droga, ele tinha de começar por algum lugar. E seu cérebro estava como uma conexão de internet fora do ar.
– Rua Trade – murmurou.
Enquanto dirigiam-se para o centro da cidade em meio ao trânsito pesado, ele observou os outros carros, onde pessoas bebiam café, conversavam com outros passageiros, paravam nos sinais vermelhos, avançavam nos verdes. Um mundo que parecia muito distante dele. O tipo de vida em que a pessoa trabalha das nove às sete todo dia, até morrer aos setenta e poucos anos. Essa não era a maneira como Matthias vivia.
Então, como ele vivia?, perguntou ao seu cérebro idiota. Como diabos ele vivia?
Tudo o que recebeu de resposta foi uma dor de cabeça.
Quando o edifício do Correio de Caldwell surgiu, Matthias pegou uma das dez notas de vinte que tinha na carteira.
– Guarde o troco.
O motorista parecia mais do que feliz em se livrar dele.
Usando a porta da frente como apoio, Matthias emergiu do carro sob a luz do sol, tomando cuidado para não corresponder a nenhum dos olhares curiosos. E havia muitos deles. Por algum motivo, ele tinha a tendência de atrair atenção, geralmente das mulheres – se bem que ficar atraída por alguém machucado era coisa normal de mulher, e ele estava cheio de cicatrizes no rosto.
Uau, que romântico.
Por fim, sentou-se na cadeira de plástico duro do ponto de ônibus do outro lado da rua, respirando a fumaça dos fumantes impacientes que esperavam o transporte público. A espera não o incomodava. Era como se ele estivesse acostumado a espreitar. Para passar o tempo, inventou um jogo: memorizava os rostos das pessoas que entravam e saíam dos escritórios do Correio de Caldwell.
Matthias era extremamente bom nisso. Só era preciso uma olhada para adicionar a pessoa ao seu banco de dados interno.
Pelo menos sua memória de curto prazo estava funcionando...
As portas duplas se abriram e lá estava ela.
Matthias se ajeitou na cadeira quando a luz do sol atingiu os cabelos de Mels e fez brilhar vários tons de castanho. Mels Carmichael, repórter associada, estava junto de um cara bem arrumado que precisava puxar a calça cáqui para cima antes de pisar nos degraus. Os dois pareciam estar discutindo amigavelmente sobre alguma coisa e, quando Mels sorriu, parecia que ela vencera o debate.
Como se soubesse que estava sendo observada, Mels olhou para o outro lado da rua e parou de repente. Ela tocou a manga do casaco de seu colega e disse algo, então eles se separaram e ela começou a se aproximar de Matthias, andando no meio do trânsito.
Matthias cravou a bengala no chão, levantou-se e ajeitou as roupas. Não tinha ideia de por que queria se arrumar para ela, mas queria – mas não dava para parecer pior. Vestia roupas que não eram dele, ainda cheirava a quarto de hospital e lavara o cabelo com xampu antibacteriano, pois era o único disponível.
Naturalmente, a primeira coisa para a qual ela olhou foi seu olho ruim, aquela coisa feia e arruinada. Como não poderia?
– Oi – ela disse.
Mels estava linda com suas roupas normais do dia a dia: com aquela calça, a blusa de lã e o lenço bege que usava ao redor do pescoço, para Matthias ela poderia muito bem estar em uma passarela.
E continuava sem aliança.
Isso é bom, ele pensou, sem uma razão especial.
Desviando o olhar para a direita, esperando que assim seu defeito fosse menos aparente, ele respondeu:
– Oi.
Certo. Hum. E agora?
– Não estou te seguindo, eu juro – mentiroso. – Eu teria ligado, mas não tenho telefone.
– Não tem problema. Você precisa de alguma coisa? A polícia me ligou hoje de manhã, e acho que eles ainda querem falar com você.
– Pois é – deixou esse assunto do jeito que estava. – Escuta, eu...
O fato de que estava interrompendo uma frase no meio parecia pouco natural, mas seu cérebro simplesmente não conseguia produzir nada.
– Vamos sentar – ela disse, mostrando os assentos. – Não acredito que eles deixaram você sair.
Naquele momento, um ônibus chegou e parou, bloqueando a luz do sol e soltando uma fumaça que o fez tossir. Os dois sentaram e ficaram em silêncio enquanto esperavam os passageiros embarcarem.
O ônibus partiu e o sol reapareceu, banhando-a com sua luz amarela.
Por alguma razão estúpida, os olhos dele começaram a piscar com força.
– O que posso fazer por você? – ela perguntou suavemente. – Está sentindo dor?
Sim. Mas não era dor física. E piorava sempre que olhava para ela.
– Como você sabe que eu preciso de ajuda?
– Imagino que sua memória não tenha voltado magicamente.
– Não, não voltou. Mas isso não é culpa sua.
– Bom, eu te atropelei. Então estou te devendo uma.
Ele gesticulou mostrando a perna ruim.
– Eu já estava assim antes.
– Consegue lembrar de alguma coisa? Quer dizer, anterior ao acidente? – quando ele negou com a cabeça, ela murmurou: – Muitos militares também voltaram na sua condição.
Ah... ela queria dizer o Exército, Marinha, Aeronáutica. E parte disso parecia ser correto. O governo... sim, Matthias tinha alguma ligação com o Departamento de Defesa, ou com a segurança nacional... ou...
Mas não era um soldado abatido. Porque nunca fora um herói.
– Eles encontraram minha carteira – ele murmurou.
– Oh, isso é ótimo.
Por alguma razão, Matthias entregou o objeto para ela.
Quando Mels abriu e olhou a carteira de motorista, ela assentiu.
– Esse é você.
Observando o emblema do Correio de Caldwell sobre a porta da qual ela saíra, ele disse:
– Veja bem, tudo o que estou falando fica entre nós dois, certo?
– É claro.
– Gostaria de ter outra opção. Gostaria... não quero te colocar em encrenca.
– Você ainda não me pediu pra fazer nada – ela o observou. – Em que está pensando?
– Consegue descobrir quem é esse cara? – apontou para a carteira de motorista. – Porque não sou eu.
N.T.: AARP é uma ONG norte-americana destinada a defender os interesses dos cidadãos com mais de cinquenta anos.
CAPÍTULO 9
Durante o silêncio que se seguiu, tudo o que Mels podia pensar era no fato de que tivera plena certeza de que nunca mais veria aquele homem.
Pelo jeito, o destino tinha outros planos.
O homem de roupas pretas sentado ao seu lado era grande, supermalhado e dava a impressão de ser forte em todos os sentidos, com seus olhos estreitos e o queixo quadrado... mas parecia envergonhado de suas cicatrizes e do defeito na perna.
Olhando mais uma vez a carteira de motorista, ela franziu a testa. A foto parecia verdadeira, os hologramas estavam onde deveriam estar, altura, peso e data de nascimento estavam corretos, o endereço ficava ali mesmo em Caldwell – e não muito longe da casa de sua mãe, na verdade.
Ele provavelmente estava voltando para casa no momento do atropelamento. Assim como ela.
Observando agora o homem em vez da imagem, ela teve a sensação de que, para procurá-la, ele fizera um grande esforço e engolira o orgulho. Ele não parecia o tipo de pessoa que gostava de depender dos outros, mas a vida claramente não lhe deixara outra escolha.
Sem memória. Poucos recursos.
E com aqueles olhos assombrados e um corpo remendado, ele tinha de ser um militar, voltara da guerra apenas fisicamente, mas não em espírito.
Naturalmente, a jornalista dentro dela gostava de um bom mistério – e o fato de ter um pouco de culpa em relação à sua amnésia era outra razão para ela mergulhar de cabeça nisso. Mas Mels não era idiota. Não queria se envolver em algum tipo de drama, principalmente se ele fosse um maluco ou paranoico.
A foto era dele mesmo, sem dúvida.
– Odeio colocar você nessa posição – suas mãos grandes acariciaram a bengala que equilibrava nas coxas. – Mas não tenho mais ninguém. E a casa nesse endereço não é minha. Não sei onde moro, mas com certeza não é naquela casa. Eu chequei a correspondência quando fui até lá – ele recostou-se para o lado e retirou uma revista dobrada do bolso da jaqueta. – Encontrei isto. O nome está certo, mas eu não tenho mais de cinquenta e cinco anos. Por que isto estaria na minha caixa de correio, endereçado a mim?
Ela desdobrou a revista e observou o logotipo da AARP e a foto de uma graciosa modelo da terceira idade vestindo roupas de ginástica. O nome acima do endereço era Matthias Hault, e o número e rua eram os mesmos da carteira de motorista... talvez ele morasse com o pai e os dois tivessem o mesmo nome.
Mas um pai não teria ficado feliz em ver o filho aparecer na porta de casa?
– Eu poderia contratar um detetive particular – ele disse –, mas isso custa dinheiro, e nesse momento tenho apenas duzentos dólares no bolso... bom, cento e oitenta, depois que paguei o taxista.
– Tem certeza de que ninguém está tentando te encontrar? – quando ele permaneceu em silêncio, ela pensou que Matthias estava vasculhando sua memória, mas ele encontrou apenas o vazio, por culpa dela. – O que os médicos disseram? Como eu disse, honestamente, estou chocada de você estar de pé andando por aí.
– Então, você vai me ajudar? – ele respondeu.
Aquele era um momento de limite que precisava ser considerado com respeito. Mas ela decidiu cruzar a linha.
– Se eu ajudar, você vai ter que falar comigo. O que os médicos disseram?
Seu olho bom procurou ao redor, como se estivesse pensando em uma resposta.
– Fui embora sem avisar.
– O quê?! Por quê?
– Não me senti seguro. E não posso explicar mais do que isso. É tudo o que sei.
Estresse pós-traumático, ela pensou. Só podia ser.
Talvez se Mels confirmasse a identidade dele, sua mente poderia descansar e isso ajudaria na recuperação.
– Certo, vou fazer o possível – ela disse.
Matthias abaixou a cabeça, como se aceitar ajuda de outra pessoa fosse um tipo de derrota.
– Obrigado. Tudo o que preciso é de uma busca com esse nome. Um lugar para começar.
– Posso voltar pro escritório e fazer isso na minha mesa agora mesmo – ela apontou para o lado direito. – Tem um restaurante ao lado do rio, a uns dois quarteirões daqui. Você pode comer algo e eu te encontro lá assim que puder. Ah... claro, se você conseguir andar...
– Eu consigo chegar lá – ele disse, rangendo os dentes.
Ou morreria tentando, ela pensou, ao observar seu queixo contraído.
Que, por sinal, lembrava muito o ator Jon Hamm.
O homem levantou-se com a ajuda da bengala.
– Então eu te encontro lá. Não precisa se apressar.
Quando ele olhou para a rua, a luz do sol brilhou em seus olhos; tanto naquele que obviamente ainda enxergava como no que estava cego.
– Quer ficar com meus óculos escuros? – ela perguntou. – É um Ray-Ban, mais unissex que isso é impossível. E também não precisa de receita.
Ela não esperou ele dar uma de fortão e recusar. Pegou a caixa e a estendeu na sua frente.
Matthias Hault ficou observando a sua oferta por um longo tempo, como se o simples gesto fosse algo a que não estava acostumado.
– Aceite – ela disse suavemente.
Sua mão tremeu um pouco ao aceitar a caixa, e ele não a olhou mais nos olhos.
– Não vou riscá-los. E vou devolver no restaurante.
– Sem pressa.
Quando ele colocou os óculos escuros, seu rosto se transformou em algo... inegavelmente perigoso.
E definitivamente sensual.
Um calor percorreu o corpo de Mels, atingindo-a num lugar que há muito tempo não se acendia.
– Melhor? – ele disse.
– Eu acho que sim.
Ele ainda se recusava a olhar para ela. Seus ombros e costas estavam retos, os lábios tensos. Um homem tão orgulhoso, preso daquele jeito em uma posição de fraqueza...
Ela sempre lembraria daquele momento, pensou, sem qualquer motivo. Sim, este momento agora, com o sol brilhando nas feições endurecidas de seu rosto bonito.
Aquilo era um momento decisivo, concluiu. Essa intersecção aparentemente aleatória entre os dois mudaria as coisas para sempre.
– Eu queria te perguntar uma coisa – ele disse.
– O quê? – ela sussurrou, imersa em um momento que não podia compreender totalmente.
– Onde aconteceu o acidente?
Sacudindo a si mesma, ela puxou seu cérebro de volta à realidade.
– Foi, ah, bem ao lado do Cemitério Pine Grove. Perto de onde moro. Não muito longe do bairro onde fica sua casa.
– Um cemitério.
– Isso mesmo.
Ele assentiu e, quando começou a caminhar em direção ao restaurante, ela podia jurar que o ouviu dizer “Por que isso não me surpreende?”.
O Riverside Diner era um restaurante típico de cidade pequena americana. Cheio de estofados de couro sintético, cortinas com estampa xadrez e garçonetes mal-humoradas. A comida era gordurosa, mas de uma maneira gloriosa, e quando Matthias cortou seus ovos mexidos com o garfo, seu estômago roncou como se fizesse anos que não comia.
Já era tarde para o café da manhã, mas não existe acompanhamento melhor para uma xícara de café do que ovos e bacon.
Enquanto comia, os óculos escuros que recebera da repórter eram uma benção, pois lhe permitiam ficar de olho nas pessoas que entravam e saíam, nas garçonetes indo e vindo, e nos fregueses que entravam no banheiro e em quanto tempo ficavam lá.
Mas vigilância não era o motivo de Mels ter lhe emprestado os óculos.
Droga. Por que aquela mulher fazia ele desejar não ter mais seus defeitos?
– Mais café? – perguntou a garçonete.
– Sim, por favor – ele ofereceu a xícara e ela despejou o café fumegante. – E mais um prato de tudo isto também.
Ela sorriu como se estivesse calculando uma gorjeta maior.
– Você come bem.
Quando não se sabe quando ou onde vai ser a próxima refeição, é melhor fazer valer a pena, ele pensou consigo mesmo.
A repórter apareceu pouco depois de Matthias terminar o segundo café da manhã. Ela olhou para a esquerda e depois para a direita e o encontrou sentado nos fundos, ao lado da saída de emergência. Então começou a percorrer o longo caminho de mesas vazias.
Quando sentou à sua frente, seu rosto estava vermelho, como se tivesse se apressado.
– Devia estar lotado quando você chegou – ela disse.
– Estava – mentira: ele queria ficar nos fundos para o caso de precisar sair às pressas.
A garçonete voltou com o pote de café.
– Olá... gostaria de café?
– Sim, por favor – Mels tirou a blusa. – E o meu de sempre.
– Almoço ou café da manhã?
– Almoço.
– Já está saindo.
– Você almoça sempre aqui? – ele perguntou, imaginando por que se importava.
– Duas, três vezes por semana, desde que comecei a trabalhar no jornal.
– E quando começou?
– Um milhão de anos atrás.
– Engraçado, você não parece um dinossauro.
Sorrindo um pouco, ela tomou um gole do café e se preparou para a conversa. Seus lábios ficaram tensos e seus olhos se estreitaram.
Ela ficava sexy daquele jeito. A intensidade. O foco. Naquele momento, ela o fazia se lembrar de si mesmo...
E isso era um milagre, se você pensar que Matthias tinha a mesma quantidade de informação sobre os dois... sendo ela uma estranha.
– Diga o que descobriu – ele exigiu.
– Você está morto.
– E eu que achei que era só uma sensação.
Durante a pausa que se seguiu, ele podia sentir que Mels tentava entendê-lo.
– Você não está surpreso – ela disse.
Ele observou sua xícara meio vazia e balançou a cabeça.
– Eu sabia que havia algo de errado naquela casa.
– O dono verdadeiro desse nome tinha oitenta e sete anos e morreu de insuficiência cardíaca cinco semanas atrás.
– Em se tratando de identidades falsas, essa não é uma das melhores, não é?
– Você fala como se conhecesse bem o assunto – quando ele não comentou nada, ela se inclinou para frente. – Por acaso você faz parte do programa governamental de proteção a testemunhas?
Não, ele estava do outro lado da lei... seja lá o que isso significasse.
– Se for o caso – ele disse –, não estão cuidando muito bem de mim.
– Tenho uma ideia. Vamos voltar ao cemitério, no local do acidente. Vamos ver se você se lembra de alguma coisa.
– Não posso pedir pra você fazer isso.
– Não pediu. Estou oferecendo... – ela parou. Franziu a testa. Coçou a sobrancelha. – Meu Deus, espero não estar me transformando na minha mãe.
– Ela gosta de cemitérios?
– Não, é uma longa história. Enfim, peguei emprestado o carro do meu amigo. Posso te levar até lá depois que terminarmos de comer.
– Não. Mas eu agradeço.
– Por que você se deu ao trabalho de perguntar sobre o nome se não vai continuar investigando?
– Posso pegar um táxi, foi o que quis dizer.
– Ah.
A garçonete voltou com o “de sempre”, que era um sanduíche de frango em pão integral e o que parecia ser tomates extras, além de batatas fritas em vez de batatas chips.
– Acho que eu deveria levar você – ela disse, pegando o ketchup.
Matthias observou quando dois policiais entraram pela porta da frente e sentaram no balcão.
– Posso ser sincero com você?
– Por favor.
Ele abaixou o queixo e a olhou por cima dos óculos escuros.
– Não quero que fique sozinha comigo. É muito perigoso.
Ela parou com uma batata frita a meio caminho da boca.
– Sem ofensa, mas, considerando sua condição física, eu poderia quebrar suas duas pernas e te deixar inconsciente em questão de segundos – as sobrancelhas dele foram erguidas ao máximo, e ela assentiu. – Sou faixa preta, tenho permissão para porte de armas e nunca vou a lugar algum sem uma boa faca ou sem minha arma.
Ela deu um sorriso rápido, pegou o sanduíche de frango e deu uma mordida.
– Então, o que me diz?
CAPÍTULO 10
Felizmente, aquilo não era um encontro romântico, pensou Mels quando o silêncio imperou. Pois dizer a um homem que você é capaz de acabar com ele não seria um bom começo, meio ou fim para um almoço a dois.
Aquilo era trabalho – é claro que a história daquele homem, seja lá qual fosse, não terminaria nos jornais, mas era algo a ser investigado, e Deus sabia que ela nunca dispensava uma oportunidade dessas.
– É um belo currículo – ele disse depois de um bom tempo.
– Meu pai se certificou de que eu seria capaz de me defender. Ele era um policial à moda antiga.
– O que isso quer dizer?
Ela limpou a boca com um guardanapo, tomou outro gole de café e desejou ter pedido uma Coca.
– Digamos que hoje em dia, com câmeras nos carros de polícia, reuniões da corregedoria, e pastas cheias de protocolos de procedimentos, ele não teria durado nem um mês antes de ser suspenso. Mas no passado ele fazia seu trabalho, e as pessoas estavam mais seguras nesta cidade graças a ele. Ele dava conta de tudo.
– Um cara durão?
– Um cara justo.
– E você aprova esses métodos?
Ela deu de ombros.
– Ele tinha minha aprovação. Por outro lado, sua maneira de agir... digamos apenas que era outra época. Antes de testes de DNA e internet.
– Parece meu tipo de pessoa.
Mels teve que sorrir ao ouvir aquilo. Mas então uma tristeza pela perda do pai a fez virar o rosto e observar o rio e as gaivotas que seguiam a lenta correnteza.
– Ele nunca perdia o controle ou ficava bravo. Mas às vezes os criminosos só entendem as coisas quando elas são explicadas na língua deles.
– Você tem irmãos ou irmãs?
– Apenas eu. E meu pai não se importava por eu ser uma garota. Ele me tratava como trataria um filho: me treinou, ensinou autodefesa, insistiu que eu aprendesse a disparar armas de fogo – ela riu. – Minha mãe quase tinha ataques do coração por causa disso. Até hoje ela é assim.
– Ele já se aposentou?
– Faleceu – ela voltou ao sanduíche. – Foi morto em serviço.
Houve uma pausa. Então Matthias disse suavemente:
– Sinto muito.
Mels não ousou levantar os olhos, pois falara demais e, com aqueles óculos escuros, não sabia onde estavam os olhos dele – embora não fosse necessário ser um gênio para saber que estavam focados nela.
– Obrigada. Mas chega de falar de mim. E chega dessa porcaria de é-perigoso-demais. Tenho cuidado de mim mesma faz tempo, e sou muito boa nisso. Não teria oferecido ajuda se não achasse que poderia lidar com você.
Ele soltou uma risada súbita.
– Você é muito segura de si mesma.
– Sei quais são meus limites.
– Mas você não me conhece. E eu também não.
– E nós queremos consertar isso, não é?
O homem recostou-se.
– Sim.
Quando terminou o sanduíche – deixando o resto das batatas de lado – ela pagou a conta e levantou-se.
– Então, vamos lá.
Quando ele pousou os olhos nela, aquele calor a invadiu novamente, uma atração sem sentido passando por seu corpo.
– Prometa uma coisa – ele disse em voz baixa.
– Depende do que for.
– Você não vai correr nenhum risco.
– Feito.
Matthias assentiu, pegou a bengala, deslizou as pernas para fora da cadeira e esperou por um momento, como se estivesse preparando o corpo para um massacre. O primeiro instinto de Mels foi colocar um braço sob o ombro dele para ajudar, mas sabia que ele não gostaria disso. E ficar encarando sua fragilidade também não era respeitoso, então ela se virou e fingiu checar o cardápio iluminado que ficava sobre o balcão.
Um grunhido denunciou que ele se levantara, então Mels seguiu em frente até a porta. Enquanto passavam pelos outros fregueses, ela sentiu os olhos de todos pairando sobre o homem que estava atrás dela.
Deus, ela imaginava como seria a vida daquele jeito, atraindo constantemente os olhares curiosos. Se bem que as mulheres provavelmente estavam vendo apenas aquilo que ela própria enxergava. Que não tinha nada a ver com defeitos.
Muito pelo contrário.
O carro de Tony, que estava no estacionamento, parecia já ter visto dias melhores, não era como a Fifi, mantida com carinho. Aquele carro parecia mais uma lata de lixo ambulante.
– Não repara na sujeira – ela disse ao destrancar o veículo.
Ao entrar, Mels tirou do banco do passageiro as várias revistas Newsweek e The New Republics. Como era de se imaginar, Matthias levou um tempo para entrar no carro e, quando colocou os joelhos para dentro, suas botas pisaram em lixo, amassando embalagens vazias de Taco Bells, McDonald’s, Burger King e Wendy’s.
– Seu amigo gosta de fast-food – ele comentou.
– E come rápido também.
Ela acelerou e entrou no trânsito, espremendo o sedã entre um táxi e uma caminhonete.
– Cinto de segurança – disse Matthias.
Mels olhou para ele.
– Pois é. Você está usando um.
– Gosta de viver perigosamente?
– Cintos de segurança nem sempre salvam vidas.
– Então todas essas pessoas ao redor estão erradas?
– Elas podem fazer o que quiserem, e eu também.
– E as multas?
– Nunca fui parada no trânsito. E se acontecer, simplesmente pago a multa.
– Quando. Você quer dizer “quando acontecer”.
O Cemitério Pine Grove ficava a uns dez minutos – mas não do jeito que Mels dirigia. Em nenhum momento ela foi imprudente, apenas eficiente, escolhendo rotas que evitavam semáforos e as obras ao redor do parque.
– É ali, à direita – Mels se inclinou sobre o volante e olhou através do para-brisa. – Na verdade, é um lugar lindo. Há algo tão pacífico em cemitérios...
Matthias não parecia impressionado.
– Toda essa coisa de descanso eterno é uma ilusão.
– Você não acredita no Céu?
– Acredito no Inferno, isso sim.
Não houve tempo para ela responder quando chegaram na entrada.
– O acidente aconteceu por aqui... um pouco depois do portão principal. Bem... um pouco mais para frente... aqui.
Enquanto ela estacionava o carro de Tony e desligava o motor, Matthias já estava saindo. Andando rápido com sua bengala, ele parou no meio da rua, em cima das marcas onde ele havia aterrissado. Olhou para os dois lados e seguiu até as marcas dos pneus da Fifi e a árvore atingida... e finalmente chegou no portão de três metros de altura que cercava o cemitério.
Aquilo é que era estilo gótico. Feitas com barras de ferro com pontas em forma de flor de lis, as fronteiras do Pine Grove eram imponentes... e perigosas, se alguém tentasse escalá-las.
E veja só, enquanto se aproximava, Mels viu uma mancha de sangue no topo de uma das pontas – e havia também um pedaço de roupa. Como se alguém tivesse tentado pular o cercado.
– Eu pego – ela disse, pulando e agarrando o tecido. – Aqui.
Matthias segurou o pano.
– Tecido impermeável. Aposto que aquele sangue seco é meu. Tenho um ferimento recente na perna.
Mas por que ele não teria simplesmente passado pelo portão da frente? Bem, à noite ele provavelmente ficava trancado.
– Podemos entrar? – ele perguntou.
– Agora mesmo.
De volta ao carro, ela passou pela entrada e virou à esquerda, indo em direção ao ponto onde encontraram o tecido. Chegando lá, ela parou novamente, saiu e esperou que a memória dele se manifestasse. Se é que isso aconteceria.
Enquanto ele olhava ao redor, Mels ficou um pouco distante, ouvindo a brisa que soprava entre os galhos dos pinheiros e sentindo o sol brilhar em seus ombros... e tentou não pensar no lugar onde estava seu pai...
Logo atrás, a uns cem metros, no meio do cemitério, entre a família Thomas e os três irmãos Krensky.
Pelo jeito, ela se lembrava muito bem.
A última vez em que estivera ali fora no dia seguinte ao enterro do pai. Mels estivera trabalhando em Nova York por quase cinco anos. Ele estava tão orgulhoso de sua filha na cidade grande, fazendo aquilo que tinha estudado – o jornalismo...
– É por aqui – Matthias disse, distraído.
Enquanto ele caminhava pelo gramado desigual, Mels largou seu passado para se concentrar no presente dele, e juntos andaram decididamente, mesmo com os passos de Matthias se mostrando instáveis e precisando do suporte da bengala. De vez em quando ele parava, como se estivesse calibrando a direção, e Mels não o interrompia com perguntas.
A construção onde finalmente chegaram combinava com as lápides e sepulturas. Sua fachada de pedra ecoava a arquitetura usada na entrada principal e nos balaústres que se intercalavam aos portões de ferro.
– Eu estava nu – ele disse. – Vim até aqui, entrei pela janela e peguei...
Ele empurrou a porta, que rangeu enquanto se abria. Lá dentro, caminhou até a parede de trás e comparou o pedaço de tecido rasgado com um macacão impermeável que estava pendurado.
Nu?, ela pensou.
– Onde estavam suas roupas?
Ele deu de ombros.
– Só sei que estive aqui na noite passada.
Matthias voltou para fora e continuou pelo caminho que estavam fazendo, mas agora ele andava em zigue-zague – talvez para manter a trilha ou para tentar encontrá-la; Mels não sabia e também não perguntou. Apenas o seguiu, e eles passaram por dezenas de lápides, além de funcionários que cuidavam do gramado e pessoas que visitavam túmulos de parentes.
Finalmente, quando estavam a quase meio quilômetro de onde deixaram o carro, ele parou.
– Aqui. Isto é... sim, foi aqui que começou. Tenho certeza.
A lápide que ele observava pertencia a um dos túmulos mais recentes – e em cima da terra fofa que fora colocada sobre o caixão, havia realmente a silhueta de um corpo, como se uma pessoa do tamanho dele tivesse deitado ali em posição fetal.
– Foi aqui que começou – ele se apoiou na bengala e se agachou. Tocando a terra, sussurrou: – Aqui.
– James Heron – ela disse, lendo a inscrição simples na lápide. – Você conhece ele?
Matthias olhou ao redor do cemitério.
– Sim.
– Em que contexto?
– Preciso ir – ele se levantou e se afastou dela. – Obrigado.
Mels franziu a testa.
– Do que está falando?
– Você precisa ir embora agora...
– Você não tem condições de andar de volta até a cidade. E boa sorte se quiser achar um táxi.
– Por favor, você precisa ir embora.
– Diga por que e talvez eu considere.
Em um movimento súbito, o homem se aproximou dela, chegando perto... muito perto. Tomando fôlego, Mels precisou forçar para que seus pés não se mexessem... e foi um choque quando percebeu que os pés desejavam que seu corpo terminasse o que ele havia começado.
Só era preciso mais um passo para que seus peitos se tocassem e seus quadris se apertassem um contra o outro.
Não era a ideia mais brilhante, já que parecia que o predador dentro dele se libertara. Mas ela não queria ser sensata.
Mels o desejava.
Mas isso não fazia parte do plano.
Levantando o queixo, ela disse:
– Se pensa que essa agressividade é persuasiva, você está errado. E eu estou esperando uma explicação.
Matthias se inclinou para frente, e o movimento de seus quadris a deixou totalmente ciente do quão mais alto ele era. Quão mais forte, mesmo machucado. E o quanto seus olhos ardiam, mesmo através dos óculos escuros.
Com uma voz grave e perigosa, Matthias disse:
– Porque você vai morrer se não se afastar de mim.
CAPÍTULO 11
Local não revelado Washington, D.C.
– Este é o alvo.
A foto que caiu com a imagem para cima na lustrosa mesa chegou ao agente por força da inércia.
O rosto instantaneamente pareceu familiar. Afinal, quem nas Operações Extraoficiais não conhecia aquele homem?
O agente ergueu os olhos na direção de seu superior.
– Qual a localização?
– Caldwell, Nova York.
O endereço foi passado oralmente, assim como todas as outras instruções. E ele não podia ficar com a foto. E aquela sala, em um prédio absolutamente comum na capital da nação, não registrava nada daquela conversa. Sem rastros. Nunca.
– Obviamente, consideramos que ele está armado e é extremamente perigoso.
Com certeza. Sempre fora – mas glórias não duram para sempre, e você nunca deixa de ser um agente das Operações. As únicas classificações para um agente eram “em atividade” ou “eliminado”.
E ele seria o responsável pelo carimbo de “eliminado”, nesse caso.
– As regras normais se aplicam – disse o superior.
É claro que sim: agiria sozinho, era o único responsável pela missão e, se falhasse, era melhor rezar para morrer – ou fazer isso por si próprio. Essas regras eram muito conhecidas pelo pequeno grupo de agentes que foram escolhidos a dedo pelo diabo em pessoa...
Matthias. Aquele que os liderara nos últimos dez anos. O astuto jogador de xadrez, o mestre da manipulação, o violento sociopata que servira de modelo para todos eles.
Por um momento, parecia estranho receber ordens de outra pessoa – mas, considerando quem era o alvo...
No entanto, a organização precisava seguir em frente, e seu atual superior subira rápido na hierarquia, claramente se posicionando como o herdeiro do trono. Isso explicava o que estava fazendo agora. Pontas soltas eram inaceitáveis.
– Mais alguma coisa de que eu precise saber?
– Apenas não estrague tudo. Você tem 24 horas.
O agente esticou a mão enluvada e trouxe a foto para mais perto. Observando aquele rosto, pensou que, se alguém tivesse lhe contado sobre as mudanças que aconteceram nos últimos dois anos, ele se convenceria de que essa pessoa estava maluca.
Porém, lá estava ele, olhando para aquele poderoso homem na fotografia, que agora estava condenado à morte. Se o agente falhasse ao tentar matá-lo, a organização mandaria outro. E outro. E mais outro. Até que a missão fosse cumprida.
E, conhecendo o alvo, talvez precisassem de mais de uma tentativa.
Seu superior pegou de volta a fotografia e caminhou até uma porta que parecia normal, mas que na verdade era à prova de balas, fogo, bombas e som. Assim como as paredes, o teto e o chão.
Após um escaneamento da retina, a porta se abriu e depois fechou, deixando o agente sozinho para ponderar suas opções: uma vez que a missão fosse entregue, os métodos de execução ficavam por conta do agente designado. Os chefes se importavam apenas com os fins, não com os meios.
Caldwell, em Nova York, ficava a apenas uma hora e meia de avião, mas era melhor ir de carro. Não dava para saber que recursos tinha seu alvo, e aviões podiam ser rastreados mais facilmente do que carros sem identificação.
Enquanto o agente deixava o edifício, o fato de que poderia estar se dirigindo para a própria morte era irrelevante – e essa era parte da razão de ele ter sido selecionado dentre tantos outros soldados e civis que se “inscreviam” para as Operações Extraoficiais. Cuidadosas avaliações psicológicas e físicas eram conduzidas, não durante semanas ou meses, mas por anos, antes que o candidato recebesse o sinal verde. Afinal, o trabalho exigia uma incomum combinação de urgência e desapego, lógica e iniciativa, disciplina mental e física.
Assim como o simples prazer em matar outros seres humanos.
Ao final do dia, ele achava divertido bancar o Ceifeiro da Morte, e essa era a única maneira legal e sancionada de fazer isso. Mesmo o mais cuidadoso assassino em série acaba preso com o passar do tempo. Mas e trabalhando para o governo dos Estados Unidos?
Seu único limite era sua habilidade de permanecer vivo.
CAPÍTULO 12
Matthias precisava se afastar de Mels.
Não havia nenhuma outra opção. No cemitério, junto dela, encarando a lápide de Jim Heron, pareceu muito claro que eles estavam separados entre a vida e a morte – e ela estava no lado da vida.
Matthias queria mantê-la assim.
Depois de discutirem por um momento, ela o deixou, afastando-se com uma rapidez eficiente que ele aprovava. Matthias permaneceu no local de descanso de Jim Heron pelo tempo que julgou ser necessário até Mels chegar ao carro de seu amigo – e, como ele esperava, o Toyota não estava mais no portão principal do cemitério quando ele retornou.
E ela estava certa quanto à falta de táxis, mas havia um ponto de ônibus não muito longe e, embora isso o obrigasse a esperar, acabou conseguindo voltar ao centro da cidade por conta própria.
Melhor assim. Uma separação definitiva – ao menos fisicamente. Em sua mente, ele tinha o pressentimento de que não seria tão fácil.
Apesar de ainda possuir uma parte dela, de forma concreta: os óculos escuros. Ela não os pedira de volta, e ele esqueceu que estavam em seu rosto.
E esconder seu olho ruim seria muito útil em uma situação como a dele.
Matthias entrou no Starbucks da rua Quinze e avaliou o local através de seu Ray-Ban. O horário de pico do almoço já tinha passado e os fregueses das três da tarde ainda não tinham aparecido para lotar o local em busca de um remédio para sua sonolência vespertina. Havia apenas duas pessoas tomando café com leite, além de um par de baristas do outro lado no balcão.
Ele escolheu a barista cheia de piercings na sobrancelha e cabelo espetado azul e rosa.
Quando se aproximou, ela ergueu um olhar que parecia contar as horas para ir embora, mas sua expressão mudou rapidamente. Para algo a que ele já estava acostumado.
Era uma expressão de interesse feminino.
Matthias escolheu sabiamente.
– Olá – ela disse, enquanto pesquisava seu rosto... e depois a bengala e a jaqueta preta.
Ele sorriu, como se também estivesse momentaneamente interessado nela.
– Ah, escuta, eu combinei de encontrar um amigo aqui, mas ele não apareceu. Eu ia ligar para ele do meu celular, mas percebi que esqueci em casa. Posso usar seu telefone?
Ela deu uma olhada em seu colega de cafeteria. O cara estava encostado nos fundos ao lado das máquinas de café, braços cruzados ao redor do peito magro, como se estivesse descansando em pé.
– Sim. Pode sim. Venha aqui.
Matthias a seguiu pelo balcão, exagerando seu andar manco.
– Preciso ligar para o disque-informações primeiro, pois não lembro o número dele. Mas não se preocupe, é uma ligação local. Não acredito que esqueci meu celular!
– Acontece com todo mundo! – ela estava toda agitada, seus olhos pousavam rapidamente nele e depois se desviavam, como se ele fosse brilhante demais para se olhar por muito tempo. – Mas eu preciso discar, você não pode entrar atrás do balcão.
– Sem problema – quando ela lhe entregou o fone, ele o pegou e sorriu devagar. – Obrigado.
Ela ficou ainda mais encabulada. Ao ponto de precisar discar duas vezes até conseguir chamar o número desejado.
Matthias casualmente se virou e fingiu checar a entrada procurando por seu “amigo” quando uma voz gravada atendeu:
– Cidade e estado, por favor.
– Caldwell, Nova York – houve uma pausa. Ele esperou um atendente. – Por favor, o número de James Heron.
Enquanto Matthias esperava pela informação, a garota pegou um pano e passou casualmente pelo balcão. Mas ela estava escutando, com as sobrancelhas abaixadas.
– H-E-R-O-N – soletrou Matthias. – O primeiro nome é James.
Mas que droga, de que outro jeito dá para soletrar esse nome?
A atendente voltou a falar:
– Desculpe, mas não encontro ninguém com esse sobrenome em Caldwell. Quer tentar algum outro nome?
Que merda! Mas, de alguma forma, isso não o surpreendia. Seria muito fácil. E nem um pouco seguro.
– Não, obrigado – Matthias virou-se e entregou o fone para a garota. – Não tive sorte. O nome não está na lista.
– Você disse “Heron”? – perguntou a garota enquanto pendurava o fone. – Aquele cara que morreu?
Matthias estreitou os olhos – mas ela não podia ver, graças ao Ray-Ban.
– Mais ou menos. Meu amigo é irmão dele, na verdade. Moravam juntos. O telefone estava no nome de Jim. Como eu disse, meu amigo e eu combinamos de nos encontrar aqui pra, você sabe, conversar sobre tudo isso. É tão difícil perder alguém dessa maneira, e estou preocupado com o que isso pode fazer com a cabeça dele.
– Oh, Deus, foi triste demais – a garota jogava o pano de uma mão para outra. – Meu tio trabalhou com ele. E estava lá quando foi eletrocutado. E pensar que levou um tiro, tipo, dias depois. Quer dizer, como é possível? Sinto muito por seu amigo.
– Seu tio conhecia o Jim?
– Ele é gerente de recursos humanos na construtora em que Jim trabalhava.
Matthias respirou fundo, como se estivesse engasgando.
– Jim era um cara muito legal. Nós estivemos na guerra juntos – bateu com a bengala no balcão. – Sabe como isso é.
Quatro... três... dois... um...
– Olha, eu posso ligar pro meu tio se você quiser. Talvez ele tenha o telefone. Espera um pouco.
A garota saiu de trás do balcão, parou um pouco, depois assentiu para si mesma, como se estivesse em uma missão pelo bem, determinada a “fazer a coisa certa”.
Enquanto Matthias esperava ela voltar, ficou esperando também que sua consciência o repreendesse por causa da manipulação.
Quando não sentiu nada, ficou perturbado com a facilidade da coisa. Como se mentir fosse tão familiar e insignificante que seu cérebro registrasse essa ação como um simples reflexo.
A barista retornou cerca de cinco minutos depois com um número escrito em um papel de carta feminino, que traía completamente seu visual radical.
– Vou discar pra você.
A barista voltou para trás do balcão e entregou novamente o telefone a Matthias, que ficou escutando o som das teclas enquanto ela apertava os botões.
Ouviu o som de chamada. Um. Dois. Três. Quatro toques.
Nada de correio de voz. Nenhuma resposta.
Ele devolveu o telefone.
– Não tem ninguém em casa.
Afinal, o que ele esperava? Acordara no túmulo do cara e agora achava que Heron fosse atender o telefone? Era uma longa distância entre o caixão e a companhia telefônica.
– Talvez ele esteja a caminho?
– Talvez – Matthias encarou a garota por um momento. – Obrigado. Obrigado mesmo.
– Quer um café enquanto espera?
– Acho que vou dar uma passada na casa dele. Às vezes as pessoas reagem a uma tragédia... de um jeito estranho.
Ela assentiu, preocupada.
– Sinto muito.
E sentia mesmo. Uma completa estranha sentia pena, honestamente, por o que quer que ele estava passando.
Ele imediatamente pensou em Mels, que também parecia tão disposta a ajudar.
Pessoas boas. Pessoas gentis. E sua memória defeituosa dizia que Matthias não merecia ficar entre esse tipo de companhia.
– Obrigado – ele disse com a voz rouca antes de sair mancando pela porta.
A pistola calibre quarenta na mão de Jim pesava menos de um quilo, e já estava carregada com dez balas no pente e uma na agulha.
Ele manteve a arma abaixada ao lado da coxa enquanto saía da garagem. Depois do episódio no chuveiro, Adrian saíra para tomar ar e trazer comida, levando sua Harley, mas não o capacete. O Cachorro estava seguro no andar de cima, descansando na cama sob o sol. Jim estava de guarda.
Você não vê? Ela está dentro de mim... e está me dominando...
Merda.
Pelo menos Jim tinha um escape. O bom da garagem era que ela ficava nos fundos do terreno de uma casa de fazenda – e a casa da frente, branca, com sua varanda e chaminé de tijolos, estava vazia desde que ele começara a alugar o local.
Ninguém veria. Mas isso ainda não era suficiente.
Ele enfiou a mão livre dentro da bota e retirou um silenciador. A peça adicionava quase trezentos gramas ao peso da pistola automática e mudava seu centro de gravidade, mas Jim estava acostumado a usá-la daquela maneira.
Agora, ninguém ouviria também.
De pé sobre o cascalho solto do caminho de entrada, ele tragou o cigarro e então o segurou com a mão esquerda. Concentrando-se em um galho que estava a dez metros do chão, levantou a arma e mirou no pedaço de madeira de três centímetros.
Respirando calmamente, Jim fechou os olhos e pensou no rosto de Devina.
Crack!
Graças ao silenciador, o som da pistola foi bastante reduzido, apenas um estampido contra sua mão e o impacto na árvore.
Crack!
O gatilho, assim como o cabo e o tambor, não eram apenas uma extensão de seu braço, mas também de seu corpo, e ele não precisava dos olhos para reajustar a trajetória. Sabia exatamente onde o chumbo acertaria.
Crack!
Calmo. Concentrado. Respirando pela barriga, não pelo peito. Imóvel, exceto pelo dedo indicador e depois pelos músculos do antebraço ao absorverem o súbito coice da arma.
O impacto da última bala foi mais suave; afinal, já não restava muita madeira.
Ele abriu os olhos assim que o galho começou uma queda livre, batendo em seus irmãos até chegar ao chão duro.
Colocando o Marlboro de volta entre os dentes, Jim esmagou as pinhas e a grama rala com suas botas de combate ao andar até a árvore e pegar o galho. Foi um corte preciso, relativamente falando. Nada igual ao que uma serra faria, mas, considerando a distância e os meios, parecia bom o suficiente.
– Você é um ótimo atirador.
O sotaque inglês altivo vindo de trás de Jim o fez querer continuar apertando o gatilho.
– Nigel.
– Cheguei num momento inapropriado?
– Ainda tenho sete balas. Você decide.
– Devina sofreu uma reprimenda – Jim girou o corpo e estreitou os olhos na direção do arcanjo aristocrático, que assentiu. – Queria que soubesse. Pensei que seria muito importante te informar disso.
– Está preocupado pensando que estou perdendo o rumo?
– Mas é claro.
Jim teve de sorrir.
– Você consegue ser direto quando lhe convém. Então, o que é que seu Criador fez com minha inimiga?
– Ela é seu oponente...
– Inimiga.
Nigel colocou as mãos para trás e começou uma caminhada excêntrica. Vestia um terno fora de moda cortado à mão, do tipo que era totalmente estranho a Jim, e que continuaria desse jeito.
– Qual é o problema, chefe? – Jim murmurou. – O gato comeu sua língua?
O arcanjo lhe lançou um olhar que o faria cair morto ali mesmo, se Jim estivesse vivo do jeito convencional.
– Você não é o único com temperamento explosivo, e eu devo te lembrar de tomar cuidado com o tom e as palavras quando se dirigir a mim.
Jim guardou a arma na cintura.
– Certo. Chega de papo furado. O que posso fazer por você?
– Nada. Eu simplesmente pensei que você se acalmaria se soubesse que o Criador agiu. Eu te disse pra deixar que o demônio cruzasse os limites. Eu te disse pra esperar pelas consequências. E elas vieram.
– O que Ele fez com ela?
– As vitórias e derrotas que vocês conquistaram são permanentes. Não há nada que Ele ou qualquer um de nós possa fazer a respeito de onde as bandeiras foram... elas são imutáveis. Mas Ele decretou que as ações de Devina não podem ficar impunes.
– Espere, não estou entendendo. Se o que Devina fez afetou o resultado de uma rodada, então sua vitória tem que ser anulada.
– Não é assim que essa competição funciona. As vitórias... – o arcanjo olhou para o céu. – O paralelo seria propriedade pessoal, suponho.
– Minha?
– De certa maneira, eu diria que sim.
– Então, se ela quebrou as regras e isso mudou o resultado, o Criador deveria dar de volta aquilo que é meu de direito. E, já que estamos falando nisso, quero lembrar que, se eu soubesse que a alma em questão era o Matthias, eu não teria me concentrado no homem errado.
– E isso foi corrigido.
– Como?
Ao longe, do outro lado do campo, um carro saiu da estrada e entrou no caminho que passava pela casa da fazenda.
Merda. Visitantes não eram nada bem-vindos – e a cor amarela sugeria um táxi.
O carro não parou na residência principal.
Nigel levantou uma sobrancelha.
– Acredito que ficará evidente.
Após mais uma de suas frases enigmáticas, o chefe desapareceu.
– Obrigado, amigão – Jim murmurou. – Grande ajuda de merda. Como sempre.
Protegendo-se em um canto, Jim encostou os ombros na parede de alumínio. A arma não permaneceu na cintura. Ele a segurou mais uma vez, preparado para atirar.
O táxi estacionou na frente da garagem.
Um momento depois, um homem que ele nunca esperava ver de novo saiu do banco do passageiro... um pesadelo que vivia e respirava... um problema do passado, que Jim já resolvera.
Então esta era a solução para a trapaça de Devina?
– Filho... da puta – Jim sussurrou.
CAPÍTULO 13
Matthias saiu do táxi e pediu que o motorista esperasse. A garagem à sua frente era uma espécie de galpão de armazenamento, com escadas que levavam para o segundo andar. As portas duplas no andar térreo estavam fechadas; a do andar de cima e as cortinas também.
Na janela do andar superior, as cortinas se separaram e um cachorro desgrenhado apareceu, como se estivesse de pé com as patas da frente apoiadas na parede.
Alguém claramente vivia ali.
– Mande o táxi embora.
Matthias virou rapidamente a cabeça para a direita, e o homem que surgiu de trás da garagem o fez quase perder o equilíbrio, fazendo uma lembrança vívida e instantânea surgir em sua memória.
Jim Heron. De volta do mundo dos mortos.
O instinto de Matthias lhe dizia que o cara sempre tivera aquele grande corpo musculoso, cabelo loiro escuro, o rosto frio e de feições endurecidas. Mas não havia contexto em sua lembrança, não havia um comentário interno sobre como ele conhecia o homem, ou o que viram e fizeram juntos. Porém, uma coisa estava clara... mesmo sem a arma, era óbvio que aquele não era o tipo de cara que você quer por perto se estiver desarmado e sem um veículo de fuga.
Matthias bateu no vidro, entregou uma nota de vinte ao motorista e o deixou ir embora.
Quando o carro manobrou e partiu pelo caminho de entrada, o som dos pneus esmagando o cascalho parecia tão alto quanto disparos de uma arma.
– Isso é uma arma na sua perna ou você está apenas feliz de me ver? – Matthias disse secamente.
– É uma arma. E você quer me dizer o que está fazendo aqui?
– Diria, se soubesse. Talvez você possa me ajudar com essa pergunta.
– O quê? – quando Matthias não respondeu, os olhos azuis cínicos de Heron ficaram ainda mais estreitos. – Você está falando sério. Isso foi uma pergunta sincera.
Matthias deu de ombros.
– Interprete do jeito que quiser. E enquanto pensa, eu gostaria de comentar que você supostamente está morto.
– Como você me encontrou?
– Procurei na central de informações. De certa maneira.
Quando Heron se aproximou, Matthias percebeu que a posição da arma com o silenciador mudou e que agora o tambor estava apontado diretamente para seu peito. E podia apostar que o gatilho seria apertado em um instante, se fosse preciso. O que significava que aquele homem com estilo militar era paranoico... ou que, por alguma razão, considerava Matthias perigoso.
– Estou desarmado – Matthias anunciou.
– Não faz o seu feitio.
A arma não foi abaixada; aquele corpo não relaxou; aqueles olhos não perderam o ar de alerta.
– Você não acredita em mim – disse Matthias.
– Depois de tudo o que passamos? Nem um pouco, meu velho amigo.
– Nós éramos amigos?
– Não, você está certo. Nós fomos muitas coisas, mas nunca amigos – Heron balançou a cabeça. – Mas que merda, sempre que não espero mais te ver, você aparece.
Heron sabia as respostas, pensou Matthias. O homem que estava bem à sua frente era o caminho para ele descobrir quem era.
– Bom – murmurou Matthias –, considerando que você ainda está respirando, mas que eu visitei o seu túmulo uma hora atrás, eu não sou o único tirando coelhos da cartola. Se importa de me contar onde foi que nos vimos pela última vez?
– Você está falando sério? – quando ele assentiu, Heron balançou a cabeça novamente. – Está dizendo que não se lembra?
Matthias levantou as mãos, mostrando as palmas.
– Não tenho nada.
A atitude desconfiada de Jim foi substituída por uma breve surpresa.
– Jesus.
– Acho que não. Minha carteira de motorista diz “Matthias”.
A risada que recebeu como resposta foi um pouco assustadora.
– Se importa se eu te revistar?
Matthias encostou a bengala na perna e levantou as mãos.
– Manda ver.
Jim fez o procedimento com uma das mãos e, quando se afastou de novo, soltou outro palavrão.
– Claramente você perdeu a cabeça.
– Não, apenas minha memória. E preciso que você me diga quem sou eu.
Houve um longo silêncio, como se Heron tentasse preencher os buracos da história em sua cabeça. Finalmente, disse:
– Vou pensar bem antes de contar as coisas do seu passado. Mas vou te ajudar. Disso você pode ter certeza.
– Isso não é bom o suficiente. Preciso das informações. Agora.
– Acha mesmo que está em posição para fazer exigências?
Enquanto Jim conduzia seu antigo chefe, Matthias, o Cretino, para o andar de cima, ele não conseguia acreditar em tudo aquilo. E não importava o quanto seu cérebro se esforçasse: parecia que os porcos realmente podiam voar, que o Inferno estava cheio de bolas de neve, e que em algum lugar um cachorro velho aprendia a dirigir uma droga de um carro.
Era disso que Nigel estava falando? Uma repetição da segunda rodada?
Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
Parece que concentrar-se na alma errada não seria um problema desta vez – desde que o discurso cifrado de Nigel estivesse mesmo certo e Matthias, mais uma vez, fosse a alma em jogo.
O que não era uma maneira tão boa de penalizar Devina. Merda!
Mas havia uma boa notícia – se é que podia existir alguma notícia boa nessa história de voltar do mundo dos mortos: a perda de memória. O velho Matthias nunca se exporia com uma fraqueza como amnésia, portanto provavelmente era verdade – e Deus sabia que esse buraco negro de informações seria muito útil.
Assim, Jim precisava trabalhar apenas contra a natureza.
Abriu a porta e deu espaço para Matthias entrar.
– Humilde lar, e essas coisas.
Enquanto Matthias mancava para dentro, o Cachorro correu e balançou o rabo lhe dando boas-vindas, com suas patas fazendo barulho no chão de madeira.
Considerando a alegria do cão, parecia óbvio que Devina não estava usando o corpo daquele homem. O que foi uma boa dica.
Jim fechou a porta e observou seu ex-chefe. Mancava do mesmo jeito. Tinha a mesma voz. O mesmo rosto. Os óculos escuros não surpreendiam, considerando o estado dos olhos do cara.
– Eu ofereceria comida, mas tenho que esperar meu amigo voltar. Pode usar o sofá enquanto isso.
Matthias grunhiu quando sentou.
– Eu ainda fumo – ele disse, acenando para o maço em cima da mesa.
– Pensei que não se lembrava de nada.
– Certas coisas... eu acabo lembrando.
Jim foi até a pequena cozinha e parou em frente à pia. Por alguma razão, ele queria estar perto de Eddie.
– Então, vamos começar com exatamente o que você lembra.
– Eu sei que acordei na sua sepultura.
– A morte é relativa.
– Então, nós dois somos um milagre.
Jim levantou uma sobrancelha.
– Pelo menos um de nós é. Vamos ver quanto ao outro. Como me encontrou?
– Central de informações.
– O telefone daqui não está no meu nome.
– Mas você deu esse número no seu último emprego. Fui até a biblioteca, busquei o número na internet e achei você. Não é um esconderijo muito bom.
– Não estou me escondendo de ninguém.
– Então, por que você está morto, mas vivo?
– Vamos nos concentrar apenas em você, certo?
– Certo. Então, por que está com medo de mim? – quando Jim apertou o maxilar, Matthias sorriu do jeito que sempre fazia, mostrando todos os dentes brancos e afiados. – Aliás, isso não é uma lembrança. É a arma na sua mão. Estamos na sua casa, protegidos... se eu não fosse uma ameaça, você guardaria a arma.
Filho... da puta.
Mesmo com amnésia, o cara era um cretino.
Com essa deixa, Jim se aproximou, mantendo os olhos no Ray-Ban que o outro usava. Com a ponta da arma virada para Matthias, colocou a pistola na mesa e a empurrou para o outro lado.
– Fica com ela, se quiser.
– Você vai me dar uma arma?
– Claro, por que não? Pense nisso como um presente por sua volta pra casa.
– Estou em casa?
– Não neste lugar em particular... você não pode ficar aqui, e nunca esteve aqui. Nunca.
Matthias sorriu um pouco.
– Bom, não quero ficar na minha casa.
– E onde é isso exatamente?
O homem colocou a mão no bolso, tirou a carteira e jogou a carteira de motorista na mesa, sobre a arma.
Jim olhou a identificação. Era bem feita, com todos os hologramas no lugar certo. O sobrenome não estava correto, é claro, mas o primeiro nome e a foto estavam.
– O que você sabe sobre mim? – exigiu o homem.
– Bela foto – Jim disse ao recostar-se na parede.
– Não estou perguntando sobre meu futuro como modelo. Por que está evitando minhas perguntas?
– Estou tentando decidir como fazer esta jogada.
– Estamos em um jogo?
– Sim, estamos. E você não pode nem imaginar o que está em jogo – Jim decidiu sentar ao lado de seu hóspede. – Como eu disse antes, por que não começa contando o que você lembra?
Os óculos escuros baixaram, como se Matthias estivesse encarando o chão. Ou talvez suas botas, ou a bengala.
– Fui atropelado por um carro do lado de fora do Cemitério Pine Grove ontem à noite e acordei no hospital sem saber quem eu era ou onde estava. Hoje, tentei me lembrar refazendo meus passos, até que cheguei na sua sepultura – o Ray-Ban subiu de novo e ele olhou ao redor. – Eu reconheci seu nome no instante em que o vi. Reconheci você também, no exato momento em que saiu de trás da casa.
A expressão no rosto de Jim não mudou.
– Não é uma surpresa... nós dois temos muita história juntos. E é por isso que vou te ajudar.
– Então comece dizendo como isso tudo... – Matthias fez um gesto com a mão, mostrando todo o seu corpo – aconteceu.
– Os ferimentos?
– Não, minha roupa de balé. De que merda você acha que estou falando?
– Tire os óculos.
– Por quê?
– Quero olhar nos seus olhos quando responder.
A mão tremeu quando tirou os óculos, mas Jim apostava que era uma fraqueza física, e não mental. E ele estava certo.
– Como os ferimentos aconteceram? – seu ex-chefe repetiu, com uma voz grave.
– Você tentou se matar na minha frente. Plantou uma bomba na areia e pisou nela, bem na minha frente.
Matthias olhou para a própria perna e suas sobrancelhas se juntaram, como se o cérebro estivesse calculando dois mais dois.
– Por que eu fiz isso?
Como responder sem revelar demais?
– Você odiava o homem que era. Não podia mais continuar daquele jeito, e deu um jeito de não ter mais que fazer isso.
– Mas eu não morri.
– Não dessa vez – Jim levantou-se. – Meu amigo voltou.
Um segundo depois, o som de uma Harley invadiu o local através da janela, aumentando até parar totalmente.
– Você tem um bom ouvido – Matthias comentou.
Jim encarou o homem, pensando em como faria para trabalhar a situação em seu favor. Com um pequeno sorriso, murmurou:
– É o menor dos meus truques.
CONTINUA
CAPÍTULO 1
Sepultura.
Como na lápide e na terra recém-cavada, como em um corpo lá em baixo, como das cinzas às cinzas e do pó ao pó.
Matthias estava nu em uma sepultura. Em meio a um cemitério que se estendia até onde seus olhos podiam enxergar.
A primeira coisa que surgiu em sua mente foi a tatuagem que fizera seus homens usarem nas costas, com o desenho do Ceifeiro da Morte pairando sobre um campo de lápides e tumbas.
Que irônico – talvez estivesse prestes a ser cortado por uma foice a qualquer momento.
Tente repetir isso três vezes, bem rápido.
Piscou os olhos tentando clarear a vista, juntou os braços para se aquecer e esperou que o cenário voltasse à realidade. Quando nada mudou, ele se perguntou aonde teria ido aquele muro em que estivera preso para toda a eternidade.
Será que finalmente estava livre daquela tortura nojenta e superlotada?
Teria escapado do Inferno?
Soltando um grunhido, tentou se erguer, mas até levantar a cabeça estava difícil. Afinal, descobrir em primeira mão que aqueles lunáticos religiosos estavam certos sobre uma porção de coisas realmente faz você querer tirar um cochilo: de fato, os pecadores iam lá para baixo, e não para o Sul, e, uma vez lá, o sofrimento faz todas as coisas de que você reclamava em vida parecerem um passeio no Universal Studios.
O Demônio existia.
E sua sala de estar era uma merda.
Mas os religiosos não sabiam de toda a história. Acontece que Satã não possuía chifres ou uma calda. Também não havia nada de tridente e pés de bode. Bom, era mesmo metade bicho – se você considerar que o bicho em questão seja uma vaca. E usa muito vermelho. Afinal, morenas ficam bem com essa cor – ao menos, era isso que ela dizia a si mesma.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/FASC_NIO.jpg
Com seu olho esquerdo, que ainda funcionava, Matthias piscou novamente, preparando-se para retornar para a densa e ardente escuridão, com os gritos dos condenados ecoando em seus ouvidos e sua própria dor rasgando pela garganta e explodindo pelos lábios rachados...
Mas nada disso aconteceu. Ele ainda estava em uma sepultura. Ainda estava em um cemitério.
Completamente pelado.
Concentrando-se, enxergou, com seu único olho bom, uma paisagem cheia de túmulos de mármore branco, sepulturas de famílias marcadas com anjos e fantasmagóricas estátuas da Virgem Maria – embora as lápides simples fossem bem mais numerosas, como se os plebeus tivessem tomado conta do lugar. Pinheiros e carvalhos projetavam sombras através de gramados desalinhados e bancos de metal. As lâmpadas dos postes emitiam um brilho alaranjado, como velas num bolo de aniversário, e as passarelas estreitas poderiam até ser românticas se estivessem em outro lugar.
Mas ali, com certeza, não eram. Não naquele contexto de morte...
De repente, cenas de sua vida passaram por sua mente, fazendo-o se perguntar se estaria experimentando a morte pela segunda vez. Ou pela terceira, como seria o caso.
Não havia alegria nessa retrospectiva. Nada de esposa amorosa, nem filhos bonitos, nem uma casinha aconchegante. Apenas cadáveres, dezenas, centenas de cadáveres, todos mortos por ele próprio ou por ordem sua.
Matthias havia feito muito mal, o verdadeiro mal, durante sua vida.
Forçou-se a sentar na terra úmida. Seu corpo parecia um quebra-cabeça cujas peças não encaixavam direito: seus membros se uniam em juntas que pareciam folgadas em alguns lugares e apertadas em outros. Mas isso é o que acontece quando você se despedaça e tudo o que tem para se recompor são as habilidades limitadas de cura e medicina.
Ele direcionou seu olho para a lápide e franziu a testa.
James Heron.
Meu Deus, James Heron...
Ignorando o tremor de suas mãos, ele traçou as letras gravadas na pedra – a ponta de seus dedos percorreu o texto esculpido no granito cinzento.
Soltou um suspiro áspero, como se a dor repentina atrás de suas costelas tivesse forçado o ar para fora dos pulmões.
Matthias nunca soubera que realmente havia uma recompensa eterna após a morte, que suas ações eram de fato levadas em conta, que havia um julgamento ao final da última batida de seu coração. Mas a dor não era por causa disso. Era porque sabia que, mesmo se tivesse conhecimento do que o esperava, ele não seria capaz de fazer nada diferente.
– Sinto muito – falou, se perguntando para quem realmente dizia aquilo. – Porra, sinto muito mesmo...
Nenhuma resposta.
Olhou para o céu.
– Sinto muito.
De novo, nada de resposta, mas tudo bem. De qualquer forma, os arrependimentos estavam se acumulando em sua mente e não havia muito espaço para contribuições de terceiros.
Enquanto se esforçava para levantar, seu tronco tombou e precisou se apoiar na lápide para retomar o equilíbrio. Deus, ele estava acabado. Suas coxas estavam cobertas de cicatrizes, sua barriga cheia de lesões, uma panturrilha quase despida de carne. Os médicos realizaram um verdadeiro milagre com seus parafusos e hastes, mas, comparado com o jeito como nascera, Matthias parecia um brinquedo quebrado remendado com fita adesiva e supercola.
E o suicídio deveria ter funcionado. Mas Jim Heron foi a razão de ele ter sobrevivido por outros dois anos. Até que a morte o encontrou e o levou, provando que a Terra apenas pegava as almas emprestado – o outro lado é que realmente as possuía.
Por força do hábito, olhou ao redor procurando sua bengala, mas então se concentrou naquilo que seria mais provável encontrar: sombras que o perseguiam, fossem aquelas criaturas ardilosas do Inferno ou meros humanos.
De um jeito ou de outro, ele estava ferrado: como ex-chefe da organização secreta que eles chamavam de Operações Extraoficiais, Matthias tinha mais inimigos do que um ditador do Terceiro Mundo, e todos eles possuíam armas e podiam contratar quem as tivesse. E, como fugitivo do parquinho do diabo, nem era preciso mencionar que ele não escapara de graça da prisão.
Mais cedo ou mais tarde, alguém viria atrás dele. E, apesar de Matthias não possuir nada pelo que valesse a pena viver, seu ego era razão suficiente para lutar e se defender.
Ou pelo menos fazer de si um alvo menos fácil.
Começou a caminhar mancando e continuou com a graça de um espantalho – seu corpo sacudia com espasmos que culminavam numa marcha que doía como o diabo. Para conservar o calor, tentou abraçar a si mesmo, mas isso não durou muito. Precisava usar os braços para manter o equilíbrio.
Com movimentos de zumbi e a cabeça completamente confusa, ele continuou a caminhada, atravessando a grama desalinhada, passando pelas lápides, sentindo o toque da fria brisa que cortava sua pele. Não tinha a menor ideia de como conseguira escapar. Não sabia para onde iria. Que dia, mês, ano seria.
Roupas. Abrigo. Comida. Armas.
Assim que tivesse assegurado o básico, ele se preocuparia com o resto. Isso se não fosse abatido antes – afinal, um predador ferido se torna uma presa rapidamente. É a lei da selva.
Pensou ter encontrado mais uma sepultura ao se aproximar de uma construção de pedra com ornamentos de ferro fundido. Mas o nome “Cemitério Pine Grove” gravado no topo da fachada e a grande fechadura na porta frontal sugeriam que era uma instalação dos funcionários.
Felizmente, alguém deixara aberta uma fresta da janela dos fundos.
Mas é claro, a janela estava emperrada naquela posição.
Ele pegou um galho caído, o colocou na fresta e forçou até a madeira curvar.
A janela começou a ceder, soltando um chiado agudo.
Matthias congelou.
Pânico, uma sensação pouco familiar, que foi aprendida da maneira difícil, o fez girar e procurar as sombras. Conhecia aquele som. Era o barulho que os lacaios do demônio faziam quando estavam atrás de você...
Nada.
Apenas túmulos e postes de luz que, não importa o quanto sua adrenalina sugerisse o contrário, não se transformavam em nada.
Praguejando, ele voltou ao trabalho. Usou o galho como alavanca até abrir espaço suficiente para poder se espremer e passar. Erguer o corpo foi um sacrifício, mas, assim que seus ombros passaram, ele deixou a gravidade cuidar do resto. O chão de concreto no qual aterrissou parecia uma grade de ferro, e ele precisou de um tempo enquanto seu fôlego escapava da garganta, seu estômago embrulhava e dores surgiam em mais lugares do que ele conseguia contar.
No teto, luzes fluorescentes piscaram e depois acenderam de vez, cegando-o.
Malditos sensores de movimento. O lado bom era que, assim que seus olhos se ajustaram, ele teve uma clara visão de todo tipo de ferramenta de jardinagem. O lado ruim? Ele era um diamante em uma vitrine, pronto para ser capturado.
Pendurados em ganchos na parede, como se fossem peles de animais mortos, havia vários conjuntos de macacões impermeáveis, esperando para serem usados. Ele prontamente vestiu uma parte de baixo e uma parte de cima. Essas roupas foram feitas para ficar folgadas, mas em seu corpo pareciam grandes velas de um barco.
Melhor assim. Melhor com as roupas, mesmo elas cheirando a fertilizante, e mesmo com o atrito, que logo se tornaria um problema. Havia um boné do Boston Red Sox em um dos cantos, e Matthias o vestiu para ajudar a conservar o calor do corpo; então olhou ao redor procurando qualquer coisa que pudesse servir como bengala. As pás eram muito pesadas para ser eficientes, e os rastelos também não ajudariam.
Dane-se. Sua missão imediata era se afastar das luzes que banhavam o show de horrores do seu corpo.
Saiu da mesma maneira que entrou, forçando-se através da janela e aterrissando duramente no chão. Não tinha tempo para reclamar do impacto desta vez; precisava continuar se movendo.
Antes de morrer e ir para o Inferno, Matthias sempre fora o perseguidor. Caramba, durante sua vida inteira ele fora o caçador, aquele que espreitava, encurralava e destruía. Mas agora, retornando à escuridão daquelas sepulturas, todas as intangibilidades da noite eram perigosas até que se provasse o contrário.
Esperava que estivesse de volta em Caldwell.
Se estivesse, tudo o que precisava fazer era manter-se discreto e seguir para Nova York, onde possuía um abrigo com mantimentos.
Sim, rezava para que fosse Caldwell. Quarenta e cinco minutos ao sul pela estrada era tudo o que precisaria. Já acabara de arrombar e invadir um lugar; fazer uma ligação direta em um carro velho era outra habilidade que poderia ressuscitar.
Uma vida depois, ou pelo menos o que pareceu ser uma vida depois, ele chegou até o portão de ferro que cercava todo o terreno daqueles que descansam em paz. A coisa tinha uns três metros de altura, e as grades tinham pontas que poderiam ter sido facas em outra encarnação.
Encarando as barras que o mantinham do lado dos mortos, Matthias as agarrou e sentiu o frio do metal agarrá-lo de volta. Olhando para cima, concentrou-se no céu. As estrelas realmente cintilavam.
Engraçado, ele sempre pensou que isso fosse apenas um modo de dizer.
Respirando fundo, puxou ar puro e limpo para os pulmões e percebeu que tinha se acostumado com o fedor do Inferno. No começo, aquilo era o que mais detestava, aquele cheiro nauseante de ovo podre impregnado nas vias aéreas e que invadia a garganta e viajava até envenenar suas entranhas: mais do que um cheiro ruim, era uma infecção que entrava pelo nariz e conquistava todos os territórios que tocasse.
Mas ele se habituara.
Com o tempo, e em meio ao sofrimento, ele se acostumara ao horror, ao desespero, à dor.
Seu olho ruim, o que não conseguia usar, encheu-se de lágrimas.
Nunca conseguiria alcançar aquelas estrelas.
E essa pausa no sofrimento servia apenas para aumentar a tortura. Afinal, não existe nada como um período de alívio para revitalizar um pesadelo. Quando você retorna para a merda, o contraste aumenta tudo, eliminando a aclimatação e fazendo voltar o choque inicial.
Eles voltariam a persegui-lo. Afinal, era exatamente isso que ele merecia.
Mas, seja lá quanto tempo tivesse, lutaria contra o inevitável – não com a esperança de se livrar do Inferno, não pela possibilidade de um adiamento, mas simplesmente porque essa era uma função automática, que fazia parte do seu ser.
Matthias lutava pela mesma razão que cometera o mal.
Aquilo era simplesmente o que ele fazia.
Impulsionando a si mesmo para longe do chão, colocou contra as barras o pé que funcionava melhor e jogou seu peso para cima. Fez isso novamente. E de novo. O topo parecia estar a quilômetros de distância, o que apenas o fez concentrar-se mais em seu objetivo.
Uma eternidade depois, sua palma agarrou uma das pontas e seu braço enlaçou a perigosa lâmina.
Sangue escorreu rapidamente quando Matthias jogou a perna por cima do portão e uma das pontas cortou um pedaço de sua coxa.
Mas não havia motivo para voltar. Havia se comprometido, e de um jeito ou de outro a gravidade venceria e o puxaria para a terra – então era melhor que isso acontecesse lá fora do que dentro do cemitério.
Quando começou a cair, seus olhos focaram as estrelas. Ele chegou até a estender uma das mãos naquela direção.
O fato de que elas estavam cada vez mais distantes parecia apropriado.
CAPÍTULO 2
Mels Carmichael estava sozinha na redação. De novo.
Às nove da noite, o labirinto de cubículos do Correio de Caldwell estava povoado apenas por material de escritório, nada de pessoas – do ponto de vista do pessoal da redação, a edição do dia seguinte já zarpara para o mar: as prensas trabalhavam a todo vapor do outro lado do prédio.
Quando Mels se recostou na cadeira, as molas soltaram um chiado, e ela transformou aquele som em um instrumento, tocando uma musiquinha feliz que compusera após muitas noites iguais àquela. O título era “Rapidamente chegando a lugar nenhum”, e ela fazia um acompanhamento assoviando a parte do soprano.
– Ainda está aqui, Carmichael?
Mels se recompôs e cruzou os braços.
– Oi, Dick.
Seu chefe se esgueirou no pouco espaço que havia ali, com o sobretudo dobrado no braço e a gravata folgada ao redor do pescoço. Ele acabara de voltar da saideira no bar Charlie’s, onde os homens do jornal costumavam assistir esportes após o expediente.
– Trabalhando até tarde de novo? – Seus olhos percorreram os botões da blusa dela, como se esperasse que o uísque que tomou tivesse lhe dado poderes telecinéticos. – Tenho que dizer, você é bonita demais pra fazer isso. Você não tem namorado?
– Você me conhece, o trabalho é sempre mais importante.
– Bem... eu poderia dar algo para você trabalhar.
Mels imediatamente o encarou com firmeza:
– Obrigada, mas estou ocupada. Estou pesquisando sobre assédio sexual em mercados que antes eram dominados por homens, como companhias aéreas, esportes... jornalismo...
Dick franziu a testa como se não tivesse escutado o que esperava. O que era uma loucura. A reposta dela era a mesma desde o primeiro dia.
Mais de dois anos dando um fora nele. Deus, já tinha passado tanto tempo?
– É esclarecedor – ela esticou o braço e tocou o mouse, desativando a proteção de tela. – Muitas estatísticas. Poderia ser minha primeira reportagem de âmbito nacional. Igualdade de sexos na América pós-feminismo é um assunto quente hoje em dia... é claro, eu poderia apenas colocar no meu blog. Talvez você pudesse me dar uma declaração.
Dick arrumou o sobretudo em seu braço.
– Eu não te passei essa pauta.
– Sou uma pessoa de iniciativa.
Ele levantou a cabeça como se estivesse procurando outra pessoa para importunar.
– Só leio aquilo que eu mandei escrever.
– Você pode achar útil.
O cara tentou afrouxar a gravata e... surpresa! Já estava aberta.
– Está perdendo seu tempo, Carmichael. Vejo você amanhã.
Enquanto saía, vestiu aquele sobretudo estilo Walter Cronkite com lapelas dos anos 1970 e o cinto que ficava pendurado, fazendo parecer que parte das suas entranhas não estava onde deveria. Ele provavelmente tinha aquele casaco desde os tempos de Watergate, quando Woodward e Bernstein provavelmente o inspiraram a seguir seu próprio sonho jornalístico... que terminou no topo do expediente de um jornal de cidade pequena.
Nada mal para um emprego. Mas também não era nenhum chefe de redação do The New York Times, ou do The Wall Street Journal.
Isso parecia incomodá-lo.
Então, pois é, não era necessário ser um gênio para atribuir suas inadequações ao tédio de um ex-timoneiro calvo, amargurado por ter passado sessenta anos na intersecção entre o quase-lá e o meu-tempo-está-acabando.
Por outro lado, talvez ele fosse apenas um cretino mesmo.
O que estava claro na mente dela era que um cara mais parecido com uma rã do que com Jon Hamm não tinha nenhuma razão objetiva para acreditar que a resposta para os problemas de qualquer mulher estava dentro da calça dele.
Quando as portas duplas se fecharam, Mels respirou fundo e ficou imaginando um ônibus passando por cima daquele sobretudo anacrônico e deixando as marcas dos pneus. Mas, graças ao corte nos orçamentos, a linha de ônibus da rua Trade não passava mais depois das nove da noite e agora eram... sim, o horário já tinha acabado dezessete minutos atrás.
Ela encarou a tela do computador, sabendo que deveria ir para casa.
Seu artigo de iniciativa própria não era exatamente sobre chefes de olhar malicioso que fazem suas funcionárias pensarem que o transporte público seria uma ótima maneira de assassinar alguém. O artigo era sobre pessoas desaparecidas. As centenas de pessoas desaparecidas da cidade de Caldwell.
Caldie, como a cidade era conhecida, lar das pontes gêmeas, era também a líder nacional em desaparecimentos. Durante os últimos anos, a cidade de dois milhões de habitantes tivera o triplo de desaparecimentos de Manhattan (contando todos os seus cinco municípios) e Chicago – juntas. E o total da última década ultrapassara os números de toda a costa Leste. O que tornava tudo ainda mais estranho é que a questão não era só os números em si: acontece que as pessoas não estavam desaparecendo apenas temporariamente. Elas nunca voltavam e nunca eram encontradas. Nada de corpos, nada de vestígios e nada de relocação para outras jurisdições.
Era como se fossem sugadas para outro mundo.
Depois de toda sua pesquisa, Mels sentia que o horrível massacre em uma fazenda no mês anterior tinha algo a ver com a abundância de desaparecimentos...
Todos aqueles jovens estraçalhados.
As informações preliminares sugeriam que muitos daqueles que foram identificados já haviam sido declarados desaparecidos em algum ponto de suas vidas. Muitos deles eram casos de delinquência juvenil ou tinham antecedentes com drogas. Mas nada daquilo importava para as famílias – e nem deveria.
Não é preciso ser um santo para ser uma vítima.
A horripilante cena da zona rural de Caldwell foi notícia em âmbito nacional, com todos os canais enviando seus melhores repórteres, desde Brian Willians até Anderson Cooper. Os jornais também estavam presentes. Mas, mesmo com toda a atenção, a pressão dos políticos e o clamor por justiça de comunidades abaladas (e com razão), a verdadeira história ainda estava para surgir: a polícia de Caldwell tentava ligar as mortes a uma pessoa, qualquer pessoa, mas não conseguiu nada – mesmo trabalhando no caso dia e noite.
Mas tinha de haver uma resposta. Sempre há uma resposta.
E Mels estava determinada a descobri-la – pelo bem das vítimas e de suas famílias.
Além disso, esse era o momento para ela se destacar. Chegara a Caldwell aos 27 anos, depois de pedir transferência de Manhattan porque viver em Nova York estava muito caro e ela não estava chegando a lugar algum no New York Post. Seu plano era se mudar por seis meses, juntar algumas economias morando com sua mãe e depois se concentrar nos peixes grandes: The New York Times, The Wall Street Journal, talvez até um emprego de correspondente na CNN.
Mas não foi exatamente como as coisas aconteceram.
Voltando a focar na tela do computador, ela vasculhou as colunas que conhecia de cor, buscando padrões que ainda não tinha enxergado... pronta para encontrar a chave que abriria a porta não apenas da história, mas também de sua vida.
O tempo estava passando depressa, e Deus sabe que ela não era imortal...
Quando Mels deixou a redação, por volta das nove e meia, aquelas linhas de informação continuavam surgindo em sua mente sempre que piscava, como se fosse um videogame que ela tivesse jogado por muito tempo.
Seu carro, que batizara de Josephine, era um Honda Civic de doze anos com quase 125 mil quilômetros rodados – e a Fifi estava acostumada a esperar por ela no frio da noite. Mels deu partida naquele velho motor de máquina de costura e foi embora, deixando para trás seu emprego meia boca. E foi para a casa de sua mãe. Aos trinta anos de idade.
Que bela profissional. E pensava que iria acordar magicamente na manhã seguinte como uma Diane Sawyer sem o spray de cabelo?
Seguindo pela rua Trade para fora do centro da cidade, deixou os prédios de escritório para trás, passou pelas boates e ruas abandonadas do lado sujo do município. Ao final de todos aqueles prédios com janelas lacradas, as coisas melhoraram quando entrou nos arredores de uma vizinhança residencial, com casas bonitas e ruas com nomes de árvores...
– Meeeerda!
Virando o volante com força para a direita, tentou evitar o homem que apareceu no meio da rua, mas era tarde demais. Ela o acertou em cheio, erguendo-o com o para-choque até ele voar em seu para-brisa, cujo vidro laminado estilhaçou-se com um lampejo brilhante.
E aquele foi apenas o primeiro de três impactos.
O corpo do homem simplesmente voou pelos ares, e Mels teve a terrível visão dele atingindo o pavimento com força. E então ela teve seus próprios problemas. O impacto desviou o carro, que atingiu o meio-fio. Os freios diminuíram o impulso, mas não rápido o suficiente – e então se tornaram inúteis quando o carro também saiu do chão.
O carvalho que os faróis iluminaram fez seu cérebro realizar um raciocínio rápido: ela ia atingir a maldita coisa, e isso ia doer muito.
A colisão fez um barulho seco, um estampido ao qual ela não prestou muita atenção – estava ocupada recebendo o air bag em seu rosto, e a falta do cinto de segurança veio com tudo para morder seu traseiro. Ou a virilha, nesse caso.
Mels foi jogada para a frente e ricocheteou para trás, e um pó vindo do air bag invadiu seu olhos, nariz e pulmões, causando irritação e fazendo-a engasgar. Então tudo ficou silencioso.
No final, tudo o que podia fazer, assim como a pobre Fifi, era ficar onde estava. Debruçada sobre o air bag vazio, ela tossiu um pouco...
Alguém estava assoviando.
Não, era o motor que soltava vapor de algo que deveria estar selado.
Ela virou a cabeça com cuidado e olhou para fora através da janela do motorista. O homem estava caído no meio da rua, totalmente parado, parado demais.
– Oh... meu Deus...
O rádio do carro ganhou vida, arranhando a princípio, depois se recuperando com um curto circuito. Uma música... qual era?
Do nada, uma luz surgiu no meio da estrada, iluminando a pilha de trapos que ela sabia ser uma pessoa. Piscando, imaginou se aquele seria o momento em que descobriria as respostas sobre a vida após a morte.
Não era exatamente o furo jornalístico que ela esperava, mas aceitaria mesmo assim...
Porém, não era nenhum tipo de chegada celeste. Eram apenas faróis.
Um sedan derrapou até parar e duas pessoas saíram do carro. O homem correu para a vítima, a mulher correu até ela. A boa samaritana de Mels teve que se esforçar para abrir a porta, mas, depois de alguns puxões, ar fresco substituiu o cheiro ruim de plástico do air bag.
– Você está bem?
A mulher tinha cerca de quarenta anos e parecia rica, seu cabelo estava arrumado para cima, os brincos dourados brilhavam, suas roupas finas e elegantes não combinavam com aquele cenário de acidente.
Ela pegou um iPhone.
– Chamei a emergência; não, não se mova. Você pode ter uma lesão no pescoço.
Mels se rendeu à súbita pressão em seu ombro, mantendo-se junto ao volante.
– Ele está bem? Eu não enxerguei... apareceu do nada.
Pelo menos, foi isso que ela tentou dizer. Seus ouvidos captaram apenas murmúrios que não faziam sentido algum.
Dane-se a lesão no pescoço; estava preocupada com seu cérebro.
– Meu marido é médico – disse a mulher. – Ele sabe o que fazer com o homem. Só se preocupe com você mesma...
– Não o vi. Não o vi – ah, bom, isso soou mais inteligível. – Voltando do trabalho. Eu não...
– É claro que não. A mulher se ajoelhou. Realmente, ela parecia a esposa de um médico – e cheirava a perfume caro.
– Apenas fique parada, a ambulância está chegando...
– Ele está vivo, pelo menos? – Lágrimas surgiram nos olhos de Mels, substituindo uma irritação por outra. – Oh, meu Deus, eu matei ele?
Quando começou a tremer, ela lembrou qual era aquela canção... Blinded by the light, pensou.
– Porque meu rádio ainda está funcionando? – ela murmurou entre as lágrimas.
– Como é? – disse a mulher. – Que rádio?
– Você não está escutando?
O que se seguiu foi um gentil e alarmante toque em seu ombro.
– Apenas respire fundo e fique comigo.
– Meu rádio está tocando...
CAPÍTULO 3
– Está calor aqui? Quero dizer, você acha que está calor aqui?
O demônio cruzava e descruzava suas longas pernas à la Gisele Bündchen enquanto puxava o decote de seu vestido.
– Não, Devina, não acho – a terapeuta do outro lado da sala era exatamente como o sofá em que estava sentada: fofa e reconfortante. Até seu rosto era como um travesseiro de algodão, com as linhas de expressão parecendo bordadas em tecido macio. – Mas posso abrir uma janela se você quiser.
Devina recusou balançando a cabeça e enfiou a mão dentro de sua bolsa Prada. Além da carteira, chiclete de menta, uma garrafa de Smartwater e uma barra de chocolate Green & Black’s Organic Dark, havia vários batons YSL Rouge pur Couture. Pelo menos... deveria haver.
Enquanto ela procurava, tentou parecer casual, como se estivesse checando se não perdeu as chaves.
Na verdade, ela estava contando para se certificar de que ainda tinha treze tubos do batom: começando pelo da esquerda no fundo da bolsa, foi movendo para a direita. Treze era o número correto. Um, dois, três...
– Devina?
... quatro, cinco, seis...
– Devina.
Quando perdeu a conta, ela fechou os olhos e lutou contra a tentação de estrangular quem fizera a interrupção...
Sua terapeuta limpou a garganta. Tossiu. E depois engasgou.
Devina abriu os olhos e encontrou a mulher com as mãos no pescoço, parecendo que tinha engolido um McLanche Feliz da maneira errada. Foi bom ver a dor e a confusão, um pequeno show que fez Devina apertar os dedos dos pés, pedindo por mais.
Mas a diversão não podia ir mais longe. Se perdesse essa terapeuta, o que seria dela? Estavam fazendo progresso, e encontrar outra pessoa com quem sentisse uma conexão poderia tomar um tempo que ela não tinha.
Praguejando, o demônio chamou de volta seus cães mentais, aliviando a esganadura invisível que lançara sem perceber.
A terapeuta respirou fundo e olhou ao redor, aliviada.
– Eu... ah... acho que vou abrir a janela.
A mulher se levantou, alheia ao fato de que suas habilidades como psicóloga haviam acabado de salvar sua vida. As duas se encontravam cinco vezes por semana nos últimos dois meses, conversando por cinquenta minutos ao custo de 75 dólares por sessão. Graças a toda aquela baboseira emotiva, os sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo de Devina estavam ficando um pouco mais fáceis de aguentar. E, considerando como as coisas estavam caminhando na guerra contra aquele anjo Jim Heron, a terapia seria muito necessária na próxima rodada.
Devina não podia acreditar que estava perdendo.
Na batalha derradeira pela supremacia na Terra, aquele anjo vencera duas vezes. Havia apenas mais quatro almas na disputa. E se ela perdesse mais duas? Não sobraria nada dela ou de sua coleção: tudo desapareceria, aqueles objetos preciosos que juntara durante os milênios, cada qual uma valiosa lembrança de seu trabalho, estariam perdidos, perdidos, perdidos. E isso não era a pior parte. Suas crianças, aquelas gloriosas almas torturadas e presas em seu muro, seriam incorporadas pelo bem, pelos beatos, pelos imaculados.
Esse mero pensamento a deixava enjoada.
E, ainda por cima, ela tinha acabado de ser penalizada pelo Criador.
A terapeuta voltou a se ajeitar nas almofadas depois de sua busca por ar fresco.
– Então, Devina, conte o que está em sua mente.
– Eu... ah... – quando a ansiedade subiu, ela levantou a bolsa, procurando algum furo; não encontrou nenhum. – Tem sido difícil...
Nenhum dos batons poderia ter caído, ela disse a si mesma. E havia checado o número antes de sair de seu covil. Treze, um perfeito treze. Então, logicamente, estavam todos lá. Tinham de estar.
Mas... oh, Deus, talvez ela tivesse segurado a bolsa de lado e deitado um deles cair por não ter fechado o zíper...
– Devina – disse a terapeuta –, você parece muito nervosa. Pode me dizer o que está acontecendo, por favor?
Fale, disse a si mesma. Era a única maneira para escapar disso. Mesmo que contar, arrumar, checar e recontar parecessem a solução, ela gastaria milênios fazendo isso sem chegar a lugar algum. E esse novo jeito estava funcionando. Mais ou menos.
– Aquele novo colega de trabalho de que eu te falei... – ela abraçou a bolsa, segurando tudo com o corpo que assumia quando andava entre os macacos. – Ele é um mentiroso. Um completo mentiroso. Ele me enganou... e eu fui acusada de jogar sujo.
Desde que começara a terapia, ela vinha explicando a guerra contra o anjo Jim Heron em termos que um humano do começo do século XXI pudesse entender: ela e seu inimigo eram colegas em uma empresa de consultoria, e competiam pela vice-presidência. Cada alma que disputavam era um cliente. O Criador era o CEO, e os dois tinham um número limitado de tentativas para impressioná-lo. Blá, blá, blá. A metáfora não era perfeita, mas era melhor do que se revelar completamente e correr o risco de sua terapeuta perder a cabeça, ou pensar que Devina não era apenas compulsiva, mas digna de um manicômio.
– Pode ser mais específica?
– O CEO enviou nós dois para um cliente em potencial. No final, o homem nos contratou e queria trabalhar comigo. Tudo estava bem. Eu estava contente, o cliente estava... – bem, não contente. Matthias não estava nem um pouco contente, o que era mais uma razão para ela ficar satisfeita com a vitória: quanto mais sofrimento, melhor. – Estávamos cuidando do cliente, e tudo estava combinado, o contrato estava assinado, o assunto encerrado. Então fui chamada para uma reunião idiota e me disseram que teríamos que disputar o cliente de novo.
– Você e seu colega de trabalho, certo?
– Isso! – ela jogou as mãos para cima. – Quer dizer, qual é? Estava feito. Estava tudo combinado. A disputa tinha terminado. E agora temos que refazer tudo? Que merda é essa? E daí o CEO disse pra mim: “Bom, você ainda pode ficar com a comissão pelo contrato.” Como se isso compensasse tudo!
– Melhor do que perder tudo.
Devina balançou a cabeça. A mulher simplesmente não entendia. Uma vez que ela se apoderava de algo, se deixasse isso escapar, ou se alguém a roubasse, era como se uma parte de seu verdadeiro corpo fosse removida: Matthias fora arrancado de seus muros e colocado novamente na Terra.
Francamente, o poder do Criador era a única coisa capaz de assustá-la.
Além de suas próprias compulsões.
Não conseguiu controlar a ansiedade: abriu a bolsa novamente e recomeçou a contar...
– Devina, você trabalhou bem com o cliente, certo?
Ela fez uma pausa.
– Sim.
– E você possui um bom relacionamento com ele ou ela?
– Ele. Sim.
– Então você está numa posição mais vantajosa do que seu colega de trabalho, não é?
A terapeuta fez um gesto com as mãos, como se dissesse “então, qual o problema?”.
– Não tinha pensado assim – estivera irritada demais para isso.
– Você deveria. Mas, eu devo dizer, tem uma coisa que está me confundindo. Por que o CEO sentiu a necessidade de intervir? Especialmente se o cliente não apenas assinou um contrato, como também parecia satisfeito?
– Ele não aprovou algum dos... métodos... usados para assegurar o negócio.
– Métodos seus?
Quando Devina hesitou, os olhos da terapeuta rapidamente focaram o decote que a paciente usava.
– Sim, meus – disse o demônio. – Mas, qual é, eu consegui o cliente e ninguém pode criticar minha ética no trabalho: estou trabalhando o tempo todo. Literalmente. Não tenho vida que não seja meu trabalho.
– Você aprova as táticas que usou?
– É claro. Consegui o cliente, isso é tudo que importa.
O silêncio que se seguiu sugeria que a terapeuta não aprovava essa coisa de “fins justificando os meios”. Mas que se dane, isso era problema dela – e era provavelmente a razão de ela parecer um travesseiro e passar os dias escutando os problemas dos outros.
Em vez de governar o mundo inferior e ficar uma gostosa usando sapatos Louboutins...
Quando a ansiedade apertou de novo, Devina começou outra recontagem, jogando os batons um atrás do outro, da esquerda para a direita. Um, dois, três...
– Devina, o que você está fazendo?
Por uma fração de segundo, ela quase atacou de verdade. Mas a razão e um chamado para a realidade prevaleceram: as compulsões estavam quase dominando-a completamente. E não se pode ser efetivo contra um inimigo como Jim Heron quando se está presa em uma eterna ansiedade causada por objetos que se sabem perfeitamente bem que não foram perdidos, movidos ou tocados por nenhuma outra pessoa.
– Batom. Estou apenas me certificando de que trouxe meus batons.
– Certo. Bom, quero que você pare com isso.
Devina levantou o olhar com verdadeiro desespero.
– Eu... não consigo.
– Sim, você consegue. Lembre-se, o problema não são os objetos. Você deve lidar com seus medos de maneira mais efetiva e permanente do que simplesmente cedendo às compulsões. Você sabe, o alívio que consegue no final de um ritual nunca, nunca dura mais que uma fração de segundo; e nunca ataca a raiz do problema. O fato é que, quanto mais obedece às compulsões, mais fortemente elas controlam você. A única maneira de melhorar é aprender a suportar a ansiedade e repensar os impulsos como algo que você pode controlar; e não o contrário – a terapeuta se inclinou para frente, com uma seriedade de quem vai dizer algo cruel, mas para o seu bem. – Quero que você jogue um deles fora.
– O quê?
– Jogue um dos batons fora – a terapeuta se esticou para o lado e pegou um cesto de lixo cor-de-rosa. – Agora mesmo.
– Não! Deus, você está louca? – O pânico se espalhou pelo seu corpo. As palmas das mãos começaram a suar, seus ouvidos zumbiram, seus pés adormeceram. Logo, a onda se propagou: seu estômago embrulhou, o fôlego foi se perdendo, o coração batia mais rápido. Tudo isso pareceu durar uma eternidade. – Eu nunca vou conseguir...
– Você consegue e, além do mais, você precisa. Escolha a cor de que menos gosta e coloque no cesto.
– Não tenho uma cor de que eu não gosto, todos são da mesma cor: 1 Le Rouge.
– Então qualquer um vai servir.
– Não consigo... – lágrimas ameaçavam cair. – Não consigo...
– Pequenos passos, Devina. Essa é a chave da terapia cognitiva comportamental. Temos que tirar você da zona de conforto, te expor ao medo, e então te conduzir a superar o obstáculo para que aprenda que pode chegar inteira do outro lado. Faça isso muitas vezes e o transtorno vai começar a perder o controle sobre seus pensamentos e suas decisões. Por exemplo, o que acha que vai acontecer se jogar um deles fora?
– Terei um ataque de pânico. Principalmente quando chegar em casa e o batom não estiver comigo.
– E depois?
– Vou comprar outro para substituir, mas não vai ser o mesmo que joguei fora, então não vai adiantar nada. Vou só ficar mais compulsiva...
– Mas você não vai morrer.
É claro que não, ela era imortal. Contanto que ganhasse a guerra, obviamente.
– Não, mas...
– E o mundo não vai acabar.
Bem, não por causa do batom.
– Mas vai parecer que sim.
– Emoções vêm e vão. Não duram para sempre – a mulher balançou o cesto. – Vamos lá, Devina, vamos tentar. Se você achar que é muita coisa para aguentar, pode pegar o batom de volta. Mas precisamos começar a nos concentrar nisso.
Como previsto, um ataque de ansiedade começou a surgir, mas, ironicamente, foi o medo que a fez prosseguir: medo de ser dominada por esse problema que não conseguia controlar, medo de que Jim vencesse não porque era o melhor no jogo do Criador, mas porque ela não suportava a pressão; medo de nunca conseguir mudar...
Devina enfiou a mão na bolsa e agarrou o primeiro batom que encontrou. Então jogou fora. Apenas o deixou cair no cesto de lixo.
O som macio que o objeto fez ao acertar os lenços de papel dos pacientes anteriores pareceu o portão do Inferno se fechando atrás dela.
– Bom trabalho – disse a terapeuta, como se Devina fosse uma garotinha de cinco anos que tinha recitado o alfabeto. – Como se sente?
– Como se fosse vomitar – olhando para o cesto, a única coisa que a impediu de vomitar foi o fato de que faria isso em cima do batom.
– Você pode classificar sua ansiedade numa escala de um a dez?
Quando Devina disse “dez”, a terapeuta começou um discurso sobre respirar durante o pânico, blá, blá, blá...
A mulher se inclinou para frente de novo, como se soubesse que não estava sendo ouvida.
– O importante não é o batom, Devina. E a ansiedade que você sente agora não vai durar para sempre. Não vamos exigir demais de você, e vai ficar impressionada com os avanços. A mente humana pode ser reprogramada, podemos criar novos caminhos de experiência. A terapia de exposição funciona: é tão poderosa quanto as compulsões. Você precisa acreditar nisso, Devina.
Com a mão trêmula, o demônio limpou o suor da testa. Então, recompondo-se dentro de seu traje de carne humana, ela assentiu.
A mulher que parecia um travesseiro estava certa. O que Devina vinha fazendo até então não estava funcionando. As coisas estavam piorando, e os riscos só aumentavam.
Afinal, ela não apenas estava perdendo... também estava apaixonada pelo inimigo.
Não que gostasse de se lembrar disso.
– Você não precisa acreditar que isso vai funcionar, Devina. Apenas tem que acreditar nos resultados. É difícil, mas você consegue. Tenho fé em você.
Devina observou os olhos da humana e invejou a convicção da terapeuta. Inferno, uma pessoa com aquele tipo de confiança devia estar delirante... ou se apoiando em muita experiência e treinamento.
Houve um tempo em que Devina também tinha essa confiança em si mesma.
E precisava ter isso de volta.
Jim Heron provara ser muito mais do que um oponente digno e uma boa transa. E ela não podia deixá-lo manter a vantagem. Perder não era uma opção. Assim que a sessão de terapia terminasse, ela precisava voltar ao trabalho com a mente limpa e livre de qualquer besteira.
Devina fechou os olhos e se ajeitou na poltrona, apoiando as mãos nos braços estofados e enterrando as unhas no tecido aveludado.
– Como está se sentindo? – perguntou a terapeuta.
– Como se fosse superar isso de um jeito ou de outro.
CAPÍTULO 4
– Apenas me diga se ele está vivo ou não.
A enfermeira ao lado da cama simplesmente ignorou o pedido de Mels. Oferecendo uma caneta, a mulher disse:
– Se você assinar esses papéis eu passarei as receitas...
Danem-se os papéis.
– Preciso saber se o homem sobreviveu.
– Por lei, eu não posso divulgar a condição de nenhum paciente. Assine aqui para eu poder te liberar.
Leia-se: Não encha minha paciência e me deixe voltar a trabalhar.
Praguejando baixinho, Mels assinou no local indicado e guardou as duas folhas de papel e a cópia, enquanto a enfermeira partia para aterrorizar o próximo paciente.
Que noite! A boa notícia era que a polícia estava pelo menos chamando aquilo de acidente, reconhecendo que ela não tinha sido negligente ou bebido. Mas ainda havia problemas...
Observando seus papéis de alta, ela passou a vista nas notas. Concussão leve. Distensão no pescoço. Retorno com seu médico de preferência em uma semana ou mais cedo no caso de visão dupla, náusea, tontura ou piora da dor de cabeça.
O carro provavelmente sofrera perda total.
E não havia como o homem ter sobrevivido.
Com um grunhido, ela sentou, encostando-se nos travesseiros, e sua cabeça enfaixada registrou o movimento como se fosse o giro de uma bailarina. Enquanto esperava a tontura passar, ela observou suas roupas penduradas em uma cadeira de plástico laranja à sua frente. Ela pudera manter o sutiã e a calça durante os exames. A camisa, a jaqueta e o casaco estavam apenas esperando para ser vestidos de novo.
Mels não ligou para sua mãe.
A família já passara por um acidente automobilístico – e, naquele caso, a pessoa que não tinha sobrevivido era seu pai.
Então, pois é, apenas mandou uma mensagem de texto dizendo que sairia com os amigos e chegaria em casa mais tarde. A última coisa de que precisava era deixar sua mãe nervosa e insistindo em ir buscá-la no hospital, especialmente levando em consideração o que ela queria fazer agora.
Mels começou lentamente o esforço para vestir-se, embora esse atraso não tivesse nada a ver com ser uma boa paciente. Evidentemente, o choque de ter se sentido como um boneco de teste de colisão não era algo de que podia se livrar facilmente. Ela sentia-se velha e decrépita – e estranhamente aterrorizada.
Ter matado alguém... era inimaginável.
Ela enfiou os papéis na bolsa, abriu a cortina verde e encarou o enorme caos do hospital: pessoas com jalecos brancos e batas de enfermeira andavam para cima e para baixo, entrando e saindo de quartos, dando e obedecendo ordens.
Considerando que já estivera em uma colisão naquela noite, ela foi cuidadosa para não entrar no caminho de ninguém enquanto se dirigia para a saída.
Que ela não usou.
A sala de espera estava cheia de pessoas buscando cuidados médicos, incluindo um cara com um olho roxo e uma mão cheia de ataduras que sangrava muito. Ele levantou a cabeça, olhou para Mels e assentiu, como se compartilhassem uma ligação por terem começado uma briga em um bar.
Pois é, você deveria ver como o carvalho ficou depois que eu acabei com ele. Toca aqui.
Na recepção, ela se instalou no balcão e esperou até ser notada. Quando um homem se aproximou, Mels sorriu como se o assunto não fosse muito importante.
– Você pode me dizer o número do quarto daquele desconhecido que foi atropelado?
– Ei, eu te conheço. Você é repórter.
– Sim – ela enfiou a mão dentro da bolsa, pegou seu passe de imprensa e o mostrou, como se fosse um distintivo do FBI. – Você pode me ajudar?
– É claro – ele começou a digitar no teclado. – Ele foi transferido para um quarto hospitalar. Número 666. É só pegar o elevador e seguir as placas.
– Obrigada – Mels deu uma leve batida no balcão. Pelo menos, ele ainda estava respirando. – Você ajudou muito.
– Sabe, você não parece muito bem – disse o enfermeiro, fazendo um círculo em volta de seu olho.
– Noite difícil.
– Estou vendo.
A viagem até o sexto andar foi um exercício de processamento de informações, em que seu cérebro falhou miseravelmente. Para começar, ainda sentia tontura, e a subida fez seu ouvido zumbir tanto que foi preciso segurar no corrimão. Ótima ideia colocar um corrimão no elevador; afinal, gente com tontura era parte da rotina por ali. E o fato de a parede ser revestida com metal cinza fosco era outro benefício. Ela ainda não tinha se olhado no espelho, mas, pela maneira como o enfermeiro a olhou na recepção, o air bag que ela quase comera provavelmente não fizera muito bem à sua pele.
A campainha do elevador era alegre como se estivesse na Disneylândia, mas as portas se abriram tão vagarosamente que pareciam exaustas.
Seguindo as instruções, ela observou as placas e encontrou a direção, entrando em um longo e amplo corredor marcado por incontáveis portas largas. Tudo era mais quieto por lá, e ninguém na estação das enfermeiras se manifestou enquanto ela se aproximava. Melhor assim – não queria correr o risco de alguém começar a fazer perguntas, não gostar das repostas e enviá-la de volta.
O quarto ficava quase no final do corredor, e ela meio que esperava ver um policial de guarda na porta. Mas não havia nada nem ninguém. Apenas mais uma porta com uma placa amarela numerada no batente e uma superfície laminada, que parecia madeira de pinheiro.
Empurrando a porta, ela se inclinou para dentro. Sob a luz fraca, pôde ver o pé da cama, uma janela na parede mais distante e uma TV instalada no teto. O som de bipes e o cheiro de desinfetante provavam que aquilo não era um quarto de hotel – não que ela precisasse de ajuda para saber disso.
Mels limpou a garganta.
– Olá?
Quando não houve resposta, entrou e deixou a porta entreaberta. Passando pelo banheiro, parou quando teve uma visão clara do paciente.
Então levou as mãos ao rosto e cobriu a boca quando seu queixo caiu.
– Oh... meu Deus!
No pequeno apartamento acima da garagem que alugava na zona rural, Jim Heron não conseguia dormir.
Todos ao redor dormiam como pedras: o Cachorro estava ao pé da cama, suas patas tremendo enquanto sonhava com coelhos ou esquilos... ou talvez com sombras negras que possuem presas. Adrian estava sentado em um canto, com as costas contra a parede e o corpo tenso, apesar da respiração regular. E Eddie? Bom, o cara estava morto, então não era como se estivesse andando por aí em círculos.
Desesperado por um cigarro, Jim saiu da cama pelo lado errado, para evitar perturbar o Cachorro, e pegou seu maço de Marlboro. Antes de sair, se aproximou para checar Adrian.
Sim. Dormindo sentado.
Com uma adaga de cristal na mão, caso alguém viesse atrás de seu amigo.
Pobre coitado. A perda de Eddie fora um duro golpe na equipe... mas fora particularmente ruim para aquele maluco tatuado cheio de piercings que estava em vigília desde o dia da morte.
Por que será que, quando um homem tenta esconder sua dor, parece ser muito mais triste do que se estivesse em qualquer tipo de histeria e choradeira?
E, em uma nota não relacionada, Jim estava estranhando trabalhar com parceiros.
No tempo em que era um assassino das Operações Extraoficiais, ele agia estritamente sozinho. Agora tanta coisa tinha mudado, desde seu chefe e o tipo de trabalho, passando por suas armas – e Eddie Blackhawk era quem mostrava o caminho, ensinando o que precisavam saber, acalmando ele e Adrian quando os dois discutiam, sendo a voz da razão em situações nas quais parecia não haver lógica... como quando se está diante do próprio cadáver. Ou quando se luta contra um demônio que gosta de usar Prada e que tem uma queda por homens que a rejeitam. Ou quando se leva nas costas o futuro das boas almas, e das más, e de todas aquelas que já existiram ou que iriam existir.
Tipo de coisa que fazia a pessoa querer trocar de emprego com o cara que frita hambúrgueres na lanchonete.
Praguejando, Jim andou até o sofá, pegou uma jaqueta de couro e cobriu as pernas de Adrian. O outro anjo grunhiu e se ajeitou no chão, mas continuou debaixo da jaqueta. Ótimo – o objetivo era manter o cara aquecido, não conversar com ele.
Jim não estava a fim de conversar com ninguém.
Mas isso não era novidade.
Ele pisou no patamar no topo da escada e o ar frio percorreu a pele nua de seu peito. Antes de ter um colega de quarto e um cão, ele sempre dormira nu. Agora usava um moletom. O que o ajudava era o fato de que as noites de abril eram muito frias em Caldwell.
Não que ele dormisse muito.
O maço de Marlboro ainda estava embrulhado e Jim o bateu contra a palma da mão enquanto fechava a porta silenciosamente. Uma das vantagens de ser ao mesmo tempo imortal e corpóreo é que você não precisa se preocupar com câncer, mas a nicotina faz efeito em seu sistema nervoso.
E também não precisa procurar um isqueiro no bolso.
Ele rasgou a embalagem, retirou um cigarro, colocou-o nos lábios e levantou a mão. Quando seu dedo indicador se iluminou ao seu comando, ele pensou em Eddie novamente – e, como de costume, desejou matar Devina.
Pelo menos, os caras do bem ainda estavam com vantagem de dois a um na guerra. Se conseguisse mais duas vitórias, tudo terminaria: ele livraria a Terra das garras do demônio, manteria sua mãe segura na Mansão das Almas... e tiraria sua Sissy do Inferno.
Não que ela fosse sua.
Ele exalou o ar. Não tinha total certeza sobre Sissy, mas as coisas tinham de funcionar assim, não é? Se os anjos ganhassem e Devina deixasse de existir, ele poderia ir lá embaixo e livrar aquela pobre garota da prisão. O Inferno seria dele para fazer o que quisesse.
Certo?
Com essa deixa, começou a imaginar quem seria a próxima alma.
Pensou em seu novo chefe e ouviu a voz com sotaque britânico em sua cabeça. O som macio orgulhoso das palavras de Nigel ecoava ao redor, irritando-o: Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
– Muito obrigado – murmurou enquanto a fumaça escapava de seus lábios junto com a respiração. – Ajudou muito, cara.
Era completamente injusto que sua inimiga soubesse quem era o alvo e ele não.
Que merda.
Na última rodada, ele enganara Devina para conseguir a informação, mas ela não cairia nessa de novo – diga o que quiser sobre aquele demônio, mas ela não era uma loira burra, nem de longe. E isso significava que lá estava ele de novo, emperrado em ponto morto, enquanto o inimigo com certeza saía na frente.
Esse era precisamente o mesmo problema que ele tivera na disputa pela alma de seu antigo chefe. Durante todo o tempo, ele pensou que era outra alma que estava em jogo, mas no fim era Matthias quem estava sendo disputado.
Mas já era tarde, e o filho da puta havia feito a escolha errada.
Vencedora: Devina.
Nesse ritmo, o jogo estava destinado a ser injusto, enquanto Devina continuasse interagindo diretamente com as almas. De acordo com as regras, Jim era o único que poderia fazer isso, mas, na prática, ela fazia parte do corpo a corpo tanto quanto ele. Naturalmente, Nigel, o chefe dos escoteiros, estava convencido de que ela seria punida por pisar fora de seus limites – e talvez até fosse. Mas quem poderia saber quando e onde?
Nesse meio tempo, Jim não tinha outra escolha além de ficar esperto e torcer para não estragar tudo.
Ele precisava vencer. Por sua mãe... e por Sissy.
Ele tragou e exalou outra vez, observando a fumaça girar no ar frio e subir até desaparecer. Ao piscar os olhos, viu uma imagem de Sissy Barten, aquela linda jovem, pendurada de cabeça para baixo em uma banheira de porcelana branca, o sangue vermelho vivo manchando seus cabelos dourados, a pele marcada com símbolos que ele nunca vira antes, mas que Eddie tinha entendido muito bem...
O som discreto de algo raspando o fez perder a linha de raciocínio, então ele virou para trás e abriu a porta do apartamento. O Cachorro saiu mancando com o pelo todo desgrenhado – o que era seu estado natural, e não consequência de ter dormido em uma posição esquisita.
– Ei, amigo! – Jim disse com a voz macia enquanto fechava a porta. – Você precisa ir lá fora?
O pobre e velho cão tinha dificuldade com as escadas, então Jim geralmente o carregava até o chão. Quando ele se abaixou para pegá-lo, o Cachorro prontamente se sentou: era sua maneira de dizer que queria ser apanhado e carregado.
– Sim, senhor.
O animal, que Jim sabia ser mais do que um vira-lata qualquer, pesava quase nada em seu braço, e era quente como um bico de Bunsen.
– Eu disse pra ela pensar em você – Jim disse, segurando o cigarro longe do Cachorro, só para o caso de estar errado quanto ao cão ser especial. – Eu disse pra Sissy pensar em você mastigando minhas meias. Quero que ela imagine você brincando na grama fresca quando as coisas ficarem...
Não podia terminar aquele pensamento em voz alta.
Em seu tempo de vida, Jim fizera muitas coisas feias, horrorosas, para pessoas feias e horrorosas – o que significava que há muito tempo já se tornara durão em relação às suas emoções...
Bom, na verdade, isso tinha acontecido ainda quando era adolescente. Naquele dia, quando tudo mudou para sempre.
No dia em que sua mãe foi assassinada.
Dane-se. São águas passadas.
O fato era que a ideia de Sissy mergulhada no Poço das Almas do demônio era suficiente para fazer até um soldado endurecido pela guerra perder a cabeça.
– Eu disse a ela... pra pensar em você, quando sentisse que não conseguiria aguentar mais.
A pequena cauda do Cachorro balançou para um lado e para o outro, como se Jim tivesse feito a coisa certa.
É, esperava que ela estivesse pensando no Cachorro lá embaixo, e que isso lhe desse um pouco de alívio.
Pois não havia mais nada.
– Preciso encontrar a próxima alma – sussurrou Jim antes de fumar outro trago do cigarro. – Preciso saber quem é o próximo na lista. Precisamos vencer, Cachorro.
Aquele nariz frio e molhado encostou em seu rosto, e ele teve o cuidado de soprar a fumaça por cima do ombro.
O fato de Nigel dizer que Jim conhecia a alma não significava absolutamente nada. Ele conhecera muita gente durante sua vida.
Podia apenas rezar para que fosse alguém que ele pudesse trazer para o seu lado.
CAPÍTULO 5
Matthias percebeu o momento em que não estava mais sozinho. A luz ao redor se intensificou, significando que uma porta se abriu, e isso não acontecia por acaso.
Sua mão direita se fechou por reflexo, como se segurasse uma arma. Mas isso era tudo o que podia fazer. Seu corpo estava imóvel por causa da dor, como se uma corrente o prendesse onde quer que ele estivesse deitado... era uma cama. Sim, estava numa cama, e o som ambiente cheio de bipes lhe informava que tipo de cama. Um hospital. Ele ainda estava no hospital.
Será que nunca iria se recuperar da...
Seus pensamentos empacaram nesse ponto.
Não havia nada além de um buraco negro.
Não fazia ideia da razão de estar ali. Nenhuma pista de por que seu corpo doía tanto. Não... Deus, sabia apenas que seu nome era Matthias, e nada mais.
O pânico o fez arregalar os olhos. Havia uma mulher ao pé da cama, aterrorizada, com as mãos no rosto e uma expressão de completo choque. Um de seus olhos estava roxo e sua testa estava enfaixada. O cabelo preto estava preso para trás. Olhos bonitos. Alta... ela era alta...
Olhos lindos, na verdade.
– Eu sinto muito – ela disse, com a voz rouca.
Como é?
– Sobre...? – a voz dele estava áspera, a garganta doía. E um de seus olhos não funcionava direito.
Não, o olho estava completamente inutilizado. Perdera metade da vista no passado. Foi isso mesmo, quando ele era...
Franziu a testa e seus pensamentos caíram no abismo novamente.
– Eu te atropelei. Sinto muito... não enxerguei você. Estava tão escuro, e você apareceu na rua antes que eu pudesse frear.
Ele tentou estender a mão, em um impulso para acalmá-la que ultrapassou a dor e a confusão.
– Não foi sua culpa... não... sem lágrimas. Venha...
Por algum motivo, ele não podia acreditar que alguém choraria por ele, agora ou em qualquer tempo. Não era o tipo de homem que inspira reações assim. Não ele. Mas por que isso era assim, ele não sabia...
A mulher se aproximou um pouco, e Matthias observou com seu olho bom enquanto ela estendia a mão quente e macia... até tocar a palma dele.
O contato o fez sentir aquecido por todo o corpo, como se tivesse deitado em uma banheira quente.
Engraçado, ele nem tinha percebido que sentia frio até ela o tocar.
– Estou apertando sua mão... – ele disse, com a voz entrecortada. – Caso não consiga perceber.
Ela foi gentil e não comentou o fato de que claramente não sentia sua tentativa de retribuir o contato. Mas ele estava se esforçando. E quando seus olhos se encontraram, por alguma razão, Matthias quis dizer que nem sempre estivera quebrado. Um dia, não faz muito tempo, ele fora capaz de levantar-se orgulhoso, correr longas distâncias e usar seus músculos. Porém, agora ele era como um colchão com pulsação cardíaca.
Mas o motivo disso não fora o atropelamento. Não, ele já estava quebrado havia um bom tempo.
Talvez sua memória estivesse voltando.
– Sinto muito – ela disse novamente.
– Foi assim que você... – ele fez um gesto mostrando o próprio rosto, mas isso a fez focar ainda mais nele, e a maneira como estremeceu sugeria que para ela era difícil olhar o quanto ele estava feio. – Você também se machucou.
– Ah, estou bem. A polícia já veio conversar com você?
– Acabei de acordar. Não sei.
Ela desfez o contato entre eles e enfiou a mão em uma bolsa que mais parecia uma mala.
– Aqui. Este é o meu cartão. Eles conversaram comigo enquanto eu estava sendo medicada, e eu disse que aceito toda a responsabilidade.
Ela colocou o cartão na frente de seu rosto, mas sua visão se recusou a focar.
E Matthias não queria olhar para nada além dos olhos dela.
– Qual é o seu nome?
– Mels Carmichael. Na verdade, é Melissa – ela tocou o próprio peito. – As pessoas me chamam de Mels.
Quando ela deixou o cartão na mesa ao lado, ele franziu a testa, mesmo isso fazendo sua cabeça latejar.
– Como você se machucou?
– Me ligue se precisar de alguma coisa. Não tenho muito dinheiro, mas...
– Não estava usando cinto de segurança, não é?
A mulher olhou ao redor como se já tivesse ouvido isso da polícia.
– Ah...
– Você devia usar o cinto...
A porta abriu bruscamente, e a enfermeira que entrou parecia como se fosse a dona do lugar.
– Estou aqui – ela anunciou enquanto caminhava até os aparelhos que ficavam atrás da cama. – Ouvi o alarme.
A primeira coisa em que Matthias reparou foram os grandes peitos da mulher. Depois, na cintura pequena. E nos longos cabelos castanhos, macios como um edredom e brilhantes como porcelana.
Mas aquela imagem fez sua pele se arrepiar. Ao ponto de ele tentar se sentar para poder sair dali...
– Shh... está tudo bem – sorrindo, a enfermeira quase botou Mels para fora. – Estou aqui pra ajudar.
Olhos negros. Olhos negros que o lembravam de alguma coisa, em algum lugar... uma prisão onde você ficava sufocado pela escuridão, incapaz de se livrar...
A enfermeira se inclinou e seus seios se apertaram um contra o outro.
– Vou cuidar de você.
– Não – ele disse com veemência. – Não, você não vai...
– Ah, sim, eu vou.
Sentia seu inconsciente tentando avisá-lo sobre alguma coisa, algo que não conseguia distinguir com clareza, mas que enviava sinais como um caminho de pólvora antes de uma bomba explodir. Mas não encontrou nada específico. Suas memórias pareciam bases camufladas em um horizonte visto através de óculos de visão noturna – ele sabia que o inimigo estabelecera bases em algum lugar, mas era impossível visualizar qualquer detalhe.
– Se você não se importar – a enfermeira disse para Mels –, eu preciso cuidar do meu paciente.
– Ah, sim. Claro. Eu vou... é, vou embora – Mels se esticou sobre a mulher para poder enxergá-lo. – Bom... falo com você mais tarde.
Matthias também precisou se desviar da enfermeira, mudando a posição do corpo e fazendo os músculos da barriga se contraírem.
A enfermeira bloqueou sua visão.
– Feche a porta quando sair, certo? Obrigada.
E então ficaram a sós.
A enfermeira sorriu e encostou o quadril na beira da cama.
– Que tal eu te dar um banho?
Parecia uma ordem, não um pedido. E, cara, de repente ele sentiu-se nu – e não de um jeito bom.
– Não estou sujo – ele disse.
– Sim, você está – ela colocou a mão em seu braço, bem no lugar onde as sondas se conectavam com a veia. – Você está imundo.
Do nada, seu corpo começou a ganhar força: a energia invadia e inflava seus músculos com saúde, como se ele tivesse passado por dias de descanso, noites bem dormidas e muita comida.
Estava vindo dela, ele percebeu. Mas... como isso era possível?
– O que você está fazendo comigo?
– Nada – a enfermeira sorriu. – Se sente diferente?
Olhando em seus olhos negros, a escuridão parecia tão irresistível quanto repulsiva – e ele não saberia dizer quanto tempo ficaram ali daquele jeito, ligados pela mão dela, que transferia o que parecia uma droga miraculosa.
– Eu conheço você – ele pensou em voz alta.
– É engraçado quando a gente sente isso com uma pessoa desconhecida.
O poder que entrava nele parecia maligno e muito familiar.
– Eu não quero...
– Não quer o quê, Matthias? Não quer se sentir melhor, ficar mais forte, viver pra sempre? – ela se inclinou para ainda mais perto. – Está me dizendo que não quer ser um homem de novo?
Os lábios dele começaram a se mover, mas nenhum som saiu. Uma lentidão se apoderou de seu corpo quando ela retirou a mão. Desorientado e confuso, ele tentou se levantar, mas parecia que, afinal, fora mesmo drogado.
– Vou te dar um banho agora – ela disse com um olhar malicioso e um sorriso que faziam parecer que estava falando de sexo oral e não de esponja e sabonete.
Quando ela se aproximou da pia, Matthias aspirou profundamente, suas costelas se expandindo sem dor, e conseguiu expirar sem dificuldade. Todas as dores desapareceram, dando a impressão de que fazia anos que seu corpo não apresentava nenhuma complicação. Talvez séculos?
– Que dia é hoje? – ele murmurou, enquanto ela enchia uma bacia.
A enfermeira olhou por cima do ombro.
– É mesmo! Você está com amnésia.
Um momento depois ela voltou à cama, trazendo junto a mesa de rodinhas. Quando ela abaixou o lençol até a cintura dele e desamarrou o avental do hospital, Matthias levantou a cabeça pesada e olhou para si mesmo. A parte de cima não estava tão ruim, apenas uma cicatriz aqui e outra ali. Mas a parte de baixo estava arrasada.
Sentiu a esponja macia e quente.
Enquanto a enfermeira massageava seu peito, ele observou a maciez e a luminosidade da pele dela: era como uma pintura, e seu cabelo era mais espesso e voluptuoso do que parecia ser possível. Seus lábios pareciam até partes de uma fruta: molhados, com a promessa de doçura.
Eu não a quero, ele pensou.
Mas não conseguia se mover.
– Você precisa ganhar peso – ela comentou, passando a esponja em seu peito. – Está muito magro.
A esponja foi descendo cada vez mais, demorando-se na barriga: os cuidados estavam mais para de uma amante do que de uma enfermeira. Com súbita clareza, Matthias lembrou que houve um tempo em que ela poderia ter se impressionado – as mulheres que ele contratava para o exercício sexual sempre ficavam animadas com seu corpo...
Espere um pouco, isso realmente estava acontecendo?
Quando ela começou a baixar o lençol ainda mais, Matthias a fez parar:
– Não, pare.
– Sim, continuo.
Com os olhos dela presos aos seus, a enfermeira afastou a mão dele e arrancou o resto da roupa de cama. A violência do ato o fez lembrar de algo lá no fundo de sua mente... mas não sabia o quê.
– Fiz você lembrar de algo? – ela disse, mesmo sabendo bem a resposta. De alguma maneira... ela sabia que ele gostava de coisas perigosas. – Fiz? Matthias.
– Talvez – de repente sua voz parecia mais forte, mais profunda...
– E agora?
Ela o tocou naquele lugar que definia sua masculinidade: a esponja raspou seu pênis de leve.
Quando ela lambeu os lábios com volúpia, ele teve de rir alto. Seja lá qual fosse o seu motivo para quebrar todas as regras, a enfermeira não chegaria a lugar nenhum – o que resolveria o problema de ele não querer aquilo. Ela podia ficar nua e montá-lo; aquele pedaço mole de carne não se levantaria de jeito nenhum.
Mesmo com amnésia, sabia disso, da mesma maneira que sabia que não enxergava com um dos olhos. Era um fato, não uma lembrança.
– Minha memória não é a única coisa que perdi – ele disse secamente.
– É mesmo?
Quando ela massageou onde não deveria, Matthias deu um salto. Bom, mas a impotência não significava que você não sentia nada. Significava apenas que não podia fazer nada a respeito...
O fluxo de poder voltou a se apoderar dele, desta vez mais forte. E com um gemido, ele se arqueou, automaticamente levantando o quadril até a fonte do prazer.
– Isso mesmo – ela disse suavemente. – Sinta meu toque. Estou dentro de você.
O desejo sexual há muito esquecido explodiu por todo o corpo de Matthias; a agressividade e a necessidade de penetrar algo que ele não sentia há muito tempo. Deus, lembrar-se de que era de fato um macho, e não algum doente andrógino...
Oh, droga, isso era bom. Muito... bom.
– Olhe pra mim – ela ordenou enquanto trabalhava em seu pênis. – Olhe para mim.
Ele ficou tão distraído pela novidade que quase esqueceu quem a proporcionava, e a visão dela acabou drenando a sensação para longe: o que se tornou impotente agora foram suas emoções, mesmo que o corpo funcionasse plenamente. Ela era linda, mas... era uma beleza cheia de veneno.
– Você não gosta disto, Matthias?
Não, ele não gostava. Não gostava mesmo.
– Nem um pouco.
– Mentiroso. Precisamos terminar o que começamos, você e eu. Sim, precisamos.
Devina entrou na loja Saks Fifth Avenue no shopping Caldwell Galleria perto das cinco da manhã. Passou pelas portas de vidro e caminhou até um mostruário com manequins que vestiam tons pastéis. Ela posou junto deles por um momento, arqueando as costas e sentindo os seios apertarem o tecido da blusa sob o casaco.
A primavera estava no auge, e isso era uma boa notícia para suas coxas.
Já que estava ali, talvez pegasse algumas coisinhas.
Com uma febre de compras correndo por suas veias, ela apareceu atrás do balcão e, com um aceno das mãos, desativou os detectores de movimento. Por um segundo, pensou em deixar as câmeras de segurança ligadas, só por diversão.
Nada mais divertido do que ter uma plateia – mesmo que fosse apenas um humano gorducho sentado em uma sala de segurança ao final de um turno de trabalho durante o qual provavelmente só dormira.
Porém, ela estava ali por uma razão muito séria.
Seus sapatos de salto faziam barulho no chão de mármore, e ela gostava daquele som ecoando: pisou mais forte para que seu domínio sobre o vazio alcançasse todas as direções. Deus, ela adorava aquele cheiro no ar: chão polido, perfume, colônia... e riqueza.
Passando pelas bolsas de grife penduradas na parede, ela checou os estandes da Prada, Miu Miu e Chanel. As bolsas pareciam lindas mesmo sob o brilho fraco das luzes de segurança, e ela quase engasgou quando encontrou uma Gucci. Atravessando como um fantasma pelo painel trancado, agarrou uma bolsa de pele de cobra verde-escuro e continuou.
Fora sexo, pensou Devina, lojas de departamento de luxo proporcionam a melhor sensação que existe: milhares e milhares de metros quadrados cheios de coisas, tudo bem organizado, etiquetado e catalogado. E protegido.
Era um completo orgasmo para pessoas obsessivo-compulsivas.
Então precisava ter cuidado. Estava sentindo uma ligação surgir entre ela e todas aquelas mercadorias e, se isso acontecesse, havia o perigo de criar uma sensação de posse sobre aquelas preciosidades. E isso não seria bom para ninguém. Ela teria de matar os humanos que entrassem ali para fazer compras, e isso seria exaustivo.
Mas toda aquela organização a fez pensar que poderia usar seu notebook Lenovo e entrar para a era digital com suas próprias coleções.
Talvez o próximo virgem que sacrificaria para proteger seu espelho seria um nerd. Depois ela poderia reanimá-lo e fazê-lo trabalhar para si.
Afinal, havia muitos programadores de computador por aí que não conseguiam nem chegar perto de uma mulher. Seria muito fácil.
Entrando na parte central do primeiro andar, ela encontrou os balcões de maquiagem: o balcão da Chanel com sua conhecida maquiagem preta e brilhante, o da Lancôme cheio de recipientes de vidro... e o da Yves Saint Laurent, com muitos detalhes dourados ao redor dos mostruários.
Indo para trás do balcão, ela abriu o cadeado da prateleira que estava ao chão, e, enquanto abaixava e se apoiava na ponta dos pés, sua mão iluminou o caminho, lançando luz sobre as pequenas etiquetas grudadas nas embalagens.
A etiqueta 1 Le Rouge foi fácil de achar. Ela pegou um pacote, abriu a caixa e retirou o brilhante tubo de metal. Lindo, tão lindo, novinho em folha, intocado. Ela quase estremeceu quando girou e expôs a perfeita coluna de batom vermelho.
O perfume, delicado e com toques florais, fez Devina revirar os olhos.
A terapeuta estava certa: o ataque de pânico não durou para sempre naquele consultório, e quando Devina continuou com seus afazeres mais tarde, a ansiedade de ter jogado o batom fora acabou sendo esquecida enquanto ela dava atenção a outras coisas. Porém, a sensação ressurgiu quando ela voltou para seu espaço privado e sentou em frente ao espelho, pronta para descer até seu muro e aproveitar um pouco de tempo sozinha com suas crianças.
Entram os problemas.
Seus pensamentos rapidamente saíram de controle, surgiam imagens de um compactador de lixo e pilhas enormes e mal cheirosas de dejetos em grandes aterros desolados, que a faziam querer chorar.
Devina poderia ter voltado para pegar aquele batom específico, mas queria honrar a religião da terapeuta: tornar-se obcecada em conseguir de volta aquele batom, sem se importar com as consequências, seria voltar também para seu ciclo vicioso.
Mas ela não podia trilhar esse caminho o tempo todo – e por isso estava na loja e não no consultório, e agora tinha um novo e lindo batom para substituir aquele que sacrificara em nome do autoaperfeiçoamento.
Havia mais cinco batons da cor que gostava, todos empilhados formando uma bonita pirâmide. Ela esticou a mão, com vontade de pegar todos, para servirem de reservas dos reservas, mas impediu a si mesma. Fechou a prateleira. Teletransportou-se para longe.
Saiu de lá orgulhosa de si mesma.
Fim do intervalo; hora de voltar ao trabalho.
Voltando à vitrine pela qual entrara, parou em frente a um dos manequins. A coisa usava uma peruca loira e vestia uma roupa florida que Devina nunca usaria, nem morta.
Mas, então, começou a imaginar o que Jim Heron pensaria se a visse vestindo aquilo.
Sem dúvida fazia seu tipo: feminina, bonita, nada muito revelador. Modesta.
Aquele cretino. Enganador mentiroso.
Naturalmente, o fato de tê-la enganado tão bem apenas o deixava mais atraente.
Devina franziu a testa quando a voz da terapeuta surgiu em sua mente. Terapia cognitiva de comportamento... reprogramar o cérebro por meio de experiências...
O demônio se aproximou e passou a mão pelos cabelos falsos, aqueles longos e lisos fios amarelos.
Sissy Barten, a queridinha de Jim, tinha cabelos iguais àqueles. E teria adorado aquele vestido. Teria se mantido ao longe e esperado Jim se aproximar, nunca se jogaria nele, manteria sempre aquele jeitinho virginal.
O que era suficiente para fazê-la querer matar os dois – e com aquela garotinha estúpida seria a segunda vez, pois já tinha rasgado sua garganta na banheira.
Devina começou a sorrir. E então riu.
Com um rápido movimento, arrancou a peruca, deixando o manequim careca, e saiu através do vidro.
CAPÍTULO 6
Tinha de ser um sonho, não é?
Adrian tinha de estar sonhando. Mas, caramba, tudo parecia real, desde o sofá de veludo sob o seu traseiro, a cerveja gelada em sua mão, até a batida visceral do som na boate.
Estava com medo de virar a cabeça. Medo de descobrir que estava ali sozinho naquele lugar barulhento e desesperador, cheio de pessoas vazias iguais a ele.
Se estivesse sozinho, então Eddie estava mesmo morto.
Deu um gole na cerveja, preparou-se e então virou.
Adrian lentamente abaixou a garrafa, exalando todo o oxigênio para fora de seus pulmões.
– E aí, cara? – ele sussurrou.
Os olhos vermelhos de Eddie se viraram.
– Ah... oi – o cara se ajeitou no assento. – Escute, você tá bem?
– Sim, é só que...
– Por que tá olhando pra mim desse jeito?
– Senti sua falta – Ad disse com a voz grave. – Achei que nunca mais ia te ver.
– Só porque fui até o banheiro? – Eddie sorriu. – Geralmente, eu volto de lá.
Ad esticou a mão, sabendo que um toque provaria de que lado estavam...
Eddie franziu a testa e se inclinou para trás, como se Ad tivesse revelado um par de chifres.
– O que há de errado com você?
O rosto de Eddie parecia exatamente o mesmo: a pele bronzeada pelo sol, um vestígio de barba, aqueles olhos avermelhados estavam abertos para o mundo, nem desconfiados e nem ingênuos, e uma pesada trança que percorria as costas musculosas.
– Eu não sei – disse Ad esfregando o rosto.
– Quer ir embora?
– Deus, não.
– Certo – aqueles olhos vermelhos voltaram-se para a multidão. – Então, você vai me forçar a transar de novo?
Ad riu alto.
– Certo. Foi isso que aconteceu. Claro.
– Jogando mulheres para cima de mim...
– Eu nunca joguei...
– Escolhendo as que sabe que vou gostar...
– Bem, isso eu fiz...
– Arruinando minha virtude.
Quando o cara deu outro gole, Ad ficou sério.
– Ninguém poderia fazer isso.
– É, você tem razão. Antes de me tornar um anjo, eu era uma virgem imaculada.
– O que explicaria esse cabelo todo.
– Não, o cabelo me faz parecer gostosão.
Ad riu novamente e se recostou no sofá sentindo uma súbita injeção de energia percorrer seu corpo. Era uma sensação de que a vida voltara ao normal, que a tragédia não acontecera, que tudo voltara à maneira como deveria ser; era um alívio tão grande que, mesmo sentado, ele sentia como se estivesse voando. Com uma pontada de otimismo, seus olhos percorreram a multidão. Seu radar para mulheres voltava a funcionar e sua rara felicidade transformava periguetes em modelos internacionais.
– Está vendo alguma coisa que te agrade? – Eddie perguntou.
– Se não fosse por mim, você nunca conseguiria uma transa.
– Sabe, eu não acho que isso seja verdade.
– Você é sincero demais.
– Droga.
Ah, sim, aquela ruiva serviria, Ad pensou. E ela estava junto com uma morena...
Franziu a testa e ficou tenso. Havia alguém ao redor, no canto mais afastado, observando-os das sombras.
– Tá na hora – disse Eddie. – Ou fazemos isso agora, ou pedimos outra rodada. Ad? Olá?
Adrian chacoalhou a cabeça.
– Sim... claro.
Seu melhor amigo lhe lançou um olhar desconfiado novamente.
– O que há de errado com você, cara?
Boa pergunta, pensou enquanto se levantava.
– Vou ver o que posso pescar por aí.
– Sem pressa... só não demore muito.
– Isso não é uma contradição?
– Não quando se trata de você.
Os dois riram um pouco. E então Ad se concentrou nas duas mulheres. Quando se aproximou da ruiva e da morena, elas responderam com uma previsível risadinha, nada comparado com os orgasmos que resultariam daquele encontro.
– Meu nome é Adrian – ele disse. Seu lento sorriso fez as mulheres arregalarem os olhos e ajeitarem suas poses: peito levantado, barriga para dentro, pernas esticadas para expor as coxas.
– Gosto do seu perfume – ele disse, inclinando-se para perto do pescoço da ruiva.
Na verdade, não tinha sentido o cheiro ainda, e nem se importava.
Quando puxou o ar, ele congelou. Aquele cheiro. Era...
– Que bom que gostou – ela disse, enquanto acariciava as costas dele até chegar em seu traseiro. – Escolhi exatamente pra alguém como você.
Adrian se afastou, seu cérebro doía. Ou talvez fosse seu peito.
– Certo. Bom.
Olhou por cima do ombro. Eddie estava no sofá, todo espreguiçado, mas totalmente atento, como se estive pronto para o sexo.
Ou seja, estava normal.
Adrian assentiu na direção dele.
– Trouxe um amigo. E você?
– Minha amiga tem namorado – murmurou a ruiva, como se isso fosse um defeito.
– Desculpe – disse a outra mulher.
Como se isso importasse.
– Certo, só você então. Consegue aguentar os dois?
Quando a garota assentiu como se tivesse ganhado na loteria, ele tomou sua mão, e o perfume dela os seguiu, fazendo Ad desejar que a solteira fosse a morena, e que fosse aquela Jessica Rabbit com maquiagem gótica quem tivesse namorado. Mas não dava para voltar atrás – seria trabalhoso demais achar outra candidata e, além disso, o que fariam não era nada permanente. Nunca era permanente.
Mas que droga de perfume de flores – dava até arrepios.
Quando chegaram no sofá, a ruiva foi se jogando no meio, cobrindo tanto as pernas dele como as de Eddie. E, como ela acabou de frente para o outro anjo, Eddie começou a beijá-la intensamente.
Para um cara que não sabia se aproximar de mulheres, ele tinha um apetite e tanto.
Enquanto Ad assistia, e impulsionava seu quadril e peito contra o corpo da mulher, pensou que era incrível o poder que um pesadelo pode ter. Era como se toda aquela merda que ele imaginara sobre Eddie tivesse realmente acontecido: aquele lacaio do demônio aparecendo do nada e rasgando o anjo com uma lâmina, tirando a letra I da palavra imortal. E então a morte, no saguão daquele banco, não muito longe dali. E depois o sofrimento de Adrian, a sensação de ter perdido toda a razão de viver...
Adrian franziu a testa e se perguntou por que falava consigo mesmo como se aquilo realmente tivesse acontecido...
A ruiva se arqueou e abriu as pernas, claramente o convidando-o para brincar no parquinho. E quando ele obedeceu, Eddie passou a trabalhar em seus peitos, baixando um pedaço da blusa, de forma mais agressiva do que o normal, e expondo um par de seios menor do que aparentava.
Quando Adrian estava prestes a mergulhar a mão em território inexplorado, a garçonete apareceu trazendo novas garrafas. Parecia acostumada com aquele showzinho, pois nem piscou ao servir a cerveja.
– Eu pago – disse Ad, tirando a carteira do bolso da calça e entregando uma nota de vinte. Quando a garçonete foi embora, ele olhou para a cerveja, e então virou imediatamente para Eddie. – Coors Light? Que merda é essa?
O outro anjo parou o beijo e deu de ombros.
– Estou controlando meu peso.
Ad revirou os olhos e voltou ao trabalho com o prato principal. Subindo as mãos debaixo da saia curta, ficou surpreso ao descobrir uma calcinha com a resistência de vigas de aço e a elasticidade de uma tenda do exército. Que diabos? Bem, ele pensou, uma calcinha modeladora era mais barata do que uma sessão de lipo.
O perfume voltou a invadir seu nariz, sugerindo que, afinal, talvez não viesse da mulher.
Olhou ao redor, mas não enxergou nada fora do comum.
– Acho que você deveria ser o primeiro – disse Eddie, enquanto brincava com aqueles seios... que agora pareciam meio caídos.
E aquele cabelo. Antes era volumoso e ondulado, agora parecia um pouco crespo.
A mulher sorriu, revelando dentes tortos.
– Vai, Adrian... transa com ela – na escuridão, os olhos de Eddie pareciam tudo menos brilhantes. – Quero assistir vocês.
A mulher tomou a mão de Ad e a colocou de volta entre suas pernas, esfregando a si mesma contra sua palma e dedos...
No meio da multidão, uma pessoa surgiu: uma figura alta e orgulhosa, vestindo um roupão branco. Quando se aproximou, o cheiro de flores ficou mais forte e tomou todo o ar ao redor...
Eddie.
Era o Eddie real, de pé ali na sua frente, uma presença verdadeira em meio a uma multidão de mortos vivos.
– Ah, que merda! Justo agora que as coisas estavam ficando interessantes!
Ad virou a cabeça bruscamente. Devina estava ao seu lado na outra ponta do sofá, pela primeira vez mostrando sua forma verdadeira: era um cadáver animado, a carne perpetuamente caindo dos ossos, a grotesca palma apodrecida passeando pelos seios da ruiva. A expressão do demônio mostrava irritação, seu queixo e lábios estavam apertados ao máximo.
Adrian gritou e tentou se levantar rapidamente, mas a ruiva segurou sua mão no lugar – e, enquanto ele lutava contra sua imensa força, ela também revelou sua verdadeira aparência: outro corpo decrépito, a ilusão de beleza sumindo como se não fosse mais possível sustentá-la.
Enquanto ele tentava se desvencilhar, uma mancha negra começou a subir ao longo do braço, primeiro nos dedos, depois nos pulsos, seguindo seu caminho para o cotovelo.
Gritando alto, ele se sacudiu violentamente, mas estava preso como uma mosca em uma teia de aranha, como um rato em uma ratoeira, como um...
Eddie, o verdadeiro, aquele que estava morto, quebrou aquela conexão com um simples toque, não em Ad, mas na ruiva: aparecendo atrás deles de repente, apenas se inclinou e encostou o dedo iluminado no ombro do monstro. Puff! Ela simplesmente sumiu.
Enquanto Devina xingava o anjo, Adrian se libertou: seu corpo caiu para trás do sofá, com os olhos fixos em Eddie enquanto o coração se partia novamente por causa da perda.
– Vá se foder! – Devina gritou para o anjo.
O rosto de Eddie, aquele rosto esperto, gentil e maravilhoso, não mostrou reação ao insulto. Ele apenas acenou com a cabeça para a garrafa de cerveja Coors e disse:
– Na sua condição, eu estaria preocupado com muitas outras coisas mais importantes do que meu peso.
Mais xingamentos vieram, mas Devina não fez nada além disso – era de se imaginar o que Eddie tinha realmente feito com aquele dedo luminoso do E.T.
O outro anjo observou Ad por um longo tempo, como se sentisse ainda mais falta do amigo vivo.
– Nunca estarei longe – disse Eddie com um sussurro.
– Ah, merda... não vá embora – murmurou Ad. – Fique aqui.
– Que comovente – os olhos negros de Devina estavam furiosos. – Você quer dar um beijinho antes de ir embora?
Eddie começou a se mover como se fosse uma estátua em uma esteira rolante, seu corpo paralisado sendo puxado através da multidão, o perfume de flores se desvanecendo.
– Eddie! – quando Adrian levantou as mãos na direção do anjo, a mancha negra em seu braço quase chegava aos ombros.
– Estou dentro de você – disse Devina com satisfação. – E é tarde demais pra fazer qualquer coisa a respeito disso. Tarde demais!
Adrian gritou a plenos pulmões.
CAPÍTULO 7
Matthias acordou com a luz do dia batendo em seu rosto. Não tinha certeza de quando aquela enfermeira de mão boba saíra, mas ele pretendia partir assim que ela fosse embora. Um sono não natural o arrebatara, deixando-o inconsciente de tal forma que se sentiu dominado.
Francamente, estava surpreso por ter conseguido acordar.
O quarto do hospital parecia exatamente o mesmo, mas por que haveria de mudar durante a noite? E Matthias sentia-se mesmo melhor, como se seu corpo fosse um carro recém-saído do mecânico.
Quem diria que uma masturbação não solicitada poderia ter um impacto tão grande...
Mas era estranho. Quando olhou ao redor, teve a sensação de que era um milagre o fato de ele ainda estar “do lado de fora”. Mas estava fora de onde? Uma prisão? Um hospício? Algo ainda pior?
Forçando seu cérebro confuso a prestar atenção, tentou lembrar onde estivera na noite anterior, o que havia acontecido antes de acordar ali...
Eu te atropelei. Sinto muito.
Matthias fechou os olhos e se lembrou daquela mulher, Mels Carmichael. Alguma coisa nela penetrara o nevoeiro que o cercava, tocando-o onde realmente importava. Por quê? Não fazia ideia – mas sabia que, sob outras circunstâncias, gostaria de passar mais tempo com ela.
Muito mais.
Mas, qual é, ele não era do tipo romântico – sua intuição dizia isso em alto e bom som.
Levantando a cabeça dos travesseiros, ficou surpreso por não se sentir pior. Deu uma chance a seu corpo para deixar a ficha cair e começar a dar as informações corretas, algo mais consistente para alguém que fora atropelado há menos de doze horas.
Nada. Ainda sentia-se bem...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Certo, ajudaria se soubesse quem estava atrás dele, ou por que estava fugindo, mas não perderia tempo tentando decifrar essas perguntas – não quando sua adrenalina estava consistentemente apontando para a saída e gritando para ele dar o fora dali.
– Acho que você não é um anônimo, afinal.
Matthias tentou sacar uma arma que não tinha e olhou ao redor. A enfermeira estava de volta, de pé ao lado da porta, aparecendo como se fosse carregada pelo vento.
Sua aparência era diferente sob a luz do dia. Já não parecia sedutora.
Talvez ela fosse um vampiro. Há, há.
– Encontraram sua carteira – ela disse, mostrando uma carteira de couro preto. – Está tudo aqui, identidade, cartão de crédito... até seu cartão de seguro saúde! A conta no hospital vai ficar cara, mas a maioria das despesas está coberta.
Ela andou e colocou a carteira na mesa de rodinhas, bem ao lado do cartão que aquela jornalista tinha deixado. Então ela deu um passo para trás, como se soubesse que ele queria espaço.
Houve uma longa pausa.
– Obrigado – ele disse, tentando preencher o silêncio.
Ela estava vestida com roupas casuais: jeans azul, sapatos pretos, jaqueta branca folgada que parecia nova em folha. O cabelo estava solto e chegava até os ombros, e ela o alisou com a mão, mesmo já estando perfeito.
– Também trouxe algumas roupas – ela acenou com a cabeça. – Estão no armário atrás de você. Espero que sirvam.
– Então vão me liberar?
– Desde que se sinta bem esta manhã. Tem alguém te esperando em casa?
Ele não respondeu – e não por não saber a resposta. Nunca respondia nada para ninguém. Esse era seu jeito.
Mais uma longa pausa.
Ela limpou a garganta e desviou os olhos quando disse:
– Escuta, sobre ontem à noite...
Então era por isso que ela estava ali.
– Vou me esquecer disso, e você deveria fazer o mesmo – ele disse secamente.
Deus sabia que Matthias tinha problemas mais importantes do que ter sido abusado por uma mulher bonita. Pois é, que história triste. Especialmente se comparada com as coisas que ele fez com outras pessoas...
Lembranças emergiram do fundo de sua consciência, como um monstro esquecido num lago profundo ameaçando se revelar.
Afinal, quem era ele?
De repente os olhos negros da enfermeira grudaram nos seus.
– Sinto muito mesmo. Aquilo foi muito errado da minha parte. Nunca deveria ter...
Voltando ao presente, Matthias pensou que era engraçado que, à luz do dia, todo aquele poder que ela tinha sobre ele houvesse desaparecido totalmente. Ela nem parecia ser o tipo de mulher que poderia ser tão agressiva. Era apenas uma jovem enfermeira bonita, com um belo corpo e um cabelo lindo, e que agora parecia vulnerável.
Será que aquilo tinha mesmo acontecido? Ele provavelmente recebera vários analgésicos, e Deus sabe o quanto esses remédios podem bagunçar a cabeça de uma pessoa.
Por outro lado, se nada tivesse acontecido, ela não estaria ali se desculpando, não é?
– Foi uma total quebra de protocolo, eu nunca fiz nada assim antes. É só que... você estava com tanta dor, e você queria... e...
Ele queria? Lembrava-se do completo oposto. E lembrava que... teve um orgasmo. Talvez isso também não tivesse acontecido.
O que faria sentido.
– Enfim, pensei que deveria te dizer isso antes de ir embora... e você não vai mais estar aqui quando eu voltar da minha folga.
Ela parecia honestamente envergonhada e constrangida. Por alguma razão, Matthias teve a sensação de que fazia parte de sua personalidade tirar vantagem das pessoas, por nenhum motivo além de deixá-las constrangidas.
– Foi minha culpa – ele se ouviu dizer e, no instante que as palavras saíram, acreditou na confissão. – Sou eu quem deveria pedir desculpas.
Afinal, sexo por piedade acontecia sempre com um mesmo princípio, quer o ato fosse até o fim ou não: “oh, estou doente; pode cuidar do meu pau? obrigado, querida”.
A enfermeira pousou a mão na armação da cama.
– Eu só... é, bom, só não quero que pense que fico por aí fazendo essas coisas – ela riu, sem jeito. – Não sei por que isso importa. Mas importa.
– Você não precisa se explicar.
Quando ela ergueu o olhar, sua expressão cuidadosa relaxou e se transformou em um sorriso genuíno. O que o fez checar seu dedo anelar procurando por algum certificado de casamento.
Nada. Nenhuma aliança.
– Obrigada por não ficar bravo – ela olhou por cima do ombro em direção à porta. – Acho que eu deveria ir. Se cuide... e por favor lembre-se de fazer a consulta de retorno com seu médico. Lesões na cabeça e perda de memória são coisas sérias.
– Sim. Vou fazer isso.
Mentir foi muito fácil, Matthias sabia que tinha mentido muito durante sua vida. E quando acenou de volta, sua mente a analisava como se ela fosse um relatório ou uma correspondência, não uma pessoa – mas isso não era culpa dela.
Ele sentia que era assim que sua mente funcionava.
Ótimo. Nada como acordar de manhã e aprender passo a passo que você é um verdadeiro filho da puta.
Observou a mesa ao lado da cama. O cartão de visitas e a carteira estavam um ao lado do outro.
Matthias estendeu a mão, sem saber qual deles pegar.
No fim, a atração pela carteira parecia maior. Ao abrir o couro dobrado, observou a carteira de motorista que estava na parte transparente. A foto era... bem, não reconhecia aquele rosto, mas a enfermeira da mão boba parecia pensar que era ele. Era assim que se parecia? Um cara de cabelo preto e um rosto bonito, porém frio.
As informações impressas diziam que ele tinha olhos azuis – e naquela foto parecia que ambos funcionavam. A data de nascimento era naquele mesmo mês. E a data de validade já havia passado.
O primeiro nome, Matthias, de fato era como as pessoas o chamavam. O endereço ficava na cidade de Caldwell, Nova York, o que resolvia o problema geográfico... que ele nem percebera ter.
Caldwell, Nova York.
Estava de volta. Pelo menos era isso que seus instintos diziam...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Deixando a urgência de lado, começou a sair da cama devagar. Quando percebeu que estava preso, retirou as sondas intravenosas e o monitor cardíaco. Inclinando-se até os equipamentos ao lado, desligou os alarmes e arrastou-se para o banheiro.
A luz estava apagada, e quando apertou o interruptor... o show começou.
Matthias quase perdeu o fôlego ao ver a própria imagem refletida no espelho da pia. Um de seus olhos exibia um branco leitoso, e seu rosto estava esculpido com as linhas indeléveis de um passado cheio de dor – além de cicatrizes na testa onde sua lesão ocular aconteceu.
A fotografia na identidade era mesmo dele, principalmente se você adicionar um pouco de cabelo grisalho nas laterais, mas tinha sido tirada antes de...
– Senhor, preciso pedir que volte para a cama, pois está correndo o risco de escorregar e cair. E não deveria ter tirado as...
Ele ignorou a nova enfermeira.
– Estou indo embora. Agora mesmo. As regras do hospital, é, eu sei.
Fechou a porta na cara dela e abriu o chuveiro. Por alguma razão, quando voltou a focar o espelho, pensou em Mels Carmichael. Não foi à toa que a primeira reação dela ao vê-lo fora na linha do oh, meu Deus.
Ele não estava exatamente bonito...
Deus, por que estava pensando daquela maneira? Que importava o que os outros achavam dele?
Com a coordenação melhorando depressa, abriu a porta e olhou para dentro do quarto. A enfermeira não estava mais ali, mas com certeza voltaria trazendo alguém com um crachá de médico – era hora de se mexer rapidamente. Agarrou o cartão que Mels deixara e o guardou na carteira. Então pegou as roupas do armário e se trancou no banheiro.
Dez minutos mais tarde, Matthias estava com os cabelos e o corpo limpos, vestindo camiseta e jaqueta pretas e um jeans folgado.
Ao caminhar para fora do quarto, agarrou uma bengala que assumiu estar lá para ele.
O objeto parecia natural em sua mão e fez seus passos ficarem muito mais rápidos. Como se estivesse acostumado a usá-la.
Dirigindo-se para os elevadores, não pediu autorização para ninguém, não assinou nenhuma linha tracejada. O departamento de cobrança encontraria o homem que morava no endereço que aparecia na carteira de motorista.
E talvez ele também encontrasse esse homem.
O grito de Adrian acordou Jim e o fez saltar da cama, aterrissando em uma posição de luta. Com uma adaga de cristal em uma das mãos e uma pistola semiautomática na outra, estava pronto para lutar, fosse na arena dos humanos ou na de Devina. O Cachorro, que não era bobo, estava se protegendo debaixo da cama.
– Estou bem – disse Adrian, com a convicção de alguém que estava sangrando por uma veia.
Claro, com certeza, pensou Jim, que chegara correndo.
Sob a luz do sol que raiava entre as persianas, o anjo parecia completamente acabado, esparramado ali no chão, com grandes olheiras, cabelo desarrumado, mãos tremendo ao puxar a gola de sua camiseta Hanes. Seus piercings, aquelas argolas de metal que circulavam seus lábios, todo o lado da orelha e marcavam sua sobrancelha, eram as únicas coisas que brilhavam. Tudo o mais parecia sem vida.
Sua luz interior havia se apagado.
Jim estendeu a mão para o cara.
– Hora de levantar.
O outro anjo tomou sua mão, e por um momento os músculos de Jim ficaram tensos ao sentir uma desagradável pontada fluindo por seu braço e ativando seus instintos de um modo ruim. Mas então levantou Ad do chão, e aquilo desapareceu.
– Você já foi encontrar Nigel e os garotos? – perguntou Ad, enquanto andava como se tentasse se livrar da sensação ruim que tivera durante o sono.
– Por que eu faria isso?
– Boa pergunta.
Com essa deixa, Adrian foi até o banheiro e fechou a porta. Depois da descarga, o chuveiro foi ligado, e então foi a vez da pia.
Jim aproximou-se da porta e falou através da madeira fina:
– Você sonhou com o quê?
Quando não obteve resposta, fechou o punho e bateu.
– Adrian. Conte o que foi.
Deus sabia que Devina usava todo tipo de truques para conseguir o que queria. A ideia de que ela poderia invadir a cabeça de Ad pela porta dos fundos soava bem óbvia.
Bateu de novo na porta.
Quando não houve resposta novamente, Jim mandou a privacidade para o inferno e entrou.
Através da cortina de plástico do chuveiro, viu Adrian no chão de novo, desta vez com o piso frio do banheiro sob seu traseiro. Estava encolhido, com os cotovelos contra o peito, o rosto enterrado nas mãos. Não estava chorando, ou praguejando, nem parecia desesperado, mas talvez isso fosse o mais preocupante. O anjo estava apenas sentado debaixo da água quente, seu grande corpo enrolado em si próprio.
Jim abaixou o assento da privada e sentou.
– Converse comigo.
Depois de um momento, o anjo disse com a voz rouca:
– Ela era o Eddie. No meu sonho, ela era o Eddie.
Merda.
– Isso faria qualquer um gritar.
– Ele estava lá também. Foi ele quem me acordou, na verdade. Droga, Jim... ver Eddie de novo foi...
Enquanto a frase sumia, Jim inspecionou a lâmina de sua adaga com um cuidado especial.
– É, eu sei.
– Vou matá-la.
– Só se chegar antes de mim.
Adrian deixou os braços caírem para os lados e seus punhos acertaram a poça de água que se acumulava ao redor de seu corpo. Ele parecia derrotado, mas seria apenas por um momento. Sua raiva retornaria assim que aquele demônio aparecesse por perto e, francamente, a previsível resposta seria um problema: ninguém quer ver o próprio parceiro ficar cego pela raiva, e aquele sentimento não era fácil de controlar.
– Acho que você precisa pedir um novo parceiro para Nigel – Ad disse suavemente. Como se tivesse lido os pensamentos de Jim.
– Não quero outra pessoa.
Mas isso era mentira. Ainda estava aprendendo a lidar com as próprias habilidades e armas – claro, a curva de aprendizado já não era mais tão íngreme quanto nas primeiras rodadas, mas ele ainda estava longe de saber tudo. E Devina não era o tipo de inimigo contra o qual um desempenho mediano fosse aceitável.
Por causa disso, ele precisava de um parceiro sólido lhe dando cobertura.
Honestamente, Eddie era a peça que estava faltando. E fora precisamente por isso que o inimigo o abatera.
Maldita vadia!
– Você conhece mais alguém? – perguntou Jim.
– Tinha outro cara; na verdade, ele ficava acima de mim e de Eddie. Quase no nível de Nigel e Colin. Mas ele teve problemas. A última vez que ouvi falar, ele estava preso no Limbo. Bom, mas era um cara imprevisível. Talvez você fique melhor comigo mesmo, nesse caso.
– Temos que trazer Eddie de volta de alguma maneira...
– Ele era o único que saberia como fazer isso – Adrian soltou um grunhido e ficou de pé, sua figura massiva se erguendo como uma árvore. – Talvez o Colin.
Jim assentiu e voltou a observar sua adaga de cristal. A arma era transparente como um cubo de gelo, forte como aço, leve como uma pena. Fora Eddie quem lhe dera.
Ouviu um barulho de algo caindo no chão molhado e voltou os olhos para o parceiro. Ad deixara cair o sabonete, suas mãos estavam erguidas próximas ao rosto e sua boca parecia tentar praguejar.
– O que foi?
– Ah... merda... – Ad observou as costas das mãos. – Merda, não...
– O quê?
– Estão pretas – o anjo mostrou os braços. – Você não vê? Ela está dentro de mim, Devina está dentro de mim... e está me dominando...
Jim ficou aturdido por um momento, mas sabia que precisava fazer alguma coisa para trazer aquela situação de volta à realidade, e mais que depressa. Deixou a adaga na pia, tirou a cortina de plástico do caminho e agarrou os pulsos de Adrian.
Aquela sensação ruim se apoderou dele de novo, estimulando as terminações nervosas de seus dedos e palmas, como se as tivesse mergulhado em ácido. Concentrou-se na pele de Adrian e imaginou o que diabos tinha acontecido naquele sonho.
Mas a carne estava completamente normal. E pessoas que perdem seus melhores amigos têm motivos de sobra para perder também a razão. Mas não podiam permanecer assim.
– Adrian, meu amigo... – ele deu uma bela sacudida no cara – ei, olhe para mim.
Quando o pobre coitado finalmente olhou, Jim encarou aqueles olhos como se estivesse entrando em sua mente e tomando parte de seu cérebro.
– Você está bem. Não há nada de errado aqui. Ela não está dentro de você, ela não está aqui e...
– Você está errado.
As palavras sombrias fizeram Jim parar de repente. Mas então balançou a cabeça.
– Você é um anjo, Adrian.
– Eu sou?
Com a voz grave, Jim respondeu:
– Digamos que... é bom que você seja.
Após um silêncio tenso, os lábios de Jim começaram a se mover, palavras eram ditas, sílabas sensatas e apaziguadoras cruzavam a distância que os separava. Mas, no fundo de sua mente, ele rezava por quem quer que estivesse ouvindo.
Devina era um parasita, o tipo de coisa que invade as pessoas e as infecta.
Fazia sentido que alguém emocionalmente abalado fosse mais vulnerável.
Porém, a tragédia era que ele não podia ter o inimigo tão perto assim.
Não importava o quanto amasse seu amigo.
CAPÍTULO 8
– O que aconteceu com seu olho?
Mels entrou na cozinha de sua mãe, não respondeu a pergunta e foi direto para a garrafa de café. O fato de o objeto estar do outro lado, e por isso permitir que ela tomasse o café de costas para a mãe, era um bônus além da cafeína.
Maldita maquiagem. Elas supostamente serviam para cobrir aquilo que você queria esconder. Como pés de galinha, olheiras... e hematomas de acidentes de carro sobre os quais você preferia que sua família não ficasse sabendo.
– Mels?
Não precisava se virar para ver o que estava atrás dela: sua mãe, magrinha e baixinha, aparentando ser mais jovem do que era, estaria sentada do outro lado da mesa, com o Correio de Caldwell aberto ao lado de uma tigela de cereal rico em fibras e uma xícara de café. Os cabelos lisos pretos com mechas grisalhas estariam penteados num corte bem aparado, e as roupas seriam casuais, mas parecendo perfeitamente passadas a ferro.
Sua mãe era uma dessas mulheres pequeninas que sempre pareciam bem arrumadas, mesmo sem maquiagem. Como se tivesse nascido com uma lata de spray para cabelo debaixo de um braço e uma escova debaixo do outro.
Mas ela era frágil. Como um bibelô gentil e bondoso.
Era uma porcelana delicada, em contraste com o touro que fora seu pai.
Sabendo muito bem que a pergunta ainda estava no ar, Mels serviu-se de café. Tomou um gole. Manteve-se ocupada passando uma toalha de papel em um balcão que já estava limpo e seco.
– Ah, não foi nada. Escorreguei e caí. Bati a cabeça na torneira do chuveiro. Foi tão estúpido!
Houve um momento de silêncio.
– Você chegou tarde ontem à noite.
– Fiquei na casa de uma amiga.
– Você não tinha falado que ia num bar?
– Fui pra casa dela depois do bar.
– Ah. Entendi.
Mels ficou observando a janela em cima da pia. Com sorte, sua tia ligaria a qualquer momento, como geralmente fazia, e ela não teria que inventar mais uma mentira para explicar por que voltara de táxi do trabalho.
Os sons de goles de café e cereal sendo mastigado preencheram a cozinha, e Mels tentou pensar em algum assunto minimamente normal para conversarem. O clima. Esportes – não, sua mãe não tinha interesse em atividades organizadas que envolviam campos, bolas ou raquetes de qualquer tipo. Livros seria uma boa opção – porém Mels não lia nada além de estatísticas criminais, e sua mãe ainda estava no trem do Clube do Livro da Oprah, mesmo esse trem já não tendo motor ou trilhos.
Deus... momentos como esse a faziam sentir tanta falta do pai que até doía. Os dois nunca ficavam constrangidos um com o outro. Nunca. Conversavam sobre a cidade, ou sobre seu trabalho como policial, ou sobre a escola... ou simplesmente ficavam em silêncio – e, de um jeito ou de outro, nunca havia problema. Mas com sua mãe?
– Então – Mels tomou outro gole de café –, o que vai fazer de bom hoje?
Recebeu uma resposta, mas não a ouviu porque seu desejo de sair gritava alto demais.
Mels terminou o resto de seu café preto – sua mãe tomava com leite e açúcar –, colocou a xícara na lava-louça e cruzou os braços.
– Então, vejo você à noite – ela disse. – Não vou chegar tarde. Prometo.
Os olhos de sua mãe se levantaram para encontrar os dela. A tigela cheia de cereal integral era rosa e tinha pequenas flores brancas em volta, a toalha de mesa tinha flores amarelas e o papel de parede tinha flores maiores azuis.
Flores por toda a parte.
– Você está bem? – perguntou a mãe. – Precisa ir ao médico?
– É só um machucado. Nada de mais – olhou para a sala de jantar. Do outro lado da mesa de mogno, depois da cortina branca, um Chevrolet amarelo estacionou. – O táxi chegou. Deixei meu carro no bar porque bebi uma ou duas taças de vinho.
– Ah, você podia pegar o meu carro para ir trabalhar.
– Você vai precisar dele – ela olhou para o calendário pendurado na parede, rezando para que algo estivesse marcado ali. – Hoje você tem jogo de cartas às quatro.
– Eu podia ir de carona. Ainda posso, se você quiser...
– Não, é melhor assim. Posso pegar meu carro e dirigir de volta pra casa.
Droga. Acabara de criar um problema. A única maneira de Fifi ir para qualquer lugar seria na traseira de um caminhão de guincho – a pobrezinha fora levada para um mecânico.
– Ah. Tá bom.
Quando sua mãe caiu no silêncio, Mels teve vontade de pedir desculpas, mas era difícil demais colocar aquele complicado desculpe em palavras. Inferno, talvez ela precisasse simplesmente se mudar dali. Ficar constantemente exposta àquela bondade e autossacrifício, em vez de ser uma alegria, era um peso muito grande para carregar, pois nunca tinha um fim. Sempre havia uma sugestão, uma oferta, um quer-que-eu-isso-ou-aquilo...
– Preciso ir. Mas agradeço.
– Tá bom.
– Vejo você à noite.
Mels beijou o rosto macio que sua mãe ofereceu e saiu apressada pela porta da frente. Lá fora o ar estava fresco e agradável e o sol brilhava, prometendo calor na hora do almoço.
Entrando no banco de trás do táxi, ela disse:
– Escritório do Correio de Caldwell, na rua Trade.
– Pode deixar.
A caminho do centro da cidade, as molas do banco do táxi pareciam feitas de aço, e o estofado não era muito diferente de cimento, mas ela nem se importou com a viagem desconfortável. Sua mente estava caótica demais para pensar em seu traseiro sendo castigado por um banco duro.
Aquele homem da noite anterior ainda estava em seus pensamentos – podia quase senti-lo ao seu lado.
Fora assim durante toda a noite.
Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos e relembrou o acidente, checando duas, três vezes para ter certeza de que não poderia ter feito nada para evitá-lo. Então ficou pensando em outras coisas, como a maneira como o homem ficara deitado, totalmente imóvel, naquela cama de hospital.
Mesmo machucado, em alguns lugares com gravidade, ele ainda parecia um... predador.
Um poderoso animal, ferido, mas...
Certo, agora ela realmente estava perdendo a cabeça. E talvez devesse olhar mais de perto para sua vida amorosa – que era completamente vazia...
Infelizmente, Mels não conseguia parar de pensar na estranha atração que aquele homem exercera. Que desagradável, ela deveria é estar preocupada com a saúde e o bem-estar dele, além da possibilidade de querer processá-la e tirar dela o pouco que tinha.
Em vez disso, ela ficou pensando no som daquela voz rouca, e na maneira como ele a observara, como se qualquer detalhe dela fosse uma fonte de fascinação e importância...
Ele fora ferido há algum tempo, ela pensou. As cicatrizes ao lado do olho tinham se curado com o tempo.
O que será que acontecera com ele? Como era seu nome...?
Enquanto ela vagava pela terra das perguntas sem resposta, o motorista do táxi fez seu trabalho discretamente. Dezesseis dólares, dezoito minutos e um traseiro dolorido depois, ela chegou à redação.
O local já estava barulhento, com pessoas falando e andando apressadas, e aquele caos acalmou seus nervos – da mesma maneira que uma aula de ioga a deixava nervosa.
Ela sentou em sua mesa, checou o correio de voz, entrou em seu e-mail e pegou a xícara que vinha usando desde que herdou aquele lugar, há pouco mais de um ano e meio. Caminhou até a cozinha coletiva e encontrou seis opções de potes de café: nenhum deles era descafeinado; três eram da boa e velha marca Maxwell House; e os outros eram aquele horror com essência de nozes, um daqueles macchiato-sei-lá-o-quê.
Dane-se esse último. Se quisesse uma droga de um sorvete de caramelo, ela pediria um no almoço. Aquela coisa não devia ser colocada em uma xícara de café.
Enquanto servia seu café preto e puro, pensou na verdadeira dona da xícara, Beth Randall, a jornalista que sentara naquele cubículo por... bem, devia ter sido mais de dois anos. Em uma certa tarde, a mulher partira e nunca mais voltara. Mels lamentava o desaparecimento – não que conhecesse a colega muito bem – e sentia-se mal porque foram nessas as circunstâncias que ela finalmente conseguira um lugar só para ela.
Mantivera a xícara por nenhuma razão especial. Mas agora, enquanto tomava um gole, percebeu que a guardara por ainda ter esperança de que a mulher retornasse. Ou que pelo menos estivesse bem.
Parecia que Mels estava rodeada de pessoas desaparecidas.
Ou pelo menos foi assim que se sentiu naquela manhã. Principalmente quando pensou sobre o homem da noite anterior – aquele que nunca veria novamente, mas que não conseguia tirar da cabeça.
Aquela não era sua casa.
Quando o táxi estacionou em frente a um rancho em uma vizinhança modesta, Matthias sabia que não morava sob aquele teto. Nunca tinha morado. Não iria morar.
– Você vai descer do carro ou não?
Matthias encontrou os olhos do motorista através do retrovisor.
– Me dê um minuto.
– O taxímetro está correndo.
Concordando, ele desceu e usou a bengala para andar no passeio que levava à frente da casa, balançando a perna machucada em um longo arco para não ter de dobrar os joelhos. Não havia nada de lar, doce lar: a trepadeira invadia as janelas. O gramado não estava aparado. As calhas estavam cheias de mato que subia alto em busca do sol.
A porta da frente estava trancada, então ele fez uma viseira com as mãos para tentar olhar pela janela. Viu camadas de poeira. Móveis que não combinavam. Cortinas envelhecidas.
Havia uma caixa de correio barata pregada na parede. Ele abriu a tampa. Propagandas. Um talão de cupons de desconto endereçado ao “ocupante”. Nada de contas, solicitações de cartão de crédito, cartas. A única outra correspondência era uma revista da AARP1 endereçada ao mesmo nome que havia na sua carteira de motorista.
Matthias enrolou a revista, guardou no bolso da jaqueta e voltou para o táxi. Aquela não era sua residência – e mais ninguém morava ali. A pessoa que vivia ali devia ter morrido, digamos, há umas quatro ou seis semanas – tempo suficiente para a família cuidar das contas, mas não para esvaziar a casa e colocá-la à venda.
Entrando no táxi, fixou o olhar à frente.
– Para onde?
Com um grunhido, Matthias se ajeitou e puxou a carteira. Pegou o cartão de Mels Carmichael e foi atingido por uma profunda convicção de que não deveria envolver aquela mulher.
Era perigoso demais.
– E então, chefe?
Mas, droga, ele tinha de começar por algum lugar. E seu cérebro estava como uma conexão de internet fora do ar.
– Rua Trade – murmurou.
Enquanto dirigiam-se para o centro da cidade em meio ao trânsito pesado, ele observou os outros carros, onde pessoas bebiam café, conversavam com outros passageiros, paravam nos sinais vermelhos, avançavam nos verdes. Um mundo que parecia muito distante dele. O tipo de vida em que a pessoa trabalha das nove às sete todo dia, até morrer aos setenta e poucos anos. Essa não era a maneira como Matthias vivia.
Então, como ele vivia?, perguntou ao seu cérebro idiota. Como diabos ele vivia?
Tudo o que recebeu de resposta foi uma dor de cabeça.
Quando o edifício do Correio de Caldwell surgiu, Matthias pegou uma das dez notas de vinte que tinha na carteira.
– Guarde o troco.
O motorista parecia mais do que feliz em se livrar dele.
Usando a porta da frente como apoio, Matthias emergiu do carro sob a luz do sol, tomando cuidado para não corresponder a nenhum dos olhares curiosos. E havia muitos deles. Por algum motivo, ele tinha a tendência de atrair atenção, geralmente das mulheres – se bem que ficar atraída por alguém machucado era coisa normal de mulher, e ele estava cheio de cicatrizes no rosto.
Uau, que romântico.
Por fim, sentou-se na cadeira de plástico duro do ponto de ônibus do outro lado da rua, respirando a fumaça dos fumantes impacientes que esperavam o transporte público. A espera não o incomodava. Era como se ele estivesse acostumado a espreitar. Para passar o tempo, inventou um jogo: memorizava os rostos das pessoas que entravam e saíam dos escritórios do Correio de Caldwell.
Matthias era extremamente bom nisso. Só era preciso uma olhada para adicionar a pessoa ao seu banco de dados interno.
Pelo menos sua memória de curto prazo estava funcionando...
As portas duplas se abriram e lá estava ela.
Matthias se ajeitou na cadeira quando a luz do sol atingiu os cabelos de Mels e fez brilhar vários tons de castanho. Mels Carmichael, repórter associada, estava junto de um cara bem arrumado que precisava puxar a calça cáqui para cima antes de pisar nos degraus. Os dois pareciam estar discutindo amigavelmente sobre alguma coisa e, quando Mels sorriu, parecia que ela vencera o debate.
Como se soubesse que estava sendo observada, Mels olhou para o outro lado da rua e parou de repente. Ela tocou a manga do casaco de seu colega e disse algo, então eles se separaram e ela começou a se aproximar de Matthias, andando no meio do trânsito.
Matthias cravou a bengala no chão, levantou-se e ajeitou as roupas. Não tinha ideia de por que queria se arrumar para ela, mas queria – mas não dava para parecer pior. Vestia roupas que não eram dele, ainda cheirava a quarto de hospital e lavara o cabelo com xampu antibacteriano, pois era o único disponível.
Naturalmente, a primeira coisa para a qual ela olhou foi seu olho ruim, aquela coisa feia e arruinada. Como não poderia?
– Oi – ela disse.
Mels estava linda com suas roupas normais do dia a dia: com aquela calça, a blusa de lã e o lenço bege que usava ao redor do pescoço, para Matthias ela poderia muito bem estar em uma passarela.
E continuava sem aliança.
Isso é bom, ele pensou, sem uma razão especial.
Desviando o olhar para a direita, esperando que assim seu defeito fosse menos aparente, ele respondeu:
– Oi.
Certo. Hum. E agora?
– Não estou te seguindo, eu juro – mentiroso. – Eu teria ligado, mas não tenho telefone.
– Não tem problema. Você precisa de alguma coisa? A polícia me ligou hoje de manhã, e acho que eles ainda querem falar com você.
– Pois é – deixou esse assunto do jeito que estava. – Escuta, eu...
O fato de que estava interrompendo uma frase no meio parecia pouco natural, mas seu cérebro simplesmente não conseguia produzir nada.
– Vamos sentar – ela disse, mostrando os assentos. – Não acredito que eles deixaram você sair.
Naquele momento, um ônibus chegou e parou, bloqueando a luz do sol e soltando uma fumaça que o fez tossir. Os dois sentaram e ficaram em silêncio enquanto esperavam os passageiros embarcarem.
O ônibus partiu e o sol reapareceu, banhando-a com sua luz amarela.
Por alguma razão estúpida, os olhos dele começaram a piscar com força.
– O que posso fazer por você? – ela perguntou suavemente. – Está sentindo dor?
Sim. Mas não era dor física. E piorava sempre que olhava para ela.
– Como você sabe que eu preciso de ajuda?
– Imagino que sua memória não tenha voltado magicamente.
– Não, não voltou. Mas isso não é culpa sua.
– Bom, eu te atropelei. Então estou te devendo uma.
Ele gesticulou mostrando a perna ruim.
– Eu já estava assim antes.
– Consegue lembrar de alguma coisa? Quer dizer, anterior ao acidente? – quando ele negou com a cabeça, ela murmurou: – Muitos militares também voltaram na sua condição.
Ah... ela queria dizer o Exército, Marinha, Aeronáutica. E parte disso parecia ser correto. O governo... sim, Matthias tinha alguma ligação com o Departamento de Defesa, ou com a segurança nacional... ou...
Mas não era um soldado abatido. Porque nunca fora um herói.
– Eles encontraram minha carteira – ele murmurou.
– Oh, isso é ótimo.
Por alguma razão, Matthias entregou o objeto para ela.
Quando Mels abriu e olhou a carteira de motorista, ela assentiu.
– Esse é você.
Observando o emblema do Correio de Caldwell sobre a porta da qual ela saíra, ele disse:
– Veja bem, tudo o que estou falando fica entre nós dois, certo?
– É claro.
– Gostaria de ter outra opção. Gostaria... não quero te colocar em encrenca.
– Você ainda não me pediu pra fazer nada – ela o observou. – Em que está pensando?
– Consegue descobrir quem é esse cara? – apontou para a carteira de motorista. – Porque não sou eu.
N.T.: AARP é uma ONG norte-americana destinada a defender os interesses dos cidadãos com mais de cinquenta anos.
CAPÍTULO 9
Durante o silêncio que se seguiu, tudo o que Mels podia pensar era no fato de que tivera plena certeza de que nunca mais veria aquele homem.
Pelo jeito, o destino tinha outros planos.
O homem de roupas pretas sentado ao seu lado era grande, supermalhado e dava a impressão de ser forte em todos os sentidos, com seus olhos estreitos e o queixo quadrado... mas parecia envergonhado de suas cicatrizes e do defeito na perna.
Olhando mais uma vez a carteira de motorista, ela franziu a testa. A foto parecia verdadeira, os hologramas estavam onde deveriam estar, altura, peso e data de nascimento estavam corretos, o endereço ficava ali mesmo em Caldwell – e não muito longe da casa de sua mãe, na verdade.
Ele provavelmente estava voltando para casa no momento do atropelamento. Assim como ela.
Observando agora o homem em vez da imagem, ela teve a sensação de que, para procurá-la, ele fizera um grande esforço e engolira o orgulho. Ele não parecia o tipo de pessoa que gostava de depender dos outros, mas a vida claramente não lhe deixara outra escolha.
Sem memória. Poucos recursos.
E com aqueles olhos assombrados e um corpo remendado, ele tinha de ser um militar, voltara da guerra apenas fisicamente, mas não em espírito.
Naturalmente, a jornalista dentro dela gostava de um bom mistério – e o fato de ter um pouco de culpa em relação à sua amnésia era outra razão para ela mergulhar de cabeça nisso. Mas Mels não era idiota. Não queria se envolver em algum tipo de drama, principalmente se ele fosse um maluco ou paranoico.
A foto era dele mesmo, sem dúvida.
– Odeio colocar você nessa posição – suas mãos grandes acariciaram a bengala que equilibrava nas coxas. – Mas não tenho mais ninguém. E a casa nesse endereço não é minha. Não sei onde moro, mas com certeza não é naquela casa. Eu chequei a correspondência quando fui até lá – ele recostou-se para o lado e retirou uma revista dobrada do bolso da jaqueta. – Encontrei isto. O nome está certo, mas eu não tenho mais de cinquenta e cinco anos. Por que isto estaria na minha caixa de correio, endereçado a mim?
Ela desdobrou a revista e observou o logotipo da AARP e a foto de uma graciosa modelo da terceira idade vestindo roupas de ginástica. O nome acima do endereço era Matthias Hault, e o número e rua eram os mesmos da carteira de motorista... talvez ele morasse com o pai e os dois tivessem o mesmo nome.
Mas um pai não teria ficado feliz em ver o filho aparecer na porta de casa?
– Eu poderia contratar um detetive particular – ele disse –, mas isso custa dinheiro, e nesse momento tenho apenas duzentos dólares no bolso... bom, cento e oitenta, depois que paguei o taxista.
– Tem certeza de que ninguém está tentando te encontrar? – quando ele permaneceu em silêncio, ela pensou que Matthias estava vasculhando sua memória, mas ele encontrou apenas o vazio, por culpa dela. – O que os médicos disseram? Como eu disse, honestamente, estou chocada de você estar de pé andando por aí.
– Então, você vai me ajudar? – ele respondeu.
Aquele era um momento de limite que precisava ser considerado com respeito. Mas ela decidiu cruzar a linha.
– Se eu ajudar, você vai ter que falar comigo. O que os médicos disseram?
Seu olho bom procurou ao redor, como se estivesse pensando em uma resposta.
– Fui embora sem avisar.
– O quê?! Por quê?
– Não me senti seguro. E não posso explicar mais do que isso. É tudo o que sei.
Estresse pós-traumático, ela pensou. Só podia ser.
Talvez se Mels confirmasse a identidade dele, sua mente poderia descansar e isso ajudaria na recuperação.
– Certo, vou fazer o possível – ela disse.
Matthias abaixou a cabeça, como se aceitar ajuda de outra pessoa fosse um tipo de derrota.
– Obrigado. Tudo o que preciso é de uma busca com esse nome. Um lugar para começar.
– Posso voltar pro escritório e fazer isso na minha mesa agora mesmo – ela apontou para o lado direito. – Tem um restaurante ao lado do rio, a uns dois quarteirões daqui. Você pode comer algo e eu te encontro lá assim que puder. Ah... claro, se você conseguir andar...
– Eu consigo chegar lá – ele disse, rangendo os dentes.
Ou morreria tentando, ela pensou, ao observar seu queixo contraído.
Que, por sinal, lembrava muito o ator Jon Hamm.
O homem levantou-se com a ajuda da bengala.
– Então eu te encontro lá. Não precisa se apressar.
Quando ele olhou para a rua, a luz do sol brilhou em seus olhos; tanto naquele que obviamente ainda enxergava como no que estava cego.
– Quer ficar com meus óculos escuros? – ela perguntou. – É um Ray-Ban, mais unissex que isso é impossível. E também não precisa de receita.
Ela não esperou ele dar uma de fortão e recusar. Pegou a caixa e a estendeu na sua frente.
Matthias Hault ficou observando a sua oferta por um longo tempo, como se o simples gesto fosse algo a que não estava acostumado.
– Aceite – ela disse suavemente.
Sua mão tremeu um pouco ao aceitar a caixa, e ele não a olhou mais nos olhos.
– Não vou riscá-los. E vou devolver no restaurante.
– Sem pressa.
Quando ele colocou os óculos escuros, seu rosto se transformou em algo... inegavelmente perigoso.
E definitivamente sensual.
Um calor percorreu o corpo de Mels, atingindo-a num lugar que há muito tempo não se acendia.
– Melhor? – ele disse.
– Eu acho que sim.
Ele ainda se recusava a olhar para ela. Seus ombros e costas estavam retos, os lábios tensos. Um homem tão orgulhoso, preso daquele jeito em uma posição de fraqueza...
Ela sempre lembraria daquele momento, pensou, sem qualquer motivo. Sim, este momento agora, com o sol brilhando nas feições endurecidas de seu rosto bonito.
Aquilo era um momento decisivo, concluiu. Essa intersecção aparentemente aleatória entre os dois mudaria as coisas para sempre.
– Eu queria te perguntar uma coisa – ele disse.
– O quê? – ela sussurrou, imersa em um momento que não podia compreender totalmente.
– Onde aconteceu o acidente?
Sacudindo a si mesma, ela puxou seu cérebro de volta à realidade.
– Foi, ah, bem ao lado do Cemitério Pine Grove. Perto de onde moro. Não muito longe do bairro onde fica sua casa.
– Um cemitério.
– Isso mesmo.
Ele assentiu e, quando começou a caminhar em direção ao restaurante, ela podia jurar que o ouviu dizer “Por que isso não me surpreende?”.
O Riverside Diner era um restaurante típico de cidade pequena americana. Cheio de estofados de couro sintético, cortinas com estampa xadrez e garçonetes mal-humoradas. A comida era gordurosa, mas de uma maneira gloriosa, e quando Matthias cortou seus ovos mexidos com o garfo, seu estômago roncou como se fizesse anos que não comia.
Já era tarde para o café da manhã, mas não existe acompanhamento melhor para uma xícara de café do que ovos e bacon.
Enquanto comia, os óculos escuros que recebera da repórter eram uma benção, pois lhe permitiam ficar de olho nas pessoas que entravam e saíam, nas garçonetes indo e vindo, e nos fregueses que entravam no banheiro e em quanto tempo ficavam lá.
Mas vigilância não era o motivo de Mels ter lhe emprestado os óculos.
Droga. Por que aquela mulher fazia ele desejar não ter mais seus defeitos?
– Mais café? – perguntou a garçonete.
– Sim, por favor – ele ofereceu a xícara e ela despejou o café fumegante. – E mais um prato de tudo isto também.
Ela sorriu como se estivesse calculando uma gorjeta maior.
– Você come bem.
Quando não se sabe quando ou onde vai ser a próxima refeição, é melhor fazer valer a pena, ele pensou consigo mesmo.
A repórter apareceu pouco depois de Matthias terminar o segundo café da manhã. Ela olhou para a esquerda e depois para a direita e o encontrou sentado nos fundos, ao lado da saída de emergência. Então começou a percorrer o longo caminho de mesas vazias.
Quando sentou à sua frente, seu rosto estava vermelho, como se tivesse se apressado.
– Devia estar lotado quando você chegou – ela disse.
– Estava – mentira: ele queria ficar nos fundos para o caso de precisar sair às pressas.
A garçonete voltou com o pote de café.
– Olá... gostaria de café?
– Sim, por favor – Mels tirou a blusa. – E o meu de sempre.
– Almoço ou café da manhã?
– Almoço.
– Já está saindo.
– Você almoça sempre aqui? – ele perguntou, imaginando por que se importava.
– Duas, três vezes por semana, desde que comecei a trabalhar no jornal.
– E quando começou?
– Um milhão de anos atrás.
– Engraçado, você não parece um dinossauro.
Sorrindo um pouco, ela tomou um gole do café e se preparou para a conversa. Seus lábios ficaram tensos e seus olhos se estreitaram.
Ela ficava sexy daquele jeito. A intensidade. O foco. Naquele momento, ela o fazia se lembrar de si mesmo...
E isso era um milagre, se você pensar que Matthias tinha a mesma quantidade de informação sobre os dois... sendo ela uma estranha.
– Diga o que descobriu – ele exigiu.
– Você está morto.
– E eu que achei que era só uma sensação.
Durante a pausa que se seguiu, ele podia sentir que Mels tentava entendê-lo.
– Você não está surpreso – ela disse.
Ele observou sua xícara meio vazia e balançou a cabeça.
– Eu sabia que havia algo de errado naquela casa.
– O dono verdadeiro desse nome tinha oitenta e sete anos e morreu de insuficiência cardíaca cinco semanas atrás.
– Em se tratando de identidades falsas, essa não é uma das melhores, não é?
– Você fala como se conhecesse bem o assunto – quando ele não comentou nada, ela se inclinou para frente. – Por acaso você faz parte do programa governamental de proteção a testemunhas?
Não, ele estava do outro lado da lei... seja lá o que isso significasse.
– Se for o caso – ele disse –, não estão cuidando muito bem de mim.
– Tenho uma ideia. Vamos voltar ao cemitério, no local do acidente. Vamos ver se você se lembra de alguma coisa.
– Não posso pedir pra você fazer isso.
– Não pediu. Estou oferecendo... – ela parou. Franziu a testa. Coçou a sobrancelha. – Meu Deus, espero não estar me transformando na minha mãe.
– Ela gosta de cemitérios?
– Não, é uma longa história. Enfim, peguei emprestado o carro do meu amigo. Posso te levar até lá depois que terminarmos de comer.
– Não. Mas eu agradeço.
– Por que você se deu ao trabalho de perguntar sobre o nome se não vai continuar investigando?
– Posso pegar um táxi, foi o que quis dizer.
– Ah.
A garçonete voltou com o “de sempre”, que era um sanduíche de frango em pão integral e o que parecia ser tomates extras, além de batatas fritas em vez de batatas chips.
– Acho que eu deveria levar você – ela disse, pegando o ketchup.
Matthias observou quando dois policiais entraram pela porta da frente e sentaram no balcão.
– Posso ser sincero com você?
– Por favor.
Ele abaixou o queixo e a olhou por cima dos óculos escuros.
– Não quero que fique sozinha comigo. É muito perigoso.
Ela parou com uma batata frita a meio caminho da boca.
– Sem ofensa, mas, considerando sua condição física, eu poderia quebrar suas duas pernas e te deixar inconsciente em questão de segundos – as sobrancelhas dele foram erguidas ao máximo, e ela assentiu. – Sou faixa preta, tenho permissão para porte de armas e nunca vou a lugar algum sem uma boa faca ou sem minha arma.
Ela deu um sorriso rápido, pegou o sanduíche de frango e deu uma mordida.
– Então, o que me diz?
CAPÍTULO 10
Felizmente, aquilo não era um encontro romântico, pensou Mels quando o silêncio imperou. Pois dizer a um homem que você é capaz de acabar com ele não seria um bom começo, meio ou fim para um almoço a dois.
Aquilo era trabalho – é claro que a história daquele homem, seja lá qual fosse, não terminaria nos jornais, mas era algo a ser investigado, e Deus sabia que ela nunca dispensava uma oportunidade dessas.
– É um belo currículo – ele disse depois de um bom tempo.
– Meu pai se certificou de que eu seria capaz de me defender. Ele era um policial à moda antiga.
– O que isso quer dizer?
Ela limpou a boca com um guardanapo, tomou outro gole de café e desejou ter pedido uma Coca.
– Digamos que hoje em dia, com câmeras nos carros de polícia, reuniões da corregedoria, e pastas cheias de protocolos de procedimentos, ele não teria durado nem um mês antes de ser suspenso. Mas no passado ele fazia seu trabalho, e as pessoas estavam mais seguras nesta cidade graças a ele. Ele dava conta de tudo.
– Um cara durão?
– Um cara justo.
– E você aprova esses métodos?
Ela deu de ombros.
– Ele tinha minha aprovação. Por outro lado, sua maneira de agir... digamos apenas que era outra época. Antes de testes de DNA e internet.
– Parece meu tipo de pessoa.
Mels teve que sorrir ao ouvir aquilo. Mas então uma tristeza pela perda do pai a fez virar o rosto e observar o rio e as gaivotas que seguiam a lenta correnteza.
– Ele nunca perdia o controle ou ficava bravo. Mas às vezes os criminosos só entendem as coisas quando elas são explicadas na língua deles.
– Você tem irmãos ou irmãs?
– Apenas eu. E meu pai não se importava por eu ser uma garota. Ele me tratava como trataria um filho: me treinou, ensinou autodefesa, insistiu que eu aprendesse a disparar armas de fogo – ela riu. – Minha mãe quase tinha ataques do coração por causa disso. Até hoje ela é assim.
– Ele já se aposentou?
– Faleceu – ela voltou ao sanduíche. – Foi morto em serviço.
Houve uma pausa. Então Matthias disse suavemente:
– Sinto muito.
Mels não ousou levantar os olhos, pois falara demais e, com aqueles óculos escuros, não sabia onde estavam os olhos dele – embora não fosse necessário ser um gênio para saber que estavam focados nela.
– Obrigada. Mas chega de falar de mim. E chega dessa porcaria de é-perigoso-demais. Tenho cuidado de mim mesma faz tempo, e sou muito boa nisso. Não teria oferecido ajuda se não achasse que poderia lidar com você.
Ele soltou uma risada súbita.
– Você é muito segura de si mesma.
– Sei quais são meus limites.
– Mas você não me conhece. E eu também não.
– E nós queremos consertar isso, não é?
O homem recostou-se.
– Sim.
Quando terminou o sanduíche – deixando o resto das batatas de lado – ela pagou a conta e levantou-se.
– Então, vamos lá.
Quando ele pousou os olhos nela, aquele calor a invadiu novamente, uma atração sem sentido passando por seu corpo.
– Prometa uma coisa – ele disse em voz baixa.
– Depende do que for.
– Você não vai correr nenhum risco.
– Feito.
Matthias assentiu, pegou a bengala, deslizou as pernas para fora da cadeira e esperou por um momento, como se estivesse preparando o corpo para um massacre. O primeiro instinto de Mels foi colocar um braço sob o ombro dele para ajudar, mas sabia que ele não gostaria disso. E ficar encarando sua fragilidade também não era respeitoso, então ela se virou e fingiu checar o cardápio iluminado que ficava sobre o balcão.
Um grunhido denunciou que ele se levantara, então Mels seguiu em frente até a porta. Enquanto passavam pelos outros fregueses, ela sentiu os olhos de todos pairando sobre o homem que estava atrás dela.
Deus, ela imaginava como seria a vida daquele jeito, atraindo constantemente os olhares curiosos. Se bem que as mulheres provavelmente estavam vendo apenas aquilo que ela própria enxergava. Que não tinha nada a ver com defeitos.
Muito pelo contrário.
O carro de Tony, que estava no estacionamento, parecia já ter visto dias melhores, não era como a Fifi, mantida com carinho. Aquele carro parecia mais uma lata de lixo ambulante.
– Não repara na sujeira – ela disse ao destrancar o veículo.
Ao entrar, Mels tirou do banco do passageiro as várias revistas Newsweek e The New Republics. Como era de se imaginar, Matthias levou um tempo para entrar no carro e, quando colocou os joelhos para dentro, suas botas pisaram em lixo, amassando embalagens vazias de Taco Bells, McDonald’s, Burger King e Wendy’s.
– Seu amigo gosta de fast-food – ele comentou.
– E come rápido também.
Ela acelerou e entrou no trânsito, espremendo o sedã entre um táxi e uma caminhonete.
– Cinto de segurança – disse Matthias.
Mels olhou para ele.
– Pois é. Você está usando um.
– Gosta de viver perigosamente?
– Cintos de segurança nem sempre salvam vidas.
– Então todas essas pessoas ao redor estão erradas?
– Elas podem fazer o que quiserem, e eu também.
– E as multas?
– Nunca fui parada no trânsito. E se acontecer, simplesmente pago a multa.
– Quando. Você quer dizer “quando acontecer”.
O Cemitério Pine Grove ficava a uns dez minutos – mas não do jeito que Mels dirigia. Em nenhum momento ela foi imprudente, apenas eficiente, escolhendo rotas que evitavam semáforos e as obras ao redor do parque.
– É ali, à direita – Mels se inclinou sobre o volante e olhou através do para-brisa. – Na verdade, é um lugar lindo. Há algo tão pacífico em cemitérios...
Matthias não parecia impressionado.
– Toda essa coisa de descanso eterno é uma ilusão.
– Você não acredita no Céu?
– Acredito no Inferno, isso sim.
Não houve tempo para ela responder quando chegaram na entrada.
– O acidente aconteceu por aqui... um pouco depois do portão principal. Bem... um pouco mais para frente... aqui.
Enquanto ela estacionava o carro de Tony e desligava o motor, Matthias já estava saindo. Andando rápido com sua bengala, ele parou no meio da rua, em cima das marcas onde ele havia aterrissado. Olhou para os dois lados e seguiu até as marcas dos pneus da Fifi e a árvore atingida... e finalmente chegou no portão de três metros de altura que cercava o cemitério.
Aquilo é que era estilo gótico. Feitas com barras de ferro com pontas em forma de flor de lis, as fronteiras do Pine Grove eram imponentes... e perigosas, se alguém tentasse escalá-las.
E veja só, enquanto se aproximava, Mels viu uma mancha de sangue no topo de uma das pontas – e havia também um pedaço de roupa. Como se alguém tivesse tentado pular o cercado.
– Eu pego – ela disse, pulando e agarrando o tecido. – Aqui.
Matthias segurou o pano.
– Tecido impermeável. Aposto que aquele sangue seco é meu. Tenho um ferimento recente na perna.
Mas por que ele não teria simplesmente passado pelo portão da frente? Bem, à noite ele provavelmente ficava trancado.
– Podemos entrar? – ele perguntou.
– Agora mesmo.
De volta ao carro, ela passou pela entrada e virou à esquerda, indo em direção ao ponto onde encontraram o tecido. Chegando lá, ela parou novamente, saiu e esperou que a memória dele se manifestasse. Se é que isso aconteceria.
Enquanto ele olhava ao redor, Mels ficou um pouco distante, ouvindo a brisa que soprava entre os galhos dos pinheiros e sentindo o sol brilhar em seus ombros... e tentou não pensar no lugar onde estava seu pai...
Logo atrás, a uns cem metros, no meio do cemitério, entre a família Thomas e os três irmãos Krensky.
Pelo jeito, ela se lembrava muito bem.
A última vez em que estivera ali fora no dia seguinte ao enterro do pai. Mels estivera trabalhando em Nova York por quase cinco anos. Ele estava tão orgulhoso de sua filha na cidade grande, fazendo aquilo que tinha estudado – o jornalismo...
– É por aqui – Matthias disse, distraído.
Enquanto ele caminhava pelo gramado desigual, Mels largou seu passado para se concentrar no presente dele, e juntos andaram decididamente, mesmo com os passos de Matthias se mostrando instáveis e precisando do suporte da bengala. De vez em quando ele parava, como se estivesse calibrando a direção, e Mels não o interrompia com perguntas.
A construção onde finalmente chegaram combinava com as lápides e sepulturas. Sua fachada de pedra ecoava a arquitetura usada na entrada principal e nos balaústres que se intercalavam aos portões de ferro.
– Eu estava nu – ele disse. – Vim até aqui, entrei pela janela e peguei...
Ele empurrou a porta, que rangeu enquanto se abria. Lá dentro, caminhou até a parede de trás e comparou o pedaço de tecido rasgado com um macacão impermeável que estava pendurado.
Nu?, ela pensou.
– Onde estavam suas roupas?
Ele deu de ombros.
– Só sei que estive aqui na noite passada.
Matthias voltou para fora e continuou pelo caminho que estavam fazendo, mas agora ele andava em zigue-zague – talvez para manter a trilha ou para tentar encontrá-la; Mels não sabia e também não perguntou. Apenas o seguiu, e eles passaram por dezenas de lápides, além de funcionários que cuidavam do gramado e pessoas que visitavam túmulos de parentes.
Finalmente, quando estavam a quase meio quilômetro de onde deixaram o carro, ele parou.
– Aqui. Isto é... sim, foi aqui que começou. Tenho certeza.
A lápide que ele observava pertencia a um dos túmulos mais recentes – e em cima da terra fofa que fora colocada sobre o caixão, havia realmente a silhueta de um corpo, como se uma pessoa do tamanho dele tivesse deitado ali em posição fetal.
– Foi aqui que começou – ele se apoiou na bengala e se agachou. Tocando a terra, sussurrou: – Aqui.
– James Heron – ela disse, lendo a inscrição simples na lápide. – Você conhece ele?
Matthias olhou ao redor do cemitério.
– Sim.
– Em que contexto?
– Preciso ir – ele se levantou e se afastou dela. – Obrigado.
Mels franziu a testa.
– Do que está falando?
– Você precisa ir embora agora...
– Você não tem condições de andar de volta até a cidade. E boa sorte se quiser achar um táxi.
– Por favor, você precisa ir embora.
– Diga por que e talvez eu considere.
Em um movimento súbito, o homem se aproximou dela, chegando perto... muito perto. Tomando fôlego, Mels precisou forçar para que seus pés não se mexessem... e foi um choque quando percebeu que os pés desejavam que seu corpo terminasse o que ele havia começado.
Só era preciso mais um passo para que seus peitos se tocassem e seus quadris se apertassem um contra o outro.
Não era a ideia mais brilhante, já que parecia que o predador dentro dele se libertara. Mas ela não queria ser sensata.
Mels o desejava.
Mas isso não fazia parte do plano.
Levantando o queixo, ela disse:
– Se pensa que essa agressividade é persuasiva, você está errado. E eu estou esperando uma explicação.
Matthias se inclinou para frente, e o movimento de seus quadris a deixou totalmente ciente do quão mais alto ele era. Quão mais forte, mesmo machucado. E o quanto seus olhos ardiam, mesmo através dos óculos escuros.
Com uma voz grave e perigosa, Matthias disse:
– Porque você vai morrer se não se afastar de mim.
CAPÍTULO 11
Local não revelado Washington, D.C.
– Este é o alvo.
A foto que caiu com a imagem para cima na lustrosa mesa chegou ao agente por força da inércia.
O rosto instantaneamente pareceu familiar. Afinal, quem nas Operações Extraoficiais não conhecia aquele homem?
O agente ergueu os olhos na direção de seu superior.
– Qual a localização?
– Caldwell, Nova York.
O endereço foi passado oralmente, assim como todas as outras instruções. E ele não podia ficar com a foto. E aquela sala, em um prédio absolutamente comum na capital da nação, não registrava nada daquela conversa. Sem rastros. Nunca.
– Obviamente, consideramos que ele está armado e é extremamente perigoso.
Com certeza. Sempre fora – mas glórias não duram para sempre, e você nunca deixa de ser um agente das Operações. As únicas classificações para um agente eram “em atividade” ou “eliminado”.
E ele seria o responsável pelo carimbo de “eliminado”, nesse caso.
– As regras normais se aplicam – disse o superior.
É claro que sim: agiria sozinho, era o único responsável pela missão e, se falhasse, era melhor rezar para morrer – ou fazer isso por si próprio. Essas regras eram muito conhecidas pelo pequeno grupo de agentes que foram escolhidos a dedo pelo diabo em pessoa...
Matthias. Aquele que os liderara nos últimos dez anos. O astuto jogador de xadrez, o mestre da manipulação, o violento sociopata que servira de modelo para todos eles.
Por um momento, parecia estranho receber ordens de outra pessoa – mas, considerando quem era o alvo...
No entanto, a organização precisava seguir em frente, e seu atual superior subira rápido na hierarquia, claramente se posicionando como o herdeiro do trono. Isso explicava o que estava fazendo agora. Pontas soltas eram inaceitáveis.
– Mais alguma coisa de que eu precise saber?
– Apenas não estrague tudo. Você tem 24 horas.
O agente esticou a mão enluvada e trouxe a foto para mais perto. Observando aquele rosto, pensou que, se alguém tivesse lhe contado sobre as mudanças que aconteceram nos últimos dois anos, ele se convenceria de que essa pessoa estava maluca.
Porém, lá estava ele, olhando para aquele poderoso homem na fotografia, que agora estava condenado à morte. Se o agente falhasse ao tentar matá-lo, a organização mandaria outro. E outro. E mais outro. Até que a missão fosse cumprida.
E, conhecendo o alvo, talvez precisassem de mais de uma tentativa.
Seu superior pegou de volta a fotografia e caminhou até uma porta que parecia normal, mas que na verdade era à prova de balas, fogo, bombas e som. Assim como as paredes, o teto e o chão.
Após um escaneamento da retina, a porta se abriu e depois fechou, deixando o agente sozinho para ponderar suas opções: uma vez que a missão fosse entregue, os métodos de execução ficavam por conta do agente designado. Os chefes se importavam apenas com os fins, não com os meios.
Caldwell, em Nova York, ficava a apenas uma hora e meia de avião, mas era melhor ir de carro. Não dava para saber que recursos tinha seu alvo, e aviões podiam ser rastreados mais facilmente do que carros sem identificação.
Enquanto o agente deixava o edifício, o fato de que poderia estar se dirigindo para a própria morte era irrelevante – e essa era parte da razão de ele ter sido selecionado dentre tantos outros soldados e civis que se “inscreviam” para as Operações Extraoficiais. Cuidadosas avaliações psicológicas e físicas eram conduzidas, não durante semanas ou meses, mas por anos, antes que o candidato recebesse o sinal verde. Afinal, o trabalho exigia uma incomum combinação de urgência e desapego, lógica e iniciativa, disciplina mental e física.
Assim como o simples prazer em matar outros seres humanos.
Ao final do dia, ele achava divertido bancar o Ceifeiro da Morte, e essa era a única maneira legal e sancionada de fazer isso. Mesmo o mais cuidadoso assassino em série acaba preso com o passar do tempo. Mas e trabalhando para o governo dos Estados Unidos?
Seu único limite era sua habilidade de permanecer vivo.
CAPÍTULO 12
Matthias precisava se afastar de Mels.
Não havia nenhuma outra opção. No cemitério, junto dela, encarando a lápide de Jim Heron, pareceu muito claro que eles estavam separados entre a vida e a morte – e ela estava no lado da vida.
Matthias queria mantê-la assim.
Depois de discutirem por um momento, ela o deixou, afastando-se com uma rapidez eficiente que ele aprovava. Matthias permaneceu no local de descanso de Jim Heron pelo tempo que julgou ser necessário até Mels chegar ao carro de seu amigo – e, como ele esperava, o Toyota não estava mais no portão principal do cemitério quando ele retornou.
E ela estava certa quanto à falta de táxis, mas havia um ponto de ônibus não muito longe e, embora isso o obrigasse a esperar, acabou conseguindo voltar ao centro da cidade por conta própria.
Melhor assim. Uma separação definitiva – ao menos fisicamente. Em sua mente, ele tinha o pressentimento de que não seria tão fácil.
Apesar de ainda possuir uma parte dela, de forma concreta: os óculos escuros. Ela não os pedira de volta, e ele esqueceu que estavam em seu rosto.
E esconder seu olho ruim seria muito útil em uma situação como a dele.
Matthias entrou no Starbucks da rua Quinze e avaliou o local através de seu Ray-Ban. O horário de pico do almoço já tinha passado e os fregueses das três da tarde ainda não tinham aparecido para lotar o local em busca de um remédio para sua sonolência vespertina. Havia apenas duas pessoas tomando café com leite, além de um par de baristas do outro lado no balcão.
Ele escolheu a barista cheia de piercings na sobrancelha e cabelo espetado azul e rosa.
Quando se aproximou, ela ergueu um olhar que parecia contar as horas para ir embora, mas sua expressão mudou rapidamente. Para algo a que ele já estava acostumado.
Era uma expressão de interesse feminino.
Matthias escolheu sabiamente.
– Olá – ela disse, enquanto pesquisava seu rosto... e depois a bengala e a jaqueta preta.
Ele sorriu, como se também estivesse momentaneamente interessado nela.
– Ah, escuta, eu combinei de encontrar um amigo aqui, mas ele não apareceu. Eu ia ligar para ele do meu celular, mas percebi que esqueci em casa. Posso usar seu telefone?
Ela deu uma olhada em seu colega de cafeteria. O cara estava encostado nos fundos ao lado das máquinas de café, braços cruzados ao redor do peito magro, como se estivesse descansando em pé.
– Sim. Pode sim. Venha aqui.
Matthias a seguiu pelo balcão, exagerando seu andar manco.
– Preciso ligar para o disque-informações primeiro, pois não lembro o número dele. Mas não se preocupe, é uma ligação local. Não acredito que esqueci meu celular!
– Acontece com todo mundo! – ela estava toda agitada, seus olhos pousavam rapidamente nele e depois se desviavam, como se ele fosse brilhante demais para se olhar por muito tempo. – Mas eu preciso discar, você não pode entrar atrás do balcão.
– Sem problema – quando ela lhe entregou o fone, ele o pegou e sorriu devagar. – Obrigado.
Ela ficou ainda mais encabulada. Ao ponto de precisar discar duas vezes até conseguir chamar o número desejado.
Matthias casualmente se virou e fingiu checar a entrada procurando por seu “amigo” quando uma voz gravada atendeu:
– Cidade e estado, por favor.
– Caldwell, Nova York – houve uma pausa. Ele esperou um atendente. – Por favor, o número de James Heron.
Enquanto Matthias esperava pela informação, a garota pegou um pano e passou casualmente pelo balcão. Mas ela estava escutando, com as sobrancelhas abaixadas.
– H-E-R-O-N – soletrou Matthias. – O primeiro nome é James.
Mas que droga, de que outro jeito dá para soletrar esse nome?
A atendente voltou a falar:
– Desculpe, mas não encontro ninguém com esse sobrenome em Caldwell. Quer tentar algum outro nome?
Que merda! Mas, de alguma forma, isso não o surpreendia. Seria muito fácil. E nem um pouco seguro.
– Não, obrigado – Matthias virou-se e entregou o fone para a garota. – Não tive sorte. O nome não está na lista.
– Você disse “Heron”? – perguntou a garota enquanto pendurava o fone. – Aquele cara que morreu?
Matthias estreitou os olhos – mas ela não podia ver, graças ao Ray-Ban.
– Mais ou menos. Meu amigo é irmão dele, na verdade. Moravam juntos. O telefone estava no nome de Jim. Como eu disse, meu amigo e eu combinamos de nos encontrar aqui pra, você sabe, conversar sobre tudo isso. É tão difícil perder alguém dessa maneira, e estou preocupado com o que isso pode fazer com a cabeça dele.
– Oh, Deus, foi triste demais – a garota jogava o pano de uma mão para outra. – Meu tio trabalhou com ele. E estava lá quando foi eletrocutado. E pensar que levou um tiro, tipo, dias depois. Quer dizer, como é possível? Sinto muito por seu amigo.
– Seu tio conhecia o Jim?
– Ele é gerente de recursos humanos na construtora em que Jim trabalhava.
Matthias respirou fundo, como se estivesse engasgando.
– Jim era um cara muito legal. Nós estivemos na guerra juntos – bateu com a bengala no balcão. – Sabe como isso é.
Quatro... três... dois... um...
– Olha, eu posso ligar pro meu tio se você quiser. Talvez ele tenha o telefone. Espera um pouco.
A garota saiu de trás do balcão, parou um pouco, depois assentiu para si mesma, como se estivesse em uma missão pelo bem, determinada a “fazer a coisa certa”.
Enquanto Matthias esperava ela voltar, ficou esperando também que sua consciência o repreendesse por causa da manipulação.
Quando não sentiu nada, ficou perturbado com a facilidade da coisa. Como se mentir fosse tão familiar e insignificante que seu cérebro registrasse essa ação como um simples reflexo.
A barista retornou cerca de cinco minutos depois com um número escrito em um papel de carta feminino, que traía completamente seu visual radical.
– Vou discar pra você.
A barista voltou para trás do balcão e entregou novamente o telefone a Matthias, que ficou escutando o som das teclas enquanto ela apertava os botões.
Ouviu o som de chamada. Um. Dois. Três. Quatro toques.
Nada de correio de voz. Nenhuma resposta.
Ele devolveu o telefone.
– Não tem ninguém em casa.
Afinal, o que ele esperava? Acordara no túmulo do cara e agora achava que Heron fosse atender o telefone? Era uma longa distância entre o caixão e a companhia telefônica.
– Talvez ele esteja a caminho?
– Talvez – Matthias encarou a garota por um momento. – Obrigado. Obrigado mesmo.
– Quer um café enquanto espera?
– Acho que vou dar uma passada na casa dele. Às vezes as pessoas reagem a uma tragédia... de um jeito estranho.
Ela assentiu, preocupada.
– Sinto muito.
E sentia mesmo. Uma completa estranha sentia pena, honestamente, por o que quer que ele estava passando.
Ele imediatamente pensou em Mels, que também parecia tão disposta a ajudar.
Pessoas boas. Pessoas gentis. E sua memória defeituosa dizia que Matthias não merecia ficar entre esse tipo de companhia.
– Obrigado – ele disse com a voz rouca antes de sair mancando pela porta.
A pistola calibre quarenta na mão de Jim pesava menos de um quilo, e já estava carregada com dez balas no pente e uma na agulha.
Ele manteve a arma abaixada ao lado da coxa enquanto saía da garagem. Depois do episódio no chuveiro, Adrian saíra para tomar ar e trazer comida, levando sua Harley, mas não o capacete. O Cachorro estava seguro no andar de cima, descansando na cama sob o sol. Jim estava de guarda.
Você não vê? Ela está dentro de mim... e está me dominando...
Merda.
Pelo menos Jim tinha um escape. O bom da garagem era que ela ficava nos fundos do terreno de uma casa de fazenda – e a casa da frente, branca, com sua varanda e chaminé de tijolos, estava vazia desde que ele começara a alugar o local.
Ninguém veria. Mas isso ainda não era suficiente.
Ele enfiou a mão livre dentro da bota e retirou um silenciador. A peça adicionava quase trezentos gramas ao peso da pistola automática e mudava seu centro de gravidade, mas Jim estava acostumado a usá-la daquela maneira.
Agora, ninguém ouviria também.
De pé sobre o cascalho solto do caminho de entrada, ele tragou o cigarro e então o segurou com a mão esquerda. Concentrando-se em um galho que estava a dez metros do chão, levantou a arma e mirou no pedaço de madeira de três centímetros.
Respirando calmamente, Jim fechou os olhos e pensou no rosto de Devina.
Crack!
Graças ao silenciador, o som da pistola foi bastante reduzido, apenas um estampido contra sua mão e o impacto na árvore.
Crack!
O gatilho, assim como o cabo e o tambor, não eram apenas uma extensão de seu braço, mas também de seu corpo, e ele não precisava dos olhos para reajustar a trajetória. Sabia exatamente onde o chumbo acertaria.
Crack!
Calmo. Concentrado. Respirando pela barriga, não pelo peito. Imóvel, exceto pelo dedo indicador e depois pelos músculos do antebraço ao absorverem o súbito coice da arma.
O impacto da última bala foi mais suave; afinal, já não restava muita madeira.
Ele abriu os olhos assim que o galho começou uma queda livre, batendo em seus irmãos até chegar ao chão duro.
Colocando o Marlboro de volta entre os dentes, Jim esmagou as pinhas e a grama rala com suas botas de combate ao andar até a árvore e pegar o galho. Foi um corte preciso, relativamente falando. Nada igual ao que uma serra faria, mas, considerando a distância e os meios, parecia bom o suficiente.
– Você é um ótimo atirador.
O sotaque inglês altivo vindo de trás de Jim o fez querer continuar apertando o gatilho.
– Nigel.
– Cheguei num momento inapropriado?
– Ainda tenho sete balas. Você decide.
– Devina sofreu uma reprimenda – Jim girou o corpo e estreitou os olhos na direção do arcanjo aristocrático, que assentiu. – Queria que soubesse. Pensei que seria muito importante te informar disso.
– Está preocupado pensando que estou perdendo o rumo?
– Mas é claro.
Jim teve de sorrir.
– Você consegue ser direto quando lhe convém. Então, o que é que seu Criador fez com minha inimiga?
– Ela é seu oponente...
– Inimiga.
Nigel colocou as mãos para trás e começou uma caminhada excêntrica. Vestia um terno fora de moda cortado à mão, do tipo que era totalmente estranho a Jim, e que continuaria desse jeito.
– Qual é o problema, chefe? – Jim murmurou. – O gato comeu sua língua?
O arcanjo lhe lançou um olhar que o faria cair morto ali mesmo, se Jim estivesse vivo do jeito convencional.
– Você não é o único com temperamento explosivo, e eu devo te lembrar de tomar cuidado com o tom e as palavras quando se dirigir a mim.
Jim guardou a arma na cintura.
– Certo. Chega de papo furado. O que posso fazer por você?
– Nada. Eu simplesmente pensei que você se acalmaria se soubesse que o Criador agiu. Eu te disse pra deixar que o demônio cruzasse os limites. Eu te disse pra esperar pelas consequências. E elas vieram.
– O que Ele fez com ela?
– As vitórias e derrotas que vocês conquistaram são permanentes. Não há nada que Ele ou qualquer um de nós possa fazer a respeito de onde as bandeiras foram... elas são imutáveis. Mas Ele decretou que as ações de Devina não podem ficar impunes.
– Espere, não estou entendendo. Se o que Devina fez afetou o resultado de uma rodada, então sua vitória tem que ser anulada.
– Não é assim que essa competição funciona. As vitórias... – o arcanjo olhou para o céu. – O paralelo seria propriedade pessoal, suponho.
– Minha?
– De certa maneira, eu diria que sim.
– Então, se ela quebrou as regras e isso mudou o resultado, o Criador deveria dar de volta aquilo que é meu de direito. E, já que estamos falando nisso, quero lembrar que, se eu soubesse que a alma em questão era o Matthias, eu não teria me concentrado no homem errado.
– E isso foi corrigido.
– Como?
Ao longe, do outro lado do campo, um carro saiu da estrada e entrou no caminho que passava pela casa da fazenda.
Merda. Visitantes não eram nada bem-vindos – e a cor amarela sugeria um táxi.
O carro não parou na residência principal.
Nigel levantou uma sobrancelha.
– Acredito que ficará evidente.
Após mais uma de suas frases enigmáticas, o chefe desapareceu.
– Obrigado, amigão – Jim murmurou. – Grande ajuda de merda. Como sempre.
Protegendo-se em um canto, Jim encostou os ombros na parede de alumínio. A arma não permaneceu na cintura. Ele a segurou mais uma vez, preparado para atirar.
O táxi estacionou na frente da garagem.
Um momento depois, um homem que ele nunca esperava ver de novo saiu do banco do passageiro... um pesadelo que vivia e respirava... um problema do passado, que Jim já resolvera.
Então esta era a solução para a trapaça de Devina?
– Filho... da puta – Jim sussurrou.
CAPÍTULO 13
Matthias saiu do táxi e pediu que o motorista esperasse. A garagem à sua frente era uma espécie de galpão de armazenamento, com escadas que levavam para o segundo andar. As portas duplas no andar térreo estavam fechadas; a do andar de cima e as cortinas também.
Na janela do andar superior, as cortinas se separaram e um cachorro desgrenhado apareceu, como se estivesse de pé com as patas da frente apoiadas na parede.
Alguém claramente vivia ali.
– Mande o táxi embora.
Matthias virou rapidamente a cabeça para a direita, e o homem que surgiu de trás da garagem o fez quase perder o equilíbrio, fazendo uma lembrança vívida e instantânea surgir em sua memória.
Jim Heron. De volta do mundo dos mortos.
O instinto de Matthias lhe dizia que o cara sempre tivera aquele grande corpo musculoso, cabelo loiro escuro, o rosto frio e de feições endurecidas. Mas não havia contexto em sua lembrança, não havia um comentário interno sobre como ele conhecia o homem, ou o que viram e fizeram juntos. Porém, uma coisa estava clara... mesmo sem a arma, era óbvio que aquele não era o tipo de cara que você quer por perto se estiver desarmado e sem um veículo de fuga.
Matthias bateu no vidro, entregou uma nota de vinte ao motorista e o deixou ir embora.
Quando o carro manobrou e partiu pelo caminho de entrada, o som dos pneus esmagando o cascalho parecia tão alto quanto disparos de uma arma.
– Isso é uma arma na sua perna ou você está apenas feliz de me ver? – Matthias disse secamente.
– É uma arma. E você quer me dizer o que está fazendo aqui?
– Diria, se soubesse. Talvez você possa me ajudar com essa pergunta.
– O quê? – quando Matthias não respondeu, os olhos azuis cínicos de Heron ficaram ainda mais estreitos. – Você está falando sério. Isso foi uma pergunta sincera.
Matthias deu de ombros.
– Interprete do jeito que quiser. E enquanto pensa, eu gostaria de comentar que você supostamente está morto.
– Como você me encontrou?
– Procurei na central de informações. De certa maneira.
Quando Heron se aproximou, Matthias percebeu que a posição da arma com o silenciador mudou e que agora o tambor estava apontado diretamente para seu peito. E podia apostar que o gatilho seria apertado em um instante, se fosse preciso. O que significava que aquele homem com estilo militar era paranoico... ou que, por alguma razão, considerava Matthias perigoso.
– Estou desarmado – Matthias anunciou.
– Não faz o seu feitio.
A arma não foi abaixada; aquele corpo não relaxou; aqueles olhos não perderam o ar de alerta.
– Você não acredita em mim – disse Matthias.
– Depois de tudo o que passamos? Nem um pouco, meu velho amigo.
– Nós éramos amigos?
– Não, você está certo. Nós fomos muitas coisas, mas nunca amigos – Heron balançou a cabeça. – Mas que merda, sempre que não espero mais te ver, você aparece.
Heron sabia as respostas, pensou Matthias. O homem que estava bem à sua frente era o caminho para ele descobrir quem era.
– Bom – murmurou Matthias –, considerando que você ainda está respirando, mas que eu visitei o seu túmulo uma hora atrás, eu não sou o único tirando coelhos da cartola. Se importa de me contar onde foi que nos vimos pela última vez?
– Você está falando sério? – quando ele assentiu, Heron balançou a cabeça novamente. – Está dizendo que não se lembra?
Matthias levantou as mãos, mostrando as palmas.
– Não tenho nada.
A atitude desconfiada de Jim foi substituída por uma breve surpresa.
– Jesus.
– Acho que não. Minha carteira de motorista diz “Matthias”.
A risada que recebeu como resposta foi um pouco assustadora.
– Se importa se eu te revistar?
Matthias encostou a bengala na perna e levantou as mãos.
– Manda ver.
Jim fez o procedimento com uma das mãos e, quando se afastou de novo, soltou outro palavrão.
– Claramente você perdeu a cabeça.
– Não, apenas minha memória. E preciso que você me diga quem sou eu.
Houve um longo silêncio, como se Heron tentasse preencher os buracos da história em sua cabeça. Finalmente, disse:
– Vou pensar bem antes de contar as coisas do seu passado. Mas vou te ajudar. Disso você pode ter certeza.
– Isso não é bom o suficiente. Preciso das informações. Agora.
– Acha mesmo que está em posição para fazer exigências?
Enquanto Jim conduzia seu antigo chefe, Matthias, o Cretino, para o andar de cima, ele não conseguia acreditar em tudo aquilo. E não importava o quanto seu cérebro se esforçasse: parecia que os porcos realmente podiam voar, que o Inferno estava cheio de bolas de neve, e que em algum lugar um cachorro velho aprendia a dirigir uma droga de um carro.
Era disso que Nigel estava falando? Uma repetição da segunda rodada?
Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
Parece que concentrar-se na alma errada não seria um problema desta vez – desde que o discurso cifrado de Nigel estivesse mesmo certo e Matthias, mais uma vez, fosse a alma em jogo.
O que não era uma maneira tão boa de penalizar Devina. Merda!
Mas havia uma boa notícia – se é que podia existir alguma notícia boa nessa história de voltar do mundo dos mortos: a perda de memória. O velho Matthias nunca se exporia com uma fraqueza como amnésia, portanto provavelmente era verdade – e Deus sabia que esse buraco negro de informações seria muito útil.
Assim, Jim precisava trabalhar apenas contra a natureza.
Abriu a porta e deu espaço para Matthias entrar.
– Humilde lar, e essas coisas.
Enquanto Matthias mancava para dentro, o Cachorro correu e balançou o rabo lhe dando boas-vindas, com suas patas fazendo barulho no chão de madeira.
Considerando a alegria do cão, parecia óbvio que Devina não estava usando o corpo daquele homem. O que foi uma boa dica.
Jim fechou a porta e observou seu ex-chefe. Mancava do mesmo jeito. Tinha a mesma voz. O mesmo rosto. Os óculos escuros não surpreendiam, considerando o estado dos olhos do cara.
– Eu ofereceria comida, mas tenho que esperar meu amigo voltar. Pode usar o sofá enquanto isso.
Matthias grunhiu quando sentou.
– Eu ainda fumo – ele disse, acenando para o maço em cima da mesa.
– Pensei que não se lembrava de nada.
– Certas coisas... eu acabo lembrando.
Jim foi até a pequena cozinha e parou em frente à pia. Por alguma razão, ele queria estar perto de Eddie.
– Então, vamos começar com exatamente o que você lembra.
– Eu sei que acordei na sua sepultura.
– A morte é relativa.
– Então, nós dois somos um milagre.
Jim levantou uma sobrancelha.
– Pelo menos um de nós é. Vamos ver quanto ao outro. Como me encontrou?
– Central de informações.
– O telefone daqui não está no meu nome.
– Mas você deu esse número no seu último emprego. Fui até a biblioteca, busquei o número na internet e achei você. Não é um esconderijo muito bom.
– Não estou me escondendo de ninguém.
– Então, por que você está morto, mas vivo?
– Vamos nos concentrar apenas em você, certo?
– Certo. Então, por que está com medo de mim? – quando Jim apertou o maxilar, Matthias sorriu do jeito que sempre fazia, mostrando todos os dentes brancos e afiados. – Aliás, isso não é uma lembrança. É a arma na sua mão. Estamos na sua casa, protegidos... se eu não fosse uma ameaça, você guardaria a arma.
Filho... da puta.
Mesmo com amnésia, o cara era um cretino.
Com essa deixa, Jim se aproximou, mantendo os olhos no Ray-Ban que o outro usava. Com a ponta da arma virada para Matthias, colocou a pistola na mesa e a empurrou para o outro lado.
– Fica com ela, se quiser.
– Você vai me dar uma arma?
– Claro, por que não? Pense nisso como um presente por sua volta pra casa.
– Estou em casa?
– Não neste lugar em particular... você não pode ficar aqui, e nunca esteve aqui. Nunca.
Matthias sorriu um pouco.
– Bom, não quero ficar na minha casa.
– E onde é isso exatamente?
O homem colocou a mão no bolso, tirou a carteira e jogou a carteira de motorista na mesa, sobre a arma.
Jim olhou a identificação. Era bem feita, com todos os hologramas no lugar certo. O sobrenome não estava correto, é claro, mas o primeiro nome e a foto estavam.
– O que você sabe sobre mim? – exigiu o homem.
– Bela foto – Jim disse ao recostar-se na parede.
– Não estou perguntando sobre meu futuro como modelo. Por que está evitando minhas perguntas?
– Estou tentando decidir como fazer esta jogada.
– Estamos em um jogo?
– Sim, estamos. E você não pode nem imaginar o que está em jogo – Jim decidiu sentar ao lado de seu hóspede. – Como eu disse antes, por que não começa contando o que você lembra?
Os óculos escuros baixaram, como se Matthias estivesse encarando o chão. Ou talvez suas botas, ou a bengala.
– Fui atropelado por um carro do lado de fora do Cemitério Pine Grove ontem à noite e acordei no hospital sem saber quem eu era ou onde estava. Hoje, tentei me lembrar refazendo meus passos, até que cheguei na sua sepultura – o Ray-Ban subiu de novo e ele olhou ao redor. – Eu reconheci seu nome no instante em que o vi. Reconheci você também, no exato momento em que saiu de trás da casa.
A expressão no rosto de Jim não mudou.
– Não é uma surpresa... nós dois temos muita história juntos. E é por isso que vou te ajudar.
– Então comece dizendo como isso tudo... – Matthias fez um gesto com a mão, mostrando todo o seu corpo – aconteceu.
– Os ferimentos?
– Não, minha roupa de balé. De que merda você acha que estou falando?
– Tire os óculos.
– Por quê?
– Quero olhar nos seus olhos quando responder.
A mão tremeu quando tirou os óculos, mas Jim apostava que era uma fraqueza física, e não mental. E ele estava certo.
– Como os ferimentos aconteceram? – seu ex-chefe repetiu, com uma voz grave.
– Você tentou se matar na minha frente. Plantou uma bomba na areia e pisou nela, bem na minha frente.
Matthias olhou para a própria perna e suas sobrancelhas se juntaram, como se o cérebro estivesse calculando dois mais dois.
– Por que eu fiz isso?
Como responder sem revelar demais?
– Você odiava o homem que era. Não podia mais continuar daquele jeito, e deu um jeito de não ter mais que fazer isso.
– Mas eu não morri.
– Não dessa vez – Jim levantou-se. – Meu amigo voltou.
Um segundo depois, o som de uma Harley invadiu o local através da janela, aumentando até parar totalmente.
– Você tem um bom ouvido – Matthias comentou.
Jim encarou o homem, pensando em como faria para trabalhar a situação em seu favor. Com um pequeno sorriso, murmurou:
– É o menor dos meus truques.
CONTINUA
CAPÍTULO 1
Sepultura.
Como na lápide e na terra recém-cavada, como em um corpo lá em baixo, como das cinzas às cinzas e do pó ao pó.
Matthias estava nu em uma sepultura. Em meio a um cemitério que se estendia até onde seus olhos podiam enxergar.
A primeira coisa que surgiu em sua mente foi a tatuagem que fizera seus homens usarem nas costas, com o desenho do Ceifeiro da Morte pairando sobre um campo de lápides e tumbas.
Que irônico – talvez estivesse prestes a ser cortado por uma foice a qualquer momento.
Tente repetir isso três vezes, bem rápido.
Piscou os olhos tentando clarear a vista, juntou os braços para se aquecer e esperou que o cenário voltasse à realidade. Quando nada mudou, ele se perguntou aonde teria ido aquele muro em que estivera preso para toda a eternidade.
Será que finalmente estava livre daquela tortura nojenta e superlotada?
Teria escapado do Inferno?
Soltando um grunhido, tentou se erguer, mas até levantar a cabeça estava difícil. Afinal, descobrir em primeira mão que aqueles lunáticos religiosos estavam certos sobre uma porção de coisas realmente faz você querer tirar um cochilo: de fato, os pecadores iam lá para baixo, e não para o Sul, e, uma vez lá, o sofrimento faz todas as coisas de que você reclamava em vida parecerem um passeio no Universal Studios.
O Demônio existia.
E sua sala de estar era uma merda.
Mas os religiosos não sabiam de toda a história. Acontece que Satã não possuía chifres ou uma calda. Também não havia nada de tridente e pés de bode. Bom, era mesmo metade bicho – se você considerar que o bicho em questão seja uma vaca. E usa muito vermelho. Afinal, morenas ficam bem com essa cor – ao menos, era isso que ela dizia a si mesma.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/FASC_NIO.jpg
Com seu olho esquerdo, que ainda funcionava, Matthias piscou novamente, preparando-se para retornar para a densa e ardente escuridão, com os gritos dos condenados ecoando em seus ouvidos e sua própria dor rasgando pela garganta e explodindo pelos lábios rachados...
Mas nada disso aconteceu. Ele ainda estava em uma sepultura. Ainda estava em um cemitério.
Completamente pelado.
Concentrando-se, enxergou, com seu único olho bom, uma paisagem cheia de túmulos de mármore branco, sepulturas de famílias marcadas com anjos e fantasmagóricas estátuas da Virgem Maria – embora as lápides simples fossem bem mais numerosas, como se os plebeus tivessem tomado conta do lugar. Pinheiros e carvalhos projetavam sombras através de gramados desalinhados e bancos de metal. As lâmpadas dos postes emitiam um brilho alaranjado, como velas num bolo de aniversário, e as passarelas estreitas poderiam até ser românticas se estivessem em outro lugar.
Mas ali, com certeza, não eram. Não naquele contexto de morte...
De repente, cenas de sua vida passaram por sua mente, fazendo-o se perguntar se estaria experimentando a morte pela segunda vez. Ou pela terceira, como seria o caso.
Não havia alegria nessa retrospectiva. Nada de esposa amorosa, nem filhos bonitos, nem uma casinha aconchegante. Apenas cadáveres, dezenas, centenas de cadáveres, todos mortos por ele próprio ou por ordem sua.
Matthias havia feito muito mal, o verdadeiro mal, durante sua vida.
Forçou-se a sentar na terra úmida. Seu corpo parecia um quebra-cabeça cujas peças não encaixavam direito: seus membros se uniam em juntas que pareciam folgadas em alguns lugares e apertadas em outros. Mas isso é o que acontece quando você se despedaça e tudo o que tem para se recompor são as habilidades limitadas de cura e medicina.
Ele direcionou seu olho para a lápide e franziu a testa.
James Heron.
Meu Deus, James Heron...
Ignorando o tremor de suas mãos, ele traçou as letras gravadas na pedra – a ponta de seus dedos percorreu o texto esculpido no granito cinzento.
Soltou um suspiro áspero, como se a dor repentina atrás de suas costelas tivesse forçado o ar para fora dos pulmões.
Matthias nunca soubera que realmente havia uma recompensa eterna após a morte, que suas ações eram de fato levadas em conta, que havia um julgamento ao final da última batida de seu coração. Mas a dor não era por causa disso. Era porque sabia que, mesmo se tivesse conhecimento do que o esperava, ele não seria capaz de fazer nada diferente.
– Sinto muito – falou, se perguntando para quem realmente dizia aquilo. – Porra, sinto muito mesmo...
Nenhuma resposta.
Olhou para o céu.
– Sinto muito.
De novo, nada de resposta, mas tudo bem. De qualquer forma, os arrependimentos estavam se acumulando em sua mente e não havia muito espaço para contribuições de terceiros.
Enquanto se esforçava para levantar, seu tronco tombou e precisou se apoiar na lápide para retomar o equilíbrio. Deus, ele estava acabado. Suas coxas estavam cobertas de cicatrizes, sua barriga cheia de lesões, uma panturrilha quase despida de carne. Os médicos realizaram um verdadeiro milagre com seus parafusos e hastes, mas, comparado com o jeito como nascera, Matthias parecia um brinquedo quebrado remendado com fita adesiva e supercola.
E o suicídio deveria ter funcionado. Mas Jim Heron foi a razão de ele ter sobrevivido por outros dois anos. Até que a morte o encontrou e o levou, provando que a Terra apenas pegava as almas emprestado – o outro lado é que realmente as possuía.
Por força do hábito, olhou ao redor procurando sua bengala, mas então se concentrou naquilo que seria mais provável encontrar: sombras que o perseguiam, fossem aquelas criaturas ardilosas do Inferno ou meros humanos.
De um jeito ou de outro, ele estava ferrado: como ex-chefe da organização secreta que eles chamavam de Operações Extraoficiais, Matthias tinha mais inimigos do que um ditador do Terceiro Mundo, e todos eles possuíam armas e podiam contratar quem as tivesse. E, como fugitivo do parquinho do diabo, nem era preciso mencionar que ele não escapara de graça da prisão.
Mais cedo ou mais tarde, alguém viria atrás dele. E, apesar de Matthias não possuir nada pelo que valesse a pena viver, seu ego era razão suficiente para lutar e se defender.
Ou pelo menos fazer de si um alvo menos fácil.
Começou a caminhar mancando e continuou com a graça de um espantalho – seu corpo sacudia com espasmos que culminavam numa marcha que doía como o diabo. Para conservar o calor, tentou abraçar a si mesmo, mas isso não durou muito. Precisava usar os braços para manter o equilíbrio.
Com movimentos de zumbi e a cabeça completamente confusa, ele continuou a caminhada, atravessando a grama desalinhada, passando pelas lápides, sentindo o toque da fria brisa que cortava sua pele. Não tinha a menor ideia de como conseguira escapar. Não sabia para onde iria. Que dia, mês, ano seria.
Roupas. Abrigo. Comida. Armas.
Assim que tivesse assegurado o básico, ele se preocuparia com o resto. Isso se não fosse abatido antes – afinal, um predador ferido se torna uma presa rapidamente. É a lei da selva.
Pensou ter encontrado mais uma sepultura ao se aproximar de uma construção de pedra com ornamentos de ferro fundido. Mas o nome “Cemitério Pine Grove” gravado no topo da fachada e a grande fechadura na porta frontal sugeriam que era uma instalação dos funcionários.
Felizmente, alguém deixara aberta uma fresta da janela dos fundos.
Mas é claro, a janela estava emperrada naquela posição.
Ele pegou um galho caído, o colocou na fresta e forçou até a madeira curvar.
A janela começou a ceder, soltando um chiado agudo.
Matthias congelou.
Pânico, uma sensação pouco familiar, que foi aprendida da maneira difícil, o fez girar e procurar as sombras. Conhecia aquele som. Era o barulho que os lacaios do demônio faziam quando estavam atrás de você...
Nada.
Apenas túmulos e postes de luz que, não importa o quanto sua adrenalina sugerisse o contrário, não se transformavam em nada.
Praguejando, ele voltou ao trabalho. Usou o galho como alavanca até abrir espaço suficiente para poder se espremer e passar. Erguer o corpo foi um sacrifício, mas, assim que seus ombros passaram, ele deixou a gravidade cuidar do resto. O chão de concreto no qual aterrissou parecia uma grade de ferro, e ele precisou de um tempo enquanto seu fôlego escapava da garganta, seu estômago embrulhava e dores surgiam em mais lugares do que ele conseguia contar.
No teto, luzes fluorescentes piscaram e depois acenderam de vez, cegando-o.
Malditos sensores de movimento. O lado bom era que, assim que seus olhos se ajustaram, ele teve uma clara visão de todo tipo de ferramenta de jardinagem. O lado ruim? Ele era um diamante em uma vitrine, pronto para ser capturado.
Pendurados em ganchos na parede, como se fossem peles de animais mortos, havia vários conjuntos de macacões impermeáveis, esperando para serem usados. Ele prontamente vestiu uma parte de baixo e uma parte de cima. Essas roupas foram feitas para ficar folgadas, mas em seu corpo pareciam grandes velas de um barco.
Melhor assim. Melhor com as roupas, mesmo elas cheirando a fertilizante, e mesmo com o atrito, que logo se tornaria um problema. Havia um boné do Boston Red Sox em um dos cantos, e Matthias o vestiu para ajudar a conservar o calor do corpo; então olhou ao redor procurando qualquer coisa que pudesse servir como bengala. As pás eram muito pesadas para ser eficientes, e os rastelos também não ajudariam.
Dane-se. Sua missão imediata era se afastar das luzes que banhavam o show de horrores do seu corpo.
Saiu da mesma maneira que entrou, forçando-se através da janela e aterrissando duramente no chão. Não tinha tempo para reclamar do impacto desta vez; precisava continuar se movendo.
Antes de morrer e ir para o Inferno, Matthias sempre fora o perseguidor. Caramba, durante sua vida inteira ele fora o caçador, aquele que espreitava, encurralava e destruía. Mas agora, retornando à escuridão daquelas sepulturas, todas as intangibilidades da noite eram perigosas até que se provasse o contrário.
Esperava que estivesse de volta em Caldwell.
Se estivesse, tudo o que precisava fazer era manter-se discreto e seguir para Nova York, onde possuía um abrigo com mantimentos.
Sim, rezava para que fosse Caldwell. Quarenta e cinco minutos ao sul pela estrada era tudo o que precisaria. Já acabara de arrombar e invadir um lugar; fazer uma ligação direta em um carro velho era outra habilidade que poderia ressuscitar.
Uma vida depois, ou pelo menos o que pareceu ser uma vida depois, ele chegou até o portão de ferro que cercava todo o terreno daqueles que descansam em paz. A coisa tinha uns três metros de altura, e as grades tinham pontas que poderiam ter sido facas em outra encarnação.
Encarando as barras que o mantinham do lado dos mortos, Matthias as agarrou e sentiu o frio do metal agarrá-lo de volta. Olhando para cima, concentrou-se no céu. As estrelas realmente cintilavam.
Engraçado, ele sempre pensou que isso fosse apenas um modo de dizer.
Respirando fundo, puxou ar puro e limpo para os pulmões e percebeu que tinha se acostumado com o fedor do Inferno. No começo, aquilo era o que mais detestava, aquele cheiro nauseante de ovo podre impregnado nas vias aéreas e que invadia a garganta e viajava até envenenar suas entranhas: mais do que um cheiro ruim, era uma infecção que entrava pelo nariz e conquistava todos os territórios que tocasse.
Mas ele se habituara.
Com o tempo, e em meio ao sofrimento, ele se acostumara ao horror, ao desespero, à dor.
Seu olho ruim, o que não conseguia usar, encheu-se de lágrimas.
Nunca conseguiria alcançar aquelas estrelas.
E essa pausa no sofrimento servia apenas para aumentar a tortura. Afinal, não existe nada como um período de alívio para revitalizar um pesadelo. Quando você retorna para a merda, o contraste aumenta tudo, eliminando a aclimatação e fazendo voltar o choque inicial.
Eles voltariam a persegui-lo. Afinal, era exatamente isso que ele merecia.
Mas, seja lá quanto tempo tivesse, lutaria contra o inevitável – não com a esperança de se livrar do Inferno, não pela possibilidade de um adiamento, mas simplesmente porque essa era uma função automática, que fazia parte do seu ser.
Matthias lutava pela mesma razão que cometera o mal.
Aquilo era simplesmente o que ele fazia.
Impulsionando a si mesmo para longe do chão, colocou contra as barras o pé que funcionava melhor e jogou seu peso para cima. Fez isso novamente. E de novo. O topo parecia estar a quilômetros de distância, o que apenas o fez concentrar-se mais em seu objetivo.
Uma eternidade depois, sua palma agarrou uma das pontas e seu braço enlaçou a perigosa lâmina.
Sangue escorreu rapidamente quando Matthias jogou a perna por cima do portão e uma das pontas cortou um pedaço de sua coxa.
Mas não havia motivo para voltar. Havia se comprometido, e de um jeito ou de outro a gravidade venceria e o puxaria para a terra – então era melhor que isso acontecesse lá fora do que dentro do cemitério.
Quando começou a cair, seus olhos focaram as estrelas. Ele chegou até a estender uma das mãos naquela direção.
O fato de que elas estavam cada vez mais distantes parecia apropriado.
CAPÍTULO 2
Mels Carmichael estava sozinha na redação. De novo.
Às nove da noite, o labirinto de cubículos do Correio de Caldwell estava povoado apenas por material de escritório, nada de pessoas – do ponto de vista do pessoal da redação, a edição do dia seguinte já zarpara para o mar: as prensas trabalhavam a todo vapor do outro lado do prédio.
Quando Mels se recostou na cadeira, as molas soltaram um chiado, e ela transformou aquele som em um instrumento, tocando uma musiquinha feliz que compusera após muitas noites iguais àquela. O título era “Rapidamente chegando a lugar nenhum”, e ela fazia um acompanhamento assoviando a parte do soprano.
– Ainda está aqui, Carmichael?
Mels se recompôs e cruzou os braços.
– Oi, Dick.
Seu chefe se esgueirou no pouco espaço que havia ali, com o sobretudo dobrado no braço e a gravata folgada ao redor do pescoço. Ele acabara de voltar da saideira no bar Charlie’s, onde os homens do jornal costumavam assistir esportes após o expediente.
– Trabalhando até tarde de novo? – Seus olhos percorreram os botões da blusa dela, como se esperasse que o uísque que tomou tivesse lhe dado poderes telecinéticos. – Tenho que dizer, você é bonita demais pra fazer isso. Você não tem namorado?
– Você me conhece, o trabalho é sempre mais importante.
– Bem... eu poderia dar algo para você trabalhar.
Mels imediatamente o encarou com firmeza:
– Obrigada, mas estou ocupada. Estou pesquisando sobre assédio sexual em mercados que antes eram dominados por homens, como companhias aéreas, esportes... jornalismo...
Dick franziu a testa como se não tivesse escutado o que esperava. O que era uma loucura. A reposta dela era a mesma desde o primeiro dia.
Mais de dois anos dando um fora nele. Deus, já tinha passado tanto tempo?
– É esclarecedor – ela esticou o braço e tocou o mouse, desativando a proteção de tela. – Muitas estatísticas. Poderia ser minha primeira reportagem de âmbito nacional. Igualdade de sexos na América pós-feminismo é um assunto quente hoje em dia... é claro, eu poderia apenas colocar no meu blog. Talvez você pudesse me dar uma declaração.
Dick arrumou o sobretudo em seu braço.
– Eu não te passei essa pauta.
– Sou uma pessoa de iniciativa.
Ele levantou a cabeça como se estivesse procurando outra pessoa para importunar.
– Só leio aquilo que eu mandei escrever.
– Você pode achar útil.
O cara tentou afrouxar a gravata e... surpresa! Já estava aberta.
– Está perdendo seu tempo, Carmichael. Vejo você amanhã.
Enquanto saía, vestiu aquele sobretudo estilo Walter Cronkite com lapelas dos anos 1970 e o cinto que ficava pendurado, fazendo parecer que parte das suas entranhas não estava onde deveria. Ele provavelmente tinha aquele casaco desde os tempos de Watergate, quando Woodward e Bernstein provavelmente o inspiraram a seguir seu próprio sonho jornalístico... que terminou no topo do expediente de um jornal de cidade pequena.
Nada mal para um emprego. Mas também não era nenhum chefe de redação do The New York Times, ou do The Wall Street Journal.
Isso parecia incomodá-lo.
Então, pois é, não era necessário ser um gênio para atribuir suas inadequações ao tédio de um ex-timoneiro calvo, amargurado por ter passado sessenta anos na intersecção entre o quase-lá e o meu-tempo-está-acabando.
Por outro lado, talvez ele fosse apenas um cretino mesmo.
O que estava claro na mente dela era que um cara mais parecido com uma rã do que com Jon Hamm não tinha nenhuma razão objetiva para acreditar que a resposta para os problemas de qualquer mulher estava dentro da calça dele.
Quando as portas duplas se fecharam, Mels respirou fundo e ficou imaginando um ônibus passando por cima daquele sobretudo anacrônico e deixando as marcas dos pneus. Mas, graças ao corte nos orçamentos, a linha de ônibus da rua Trade não passava mais depois das nove da noite e agora eram... sim, o horário já tinha acabado dezessete minutos atrás.
Ela encarou a tela do computador, sabendo que deveria ir para casa.
Seu artigo de iniciativa própria não era exatamente sobre chefes de olhar malicioso que fazem suas funcionárias pensarem que o transporte público seria uma ótima maneira de assassinar alguém. O artigo era sobre pessoas desaparecidas. As centenas de pessoas desaparecidas da cidade de Caldwell.
Caldie, como a cidade era conhecida, lar das pontes gêmeas, era também a líder nacional em desaparecimentos. Durante os últimos anos, a cidade de dois milhões de habitantes tivera o triplo de desaparecimentos de Manhattan (contando todos os seus cinco municípios) e Chicago – juntas. E o total da última década ultrapassara os números de toda a costa Leste. O que tornava tudo ainda mais estranho é que a questão não era só os números em si: acontece que as pessoas não estavam desaparecendo apenas temporariamente. Elas nunca voltavam e nunca eram encontradas. Nada de corpos, nada de vestígios e nada de relocação para outras jurisdições.
Era como se fossem sugadas para outro mundo.
Depois de toda sua pesquisa, Mels sentia que o horrível massacre em uma fazenda no mês anterior tinha algo a ver com a abundância de desaparecimentos...
Todos aqueles jovens estraçalhados.
As informações preliminares sugeriam que muitos daqueles que foram identificados já haviam sido declarados desaparecidos em algum ponto de suas vidas. Muitos deles eram casos de delinquência juvenil ou tinham antecedentes com drogas. Mas nada daquilo importava para as famílias – e nem deveria.
Não é preciso ser um santo para ser uma vítima.
A horripilante cena da zona rural de Caldwell foi notícia em âmbito nacional, com todos os canais enviando seus melhores repórteres, desde Brian Willians até Anderson Cooper. Os jornais também estavam presentes. Mas, mesmo com toda a atenção, a pressão dos políticos e o clamor por justiça de comunidades abaladas (e com razão), a verdadeira história ainda estava para surgir: a polícia de Caldwell tentava ligar as mortes a uma pessoa, qualquer pessoa, mas não conseguiu nada – mesmo trabalhando no caso dia e noite.
Mas tinha de haver uma resposta. Sempre há uma resposta.
E Mels estava determinada a descobri-la – pelo bem das vítimas e de suas famílias.
Além disso, esse era o momento para ela se destacar. Chegara a Caldwell aos 27 anos, depois de pedir transferência de Manhattan porque viver em Nova York estava muito caro e ela não estava chegando a lugar algum no New York Post. Seu plano era se mudar por seis meses, juntar algumas economias morando com sua mãe e depois se concentrar nos peixes grandes: The New York Times, The Wall Street Journal, talvez até um emprego de correspondente na CNN.
Mas não foi exatamente como as coisas aconteceram.
Voltando a focar na tela do computador, ela vasculhou as colunas que conhecia de cor, buscando padrões que ainda não tinha enxergado... pronta para encontrar a chave que abriria a porta não apenas da história, mas também de sua vida.
O tempo estava passando depressa, e Deus sabe que ela não era imortal...
Quando Mels deixou a redação, por volta das nove e meia, aquelas linhas de informação continuavam surgindo em sua mente sempre que piscava, como se fosse um videogame que ela tivesse jogado por muito tempo.
Seu carro, que batizara de Josephine, era um Honda Civic de doze anos com quase 125 mil quilômetros rodados – e a Fifi estava acostumada a esperar por ela no frio da noite. Mels deu partida naquele velho motor de máquina de costura e foi embora, deixando para trás seu emprego meia boca. E foi para a casa de sua mãe. Aos trinta anos de idade.
Que bela profissional. E pensava que iria acordar magicamente na manhã seguinte como uma Diane Sawyer sem o spray de cabelo?
Seguindo pela rua Trade para fora do centro da cidade, deixou os prédios de escritório para trás, passou pelas boates e ruas abandonadas do lado sujo do município. Ao final de todos aqueles prédios com janelas lacradas, as coisas melhoraram quando entrou nos arredores de uma vizinhança residencial, com casas bonitas e ruas com nomes de árvores...
– Meeeerda!
Virando o volante com força para a direita, tentou evitar o homem que apareceu no meio da rua, mas era tarde demais. Ela o acertou em cheio, erguendo-o com o para-choque até ele voar em seu para-brisa, cujo vidro laminado estilhaçou-se com um lampejo brilhante.
E aquele foi apenas o primeiro de três impactos.
O corpo do homem simplesmente voou pelos ares, e Mels teve a terrível visão dele atingindo o pavimento com força. E então ela teve seus próprios problemas. O impacto desviou o carro, que atingiu o meio-fio. Os freios diminuíram o impulso, mas não rápido o suficiente – e então se tornaram inúteis quando o carro também saiu do chão.
O carvalho que os faróis iluminaram fez seu cérebro realizar um raciocínio rápido: ela ia atingir a maldita coisa, e isso ia doer muito.
A colisão fez um barulho seco, um estampido ao qual ela não prestou muita atenção – estava ocupada recebendo o air bag em seu rosto, e a falta do cinto de segurança veio com tudo para morder seu traseiro. Ou a virilha, nesse caso.
Mels foi jogada para a frente e ricocheteou para trás, e um pó vindo do air bag invadiu seu olhos, nariz e pulmões, causando irritação e fazendo-a engasgar. Então tudo ficou silencioso.
No final, tudo o que podia fazer, assim como a pobre Fifi, era ficar onde estava. Debruçada sobre o air bag vazio, ela tossiu um pouco...
Alguém estava assoviando.
Não, era o motor que soltava vapor de algo que deveria estar selado.
Ela virou a cabeça com cuidado e olhou para fora através da janela do motorista. O homem estava caído no meio da rua, totalmente parado, parado demais.
– Oh... meu Deus...
O rádio do carro ganhou vida, arranhando a princípio, depois se recuperando com um curto circuito. Uma música... qual era?
Do nada, uma luz surgiu no meio da estrada, iluminando a pilha de trapos que ela sabia ser uma pessoa. Piscando, imaginou se aquele seria o momento em que descobriria as respostas sobre a vida após a morte.
Não era exatamente o furo jornalístico que ela esperava, mas aceitaria mesmo assim...
Porém, não era nenhum tipo de chegada celeste. Eram apenas faróis.
Um sedan derrapou até parar e duas pessoas saíram do carro. O homem correu para a vítima, a mulher correu até ela. A boa samaritana de Mels teve que se esforçar para abrir a porta, mas, depois de alguns puxões, ar fresco substituiu o cheiro ruim de plástico do air bag.
– Você está bem?
A mulher tinha cerca de quarenta anos e parecia rica, seu cabelo estava arrumado para cima, os brincos dourados brilhavam, suas roupas finas e elegantes não combinavam com aquele cenário de acidente.
Ela pegou um iPhone.
– Chamei a emergência; não, não se mova. Você pode ter uma lesão no pescoço.
Mels se rendeu à súbita pressão em seu ombro, mantendo-se junto ao volante.
– Ele está bem? Eu não enxerguei... apareceu do nada.
Pelo menos, foi isso que ela tentou dizer. Seus ouvidos captaram apenas murmúrios que não faziam sentido algum.
Dane-se a lesão no pescoço; estava preocupada com seu cérebro.
– Meu marido é médico – disse a mulher. – Ele sabe o que fazer com o homem. Só se preocupe com você mesma...
– Não o vi. Não o vi – ah, bom, isso soou mais inteligível. – Voltando do trabalho. Eu não...
– É claro que não. A mulher se ajoelhou. Realmente, ela parecia a esposa de um médico – e cheirava a perfume caro.
– Apenas fique parada, a ambulância está chegando...
– Ele está vivo, pelo menos? – Lágrimas surgiram nos olhos de Mels, substituindo uma irritação por outra. – Oh, meu Deus, eu matei ele?
Quando começou a tremer, ela lembrou qual era aquela canção... Blinded by the light, pensou.
– Porque meu rádio ainda está funcionando? – ela murmurou entre as lágrimas.
– Como é? – disse a mulher. – Que rádio?
– Você não está escutando?
O que se seguiu foi um gentil e alarmante toque em seu ombro.
– Apenas respire fundo e fique comigo.
– Meu rádio está tocando...
CAPÍTULO 3
– Está calor aqui? Quero dizer, você acha que está calor aqui?
O demônio cruzava e descruzava suas longas pernas à la Gisele Bündchen enquanto puxava o decote de seu vestido.
– Não, Devina, não acho – a terapeuta do outro lado da sala era exatamente como o sofá em que estava sentada: fofa e reconfortante. Até seu rosto era como um travesseiro de algodão, com as linhas de expressão parecendo bordadas em tecido macio. – Mas posso abrir uma janela se você quiser.
Devina recusou balançando a cabeça e enfiou a mão dentro de sua bolsa Prada. Além da carteira, chiclete de menta, uma garrafa de Smartwater e uma barra de chocolate Green & Black’s Organic Dark, havia vários batons YSL Rouge pur Couture. Pelo menos... deveria haver.
Enquanto ela procurava, tentou parecer casual, como se estivesse checando se não perdeu as chaves.
Na verdade, ela estava contando para se certificar de que ainda tinha treze tubos do batom: começando pelo da esquerda no fundo da bolsa, foi movendo para a direita. Treze era o número correto. Um, dois, três...
– Devina?
... quatro, cinco, seis...
– Devina.
Quando perdeu a conta, ela fechou os olhos e lutou contra a tentação de estrangular quem fizera a interrupção...
Sua terapeuta limpou a garganta. Tossiu. E depois engasgou.
Devina abriu os olhos e encontrou a mulher com as mãos no pescoço, parecendo que tinha engolido um McLanche Feliz da maneira errada. Foi bom ver a dor e a confusão, um pequeno show que fez Devina apertar os dedos dos pés, pedindo por mais.
Mas a diversão não podia ir mais longe. Se perdesse essa terapeuta, o que seria dela? Estavam fazendo progresso, e encontrar outra pessoa com quem sentisse uma conexão poderia tomar um tempo que ela não tinha.
Praguejando, o demônio chamou de volta seus cães mentais, aliviando a esganadura invisível que lançara sem perceber.
A terapeuta respirou fundo e olhou ao redor, aliviada.
– Eu... ah... acho que vou abrir a janela.
A mulher se levantou, alheia ao fato de que suas habilidades como psicóloga haviam acabado de salvar sua vida. As duas se encontravam cinco vezes por semana nos últimos dois meses, conversando por cinquenta minutos ao custo de 75 dólares por sessão. Graças a toda aquela baboseira emotiva, os sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo de Devina estavam ficando um pouco mais fáceis de aguentar. E, considerando como as coisas estavam caminhando na guerra contra aquele anjo Jim Heron, a terapia seria muito necessária na próxima rodada.
Devina não podia acreditar que estava perdendo.
Na batalha derradeira pela supremacia na Terra, aquele anjo vencera duas vezes. Havia apenas mais quatro almas na disputa. E se ela perdesse mais duas? Não sobraria nada dela ou de sua coleção: tudo desapareceria, aqueles objetos preciosos que juntara durante os milênios, cada qual uma valiosa lembrança de seu trabalho, estariam perdidos, perdidos, perdidos. E isso não era a pior parte. Suas crianças, aquelas gloriosas almas torturadas e presas em seu muro, seriam incorporadas pelo bem, pelos beatos, pelos imaculados.
Esse mero pensamento a deixava enjoada.
E, ainda por cima, ela tinha acabado de ser penalizada pelo Criador.
A terapeuta voltou a se ajeitar nas almofadas depois de sua busca por ar fresco.
– Então, Devina, conte o que está em sua mente.
– Eu... ah... – quando a ansiedade subiu, ela levantou a bolsa, procurando algum furo; não encontrou nenhum. – Tem sido difícil...
Nenhum dos batons poderia ter caído, ela disse a si mesma. E havia checado o número antes de sair de seu covil. Treze, um perfeito treze. Então, logicamente, estavam todos lá. Tinham de estar.
Mas... oh, Deus, talvez ela tivesse segurado a bolsa de lado e deitado um deles cair por não ter fechado o zíper...
– Devina – disse a terapeuta –, você parece muito nervosa. Pode me dizer o que está acontecendo, por favor?
Fale, disse a si mesma. Era a única maneira para escapar disso. Mesmo que contar, arrumar, checar e recontar parecessem a solução, ela gastaria milênios fazendo isso sem chegar a lugar algum. E esse novo jeito estava funcionando. Mais ou menos.
– Aquele novo colega de trabalho de que eu te falei... – ela abraçou a bolsa, segurando tudo com o corpo que assumia quando andava entre os macacos. – Ele é um mentiroso. Um completo mentiroso. Ele me enganou... e eu fui acusada de jogar sujo.
Desde que começara a terapia, ela vinha explicando a guerra contra o anjo Jim Heron em termos que um humano do começo do século XXI pudesse entender: ela e seu inimigo eram colegas em uma empresa de consultoria, e competiam pela vice-presidência. Cada alma que disputavam era um cliente. O Criador era o CEO, e os dois tinham um número limitado de tentativas para impressioná-lo. Blá, blá, blá. A metáfora não era perfeita, mas era melhor do que se revelar completamente e correr o risco de sua terapeuta perder a cabeça, ou pensar que Devina não era apenas compulsiva, mas digna de um manicômio.
– Pode ser mais específica?
– O CEO enviou nós dois para um cliente em potencial. No final, o homem nos contratou e queria trabalhar comigo. Tudo estava bem. Eu estava contente, o cliente estava... – bem, não contente. Matthias não estava nem um pouco contente, o que era mais uma razão para ela ficar satisfeita com a vitória: quanto mais sofrimento, melhor. – Estávamos cuidando do cliente, e tudo estava combinado, o contrato estava assinado, o assunto encerrado. Então fui chamada para uma reunião idiota e me disseram que teríamos que disputar o cliente de novo.
– Você e seu colega de trabalho, certo?
– Isso! – ela jogou as mãos para cima. – Quer dizer, qual é? Estava feito. Estava tudo combinado. A disputa tinha terminado. E agora temos que refazer tudo? Que merda é essa? E daí o CEO disse pra mim: “Bom, você ainda pode ficar com a comissão pelo contrato.” Como se isso compensasse tudo!
– Melhor do que perder tudo.
Devina balançou a cabeça. A mulher simplesmente não entendia. Uma vez que ela se apoderava de algo, se deixasse isso escapar, ou se alguém a roubasse, era como se uma parte de seu verdadeiro corpo fosse removida: Matthias fora arrancado de seus muros e colocado novamente na Terra.
Francamente, o poder do Criador era a única coisa capaz de assustá-la.
Além de suas próprias compulsões.
Não conseguiu controlar a ansiedade: abriu a bolsa novamente e recomeçou a contar...
– Devina, você trabalhou bem com o cliente, certo?
Ela fez uma pausa.
– Sim.
– E você possui um bom relacionamento com ele ou ela?
– Ele. Sim.
– Então você está numa posição mais vantajosa do que seu colega de trabalho, não é?
A terapeuta fez um gesto com as mãos, como se dissesse “então, qual o problema?”.
– Não tinha pensado assim – estivera irritada demais para isso.
– Você deveria. Mas, eu devo dizer, tem uma coisa que está me confundindo. Por que o CEO sentiu a necessidade de intervir? Especialmente se o cliente não apenas assinou um contrato, como também parecia satisfeito?
– Ele não aprovou algum dos... métodos... usados para assegurar o negócio.
– Métodos seus?
Quando Devina hesitou, os olhos da terapeuta rapidamente focaram o decote que a paciente usava.
– Sim, meus – disse o demônio. – Mas, qual é, eu consegui o cliente e ninguém pode criticar minha ética no trabalho: estou trabalhando o tempo todo. Literalmente. Não tenho vida que não seja meu trabalho.
– Você aprova as táticas que usou?
– É claro. Consegui o cliente, isso é tudo que importa.
O silêncio que se seguiu sugeria que a terapeuta não aprovava essa coisa de “fins justificando os meios”. Mas que se dane, isso era problema dela – e era provavelmente a razão de ela parecer um travesseiro e passar os dias escutando os problemas dos outros.
Em vez de governar o mundo inferior e ficar uma gostosa usando sapatos Louboutins...
Quando a ansiedade apertou de novo, Devina começou outra recontagem, jogando os batons um atrás do outro, da esquerda para a direita. Um, dois, três...
– Devina, o que você está fazendo?
Por uma fração de segundo, ela quase atacou de verdade. Mas a razão e um chamado para a realidade prevaleceram: as compulsões estavam quase dominando-a completamente. E não se pode ser efetivo contra um inimigo como Jim Heron quando se está presa em uma eterna ansiedade causada por objetos que se sabem perfeitamente bem que não foram perdidos, movidos ou tocados por nenhuma outra pessoa.
– Batom. Estou apenas me certificando de que trouxe meus batons.
– Certo. Bom, quero que você pare com isso.
Devina levantou o olhar com verdadeiro desespero.
– Eu... não consigo.
– Sim, você consegue. Lembre-se, o problema não são os objetos. Você deve lidar com seus medos de maneira mais efetiva e permanente do que simplesmente cedendo às compulsões. Você sabe, o alívio que consegue no final de um ritual nunca, nunca dura mais que uma fração de segundo; e nunca ataca a raiz do problema. O fato é que, quanto mais obedece às compulsões, mais fortemente elas controlam você. A única maneira de melhorar é aprender a suportar a ansiedade e repensar os impulsos como algo que você pode controlar; e não o contrário – a terapeuta se inclinou para frente, com uma seriedade de quem vai dizer algo cruel, mas para o seu bem. – Quero que você jogue um deles fora.
– O quê?
– Jogue um dos batons fora – a terapeuta se esticou para o lado e pegou um cesto de lixo cor-de-rosa. – Agora mesmo.
– Não! Deus, você está louca? – O pânico se espalhou pelo seu corpo. As palmas das mãos começaram a suar, seus ouvidos zumbiram, seus pés adormeceram. Logo, a onda se propagou: seu estômago embrulhou, o fôlego foi se perdendo, o coração batia mais rápido. Tudo isso pareceu durar uma eternidade. – Eu nunca vou conseguir...
– Você consegue e, além do mais, você precisa. Escolha a cor de que menos gosta e coloque no cesto.
– Não tenho uma cor de que eu não gosto, todos são da mesma cor: 1 Le Rouge.
– Então qualquer um vai servir.
– Não consigo... – lágrimas ameaçavam cair. – Não consigo...
– Pequenos passos, Devina. Essa é a chave da terapia cognitiva comportamental. Temos que tirar você da zona de conforto, te expor ao medo, e então te conduzir a superar o obstáculo para que aprenda que pode chegar inteira do outro lado. Faça isso muitas vezes e o transtorno vai começar a perder o controle sobre seus pensamentos e suas decisões. Por exemplo, o que acha que vai acontecer se jogar um deles fora?
– Terei um ataque de pânico. Principalmente quando chegar em casa e o batom não estiver comigo.
– E depois?
– Vou comprar outro para substituir, mas não vai ser o mesmo que joguei fora, então não vai adiantar nada. Vou só ficar mais compulsiva...
– Mas você não vai morrer.
É claro que não, ela era imortal. Contanto que ganhasse a guerra, obviamente.
– Não, mas...
– E o mundo não vai acabar.
Bem, não por causa do batom.
– Mas vai parecer que sim.
– Emoções vêm e vão. Não duram para sempre – a mulher balançou o cesto. – Vamos lá, Devina, vamos tentar. Se você achar que é muita coisa para aguentar, pode pegar o batom de volta. Mas precisamos começar a nos concentrar nisso.
Como previsto, um ataque de ansiedade começou a surgir, mas, ironicamente, foi o medo que a fez prosseguir: medo de ser dominada por esse problema que não conseguia controlar, medo de que Jim vencesse não porque era o melhor no jogo do Criador, mas porque ela não suportava a pressão; medo de nunca conseguir mudar...
Devina enfiou a mão na bolsa e agarrou o primeiro batom que encontrou. Então jogou fora. Apenas o deixou cair no cesto de lixo.
O som macio que o objeto fez ao acertar os lenços de papel dos pacientes anteriores pareceu o portão do Inferno se fechando atrás dela.
– Bom trabalho – disse a terapeuta, como se Devina fosse uma garotinha de cinco anos que tinha recitado o alfabeto. – Como se sente?
– Como se fosse vomitar – olhando para o cesto, a única coisa que a impediu de vomitar foi o fato de que faria isso em cima do batom.
– Você pode classificar sua ansiedade numa escala de um a dez?
Quando Devina disse “dez”, a terapeuta começou um discurso sobre respirar durante o pânico, blá, blá, blá...
A mulher se inclinou para frente de novo, como se soubesse que não estava sendo ouvida.
– O importante não é o batom, Devina. E a ansiedade que você sente agora não vai durar para sempre. Não vamos exigir demais de você, e vai ficar impressionada com os avanços. A mente humana pode ser reprogramada, podemos criar novos caminhos de experiência. A terapia de exposição funciona: é tão poderosa quanto as compulsões. Você precisa acreditar nisso, Devina.
Com a mão trêmula, o demônio limpou o suor da testa. Então, recompondo-se dentro de seu traje de carne humana, ela assentiu.
A mulher que parecia um travesseiro estava certa. O que Devina vinha fazendo até então não estava funcionando. As coisas estavam piorando, e os riscos só aumentavam.
Afinal, ela não apenas estava perdendo... também estava apaixonada pelo inimigo.
Não que gostasse de se lembrar disso.
– Você não precisa acreditar que isso vai funcionar, Devina. Apenas tem que acreditar nos resultados. É difícil, mas você consegue. Tenho fé em você.
Devina observou os olhos da humana e invejou a convicção da terapeuta. Inferno, uma pessoa com aquele tipo de confiança devia estar delirante... ou se apoiando em muita experiência e treinamento.
Houve um tempo em que Devina também tinha essa confiança em si mesma.
E precisava ter isso de volta.
Jim Heron provara ser muito mais do que um oponente digno e uma boa transa. E ela não podia deixá-lo manter a vantagem. Perder não era uma opção. Assim que a sessão de terapia terminasse, ela precisava voltar ao trabalho com a mente limpa e livre de qualquer besteira.
Devina fechou os olhos e se ajeitou na poltrona, apoiando as mãos nos braços estofados e enterrando as unhas no tecido aveludado.
– Como está se sentindo? – perguntou a terapeuta.
– Como se fosse superar isso de um jeito ou de outro.
CAPÍTULO 4
– Apenas me diga se ele está vivo ou não.
A enfermeira ao lado da cama simplesmente ignorou o pedido de Mels. Oferecendo uma caneta, a mulher disse:
– Se você assinar esses papéis eu passarei as receitas...
Danem-se os papéis.
– Preciso saber se o homem sobreviveu.
– Por lei, eu não posso divulgar a condição de nenhum paciente. Assine aqui para eu poder te liberar.
Leia-se: Não encha minha paciência e me deixe voltar a trabalhar.
Praguejando baixinho, Mels assinou no local indicado e guardou as duas folhas de papel e a cópia, enquanto a enfermeira partia para aterrorizar o próximo paciente.
Que noite! A boa notícia era que a polícia estava pelo menos chamando aquilo de acidente, reconhecendo que ela não tinha sido negligente ou bebido. Mas ainda havia problemas...
Observando seus papéis de alta, ela passou a vista nas notas. Concussão leve. Distensão no pescoço. Retorno com seu médico de preferência em uma semana ou mais cedo no caso de visão dupla, náusea, tontura ou piora da dor de cabeça.
O carro provavelmente sofrera perda total.
E não havia como o homem ter sobrevivido.
Com um grunhido, ela sentou, encostando-se nos travesseiros, e sua cabeça enfaixada registrou o movimento como se fosse o giro de uma bailarina. Enquanto esperava a tontura passar, ela observou suas roupas penduradas em uma cadeira de plástico laranja à sua frente. Ela pudera manter o sutiã e a calça durante os exames. A camisa, a jaqueta e o casaco estavam apenas esperando para ser vestidos de novo.
Mels não ligou para sua mãe.
A família já passara por um acidente automobilístico – e, naquele caso, a pessoa que não tinha sobrevivido era seu pai.
Então, pois é, apenas mandou uma mensagem de texto dizendo que sairia com os amigos e chegaria em casa mais tarde. A última coisa de que precisava era deixar sua mãe nervosa e insistindo em ir buscá-la no hospital, especialmente levando em consideração o que ela queria fazer agora.
Mels começou lentamente o esforço para vestir-se, embora esse atraso não tivesse nada a ver com ser uma boa paciente. Evidentemente, o choque de ter se sentido como um boneco de teste de colisão não era algo de que podia se livrar facilmente. Ela sentia-se velha e decrépita – e estranhamente aterrorizada.
Ter matado alguém... era inimaginável.
Ela enfiou os papéis na bolsa, abriu a cortina verde e encarou o enorme caos do hospital: pessoas com jalecos brancos e batas de enfermeira andavam para cima e para baixo, entrando e saindo de quartos, dando e obedecendo ordens.
Considerando que já estivera em uma colisão naquela noite, ela foi cuidadosa para não entrar no caminho de ninguém enquanto se dirigia para a saída.
Que ela não usou.
A sala de espera estava cheia de pessoas buscando cuidados médicos, incluindo um cara com um olho roxo e uma mão cheia de ataduras que sangrava muito. Ele levantou a cabeça, olhou para Mels e assentiu, como se compartilhassem uma ligação por terem começado uma briga em um bar.
Pois é, você deveria ver como o carvalho ficou depois que eu acabei com ele. Toca aqui.
Na recepção, ela se instalou no balcão e esperou até ser notada. Quando um homem se aproximou, Mels sorriu como se o assunto não fosse muito importante.
– Você pode me dizer o número do quarto daquele desconhecido que foi atropelado?
– Ei, eu te conheço. Você é repórter.
– Sim – ela enfiou a mão dentro da bolsa, pegou seu passe de imprensa e o mostrou, como se fosse um distintivo do FBI. – Você pode me ajudar?
– É claro – ele começou a digitar no teclado. – Ele foi transferido para um quarto hospitalar. Número 666. É só pegar o elevador e seguir as placas.
– Obrigada – Mels deu uma leve batida no balcão. Pelo menos, ele ainda estava respirando. – Você ajudou muito.
– Sabe, você não parece muito bem – disse o enfermeiro, fazendo um círculo em volta de seu olho.
– Noite difícil.
– Estou vendo.
A viagem até o sexto andar foi um exercício de processamento de informações, em que seu cérebro falhou miseravelmente. Para começar, ainda sentia tontura, e a subida fez seu ouvido zumbir tanto que foi preciso segurar no corrimão. Ótima ideia colocar um corrimão no elevador; afinal, gente com tontura era parte da rotina por ali. E o fato de a parede ser revestida com metal cinza fosco era outro benefício. Ela ainda não tinha se olhado no espelho, mas, pela maneira como o enfermeiro a olhou na recepção, o air bag que ela quase comera provavelmente não fizera muito bem à sua pele.
A campainha do elevador era alegre como se estivesse na Disneylândia, mas as portas se abriram tão vagarosamente que pareciam exaustas.
Seguindo as instruções, ela observou as placas e encontrou a direção, entrando em um longo e amplo corredor marcado por incontáveis portas largas. Tudo era mais quieto por lá, e ninguém na estação das enfermeiras se manifestou enquanto ela se aproximava. Melhor assim – não queria correr o risco de alguém começar a fazer perguntas, não gostar das repostas e enviá-la de volta.
O quarto ficava quase no final do corredor, e ela meio que esperava ver um policial de guarda na porta. Mas não havia nada nem ninguém. Apenas mais uma porta com uma placa amarela numerada no batente e uma superfície laminada, que parecia madeira de pinheiro.
Empurrando a porta, ela se inclinou para dentro. Sob a luz fraca, pôde ver o pé da cama, uma janela na parede mais distante e uma TV instalada no teto. O som de bipes e o cheiro de desinfetante provavam que aquilo não era um quarto de hotel – não que ela precisasse de ajuda para saber disso.
Mels limpou a garganta.
– Olá?
Quando não houve resposta, entrou e deixou a porta entreaberta. Passando pelo banheiro, parou quando teve uma visão clara do paciente.
Então levou as mãos ao rosto e cobriu a boca quando seu queixo caiu.
– Oh... meu Deus!
No pequeno apartamento acima da garagem que alugava na zona rural, Jim Heron não conseguia dormir.
Todos ao redor dormiam como pedras: o Cachorro estava ao pé da cama, suas patas tremendo enquanto sonhava com coelhos ou esquilos... ou talvez com sombras negras que possuem presas. Adrian estava sentado em um canto, com as costas contra a parede e o corpo tenso, apesar da respiração regular. E Eddie? Bom, o cara estava morto, então não era como se estivesse andando por aí em círculos.
Desesperado por um cigarro, Jim saiu da cama pelo lado errado, para evitar perturbar o Cachorro, e pegou seu maço de Marlboro. Antes de sair, se aproximou para checar Adrian.
Sim. Dormindo sentado.
Com uma adaga de cristal na mão, caso alguém viesse atrás de seu amigo.
Pobre coitado. A perda de Eddie fora um duro golpe na equipe... mas fora particularmente ruim para aquele maluco tatuado cheio de piercings que estava em vigília desde o dia da morte.
Por que será que, quando um homem tenta esconder sua dor, parece ser muito mais triste do que se estivesse em qualquer tipo de histeria e choradeira?
E, em uma nota não relacionada, Jim estava estranhando trabalhar com parceiros.
No tempo em que era um assassino das Operações Extraoficiais, ele agia estritamente sozinho. Agora tanta coisa tinha mudado, desde seu chefe e o tipo de trabalho, passando por suas armas – e Eddie Blackhawk era quem mostrava o caminho, ensinando o que precisavam saber, acalmando ele e Adrian quando os dois discutiam, sendo a voz da razão em situações nas quais parecia não haver lógica... como quando se está diante do próprio cadáver. Ou quando se luta contra um demônio que gosta de usar Prada e que tem uma queda por homens que a rejeitam. Ou quando se leva nas costas o futuro das boas almas, e das más, e de todas aquelas que já existiram ou que iriam existir.
Tipo de coisa que fazia a pessoa querer trocar de emprego com o cara que frita hambúrgueres na lanchonete.
Praguejando, Jim andou até o sofá, pegou uma jaqueta de couro e cobriu as pernas de Adrian. O outro anjo grunhiu e se ajeitou no chão, mas continuou debaixo da jaqueta. Ótimo – o objetivo era manter o cara aquecido, não conversar com ele.
Jim não estava a fim de conversar com ninguém.
Mas isso não era novidade.
Ele pisou no patamar no topo da escada e o ar frio percorreu a pele nua de seu peito. Antes de ter um colega de quarto e um cão, ele sempre dormira nu. Agora usava um moletom. O que o ajudava era o fato de que as noites de abril eram muito frias em Caldwell.
Não que ele dormisse muito.
O maço de Marlboro ainda estava embrulhado e Jim o bateu contra a palma da mão enquanto fechava a porta silenciosamente. Uma das vantagens de ser ao mesmo tempo imortal e corpóreo é que você não precisa se preocupar com câncer, mas a nicotina faz efeito em seu sistema nervoso.
E também não precisa procurar um isqueiro no bolso.
Ele rasgou a embalagem, retirou um cigarro, colocou-o nos lábios e levantou a mão. Quando seu dedo indicador se iluminou ao seu comando, ele pensou em Eddie novamente – e, como de costume, desejou matar Devina.
Pelo menos, os caras do bem ainda estavam com vantagem de dois a um na guerra. Se conseguisse mais duas vitórias, tudo terminaria: ele livraria a Terra das garras do demônio, manteria sua mãe segura na Mansão das Almas... e tiraria sua Sissy do Inferno.
Não que ela fosse sua.
Ele exalou o ar. Não tinha total certeza sobre Sissy, mas as coisas tinham de funcionar assim, não é? Se os anjos ganhassem e Devina deixasse de existir, ele poderia ir lá embaixo e livrar aquela pobre garota da prisão. O Inferno seria dele para fazer o que quisesse.
Certo?
Com essa deixa, começou a imaginar quem seria a próxima alma.
Pensou em seu novo chefe e ouviu a voz com sotaque britânico em sua cabeça. O som macio orgulhoso das palavras de Nigel ecoava ao redor, irritando-o: Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
– Muito obrigado – murmurou enquanto a fumaça escapava de seus lábios junto com a respiração. – Ajudou muito, cara.
Era completamente injusto que sua inimiga soubesse quem era o alvo e ele não.
Que merda.
Na última rodada, ele enganara Devina para conseguir a informação, mas ela não cairia nessa de novo – diga o que quiser sobre aquele demônio, mas ela não era uma loira burra, nem de longe. E isso significava que lá estava ele de novo, emperrado em ponto morto, enquanto o inimigo com certeza saía na frente.
Esse era precisamente o mesmo problema que ele tivera na disputa pela alma de seu antigo chefe. Durante todo o tempo, ele pensou que era outra alma que estava em jogo, mas no fim era Matthias quem estava sendo disputado.
Mas já era tarde, e o filho da puta havia feito a escolha errada.
Vencedora: Devina.
Nesse ritmo, o jogo estava destinado a ser injusto, enquanto Devina continuasse interagindo diretamente com as almas. De acordo com as regras, Jim era o único que poderia fazer isso, mas, na prática, ela fazia parte do corpo a corpo tanto quanto ele. Naturalmente, Nigel, o chefe dos escoteiros, estava convencido de que ela seria punida por pisar fora de seus limites – e talvez até fosse. Mas quem poderia saber quando e onde?
Nesse meio tempo, Jim não tinha outra escolha além de ficar esperto e torcer para não estragar tudo.
Ele precisava vencer. Por sua mãe... e por Sissy.
Ele tragou e exalou outra vez, observando a fumaça girar no ar frio e subir até desaparecer. Ao piscar os olhos, viu uma imagem de Sissy Barten, aquela linda jovem, pendurada de cabeça para baixo em uma banheira de porcelana branca, o sangue vermelho vivo manchando seus cabelos dourados, a pele marcada com símbolos que ele nunca vira antes, mas que Eddie tinha entendido muito bem...
O som discreto de algo raspando o fez perder a linha de raciocínio, então ele virou para trás e abriu a porta do apartamento. O Cachorro saiu mancando com o pelo todo desgrenhado – o que era seu estado natural, e não consequência de ter dormido em uma posição esquisita.
– Ei, amigo! – Jim disse com a voz macia enquanto fechava a porta. – Você precisa ir lá fora?
O pobre e velho cão tinha dificuldade com as escadas, então Jim geralmente o carregava até o chão. Quando ele se abaixou para pegá-lo, o Cachorro prontamente se sentou: era sua maneira de dizer que queria ser apanhado e carregado.
– Sim, senhor.
O animal, que Jim sabia ser mais do que um vira-lata qualquer, pesava quase nada em seu braço, e era quente como um bico de Bunsen.
– Eu disse pra ela pensar em você – Jim disse, segurando o cigarro longe do Cachorro, só para o caso de estar errado quanto ao cão ser especial. – Eu disse pra Sissy pensar em você mastigando minhas meias. Quero que ela imagine você brincando na grama fresca quando as coisas ficarem...
Não podia terminar aquele pensamento em voz alta.
Em seu tempo de vida, Jim fizera muitas coisas feias, horrorosas, para pessoas feias e horrorosas – o que significava que há muito tempo já se tornara durão em relação às suas emoções...
Bom, na verdade, isso tinha acontecido ainda quando era adolescente. Naquele dia, quando tudo mudou para sempre.
No dia em que sua mãe foi assassinada.
Dane-se. São águas passadas.
O fato era que a ideia de Sissy mergulhada no Poço das Almas do demônio era suficiente para fazer até um soldado endurecido pela guerra perder a cabeça.
– Eu disse a ela... pra pensar em você, quando sentisse que não conseguiria aguentar mais.
A pequena cauda do Cachorro balançou para um lado e para o outro, como se Jim tivesse feito a coisa certa.
É, esperava que ela estivesse pensando no Cachorro lá embaixo, e que isso lhe desse um pouco de alívio.
Pois não havia mais nada.
– Preciso encontrar a próxima alma – sussurrou Jim antes de fumar outro trago do cigarro. – Preciso saber quem é o próximo na lista. Precisamos vencer, Cachorro.
Aquele nariz frio e molhado encostou em seu rosto, e ele teve o cuidado de soprar a fumaça por cima do ombro.
O fato de Nigel dizer que Jim conhecia a alma não significava absolutamente nada. Ele conhecera muita gente durante sua vida.
Podia apenas rezar para que fosse alguém que ele pudesse trazer para o seu lado.
CAPÍTULO 5
Matthias percebeu o momento em que não estava mais sozinho. A luz ao redor se intensificou, significando que uma porta se abriu, e isso não acontecia por acaso.
Sua mão direita se fechou por reflexo, como se segurasse uma arma. Mas isso era tudo o que podia fazer. Seu corpo estava imóvel por causa da dor, como se uma corrente o prendesse onde quer que ele estivesse deitado... era uma cama. Sim, estava numa cama, e o som ambiente cheio de bipes lhe informava que tipo de cama. Um hospital. Ele ainda estava no hospital.
Será que nunca iria se recuperar da...
Seus pensamentos empacaram nesse ponto.
Não havia nada além de um buraco negro.
Não fazia ideia da razão de estar ali. Nenhuma pista de por que seu corpo doía tanto. Não... Deus, sabia apenas que seu nome era Matthias, e nada mais.
O pânico o fez arregalar os olhos. Havia uma mulher ao pé da cama, aterrorizada, com as mãos no rosto e uma expressão de completo choque. Um de seus olhos estava roxo e sua testa estava enfaixada. O cabelo preto estava preso para trás. Olhos bonitos. Alta... ela era alta...
Olhos lindos, na verdade.
– Eu sinto muito – ela disse, com a voz rouca.
Como é?
– Sobre...? – a voz dele estava áspera, a garganta doía. E um de seus olhos não funcionava direito.
Não, o olho estava completamente inutilizado. Perdera metade da vista no passado. Foi isso mesmo, quando ele era...
Franziu a testa e seus pensamentos caíram no abismo novamente.
– Eu te atropelei. Sinto muito... não enxerguei você. Estava tão escuro, e você apareceu na rua antes que eu pudesse frear.
Ele tentou estender a mão, em um impulso para acalmá-la que ultrapassou a dor e a confusão.
– Não foi sua culpa... não... sem lágrimas. Venha...
Por algum motivo, ele não podia acreditar que alguém choraria por ele, agora ou em qualquer tempo. Não era o tipo de homem que inspira reações assim. Não ele. Mas por que isso era assim, ele não sabia...
A mulher se aproximou um pouco, e Matthias observou com seu olho bom enquanto ela estendia a mão quente e macia... até tocar a palma dele.
O contato o fez sentir aquecido por todo o corpo, como se tivesse deitado em uma banheira quente.
Engraçado, ele nem tinha percebido que sentia frio até ela o tocar.
– Estou apertando sua mão... – ele disse, com a voz entrecortada. – Caso não consiga perceber.
Ela foi gentil e não comentou o fato de que claramente não sentia sua tentativa de retribuir o contato. Mas ele estava se esforçando. E quando seus olhos se encontraram, por alguma razão, Matthias quis dizer que nem sempre estivera quebrado. Um dia, não faz muito tempo, ele fora capaz de levantar-se orgulhoso, correr longas distâncias e usar seus músculos. Porém, agora ele era como um colchão com pulsação cardíaca.
Mas o motivo disso não fora o atropelamento. Não, ele já estava quebrado havia um bom tempo.
Talvez sua memória estivesse voltando.
– Sinto muito – ela disse novamente.
– Foi assim que você... – ele fez um gesto mostrando o próprio rosto, mas isso a fez focar ainda mais nele, e a maneira como estremeceu sugeria que para ela era difícil olhar o quanto ele estava feio. – Você também se machucou.
– Ah, estou bem. A polícia já veio conversar com você?
– Acabei de acordar. Não sei.
Ela desfez o contato entre eles e enfiou a mão em uma bolsa que mais parecia uma mala.
– Aqui. Este é o meu cartão. Eles conversaram comigo enquanto eu estava sendo medicada, e eu disse que aceito toda a responsabilidade.
Ela colocou o cartão na frente de seu rosto, mas sua visão se recusou a focar.
E Matthias não queria olhar para nada além dos olhos dela.
– Qual é o seu nome?
– Mels Carmichael. Na verdade, é Melissa – ela tocou o próprio peito. – As pessoas me chamam de Mels.
Quando ela deixou o cartão na mesa ao lado, ele franziu a testa, mesmo isso fazendo sua cabeça latejar.
– Como você se machucou?
– Me ligue se precisar de alguma coisa. Não tenho muito dinheiro, mas...
– Não estava usando cinto de segurança, não é?
A mulher olhou ao redor como se já tivesse ouvido isso da polícia.
– Ah...
– Você devia usar o cinto...
A porta abriu bruscamente, e a enfermeira que entrou parecia como se fosse a dona do lugar.
– Estou aqui – ela anunciou enquanto caminhava até os aparelhos que ficavam atrás da cama. – Ouvi o alarme.
A primeira coisa em que Matthias reparou foram os grandes peitos da mulher. Depois, na cintura pequena. E nos longos cabelos castanhos, macios como um edredom e brilhantes como porcelana.
Mas aquela imagem fez sua pele se arrepiar. Ao ponto de ele tentar se sentar para poder sair dali...
– Shh... está tudo bem – sorrindo, a enfermeira quase botou Mels para fora. – Estou aqui pra ajudar.
Olhos negros. Olhos negros que o lembravam de alguma coisa, em algum lugar... uma prisão onde você ficava sufocado pela escuridão, incapaz de se livrar...
A enfermeira se inclinou e seus seios se apertaram um contra o outro.
– Vou cuidar de você.
– Não – ele disse com veemência. – Não, você não vai...
– Ah, sim, eu vou.
Sentia seu inconsciente tentando avisá-lo sobre alguma coisa, algo que não conseguia distinguir com clareza, mas que enviava sinais como um caminho de pólvora antes de uma bomba explodir. Mas não encontrou nada específico. Suas memórias pareciam bases camufladas em um horizonte visto através de óculos de visão noturna – ele sabia que o inimigo estabelecera bases em algum lugar, mas era impossível visualizar qualquer detalhe.
– Se você não se importar – a enfermeira disse para Mels –, eu preciso cuidar do meu paciente.
– Ah, sim. Claro. Eu vou... é, vou embora – Mels se esticou sobre a mulher para poder enxergá-lo. – Bom... falo com você mais tarde.
Matthias também precisou se desviar da enfermeira, mudando a posição do corpo e fazendo os músculos da barriga se contraírem.
A enfermeira bloqueou sua visão.
– Feche a porta quando sair, certo? Obrigada.
E então ficaram a sós.
A enfermeira sorriu e encostou o quadril na beira da cama.
– Que tal eu te dar um banho?
Parecia uma ordem, não um pedido. E, cara, de repente ele sentiu-se nu – e não de um jeito bom.
– Não estou sujo – ele disse.
– Sim, você está – ela colocou a mão em seu braço, bem no lugar onde as sondas se conectavam com a veia. – Você está imundo.
Do nada, seu corpo começou a ganhar força: a energia invadia e inflava seus músculos com saúde, como se ele tivesse passado por dias de descanso, noites bem dormidas e muita comida.
Estava vindo dela, ele percebeu. Mas... como isso era possível?
– O que você está fazendo comigo?
– Nada – a enfermeira sorriu. – Se sente diferente?
Olhando em seus olhos negros, a escuridão parecia tão irresistível quanto repulsiva – e ele não saberia dizer quanto tempo ficaram ali daquele jeito, ligados pela mão dela, que transferia o que parecia uma droga miraculosa.
– Eu conheço você – ele pensou em voz alta.
– É engraçado quando a gente sente isso com uma pessoa desconhecida.
O poder que entrava nele parecia maligno e muito familiar.
– Eu não quero...
– Não quer o quê, Matthias? Não quer se sentir melhor, ficar mais forte, viver pra sempre? – ela se inclinou para ainda mais perto. – Está me dizendo que não quer ser um homem de novo?
Os lábios dele começaram a se mover, mas nenhum som saiu. Uma lentidão se apoderou de seu corpo quando ela retirou a mão. Desorientado e confuso, ele tentou se levantar, mas parecia que, afinal, fora mesmo drogado.
– Vou te dar um banho agora – ela disse com um olhar malicioso e um sorriso que faziam parecer que estava falando de sexo oral e não de esponja e sabonete.
Quando ela se aproximou da pia, Matthias aspirou profundamente, suas costelas se expandindo sem dor, e conseguiu expirar sem dificuldade. Todas as dores desapareceram, dando a impressão de que fazia anos que seu corpo não apresentava nenhuma complicação. Talvez séculos?
– Que dia é hoje? – ele murmurou, enquanto ela enchia uma bacia.
A enfermeira olhou por cima do ombro.
– É mesmo! Você está com amnésia.
Um momento depois ela voltou à cama, trazendo junto a mesa de rodinhas. Quando ela abaixou o lençol até a cintura dele e desamarrou o avental do hospital, Matthias levantou a cabeça pesada e olhou para si mesmo. A parte de cima não estava tão ruim, apenas uma cicatriz aqui e outra ali. Mas a parte de baixo estava arrasada.
Sentiu a esponja macia e quente.
Enquanto a enfermeira massageava seu peito, ele observou a maciez e a luminosidade da pele dela: era como uma pintura, e seu cabelo era mais espesso e voluptuoso do que parecia ser possível. Seus lábios pareciam até partes de uma fruta: molhados, com a promessa de doçura.
Eu não a quero, ele pensou.
Mas não conseguia se mover.
– Você precisa ganhar peso – ela comentou, passando a esponja em seu peito. – Está muito magro.
A esponja foi descendo cada vez mais, demorando-se na barriga: os cuidados estavam mais para de uma amante do que de uma enfermeira. Com súbita clareza, Matthias lembrou que houve um tempo em que ela poderia ter se impressionado – as mulheres que ele contratava para o exercício sexual sempre ficavam animadas com seu corpo...
Espere um pouco, isso realmente estava acontecendo?
Quando ela começou a baixar o lençol ainda mais, Matthias a fez parar:
– Não, pare.
– Sim, continuo.
Com os olhos dela presos aos seus, a enfermeira afastou a mão dele e arrancou o resto da roupa de cama. A violência do ato o fez lembrar de algo lá no fundo de sua mente... mas não sabia o quê.
– Fiz você lembrar de algo? – ela disse, mesmo sabendo bem a resposta. De alguma maneira... ela sabia que ele gostava de coisas perigosas. – Fiz? Matthias.
– Talvez – de repente sua voz parecia mais forte, mais profunda...
– E agora?
Ela o tocou naquele lugar que definia sua masculinidade: a esponja raspou seu pênis de leve.
Quando ela lambeu os lábios com volúpia, ele teve de rir alto. Seja lá qual fosse o seu motivo para quebrar todas as regras, a enfermeira não chegaria a lugar nenhum – o que resolveria o problema de ele não querer aquilo. Ela podia ficar nua e montá-lo; aquele pedaço mole de carne não se levantaria de jeito nenhum.
Mesmo com amnésia, sabia disso, da mesma maneira que sabia que não enxergava com um dos olhos. Era um fato, não uma lembrança.
– Minha memória não é a única coisa que perdi – ele disse secamente.
– É mesmo?
Quando ela massageou onde não deveria, Matthias deu um salto. Bom, mas a impotência não significava que você não sentia nada. Significava apenas que não podia fazer nada a respeito...
O fluxo de poder voltou a se apoderar dele, desta vez mais forte. E com um gemido, ele se arqueou, automaticamente levantando o quadril até a fonte do prazer.
– Isso mesmo – ela disse suavemente. – Sinta meu toque. Estou dentro de você.
O desejo sexual há muito esquecido explodiu por todo o corpo de Matthias; a agressividade e a necessidade de penetrar algo que ele não sentia há muito tempo. Deus, lembrar-se de que era de fato um macho, e não algum doente andrógino...
Oh, droga, isso era bom. Muito... bom.
– Olhe pra mim – ela ordenou enquanto trabalhava em seu pênis. – Olhe para mim.
Ele ficou tão distraído pela novidade que quase esqueceu quem a proporcionava, e a visão dela acabou drenando a sensação para longe: o que se tornou impotente agora foram suas emoções, mesmo que o corpo funcionasse plenamente. Ela era linda, mas... era uma beleza cheia de veneno.
– Você não gosta disto, Matthias?
Não, ele não gostava. Não gostava mesmo.
– Nem um pouco.
– Mentiroso. Precisamos terminar o que começamos, você e eu. Sim, precisamos.
Devina entrou na loja Saks Fifth Avenue no shopping Caldwell Galleria perto das cinco da manhã. Passou pelas portas de vidro e caminhou até um mostruário com manequins que vestiam tons pastéis. Ela posou junto deles por um momento, arqueando as costas e sentindo os seios apertarem o tecido da blusa sob o casaco.
A primavera estava no auge, e isso era uma boa notícia para suas coxas.
Já que estava ali, talvez pegasse algumas coisinhas.
Com uma febre de compras correndo por suas veias, ela apareceu atrás do balcão e, com um aceno das mãos, desativou os detectores de movimento. Por um segundo, pensou em deixar as câmeras de segurança ligadas, só por diversão.
Nada mais divertido do que ter uma plateia – mesmo que fosse apenas um humano gorducho sentado em uma sala de segurança ao final de um turno de trabalho durante o qual provavelmente só dormira.
Porém, ela estava ali por uma razão muito séria.
Seus sapatos de salto faziam barulho no chão de mármore, e ela gostava daquele som ecoando: pisou mais forte para que seu domínio sobre o vazio alcançasse todas as direções. Deus, ela adorava aquele cheiro no ar: chão polido, perfume, colônia... e riqueza.
Passando pelas bolsas de grife penduradas na parede, ela checou os estandes da Prada, Miu Miu e Chanel. As bolsas pareciam lindas mesmo sob o brilho fraco das luzes de segurança, e ela quase engasgou quando encontrou uma Gucci. Atravessando como um fantasma pelo painel trancado, agarrou uma bolsa de pele de cobra verde-escuro e continuou.
Fora sexo, pensou Devina, lojas de departamento de luxo proporcionam a melhor sensação que existe: milhares e milhares de metros quadrados cheios de coisas, tudo bem organizado, etiquetado e catalogado. E protegido.
Era um completo orgasmo para pessoas obsessivo-compulsivas.
Então precisava ter cuidado. Estava sentindo uma ligação surgir entre ela e todas aquelas mercadorias e, se isso acontecesse, havia o perigo de criar uma sensação de posse sobre aquelas preciosidades. E isso não seria bom para ninguém. Ela teria de matar os humanos que entrassem ali para fazer compras, e isso seria exaustivo.
Mas toda aquela organização a fez pensar que poderia usar seu notebook Lenovo e entrar para a era digital com suas próprias coleções.
Talvez o próximo virgem que sacrificaria para proteger seu espelho seria um nerd. Depois ela poderia reanimá-lo e fazê-lo trabalhar para si.
Afinal, havia muitos programadores de computador por aí que não conseguiam nem chegar perto de uma mulher. Seria muito fácil.
Entrando na parte central do primeiro andar, ela encontrou os balcões de maquiagem: o balcão da Chanel com sua conhecida maquiagem preta e brilhante, o da Lancôme cheio de recipientes de vidro... e o da Yves Saint Laurent, com muitos detalhes dourados ao redor dos mostruários.
Indo para trás do balcão, ela abriu o cadeado da prateleira que estava ao chão, e, enquanto abaixava e se apoiava na ponta dos pés, sua mão iluminou o caminho, lançando luz sobre as pequenas etiquetas grudadas nas embalagens.
A etiqueta 1 Le Rouge foi fácil de achar. Ela pegou um pacote, abriu a caixa e retirou o brilhante tubo de metal. Lindo, tão lindo, novinho em folha, intocado. Ela quase estremeceu quando girou e expôs a perfeita coluna de batom vermelho.
O perfume, delicado e com toques florais, fez Devina revirar os olhos.
A terapeuta estava certa: o ataque de pânico não durou para sempre naquele consultório, e quando Devina continuou com seus afazeres mais tarde, a ansiedade de ter jogado o batom fora acabou sendo esquecida enquanto ela dava atenção a outras coisas. Porém, a sensação ressurgiu quando ela voltou para seu espaço privado e sentou em frente ao espelho, pronta para descer até seu muro e aproveitar um pouco de tempo sozinha com suas crianças.
Entram os problemas.
Seus pensamentos rapidamente saíram de controle, surgiam imagens de um compactador de lixo e pilhas enormes e mal cheirosas de dejetos em grandes aterros desolados, que a faziam querer chorar.
Devina poderia ter voltado para pegar aquele batom específico, mas queria honrar a religião da terapeuta: tornar-se obcecada em conseguir de volta aquele batom, sem se importar com as consequências, seria voltar também para seu ciclo vicioso.
Mas ela não podia trilhar esse caminho o tempo todo – e por isso estava na loja e não no consultório, e agora tinha um novo e lindo batom para substituir aquele que sacrificara em nome do autoaperfeiçoamento.
Havia mais cinco batons da cor que gostava, todos empilhados formando uma bonita pirâmide. Ela esticou a mão, com vontade de pegar todos, para servirem de reservas dos reservas, mas impediu a si mesma. Fechou a prateleira. Teletransportou-se para longe.
Saiu de lá orgulhosa de si mesma.
Fim do intervalo; hora de voltar ao trabalho.
Voltando à vitrine pela qual entrara, parou em frente a um dos manequins. A coisa usava uma peruca loira e vestia uma roupa florida que Devina nunca usaria, nem morta.
Mas, então, começou a imaginar o que Jim Heron pensaria se a visse vestindo aquilo.
Sem dúvida fazia seu tipo: feminina, bonita, nada muito revelador. Modesta.
Aquele cretino. Enganador mentiroso.
Naturalmente, o fato de tê-la enganado tão bem apenas o deixava mais atraente.
Devina franziu a testa quando a voz da terapeuta surgiu em sua mente. Terapia cognitiva de comportamento... reprogramar o cérebro por meio de experiências...
O demônio se aproximou e passou a mão pelos cabelos falsos, aqueles longos e lisos fios amarelos.
Sissy Barten, a queridinha de Jim, tinha cabelos iguais àqueles. E teria adorado aquele vestido. Teria se mantido ao longe e esperado Jim se aproximar, nunca se jogaria nele, manteria sempre aquele jeitinho virginal.
O que era suficiente para fazê-la querer matar os dois – e com aquela garotinha estúpida seria a segunda vez, pois já tinha rasgado sua garganta na banheira.
Devina começou a sorrir. E então riu.
Com um rápido movimento, arrancou a peruca, deixando o manequim careca, e saiu através do vidro.
CAPÍTULO 6
Tinha de ser um sonho, não é?
Adrian tinha de estar sonhando. Mas, caramba, tudo parecia real, desde o sofá de veludo sob o seu traseiro, a cerveja gelada em sua mão, até a batida visceral do som na boate.
Estava com medo de virar a cabeça. Medo de descobrir que estava ali sozinho naquele lugar barulhento e desesperador, cheio de pessoas vazias iguais a ele.
Se estivesse sozinho, então Eddie estava mesmo morto.
Deu um gole na cerveja, preparou-se e então virou.
Adrian lentamente abaixou a garrafa, exalando todo o oxigênio para fora de seus pulmões.
– E aí, cara? – ele sussurrou.
Os olhos vermelhos de Eddie se viraram.
– Ah... oi – o cara se ajeitou no assento. – Escute, você tá bem?
– Sim, é só que...
– Por que tá olhando pra mim desse jeito?
– Senti sua falta – Ad disse com a voz grave. – Achei que nunca mais ia te ver.
– Só porque fui até o banheiro? – Eddie sorriu. – Geralmente, eu volto de lá.
Ad esticou a mão, sabendo que um toque provaria de que lado estavam...
Eddie franziu a testa e se inclinou para trás, como se Ad tivesse revelado um par de chifres.
– O que há de errado com você?
O rosto de Eddie parecia exatamente o mesmo: a pele bronzeada pelo sol, um vestígio de barba, aqueles olhos avermelhados estavam abertos para o mundo, nem desconfiados e nem ingênuos, e uma pesada trança que percorria as costas musculosas.
– Eu não sei – disse Ad esfregando o rosto.
– Quer ir embora?
– Deus, não.
– Certo – aqueles olhos vermelhos voltaram-se para a multidão. – Então, você vai me forçar a transar de novo?
Ad riu alto.
– Certo. Foi isso que aconteceu. Claro.
– Jogando mulheres para cima de mim...
– Eu nunca joguei...
– Escolhendo as que sabe que vou gostar...
– Bem, isso eu fiz...
– Arruinando minha virtude.
Quando o cara deu outro gole, Ad ficou sério.
– Ninguém poderia fazer isso.
– É, você tem razão. Antes de me tornar um anjo, eu era uma virgem imaculada.
– O que explicaria esse cabelo todo.
– Não, o cabelo me faz parecer gostosão.
Ad riu novamente e se recostou no sofá sentindo uma súbita injeção de energia percorrer seu corpo. Era uma sensação de que a vida voltara ao normal, que a tragédia não acontecera, que tudo voltara à maneira como deveria ser; era um alívio tão grande que, mesmo sentado, ele sentia como se estivesse voando. Com uma pontada de otimismo, seus olhos percorreram a multidão. Seu radar para mulheres voltava a funcionar e sua rara felicidade transformava periguetes em modelos internacionais.
– Está vendo alguma coisa que te agrade? – Eddie perguntou.
– Se não fosse por mim, você nunca conseguiria uma transa.
– Sabe, eu não acho que isso seja verdade.
– Você é sincero demais.
– Droga.
Ah, sim, aquela ruiva serviria, Ad pensou. E ela estava junto com uma morena...
Franziu a testa e ficou tenso. Havia alguém ao redor, no canto mais afastado, observando-os das sombras.
– Tá na hora – disse Eddie. – Ou fazemos isso agora, ou pedimos outra rodada. Ad? Olá?
Adrian chacoalhou a cabeça.
– Sim... claro.
Seu melhor amigo lhe lançou um olhar desconfiado novamente.
– O que há de errado com você, cara?
Boa pergunta, pensou enquanto se levantava.
– Vou ver o que posso pescar por aí.
– Sem pressa... só não demore muito.
– Isso não é uma contradição?
– Não quando se trata de você.
Os dois riram um pouco. E então Ad se concentrou nas duas mulheres. Quando se aproximou da ruiva e da morena, elas responderam com uma previsível risadinha, nada comparado com os orgasmos que resultariam daquele encontro.
– Meu nome é Adrian – ele disse. Seu lento sorriso fez as mulheres arregalarem os olhos e ajeitarem suas poses: peito levantado, barriga para dentro, pernas esticadas para expor as coxas.
– Gosto do seu perfume – ele disse, inclinando-se para perto do pescoço da ruiva.
Na verdade, não tinha sentido o cheiro ainda, e nem se importava.
Quando puxou o ar, ele congelou. Aquele cheiro. Era...
– Que bom que gostou – ela disse, enquanto acariciava as costas dele até chegar em seu traseiro. – Escolhi exatamente pra alguém como você.
Adrian se afastou, seu cérebro doía. Ou talvez fosse seu peito.
– Certo. Bom.
Olhou por cima do ombro. Eddie estava no sofá, todo espreguiçado, mas totalmente atento, como se estive pronto para o sexo.
Ou seja, estava normal.
Adrian assentiu na direção dele.
– Trouxe um amigo. E você?
– Minha amiga tem namorado – murmurou a ruiva, como se isso fosse um defeito.
– Desculpe – disse a outra mulher.
Como se isso importasse.
– Certo, só você então. Consegue aguentar os dois?
Quando a garota assentiu como se tivesse ganhado na loteria, ele tomou sua mão, e o perfume dela os seguiu, fazendo Ad desejar que a solteira fosse a morena, e que fosse aquela Jessica Rabbit com maquiagem gótica quem tivesse namorado. Mas não dava para voltar atrás – seria trabalhoso demais achar outra candidata e, além disso, o que fariam não era nada permanente. Nunca era permanente.
Mas que droga de perfume de flores – dava até arrepios.
Quando chegaram no sofá, a ruiva foi se jogando no meio, cobrindo tanto as pernas dele como as de Eddie. E, como ela acabou de frente para o outro anjo, Eddie começou a beijá-la intensamente.
Para um cara que não sabia se aproximar de mulheres, ele tinha um apetite e tanto.
Enquanto Ad assistia, e impulsionava seu quadril e peito contra o corpo da mulher, pensou que era incrível o poder que um pesadelo pode ter. Era como se toda aquela merda que ele imaginara sobre Eddie tivesse realmente acontecido: aquele lacaio do demônio aparecendo do nada e rasgando o anjo com uma lâmina, tirando a letra I da palavra imortal. E então a morte, no saguão daquele banco, não muito longe dali. E depois o sofrimento de Adrian, a sensação de ter perdido toda a razão de viver...
Adrian franziu a testa e se perguntou por que falava consigo mesmo como se aquilo realmente tivesse acontecido...
A ruiva se arqueou e abriu as pernas, claramente o convidando-o para brincar no parquinho. E quando ele obedeceu, Eddie passou a trabalhar em seus peitos, baixando um pedaço da blusa, de forma mais agressiva do que o normal, e expondo um par de seios menor do que aparentava.
Quando Adrian estava prestes a mergulhar a mão em território inexplorado, a garçonete apareceu trazendo novas garrafas. Parecia acostumada com aquele showzinho, pois nem piscou ao servir a cerveja.
– Eu pago – disse Ad, tirando a carteira do bolso da calça e entregando uma nota de vinte. Quando a garçonete foi embora, ele olhou para a cerveja, e então virou imediatamente para Eddie. – Coors Light? Que merda é essa?
O outro anjo parou o beijo e deu de ombros.
– Estou controlando meu peso.
Ad revirou os olhos e voltou ao trabalho com o prato principal. Subindo as mãos debaixo da saia curta, ficou surpreso ao descobrir uma calcinha com a resistência de vigas de aço e a elasticidade de uma tenda do exército. Que diabos? Bem, ele pensou, uma calcinha modeladora era mais barata do que uma sessão de lipo.
O perfume voltou a invadir seu nariz, sugerindo que, afinal, talvez não viesse da mulher.
Olhou ao redor, mas não enxergou nada fora do comum.
– Acho que você deveria ser o primeiro – disse Eddie, enquanto brincava com aqueles seios... que agora pareciam meio caídos.
E aquele cabelo. Antes era volumoso e ondulado, agora parecia um pouco crespo.
A mulher sorriu, revelando dentes tortos.
– Vai, Adrian... transa com ela – na escuridão, os olhos de Eddie pareciam tudo menos brilhantes. – Quero assistir vocês.
A mulher tomou a mão de Ad e a colocou de volta entre suas pernas, esfregando a si mesma contra sua palma e dedos...
No meio da multidão, uma pessoa surgiu: uma figura alta e orgulhosa, vestindo um roupão branco. Quando se aproximou, o cheiro de flores ficou mais forte e tomou todo o ar ao redor...
Eddie.
Era o Eddie real, de pé ali na sua frente, uma presença verdadeira em meio a uma multidão de mortos vivos.
– Ah, que merda! Justo agora que as coisas estavam ficando interessantes!
Ad virou a cabeça bruscamente. Devina estava ao seu lado na outra ponta do sofá, pela primeira vez mostrando sua forma verdadeira: era um cadáver animado, a carne perpetuamente caindo dos ossos, a grotesca palma apodrecida passeando pelos seios da ruiva. A expressão do demônio mostrava irritação, seu queixo e lábios estavam apertados ao máximo.
Adrian gritou e tentou se levantar rapidamente, mas a ruiva segurou sua mão no lugar – e, enquanto ele lutava contra sua imensa força, ela também revelou sua verdadeira aparência: outro corpo decrépito, a ilusão de beleza sumindo como se não fosse mais possível sustentá-la.
Enquanto ele tentava se desvencilhar, uma mancha negra começou a subir ao longo do braço, primeiro nos dedos, depois nos pulsos, seguindo seu caminho para o cotovelo.
Gritando alto, ele se sacudiu violentamente, mas estava preso como uma mosca em uma teia de aranha, como um rato em uma ratoeira, como um...
Eddie, o verdadeiro, aquele que estava morto, quebrou aquela conexão com um simples toque, não em Ad, mas na ruiva: aparecendo atrás deles de repente, apenas se inclinou e encostou o dedo iluminado no ombro do monstro. Puff! Ela simplesmente sumiu.
Enquanto Devina xingava o anjo, Adrian se libertou: seu corpo caiu para trás do sofá, com os olhos fixos em Eddie enquanto o coração se partia novamente por causa da perda.
– Vá se foder! – Devina gritou para o anjo.
O rosto de Eddie, aquele rosto esperto, gentil e maravilhoso, não mostrou reação ao insulto. Ele apenas acenou com a cabeça para a garrafa de cerveja Coors e disse:
– Na sua condição, eu estaria preocupado com muitas outras coisas mais importantes do que meu peso.
Mais xingamentos vieram, mas Devina não fez nada além disso – era de se imaginar o que Eddie tinha realmente feito com aquele dedo luminoso do E.T.
O outro anjo observou Ad por um longo tempo, como se sentisse ainda mais falta do amigo vivo.
– Nunca estarei longe – disse Eddie com um sussurro.
– Ah, merda... não vá embora – murmurou Ad. – Fique aqui.
– Que comovente – os olhos negros de Devina estavam furiosos. – Você quer dar um beijinho antes de ir embora?
Eddie começou a se mover como se fosse uma estátua em uma esteira rolante, seu corpo paralisado sendo puxado através da multidão, o perfume de flores se desvanecendo.
– Eddie! – quando Adrian levantou as mãos na direção do anjo, a mancha negra em seu braço quase chegava aos ombros.
– Estou dentro de você – disse Devina com satisfação. – E é tarde demais pra fazer qualquer coisa a respeito disso. Tarde demais!
Adrian gritou a plenos pulmões.
CAPÍTULO 7
Matthias acordou com a luz do dia batendo em seu rosto. Não tinha certeza de quando aquela enfermeira de mão boba saíra, mas ele pretendia partir assim que ela fosse embora. Um sono não natural o arrebatara, deixando-o inconsciente de tal forma que se sentiu dominado.
Francamente, estava surpreso por ter conseguido acordar.
O quarto do hospital parecia exatamente o mesmo, mas por que haveria de mudar durante a noite? E Matthias sentia-se mesmo melhor, como se seu corpo fosse um carro recém-saído do mecânico.
Quem diria que uma masturbação não solicitada poderia ter um impacto tão grande...
Mas era estranho. Quando olhou ao redor, teve a sensação de que era um milagre o fato de ele ainda estar “do lado de fora”. Mas estava fora de onde? Uma prisão? Um hospício? Algo ainda pior?
Forçando seu cérebro confuso a prestar atenção, tentou lembrar onde estivera na noite anterior, o que havia acontecido antes de acordar ali...
Eu te atropelei. Sinto muito.
Matthias fechou os olhos e se lembrou daquela mulher, Mels Carmichael. Alguma coisa nela penetrara o nevoeiro que o cercava, tocando-o onde realmente importava. Por quê? Não fazia ideia – mas sabia que, sob outras circunstâncias, gostaria de passar mais tempo com ela.
Muito mais.
Mas, qual é, ele não era do tipo romântico – sua intuição dizia isso em alto e bom som.
Levantando a cabeça dos travesseiros, ficou surpreso por não se sentir pior. Deu uma chance a seu corpo para deixar a ficha cair e começar a dar as informações corretas, algo mais consistente para alguém que fora atropelado há menos de doze horas.
Nada. Ainda sentia-se bem...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Certo, ajudaria se soubesse quem estava atrás dele, ou por que estava fugindo, mas não perderia tempo tentando decifrar essas perguntas – não quando sua adrenalina estava consistentemente apontando para a saída e gritando para ele dar o fora dali.
– Acho que você não é um anônimo, afinal.
Matthias tentou sacar uma arma que não tinha e olhou ao redor. A enfermeira estava de volta, de pé ao lado da porta, aparecendo como se fosse carregada pelo vento.
Sua aparência era diferente sob a luz do dia. Já não parecia sedutora.
Talvez ela fosse um vampiro. Há, há.
– Encontraram sua carteira – ela disse, mostrando uma carteira de couro preto. – Está tudo aqui, identidade, cartão de crédito... até seu cartão de seguro saúde! A conta no hospital vai ficar cara, mas a maioria das despesas está coberta.
Ela andou e colocou a carteira na mesa de rodinhas, bem ao lado do cartão que aquela jornalista tinha deixado. Então ela deu um passo para trás, como se soubesse que ele queria espaço.
Houve uma longa pausa.
– Obrigado – ele disse, tentando preencher o silêncio.
Ela estava vestida com roupas casuais: jeans azul, sapatos pretos, jaqueta branca folgada que parecia nova em folha. O cabelo estava solto e chegava até os ombros, e ela o alisou com a mão, mesmo já estando perfeito.
– Também trouxe algumas roupas – ela acenou com a cabeça. – Estão no armário atrás de você. Espero que sirvam.
– Então vão me liberar?
– Desde que se sinta bem esta manhã. Tem alguém te esperando em casa?
Ele não respondeu – e não por não saber a resposta. Nunca respondia nada para ninguém. Esse era seu jeito.
Mais uma longa pausa.
Ela limpou a garganta e desviou os olhos quando disse:
– Escuta, sobre ontem à noite...
Então era por isso que ela estava ali.
– Vou me esquecer disso, e você deveria fazer o mesmo – ele disse secamente.
Deus sabia que Matthias tinha problemas mais importantes do que ter sido abusado por uma mulher bonita. Pois é, que história triste. Especialmente se comparada com as coisas que ele fez com outras pessoas...
Lembranças emergiram do fundo de sua consciência, como um monstro esquecido num lago profundo ameaçando se revelar.
Afinal, quem era ele?
De repente os olhos negros da enfermeira grudaram nos seus.
– Sinto muito mesmo. Aquilo foi muito errado da minha parte. Nunca deveria ter...
Voltando ao presente, Matthias pensou que era engraçado que, à luz do dia, todo aquele poder que ela tinha sobre ele houvesse desaparecido totalmente. Ela nem parecia ser o tipo de mulher que poderia ser tão agressiva. Era apenas uma jovem enfermeira bonita, com um belo corpo e um cabelo lindo, e que agora parecia vulnerável.
Será que aquilo tinha mesmo acontecido? Ele provavelmente recebera vários analgésicos, e Deus sabe o quanto esses remédios podem bagunçar a cabeça de uma pessoa.
Por outro lado, se nada tivesse acontecido, ela não estaria ali se desculpando, não é?
– Foi uma total quebra de protocolo, eu nunca fiz nada assim antes. É só que... você estava com tanta dor, e você queria... e...
Ele queria? Lembrava-se do completo oposto. E lembrava que... teve um orgasmo. Talvez isso também não tivesse acontecido.
O que faria sentido.
– Enfim, pensei que deveria te dizer isso antes de ir embora... e você não vai mais estar aqui quando eu voltar da minha folga.
Ela parecia honestamente envergonhada e constrangida. Por alguma razão, Matthias teve a sensação de que fazia parte de sua personalidade tirar vantagem das pessoas, por nenhum motivo além de deixá-las constrangidas.
– Foi minha culpa – ele se ouviu dizer e, no instante que as palavras saíram, acreditou na confissão. – Sou eu quem deveria pedir desculpas.
Afinal, sexo por piedade acontecia sempre com um mesmo princípio, quer o ato fosse até o fim ou não: “oh, estou doente; pode cuidar do meu pau? obrigado, querida”.
A enfermeira pousou a mão na armação da cama.
– Eu só... é, bom, só não quero que pense que fico por aí fazendo essas coisas – ela riu, sem jeito. – Não sei por que isso importa. Mas importa.
– Você não precisa se explicar.
Quando ela ergueu o olhar, sua expressão cuidadosa relaxou e se transformou em um sorriso genuíno. O que o fez checar seu dedo anelar procurando por algum certificado de casamento.
Nada. Nenhuma aliança.
– Obrigada por não ficar bravo – ela olhou por cima do ombro em direção à porta. – Acho que eu deveria ir. Se cuide... e por favor lembre-se de fazer a consulta de retorno com seu médico. Lesões na cabeça e perda de memória são coisas sérias.
– Sim. Vou fazer isso.
Mentir foi muito fácil, Matthias sabia que tinha mentido muito durante sua vida. E quando acenou de volta, sua mente a analisava como se ela fosse um relatório ou uma correspondência, não uma pessoa – mas isso não era culpa dela.
Ele sentia que era assim que sua mente funcionava.
Ótimo. Nada como acordar de manhã e aprender passo a passo que você é um verdadeiro filho da puta.
Observou a mesa ao lado da cama. O cartão de visitas e a carteira estavam um ao lado do outro.
Matthias estendeu a mão, sem saber qual deles pegar.
No fim, a atração pela carteira parecia maior. Ao abrir o couro dobrado, observou a carteira de motorista que estava na parte transparente. A foto era... bem, não reconhecia aquele rosto, mas a enfermeira da mão boba parecia pensar que era ele. Era assim que se parecia? Um cara de cabelo preto e um rosto bonito, porém frio.
As informações impressas diziam que ele tinha olhos azuis – e naquela foto parecia que ambos funcionavam. A data de nascimento era naquele mesmo mês. E a data de validade já havia passado.
O primeiro nome, Matthias, de fato era como as pessoas o chamavam. O endereço ficava na cidade de Caldwell, Nova York, o que resolvia o problema geográfico... que ele nem percebera ter.
Caldwell, Nova York.
Estava de volta. Pelo menos era isso que seus instintos diziam...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Deixando a urgência de lado, começou a sair da cama devagar. Quando percebeu que estava preso, retirou as sondas intravenosas e o monitor cardíaco. Inclinando-se até os equipamentos ao lado, desligou os alarmes e arrastou-se para o banheiro.
A luz estava apagada, e quando apertou o interruptor... o show começou.
Matthias quase perdeu o fôlego ao ver a própria imagem refletida no espelho da pia. Um de seus olhos exibia um branco leitoso, e seu rosto estava esculpido com as linhas indeléveis de um passado cheio de dor – além de cicatrizes na testa onde sua lesão ocular aconteceu.
A fotografia na identidade era mesmo dele, principalmente se você adicionar um pouco de cabelo grisalho nas laterais, mas tinha sido tirada antes de...
– Senhor, preciso pedir que volte para a cama, pois está correndo o risco de escorregar e cair. E não deveria ter tirado as...
Ele ignorou a nova enfermeira.
– Estou indo embora. Agora mesmo. As regras do hospital, é, eu sei.
Fechou a porta na cara dela e abriu o chuveiro. Por alguma razão, quando voltou a focar o espelho, pensou em Mels Carmichael. Não foi à toa que a primeira reação dela ao vê-lo fora na linha do oh, meu Deus.
Ele não estava exatamente bonito...
Deus, por que estava pensando daquela maneira? Que importava o que os outros achavam dele?
Com a coordenação melhorando depressa, abriu a porta e olhou para dentro do quarto. A enfermeira não estava mais ali, mas com certeza voltaria trazendo alguém com um crachá de médico – era hora de se mexer rapidamente. Agarrou o cartão que Mels deixara e o guardou na carteira. Então pegou as roupas do armário e se trancou no banheiro.
Dez minutos mais tarde, Matthias estava com os cabelos e o corpo limpos, vestindo camiseta e jaqueta pretas e um jeans folgado.
Ao caminhar para fora do quarto, agarrou uma bengala que assumiu estar lá para ele.
O objeto parecia natural em sua mão e fez seus passos ficarem muito mais rápidos. Como se estivesse acostumado a usá-la.
Dirigindo-se para os elevadores, não pediu autorização para ninguém, não assinou nenhuma linha tracejada. O departamento de cobrança encontraria o homem que morava no endereço que aparecia na carteira de motorista.
E talvez ele também encontrasse esse homem.
O grito de Adrian acordou Jim e o fez saltar da cama, aterrissando em uma posição de luta. Com uma adaga de cristal em uma das mãos e uma pistola semiautomática na outra, estava pronto para lutar, fosse na arena dos humanos ou na de Devina. O Cachorro, que não era bobo, estava se protegendo debaixo da cama.
– Estou bem – disse Adrian, com a convicção de alguém que estava sangrando por uma veia.
Claro, com certeza, pensou Jim, que chegara correndo.
Sob a luz do sol que raiava entre as persianas, o anjo parecia completamente acabado, esparramado ali no chão, com grandes olheiras, cabelo desarrumado, mãos tremendo ao puxar a gola de sua camiseta Hanes. Seus piercings, aquelas argolas de metal que circulavam seus lábios, todo o lado da orelha e marcavam sua sobrancelha, eram as únicas coisas que brilhavam. Tudo o mais parecia sem vida.
Sua luz interior havia se apagado.
Jim estendeu a mão para o cara.
– Hora de levantar.
O outro anjo tomou sua mão, e por um momento os músculos de Jim ficaram tensos ao sentir uma desagradável pontada fluindo por seu braço e ativando seus instintos de um modo ruim. Mas então levantou Ad do chão, e aquilo desapareceu.
– Você já foi encontrar Nigel e os garotos? – perguntou Ad, enquanto andava como se tentasse se livrar da sensação ruim que tivera durante o sono.
– Por que eu faria isso?
– Boa pergunta.
Com essa deixa, Adrian foi até o banheiro e fechou a porta. Depois da descarga, o chuveiro foi ligado, e então foi a vez da pia.
Jim aproximou-se da porta e falou através da madeira fina:
– Você sonhou com o quê?
Quando não obteve resposta, fechou o punho e bateu.
– Adrian. Conte o que foi.
Deus sabia que Devina usava todo tipo de truques para conseguir o que queria. A ideia de que ela poderia invadir a cabeça de Ad pela porta dos fundos soava bem óbvia.
Bateu de novo na porta.
Quando não houve resposta novamente, Jim mandou a privacidade para o inferno e entrou.
Através da cortina de plástico do chuveiro, viu Adrian no chão de novo, desta vez com o piso frio do banheiro sob seu traseiro. Estava encolhido, com os cotovelos contra o peito, o rosto enterrado nas mãos. Não estava chorando, ou praguejando, nem parecia desesperado, mas talvez isso fosse o mais preocupante. O anjo estava apenas sentado debaixo da água quente, seu grande corpo enrolado em si próprio.
Jim abaixou o assento da privada e sentou.
– Converse comigo.
Depois de um momento, o anjo disse com a voz rouca:
– Ela era o Eddie. No meu sonho, ela era o Eddie.
Merda.
– Isso faria qualquer um gritar.
– Ele estava lá também. Foi ele quem me acordou, na verdade. Droga, Jim... ver Eddie de novo foi...
Enquanto a frase sumia, Jim inspecionou a lâmina de sua adaga com um cuidado especial.
– É, eu sei.
– Vou matá-la.
– Só se chegar antes de mim.
Adrian deixou os braços caírem para os lados e seus punhos acertaram a poça de água que se acumulava ao redor de seu corpo. Ele parecia derrotado, mas seria apenas por um momento. Sua raiva retornaria assim que aquele demônio aparecesse por perto e, francamente, a previsível resposta seria um problema: ninguém quer ver o próprio parceiro ficar cego pela raiva, e aquele sentimento não era fácil de controlar.
– Acho que você precisa pedir um novo parceiro para Nigel – Ad disse suavemente. Como se tivesse lido os pensamentos de Jim.
– Não quero outra pessoa.
Mas isso era mentira. Ainda estava aprendendo a lidar com as próprias habilidades e armas – claro, a curva de aprendizado já não era mais tão íngreme quanto nas primeiras rodadas, mas ele ainda estava longe de saber tudo. E Devina não era o tipo de inimigo contra o qual um desempenho mediano fosse aceitável.
Por causa disso, ele precisava de um parceiro sólido lhe dando cobertura.
Honestamente, Eddie era a peça que estava faltando. E fora precisamente por isso que o inimigo o abatera.
Maldita vadia!
– Você conhece mais alguém? – perguntou Jim.
– Tinha outro cara; na verdade, ele ficava acima de mim e de Eddie. Quase no nível de Nigel e Colin. Mas ele teve problemas. A última vez que ouvi falar, ele estava preso no Limbo. Bom, mas era um cara imprevisível. Talvez você fique melhor comigo mesmo, nesse caso.
– Temos que trazer Eddie de volta de alguma maneira...
– Ele era o único que saberia como fazer isso – Adrian soltou um grunhido e ficou de pé, sua figura massiva se erguendo como uma árvore. – Talvez o Colin.
Jim assentiu e voltou a observar sua adaga de cristal. A arma era transparente como um cubo de gelo, forte como aço, leve como uma pena. Fora Eddie quem lhe dera.
Ouviu um barulho de algo caindo no chão molhado e voltou os olhos para o parceiro. Ad deixara cair o sabonete, suas mãos estavam erguidas próximas ao rosto e sua boca parecia tentar praguejar.
– O que foi?
– Ah... merda... – Ad observou as costas das mãos. – Merda, não...
– O quê?
– Estão pretas – o anjo mostrou os braços. – Você não vê? Ela está dentro de mim, Devina está dentro de mim... e está me dominando...
Jim ficou aturdido por um momento, mas sabia que precisava fazer alguma coisa para trazer aquela situação de volta à realidade, e mais que depressa. Deixou a adaga na pia, tirou a cortina de plástico do caminho e agarrou os pulsos de Adrian.
Aquela sensação ruim se apoderou dele de novo, estimulando as terminações nervosas de seus dedos e palmas, como se as tivesse mergulhado em ácido. Concentrou-se na pele de Adrian e imaginou o que diabos tinha acontecido naquele sonho.
Mas a carne estava completamente normal. E pessoas que perdem seus melhores amigos têm motivos de sobra para perder também a razão. Mas não podiam permanecer assim.
– Adrian, meu amigo... – ele deu uma bela sacudida no cara – ei, olhe para mim.
Quando o pobre coitado finalmente olhou, Jim encarou aqueles olhos como se estivesse entrando em sua mente e tomando parte de seu cérebro.
– Você está bem. Não há nada de errado aqui. Ela não está dentro de você, ela não está aqui e...
– Você está errado.
As palavras sombrias fizeram Jim parar de repente. Mas então balançou a cabeça.
– Você é um anjo, Adrian.
– Eu sou?
Com a voz grave, Jim respondeu:
– Digamos que... é bom que você seja.
Após um silêncio tenso, os lábios de Jim começaram a se mover, palavras eram ditas, sílabas sensatas e apaziguadoras cruzavam a distância que os separava. Mas, no fundo de sua mente, ele rezava por quem quer que estivesse ouvindo.
Devina era um parasita, o tipo de coisa que invade as pessoas e as infecta.
Fazia sentido que alguém emocionalmente abalado fosse mais vulnerável.
Porém, a tragédia era que ele não podia ter o inimigo tão perto assim.
Não importava o quanto amasse seu amigo.
CAPÍTULO 8
– O que aconteceu com seu olho?
Mels entrou na cozinha de sua mãe, não respondeu a pergunta e foi direto para a garrafa de café. O fato de o objeto estar do outro lado, e por isso permitir que ela tomasse o café de costas para a mãe, era um bônus além da cafeína.
Maldita maquiagem. Elas supostamente serviam para cobrir aquilo que você queria esconder. Como pés de galinha, olheiras... e hematomas de acidentes de carro sobre os quais você preferia que sua família não ficasse sabendo.
– Mels?
Não precisava se virar para ver o que estava atrás dela: sua mãe, magrinha e baixinha, aparentando ser mais jovem do que era, estaria sentada do outro lado da mesa, com o Correio de Caldwell aberto ao lado de uma tigela de cereal rico em fibras e uma xícara de café. Os cabelos lisos pretos com mechas grisalhas estariam penteados num corte bem aparado, e as roupas seriam casuais, mas parecendo perfeitamente passadas a ferro.
Sua mãe era uma dessas mulheres pequeninas que sempre pareciam bem arrumadas, mesmo sem maquiagem. Como se tivesse nascido com uma lata de spray para cabelo debaixo de um braço e uma escova debaixo do outro.
Mas ela era frágil. Como um bibelô gentil e bondoso.
Era uma porcelana delicada, em contraste com o touro que fora seu pai.
Sabendo muito bem que a pergunta ainda estava no ar, Mels serviu-se de café. Tomou um gole. Manteve-se ocupada passando uma toalha de papel em um balcão que já estava limpo e seco.
– Ah, não foi nada. Escorreguei e caí. Bati a cabeça na torneira do chuveiro. Foi tão estúpido!
Houve um momento de silêncio.
– Você chegou tarde ontem à noite.
– Fiquei na casa de uma amiga.
– Você não tinha falado que ia num bar?
– Fui pra casa dela depois do bar.
– Ah. Entendi.
Mels ficou observando a janela em cima da pia. Com sorte, sua tia ligaria a qualquer momento, como geralmente fazia, e ela não teria que inventar mais uma mentira para explicar por que voltara de táxi do trabalho.
Os sons de goles de café e cereal sendo mastigado preencheram a cozinha, e Mels tentou pensar em algum assunto minimamente normal para conversarem. O clima. Esportes – não, sua mãe não tinha interesse em atividades organizadas que envolviam campos, bolas ou raquetes de qualquer tipo. Livros seria uma boa opção – porém Mels não lia nada além de estatísticas criminais, e sua mãe ainda estava no trem do Clube do Livro da Oprah, mesmo esse trem já não tendo motor ou trilhos.
Deus... momentos como esse a faziam sentir tanta falta do pai que até doía. Os dois nunca ficavam constrangidos um com o outro. Nunca. Conversavam sobre a cidade, ou sobre seu trabalho como policial, ou sobre a escola... ou simplesmente ficavam em silêncio – e, de um jeito ou de outro, nunca havia problema. Mas com sua mãe?
– Então – Mels tomou outro gole de café –, o que vai fazer de bom hoje?
Recebeu uma resposta, mas não a ouviu porque seu desejo de sair gritava alto demais.
Mels terminou o resto de seu café preto – sua mãe tomava com leite e açúcar –, colocou a xícara na lava-louça e cruzou os braços.
– Então, vejo você à noite – ela disse. – Não vou chegar tarde. Prometo.
Os olhos de sua mãe se levantaram para encontrar os dela. A tigela cheia de cereal integral era rosa e tinha pequenas flores brancas em volta, a toalha de mesa tinha flores amarelas e o papel de parede tinha flores maiores azuis.
Flores por toda a parte.
– Você está bem? – perguntou a mãe. – Precisa ir ao médico?
– É só um machucado. Nada de mais – olhou para a sala de jantar. Do outro lado da mesa de mogno, depois da cortina branca, um Chevrolet amarelo estacionou. – O táxi chegou. Deixei meu carro no bar porque bebi uma ou duas taças de vinho.
– Ah, você podia pegar o meu carro para ir trabalhar.
– Você vai precisar dele – ela olhou para o calendário pendurado na parede, rezando para que algo estivesse marcado ali. – Hoje você tem jogo de cartas às quatro.
– Eu podia ir de carona. Ainda posso, se você quiser...
– Não, é melhor assim. Posso pegar meu carro e dirigir de volta pra casa.
Droga. Acabara de criar um problema. A única maneira de Fifi ir para qualquer lugar seria na traseira de um caminhão de guincho – a pobrezinha fora levada para um mecânico.
– Ah. Tá bom.
Quando sua mãe caiu no silêncio, Mels teve vontade de pedir desculpas, mas era difícil demais colocar aquele complicado desculpe em palavras. Inferno, talvez ela precisasse simplesmente se mudar dali. Ficar constantemente exposta àquela bondade e autossacrifício, em vez de ser uma alegria, era um peso muito grande para carregar, pois nunca tinha um fim. Sempre havia uma sugestão, uma oferta, um quer-que-eu-isso-ou-aquilo...
– Preciso ir. Mas agradeço.
– Tá bom.
– Vejo você à noite.
Mels beijou o rosto macio que sua mãe ofereceu e saiu apressada pela porta da frente. Lá fora o ar estava fresco e agradável e o sol brilhava, prometendo calor na hora do almoço.
Entrando no banco de trás do táxi, ela disse:
– Escritório do Correio de Caldwell, na rua Trade.
– Pode deixar.
A caminho do centro da cidade, as molas do banco do táxi pareciam feitas de aço, e o estofado não era muito diferente de cimento, mas ela nem se importou com a viagem desconfortável. Sua mente estava caótica demais para pensar em seu traseiro sendo castigado por um banco duro.
Aquele homem da noite anterior ainda estava em seus pensamentos – podia quase senti-lo ao seu lado.
Fora assim durante toda a noite.
Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos e relembrou o acidente, checando duas, três vezes para ter certeza de que não poderia ter feito nada para evitá-lo. Então ficou pensando em outras coisas, como a maneira como o homem ficara deitado, totalmente imóvel, naquela cama de hospital.
Mesmo machucado, em alguns lugares com gravidade, ele ainda parecia um... predador.
Um poderoso animal, ferido, mas...
Certo, agora ela realmente estava perdendo a cabeça. E talvez devesse olhar mais de perto para sua vida amorosa – que era completamente vazia...
Infelizmente, Mels não conseguia parar de pensar na estranha atração que aquele homem exercera. Que desagradável, ela deveria é estar preocupada com a saúde e o bem-estar dele, além da possibilidade de querer processá-la e tirar dela o pouco que tinha.
Em vez disso, ela ficou pensando no som daquela voz rouca, e na maneira como ele a observara, como se qualquer detalhe dela fosse uma fonte de fascinação e importância...
Ele fora ferido há algum tempo, ela pensou. As cicatrizes ao lado do olho tinham se curado com o tempo.
O que será que acontecera com ele? Como era seu nome...?
Enquanto ela vagava pela terra das perguntas sem resposta, o motorista do táxi fez seu trabalho discretamente. Dezesseis dólares, dezoito minutos e um traseiro dolorido depois, ela chegou à redação.
O local já estava barulhento, com pessoas falando e andando apressadas, e aquele caos acalmou seus nervos – da mesma maneira que uma aula de ioga a deixava nervosa.
Ela sentou em sua mesa, checou o correio de voz, entrou em seu e-mail e pegou a xícara que vinha usando desde que herdou aquele lugar, há pouco mais de um ano e meio. Caminhou até a cozinha coletiva e encontrou seis opções de potes de café: nenhum deles era descafeinado; três eram da boa e velha marca Maxwell House; e os outros eram aquele horror com essência de nozes, um daqueles macchiato-sei-lá-o-quê.
Dane-se esse último. Se quisesse uma droga de um sorvete de caramelo, ela pediria um no almoço. Aquela coisa não devia ser colocada em uma xícara de café.
Enquanto servia seu café preto e puro, pensou na verdadeira dona da xícara, Beth Randall, a jornalista que sentara naquele cubículo por... bem, devia ter sido mais de dois anos. Em uma certa tarde, a mulher partira e nunca mais voltara. Mels lamentava o desaparecimento – não que conhecesse a colega muito bem – e sentia-se mal porque foram nessas as circunstâncias que ela finalmente conseguira um lugar só para ela.
Mantivera a xícara por nenhuma razão especial. Mas agora, enquanto tomava um gole, percebeu que a guardara por ainda ter esperança de que a mulher retornasse. Ou que pelo menos estivesse bem.
Parecia que Mels estava rodeada de pessoas desaparecidas.
Ou pelo menos foi assim que se sentiu naquela manhã. Principalmente quando pensou sobre o homem da noite anterior – aquele que nunca veria novamente, mas que não conseguia tirar da cabeça.
Aquela não era sua casa.
Quando o táxi estacionou em frente a um rancho em uma vizinhança modesta, Matthias sabia que não morava sob aquele teto. Nunca tinha morado. Não iria morar.
– Você vai descer do carro ou não?
Matthias encontrou os olhos do motorista através do retrovisor.
– Me dê um minuto.
– O taxímetro está correndo.
Concordando, ele desceu e usou a bengala para andar no passeio que levava à frente da casa, balançando a perna machucada em um longo arco para não ter de dobrar os joelhos. Não havia nada de lar, doce lar: a trepadeira invadia as janelas. O gramado não estava aparado. As calhas estavam cheias de mato que subia alto em busca do sol.
A porta da frente estava trancada, então ele fez uma viseira com as mãos para tentar olhar pela janela. Viu camadas de poeira. Móveis que não combinavam. Cortinas envelhecidas.
Havia uma caixa de correio barata pregada na parede. Ele abriu a tampa. Propagandas. Um talão de cupons de desconto endereçado ao “ocupante”. Nada de contas, solicitações de cartão de crédito, cartas. A única outra correspondência era uma revista da AARP1 endereçada ao mesmo nome que havia na sua carteira de motorista.
Matthias enrolou a revista, guardou no bolso da jaqueta e voltou para o táxi. Aquela não era sua residência – e mais ninguém morava ali. A pessoa que vivia ali devia ter morrido, digamos, há umas quatro ou seis semanas – tempo suficiente para a família cuidar das contas, mas não para esvaziar a casa e colocá-la à venda.
Entrando no táxi, fixou o olhar à frente.
– Para onde?
Com um grunhido, Matthias se ajeitou e puxou a carteira. Pegou o cartão de Mels Carmichael e foi atingido por uma profunda convicção de que não deveria envolver aquela mulher.
Era perigoso demais.
– E então, chefe?
Mas, droga, ele tinha de começar por algum lugar. E seu cérebro estava como uma conexão de internet fora do ar.
– Rua Trade – murmurou.
Enquanto dirigiam-se para o centro da cidade em meio ao trânsito pesado, ele observou os outros carros, onde pessoas bebiam café, conversavam com outros passageiros, paravam nos sinais vermelhos, avançavam nos verdes. Um mundo que parecia muito distante dele. O tipo de vida em que a pessoa trabalha das nove às sete todo dia, até morrer aos setenta e poucos anos. Essa não era a maneira como Matthias vivia.
Então, como ele vivia?, perguntou ao seu cérebro idiota. Como diabos ele vivia?
Tudo o que recebeu de resposta foi uma dor de cabeça.
Quando o edifício do Correio de Caldwell surgiu, Matthias pegou uma das dez notas de vinte que tinha na carteira.
– Guarde o troco.
O motorista parecia mais do que feliz em se livrar dele.
Usando a porta da frente como apoio, Matthias emergiu do carro sob a luz do sol, tomando cuidado para não corresponder a nenhum dos olhares curiosos. E havia muitos deles. Por algum motivo, ele tinha a tendência de atrair atenção, geralmente das mulheres – se bem que ficar atraída por alguém machucado era coisa normal de mulher, e ele estava cheio de cicatrizes no rosto.
Uau, que romântico.
Por fim, sentou-se na cadeira de plástico duro do ponto de ônibus do outro lado da rua, respirando a fumaça dos fumantes impacientes que esperavam o transporte público. A espera não o incomodava. Era como se ele estivesse acostumado a espreitar. Para passar o tempo, inventou um jogo: memorizava os rostos das pessoas que entravam e saíam dos escritórios do Correio de Caldwell.
Matthias era extremamente bom nisso. Só era preciso uma olhada para adicionar a pessoa ao seu banco de dados interno.
Pelo menos sua memória de curto prazo estava funcionando...
As portas duplas se abriram e lá estava ela.
Matthias se ajeitou na cadeira quando a luz do sol atingiu os cabelos de Mels e fez brilhar vários tons de castanho. Mels Carmichael, repórter associada, estava junto de um cara bem arrumado que precisava puxar a calça cáqui para cima antes de pisar nos degraus. Os dois pareciam estar discutindo amigavelmente sobre alguma coisa e, quando Mels sorriu, parecia que ela vencera o debate.
Como se soubesse que estava sendo observada, Mels olhou para o outro lado da rua e parou de repente. Ela tocou a manga do casaco de seu colega e disse algo, então eles se separaram e ela começou a se aproximar de Matthias, andando no meio do trânsito.
Matthias cravou a bengala no chão, levantou-se e ajeitou as roupas. Não tinha ideia de por que queria se arrumar para ela, mas queria – mas não dava para parecer pior. Vestia roupas que não eram dele, ainda cheirava a quarto de hospital e lavara o cabelo com xampu antibacteriano, pois era o único disponível.
Naturalmente, a primeira coisa para a qual ela olhou foi seu olho ruim, aquela coisa feia e arruinada. Como não poderia?
– Oi – ela disse.
Mels estava linda com suas roupas normais do dia a dia: com aquela calça, a blusa de lã e o lenço bege que usava ao redor do pescoço, para Matthias ela poderia muito bem estar em uma passarela.
E continuava sem aliança.
Isso é bom, ele pensou, sem uma razão especial.
Desviando o olhar para a direita, esperando que assim seu defeito fosse menos aparente, ele respondeu:
– Oi.
Certo. Hum. E agora?
– Não estou te seguindo, eu juro – mentiroso. – Eu teria ligado, mas não tenho telefone.
– Não tem problema. Você precisa de alguma coisa? A polícia me ligou hoje de manhã, e acho que eles ainda querem falar com você.
– Pois é – deixou esse assunto do jeito que estava. – Escuta, eu...
O fato de que estava interrompendo uma frase no meio parecia pouco natural, mas seu cérebro simplesmente não conseguia produzir nada.
– Vamos sentar – ela disse, mostrando os assentos. – Não acredito que eles deixaram você sair.
Naquele momento, um ônibus chegou e parou, bloqueando a luz do sol e soltando uma fumaça que o fez tossir. Os dois sentaram e ficaram em silêncio enquanto esperavam os passageiros embarcarem.
O ônibus partiu e o sol reapareceu, banhando-a com sua luz amarela.
Por alguma razão estúpida, os olhos dele começaram a piscar com força.
– O que posso fazer por você? – ela perguntou suavemente. – Está sentindo dor?
Sim. Mas não era dor física. E piorava sempre que olhava para ela.
– Como você sabe que eu preciso de ajuda?
– Imagino que sua memória não tenha voltado magicamente.
– Não, não voltou. Mas isso não é culpa sua.
– Bom, eu te atropelei. Então estou te devendo uma.
Ele gesticulou mostrando a perna ruim.
– Eu já estava assim antes.
– Consegue lembrar de alguma coisa? Quer dizer, anterior ao acidente? – quando ele negou com a cabeça, ela murmurou: – Muitos militares também voltaram na sua condição.
Ah... ela queria dizer o Exército, Marinha, Aeronáutica. E parte disso parecia ser correto. O governo... sim, Matthias tinha alguma ligação com o Departamento de Defesa, ou com a segurança nacional... ou...
Mas não era um soldado abatido. Porque nunca fora um herói.
– Eles encontraram minha carteira – ele murmurou.
– Oh, isso é ótimo.
Por alguma razão, Matthias entregou o objeto para ela.
Quando Mels abriu e olhou a carteira de motorista, ela assentiu.
– Esse é você.
Observando o emblema do Correio de Caldwell sobre a porta da qual ela saíra, ele disse:
– Veja bem, tudo o que estou falando fica entre nós dois, certo?
– É claro.
– Gostaria de ter outra opção. Gostaria... não quero te colocar em encrenca.
– Você ainda não me pediu pra fazer nada – ela o observou. – Em que está pensando?
– Consegue descobrir quem é esse cara? – apontou para a carteira de motorista. – Porque não sou eu.
N.T.: AARP é uma ONG norte-americana destinada a defender os interesses dos cidadãos com mais de cinquenta anos.
CAPÍTULO 9
Durante o silêncio que se seguiu, tudo o que Mels podia pensar era no fato de que tivera plena certeza de que nunca mais veria aquele homem.
Pelo jeito, o destino tinha outros planos.
O homem de roupas pretas sentado ao seu lado era grande, supermalhado e dava a impressão de ser forte em todos os sentidos, com seus olhos estreitos e o queixo quadrado... mas parecia envergonhado de suas cicatrizes e do defeito na perna.
Olhando mais uma vez a carteira de motorista, ela franziu a testa. A foto parecia verdadeira, os hologramas estavam onde deveriam estar, altura, peso e data de nascimento estavam corretos, o endereço ficava ali mesmo em Caldwell – e não muito longe da casa de sua mãe, na verdade.
Ele provavelmente estava voltando para casa no momento do atropelamento. Assim como ela.
Observando agora o homem em vez da imagem, ela teve a sensação de que, para procurá-la, ele fizera um grande esforço e engolira o orgulho. Ele não parecia o tipo de pessoa que gostava de depender dos outros, mas a vida claramente não lhe deixara outra escolha.
Sem memória. Poucos recursos.
E com aqueles olhos assombrados e um corpo remendado, ele tinha de ser um militar, voltara da guerra apenas fisicamente, mas não em espírito.
Naturalmente, a jornalista dentro dela gostava de um bom mistério – e o fato de ter um pouco de culpa em relação à sua amnésia era outra razão para ela mergulhar de cabeça nisso. Mas Mels não era idiota. Não queria se envolver em algum tipo de drama, principalmente se ele fosse um maluco ou paranoico.
A foto era dele mesmo, sem dúvida.
– Odeio colocar você nessa posição – suas mãos grandes acariciaram a bengala que equilibrava nas coxas. – Mas não tenho mais ninguém. E a casa nesse endereço não é minha. Não sei onde moro, mas com certeza não é naquela casa. Eu chequei a correspondência quando fui até lá – ele recostou-se para o lado e retirou uma revista dobrada do bolso da jaqueta. – Encontrei isto. O nome está certo, mas eu não tenho mais de cinquenta e cinco anos. Por que isto estaria na minha caixa de correio, endereçado a mim?
Ela desdobrou a revista e observou o logotipo da AARP e a foto de uma graciosa modelo da terceira idade vestindo roupas de ginástica. O nome acima do endereço era Matthias Hault, e o número e rua eram os mesmos da carteira de motorista... talvez ele morasse com o pai e os dois tivessem o mesmo nome.
Mas um pai não teria ficado feliz em ver o filho aparecer na porta de casa?
– Eu poderia contratar um detetive particular – ele disse –, mas isso custa dinheiro, e nesse momento tenho apenas duzentos dólares no bolso... bom, cento e oitenta, depois que paguei o taxista.
– Tem certeza de que ninguém está tentando te encontrar? – quando ele permaneceu em silêncio, ela pensou que Matthias estava vasculhando sua memória, mas ele encontrou apenas o vazio, por culpa dela. – O que os médicos disseram? Como eu disse, honestamente, estou chocada de você estar de pé andando por aí.
– Então, você vai me ajudar? – ele respondeu.
Aquele era um momento de limite que precisava ser considerado com respeito. Mas ela decidiu cruzar a linha.
– Se eu ajudar, você vai ter que falar comigo. O que os médicos disseram?
Seu olho bom procurou ao redor, como se estivesse pensando em uma resposta.
– Fui embora sem avisar.
– O quê?! Por quê?
– Não me senti seguro. E não posso explicar mais do que isso. É tudo o que sei.
Estresse pós-traumático, ela pensou. Só podia ser.
Talvez se Mels confirmasse a identidade dele, sua mente poderia descansar e isso ajudaria na recuperação.
– Certo, vou fazer o possível – ela disse.
Matthias abaixou a cabeça, como se aceitar ajuda de outra pessoa fosse um tipo de derrota.
– Obrigado. Tudo o que preciso é de uma busca com esse nome. Um lugar para começar.
– Posso voltar pro escritório e fazer isso na minha mesa agora mesmo – ela apontou para o lado direito. – Tem um restaurante ao lado do rio, a uns dois quarteirões daqui. Você pode comer algo e eu te encontro lá assim que puder. Ah... claro, se você conseguir andar...
– Eu consigo chegar lá – ele disse, rangendo os dentes.
Ou morreria tentando, ela pensou, ao observar seu queixo contraído.
Que, por sinal, lembrava muito o ator Jon Hamm.
O homem levantou-se com a ajuda da bengala.
– Então eu te encontro lá. Não precisa se apressar.
Quando ele olhou para a rua, a luz do sol brilhou em seus olhos; tanto naquele que obviamente ainda enxergava como no que estava cego.
– Quer ficar com meus óculos escuros? – ela perguntou. – É um Ray-Ban, mais unissex que isso é impossível. E também não precisa de receita.
Ela não esperou ele dar uma de fortão e recusar. Pegou a caixa e a estendeu na sua frente.
Matthias Hault ficou observando a sua oferta por um longo tempo, como se o simples gesto fosse algo a que não estava acostumado.
– Aceite – ela disse suavemente.
Sua mão tremeu um pouco ao aceitar a caixa, e ele não a olhou mais nos olhos.
– Não vou riscá-los. E vou devolver no restaurante.
– Sem pressa.
Quando ele colocou os óculos escuros, seu rosto se transformou em algo... inegavelmente perigoso.
E definitivamente sensual.
Um calor percorreu o corpo de Mels, atingindo-a num lugar que há muito tempo não se acendia.
– Melhor? – ele disse.
– Eu acho que sim.
Ele ainda se recusava a olhar para ela. Seus ombros e costas estavam retos, os lábios tensos. Um homem tão orgulhoso, preso daquele jeito em uma posição de fraqueza...
Ela sempre lembraria daquele momento, pensou, sem qualquer motivo. Sim, este momento agora, com o sol brilhando nas feições endurecidas de seu rosto bonito.
Aquilo era um momento decisivo, concluiu. Essa intersecção aparentemente aleatória entre os dois mudaria as coisas para sempre.
– Eu queria te perguntar uma coisa – ele disse.
– O quê? – ela sussurrou, imersa em um momento que não podia compreender totalmente.
– Onde aconteceu o acidente?
Sacudindo a si mesma, ela puxou seu cérebro de volta à realidade.
– Foi, ah, bem ao lado do Cemitério Pine Grove. Perto de onde moro. Não muito longe do bairro onde fica sua casa.
– Um cemitério.
– Isso mesmo.
Ele assentiu e, quando começou a caminhar em direção ao restaurante, ela podia jurar que o ouviu dizer “Por que isso não me surpreende?”.
O Riverside Diner era um restaurante típico de cidade pequena americana. Cheio de estofados de couro sintético, cortinas com estampa xadrez e garçonetes mal-humoradas. A comida era gordurosa, mas de uma maneira gloriosa, e quando Matthias cortou seus ovos mexidos com o garfo, seu estômago roncou como se fizesse anos que não comia.
Já era tarde para o café da manhã, mas não existe acompanhamento melhor para uma xícara de café do que ovos e bacon.
Enquanto comia, os óculos escuros que recebera da repórter eram uma benção, pois lhe permitiam ficar de olho nas pessoas que entravam e saíam, nas garçonetes indo e vindo, e nos fregueses que entravam no banheiro e em quanto tempo ficavam lá.
Mas vigilância não era o motivo de Mels ter lhe emprestado os óculos.
Droga. Por que aquela mulher fazia ele desejar não ter mais seus defeitos?
– Mais café? – perguntou a garçonete.
– Sim, por favor – ele ofereceu a xícara e ela despejou o café fumegante. – E mais um prato de tudo isto também.
Ela sorriu como se estivesse calculando uma gorjeta maior.
– Você come bem.
Quando não se sabe quando ou onde vai ser a próxima refeição, é melhor fazer valer a pena, ele pensou consigo mesmo.
A repórter apareceu pouco depois de Matthias terminar o segundo café da manhã. Ela olhou para a esquerda e depois para a direita e o encontrou sentado nos fundos, ao lado da saída de emergência. Então começou a percorrer o longo caminho de mesas vazias.
Quando sentou à sua frente, seu rosto estava vermelho, como se tivesse se apressado.
– Devia estar lotado quando você chegou – ela disse.
– Estava – mentira: ele queria ficar nos fundos para o caso de precisar sair às pressas.
A garçonete voltou com o pote de café.
– Olá... gostaria de café?
– Sim, por favor – Mels tirou a blusa. – E o meu de sempre.
– Almoço ou café da manhã?
– Almoço.
– Já está saindo.
– Você almoça sempre aqui? – ele perguntou, imaginando por que se importava.
– Duas, três vezes por semana, desde que comecei a trabalhar no jornal.
– E quando começou?
– Um milhão de anos atrás.
– Engraçado, você não parece um dinossauro.
Sorrindo um pouco, ela tomou um gole do café e se preparou para a conversa. Seus lábios ficaram tensos e seus olhos se estreitaram.
Ela ficava sexy daquele jeito. A intensidade. O foco. Naquele momento, ela o fazia se lembrar de si mesmo...
E isso era um milagre, se você pensar que Matthias tinha a mesma quantidade de informação sobre os dois... sendo ela uma estranha.
– Diga o que descobriu – ele exigiu.
– Você está morto.
– E eu que achei que era só uma sensação.
Durante a pausa que se seguiu, ele podia sentir que Mels tentava entendê-lo.
– Você não está surpreso – ela disse.
Ele observou sua xícara meio vazia e balançou a cabeça.
– Eu sabia que havia algo de errado naquela casa.
– O dono verdadeiro desse nome tinha oitenta e sete anos e morreu de insuficiência cardíaca cinco semanas atrás.
– Em se tratando de identidades falsas, essa não é uma das melhores, não é?
– Você fala como se conhecesse bem o assunto – quando ele não comentou nada, ela se inclinou para frente. – Por acaso você faz parte do programa governamental de proteção a testemunhas?
Não, ele estava do outro lado da lei... seja lá o que isso significasse.
– Se for o caso – ele disse –, não estão cuidando muito bem de mim.
– Tenho uma ideia. Vamos voltar ao cemitério, no local do acidente. Vamos ver se você se lembra de alguma coisa.
– Não posso pedir pra você fazer isso.
– Não pediu. Estou oferecendo... – ela parou. Franziu a testa. Coçou a sobrancelha. – Meu Deus, espero não estar me transformando na minha mãe.
– Ela gosta de cemitérios?
– Não, é uma longa história. Enfim, peguei emprestado o carro do meu amigo. Posso te levar até lá depois que terminarmos de comer.
– Não. Mas eu agradeço.
– Por que você se deu ao trabalho de perguntar sobre o nome se não vai continuar investigando?
– Posso pegar um táxi, foi o que quis dizer.
– Ah.
A garçonete voltou com o “de sempre”, que era um sanduíche de frango em pão integral e o que parecia ser tomates extras, além de batatas fritas em vez de batatas chips.
– Acho que eu deveria levar você – ela disse, pegando o ketchup.
Matthias observou quando dois policiais entraram pela porta da frente e sentaram no balcão.
– Posso ser sincero com você?
– Por favor.
Ele abaixou o queixo e a olhou por cima dos óculos escuros.
– Não quero que fique sozinha comigo. É muito perigoso.
Ela parou com uma batata frita a meio caminho da boca.
– Sem ofensa, mas, considerando sua condição física, eu poderia quebrar suas duas pernas e te deixar inconsciente em questão de segundos – as sobrancelhas dele foram erguidas ao máximo, e ela assentiu. – Sou faixa preta, tenho permissão para porte de armas e nunca vou a lugar algum sem uma boa faca ou sem minha arma.
Ela deu um sorriso rápido, pegou o sanduíche de frango e deu uma mordida.
– Então, o que me diz?
CAPÍTULO 10
Felizmente, aquilo não era um encontro romântico, pensou Mels quando o silêncio imperou. Pois dizer a um homem que você é capaz de acabar com ele não seria um bom começo, meio ou fim para um almoço a dois.
Aquilo era trabalho – é claro que a história daquele homem, seja lá qual fosse, não terminaria nos jornais, mas era algo a ser investigado, e Deus sabia que ela nunca dispensava uma oportunidade dessas.
– É um belo currículo – ele disse depois de um bom tempo.
– Meu pai se certificou de que eu seria capaz de me defender. Ele era um policial à moda antiga.
– O que isso quer dizer?
Ela limpou a boca com um guardanapo, tomou outro gole de café e desejou ter pedido uma Coca.
– Digamos que hoje em dia, com câmeras nos carros de polícia, reuniões da corregedoria, e pastas cheias de protocolos de procedimentos, ele não teria durado nem um mês antes de ser suspenso. Mas no passado ele fazia seu trabalho, e as pessoas estavam mais seguras nesta cidade graças a ele. Ele dava conta de tudo.
– Um cara durão?
– Um cara justo.
– E você aprova esses métodos?
Ela deu de ombros.
– Ele tinha minha aprovação. Por outro lado, sua maneira de agir... digamos apenas que era outra época. Antes de testes de DNA e internet.
– Parece meu tipo de pessoa.
Mels teve que sorrir ao ouvir aquilo. Mas então uma tristeza pela perda do pai a fez virar o rosto e observar o rio e as gaivotas que seguiam a lenta correnteza.
– Ele nunca perdia o controle ou ficava bravo. Mas às vezes os criminosos só entendem as coisas quando elas são explicadas na língua deles.
– Você tem irmãos ou irmãs?
– Apenas eu. E meu pai não se importava por eu ser uma garota. Ele me tratava como trataria um filho: me treinou, ensinou autodefesa, insistiu que eu aprendesse a disparar armas de fogo – ela riu. – Minha mãe quase tinha ataques do coração por causa disso. Até hoje ela é assim.
– Ele já se aposentou?
– Faleceu – ela voltou ao sanduíche. – Foi morto em serviço.
Houve uma pausa. Então Matthias disse suavemente:
– Sinto muito.
Mels não ousou levantar os olhos, pois falara demais e, com aqueles óculos escuros, não sabia onde estavam os olhos dele – embora não fosse necessário ser um gênio para saber que estavam focados nela.
– Obrigada. Mas chega de falar de mim. E chega dessa porcaria de é-perigoso-demais. Tenho cuidado de mim mesma faz tempo, e sou muito boa nisso. Não teria oferecido ajuda se não achasse que poderia lidar com você.
Ele soltou uma risada súbita.
– Você é muito segura de si mesma.
– Sei quais são meus limites.
– Mas você não me conhece. E eu também não.
– E nós queremos consertar isso, não é?
O homem recostou-se.
– Sim.
Quando terminou o sanduíche – deixando o resto das batatas de lado – ela pagou a conta e levantou-se.
– Então, vamos lá.
Quando ele pousou os olhos nela, aquele calor a invadiu novamente, uma atração sem sentido passando por seu corpo.
– Prometa uma coisa – ele disse em voz baixa.
– Depende do que for.
– Você não vai correr nenhum risco.
– Feito.
Matthias assentiu, pegou a bengala, deslizou as pernas para fora da cadeira e esperou por um momento, como se estivesse preparando o corpo para um massacre. O primeiro instinto de Mels foi colocar um braço sob o ombro dele para ajudar, mas sabia que ele não gostaria disso. E ficar encarando sua fragilidade também não era respeitoso, então ela se virou e fingiu checar o cardápio iluminado que ficava sobre o balcão.
Um grunhido denunciou que ele se levantara, então Mels seguiu em frente até a porta. Enquanto passavam pelos outros fregueses, ela sentiu os olhos de todos pairando sobre o homem que estava atrás dela.
Deus, ela imaginava como seria a vida daquele jeito, atraindo constantemente os olhares curiosos. Se bem que as mulheres provavelmente estavam vendo apenas aquilo que ela própria enxergava. Que não tinha nada a ver com defeitos.
Muito pelo contrário.
O carro de Tony, que estava no estacionamento, parecia já ter visto dias melhores, não era como a Fifi, mantida com carinho. Aquele carro parecia mais uma lata de lixo ambulante.
– Não repara na sujeira – ela disse ao destrancar o veículo.
Ao entrar, Mels tirou do banco do passageiro as várias revistas Newsweek e The New Republics. Como era de se imaginar, Matthias levou um tempo para entrar no carro e, quando colocou os joelhos para dentro, suas botas pisaram em lixo, amassando embalagens vazias de Taco Bells, McDonald’s, Burger King e Wendy’s.
– Seu amigo gosta de fast-food – ele comentou.
– E come rápido também.
Ela acelerou e entrou no trânsito, espremendo o sedã entre um táxi e uma caminhonete.
– Cinto de segurança – disse Matthias.
Mels olhou para ele.
– Pois é. Você está usando um.
– Gosta de viver perigosamente?
– Cintos de segurança nem sempre salvam vidas.
– Então todas essas pessoas ao redor estão erradas?
– Elas podem fazer o que quiserem, e eu também.
– E as multas?
– Nunca fui parada no trânsito. E se acontecer, simplesmente pago a multa.
– Quando. Você quer dizer “quando acontecer”.
O Cemitério Pine Grove ficava a uns dez minutos – mas não do jeito que Mels dirigia. Em nenhum momento ela foi imprudente, apenas eficiente, escolhendo rotas que evitavam semáforos e as obras ao redor do parque.
– É ali, à direita – Mels se inclinou sobre o volante e olhou através do para-brisa. – Na verdade, é um lugar lindo. Há algo tão pacífico em cemitérios...
Matthias não parecia impressionado.
– Toda essa coisa de descanso eterno é uma ilusão.
– Você não acredita no Céu?
– Acredito no Inferno, isso sim.
Não houve tempo para ela responder quando chegaram na entrada.
– O acidente aconteceu por aqui... um pouco depois do portão principal. Bem... um pouco mais para frente... aqui.
Enquanto ela estacionava o carro de Tony e desligava o motor, Matthias já estava saindo. Andando rápido com sua bengala, ele parou no meio da rua, em cima das marcas onde ele havia aterrissado. Olhou para os dois lados e seguiu até as marcas dos pneus da Fifi e a árvore atingida... e finalmente chegou no portão de três metros de altura que cercava o cemitério.
Aquilo é que era estilo gótico. Feitas com barras de ferro com pontas em forma de flor de lis, as fronteiras do Pine Grove eram imponentes... e perigosas, se alguém tentasse escalá-las.
E veja só, enquanto se aproximava, Mels viu uma mancha de sangue no topo de uma das pontas – e havia também um pedaço de roupa. Como se alguém tivesse tentado pular o cercado.
– Eu pego – ela disse, pulando e agarrando o tecido. – Aqui.
Matthias segurou o pano.
– Tecido impermeável. Aposto que aquele sangue seco é meu. Tenho um ferimento recente na perna.
Mas por que ele não teria simplesmente passado pelo portão da frente? Bem, à noite ele provavelmente ficava trancado.
– Podemos entrar? – ele perguntou.
– Agora mesmo.
De volta ao carro, ela passou pela entrada e virou à esquerda, indo em direção ao ponto onde encontraram o tecido. Chegando lá, ela parou novamente, saiu e esperou que a memória dele se manifestasse. Se é que isso aconteceria.
Enquanto ele olhava ao redor, Mels ficou um pouco distante, ouvindo a brisa que soprava entre os galhos dos pinheiros e sentindo o sol brilhar em seus ombros... e tentou não pensar no lugar onde estava seu pai...
Logo atrás, a uns cem metros, no meio do cemitério, entre a família Thomas e os três irmãos Krensky.
Pelo jeito, ela se lembrava muito bem.
A última vez em que estivera ali fora no dia seguinte ao enterro do pai. Mels estivera trabalhando em Nova York por quase cinco anos. Ele estava tão orgulhoso de sua filha na cidade grande, fazendo aquilo que tinha estudado – o jornalismo...
– É por aqui – Matthias disse, distraído.
Enquanto ele caminhava pelo gramado desigual, Mels largou seu passado para se concentrar no presente dele, e juntos andaram decididamente, mesmo com os passos de Matthias se mostrando instáveis e precisando do suporte da bengala. De vez em quando ele parava, como se estivesse calibrando a direção, e Mels não o interrompia com perguntas.
A construção onde finalmente chegaram combinava com as lápides e sepulturas. Sua fachada de pedra ecoava a arquitetura usada na entrada principal e nos balaústres que se intercalavam aos portões de ferro.
– Eu estava nu – ele disse. – Vim até aqui, entrei pela janela e peguei...
Ele empurrou a porta, que rangeu enquanto se abria. Lá dentro, caminhou até a parede de trás e comparou o pedaço de tecido rasgado com um macacão impermeável que estava pendurado.
Nu?, ela pensou.
– Onde estavam suas roupas?
Ele deu de ombros.
– Só sei que estive aqui na noite passada.
Matthias voltou para fora e continuou pelo caminho que estavam fazendo, mas agora ele andava em zigue-zague – talvez para manter a trilha ou para tentar encontrá-la; Mels não sabia e também não perguntou. Apenas o seguiu, e eles passaram por dezenas de lápides, além de funcionários que cuidavam do gramado e pessoas que visitavam túmulos de parentes.
Finalmente, quando estavam a quase meio quilômetro de onde deixaram o carro, ele parou.
– Aqui. Isto é... sim, foi aqui que começou. Tenho certeza.
A lápide que ele observava pertencia a um dos túmulos mais recentes – e em cima da terra fofa que fora colocada sobre o caixão, havia realmente a silhueta de um corpo, como se uma pessoa do tamanho dele tivesse deitado ali em posição fetal.
– Foi aqui que começou – ele se apoiou na bengala e se agachou. Tocando a terra, sussurrou: – Aqui.
– James Heron – ela disse, lendo a inscrição simples na lápide. – Você conhece ele?
Matthias olhou ao redor do cemitério.
– Sim.
– Em que contexto?
– Preciso ir – ele se levantou e se afastou dela. – Obrigado.
Mels franziu a testa.
– Do que está falando?
– Você precisa ir embora agora...
– Você não tem condições de andar de volta até a cidade. E boa sorte se quiser achar um táxi.
– Por favor, você precisa ir embora.
– Diga por que e talvez eu considere.
Em um movimento súbito, o homem se aproximou dela, chegando perto... muito perto. Tomando fôlego, Mels precisou forçar para que seus pés não se mexessem... e foi um choque quando percebeu que os pés desejavam que seu corpo terminasse o que ele havia começado.
Só era preciso mais um passo para que seus peitos se tocassem e seus quadris se apertassem um contra o outro.
Não era a ideia mais brilhante, já que parecia que o predador dentro dele se libertara. Mas ela não queria ser sensata.
Mels o desejava.
Mas isso não fazia parte do plano.
Levantando o queixo, ela disse:
– Se pensa que essa agressividade é persuasiva, você está errado. E eu estou esperando uma explicação.
Matthias se inclinou para frente, e o movimento de seus quadris a deixou totalmente ciente do quão mais alto ele era. Quão mais forte, mesmo machucado. E o quanto seus olhos ardiam, mesmo através dos óculos escuros.
Com uma voz grave e perigosa, Matthias disse:
– Porque você vai morrer se não se afastar de mim.
CAPÍTULO 11
Local não revelado Washington, D.C.
– Este é o alvo.
A foto que caiu com a imagem para cima na lustrosa mesa chegou ao agente por força da inércia.
O rosto instantaneamente pareceu familiar. Afinal, quem nas Operações Extraoficiais não conhecia aquele homem?
O agente ergueu os olhos na direção de seu superior.
– Qual a localização?
– Caldwell, Nova York.
O endereço foi passado oralmente, assim como todas as outras instruções. E ele não podia ficar com a foto. E aquela sala, em um prédio absolutamente comum na capital da nação, não registrava nada daquela conversa. Sem rastros. Nunca.
– Obviamente, consideramos que ele está armado e é extremamente perigoso.
Com certeza. Sempre fora – mas glórias não duram para sempre, e você nunca deixa de ser um agente das Operações. As únicas classificações para um agente eram “em atividade” ou “eliminado”.
E ele seria o responsável pelo carimbo de “eliminado”, nesse caso.
– As regras normais se aplicam – disse o superior.
É claro que sim: agiria sozinho, era o único responsável pela missão e, se falhasse, era melhor rezar para morrer – ou fazer isso por si próprio. Essas regras eram muito conhecidas pelo pequeno grupo de agentes que foram escolhidos a dedo pelo diabo em pessoa...
Matthias. Aquele que os liderara nos últimos dez anos. O astuto jogador de xadrez, o mestre da manipulação, o violento sociopata que servira de modelo para todos eles.
Por um momento, parecia estranho receber ordens de outra pessoa – mas, considerando quem era o alvo...
No entanto, a organização precisava seguir em frente, e seu atual superior subira rápido na hierarquia, claramente se posicionando como o herdeiro do trono. Isso explicava o que estava fazendo agora. Pontas soltas eram inaceitáveis.
– Mais alguma coisa de que eu precise saber?
– Apenas não estrague tudo. Você tem 24 horas.
O agente esticou a mão enluvada e trouxe a foto para mais perto. Observando aquele rosto, pensou que, se alguém tivesse lhe contado sobre as mudanças que aconteceram nos últimos dois anos, ele se convenceria de que essa pessoa estava maluca.
Porém, lá estava ele, olhando para aquele poderoso homem na fotografia, que agora estava condenado à morte. Se o agente falhasse ao tentar matá-lo, a organização mandaria outro. E outro. E mais outro. Até que a missão fosse cumprida.
E, conhecendo o alvo, talvez precisassem de mais de uma tentativa.
Seu superior pegou de volta a fotografia e caminhou até uma porta que parecia normal, mas que na verdade era à prova de balas, fogo, bombas e som. Assim como as paredes, o teto e o chão.
Após um escaneamento da retina, a porta se abriu e depois fechou, deixando o agente sozinho para ponderar suas opções: uma vez que a missão fosse entregue, os métodos de execução ficavam por conta do agente designado. Os chefes se importavam apenas com os fins, não com os meios.
Caldwell, em Nova York, ficava a apenas uma hora e meia de avião, mas era melhor ir de carro. Não dava para saber que recursos tinha seu alvo, e aviões podiam ser rastreados mais facilmente do que carros sem identificação.
Enquanto o agente deixava o edifício, o fato de que poderia estar se dirigindo para a própria morte era irrelevante – e essa era parte da razão de ele ter sido selecionado dentre tantos outros soldados e civis que se “inscreviam” para as Operações Extraoficiais. Cuidadosas avaliações psicológicas e físicas eram conduzidas, não durante semanas ou meses, mas por anos, antes que o candidato recebesse o sinal verde. Afinal, o trabalho exigia uma incomum combinação de urgência e desapego, lógica e iniciativa, disciplina mental e física.
Assim como o simples prazer em matar outros seres humanos.
Ao final do dia, ele achava divertido bancar o Ceifeiro da Morte, e essa era a única maneira legal e sancionada de fazer isso. Mesmo o mais cuidadoso assassino em série acaba preso com o passar do tempo. Mas e trabalhando para o governo dos Estados Unidos?
Seu único limite era sua habilidade de permanecer vivo.
CAPÍTULO 12
Matthias precisava se afastar de Mels.
Não havia nenhuma outra opção. No cemitério, junto dela, encarando a lápide de Jim Heron, pareceu muito claro que eles estavam separados entre a vida e a morte – e ela estava no lado da vida.
Matthias queria mantê-la assim.
Depois de discutirem por um momento, ela o deixou, afastando-se com uma rapidez eficiente que ele aprovava. Matthias permaneceu no local de descanso de Jim Heron pelo tempo que julgou ser necessário até Mels chegar ao carro de seu amigo – e, como ele esperava, o Toyota não estava mais no portão principal do cemitério quando ele retornou.
E ela estava certa quanto à falta de táxis, mas havia um ponto de ônibus não muito longe e, embora isso o obrigasse a esperar, acabou conseguindo voltar ao centro da cidade por conta própria.
Melhor assim. Uma separação definitiva – ao menos fisicamente. Em sua mente, ele tinha o pressentimento de que não seria tão fácil.
Apesar de ainda possuir uma parte dela, de forma concreta: os óculos escuros. Ela não os pedira de volta, e ele esqueceu que estavam em seu rosto.
E esconder seu olho ruim seria muito útil em uma situação como a dele.
Matthias entrou no Starbucks da rua Quinze e avaliou o local através de seu Ray-Ban. O horário de pico do almoço já tinha passado e os fregueses das três da tarde ainda não tinham aparecido para lotar o local em busca de um remédio para sua sonolência vespertina. Havia apenas duas pessoas tomando café com leite, além de um par de baristas do outro lado no balcão.
Ele escolheu a barista cheia de piercings na sobrancelha e cabelo espetado azul e rosa.
Quando se aproximou, ela ergueu um olhar que parecia contar as horas para ir embora, mas sua expressão mudou rapidamente. Para algo a que ele já estava acostumado.
Era uma expressão de interesse feminino.
Matthias escolheu sabiamente.
– Olá – ela disse, enquanto pesquisava seu rosto... e depois a bengala e a jaqueta preta.
Ele sorriu, como se também estivesse momentaneamente interessado nela.
– Ah, escuta, eu combinei de encontrar um amigo aqui, mas ele não apareceu. Eu ia ligar para ele do meu celular, mas percebi que esqueci em casa. Posso usar seu telefone?
Ela deu uma olhada em seu colega de cafeteria. O cara estava encostado nos fundos ao lado das máquinas de café, braços cruzados ao redor do peito magro, como se estivesse descansando em pé.
– Sim. Pode sim. Venha aqui.
Matthias a seguiu pelo balcão, exagerando seu andar manco.
– Preciso ligar para o disque-informações primeiro, pois não lembro o número dele. Mas não se preocupe, é uma ligação local. Não acredito que esqueci meu celular!
– Acontece com todo mundo! – ela estava toda agitada, seus olhos pousavam rapidamente nele e depois se desviavam, como se ele fosse brilhante demais para se olhar por muito tempo. – Mas eu preciso discar, você não pode entrar atrás do balcão.
– Sem problema – quando ela lhe entregou o fone, ele o pegou e sorriu devagar. – Obrigado.
Ela ficou ainda mais encabulada. Ao ponto de precisar discar duas vezes até conseguir chamar o número desejado.
Matthias casualmente se virou e fingiu checar a entrada procurando por seu “amigo” quando uma voz gravada atendeu:
– Cidade e estado, por favor.
– Caldwell, Nova York – houve uma pausa. Ele esperou um atendente. – Por favor, o número de James Heron.
Enquanto Matthias esperava pela informação, a garota pegou um pano e passou casualmente pelo balcão. Mas ela estava escutando, com as sobrancelhas abaixadas.
– H-E-R-O-N – soletrou Matthias. – O primeiro nome é James.
Mas que droga, de que outro jeito dá para soletrar esse nome?
A atendente voltou a falar:
– Desculpe, mas não encontro ninguém com esse sobrenome em Caldwell. Quer tentar algum outro nome?
Que merda! Mas, de alguma forma, isso não o surpreendia. Seria muito fácil. E nem um pouco seguro.
– Não, obrigado – Matthias virou-se e entregou o fone para a garota. – Não tive sorte. O nome não está na lista.
– Você disse “Heron”? – perguntou a garota enquanto pendurava o fone. – Aquele cara que morreu?
Matthias estreitou os olhos – mas ela não podia ver, graças ao Ray-Ban.
– Mais ou menos. Meu amigo é irmão dele, na verdade. Moravam juntos. O telefone estava no nome de Jim. Como eu disse, meu amigo e eu combinamos de nos encontrar aqui pra, você sabe, conversar sobre tudo isso. É tão difícil perder alguém dessa maneira, e estou preocupado com o que isso pode fazer com a cabeça dele.
– Oh, Deus, foi triste demais – a garota jogava o pano de uma mão para outra. – Meu tio trabalhou com ele. E estava lá quando foi eletrocutado. E pensar que levou um tiro, tipo, dias depois. Quer dizer, como é possível? Sinto muito por seu amigo.
– Seu tio conhecia o Jim?
– Ele é gerente de recursos humanos na construtora em que Jim trabalhava.
Matthias respirou fundo, como se estivesse engasgando.
– Jim era um cara muito legal. Nós estivemos na guerra juntos – bateu com a bengala no balcão. – Sabe como isso é.
Quatro... três... dois... um...
– Olha, eu posso ligar pro meu tio se você quiser. Talvez ele tenha o telefone. Espera um pouco.
A garota saiu de trás do balcão, parou um pouco, depois assentiu para si mesma, como se estivesse em uma missão pelo bem, determinada a “fazer a coisa certa”.
Enquanto Matthias esperava ela voltar, ficou esperando também que sua consciência o repreendesse por causa da manipulação.
Quando não sentiu nada, ficou perturbado com a facilidade da coisa. Como se mentir fosse tão familiar e insignificante que seu cérebro registrasse essa ação como um simples reflexo.
A barista retornou cerca de cinco minutos depois com um número escrito em um papel de carta feminino, que traía completamente seu visual radical.
– Vou discar pra você.
A barista voltou para trás do balcão e entregou novamente o telefone a Matthias, que ficou escutando o som das teclas enquanto ela apertava os botões.
Ouviu o som de chamada. Um. Dois. Três. Quatro toques.
Nada de correio de voz. Nenhuma resposta.
Ele devolveu o telefone.
– Não tem ninguém em casa.
Afinal, o que ele esperava? Acordara no túmulo do cara e agora achava que Heron fosse atender o telefone? Era uma longa distância entre o caixão e a companhia telefônica.
– Talvez ele esteja a caminho?
– Talvez – Matthias encarou a garota por um momento. – Obrigado. Obrigado mesmo.
– Quer um café enquanto espera?
– Acho que vou dar uma passada na casa dele. Às vezes as pessoas reagem a uma tragédia... de um jeito estranho.
Ela assentiu, preocupada.
– Sinto muito.
E sentia mesmo. Uma completa estranha sentia pena, honestamente, por o que quer que ele estava passando.
Ele imediatamente pensou em Mels, que também parecia tão disposta a ajudar.
Pessoas boas. Pessoas gentis. E sua memória defeituosa dizia que Matthias não merecia ficar entre esse tipo de companhia.
– Obrigado – ele disse com a voz rouca antes de sair mancando pela porta.
A pistola calibre quarenta na mão de Jim pesava menos de um quilo, e já estava carregada com dez balas no pente e uma na agulha.
Ele manteve a arma abaixada ao lado da coxa enquanto saía da garagem. Depois do episódio no chuveiro, Adrian saíra para tomar ar e trazer comida, levando sua Harley, mas não o capacete. O Cachorro estava seguro no andar de cima, descansando na cama sob o sol. Jim estava de guarda.
Você não vê? Ela está dentro de mim... e está me dominando...
Merda.
Pelo menos Jim tinha um escape. O bom da garagem era que ela ficava nos fundos do terreno de uma casa de fazenda – e a casa da frente, branca, com sua varanda e chaminé de tijolos, estava vazia desde que ele começara a alugar o local.
Ninguém veria. Mas isso ainda não era suficiente.
Ele enfiou a mão livre dentro da bota e retirou um silenciador. A peça adicionava quase trezentos gramas ao peso da pistola automática e mudava seu centro de gravidade, mas Jim estava acostumado a usá-la daquela maneira.
Agora, ninguém ouviria também.
De pé sobre o cascalho solto do caminho de entrada, ele tragou o cigarro e então o segurou com a mão esquerda. Concentrando-se em um galho que estava a dez metros do chão, levantou a arma e mirou no pedaço de madeira de três centímetros.
Respirando calmamente, Jim fechou os olhos e pensou no rosto de Devina.
Crack!
Graças ao silenciador, o som da pistola foi bastante reduzido, apenas um estampido contra sua mão e o impacto na árvore.
Crack!
O gatilho, assim como o cabo e o tambor, não eram apenas uma extensão de seu braço, mas também de seu corpo, e ele não precisava dos olhos para reajustar a trajetória. Sabia exatamente onde o chumbo acertaria.
Crack!
Calmo. Concentrado. Respirando pela barriga, não pelo peito. Imóvel, exceto pelo dedo indicador e depois pelos músculos do antebraço ao absorverem o súbito coice da arma.
O impacto da última bala foi mais suave; afinal, já não restava muita madeira.
Ele abriu os olhos assim que o galho começou uma queda livre, batendo em seus irmãos até chegar ao chão duro.
Colocando o Marlboro de volta entre os dentes, Jim esmagou as pinhas e a grama rala com suas botas de combate ao andar até a árvore e pegar o galho. Foi um corte preciso, relativamente falando. Nada igual ao que uma serra faria, mas, considerando a distância e os meios, parecia bom o suficiente.
– Você é um ótimo atirador.
O sotaque inglês altivo vindo de trás de Jim o fez querer continuar apertando o gatilho.
– Nigel.
– Cheguei num momento inapropriado?
– Ainda tenho sete balas. Você decide.
– Devina sofreu uma reprimenda – Jim girou o corpo e estreitou os olhos na direção do arcanjo aristocrático, que assentiu. – Queria que soubesse. Pensei que seria muito importante te informar disso.
– Está preocupado pensando que estou perdendo o rumo?
– Mas é claro.
Jim teve de sorrir.
– Você consegue ser direto quando lhe convém. Então, o que é que seu Criador fez com minha inimiga?
– Ela é seu oponente...
– Inimiga.
Nigel colocou as mãos para trás e começou uma caminhada excêntrica. Vestia um terno fora de moda cortado à mão, do tipo que era totalmente estranho a Jim, e que continuaria desse jeito.
– Qual é o problema, chefe? – Jim murmurou. – O gato comeu sua língua?
O arcanjo lhe lançou um olhar que o faria cair morto ali mesmo, se Jim estivesse vivo do jeito convencional.
– Você não é o único com temperamento explosivo, e eu devo te lembrar de tomar cuidado com o tom e as palavras quando se dirigir a mim.
Jim guardou a arma na cintura.
– Certo. Chega de papo furado. O que posso fazer por você?
– Nada. Eu simplesmente pensei que você se acalmaria se soubesse que o Criador agiu. Eu te disse pra deixar que o demônio cruzasse os limites. Eu te disse pra esperar pelas consequências. E elas vieram.
– O que Ele fez com ela?
– As vitórias e derrotas que vocês conquistaram são permanentes. Não há nada que Ele ou qualquer um de nós possa fazer a respeito de onde as bandeiras foram... elas são imutáveis. Mas Ele decretou que as ações de Devina não podem ficar impunes.
– Espere, não estou entendendo. Se o que Devina fez afetou o resultado de uma rodada, então sua vitória tem que ser anulada.
– Não é assim que essa competição funciona. As vitórias... – o arcanjo olhou para o céu. – O paralelo seria propriedade pessoal, suponho.
– Minha?
– De certa maneira, eu diria que sim.
– Então, se ela quebrou as regras e isso mudou o resultado, o Criador deveria dar de volta aquilo que é meu de direito. E, já que estamos falando nisso, quero lembrar que, se eu soubesse que a alma em questão era o Matthias, eu não teria me concentrado no homem errado.
– E isso foi corrigido.
– Como?
Ao longe, do outro lado do campo, um carro saiu da estrada e entrou no caminho que passava pela casa da fazenda.
Merda. Visitantes não eram nada bem-vindos – e a cor amarela sugeria um táxi.
O carro não parou na residência principal.
Nigel levantou uma sobrancelha.
– Acredito que ficará evidente.
Após mais uma de suas frases enigmáticas, o chefe desapareceu.
– Obrigado, amigão – Jim murmurou. – Grande ajuda de merda. Como sempre.
Protegendo-se em um canto, Jim encostou os ombros na parede de alumínio. A arma não permaneceu na cintura. Ele a segurou mais uma vez, preparado para atirar.
O táxi estacionou na frente da garagem.
Um momento depois, um homem que ele nunca esperava ver de novo saiu do banco do passageiro... um pesadelo que vivia e respirava... um problema do passado, que Jim já resolvera.
Então esta era a solução para a trapaça de Devina?
– Filho... da puta – Jim sussurrou.
CAPÍTULO 13
Matthias saiu do táxi e pediu que o motorista esperasse. A garagem à sua frente era uma espécie de galpão de armazenamento, com escadas que levavam para o segundo andar. As portas duplas no andar térreo estavam fechadas; a do andar de cima e as cortinas também.
Na janela do andar superior, as cortinas se separaram e um cachorro desgrenhado apareceu, como se estivesse de pé com as patas da frente apoiadas na parede.
Alguém claramente vivia ali.
– Mande o táxi embora.
Matthias virou rapidamente a cabeça para a direita, e o homem que surgiu de trás da garagem o fez quase perder o equilíbrio, fazendo uma lembrança vívida e instantânea surgir em sua memória.
Jim Heron. De volta do mundo dos mortos.
O instinto de Matthias lhe dizia que o cara sempre tivera aquele grande corpo musculoso, cabelo loiro escuro, o rosto frio e de feições endurecidas. Mas não havia contexto em sua lembrança, não havia um comentário interno sobre como ele conhecia o homem, ou o que viram e fizeram juntos. Porém, uma coisa estava clara... mesmo sem a arma, era óbvio que aquele não era o tipo de cara que você quer por perto se estiver desarmado e sem um veículo de fuga.
Matthias bateu no vidro, entregou uma nota de vinte ao motorista e o deixou ir embora.
Quando o carro manobrou e partiu pelo caminho de entrada, o som dos pneus esmagando o cascalho parecia tão alto quanto disparos de uma arma.
– Isso é uma arma na sua perna ou você está apenas feliz de me ver? – Matthias disse secamente.
– É uma arma. E você quer me dizer o que está fazendo aqui?
– Diria, se soubesse. Talvez você possa me ajudar com essa pergunta.
– O quê? – quando Matthias não respondeu, os olhos azuis cínicos de Heron ficaram ainda mais estreitos. – Você está falando sério. Isso foi uma pergunta sincera.
Matthias deu de ombros.
– Interprete do jeito que quiser. E enquanto pensa, eu gostaria de comentar que você supostamente está morto.
– Como você me encontrou?
– Procurei na central de informações. De certa maneira.
Quando Heron se aproximou, Matthias percebeu que a posição da arma com o silenciador mudou e que agora o tambor estava apontado diretamente para seu peito. E podia apostar que o gatilho seria apertado em um instante, se fosse preciso. O que significava que aquele homem com estilo militar era paranoico... ou que, por alguma razão, considerava Matthias perigoso.
– Estou desarmado – Matthias anunciou.
– Não faz o seu feitio.
A arma não foi abaixada; aquele corpo não relaxou; aqueles olhos não perderam o ar de alerta.
– Você não acredita em mim – disse Matthias.
– Depois de tudo o que passamos? Nem um pouco, meu velho amigo.
– Nós éramos amigos?
– Não, você está certo. Nós fomos muitas coisas, mas nunca amigos – Heron balançou a cabeça. – Mas que merda, sempre que não espero mais te ver, você aparece.
Heron sabia as respostas, pensou Matthias. O homem que estava bem à sua frente era o caminho para ele descobrir quem era.
– Bom – murmurou Matthias –, considerando que você ainda está respirando, mas que eu visitei o seu túmulo uma hora atrás, eu não sou o único tirando coelhos da cartola. Se importa de me contar onde foi que nos vimos pela última vez?
– Você está falando sério? – quando ele assentiu, Heron balançou a cabeça novamente. – Está dizendo que não se lembra?
Matthias levantou as mãos, mostrando as palmas.
– Não tenho nada.
A atitude desconfiada de Jim foi substituída por uma breve surpresa.
– Jesus.
– Acho que não. Minha carteira de motorista diz “Matthias”.
A risada que recebeu como resposta foi um pouco assustadora.
– Se importa se eu te revistar?
Matthias encostou a bengala na perna e levantou as mãos.
– Manda ver.
Jim fez o procedimento com uma das mãos e, quando se afastou de novo, soltou outro palavrão.
– Claramente você perdeu a cabeça.
– Não, apenas minha memória. E preciso que você me diga quem sou eu.
Houve um longo silêncio, como se Heron tentasse preencher os buracos da história em sua cabeça. Finalmente, disse:
– Vou pensar bem antes de contar as coisas do seu passado. Mas vou te ajudar. Disso você pode ter certeza.
– Isso não é bom o suficiente. Preciso das informações. Agora.
– Acha mesmo que está em posição para fazer exigências?
Enquanto Jim conduzia seu antigo chefe, Matthias, o Cretino, para o andar de cima, ele não conseguia acreditar em tudo aquilo. E não importava o quanto seu cérebro se esforçasse: parecia que os porcos realmente podiam voar, que o Inferno estava cheio de bolas de neve, e que em algum lugar um cachorro velho aprendia a dirigir uma droga de um carro.
Era disso que Nigel estava falando? Uma repetição da segunda rodada?
Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
Parece que concentrar-se na alma errada não seria um problema desta vez – desde que o discurso cifrado de Nigel estivesse mesmo certo e Matthias, mais uma vez, fosse a alma em jogo.
O que não era uma maneira tão boa de penalizar Devina. Merda!
Mas havia uma boa notícia – se é que podia existir alguma notícia boa nessa história de voltar do mundo dos mortos: a perda de memória. O velho Matthias nunca se exporia com uma fraqueza como amnésia, portanto provavelmente era verdade – e Deus sabia que esse buraco negro de informações seria muito útil.
Assim, Jim precisava trabalhar apenas contra a natureza.
Abriu a porta e deu espaço para Matthias entrar.
– Humilde lar, e essas coisas.
Enquanto Matthias mancava para dentro, o Cachorro correu e balançou o rabo lhe dando boas-vindas, com suas patas fazendo barulho no chão de madeira.
Considerando a alegria do cão, parecia óbvio que Devina não estava usando o corpo daquele homem. O que foi uma boa dica.
Jim fechou a porta e observou seu ex-chefe. Mancava do mesmo jeito. Tinha a mesma voz. O mesmo rosto. Os óculos escuros não surpreendiam, considerando o estado dos olhos do cara.
– Eu ofereceria comida, mas tenho que esperar meu amigo voltar. Pode usar o sofá enquanto isso.
Matthias grunhiu quando sentou.
– Eu ainda fumo – ele disse, acenando para o maço em cima da mesa.
– Pensei que não se lembrava de nada.
– Certas coisas... eu acabo lembrando.
Jim foi até a pequena cozinha e parou em frente à pia. Por alguma razão, ele queria estar perto de Eddie.
– Então, vamos começar com exatamente o que você lembra.
– Eu sei que acordei na sua sepultura.
– A morte é relativa.
– Então, nós dois somos um milagre.
Jim levantou uma sobrancelha.
– Pelo menos um de nós é. Vamos ver quanto ao outro. Como me encontrou?
– Central de informações.
– O telefone daqui não está no meu nome.
– Mas você deu esse número no seu último emprego. Fui até a biblioteca, busquei o número na internet e achei você. Não é um esconderijo muito bom.
– Não estou me escondendo de ninguém.
– Então, por que você está morto, mas vivo?
– Vamos nos concentrar apenas em você, certo?
– Certo. Então, por que está com medo de mim? – quando Jim apertou o maxilar, Matthias sorriu do jeito que sempre fazia, mostrando todos os dentes brancos e afiados. – Aliás, isso não é uma lembrança. É a arma na sua mão. Estamos na sua casa, protegidos... se eu não fosse uma ameaça, você guardaria a arma.
Filho... da puta.
Mesmo com amnésia, o cara era um cretino.
Com essa deixa, Jim se aproximou, mantendo os olhos no Ray-Ban que o outro usava. Com a ponta da arma virada para Matthias, colocou a pistola na mesa e a empurrou para o outro lado.
– Fica com ela, se quiser.
– Você vai me dar uma arma?
– Claro, por que não? Pense nisso como um presente por sua volta pra casa.
– Estou em casa?
– Não neste lugar em particular... você não pode ficar aqui, e nunca esteve aqui. Nunca.
Matthias sorriu um pouco.
– Bom, não quero ficar na minha casa.
– E onde é isso exatamente?
O homem colocou a mão no bolso, tirou a carteira e jogou a carteira de motorista na mesa, sobre a arma.
Jim olhou a identificação. Era bem feita, com todos os hologramas no lugar certo. O sobrenome não estava correto, é claro, mas o primeiro nome e a foto estavam.
– O que você sabe sobre mim? – exigiu o homem.
– Bela foto – Jim disse ao recostar-se na parede.
– Não estou perguntando sobre meu futuro como modelo. Por que está evitando minhas perguntas?
– Estou tentando decidir como fazer esta jogada.
– Estamos em um jogo?
– Sim, estamos. E você não pode nem imaginar o que está em jogo – Jim decidiu sentar ao lado de seu hóspede. – Como eu disse antes, por que não começa contando o que você lembra?
Os óculos escuros baixaram, como se Matthias estivesse encarando o chão. Ou talvez suas botas, ou a bengala.
– Fui atropelado por um carro do lado de fora do Cemitério Pine Grove ontem à noite e acordei no hospital sem saber quem eu era ou onde estava. Hoje, tentei me lembrar refazendo meus passos, até que cheguei na sua sepultura – o Ray-Ban subiu de novo e ele olhou ao redor. – Eu reconheci seu nome no instante em que o vi. Reconheci você também, no exato momento em que saiu de trás da casa.
A expressão no rosto de Jim não mudou.
– Não é uma surpresa... nós dois temos muita história juntos. E é por isso que vou te ajudar.
– Então comece dizendo como isso tudo... – Matthias fez um gesto com a mão, mostrando todo o seu corpo – aconteceu.
– Os ferimentos?
– Não, minha roupa de balé. De que merda você acha que estou falando?
– Tire os óculos.
– Por quê?
– Quero olhar nos seus olhos quando responder.
A mão tremeu quando tirou os óculos, mas Jim apostava que era uma fraqueza física, e não mental. E ele estava certo.
– Como os ferimentos aconteceram? – seu ex-chefe repetiu, com uma voz grave.
– Você tentou se matar na minha frente. Plantou uma bomba na areia e pisou nela, bem na minha frente.
Matthias olhou para a própria perna e suas sobrancelhas se juntaram, como se o cérebro estivesse calculando dois mais dois.
– Por que eu fiz isso?
Como responder sem revelar demais?
– Você odiava o homem que era. Não podia mais continuar daquele jeito, e deu um jeito de não ter mais que fazer isso.
– Mas eu não morri.
– Não dessa vez – Jim levantou-se. – Meu amigo voltou.
Um segundo depois, o som de uma Harley invadiu o local através da janela, aumentando até parar totalmente.
– Você tem um bom ouvido – Matthias comentou.
Jim encarou o homem, pensando em como faria para trabalhar a situação em seu favor. Com um pequeno sorriso, murmurou:
– É o menor dos meus truques.
CONTINUA
CAPÍTULO 1
Sepultura.
Como na lápide e na terra recém-cavada, como em um corpo lá em baixo, como das cinzas às cinzas e do pó ao pó.
Matthias estava nu em uma sepultura. Em meio a um cemitério que se estendia até onde seus olhos podiam enxergar.
A primeira coisa que surgiu em sua mente foi a tatuagem que fizera seus homens usarem nas costas, com o desenho do Ceifeiro da Morte pairando sobre um campo de lápides e tumbas.
Que irônico – talvez estivesse prestes a ser cortado por uma foice a qualquer momento.
Tente repetir isso três vezes, bem rápido.
Piscou os olhos tentando clarear a vista, juntou os braços para se aquecer e esperou que o cenário voltasse à realidade. Quando nada mudou, ele se perguntou aonde teria ido aquele muro em que estivera preso para toda a eternidade.
Será que finalmente estava livre daquela tortura nojenta e superlotada?
Teria escapado do Inferno?
Soltando um grunhido, tentou se erguer, mas até levantar a cabeça estava difícil. Afinal, descobrir em primeira mão que aqueles lunáticos religiosos estavam certos sobre uma porção de coisas realmente faz você querer tirar um cochilo: de fato, os pecadores iam lá para baixo, e não para o Sul, e, uma vez lá, o sofrimento faz todas as coisas de que você reclamava em vida parecerem um passeio no Universal Studios.
O Demônio existia.
E sua sala de estar era uma merda.
Mas os religiosos não sabiam de toda a história. Acontece que Satã não possuía chifres ou uma calda. Também não havia nada de tridente e pés de bode. Bom, era mesmo metade bicho – se você considerar que o bicho em questão seja uma vaca. E usa muito vermelho. Afinal, morenas ficam bem com essa cor – ao menos, era isso que ela dizia a si mesma.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/FASC_NIO.jpg
Com seu olho esquerdo, que ainda funcionava, Matthias piscou novamente, preparando-se para retornar para a densa e ardente escuridão, com os gritos dos condenados ecoando em seus ouvidos e sua própria dor rasgando pela garganta e explodindo pelos lábios rachados...
Mas nada disso aconteceu. Ele ainda estava em uma sepultura. Ainda estava em um cemitério.
Completamente pelado.
Concentrando-se, enxergou, com seu único olho bom, uma paisagem cheia de túmulos de mármore branco, sepulturas de famílias marcadas com anjos e fantasmagóricas estátuas da Virgem Maria – embora as lápides simples fossem bem mais numerosas, como se os plebeus tivessem tomado conta do lugar. Pinheiros e carvalhos projetavam sombras através de gramados desalinhados e bancos de metal. As lâmpadas dos postes emitiam um brilho alaranjado, como velas num bolo de aniversário, e as passarelas estreitas poderiam até ser românticas se estivessem em outro lugar.
Mas ali, com certeza, não eram. Não naquele contexto de morte...
De repente, cenas de sua vida passaram por sua mente, fazendo-o se perguntar se estaria experimentando a morte pela segunda vez. Ou pela terceira, como seria o caso.
Não havia alegria nessa retrospectiva. Nada de esposa amorosa, nem filhos bonitos, nem uma casinha aconchegante. Apenas cadáveres, dezenas, centenas de cadáveres, todos mortos por ele próprio ou por ordem sua.
Matthias havia feito muito mal, o verdadeiro mal, durante sua vida.
Forçou-se a sentar na terra úmida. Seu corpo parecia um quebra-cabeça cujas peças não encaixavam direito: seus membros se uniam em juntas que pareciam folgadas em alguns lugares e apertadas em outros. Mas isso é o que acontece quando você se despedaça e tudo o que tem para se recompor são as habilidades limitadas de cura e medicina.
Ele direcionou seu olho para a lápide e franziu a testa.
James Heron.
Meu Deus, James Heron...
Ignorando o tremor de suas mãos, ele traçou as letras gravadas na pedra – a ponta de seus dedos percorreu o texto esculpido no granito cinzento.
Soltou um suspiro áspero, como se a dor repentina atrás de suas costelas tivesse forçado o ar para fora dos pulmões.
Matthias nunca soubera que realmente havia uma recompensa eterna após a morte, que suas ações eram de fato levadas em conta, que havia um julgamento ao final da última batida de seu coração. Mas a dor não era por causa disso. Era porque sabia que, mesmo se tivesse conhecimento do que o esperava, ele não seria capaz de fazer nada diferente.
– Sinto muito – falou, se perguntando para quem realmente dizia aquilo. – Porra, sinto muito mesmo...
Nenhuma resposta.
Olhou para o céu.
– Sinto muito.
De novo, nada de resposta, mas tudo bem. De qualquer forma, os arrependimentos estavam se acumulando em sua mente e não havia muito espaço para contribuições de terceiros.
Enquanto se esforçava para levantar, seu tronco tombou e precisou se apoiar na lápide para retomar o equilíbrio. Deus, ele estava acabado. Suas coxas estavam cobertas de cicatrizes, sua barriga cheia de lesões, uma panturrilha quase despida de carne. Os médicos realizaram um verdadeiro milagre com seus parafusos e hastes, mas, comparado com o jeito como nascera, Matthias parecia um brinquedo quebrado remendado com fita adesiva e supercola.
E o suicídio deveria ter funcionado. Mas Jim Heron foi a razão de ele ter sobrevivido por outros dois anos. Até que a morte o encontrou e o levou, provando que a Terra apenas pegava as almas emprestado – o outro lado é que realmente as possuía.
Por força do hábito, olhou ao redor procurando sua bengala, mas então se concentrou naquilo que seria mais provável encontrar: sombras que o perseguiam, fossem aquelas criaturas ardilosas do Inferno ou meros humanos.
De um jeito ou de outro, ele estava ferrado: como ex-chefe da organização secreta que eles chamavam de Operações Extraoficiais, Matthias tinha mais inimigos do que um ditador do Terceiro Mundo, e todos eles possuíam armas e podiam contratar quem as tivesse. E, como fugitivo do parquinho do diabo, nem era preciso mencionar que ele não escapara de graça da prisão.
Mais cedo ou mais tarde, alguém viria atrás dele. E, apesar de Matthias não possuir nada pelo que valesse a pena viver, seu ego era razão suficiente para lutar e se defender.
Ou pelo menos fazer de si um alvo menos fácil.
Começou a caminhar mancando e continuou com a graça de um espantalho – seu corpo sacudia com espasmos que culminavam numa marcha que doía como o diabo. Para conservar o calor, tentou abraçar a si mesmo, mas isso não durou muito. Precisava usar os braços para manter o equilíbrio.
Com movimentos de zumbi e a cabeça completamente confusa, ele continuou a caminhada, atravessando a grama desalinhada, passando pelas lápides, sentindo o toque da fria brisa que cortava sua pele. Não tinha a menor ideia de como conseguira escapar. Não sabia para onde iria. Que dia, mês, ano seria.
Roupas. Abrigo. Comida. Armas.
Assim que tivesse assegurado o básico, ele se preocuparia com o resto. Isso se não fosse abatido antes – afinal, um predador ferido se torna uma presa rapidamente. É a lei da selva.
Pensou ter encontrado mais uma sepultura ao se aproximar de uma construção de pedra com ornamentos de ferro fundido. Mas o nome “Cemitério Pine Grove” gravado no topo da fachada e a grande fechadura na porta frontal sugeriam que era uma instalação dos funcionários.
Felizmente, alguém deixara aberta uma fresta da janela dos fundos.
Mas é claro, a janela estava emperrada naquela posição.
Ele pegou um galho caído, o colocou na fresta e forçou até a madeira curvar.
A janela começou a ceder, soltando um chiado agudo.
Matthias congelou.
Pânico, uma sensação pouco familiar, que foi aprendida da maneira difícil, o fez girar e procurar as sombras. Conhecia aquele som. Era o barulho que os lacaios do demônio faziam quando estavam atrás de você...
Nada.
Apenas túmulos e postes de luz que, não importa o quanto sua adrenalina sugerisse o contrário, não se transformavam em nada.
Praguejando, ele voltou ao trabalho. Usou o galho como alavanca até abrir espaço suficiente para poder se espremer e passar. Erguer o corpo foi um sacrifício, mas, assim que seus ombros passaram, ele deixou a gravidade cuidar do resto. O chão de concreto no qual aterrissou parecia uma grade de ferro, e ele precisou de um tempo enquanto seu fôlego escapava da garganta, seu estômago embrulhava e dores surgiam em mais lugares do que ele conseguia contar.
No teto, luzes fluorescentes piscaram e depois acenderam de vez, cegando-o.
Malditos sensores de movimento. O lado bom era que, assim que seus olhos se ajustaram, ele teve uma clara visão de todo tipo de ferramenta de jardinagem. O lado ruim? Ele era um diamante em uma vitrine, pronto para ser capturado.
Pendurados em ganchos na parede, como se fossem peles de animais mortos, havia vários conjuntos de macacões impermeáveis, esperando para serem usados. Ele prontamente vestiu uma parte de baixo e uma parte de cima. Essas roupas foram feitas para ficar folgadas, mas em seu corpo pareciam grandes velas de um barco.
Melhor assim. Melhor com as roupas, mesmo elas cheirando a fertilizante, e mesmo com o atrito, que logo se tornaria um problema. Havia um boné do Boston Red Sox em um dos cantos, e Matthias o vestiu para ajudar a conservar o calor do corpo; então olhou ao redor procurando qualquer coisa que pudesse servir como bengala. As pás eram muito pesadas para ser eficientes, e os rastelos também não ajudariam.
Dane-se. Sua missão imediata era se afastar das luzes que banhavam o show de horrores do seu corpo.
Saiu da mesma maneira que entrou, forçando-se através da janela e aterrissando duramente no chão. Não tinha tempo para reclamar do impacto desta vez; precisava continuar se movendo.
Antes de morrer e ir para o Inferno, Matthias sempre fora o perseguidor. Caramba, durante sua vida inteira ele fora o caçador, aquele que espreitava, encurralava e destruía. Mas agora, retornando à escuridão daquelas sepulturas, todas as intangibilidades da noite eram perigosas até que se provasse o contrário.
Esperava que estivesse de volta em Caldwell.
Se estivesse, tudo o que precisava fazer era manter-se discreto e seguir para Nova York, onde possuía um abrigo com mantimentos.
Sim, rezava para que fosse Caldwell. Quarenta e cinco minutos ao sul pela estrada era tudo o que precisaria. Já acabara de arrombar e invadir um lugar; fazer uma ligação direta em um carro velho era outra habilidade que poderia ressuscitar.
Uma vida depois, ou pelo menos o que pareceu ser uma vida depois, ele chegou até o portão de ferro que cercava todo o terreno daqueles que descansam em paz. A coisa tinha uns três metros de altura, e as grades tinham pontas que poderiam ter sido facas em outra encarnação.
Encarando as barras que o mantinham do lado dos mortos, Matthias as agarrou e sentiu o frio do metal agarrá-lo de volta. Olhando para cima, concentrou-se no céu. As estrelas realmente cintilavam.
Engraçado, ele sempre pensou que isso fosse apenas um modo de dizer.
Respirando fundo, puxou ar puro e limpo para os pulmões e percebeu que tinha se acostumado com o fedor do Inferno. No começo, aquilo era o que mais detestava, aquele cheiro nauseante de ovo podre impregnado nas vias aéreas e que invadia a garganta e viajava até envenenar suas entranhas: mais do que um cheiro ruim, era uma infecção que entrava pelo nariz e conquistava todos os territórios que tocasse.
Mas ele se habituara.
Com o tempo, e em meio ao sofrimento, ele se acostumara ao horror, ao desespero, à dor.
Seu olho ruim, o que não conseguia usar, encheu-se de lágrimas.
Nunca conseguiria alcançar aquelas estrelas.
E essa pausa no sofrimento servia apenas para aumentar a tortura. Afinal, não existe nada como um período de alívio para revitalizar um pesadelo. Quando você retorna para a merda, o contraste aumenta tudo, eliminando a aclimatação e fazendo voltar o choque inicial.
Eles voltariam a persegui-lo. Afinal, era exatamente isso que ele merecia.
Mas, seja lá quanto tempo tivesse, lutaria contra o inevitável – não com a esperança de se livrar do Inferno, não pela possibilidade de um adiamento, mas simplesmente porque essa era uma função automática, que fazia parte do seu ser.
Matthias lutava pela mesma razão que cometera o mal.
Aquilo era simplesmente o que ele fazia.
Impulsionando a si mesmo para longe do chão, colocou contra as barras o pé que funcionava melhor e jogou seu peso para cima. Fez isso novamente. E de novo. O topo parecia estar a quilômetros de distância, o que apenas o fez concentrar-se mais em seu objetivo.
Uma eternidade depois, sua palma agarrou uma das pontas e seu braço enlaçou a perigosa lâmina.
Sangue escorreu rapidamente quando Matthias jogou a perna por cima do portão e uma das pontas cortou um pedaço de sua coxa.
Mas não havia motivo para voltar. Havia se comprometido, e de um jeito ou de outro a gravidade venceria e o puxaria para a terra – então era melhor que isso acontecesse lá fora do que dentro do cemitério.
Quando começou a cair, seus olhos focaram as estrelas. Ele chegou até a estender uma das mãos naquela direção.
O fato de que elas estavam cada vez mais distantes parecia apropriado.
CAPÍTULO 2
Mels Carmichael estava sozinha na redação. De novo.
Às nove da noite, o labirinto de cubículos do Correio de Caldwell estava povoado apenas por material de escritório, nada de pessoas – do ponto de vista do pessoal da redação, a edição do dia seguinte já zarpara para o mar: as prensas trabalhavam a todo vapor do outro lado do prédio.
Quando Mels se recostou na cadeira, as molas soltaram um chiado, e ela transformou aquele som em um instrumento, tocando uma musiquinha feliz que compusera após muitas noites iguais àquela. O título era “Rapidamente chegando a lugar nenhum”, e ela fazia um acompanhamento assoviando a parte do soprano.
– Ainda está aqui, Carmichael?
Mels se recompôs e cruzou os braços.
– Oi, Dick.
Seu chefe se esgueirou no pouco espaço que havia ali, com o sobretudo dobrado no braço e a gravata folgada ao redor do pescoço. Ele acabara de voltar da saideira no bar Charlie’s, onde os homens do jornal costumavam assistir esportes após o expediente.
– Trabalhando até tarde de novo? – Seus olhos percorreram os botões da blusa dela, como se esperasse que o uísque que tomou tivesse lhe dado poderes telecinéticos. – Tenho que dizer, você é bonita demais pra fazer isso. Você não tem namorado?
– Você me conhece, o trabalho é sempre mais importante.
– Bem... eu poderia dar algo para você trabalhar.
Mels imediatamente o encarou com firmeza:
– Obrigada, mas estou ocupada. Estou pesquisando sobre assédio sexual em mercados que antes eram dominados por homens, como companhias aéreas, esportes... jornalismo...
Dick franziu a testa como se não tivesse escutado o que esperava. O que era uma loucura. A reposta dela era a mesma desde o primeiro dia.
Mais de dois anos dando um fora nele. Deus, já tinha passado tanto tempo?
– É esclarecedor – ela esticou o braço e tocou o mouse, desativando a proteção de tela. – Muitas estatísticas. Poderia ser minha primeira reportagem de âmbito nacional. Igualdade de sexos na América pós-feminismo é um assunto quente hoje em dia... é claro, eu poderia apenas colocar no meu blog. Talvez você pudesse me dar uma declaração.
Dick arrumou o sobretudo em seu braço.
– Eu não te passei essa pauta.
– Sou uma pessoa de iniciativa.
Ele levantou a cabeça como se estivesse procurando outra pessoa para importunar.
– Só leio aquilo que eu mandei escrever.
– Você pode achar útil.
O cara tentou afrouxar a gravata e... surpresa! Já estava aberta.
– Está perdendo seu tempo, Carmichael. Vejo você amanhã.
Enquanto saía, vestiu aquele sobretudo estilo Walter Cronkite com lapelas dos anos 1970 e o cinto que ficava pendurado, fazendo parecer que parte das suas entranhas não estava onde deveria. Ele provavelmente tinha aquele casaco desde os tempos de Watergate, quando Woodward e Bernstein provavelmente o inspiraram a seguir seu próprio sonho jornalístico... que terminou no topo do expediente de um jornal de cidade pequena.
Nada mal para um emprego. Mas também não era nenhum chefe de redação do The New York Times, ou do The Wall Street Journal.
Isso parecia incomodá-lo.
Então, pois é, não era necessário ser um gênio para atribuir suas inadequações ao tédio de um ex-timoneiro calvo, amargurado por ter passado sessenta anos na intersecção entre o quase-lá e o meu-tempo-está-acabando.
Por outro lado, talvez ele fosse apenas um cretino mesmo.
O que estava claro na mente dela era que um cara mais parecido com uma rã do que com Jon Hamm não tinha nenhuma razão objetiva para acreditar que a resposta para os problemas de qualquer mulher estava dentro da calça dele.
Quando as portas duplas se fecharam, Mels respirou fundo e ficou imaginando um ônibus passando por cima daquele sobretudo anacrônico e deixando as marcas dos pneus. Mas, graças ao corte nos orçamentos, a linha de ônibus da rua Trade não passava mais depois das nove da noite e agora eram... sim, o horário já tinha acabado dezessete minutos atrás.
Ela encarou a tela do computador, sabendo que deveria ir para casa.
Seu artigo de iniciativa própria não era exatamente sobre chefes de olhar malicioso que fazem suas funcionárias pensarem que o transporte público seria uma ótima maneira de assassinar alguém. O artigo era sobre pessoas desaparecidas. As centenas de pessoas desaparecidas da cidade de Caldwell.
Caldie, como a cidade era conhecida, lar das pontes gêmeas, era também a líder nacional em desaparecimentos. Durante os últimos anos, a cidade de dois milhões de habitantes tivera o triplo de desaparecimentos de Manhattan (contando todos os seus cinco municípios) e Chicago – juntas. E o total da última década ultrapassara os números de toda a costa Leste. O que tornava tudo ainda mais estranho é que a questão não era só os números em si: acontece que as pessoas não estavam desaparecendo apenas temporariamente. Elas nunca voltavam e nunca eram encontradas. Nada de corpos, nada de vestígios e nada de relocação para outras jurisdições.
Era como se fossem sugadas para outro mundo.
Depois de toda sua pesquisa, Mels sentia que o horrível massacre em uma fazenda no mês anterior tinha algo a ver com a abundância de desaparecimentos...
Todos aqueles jovens estraçalhados.
As informações preliminares sugeriam que muitos daqueles que foram identificados já haviam sido declarados desaparecidos em algum ponto de suas vidas. Muitos deles eram casos de delinquência juvenil ou tinham antecedentes com drogas. Mas nada daquilo importava para as famílias – e nem deveria.
Não é preciso ser um santo para ser uma vítima.
A horripilante cena da zona rural de Caldwell foi notícia em âmbito nacional, com todos os canais enviando seus melhores repórteres, desde Brian Willians até Anderson Cooper. Os jornais também estavam presentes. Mas, mesmo com toda a atenção, a pressão dos políticos e o clamor por justiça de comunidades abaladas (e com razão), a verdadeira história ainda estava para surgir: a polícia de Caldwell tentava ligar as mortes a uma pessoa, qualquer pessoa, mas não conseguiu nada – mesmo trabalhando no caso dia e noite.
Mas tinha de haver uma resposta. Sempre há uma resposta.
E Mels estava determinada a descobri-la – pelo bem das vítimas e de suas famílias.
Além disso, esse era o momento para ela se destacar. Chegara a Caldwell aos 27 anos, depois de pedir transferência de Manhattan porque viver em Nova York estava muito caro e ela não estava chegando a lugar algum no New York Post. Seu plano era se mudar por seis meses, juntar algumas economias morando com sua mãe e depois se concentrar nos peixes grandes: The New York Times, The Wall Street Journal, talvez até um emprego de correspondente na CNN.
Mas não foi exatamente como as coisas aconteceram.
Voltando a focar na tela do computador, ela vasculhou as colunas que conhecia de cor, buscando padrões que ainda não tinha enxergado... pronta para encontrar a chave que abriria a porta não apenas da história, mas também de sua vida.
O tempo estava passando depressa, e Deus sabe que ela não era imortal...
Quando Mels deixou a redação, por volta das nove e meia, aquelas linhas de informação continuavam surgindo em sua mente sempre que piscava, como se fosse um videogame que ela tivesse jogado por muito tempo.
Seu carro, que batizara de Josephine, era um Honda Civic de doze anos com quase 125 mil quilômetros rodados – e a Fifi estava acostumada a esperar por ela no frio da noite. Mels deu partida naquele velho motor de máquina de costura e foi embora, deixando para trás seu emprego meia boca. E foi para a casa de sua mãe. Aos trinta anos de idade.
Que bela profissional. E pensava que iria acordar magicamente na manhã seguinte como uma Diane Sawyer sem o spray de cabelo?
Seguindo pela rua Trade para fora do centro da cidade, deixou os prédios de escritório para trás, passou pelas boates e ruas abandonadas do lado sujo do município. Ao final de todos aqueles prédios com janelas lacradas, as coisas melhoraram quando entrou nos arredores de uma vizinhança residencial, com casas bonitas e ruas com nomes de árvores...
– Meeeerda!
Virando o volante com força para a direita, tentou evitar o homem que apareceu no meio da rua, mas era tarde demais. Ela o acertou em cheio, erguendo-o com o para-choque até ele voar em seu para-brisa, cujo vidro laminado estilhaçou-se com um lampejo brilhante.
E aquele foi apenas o primeiro de três impactos.
O corpo do homem simplesmente voou pelos ares, e Mels teve a terrível visão dele atingindo o pavimento com força. E então ela teve seus próprios problemas. O impacto desviou o carro, que atingiu o meio-fio. Os freios diminuíram o impulso, mas não rápido o suficiente – e então se tornaram inúteis quando o carro também saiu do chão.
O carvalho que os faróis iluminaram fez seu cérebro realizar um raciocínio rápido: ela ia atingir a maldita coisa, e isso ia doer muito.
A colisão fez um barulho seco, um estampido ao qual ela não prestou muita atenção – estava ocupada recebendo o air bag em seu rosto, e a falta do cinto de segurança veio com tudo para morder seu traseiro. Ou a virilha, nesse caso.
Mels foi jogada para a frente e ricocheteou para trás, e um pó vindo do air bag invadiu seu olhos, nariz e pulmões, causando irritação e fazendo-a engasgar. Então tudo ficou silencioso.
No final, tudo o que podia fazer, assim como a pobre Fifi, era ficar onde estava. Debruçada sobre o air bag vazio, ela tossiu um pouco...
Alguém estava assoviando.
Não, era o motor que soltava vapor de algo que deveria estar selado.
Ela virou a cabeça com cuidado e olhou para fora através da janela do motorista. O homem estava caído no meio da rua, totalmente parado, parado demais.
– Oh... meu Deus...
O rádio do carro ganhou vida, arranhando a princípio, depois se recuperando com um curto circuito. Uma música... qual era?
Do nada, uma luz surgiu no meio da estrada, iluminando a pilha de trapos que ela sabia ser uma pessoa. Piscando, imaginou se aquele seria o momento em que descobriria as respostas sobre a vida após a morte.
Não era exatamente o furo jornalístico que ela esperava, mas aceitaria mesmo assim...
Porém, não era nenhum tipo de chegada celeste. Eram apenas faróis.
Um sedan derrapou até parar e duas pessoas saíram do carro. O homem correu para a vítima, a mulher correu até ela. A boa samaritana de Mels teve que se esforçar para abrir a porta, mas, depois de alguns puxões, ar fresco substituiu o cheiro ruim de plástico do air bag.
– Você está bem?
A mulher tinha cerca de quarenta anos e parecia rica, seu cabelo estava arrumado para cima, os brincos dourados brilhavam, suas roupas finas e elegantes não combinavam com aquele cenário de acidente.
Ela pegou um iPhone.
– Chamei a emergência; não, não se mova. Você pode ter uma lesão no pescoço.
Mels se rendeu à súbita pressão em seu ombro, mantendo-se junto ao volante.
– Ele está bem? Eu não enxerguei... apareceu do nada.
Pelo menos, foi isso que ela tentou dizer. Seus ouvidos captaram apenas murmúrios que não faziam sentido algum.
Dane-se a lesão no pescoço; estava preocupada com seu cérebro.
– Meu marido é médico – disse a mulher. – Ele sabe o que fazer com o homem. Só se preocupe com você mesma...
– Não o vi. Não o vi – ah, bom, isso soou mais inteligível. – Voltando do trabalho. Eu não...
– É claro que não. A mulher se ajoelhou. Realmente, ela parecia a esposa de um médico – e cheirava a perfume caro.
– Apenas fique parada, a ambulância está chegando...
– Ele está vivo, pelo menos? – Lágrimas surgiram nos olhos de Mels, substituindo uma irritação por outra. – Oh, meu Deus, eu matei ele?
Quando começou a tremer, ela lembrou qual era aquela canção... Blinded by the light, pensou.
– Porque meu rádio ainda está funcionando? – ela murmurou entre as lágrimas.
– Como é? – disse a mulher. – Que rádio?
– Você não está escutando?
O que se seguiu foi um gentil e alarmante toque em seu ombro.
– Apenas respire fundo e fique comigo.
– Meu rádio está tocando...
CAPÍTULO 3
– Está calor aqui? Quero dizer, você acha que está calor aqui?
O demônio cruzava e descruzava suas longas pernas à la Gisele Bündchen enquanto puxava o decote de seu vestido.
– Não, Devina, não acho – a terapeuta do outro lado da sala era exatamente como o sofá em que estava sentada: fofa e reconfortante. Até seu rosto era como um travesseiro de algodão, com as linhas de expressão parecendo bordadas em tecido macio. – Mas posso abrir uma janela se você quiser.
Devina recusou balançando a cabeça e enfiou a mão dentro de sua bolsa Prada. Além da carteira, chiclete de menta, uma garrafa de Smartwater e uma barra de chocolate Green & Black’s Organic Dark, havia vários batons YSL Rouge pur Couture. Pelo menos... deveria haver.
Enquanto ela procurava, tentou parecer casual, como se estivesse checando se não perdeu as chaves.
Na verdade, ela estava contando para se certificar de que ainda tinha treze tubos do batom: começando pelo da esquerda no fundo da bolsa, foi movendo para a direita. Treze era o número correto. Um, dois, três...
– Devina?
... quatro, cinco, seis...
– Devina.
Quando perdeu a conta, ela fechou os olhos e lutou contra a tentação de estrangular quem fizera a interrupção...
Sua terapeuta limpou a garganta. Tossiu. E depois engasgou.
Devina abriu os olhos e encontrou a mulher com as mãos no pescoço, parecendo que tinha engolido um McLanche Feliz da maneira errada. Foi bom ver a dor e a confusão, um pequeno show que fez Devina apertar os dedos dos pés, pedindo por mais.
Mas a diversão não podia ir mais longe. Se perdesse essa terapeuta, o que seria dela? Estavam fazendo progresso, e encontrar outra pessoa com quem sentisse uma conexão poderia tomar um tempo que ela não tinha.
Praguejando, o demônio chamou de volta seus cães mentais, aliviando a esganadura invisível que lançara sem perceber.
A terapeuta respirou fundo e olhou ao redor, aliviada.
– Eu... ah... acho que vou abrir a janela.
A mulher se levantou, alheia ao fato de que suas habilidades como psicóloga haviam acabado de salvar sua vida. As duas se encontravam cinco vezes por semana nos últimos dois meses, conversando por cinquenta minutos ao custo de 75 dólares por sessão. Graças a toda aquela baboseira emotiva, os sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo de Devina estavam ficando um pouco mais fáceis de aguentar. E, considerando como as coisas estavam caminhando na guerra contra aquele anjo Jim Heron, a terapia seria muito necessária na próxima rodada.
Devina não podia acreditar que estava perdendo.
Na batalha derradeira pela supremacia na Terra, aquele anjo vencera duas vezes. Havia apenas mais quatro almas na disputa. E se ela perdesse mais duas? Não sobraria nada dela ou de sua coleção: tudo desapareceria, aqueles objetos preciosos que juntara durante os milênios, cada qual uma valiosa lembrança de seu trabalho, estariam perdidos, perdidos, perdidos. E isso não era a pior parte. Suas crianças, aquelas gloriosas almas torturadas e presas em seu muro, seriam incorporadas pelo bem, pelos beatos, pelos imaculados.
Esse mero pensamento a deixava enjoada.
E, ainda por cima, ela tinha acabado de ser penalizada pelo Criador.
A terapeuta voltou a se ajeitar nas almofadas depois de sua busca por ar fresco.
– Então, Devina, conte o que está em sua mente.
– Eu... ah... – quando a ansiedade subiu, ela levantou a bolsa, procurando algum furo; não encontrou nenhum. – Tem sido difícil...
Nenhum dos batons poderia ter caído, ela disse a si mesma. E havia checado o número antes de sair de seu covil. Treze, um perfeito treze. Então, logicamente, estavam todos lá. Tinham de estar.
Mas... oh, Deus, talvez ela tivesse segurado a bolsa de lado e deitado um deles cair por não ter fechado o zíper...
– Devina – disse a terapeuta –, você parece muito nervosa. Pode me dizer o que está acontecendo, por favor?
Fale, disse a si mesma. Era a única maneira para escapar disso. Mesmo que contar, arrumar, checar e recontar parecessem a solução, ela gastaria milênios fazendo isso sem chegar a lugar algum. E esse novo jeito estava funcionando. Mais ou menos.
– Aquele novo colega de trabalho de que eu te falei... – ela abraçou a bolsa, segurando tudo com o corpo que assumia quando andava entre os macacos. – Ele é um mentiroso. Um completo mentiroso. Ele me enganou... e eu fui acusada de jogar sujo.
Desde que começara a terapia, ela vinha explicando a guerra contra o anjo Jim Heron em termos que um humano do começo do século XXI pudesse entender: ela e seu inimigo eram colegas em uma empresa de consultoria, e competiam pela vice-presidência. Cada alma que disputavam era um cliente. O Criador era o CEO, e os dois tinham um número limitado de tentativas para impressioná-lo. Blá, blá, blá. A metáfora não era perfeita, mas era melhor do que se revelar completamente e correr o risco de sua terapeuta perder a cabeça, ou pensar que Devina não era apenas compulsiva, mas digna de um manicômio.
– Pode ser mais específica?
– O CEO enviou nós dois para um cliente em potencial. No final, o homem nos contratou e queria trabalhar comigo. Tudo estava bem. Eu estava contente, o cliente estava... – bem, não contente. Matthias não estava nem um pouco contente, o que era mais uma razão para ela ficar satisfeita com a vitória: quanto mais sofrimento, melhor. – Estávamos cuidando do cliente, e tudo estava combinado, o contrato estava assinado, o assunto encerrado. Então fui chamada para uma reunião idiota e me disseram que teríamos que disputar o cliente de novo.
– Você e seu colega de trabalho, certo?
– Isso! – ela jogou as mãos para cima. – Quer dizer, qual é? Estava feito. Estava tudo combinado. A disputa tinha terminado. E agora temos que refazer tudo? Que merda é essa? E daí o CEO disse pra mim: “Bom, você ainda pode ficar com a comissão pelo contrato.” Como se isso compensasse tudo!
– Melhor do que perder tudo.
Devina balançou a cabeça. A mulher simplesmente não entendia. Uma vez que ela se apoderava de algo, se deixasse isso escapar, ou se alguém a roubasse, era como se uma parte de seu verdadeiro corpo fosse removida: Matthias fora arrancado de seus muros e colocado novamente na Terra.
Francamente, o poder do Criador era a única coisa capaz de assustá-la.
Além de suas próprias compulsões.
Não conseguiu controlar a ansiedade: abriu a bolsa novamente e recomeçou a contar...
– Devina, você trabalhou bem com o cliente, certo?
Ela fez uma pausa.
– Sim.
– E você possui um bom relacionamento com ele ou ela?
– Ele. Sim.
– Então você está numa posição mais vantajosa do que seu colega de trabalho, não é?
A terapeuta fez um gesto com as mãos, como se dissesse “então, qual o problema?”.
– Não tinha pensado assim – estivera irritada demais para isso.
– Você deveria. Mas, eu devo dizer, tem uma coisa que está me confundindo. Por que o CEO sentiu a necessidade de intervir? Especialmente se o cliente não apenas assinou um contrato, como também parecia satisfeito?
– Ele não aprovou algum dos... métodos... usados para assegurar o negócio.
– Métodos seus?
Quando Devina hesitou, os olhos da terapeuta rapidamente focaram o decote que a paciente usava.
– Sim, meus – disse o demônio. – Mas, qual é, eu consegui o cliente e ninguém pode criticar minha ética no trabalho: estou trabalhando o tempo todo. Literalmente. Não tenho vida que não seja meu trabalho.
– Você aprova as táticas que usou?
– É claro. Consegui o cliente, isso é tudo que importa.
O silêncio que se seguiu sugeria que a terapeuta não aprovava essa coisa de “fins justificando os meios”. Mas que se dane, isso era problema dela – e era provavelmente a razão de ela parecer um travesseiro e passar os dias escutando os problemas dos outros.
Em vez de governar o mundo inferior e ficar uma gostosa usando sapatos Louboutins...
Quando a ansiedade apertou de novo, Devina começou outra recontagem, jogando os batons um atrás do outro, da esquerda para a direita. Um, dois, três...
– Devina, o que você está fazendo?
Por uma fração de segundo, ela quase atacou de verdade. Mas a razão e um chamado para a realidade prevaleceram: as compulsões estavam quase dominando-a completamente. E não se pode ser efetivo contra um inimigo como Jim Heron quando se está presa em uma eterna ansiedade causada por objetos que se sabem perfeitamente bem que não foram perdidos, movidos ou tocados por nenhuma outra pessoa.
– Batom. Estou apenas me certificando de que trouxe meus batons.
– Certo. Bom, quero que você pare com isso.
Devina levantou o olhar com verdadeiro desespero.
– Eu... não consigo.
– Sim, você consegue. Lembre-se, o problema não são os objetos. Você deve lidar com seus medos de maneira mais efetiva e permanente do que simplesmente cedendo às compulsões. Você sabe, o alívio que consegue no final de um ritual nunca, nunca dura mais que uma fração de segundo; e nunca ataca a raiz do problema. O fato é que, quanto mais obedece às compulsões, mais fortemente elas controlam você. A única maneira de melhorar é aprender a suportar a ansiedade e repensar os impulsos como algo que você pode controlar; e não o contrário – a terapeuta se inclinou para frente, com uma seriedade de quem vai dizer algo cruel, mas para o seu bem. – Quero que você jogue um deles fora.
– O quê?
– Jogue um dos batons fora – a terapeuta se esticou para o lado e pegou um cesto de lixo cor-de-rosa. – Agora mesmo.
– Não! Deus, você está louca? – O pânico se espalhou pelo seu corpo. As palmas das mãos começaram a suar, seus ouvidos zumbiram, seus pés adormeceram. Logo, a onda se propagou: seu estômago embrulhou, o fôlego foi se perdendo, o coração batia mais rápido. Tudo isso pareceu durar uma eternidade. – Eu nunca vou conseguir...
– Você consegue e, além do mais, você precisa. Escolha a cor de que menos gosta e coloque no cesto.
– Não tenho uma cor de que eu não gosto, todos são da mesma cor: 1 Le Rouge.
– Então qualquer um vai servir.
– Não consigo... – lágrimas ameaçavam cair. – Não consigo...
– Pequenos passos, Devina. Essa é a chave da terapia cognitiva comportamental. Temos que tirar você da zona de conforto, te expor ao medo, e então te conduzir a superar o obstáculo para que aprenda que pode chegar inteira do outro lado. Faça isso muitas vezes e o transtorno vai começar a perder o controle sobre seus pensamentos e suas decisões. Por exemplo, o que acha que vai acontecer se jogar um deles fora?
– Terei um ataque de pânico. Principalmente quando chegar em casa e o batom não estiver comigo.
– E depois?
– Vou comprar outro para substituir, mas não vai ser o mesmo que joguei fora, então não vai adiantar nada. Vou só ficar mais compulsiva...
– Mas você não vai morrer.
É claro que não, ela era imortal. Contanto que ganhasse a guerra, obviamente.
– Não, mas...
– E o mundo não vai acabar.
Bem, não por causa do batom.
– Mas vai parecer que sim.
– Emoções vêm e vão. Não duram para sempre – a mulher balançou o cesto. – Vamos lá, Devina, vamos tentar. Se você achar que é muita coisa para aguentar, pode pegar o batom de volta. Mas precisamos começar a nos concentrar nisso.
Como previsto, um ataque de ansiedade começou a surgir, mas, ironicamente, foi o medo que a fez prosseguir: medo de ser dominada por esse problema que não conseguia controlar, medo de que Jim vencesse não porque era o melhor no jogo do Criador, mas porque ela não suportava a pressão; medo de nunca conseguir mudar...
Devina enfiou a mão na bolsa e agarrou o primeiro batom que encontrou. Então jogou fora. Apenas o deixou cair no cesto de lixo.
O som macio que o objeto fez ao acertar os lenços de papel dos pacientes anteriores pareceu o portão do Inferno se fechando atrás dela.
– Bom trabalho – disse a terapeuta, como se Devina fosse uma garotinha de cinco anos que tinha recitado o alfabeto. – Como se sente?
– Como se fosse vomitar – olhando para o cesto, a única coisa que a impediu de vomitar foi o fato de que faria isso em cima do batom.
– Você pode classificar sua ansiedade numa escala de um a dez?
Quando Devina disse “dez”, a terapeuta começou um discurso sobre respirar durante o pânico, blá, blá, blá...
A mulher se inclinou para frente de novo, como se soubesse que não estava sendo ouvida.
– O importante não é o batom, Devina. E a ansiedade que você sente agora não vai durar para sempre. Não vamos exigir demais de você, e vai ficar impressionada com os avanços. A mente humana pode ser reprogramada, podemos criar novos caminhos de experiência. A terapia de exposição funciona: é tão poderosa quanto as compulsões. Você precisa acreditar nisso, Devina.
Com a mão trêmula, o demônio limpou o suor da testa. Então, recompondo-se dentro de seu traje de carne humana, ela assentiu.
A mulher que parecia um travesseiro estava certa. O que Devina vinha fazendo até então não estava funcionando. As coisas estavam piorando, e os riscos só aumentavam.
Afinal, ela não apenas estava perdendo... também estava apaixonada pelo inimigo.
Não que gostasse de se lembrar disso.
– Você não precisa acreditar que isso vai funcionar, Devina. Apenas tem que acreditar nos resultados. É difícil, mas você consegue. Tenho fé em você.
Devina observou os olhos da humana e invejou a convicção da terapeuta. Inferno, uma pessoa com aquele tipo de confiança devia estar delirante... ou se apoiando em muita experiência e treinamento.
Houve um tempo em que Devina também tinha essa confiança em si mesma.
E precisava ter isso de volta.
Jim Heron provara ser muito mais do que um oponente digno e uma boa transa. E ela não podia deixá-lo manter a vantagem. Perder não era uma opção. Assim que a sessão de terapia terminasse, ela precisava voltar ao trabalho com a mente limpa e livre de qualquer besteira.
Devina fechou os olhos e se ajeitou na poltrona, apoiando as mãos nos braços estofados e enterrando as unhas no tecido aveludado.
– Como está se sentindo? – perguntou a terapeuta.
– Como se fosse superar isso de um jeito ou de outro.
CAPÍTULO 4
– Apenas me diga se ele está vivo ou não.
A enfermeira ao lado da cama simplesmente ignorou o pedido de Mels. Oferecendo uma caneta, a mulher disse:
– Se você assinar esses papéis eu passarei as receitas...
Danem-se os papéis.
– Preciso saber se o homem sobreviveu.
– Por lei, eu não posso divulgar a condição de nenhum paciente. Assine aqui para eu poder te liberar.
Leia-se: Não encha minha paciência e me deixe voltar a trabalhar.
Praguejando baixinho, Mels assinou no local indicado e guardou as duas folhas de papel e a cópia, enquanto a enfermeira partia para aterrorizar o próximo paciente.
Que noite! A boa notícia era que a polícia estava pelo menos chamando aquilo de acidente, reconhecendo que ela não tinha sido negligente ou bebido. Mas ainda havia problemas...
Observando seus papéis de alta, ela passou a vista nas notas. Concussão leve. Distensão no pescoço. Retorno com seu médico de preferência em uma semana ou mais cedo no caso de visão dupla, náusea, tontura ou piora da dor de cabeça.
O carro provavelmente sofrera perda total.
E não havia como o homem ter sobrevivido.
Com um grunhido, ela sentou, encostando-se nos travesseiros, e sua cabeça enfaixada registrou o movimento como se fosse o giro de uma bailarina. Enquanto esperava a tontura passar, ela observou suas roupas penduradas em uma cadeira de plástico laranja à sua frente. Ela pudera manter o sutiã e a calça durante os exames. A camisa, a jaqueta e o casaco estavam apenas esperando para ser vestidos de novo.
Mels não ligou para sua mãe.
A família já passara por um acidente automobilístico – e, naquele caso, a pessoa que não tinha sobrevivido era seu pai.
Então, pois é, apenas mandou uma mensagem de texto dizendo que sairia com os amigos e chegaria em casa mais tarde. A última coisa de que precisava era deixar sua mãe nervosa e insistindo em ir buscá-la no hospital, especialmente levando em consideração o que ela queria fazer agora.
Mels começou lentamente o esforço para vestir-se, embora esse atraso não tivesse nada a ver com ser uma boa paciente. Evidentemente, o choque de ter se sentido como um boneco de teste de colisão não era algo de que podia se livrar facilmente. Ela sentia-se velha e decrépita – e estranhamente aterrorizada.
Ter matado alguém... era inimaginável.
Ela enfiou os papéis na bolsa, abriu a cortina verde e encarou o enorme caos do hospital: pessoas com jalecos brancos e batas de enfermeira andavam para cima e para baixo, entrando e saindo de quartos, dando e obedecendo ordens.
Considerando que já estivera em uma colisão naquela noite, ela foi cuidadosa para não entrar no caminho de ninguém enquanto se dirigia para a saída.
Que ela não usou.
A sala de espera estava cheia de pessoas buscando cuidados médicos, incluindo um cara com um olho roxo e uma mão cheia de ataduras que sangrava muito. Ele levantou a cabeça, olhou para Mels e assentiu, como se compartilhassem uma ligação por terem começado uma briga em um bar.
Pois é, você deveria ver como o carvalho ficou depois que eu acabei com ele. Toca aqui.
Na recepção, ela se instalou no balcão e esperou até ser notada. Quando um homem se aproximou, Mels sorriu como se o assunto não fosse muito importante.
– Você pode me dizer o número do quarto daquele desconhecido que foi atropelado?
– Ei, eu te conheço. Você é repórter.
– Sim – ela enfiou a mão dentro da bolsa, pegou seu passe de imprensa e o mostrou, como se fosse um distintivo do FBI. – Você pode me ajudar?
– É claro – ele começou a digitar no teclado. – Ele foi transferido para um quarto hospitalar. Número 666. É só pegar o elevador e seguir as placas.
– Obrigada – Mels deu uma leve batida no balcão. Pelo menos, ele ainda estava respirando. – Você ajudou muito.
– Sabe, você não parece muito bem – disse o enfermeiro, fazendo um círculo em volta de seu olho.
– Noite difícil.
– Estou vendo.
A viagem até o sexto andar foi um exercício de processamento de informações, em que seu cérebro falhou miseravelmente. Para começar, ainda sentia tontura, e a subida fez seu ouvido zumbir tanto que foi preciso segurar no corrimão. Ótima ideia colocar um corrimão no elevador; afinal, gente com tontura era parte da rotina por ali. E o fato de a parede ser revestida com metal cinza fosco era outro benefício. Ela ainda não tinha se olhado no espelho, mas, pela maneira como o enfermeiro a olhou na recepção, o air bag que ela quase comera provavelmente não fizera muito bem à sua pele.
A campainha do elevador era alegre como se estivesse na Disneylândia, mas as portas se abriram tão vagarosamente que pareciam exaustas.
Seguindo as instruções, ela observou as placas e encontrou a direção, entrando em um longo e amplo corredor marcado por incontáveis portas largas. Tudo era mais quieto por lá, e ninguém na estação das enfermeiras se manifestou enquanto ela se aproximava. Melhor assim – não queria correr o risco de alguém começar a fazer perguntas, não gostar das repostas e enviá-la de volta.
O quarto ficava quase no final do corredor, e ela meio que esperava ver um policial de guarda na porta. Mas não havia nada nem ninguém. Apenas mais uma porta com uma placa amarela numerada no batente e uma superfície laminada, que parecia madeira de pinheiro.
Empurrando a porta, ela se inclinou para dentro. Sob a luz fraca, pôde ver o pé da cama, uma janela na parede mais distante e uma TV instalada no teto. O som de bipes e o cheiro de desinfetante provavam que aquilo não era um quarto de hotel – não que ela precisasse de ajuda para saber disso.
Mels limpou a garganta.
– Olá?
Quando não houve resposta, entrou e deixou a porta entreaberta. Passando pelo banheiro, parou quando teve uma visão clara do paciente.
Então levou as mãos ao rosto e cobriu a boca quando seu queixo caiu.
– Oh... meu Deus!
No pequeno apartamento acima da garagem que alugava na zona rural, Jim Heron não conseguia dormir.
Todos ao redor dormiam como pedras: o Cachorro estava ao pé da cama, suas patas tremendo enquanto sonhava com coelhos ou esquilos... ou talvez com sombras negras que possuem presas. Adrian estava sentado em um canto, com as costas contra a parede e o corpo tenso, apesar da respiração regular. E Eddie? Bom, o cara estava morto, então não era como se estivesse andando por aí em círculos.
Desesperado por um cigarro, Jim saiu da cama pelo lado errado, para evitar perturbar o Cachorro, e pegou seu maço de Marlboro. Antes de sair, se aproximou para checar Adrian.
Sim. Dormindo sentado.
Com uma adaga de cristal na mão, caso alguém viesse atrás de seu amigo.
Pobre coitado. A perda de Eddie fora um duro golpe na equipe... mas fora particularmente ruim para aquele maluco tatuado cheio de piercings que estava em vigília desde o dia da morte.
Por que será que, quando um homem tenta esconder sua dor, parece ser muito mais triste do que se estivesse em qualquer tipo de histeria e choradeira?
E, em uma nota não relacionada, Jim estava estranhando trabalhar com parceiros.
No tempo em que era um assassino das Operações Extraoficiais, ele agia estritamente sozinho. Agora tanta coisa tinha mudado, desde seu chefe e o tipo de trabalho, passando por suas armas – e Eddie Blackhawk era quem mostrava o caminho, ensinando o que precisavam saber, acalmando ele e Adrian quando os dois discutiam, sendo a voz da razão em situações nas quais parecia não haver lógica... como quando se está diante do próprio cadáver. Ou quando se luta contra um demônio que gosta de usar Prada e que tem uma queda por homens que a rejeitam. Ou quando se leva nas costas o futuro das boas almas, e das más, e de todas aquelas que já existiram ou que iriam existir.
Tipo de coisa que fazia a pessoa querer trocar de emprego com o cara que frita hambúrgueres na lanchonete.
Praguejando, Jim andou até o sofá, pegou uma jaqueta de couro e cobriu as pernas de Adrian. O outro anjo grunhiu e se ajeitou no chão, mas continuou debaixo da jaqueta. Ótimo – o objetivo era manter o cara aquecido, não conversar com ele.
Jim não estava a fim de conversar com ninguém.
Mas isso não era novidade.
Ele pisou no patamar no topo da escada e o ar frio percorreu a pele nua de seu peito. Antes de ter um colega de quarto e um cão, ele sempre dormira nu. Agora usava um moletom. O que o ajudava era o fato de que as noites de abril eram muito frias em Caldwell.
Não que ele dormisse muito.
O maço de Marlboro ainda estava embrulhado e Jim o bateu contra a palma da mão enquanto fechava a porta silenciosamente. Uma das vantagens de ser ao mesmo tempo imortal e corpóreo é que você não precisa se preocupar com câncer, mas a nicotina faz efeito em seu sistema nervoso.
E também não precisa procurar um isqueiro no bolso.
Ele rasgou a embalagem, retirou um cigarro, colocou-o nos lábios e levantou a mão. Quando seu dedo indicador se iluminou ao seu comando, ele pensou em Eddie novamente – e, como de costume, desejou matar Devina.
Pelo menos, os caras do bem ainda estavam com vantagem de dois a um na guerra. Se conseguisse mais duas vitórias, tudo terminaria: ele livraria a Terra das garras do demônio, manteria sua mãe segura na Mansão das Almas... e tiraria sua Sissy do Inferno.
Não que ela fosse sua.
Ele exalou o ar. Não tinha total certeza sobre Sissy, mas as coisas tinham de funcionar assim, não é? Se os anjos ganhassem e Devina deixasse de existir, ele poderia ir lá embaixo e livrar aquela pobre garota da prisão. O Inferno seria dele para fazer o que quisesse.
Certo?
Com essa deixa, começou a imaginar quem seria a próxima alma.
Pensou em seu novo chefe e ouviu a voz com sotaque britânico em sua cabeça. O som macio orgulhoso das palavras de Nigel ecoava ao redor, irritando-o: Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
– Muito obrigado – murmurou enquanto a fumaça escapava de seus lábios junto com a respiração. – Ajudou muito, cara.
Era completamente injusto que sua inimiga soubesse quem era o alvo e ele não.
Que merda.
Na última rodada, ele enganara Devina para conseguir a informação, mas ela não cairia nessa de novo – diga o que quiser sobre aquele demônio, mas ela não era uma loira burra, nem de longe. E isso significava que lá estava ele de novo, emperrado em ponto morto, enquanto o inimigo com certeza saía na frente.
Esse era precisamente o mesmo problema que ele tivera na disputa pela alma de seu antigo chefe. Durante todo o tempo, ele pensou que era outra alma que estava em jogo, mas no fim era Matthias quem estava sendo disputado.
Mas já era tarde, e o filho da puta havia feito a escolha errada.
Vencedora: Devina.
Nesse ritmo, o jogo estava destinado a ser injusto, enquanto Devina continuasse interagindo diretamente com as almas. De acordo com as regras, Jim era o único que poderia fazer isso, mas, na prática, ela fazia parte do corpo a corpo tanto quanto ele. Naturalmente, Nigel, o chefe dos escoteiros, estava convencido de que ela seria punida por pisar fora de seus limites – e talvez até fosse. Mas quem poderia saber quando e onde?
Nesse meio tempo, Jim não tinha outra escolha além de ficar esperto e torcer para não estragar tudo.
Ele precisava vencer. Por sua mãe... e por Sissy.
Ele tragou e exalou outra vez, observando a fumaça girar no ar frio e subir até desaparecer. Ao piscar os olhos, viu uma imagem de Sissy Barten, aquela linda jovem, pendurada de cabeça para baixo em uma banheira de porcelana branca, o sangue vermelho vivo manchando seus cabelos dourados, a pele marcada com símbolos que ele nunca vira antes, mas que Eddie tinha entendido muito bem...
O som discreto de algo raspando o fez perder a linha de raciocínio, então ele virou para trás e abriu a porta do apartamento. O Cachorro saiu mancando com o pelo todo desgrenhado – o que era seu estado natural, e não consequência de ter dormido em uma posição esquisita.
– Ei, amigo! – Jim disse com a voz macia enquanto fechava a porta. – Você precisa ir lá fora?
O pobre e velho cão tinha dificuldade com as escadas, então Jim geralmente o carregava até o chão. Quando ele se abaixou para pegá-lo, o Cachorro prontamente se sentou: era sua maneira de dizer que queria ser apanhado e carregado.
– Sim, senhor.
O animal, que Jim sabia ser mais do que um vira-lata qualquer, pesava quase nada em seu braço, e era quente como um bico de Bunsen.
– Eu disse pra ela pensar em você – Jim disse, segurando o cigarro longe do Cachorro, só para o caso de estar errado quanto ao cão ser especial. – Eu disse pra Sissy pensar em você mastigando minhas meias. Quero que ela imagine você brincando na grama fresca quando as coisas ficarem...
Não podia terminar aquele pensamento em voz alta.
Em seu tempo de vida, Jim fizera muitas coisas feias, horrorosas, para pessoas feias e horrorosas – o que significava que há muito tempo já se tornara durão em relação às suas emoções...
Bom, na verdade, isso tinha acontecido ainda quando era adolescente. Naquele dia, quando tudo mudou para sempre.
No dia em que sua mãe foi assassinada.
Dane-se. São águas passadas.
O fato era que a ideia de Sissy mergulhada no Poço das Almas do demônio era suficiente para fazer até um soldado endurecido pela guerra perder a cabeça.
– Eu disse a ela... pra pensar em você, quando sentisse que não conseguiria aguentar mais.
A pequena cauda do Cachorro balançou para um lado e para o outro, como se Jim tivesse feito a coisa certa.
É, esperava que ela estivesse pensando no Cachorro lá embaixo, e que isso lhe desse um pouco de alívio.
Pois não havia mais nada.
– Preciso encontrar a próxima alma – sussurrou Jim antes de fumar outro trago do cigarro. – Preciso saber quem é o próximo na lista. Precisamos vencer, Cachorro.
Aquele nariz frio e molhado encostou em seu rosto, e ele teve o cuidado de soprar a fumaça por cima do ombro.
O fato de Nigel dizer que Jim conhecia a alma não significava absolutamente nada. Ele conhecera muita gente durante sua vida.
Podia apenas rezar para que fosse alguém que ele pudesse trazer para o seu lado.
CAPÍTULO 5
Matthias percebeu o momento em que não estava mais sozinho. A luz ao redor se intensificou, significando que uma porta se abriu, e isso não acontecia por acaso.
Sua mão direita se fechou por reflexo, como se segurasse uma arma. Mas isso era tudo o que podia fazer. Seu corpo estava imóvel por causa da dor, como se uma corrente o prendesse onde quer que ele estivesse deitado... era uma cama. Sim, estava numa cama, e o som ambiente cheio de bipes lhe informava que tipo de cama. Um hospital. Ele ainda estava no hospital.
Será que nunca iria se recuperar da...
Seus pensamentos empacaram nesse ponto.
Não havia nada além de um buraco negro.
Não fazia ideia da razão de estar ali. Nenhuma pista de por que seu corpo doía tanto. Não... Deus, sabia apenas que seu nome era Matthias, e nada mais.
O pânico o fez arregalar os olhos. Havia uma mulher ao pé da cama, aterrorizada, com as mãos no rosto e uma expressão de completo choque. Um de seus olhos estava roxo e sua testa estava enfaixada. O cabelo preto estava preso para trás. Olhos bonitos. Alta... ela era alta...
Olhos lindos, na verdade.
– Eu sinto muito – ela disse, com a voz rouca.
Como é?
– Sobre...? – a voz dele estava áspera, a garganta doía. E um de seus olhos não funcionava direito.
Não, o olho estava completamente inutilizado. Perdera metade da vista no passado. Foi isso mesmo, quando ele era...
Franziu a testa e seus pensamentos caíram no abismo novamente.
– Eu te atropelei. Sinto muito... não enxerguei você. Estava tão escuro, e você apareceu na rua antes que eu pudesse frear.
Ele tentou estender a mão, em um impulso para acalmá-la que ultrapassou a dor e a confusão.
– Não foi sua culpa... não... sem lágrimas. Venha...
Por algum motivo, ele não podia acreditar que alguém choraria por ele, agora ou em qualquer tempo. Não era o tipo de homem que inspira reações assim. Não ele. Mas por que isso era assim, ele não sabia...
A mulher se aproximou um pouco, e Matthias observou com seu olho bom enquanto ela estendia a mão quente e macia... até tocar a palma dele.
O contato o fez sentir aquecido por todo o corpo, como se tivesse deitado em uma banheira quente.
Engraçado, ele nem tinha percebido que sentia frio até ela o tocar.
– Estou apertando sua mão... – ele disse, com a voz entrecortada. – Caso não consiga perceber.
Ela foi gentil e não comentou o fato de que claramente não sentia sua tentativa de retribuir o contato. Mas ele estava se esforçando. E quando seus olhos se encontraram, por alguma razão, Matthias quis dizer que nem sempre estivera quebrado. Um dia, não faz muito tempo, ele fora capaz de levantar-se orgulhoso, correr longas distâncias e usar seus músculos. Porém, agora ele era como um colchão com pulsação cardíaca.
Mas o motivo disso não fora o atropelamento. Não, ele já estava quebrado havia um bom tempo.
Talvez sua memória estivesse voltando.
– Sinto muito – ela disse novamente.
– Foi assim que você... – ele fez um gesto mostrando o próprio rosto, mas isso a fez focar ainda mais nele, e a maneira como estremeceu sugeria que para ela era difícil olhar o quanto ele estava feio. – Você também se machucou.
– Ah, estou bem. A polícia já veio conversar com você?
– Acabei de acordar. Não sei.
Ela desfez o contato entre eles e enfiou a mão em uma bolsa que mais parecia uma mala.
– Aqui. Este é o meu cartão. Eles conversaram comigo enquanto eu estava sendo medicada, e eu disse que aceito toda a responsabilidade.
Ela colocou o cartão na frente de seu rosto, mas sua visão se recusou a focar.
E Matthias não queria olhar para nada além dos olhos dela.
– Qual é o seu nome?
– Mels Carmichael. Na verdade, é Melissa – ela tocou o próprio peito. – As pessoas me chamam de Mels.
Quando ela deixou o cartão na mesa ao lado, ele franziu a testa, mesmo isso fazendo sua cabeça latejar.
– Como você se machucou?
– Me ligue se precisar de alguma coisa. Não tenho muito dinheiro, mas...
– Não estava usando cinto de segurança, não é?
A mulher olhou ao redor como se já tivesse ouvido isso da polícia.
– Ah...
– Você devia usar o cinto...
A porta abriu bruscamente, e a enfermeira que entrou parecia como se fosse a dona do lugar.
– Estou aqui – ela anunciou enquanto caminhava até os aparelhos que ficavam atrás da cama. – Ouvi o alarme.
A primeira coisa em que Matthias reparou foram os grandes peitos da mulher. Depois, na cintura pequena. E nos longos cabelos castanhos, macios como um edredom e brilhantes como porcelana.
Mas aquela imagem fez sua pele se arrepiar. Ao ponto de ele tentar se sentar para poder sair dali...
– Shh... está tudo bem – sorrindo, a enfermeira quase botou Mels para fora. – Estou aqui pra ajudar.
Olhos negros. Olhos negros que o lembravam de alguma coisa, em algum lugar... uma prisão onde você ficava sufocado pela escuridão, incapaz de se livrar...
A enfermeira se inclinou e seus seios se apertaram um contra o outro.
– Vou cuidar de você.
– Não – ele disse com veemência. – Não, você não vai...
– Ah, sim, eu vou.
Sentia seu inconsciente tentando avisá-lo sobre alguma coisa, algo que não conseguia distinguir com clareza, mas que enviava sinais como um caminho de pólvora antes de uma bomba explodir. Mas não encontrou nada específico. Suas memórias pareciam bases camufladas em um horizonte visto através de óculos de visão noturna – ele sabia que o inimigo estabelecera bases em algum lugar, mas era impossível visualizar qualquer detalhe.
– Se você não se importar – a enfermeira disse para Mels –, eu preciso cuidar do meu paciente.
– Ah, sim. Claro. Eu vou... é, vou embora – Mels se esticou sobre a mulher para poder enxergá-lo. – Bom... falo com você mais tarde.
Matthias também precisou se desviar da enfermeira, mudando a posição do corpo e fazendo os músculos da barriga se contraírem.
A enfermeira bloqueou sua visão.
– Feche a porta quando sair, certo? Obrigada.
E então ficaram a sós.
A enfermeira sorriu e encostou o quadril na beira da cama.
– Que tal eu te dar um banho?
Parecia uma ordem, não um pedido. E, cara, de repente ele sentiu-se nu – e não de um jeito bom.
– Não estou sujo – ele disse.
– Sim, você está – ela colocou a mão em seu braço, bem no lugar onde as sondas se conectavam com a veia. – Você está imundo.
Do nada, seu corpo começou a ganhar força: a energia invadia e inflava seus músculos com saúde, como se ele tivesse passado por dias de descanso, noites bem dormidas e muita comida.
Estava vindo dela, ele percebeu. Mas... como isso era possível?
– O que você está fazendo comigo?
– Nada – a enfermeira sorriu. – Se sente diferente?
Olhando em seus olhos negros, a escuridão parecia tão irresistível quanto repulsiva – e ele não saberia dizer quanto tempo ficaram ali daquele jeito, ligados pela mão dela, que transferia o que parecia uma droga miraculosa.
– Eu conheço você – ele pensou em voz alta.
– É engraçado quando a gente sente isso com uma pessoa desconhecida.
O poder que entrava nele parecia maligno e muito familiar.
– Eu não quero...
– Não quer o quê, Matthias? Não quer se sentir melhor, ficar mais forte, viver pra sempre? – ela se inclinou para ainda mais perto. – Está me dizendo que não quer ser um homem de novo?
Os lábios dele começaram a se mover, mas nenhum som saiu. Uma lentidão se apoderou de seu corpo quando ela retirou a mão. Desorientado e confuso, ele tentou se levantar, mas parecia que, afinal, fora mesmo drogado.
– Vou te dar um banho agora – ela disse com um olhar malicioso e um sorriso que faziam parecer que estava falando de sexo oral e não de esponja e sabonete.
Quando ela se aproximou da pia, Matthias aspirou profundamente, suas costelas se expandindo sem dor, e conseguiu expirar sem dificuldade. Todas as dores desapareceram, dando a impressão de que fazia anos que seu corpo não apresentava nenhuma complicação. Talvez séculos?
– Que dia é hoje? – ele murmurou, enquanto ela enchia uma bacia.
A enfermeira olhou por cima do ombro.
– É mesmo! Você está com amnésia.
Um momento depois ela voltou à cama, trazendo junto a mesa de rodinhas. Quando ela abaixou o lençol até a cintura dele e desamarrou o avental do hospital, Matthias levantou a cabeça pesada e olhou para si mesmo. A parte de cima não estava tão ruim, apenas uma cicatriz aqui e outra ali. Mas a parte de baixo estava arrasada.
Sentiu a esponja macia e quente.
Enquanto a enfermeira massageava seu peito, ele observou a maciez e a luminosidade da pele dela: era como uma pintura, e seu cabelo era mais espesso e voluptuoso do que parecia ser possível. Seus lábios pareciam até partes de uma fruta: molhados, com a promessa de doçura.
Eu não a quero, ele pensou.
Mas não conseguia se mover.
– Você precisa ganhar peso – ela comentou, passando a esponja em seu peito. – Está muito magro.
A esponja foi descendo cada vez mais, demorando-se na barriga: os cuidados estavam mais para de uma amante do que de uma enfermeira. Com súbita clareza, Matthias lembrou que houve um tempo em que ela poderia ter se impressionado – as mulheres que ele contratava para o exercício sexual sempre ficavam animadas com seu corpo...
Espere um pouco, isso realmente estava acontecendo?
Quando ela começou a baixar o lençol ainda mais, Matthias a fez parar:
– Não, pare.
– Sim, continuo.
Com os olhos dela presos aos seus, a enfermeira afastou a mão dele e arrancou o resto da roupa de cama. A violência do ato o fez lembrar de algo lá no fundo de sua mente... mas não sabia o quê.
– Fiz você lembrar de algo? – ela disse, mesmo sabendo bem a resposta. De alguma maneira... ela sabia que ele gostava de coisas perigosas. – Fiz? Matthias.
– Talvez – de repente sua voz parecia mais forte, mais profunda...
– E agora?
Ela o tocou naquele lugar que definia sua masculinidade: a esponja raspou seu pênis de leve.
Quando ela lambeu os lábios com volúpia, ele teve de rir alto. Seja lá qual fosse o seu motivo para quebrar todas as regras, a enfermeira não chegaria a lugar nenhum – o que resolveria o problema de ele não querer aquilo. Ela podia ficar nua e montá-lo; aquele pedaço mole de carne não se levantaria de jeito nenhum.
Mesmo com amnésia, sabia disso, da mesma maneira que sabia que não enxergava com um dos olhos. Era um fato, não uma lembrança.
– Minha memória não é a única coisa que perdi – ele disse secamente.
– É mesmo?
Quando ela massageou onde não deveria, Matthias deu um salto. Bom, mas a impotência não significava que você não sentia nada. Significava apenas que não podia fazer nada a respeito...
O fluxo de poder voltou a se apoderar dele, desta vez mais forte. E com um gemido, ele se arqueou, automaticamente levantando o quadril até a fonte do prazer.
– Isso mesmo – ela disse suavemente. – Sinta meu toque. Estou dentro de você.
O desejo sexual há muito esquecido explodiu por todo o corpo de Matthias; a agressividade e a necessidade de penetrar algo que ele não sentia há muito tempo. Deus, lembrar-se de que era de fato um macho, e não algum doente andrógino...
Oh, droga, isso era bom. Muito... bom.
– Olhe pra mim – ela ordenou enquanto trabalhava em seu pênis. – Olhe para mim.
Ele ficou tão distraído pela novidade que quase esqueceu quem a proporcionava, e a visão dela acabou drenando a sensação para longe: o que se tornou impotente agora foram suas emoções, mesmo que o corpo funcionasse plenamente. Ela era linda, mas... era uma beleza cheia de veneno.
– Você não gosta disto, Matthias?
Não, ele não gostava. Não gostava mesmo.
– Nem um pouco.
– Mentiroso. Precisamos terminar o que começamos, você e eu. Sim, precisamos.
Devina entrou na loja Saks Fifth Avenue no shopping Caldwell Galleria perto das cinco da manhã. Passou pelas portas de vidro e caminhou até um mostruário com manequins que vestiam tons pastéis. Ela posou junto deles por um momento, arqueando as costas e sentindo os seios apertarem o tecido da blusa sob o casaco.
A primavera estava no auge, e isso era uma boa notícia para suas coxas.
Já que estava ali, talvez pegasse algumas coisinhas.
Com uma febre de compras correndo por suas veias, ela apareceu atrás do balcão e, com um aceno das mãos, desativou os detectores de movimento. Por um segundo, pensou em deixar as câmeras de segurança ligadas, só por diversão.
Nada mais divertido do que ter uma plateia – mesmo que fosse apenas um humano gorducho sentado em uma sala de segurança ao final de um turno de trabalho durante o qual provavelmente só dormira.
Porém, ela estava ali por uma razão muito séria.
Seus sapatos de salto faziam barulho no chão de mármore, e ela gostava daquele som ecoando: pisou mais forte para que seu domínio sobre o vazio alcançasse todas as direções. Deus, ela adorava aquele cheiro no ar: chão polido, perfume, colônia... e riqueza.
Passando pelas bolsas de grife penduradas na parede, ela checou os estandes da Prada, Miu Miu e Chanel. As bolsas pareciam lindas mesmo sob o brilho fraco das luzes de segurança, e ela quase engasgou quando encontrou uma Gucci. Atravessando como um fantasma pelo painel trancado, agarrou uma bolsa de pele de cobra verde-escuro e continuou.
Fora sexo, pensou Devina, lojas de departamento de luxo proporcionam a melhor sensação que existe: milhares e milhares de metros quadrados cheios de coisas, tudo bem organizado, etiquetado e catalogado. E protegido.
Era um completo orgasmo para pessoas obsessivo-compulsivas.
Então precisava ter cuidado. Estava sentindo uma ligação surgir entre ela e todas aquelas mercadorias e, se isso acontecesse, havia o perigo de criar uma sensação de posse sobre aquelas preciosidades. E isso não seria bom para ninguém. Ela teria de matar os humanos que entrassem ali para fazer compras, e isso seria exaustivo.
Mas toda aquela organização a fez pensar que poderia usar seu notebook Lenovo e entrar para a era digital com suas próprias coleções.
Talvez o próximo virgem que sacrificaria para proteger seu espelho seria um nerd. Depois ela poderia reanimá-lo e fazê-lo trabalhar para si.
Afinal, havia muitos programadores de computador por aí que não conseguiam nem chegar perto de uma mulher. Seria muito fácil.
Entrando na parte central do primeiro andar, ela encontrou os balcões de maquiagem: o balcão da Chanel com sua conhecida maquiagem preta e brilhante, o da Lancôme cheio de recipientes de vidro... e o da Yves Saint Laurent, com muitos detalhes dourados ao redor dos mostruários.
Indo para trás do balcão, ela abriu o cadeado da prateleira que estava ao chão, e, enquanto abaixava e se apoiava na ponta dos pés, sua mão iluminou o caminho, lançando luz sobre as pequenas etiquetas grudadas nas embalagens.
A etiqueta 1 Le Rouge foi fácil de achar. Ela pegou um pacote, abriu a caixa e retirou o brilhante tubo de metal. Lindo, tão lindo, novinho em folha, intocado. Ela quase estremeceu quando girou e expôs a perfeita coluna de batom vermelho.
O perfume, delicado e com toques florais, fez Devina revirar os olhos.
A terapeuta estava certa: o ataque de pânico não durou para sempre naquele consultório, e quando Devina continuou com seus afazeres mais tarde, a ansiedade de ter jogado o batom fora acabou sendo esquecida enquanto ela dava atenção a outras coisas. Porém, a sensação ressurgiu quando ela voltou para seu espaço privado e sentou em frente ao espelho, pronta para descer até seu muro e aproveitar um pouco de tempo sozinha com suas crianças.
Entram os problemas.
Seus pensamentos rapidamente saíram de controle, surgiam imagens de um compactador de lixo e pilhas enormes e mal cheirosas de dejetos em grandes aterros desolados, que a faziam querer chorar.
Devina poderia ter voltado para pegar aquele batom específico, mas queria honrar a religião da terapeuta: tornar-se obcecada em conseguir de volta aquele batom, sem se importar com as consequências, seria voltar também para seu ciclo vicioso.
Mas ela não podia trilhar esse caminho o tempo todo – e por isso estava na loja e não no consultório, e agora tinha um novo e lindo batom para substituir aquele que sacrificara em nome do autoaperfeiçoamento.
Havia mais cinco batons da cor que gostava, todos empilhados formando uma bonita pirâmide. Ela esticou a mão, com vontade de pegar todos, para servirem de reservas dos reservas, mas impediu a si mesma. Fechou a prateleira. Teletransportou-se para longe.
Saiu de lá orgulhosa de si mesma.
Fim do intervalo; hora de voltar ao trabalho.
Voltando à vitrine pela qual entrara, parou em frente a um dos manequins. A coisa usava uma peruca loira e vestia uma roupa florida que Devina nunca usaria, nem morta.
Mas, então, começou a imaginar o que Jim Heron pensaria se a visse vestindo aquilo.
Sem dúvida fazia seu tipo: feminina, bonita, nada muito revelador. Modesta.
Aquele cretino. Enganador mentiroso.
Naturalmente, o fato de tê-la enganado tão bem apenas o deixava mais atraente.
Devina franziu a testa quando a voz da terapeuta surgiu em sua mente. Terapia cognitiva de comportamento... reprogramar o cérebro por meio de experiências...
O demônio se aproximou e passou a mão pelos cabelos falsos, aqueles longos e lisos fios amarelos.
Sissy Barten, a queridinha de Jim, tinha cabelos iguais àqueles. E teria adorado aquele vestido. Teria se mantido ao longe e esperado Jim se aproximar, nunca se jogaria nele, manteria sempre aquele jeitinho virginal.
O que era suficiente para fazê-la querer matar os dois – e com aquela garotinha estúpida seria a segunda vez, pois já tinha rasgado sua garganta na banheira.
Devina começou a sorrir. E então riu.
Com um rápido movimento, arrancou a peruca, deixando o manequim careca, e saiu através do vidro.
CAPÍTULO 6
Tinha de ser um sonho, não é?
Adrian tinha de estar sonhando. Mas, caramba, tudo parecia real, desde o sofá de veludo sob o seu traseiro, a cerveja gelada em sua mão, até a batida visceral do som na boate.
Estava com medo de virar a cabeça. Medo de descobrir que estava ali sozinho naquele lugar barulhento e desesperador, cheio de pessoas vazias iguais a ele.
Se estivesse sozinho, então Eddie estava mesmo morto.
Deu um gole na cerveja, preparou-se e então virou.
Adrian lentamente abaixou a garrafa, exalando todo o oxigênio para fora de seus pulmões.
– E aí, cara? – ele sussurrou.
Os olhos vermelhos de Eddie se viraram.
– Ah... oi – o cara se ajeitou no assento. – Escute, você tá bem?
– Sim, é só que...
– Por que tá olhando pra mim desse jeito?
– Senti sua falta – Ad disse com a voz grave. – Achei que nunca mais ia te ver.
– Só porque fui até o banheiro? – Eddie sorriu. – Geralmente, eu volto de lá.
Ad esticou a mão, sabendo que um toque provaria de que lado estavam...
Eddie franziu a testa e se inclinou para trás, como se Ad tivesse revelado um par de chifres.
– O que há de errado com você?
O rosto de Eddie parecia exatamente o mesmo: a pele bronzeada pelo sol, um vestígio de barba, aqueles olhos avermelhados estavam abertos para o mundo, nem desconfiados e nem ingênuos, e uma pesada trança que percorria as costas musculosas.
– Eu não sei – disse Ad esfregando o rosto.
– Quer ir embora?
– Deus, não.
– Certo – aqueles olhos vermelhos voltaram-se para a multidão. – Então, você vai me forçar a transar de novo?
Ad riu alto.
– Certo. Foi isso que aconteceu. Claro.
– Jogando mulheres para cima de mim...
– Eu nunca joguei...
– Escolhendo as que sabe que vou gostar...
– Bem, isso eu fiz...
– Arruinando minha virtude.
Quando o cara deu outro gole, Ad ficou sério.
– Ninguém poderia fazer isso.
– É, você tem razão. Antes de me tornar um anjo, eu era uma virgem imaculada.
– O que explicaria esse cabelo todo.
– Não, o cabelo me faz parecer gostosão.
Ad riu novamente e se recostou no sofá sentindo uma súbita injeção de energia percorrer seu corpo. Era uma sensação de que a vida voltara ao normal, que a tragédia não acontecera, que tudo voltara à maneira como deveria ser; era um alívio tão grande que, mesmo sentado, ele sentia como se estivesse voando. Com uma pontada de otimismo, seus olhos percorreram a multidão. Seu radar para mulheres voltava a funcionar e sua rara felicidade transformava periguetes em modelos internacionais.
– Está vendo alguma coisa que te agrade? – Eddie perguntou.
– Se não fosse por mim, você nunca conseguiria uma transa.
– Sabe, eu não acho que isso seja verdade.
– Você é sincero demais.
– Droga.
Ah, sim, aquela ruiva serviria, Ad pensou. E ela estava junto com uma morena...
Franziu a testa e ficou tenso. Havia alguém ao redor, no canto mais afastado, observando-os das sombras.
– Tá na hora – disse Eddie. – Ou fazemos isso agora, ou pedimos outra rodada. Ad? Olá?
Adrian chacoalhou a cabeça.
– Sim... claro.
Seu melhor amigo lhe lançou um olhar desconfiado novamente.
– O que há de errado com você, cara?
Boa pergunta, pensou enquanto se levantava.
– Vou ver o que posso pescar por aí.
– Sem pressa... só não demore muito.
– Isso não é uma contradição?
– Não quando se trata de você.
Os dois riram um pouco. E então Ad se concentrou nas duas mulheres. Quando se aproximou da ruiva e da morena, elas responderam com uma previsível risadinha, nada comparado com os orgasmos que resultariam daquele encontro.
– Meu nome é Adrian – ele disse. Seu lento sorriso fez as mulheres arregalarem os olhos e ajeitarem suas poses: peito levantado, barriga para dentro, pernas esticadas para expor as coxas.
– Gosto do seu perfume – ele disse, inclinando-se para perto do pescoço da ruiva.
Na verdade, não tinha sentido o cheiro ainda, e nem se importava.
Quando puxou o ar, ele congelou. Aquele cheiro. Era...
– Que bom que gostou – ela disse, enquanto acariciava as costas dele até chegar em seu traseiro. – Escolhi exatamente pra alguém como você.
Adrian se afastou, seu cérebro doía. Ou talvez fosse seu peito.
– Certo. Bom.
Olhou por cima do ombro. Eddie estava no sofá, todo espreguiçado, mas totalmente atento, como se estive pronto para o sexo.
Ou seja, estava normal.
Adrian assentiu na direção dele.
– Trouxe um amigo. E você?
– Minha amiga tem namorado – murmurou a ruiva, como se isso fosse um defeito.
– Desculpe – disse a outra mulher.
Como se isso importasse.
– Certo, só você então. Consegue aguentar os dois?
Quando a garota assentiu como se tivesse ganhado na loteria, ele tomou sua mão, e o perfume dela os seguiu, fazendo Ad desejar que a solteira fosse a morena, e que fosse aquela Jessica Rabbit com maquiagem gótica quem tivesse namorado. Mas não dava para voltar atrás – seria trabalhoso demais achar outra candidata e, além disso, o que fariam não era nada permanente. Nunca era permanente.
Mas que droga de perfume de flores – dava até arrepios.
Quando chegaram no sofá, a ruiva foi se jogando no meio, cobrindo tanto as pernas dele como as de Eddie. E, como ela acabou de frente para o outro anjo, Eddie começou a beijá-la intensamente.
Para um cara que não sabia se aproximar de mulheres, ele tinha um apetite e tanto.
Enquanto Ad assistia, e impulsionava seu quadril e peito contra o corpo da mulher, pensou que era incrível o poder que um pesadelo pode ter. Era como se toda aquela merda que ele imaginara sobre Eddie tivesse realmente acontecido: aquele lacaio do demônio aparecendo do nada e rasgando o anjo com uma lâmina, tirando a letra I da palavra imortal. E então a morte, no saguão daquele banco, não muito longe dali. E depois o sofrimento de Adrian, a sensação de ter perdido toda a razão de viver...
Adrian franziu a testa e se perguntou por que falava consigo mesmo como se aquilo realmente tivesse acontecido...
A ruiva se arqueou e abriu as pernas, claramente o convidando-o para brincar no parquinho. E quando ele obedeceu, Eddie passou a trabalhar em seus peitos, baixando um pedaço da blusa, de forma mais agressiva do que o normal, e expondo um par de seios menor do que aparentava.
Quando Adrian estava prestes a mergulhar a mão em território inexplorado, a garçonete apareceu trazendo novas garrafas. Parecia acostumada com aquele showzinho, pois nem piscou ao servir a cerveja.
– Eu pago – disse Ad, tirando a carteira do bolso da calça e entregando uma nota de vinte. Quando a garçonete foi embora, ele olhou para a cerveja, e então virou imediatamente para Eddie. – Coors Light? Que merda é essa?
O outro anjo parou o beijo e deu de ombros.
– Estou controlando meu peso.
Ad revirou os olhos e voltou ao trabalho com o prato principal. Subindo as mãos debaixo da saia curta, ficou surpreso ao descobrir uma calcinha com a resistência de vigas de aço e a elasticidade de uma tenda do exército. Que diabos? Bem, ele pensou, uma calcinha modeladora era mais barata do que uma sessão de lipo.
O perfume voltou a invadir seu nariz, sugerindo que, afinal, talvez não viesse da mulher.
Olhou ao redor, mas não enxergou nada fora do comum.
– Acho que você deveria ser o primeiro – disse Eddie, enquanto brincava com aqueles seios... que agora pareciam meio caídos.
E aquele cabelo. Antes era volumoso e ondulado, agora parecia um pouco crespo.
A mulher sorriu, revelando dentes tortos.
– Vai, Adrian... transa com ela – na escuridão, os olhos de Eddie pareciam tudo menos brilhantes. – Quero assistir vocês.
A mulher tomou a mão de Ad e a colocou de volta entre suas pernas, esfregando a si mesma contra sua palma e dedos...
No meio da multidão, uma pessoa surgiu: uma figura alta e orgulhosa, vestindo um roupão branco. Quando se aproximou, o cheiro de flores ficou mais forte e tomou todo o ar ao redor...
Eddie.
Era o Eddie real, de pé ali na sua frente, uma presença verdadeira em meio a uma multidão de mortos vivos.
– Ah, que merda! Justo agora que as coisas estavam ficando interessantes!
Ad virou a cabeça bruscamente. Devina estava ao seu lado na outra ponta do sofá, pela primeira vez mostrando sua forma verdadeira: era um cadáver animado, a carne perpetuamente caindo dos ossos, a grotesca palma apodrecida passeando pelos seios da ruiva. A expressão do demônio mostrava irritação, seu queixo e lábios estavam apertados ao máximo.
Adrian gritou e tentou se levantar rapidamente, mas a ruiva segurou sua mão no lugar – e, enquanto ele lutava contra sua imensa força, ela também revelou sua verdadeira aparência: outro corpo decrépito, a ilusão de beleza sumindo como se não fosse mais possível sustentá-la.
Enquanto ele tentava se desvencilhar, uma mancha negra começou a subir ao longo do braço, primeiro nos dedos, depois nos pulsos, seguindo seu caminho para o cotovelo.
Gritando alto, ele se sacudiu violentamente, mas estava preso como uma mosca em uma teia de aranha, como um rato em uma ratoeira, como um...
Eddie, o verdadeiro, aquele que estava morto, quebrou aquela conexão com um simples toque, não em Ad, mas na ruiva: aparecendo atrás deles de repente, apenas se inclinou e encostou o dedo iluminado no ombro do monstro. Puff! Ela simplesmente sumiu.
Enquanto Devina xingava o anjo, Adrian se libertou: seu corpo caiu para trás do sofá, com os olhos fixos em Eddie enquanto o coração se partia novamente por causa da perda.
– Vá se foder! – Devina gritou para o anjo.
O rosto de Eddie, aquele rosto esperto, gentil e maravilhoso, não mostrou reação ao insulto. Ele apenas acenou com a cabeça para a garrafa de cerveja Coors e disse:
– Na sua condição, eu estaria preocupado com muitas outras coisas mais importantes do que meu peso.
Mais xingamentos vieram, mas Devina não fez nada além disso – era de se imaginar o que Eddie tinha realmente feito com aquele dedo luminoso do E.T.
O outro anjo observou Ad por um longo tempo, como se sentisse ainda mais falta do amigo vivo.
– Nunca estarei longe – disse Eddie com um sussurro.
– Ah, merda... não vá embora – murmurou Ad. – Fique aqui.
– Que comovente – os olhos negros de Devina estavam furiosos. – Você quer dar um beijinho antes de ir embora?
Eddie começou a se mover como se fosse uma estátua em uma esteira rolante, seu corpo paralisado sendo puxado através da multidão, o perfume de flores se desvanecendo.
– Eddie! – quando Adrian levantou as mãos na direção do anjo, a mancha negra em seu braço quase chegava aos ombros.
– Estou dentro de você – disse Devina com satisfação. – E é tarde demais pra fazer qualquer coisa a respeito disso. Tarde demais!
Adrian gritou a plenos pulmões.
CAPÍTULO 7
Matthias acordou com a luz do dia batendo em seu rosto. Não tinha certeza de quando aquela enfermeira de mão boba saíra, mas ele pretendia partir assim que ela fosse embora. Um sono não natural o arrebatara, deixando-o inconsciente de tal forma que se sentiu dominado.
Francamente, estava surpreso por ter conseguido acordar.
O quarto do hospital parecia exatamente o mesmo, mas por que haveria de mudar durante a noite? E Matthias sentia-se mesmo melhor, como se seu corpo fosse um carro recém-saído do mecânico.
Quem diria que uma masturbação não solicitada poderia ter um impacto tão grande...
Mas era estranho. Quando olhou ao redor, teve a sensação de que era um milagre o fato de ele ainda estar “do lado de fora”. Mas estava fora de onde? Uma prisão? Um hospício? Algo ainda pior?
Forçando seu cérebro confuso a prestar atenção, tentou lembrar onde estivera na noite anterior, o que havia acontecido antes de acordar ali...
Eu te atropelei. Sinto muito.
Matthias fechou os olhos e se lembrou daquela mulher, Mels Carmichael. Alguma coisa nela penetrara o nevoeiro que o cercava, tocando-o onde realmente importava. Por quê? Não fazia ideia – mas sabia que, sob outras circunstâncias, gostaria de passar mais tempo com ela.
Muito mais.
Mas, qual é, ele não era do tipo romântico – sua intuição dizia isso em alto e bom som.
Levantando a cabeça dos travesseiros, ficou surpreso por não se sentir pior. Deu uma chance a seu corpo para deixar a ficha cair e começar a dar as informações corretas, algo mais consistente para alguém que fora atropelado há menos de doze horas.
Nada. Ainda sentia-se bem...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Certo, ajudaria se soubesse quem estava atrás dele, ou por que estava fugindo, mas não perderia tempo tentando decifrar essas perguntas – não quando sua adrenalina estava consistentemente apontando para a saída e gritando para ele dar o fora dali.
– Acho que você não é um anônimo, afinal.
Matthias tentou sacar uma arma que não tinha e olhou ao redor. A enfermeira estava de volta, de pé ao lado da porta, aparecendo como se fosse carregada pelo vento.
Sua aparência era diferente sob a luz do dia. Já não parecia sedutora.
Talvez ela fosse um vampiro. Há, há.
– Encontraram sua carteira – ela disse, mostrando uma carteira de couro preto. – Está tudo aqui, identidade, cartão de crédito... até seu cartão de seguro saúde! A conta no hospital vai ficar cara, mas a maioria das despesas está coberta.
Ela andou e colocou a carteira na mesa de rodinhas, bem ao lado do cartão que aquela jornalista tinha deixado. Então ela deu um passo para trás, como se soubesse que ele queria espaço.
Houve uma longa pausa.
– Obrigado – ele disse, tentando preencher o silêncio.
Ela estava vestida com roupas casuais: jeans azul, sapatos pretos, jaqueta branca folgada que parecia nova em folha. O cabelo estava solto e chegava até os ombros, e ela o alisou com a mão, mesmo já estando perfeito.
– Também trouxe algumas roupas – ela acenou com a cabeça. – Estão no armário atrás de você. Espero que sirvam.
– Então vão me liberar?
– Desde que se sinta bem esta manhã. Tem alguém te esperando em casa?
Ele não respondeu – e não por não saber a resposta. Nunca respondia nada para ninguém. Esse era seu jeito.
Mais uma longa pausa.
Ela limpou a garganta e desviou os olhos quando disse:
– Escuta, sobre ontem à noite...
Então era por isso que ela estava ali.
– Vou me esquecer disso, e você deveria fazer o mesmo – ele disse secamente.
Deus sabia que Matthias tinha problemas mais importantes do que ter sido abusado por uma mulher bonita. Pois é, que história triste. Especialmente se comparada com as coisas que ele fez com outras pessoas...
Lembranças emergiram do fundo de sua consciência, como um monstro esquecido num lago profundo ameaçando se revelar.
Afinal, quem era ele?
De repente os olhos negros da enfermeira grudaram nos seus.
– Sinto muito mesmo. Aquilo foi muito errado da minha parte. Nunca deveria ter...
Voltando ao presente, Matthias pensou que era engraçado que, à luz do dia, todo aquele poder que ela tinha sobre ele houvesse desaparecido totalmente. Ela nem parecia ser o tipo de mulher que poderia ser tão agressiva. Era apenas uma jovem enfermeira bonita, com um belo corpo e um cabelo lindo, e que agora parecia vulnerável.
Será que aquilo tinha mesmo acontecido? Ele provavelmente recebera vários analgésicos, e Deus sabe o quanto esses remédios podem bagunçar a cabeça de uma pessoa.
Por outro lado, se nada tivesse acontecido, ela não estaria ali se desculpando, não é?
– Foi uma total quebra de protocolo, eu nunca fiz nada assim antes. É só que... você estava com tanta dor, e você queria... e...
Ele queria? Lembrava-se do completo oposto. E lembrava que... teve um orgasmo. Talvez isso também não tivesse acontecido.
O que faria sentido.
– Enfim, pensei que deveria te dizer isso antes de ir embora... e você não vai mais estar aqui quando eu voltar da minha folga.
Ela parecia honestamente envergonhada e constrangida. Por alguma razão, Matthias teve a sensação de que fazia parte de sua personalidade tirar vantagem das pessoas, por nenhum motivo além de deixá-las constrangidas.
– Foi minha culpa – ele se ouviu dizer e, no instante que as palavras saíram, acreditou na confissão. – Sou eu quem deveria pedir desculpas.
Afinal, sexo por piedade acontecia sempre com um mesmo princípio, quer o ato fosse até o fim ou não: “oh, estou doente; pode cuidar do meu pau? obrigado, querida”.
A enfermeira pousou a mão na armação da cama.
– Eu só... é, bom, só não quero que pense que fico por aí fazendo essas coisas – ela riu, sem jeito. – Não sei por que isso importa. Mas importa.
– Você não precisa se explicar.
Quando ela ergueu o olhar, sua expressão cuidadosa relaxou e se transformou em um sorriso genuíno. O que o fez checar seu dedo anelar procurando por algum certificado de casamento.
Nada. Nenhuma aliança.
– Obrigada por não ficar bravo – ela olhou por cima do ombro em direção à porta. – Acho que eu deveria ir. Se cuide... e por favor lembre-se de fazer a consulta de retorno com seu médico. Lesões na cabeça e perda de memória são coisas sérias.
– Sim. Vou fazer isso.
Mentir foi muito fácil, Matthias sabia que tinha mentido muito durante sua vida. E quando acenou de volta, sua mente a analisava como se ela fosse um relatório ou uma correspondência, não uma pessoa – mas isso não era culpa dela.
Ele sentia que era assim que sua mente funcionava.
Ótimo. Nada como acordar de manhã e aprender passo a passo que você é um verdadeiro filho da puta.
Observou a mesa ao lado da cama. O cartão de visitas e a carteira estavam um ao lado do outro.
Matthias estendeu a mão, sem saber qual deles pegar.
No fim, a atração pela carteira parecia maior. Ao abrir o couro dobrado, observou a carteira de motorista que estava na parte transparente. A foto era... bem, não reconhecia aquele rosto, mas a enfermeira da mão boba parecia pensar que era ele. Era assim que se parecia? Um cara de cabelo preto e um rosto bonito, porém frio.
As informações impressas diziam que ele tinha olhos azuis – e naquela foto parecia que ambos funcionavam. A data de nascimento era naquele mesmo mês. E a data de validade já havia passado.
O primeiro nome, Matthias, de fato era como as pessoas o chamavam. O endereço ficava na cidade de Caldwell, Nova York, o que resolvia o problema geográfico... que ele nem percebera ter.
Caldwell, Nova York.
Estava de volta. Pelo menos era isso que seus instintos diziam...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Deixando a urgência de lado, começou a sair da cama devagar. Quando percebeu que estava preso, retirou as sondas intravenosas e o monitor cardíaco. Inclinando-se até os equipamentos ao lado, desligou os alarmes e arrastou-se para o banheiro.
A luz estava apagada, e quando apertou o interruptor... o show começou.
Matthias quase perdeu o fôlego ao ver a própria imagem refletida no espelho da pia. Um de seus olhos exibia um branco leitoso, e seu rosto estava esculpido com as linhas indeléveis de um passado cheio de dor – além de cicatrizes na testa onde sua lesão ocular aconteceu.
A fotografia na identidade era mesmo dele, principalmente se você adicionar um pouco de cabelo grisalho nas laterais, mas tinha sido tirada antes de...
– Senhor, preciso pedir que volte para a cama, pois está correndo o risco de escorregar e cair. E não deveria ter tirado as...
Ele ignorou a nova enfermeira.
– Estou indo embora. Agora mesmo. As regras do hospital, é, eu sei.
Fechou a porta na cara dela e abriu o chuveiro. Por alguma razão, quando voltou a focar o espelho, pensou em Mels Carmichael. Não foi à toa que a primeira reação dela ao vê-lo fora na linha do oh, meu Deus.
Ele não estava exatamente bonito...
Deus, por que estava pensando daquela maneira? Que importava o que os outros achavam dele?
Com a coordenação melhorando depressa, abriu a porta e olhou para dentro do quarto. A enfermeira não estava mais ali, mas com certeza voltaria trazendo alguém com um crachá de médico – era hora de se mexer rapidamente. Agarrou o cartão que Mels deixara e o guardou na carteira. Então pegou as roupas do armário e se trancou no banheiro.
Dez minutos mais tarde, Matthias estava com os cabelos e o corpo limpos, vestindo camiseta e jaqueta pretas e um jeans folgado.
Ao caminhar para fora do quarto, agarrou uma bengala que assumiu estar lá para ele.
O objeto parecia natural em sua mão e fez seus passos ficarem muito mais rápidos. Como se estivesse acostumado a usá-la.
Dirigindo-se para os elevadores, não pediu autorização para ninguém, não assinou nenhuma linha tracejada. O departamento de cobrança encontraria o homem que morava no endereço que aparecia na carteira de motorista.
E talvez ele também encontrasse esse homem.
O grito de Adrian acordou Jim e o fez saltar da cama, aterrissando em uma posição de luta. Com uma adaga de cristal em uma das mãos e uma pistola semiautomática na outra, estava pronto para lutar, fosse na arena dos humanos ou na de Devina. O Cachorro, que não era bobo, estava se protegendo debaixo da cama.
– Estou bem – disse Adrian, com a convicção de alguém que estava sangrando por uma veia.
Claro, com certeza, pensou Jim, que chegara correndo.
Sob a luz do sol que raiava entre as persianas, o anjo parecia completamente acabado, esparramado ali no chão, com grandes olheiras, cabelo desarrumado, mãos tremendo ao puxar a gola de sua camiseta Hanes. Seus piercings, aquelas argolas de metal que circulavam seus lábios, todo o lado da orelha e marcavam sua sobrancelha, eram as únicas coisas que brilhavam. Tudo o mais parecia sem vida.
Sua luz interior havia se apagado.
Jim estendeu a mão para o cara.
– Hora de levantar.
O outro anjo tomou sua mão, e por um momento os músculos de Jim ficaram tensos ao sentir uma desagradável pontada fluindo por seu braço e ativando seus instintos de um modo ruim. Mas então levantou Ad do chão, e aquilo desapareceu.
– Você já foi encontrar Nigel e os garotos? – perguntou Ad, enquanto andava como se tentasse se livrar da sensação ruim que tivera durante o sono.
– Por que eu faria isso?
– Boa pergunta.
Com essa deixa, Adrian foi até o banheiro e fechou a porta. Depois da descarga, o chuveiro foi ligado, e então foi a vez da pia.
Jim aproximou-se da porta e falou através da madeira fina:
– Você sonhou com o quê?
Quando não obteve resposta, fechou o punho e bateu.
– Adrian. Conte o que foi.
Deus sabia que Devina usava todo tipo de truques para conseguir o que queria. A ideia de que ela poderia invadir a cabeça de Ad pela porta dos fundos soava bem óbvia.
Bateu de novo na porta.
Quando não houve resposta novamente, Jim mandou a privacidade para o inferno e entrou.
Através da cortina de plástico do chuveiro, viu Adrian no chão de novo, desta vez com o piso frio do banheiro sob seu traseiro. Estava encolhido, com os cotovelos contra o peito, o rosto enterrado nas mãos. Não estava chorando, ou praguejando, nem parecia desesperado, mas talvez isso fosse o mais preocupante. O anjo estava apenas sentado debaixo da água quente, seu grande corpo enrolado em si próprio.
Jim abaixou o assento da privada e sentou.
– Converse comigo.
Depois de um momento, o anjo disse com a voz rouca:
– Ela era o Eddie. No meu sonho, ela era o Eddie.
Merda.
– Isso faria qualquer um gritar.
– Ele estava lá também. Foi ele quem me acordou, na verdade. Droga, Jim... ver Eddie de novo foi...
Enquanto a frase sumia, Jim inspecionou a lâmina de sua adaga com um cuidado especial.
– É, eu sei.
– Vou matá-la.
– Só se chegar antes de mim.
Adrian deixou os braços caírem para os lados e seus punhos acertaram a poça de água que se acumulava ao redor de seu corpo. Ele parecia derrotado, mas seria apenas por um momento. Sua raiva retornaria assim que aquele demônio aparecesse por perto e, francamente, a previsível resposta seria um problema: ninguém quer ver o próprio parceiro ficar cego pela raiva, e aquele sentimento não era fácil de controlar.
– Acho que você precisa pedir um novo parceiro para Nigel – Ad disse suavemente. Como se tivesse lido os pensamentos de Jim.
– Não quero outra pessoa.
Mas isso era mentira. Ainda estava aprendendo a lidar com as próprias habilidades e armas – claro, a curva de aprendizado já não era mais tão íngreme quanto nas primeiras rodadas, mas ele ainda estava longe de saber tudo. E Devina não era o tipo de inimigo contra o qual um desempenho mediano fosse aceitável.
Por causa disso, ele precisava de um parceiro sólido lhe dando cobertura.
Honestamente, Eddie era a peça que estava faltando. E fora precisamente por isso que o inimigo o abatera.
Maldita vadia!
– Você conhece mais alguém? – perguntou Jim.
– Tinha outro cara; na verdade, ele ficava acima de mim e de Eddie. Quase no nível de Nigel e Colin. Mas ele teve problemas. A última vez que ouvi falar, ele estava preso no Limbo. Bom, mas era um cara imprevisível. Talvez você fique melhor comigo mesmo, nesse caso.
– Temos que trazer Eddie de volta de alguma maneira...
– Ele era o único que saberia como fazer isso – Adrian soltou um grunhido e ficou de pé, sua figura massiva se erguendo como uma árvore. – Talvez o Colin.
Jim assentiu e voltou a observar sua adaga de cristal. A arma era transparente como um cubo de gelo, forte como aço, leve como uma pena. Fora Eddie quem lhe dera.
Ouviu um barulho de algo caindo no chão molhado e voltou os olhos para o parceiro. Ad deixara cair o sabonete, suas mãos estavam erguidas próximas ao rosto e sua boca parecia tentar praguejar.
– O que foi?
– Ah... merda... – Ad observou as costas das mãos. – Merda, não...
– O quê?
– Estão pretas – o anjo mostrou os braços. – Você não vê? Ela está dentro de mim, Devina está dentro de mim... e está me dominando...
Jim ficou aturdido por um momento, mas sabia que precisava fazer alguma coisa para trazer aquela situação de volta à realidade, e mais que depressa. Deixou a adaga na pia, tirou a cortina de plástico do caminho e agarrou os pulsos de Adrian.
Aquela sensação ruim se apoderou dele de novo, estimulando as terminações nervosas de seus dedos e palmas, como se as tivesse mergulhado em ácido. Concentrou-se na pele de Adrian e imaginou o que diabos tinha acontecido naquele sonho.
Mas a carne estava completamente normal. E pessoas que perdem seus melhores amigos têm motivos de sobra para perder também a razão. Mas não podiam permanecer assim.
– Adrian, meu amigo... – ele deu uma bela sacudida no cara – ei, olhe para mim.
Quando o pobre coitado finalmente olhou, Jim encarou aqueles olhos como se estivesse entrando em sua mente e tomando parte de seu cérebro.
– Você está bem. Não há nada de errado aqui. Ela não está dentro de você, ela não está aqui e...
– Você está errado.
As palavras sombrias fizeram Jim parar de repente. Mas então balançou a cabeça.
– Você é um anjo, Adrian.
– Eu sou?
Com a voz grave, Jim respondeu:
– Digamos que... é bom que você seja.
Após um silêncio tenso, os lábios de Jim começaram a se mover, palavras eram ditas, sílabas sensatas e apaziguadoras cruzavam a distância que os separava. Mas, no fundo de sua mente, ele rezava por quem quer que estivesse ouvindo.
Devina era um parasita, o tipo de coisa que invade as pessoas e as infecta.
Fazia sentido que alguém emocionalmente abalado fosse mais vulnerável.
Porém, a tragédia era que ele não podia ter o inimigo tão perto assim.
Não importava o quanto amasse seu amigo.
CAPÍTULO 8
– O que aconteceu com seu olho?
Mels entrou na cozinha de sua mãe, não respondeu a pergunta e foi direto para a garrafa de café. O fato de o objeto estar do outro lado, e por isso permitir que ela tomasse o café de costas para a mãe, era um bônus além da cafeína.
Maldita maquiagem. Elas supostamente serviam para cobrir aquilo que você queria esconder. Como pés de galinha, olheiras... e hematomas de acidentes de carro sobre os quais você preferia que sua família não ficasse sabendo.
– Mels?
Não precisava se virar para ver o que estava atrás dela: sua mãe, magrinha e baixinha, aparentando ser mais jovem do que era, estaria sentada do outro lado da mesa, com o Correio de Caldwell aberto ao lado de uma tigela de cereal rico em fibras e uma xícara de café. Os cabelos lisos pretos com mechas grisalhas estariam penteados num corte bem aparado, e as roupas seriam casuais, mas parecendo perfeitamente passadas a ferro.
Sua mãe era uma dessas mulheres pequeninas que sempre pareciam bem arrumadas, mesmo sem maquiagem. Como se tivesse nascido com uma lata de spray para cabelo debaixo de um braço e uma escova debaixo do outro.
Mas ela era frágil. Como um bibelô gentil e bondoso.
Era uma porcelana delicada, em contraste com o touro que fora seu pai.
Sabendo muito bem que a pergunta ainda estava no ar, Mels serviu-se de café. Tomou um gole. Manteve-se ocupada passando uma toalha de papel em um balcão que já estava limpo e seco.
– Ah, não foi nada. Escorreguei e caí. Bati a cabeça na torneira do chuveiro. Foi tão estúpido!
Houve um momento de silêncio.
– Você chegou tarde ontem à noite.
– Fiquei na casa de uma amiga.
– Você não tinha falado que ia num bar?
– Fui pra casa dela depois do bar.
– Ah. Entendi.
Mels ficou observando a janela em cima da pia. Com sorte, sua tia ligaria a qualquer momento, como geralmente fazia, e ela não teria que inventar mais uma mentira para explicar por que voltara de táxi do trabalho.
Os sons de goles de café e cereal sendo mastigado preencheram a cozinha, e Mels tentou pensar em algum assunto minimamente normal para conversarem. O clima. Esportes – não, sua mãe não tinha interesse em atividades organizadas que envolviam campos, bolas ou raquetes de qualquer tipo. Livros seria uma boa opção – porém Mels não lia nada além de estatísticas criminais, e sua mãe ainda estava no trem do Clube do Livro da Oprah, mesmo esse trem já não tendo motor ou trilhos.
Deus... momentos como esse a faziam sentir tanta falta do pai que até doía. Os dois nunca ficavam constrangidos um com o outro. Nunca. Conversavam sobre a cidade, ou sobre seu trabalho como policial, ou sobre a escola... ou simplesmente ficavam em silêncio – e, de um jeito ou de outro, nunca havia problema. Mas com sua mãe?
– Então – Mels tomou outro gole de café –, o que vai fazer de bom hoje?
Recebeu uma resposta, mas não a ouviu porque seu desejo de sair gritava alto demais.
Mels terminou o resto de seu café preto – sua mãe tomava com leite e açúcar –, colocou a xícara na lava-louça e cruzou os braços.
– Então, vejo você à noite – ela disse. – Não vou chegar tarde. Prometo.
Os olhos de sua mãe se levantaram para encontrar os dela. A tigela cheia de cereal integral era rosa e tinha pequenas flores brancas em volta, a toalha de mesa tinha flores amarelas e o papel de parede tinha flores maiores azuis.
Flores por toda a parte.
– Você está bem? – perguntou a mãe. – Precisa ir ao médico?
– É só um machucado. Nada de mais – olhou para a sala de jantar. Do outro lado da mesa de mogno, depois da cortina branca, um Chevrolet amarelo estacionou. – O táxi chegou. Deixei meu carro no bar porque bebi uma ou duas taças de vinho.
– Ah, você podia pegar o meu carro para ir trabalhar.
– Você vai precisar dele – ela olhou para o calendário pendurado na parede, rezando para que algo estivesse marcado ali. – Hoje você tem jogo de cartas às quatro.
– Eu podia ir de carona. Ainda posso, se você quiser...
– Não, é melhor assim. Posso pegar meu carro e dirigir de volta pra casa.
Droga. Acabara de criar um problema. A única maneira de Fifi ir para qualquer lugar seria na traseira de um caminhão de guincho – a pobrezinha fora levada para um mecânico.
– Ah. Tá bom.
Quando sua mãe caiu no silêncio, Mels teve vontade de pedir desculpas, mas era difícil demais colocar aquele complicado desculpe em palavras. Inferno, talvez ela precisasse simplesmente se mudar dali. Ficar constantemente exposta àquela bondade e autossacrifício, em vez de ser uma alegria, era um peso muito grande para carregar, pois nunca tinha um fim. Sempre havia uma sugestão, uma oferta, um quer-que-eu-isso-ou-aquilo...
– Preciso ir. Mas agradeço.
– Tá bom.
– Vejo você à noite.
Mels beijou o rosto macio que sua mãe ofereceu e saiu apressada pela porta da frente. Lá fora o ar estava fresco e agradável e o sol brilhava, prometendo calor na hora do almoço.
Entrando no banco de trás do táxi, ela disse:
– Escritório do Correio de Caldwell, na rua Trade.
– Pode deixar.
A caminho do centro da cidade, as molas do banco do táxi pareciam feitas de aço, e o estofado não era muito diferente de cimento, mas ela nem se importou com a viagem desconfortável. Sua mente estava caótica demais para pensar em seu traseiro sendo castigado por um banco duro.
Aquele homem da noite anterior ainda estava em seus pensamentos – podia quase senti-lo ao seu lado.
Fora assim durante toda a noite.
Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos e relembrou o acidente, checando duas, três vezes para ter certeza de que não poderia ter feito nada para evitá-lo. Então ficou pensando em outras coisas, como a maneira como o homem ficara deitado, totalmente imóvel, naquela cama de hospital.
Mesmo machucado, em alguns lugares com gravidade, ele ainda parecia um... predador.
Um poderoso animal, ferido, mas...
Certo, agora ela realmente estava perdendo a cabeça. E talvez devesse olhar mais de perto para sua vida amorosa – que era completamente vazia...
Infelizmente, Mels não conseguia parar de pensar na estranha atração que aquele homem exercera. Que desagradável, ela deveria é estar preocupada com a saúde e o bem-estar dele, além da possibilidade de querer processá-la e tirar dela o pouco que tinha.
Em vez disso, ela ficou pensando no som daquela voz rouca, e na maneira como ele a observara, como se qualquer detalhe dela fosse uma fonte de fascinação e importância...
Ele fora ferido há algum tempo, ela pensou. As cicatrizes ao lado do olho tinham se curado com o tempo.
O que será que acontecera com ele? Como era seu nome...?
Enquanto ela vagava pela terra das perguntas sem resposta, o motorista do táxi fez seu trabalho discretamente. Dezesseis dólares, dezoito minutos e um traseiro dolorido depois, ela chegou à redação.
O local já estava barulhento, com pessoas falando e andando apressadas, e aquele caos acalmou seus nervos – da mesma maneira que uma aula de ioga a deixava nervosa.
Ela sentou em sua mesa, checou o correio de voz, entrou em seu e-mail e pegou a xícara que vinha usando desde que herdou aquele lugar, há pouco mais de um ano e meio. Caminhou até a cozinha coletiva e encontrou seis opções de potes de café: nenhum deles era descafeinado; três eram da boa e velha marca Maxwell House; e os outros eram aquele horror com essência de nozes, um daqueles macchiato-sei-lá-o-quê.
Dane-se esse último. Se quisesse uma droga de um sorvete de caramelo, ela pediria um no almoço. Aquela coisa não devia ser colocada em uma xícara de café.
Enquanto servia seu café preto e puro, pensou na verdadeira dona da xícara, Beth Randall, a jornalista que sentara naquele cubículo por... bem, devia ter sido mais de dois anos. Em uma certa tarde, a mulher partira e nunca mais voltara. Mels lamentava o desaparecimento – não que conhecesse a colega muito bem – e sentia-se mal porque foram nessas as circunstâncias que ela finalmente conseguira um lugar só para ela.
Mantivera a xícara por nenhuma razão especial. Mas agora, enquanto tomava um gole, percebeu que a guardara por ainda ter esperança de que a mulher retornasse. Ou que pelo menos estivesse bem.
Parecia que Mels estava rodeada de pessoas desaparecidas.
Ou pelo menos foi assim que se sentiu naquela manhã. Principalmente quando pensou sobre o homem da noite anterior – aquele que nunca veria novamente, mas que não conseguia tirar da cabeça.
Aquela não era sua casa.
Quando o táxi estacionou em frente a um rancho em uma vizinhança modesta, Matthias sabia que não morava sob aquele teto. Nunca tinha morado. Não iria morar.
– Você vai descer do carro ou não?
Matthias encontrou os olhos do motorista através do retrovisor.
– Me dê um minuto.
– O taxímetro está correndo.
Concordando, ele desceu e usou a bengala para andar no passeio que levava à frente da casa, balançando a perna machucada em um longo arco para não ter de dobrar os joelhos. Não havia nada de lar, doce lar: a trepadeira invadia as janelas. O gramado não estava aparado. As calhas estavam cheias de mato que subia alto em busca do sol.
A porta da frente estava trancada, então ele fez uma viseira com as mãos para tentar olhar pela janela. Viu camadas de poeira. Móveis que não combinavam. Cortinas envelhecidas.
Havia uma caixa de correio barata pregada na parede. Ele abriu a tampa. Propagandas. Um talão de cupons de desconto endereçado ao “ocupante”. Nada de contas, solicitações de cartão de crédito, cartas. A única outra correspondência era uma revista da AARP1 endereçada ao mesmo nome que havia na sua carteira de motorista.
Matthias enrolou a revista, guardou no bolso da jaqueta e voltou para o táxi. Aquela não era sua residência – e mais ninguém morava ali. A pessoa que vivia ali devia ter morrido, digamos, há umas quatro ou seis semanas – tempo suficiente para a família cuidar das contas, mas não para esvaziar a casa e colocá-la à venda.
Entrando no táxi, fixou o olhar à frente.
– Para onde?
Com um grunhido, Matthias se ajeitou e puxou a carteira. Pegou o cartão de Mels Carmichael e foi atingido por uma profunda convicção de que não deveria envolver aquela mulher.
Era perigoso demais.
– E então, chefe?
Mas, droga, ele tinha de começar por algum lugar. E seu cérebro estava como uma conexão de internet fora do ar.
– Rua Trade – murmurou.
Enquanto dirigiam-se para o centro da cidade em meio ao trânsito pesado, ele observou os outros carros, onde pessoas bebiam café, conversavam com outros passageiros, paravam nos sinais vermelhos, avançavam nos verdes. Um mundo que parecia muito distante dele. O tipo de vida em que a pessoa trabalha das nove às sete todo dia, até morrer aos setenta e poucos anos. Essa não era a maneira como Matthias vivia.
Então, como ele vivia?, perguntou ao seu cérebro idiota. Como diabos ele vivia?
Tudo o que recebeu de resposta foi uma dor de cabeça.
Quando o edifício do Correio de Caldwell surgiu, Matthias pegou uma das dez notas de vinte que tinha na carteira.
– Guarde o troco.
O motorista parecia mais do que feliz em se livrar dele.
Usando a porta da frente como apoio, Matthias emergiu do carro sob a luz do sol, tomando cuidado para não corresponder a nenhum dos olhares curiosos. E havia muitos deles. Por algum motivo, ele tinha a tendência de atrair atenção, geralmente das mulheres – se bem que ficar atraída por alguém machucado era coisa normal de mulher, e ele estava cheio de cicatrizes no rosto.
Uau, que romântico.
Por fim, sentou-se na cadeira de plástico duro do ponto de ônibus do outro lado da rua, respirando a fumaça dos fumantes impacientes que esperavam o transporte público. A espera não o incomodava. Era como se ele estivesse acostumado a espreitar. Para passar o tempo, inventou um jogo: memorizava os rostos das pessoas que entravam e saíam dos escritórios do Correio de Caldwell.
Matthias era extremamente bom nisso. Só era preciso uma olhada para adicionar a pessoa ao seu banco de dados interno.
Pelo menos sua memória de curto prazo estava funcionando...
As portas duplas se abriram e lá estava ela.
Matthias se ajeitou na cadeira quando a luz do sol atingiu os cabelos de Mels e fez brilhar vários tons de castanho. Mels Carmichael, repórter associada, estava junto de um cara bem arrumado que precisava puxar a calça cáqui para cima antes de pisar nos degraus. Os dois pareciam estar discutindo amigavelmente sobre alguma coisa e, quando Mels sorriu, parecia que ela vencera o debate.
Como se soubesse que estava sendo observada, Mels olhou para o outro lado da rua e parou de repente. Ela tocou a manga do casaco de seu colega e disse algo, então eles se separaram e ela começou a se aproximar de Matthias, andando no meio do trânsito.
Matthias cravou a bengala no chão, levantou-se e ajeitou as roupas. Não tinha ideia de por que queria se arrumar para ela, mas queria – mas não dava para parecer pior. Vestia roupas que não eram dele, ainda cheirava a quarto de hospital e lavara o cabelo com xampu antibacteriano, pois era o único disponível.
Naturalmente, a primeira coisa para a qual ela olhou foi seu olho ruim, aquela coisa feia e arruinada. Como não poderia?
– Oi – ela disse.
Mels estava linda com suas roupas normais do dia a dia: com aquela calça, a blusa de lã e o lenço bege que usava ao redor do pescoço, para Matthias ela poderia muito bem estar em uma passarela.
E continuava sem aliança.
Isso é bom, ele pensou, sem uma razão especial.
Desviando o olhar para a direita, esperando que assim seu defeito fosse menos aparente, ele respondeu:
– Oi.
Certo. Hum. E agora?
– Não estou te seguindo, eu juro – mentiroso. – Eu teria ligado, mas não tenho telefone.
– Não tem problema. Você precisa de alguma coisa? A polícia me ligou hoje de manhã, e acho que eles ainda querem falar com você.
– Pois é – deixou esse assunto do jeito que estava. – Escuta, eu...
O fato de que estava interrompendo uma frase no meio parecia pouco natural, mas seu cérebro simplesmente não conseguia produzir nada.
– Vamos sentar – ela disse, mostrando os assentos. – Não acredito que eles deixaram você sair.
Naquele momento, um ônibus chegou e parou, bloqueando a luz do sol e soltando uma fumaça que o fez tossir. Os dois sentaram e ficaram em silêncio enquanto esperavam os passageiros embarcarem.
O ônibus partiu e o sol reapareceu, banhando-a com sua luz amarela.
Por alguma razão estúpida, os olhos dele começaram a piscar com força.
– O que posso fazer por você? – ela perguntou suavemente. – Está sentindo dor?
Sim. Mas não era dor física. E piorava sempre que olhava para ela.
– Como você sabe que eu preciso de ajuda?
– Imagino que sua memória não tenha voltado magicamente.
– Não, não voltou. Mas isso não é culpa sua.
– Bom, eu te atropelei. Então estou te devendo uma.
Ele gesticulou mostrando a perna ruim.
– Eu já estava assim antes.
– Consegue lembrar de alguma coisa? Quer dizer, anterior ao acidente? – quando ele negou com a cabeça, ela murmurou: – Muitos militares também voltaram na sua condição.
Ah... ela queria dizer o Exército, Marinha, Aeronáutica. E parte disso parecia ser correto. O governo... sim, Matthias tinha alguma ligação com o Departamento de Defesa, ou com a segurança nacional... ou...
Mas não era um soldado abatido. Porque nunca fora um herói.
– Eles encontraram minha carteira – ele murmurou.
– Oh, isso é ótimo.
Por alguma razão, Matthias entregou o objeto para ela.
Quando Mels abriu e olhou a carteira de motorista, ela assentiu.
– Esse é você.
Observando o emblema do Correio de Caldwell sobre a porta da qual ela saíra, ele disse:
– Veja bem, tudo o que estou falando fica entre nós dois, certo?
– É claro.
– Gostaria de ter outra opção. Gostaria... não quero te colocar em encrenca.
– Você ainda não me pediu pra fazer nada – ela o observou. – Em que está pensando?
– Consegue descobrir quem é esse cara? – apontou para a carteira de motorista. – Porque não sou eu.
N.T.: AARP é uma ONG norte-americana destinada a defender os interesses dos cidadãos com mais de cinquenta anos.
CAPÍTULO 9
Durante o silêncio que se seguiu, tudo o que Mels podia pensar era no fato de que tivera plena certeza de que nunca mais veria aquele homem.
Pelo jeito, o destino tinha outros planos.
O homem de roupas pretas sentado ao seu lado era grande, supermalhado e dava a impressão de ser forte em todos os sentidos, com seus olhos estreitos e o queixo quadrado... mas parecia envergonhado de suas cicatrizes e do defeito na perna.
Olhando mais uma vez a carteira de motorista, ela franziu a testa. A foto parecia verdadeira, os hologramas estavam onde deveriam estar, altura, peso e data de nascimento estavam corretos, o endereço ficava ali mesmo em Caldwell – e não muito longe da casa de sua mãe, na verdade.
Ele provavelmente estava voltando para casa no momento do atropelamento. Assim como ela.
Observando agora o homem em vez da imagem, ela teve a sensação de que, para procurá-la, ele fizera um grande esforço e engolira o orgulho. Ele não parecia o tipo de pessoa que gostava de depender dos outros, mas a vida claramente não lhe deixara outra escolha.
Sem memória. Poucos recursos.
E com aqueles olhos assombrados e um corpo remendado, ele tinha de ser um militar, voltara da guerra apenas fisicamente, mas não em espírito.
Naturalmente, a jornalista dentro dela gostava de um bom mistério – e o fato de ter um pouco de culpa em relação à sua amnésia era outra razão para ela mergulhar de cabeça nisso. Mas Mels não era idiota. Não queria se envolver em algum tipo de drama, principalmente se ele fosse um maluco ou paranoico.
A foto era dele mesmo, sem dúvida.
– Odeio colocar você nessa posição – suas mãos grandes acariciaram a bengala que equilibrava nas coxas. – Mas não tenho mais ninguém. E a casa nesse endereço não é minha. Não sei onde moro, mas com certeza não é naquela casa. Eu chequei a correspondência quando fui até lá – ele recostou-se para o lado e retirou uma revista dobrada do bolso da jaqueta. – Encontrei isto. O nome está certo, mas eu não tenho mais de cinquenta e cinco anos. Por que isto estaria na minha caixa de correio, endereçado a mim?
Ela desdobrou a revista e observou o logotipo da AARP e a foto de uma graciosa modelo da terceira idade vestindo roupas de ginástica. O nome acima do endereço era Matthias Hault, e o número e rua eram os mesmos da carteira de motorista... talvez ele morasse com o pai e os dois tivessem o mesmo nome.
Mas um pai não teria ficado feliz em ver o filho aparecer na porta de casa?
– Eu poderia contratar um detetive particular – ele disse –, mas isso custa dinheiro, e nesse momento tenho apenas duzentos dólares no bolso... bom, cento e oitenta, depois que paguei o taxista.
– Tem certeza de que ninguém está tentando te encontrar? – quando ele permaneceu em silêncio, ela pensou que Matthias estava vasculhando sua memória, mas ele encontrou apenas o vazio, por culpa dela. – O que os médicos disseram? Como eu disse, honestamente, estou chocada de você estar de pé andando por aí.
– Então, você vai me ajudar? – ele respondeu.
Aquele era um momento de limite que precisava ser considerado com respeito. Mas ela decidiu cruzar a linha.
– Se eu ajudar, você vai ter que falar comigo. O que os médicos disseram?
Seu olho bom procurou ao redor, como se estivesse pensando em uma resposta.
– Fui embora sem avisar.
– O quê?! Por quê?
– Não me senti seguro. E não posso explicar mais do que isso. É tudo o que sei.
Estresse pós-traumático, ela pensou. Só podia ser.
Talvez se Mels confirmasse a identidade dele, sua mente poderia descansar e isso ajudaria na recuperação.
– Certo, vou fazer o possível – ela disse.
Matthias abaixou a cabeça, como se aceitar ajuda de outra pessoa fosse um tipo de derrota.
– Obrigado. Tudo o que preciso é de uma busca com esse nome. Um lugar para começar.
– Posso voltar pro escritório e fazer isso na minha mesa agora mesmo – ela apontou para o lado direito. – Tem um restaurante ao lado do rio, a uns dois quarteirões daqui. Você pode comer algo e eu te encontro lá assim que puder. Ah... claro, se você conseguir andar...
– Eu consigo chegar lá – ele disse, rangendo os dentes.
Ou morreria tentando, ela pensou, ao observar seu queixo contraído.
Que, por sinal, lembrava muito o ator Jon Hamm.
O homem levantou-se com a ajuda da bengala.
– Então eu te encontro lá. Não precisa se apressar.
Quando ele olhou para a rua, a luz do sol brilhou em seus olhos; tanto naquele que obviamente ainda enxergava como no que estava cego.
– Quer ficar com meus óculos escuros? – ela perguntou. – É um Ray-Ban, mais unissex que isso é impossível. E também não precisa de receita.
Ela não esperou ele dar uma de fortão e recusar. Pegou a caixa e a estendeu na sua frente.
Matthias Hault ficou observando a sua oferta por um longo tempo, como se o simples gesto fosse algo a que não estava acostumado.
– Aceite – ela disse suavemente.
Sua mão tremeu um pouco ao aceitar a caixa, e ele não a olhou mais nos olhos.
– Não vou riscá-los. E vou devolver no restaurante.
– Sem pressa.
Quando ele colocou os óculos escuros, seu rosto se transformou em algo... inegavelmente perigoso.
E definitivamente sensual.
Um calor percorreu o corpo de Mels, atingindo-a num lugar que há muito tempo não se acendia.
– Melhor? – ele disse.
– Eu acho que sim.
Ele ainda se recusava a olhar para ela. Seus ombros e costas estavam retos, os lábios tensos. Um homem tão orgulhoso, preso daquele jeito em uma posição de fraqueza...
Ela sempre lembraria daquele momento, pensou, sem qualquer motivo. Sim, este momento agora, com o sol brilhando nas feições endurecidas de seu rosto bonito.
Aquilo era um momento decisivo, concluiu. Essa intersecção aparentemente aleatória entre os dois mudaria as coisas para sempre.
– Eu queria te perguntar uma coisa – ele disse.
– O quê? – ela sussurrou, imersa em um momento que não podia compreender totalmente.
– Onde aconteceu o acidente?
Sacudindo a si mesma, ela puxou seu cérebro de volta à realidade.
– Foi, ah, bem ao lado do Cemitério Pine Grove. Perto de onde moro. Não muito longe do bairro onde fica sua casa.
– Um cemitério.
– Isso mesmo.
Ele assentiu e, quando começou a caminhar em direção ao restaurante, ela podia jurar que o ouviu dizer “Por que isso não me surpreende?”.
O Riverside Diner era um restaurante típico de cidade pequena americana. Cheio de estofados de couro sintético, cortinas com estampa xadrez e garçonetes mal-humoradas. A comida era gordurosa, mas de uma maneira gloriosa, e quando Matthias cortou seus ovos mexidos com o garfo, seu estômago roncou como se fizesse anos que não comia.
Já era tarde para o café da manhã, mas não existe acompanhamento melhor para uma xícara de café do que ovos e bacon.
Enquanto comia, os óculos escuros que recebera da repórter eram uma benção, pois lhe permitiam ficar de olho nas pessoas que entravam e saíam, nas garçonetes indo e vindo, e nos fregueses que entravam no banheiro e em quanto tempo ficavam lá.
Mas vigilância não era o motivo de Mels ter lhe emprestado os óculos.
Droga. Por que aquela mulher fazia ele desejar não ter mais seus defeitos?
– Mais café? – perguntou a garçonete.
– Sim, por favor – ele ofereceu a xícara e ela despejou o café fumegante. – E mais um prato de tudo isto também.
Ela sorriu como se estivesse calculando uma gorjeta maior.
– Você come bem.
Quando não se sabe quando ou onde vai ser a próxima refeição, é melhor fazer valer a pena, ele pensou consigo mesmo.
A repórter apareceu pouco depois de Matthias terminar o segundo café da manhã. Ela olhou para a esquerda e depois para a direita e o encontrou sentado nos fundos, ao lado da saída de emergência. Então começou a percorrer o longo caminho de mesas vazias.
Quando sentou à sua frente, seu rosto estava vermelho, como se tivesse se apressado.
– Devia estar lotado quando você chegou – ela disse.
– Estava – mentira: ele queria ficar nos fundos para o caso de precisar sair às pressas.
A garçonete voltou com o pote de café.
– Olá... gostaria de café?
– Sim, por favor – Mels tirou a blusa. – E o meu de sempre.
– Almoço ou café da manhã?
– Almoço.
– Já está saindo.
– Você almoça sempre aqui? – ele perguntou, imaginando por que se importava.
– Duas, três vezes por semana, desde que comecei a trabalhar no jornal.
– E quando começou?
– Um milhão de anos atrás.
– Engraçado, você não parece um dinossauro.
Sorrindo um pouco, ela tomou um gole do café e se preparou para a conversa. Seus lábios ficaram tensos e seus olhos se estreitaram.
Ela ficava sexy daquele jeito. A intensidade. O foco. Naquele momento, ela o fazia se lembrar de si mesmo...
E isso era um milagre, se você pensar que Matthias tinha a mesma quantidade de informação sobre os dois... sendo ela uma estranha.
– Diga o que descobriu – ele exigiu.
– Você está morto.
– E eu que achei que era só uma sensação.
Durante a pausa que se seguiu, ele podia sentir que Mels tentava entendê-lo.
– Você não está surpreso – ela disse.
Ele observou sua xícara meio vazia e balançou a cabeça.
– Eu sabia que havia algo de errado naquela casa.
– O dono verdadeiro desse nome tinha oitenta e sete anos e morreu de insuficiência cardíaca cinco semanas atrás.
– Em se tratando de identidades falsas, essa não é uma das melhores, não é?
– Você fala como se conhecesse bem o assunto – quando ele não comentou nada, ela se inclinou para frente. – Por acaso você faz parte do programa governamental de proteção a testemunhas?
Não, ele estava do outro lado da lei... seja lá o que isso significasse.
– Se for o caso – ele disse –, não estão cuidando muito bem de mim.
– Tenho uma ideia. Vamos voltar ao cemitério, no local do acidente. Vamos ver se você se lembra de alguma coisa.
– Não posso pedir pra você fazer isso.
– Não pediu. Estou oferecendo... – ela parou. Franziu a testa. Coçou a sobrancelha. – Meu Deus, espero não estar me transformando na minha mãe.
– Ela gosta de cemitérios?
– Não, é uma longa história. Enfim, peguei emprestado o carro do meu amigo. Posso te levar até lá depois que terminarmos de comer.
– Não. Mas eu agradeço.
– Por que você se deu ao trabalho de perguntar sobre o nome se não vai continuar investigando?
– Posso pegar um táxi, foi o que quis dizer.
– Ah.
A garçonete voltou com o “de sempre”, que era um sanduíche de frango em pão integral e o que parecia ser tomates extras, além de batatas fritas em vez de batatas chips.
– Acho que eu deveria levar você – ela disse, pegando o ketchup.
Matthias observou quando dois policiais entraram pela porta da frente e sentaram no balcão.
– Posso ser sincero com você?
– Por favor.
Ele abaixou o queixo e a olhou por cima dos óculos escuros.
– Não quero que fique sozinha comigo. É muito perigoso.
Ela parou com uma batata frita a meio caminho da boca.
– Sem ofensa, mas, considerando sua condição física, eu poderia quebrar suas duas pernas e te deixar inconsciente em questão de segundos – as sobrancelhas dele foram erguidas ao máximo, e ela assentiu. – Sou faixa preta, tenho permissão para porte de armas e nunca vou a lugar algum sem uma boa faca ou sem minha arma.
Ela deu um sorriso rápido, pegou o sanduíche de frango e deu uma mordida.
– Então, o que me diz?
CAPÍTULO 10
Felizmente, aquilo não era um encontro romântico, pensou Mels quando o silêncio imperou. Pois dizer a um homem que você é capaz de acabar com ele não seria um bom começo, meio ou fim para um almoço a dois.
Aquilo era trabalho – é claro que a história daquele homem, seja lá qual fosse, não terminaria nos jornais, mas era algo a ser investigado, e Deus sabia que ela nunca dispensava uma oportunidade dessas.
– É um belo currículo – ele disse depois de um bom tempo.
– Meu pai se certificou de que eu seria capaz de me defender. Ele era um policial à moda antiga.
– O que isso quer dizer?
Ela limpou a boca com um guardanapo, tomou outro gole de café e desejou ter pedido uma Coca.
– Digamos que hoje em dia, com câmeras nos carros de polícia, reuniões da corregedoria, e pastas cheias de protocolos de procedimentos, ele não teria durado nem um mês antes de ser suspenso. Mas no passado ele fazia seu trabalho, e as pessoas estavam mais seguras nesta cidade graças a ele. Ele dava conta de tudo.
– Um cara durão?
– Um cara justo.
– E você aprova esses métodos?
Ela deu de ombros.
– Ele tinha minha aprovação. Por outro lado, sua maneira de agir... digamos apenas que era outra época. Antes de testes de DNA e internet.
– Parece meu tipo de pessoa.
Mels teve que sorrir ao ouvir aquilo. Mas então uma tristeza pela perda do pai a fez virar o rosto e observar o rio e as gaivotas que seguiam a lenta correnteza.
– Ele nunca perdia o controle ou ficava bravo. Mas às vezes os criminosos só entendem as coisas quando elas são explicadas na língua deles.
– Você tem irmãos ou irmãs?
– Apenas eu. E meu pai não se importava por eu ser uma garota. Ele me tratava como trataria um filho: me treinou, ensinou autodefesa, insistiu que eu aprendesse a disparar armas de fogo – ela riu. – Minha mãe quase tinha ataques do coração por causa disso. Até hoje ela é assim.
– Ele já se aposentou?
– Faleceu – ela voltou ao sanduíche. – Foi morto em serviço.
Houve uma pausa. Então Matthias disse suavemente:
– Sinto muito.
Mels não ousou levantar os olhos, pois falara demais e, com aqueles óculos escuros, não sabia onde estavam os olhos dele – embora não fosse necessário ser um gênio para saber que estavam focados nela.
– Obrigada. Mas chega de falar de mim. E chega dessa porcaria de é-perigoso-demais. Tenho cuidado de mim mesma faz tempo, e sou muito boa nisso. Não teria oferecido ajuda se não achasse que poderia lidar com você.
Ele soltou uma risada súbita.
– Você é muito segura de si mesma.
– Sei quais são meus limites.
– Mas você não me conhece. E eu também não.
– E nós queremos consertar isso, não é?
O homem recostou-se.
– Sim.
Quando terminou o sanduíche – deixando o resto das batatas de lado – ela pagou a conta e levantou-se.
– Então, vamos lá.
Quando ele pousou os olhos nela, aquele calor a invadiu novamente, uma atração sem sentido passando por seu corpo.
– Prometa uma coisa – ele disse em voz baixa.
– Depende do que for.
– Você não vai correr nenhum risco.
– Feito.
Matthias assentiu, pegou a bengala, deslizou as pernas para fora da cadeira e esperou por um momento, como se estivesse preparando o corpo para um massacre. O primeiro instinto de Mels foi colocar um braço sob o ombro dele para ajudar, mas sabia que ele não gostaria disso. E ficar encarando sua fragilidade também não era respeitoso, então ela se virou e fingiu checar o cardápio iluminado que ficava sobre o balcão.
Um grunhido denunciou que ele se levantara, então Mels seguiu em frente até a porta. Enquanto passavam pelos outros fregueses, ela sentiu os olhos de todos pairando sobre o homem que estava atrás dela.
Deus, ela imaginava como seria a vida daquele jeito, atraindo constantemente os olhares curiosos. Se bem que as mulheres provavelmente estavam vendo apenas aquilo que ela própria enxergava. Que não tinha nada a ver com defeitos.
Muito pelo contrário.
O carro de Tony, que estava no estacionamento, parecia já ter visto dias melhores, não era como a Fifi, mantida com carinho. Aquele carro parecia mais uma lata de lixo ambulante.
– Não repara na sujeira – ela disse ao destrancar o veículo.
Ao entrar, Mels tirou do banco do passageiro as várias revistas Newsweek e The New Republics. Como era de se imaginar, Matthias levou um tempo para entrar no carro e, quando colocou os joelhos para dentro, suas botas pisaram em lixo, amassando embalagens vazias de Taco Bells, McDonald’s, Burger King e Wendy’s.
– Seu amigo gosta de fast-food – ele comentou.
– E come rápido também.
Ela acelerou e entrou no trânsito, espremendo o sedã entre um táxi e uma caminhonete.
– Cinto de segurança – disse Matthias.
Mels olhou para ele.
– Pois é. Você está usando um.
– Gosta de viver perigosamente?
– Cintos de segurança nem sempre salvam vidas.
– Então todas essas pessoas ao redor estão erradas?
– Elas podem fazer o que quiserem, e eu também.
– E as multas?
– Nunca fui parada no trânsito. E se acontecer, simplesmente pago a multa.
– Quando. Você quer dizer “quando acontecer”.
O Cemitério Pine Grove ficava a uns dez minutos – mas não do jeito que Mels dirigia. Em nenhum momento ela foi imprudente, apenas eficiente, escolhendo rotas que evitavam semáforos e as obras ao redor do parque.
– É ali, à direita – Mels se inclinou sobre o volante e olhou através do para-brisa. – Na verdade, é um lugar lindo. Há algo tão pacífico em cemitérios...
Matthias não parecia impressionado.
– Toda essa coisa de descanso eterno é uma ilusão.
– Você não acredita no Céu?
– Acredito no Inferno, isso sim.
Não houve tempo para ela responder quando chegaram na entrada.
– O acidente aconteceu por aqui... um pouco depois do portão principal. Bem... um pouco mais para frente... aqui.
Enquanto ela estacionava o carro de Tony e desligava o motor, Matthias já estava saindo. Andando rápido com sua bengala, ele parou no meio da rua, em cima das marcas onde ele havia aterrissado. Olhou para os dois lados e seguiu até as marcas dos pneus da Fifi e a árvore atingida... e finalmente chegou no portão de três metros de altura que cercava o cemitério.
Aquilo é que era estilo gótico. Feitas com barras de ferro com pontas em forma de flor de lis, as fronteiras do Pine Grove eram imponentes... e perigosas, se alguém tentasse escalá-las.
E veja só, enquanto se aproximava, Mels viu uma mancha de sangue no topo de uma das pontas – e havia também um pedaço de roupa. Como se alguém tivesse tentado pular o cercado.
– Eu pego – ela disse, pulando e agarrando o tecido. – Aqui.
Matthias segurou o pano.
– Tecido impermeável. Aposto que aquele sangue seco é meu. Tenho um ferimento recente na perna.
Mas por que ele não teria simplesmente passado pelo portão da frente? Bem, à noite ele provavelmente ficava trancado.
– Podemos entrar? – ele perguntou.
– Agora mesmo.
De volta ao carro, ela passou pela entrada e virou à esquerda, indo em direção ao ponto onde encontraram o tecido. Chegando lá, ela parou novamente, saiu e esperou que a memória dele se manifestasse. Se é que isso aconteceria.
Enquanto ele olhava ao redor, Mels ficou um pouco distante, ouvindo a brisa que soprava entre os galhos dos pinheiros e sentindo o sol brilhar em seus ombros... e tentou não pensar no lugar onde estava seu pai...
Logo atrás, a uns cem metros, no meio do cemitério, entre a família Thomas e os três irmãos Krensky.
Pelo jeito, ela se lembrava muito bem.
A última vez em que estivera ali fora no dia seguinte ao enterro do pai. Mels estivera trabalhando em Nova York por quase cinco anos. Ele estava tão orgulhoso de sua filha na cidade grande, fazendo aquilo que tinha estudado – o jornalismo...
– É por aqui – Matthias disse, distraído.
Enquanto ele caminhava pelo gramado desigual, Mels largou seu passado para se concentrar no presente dele, e juntos andaram decididamente, mesmo com os passos de Matthias se mostrando instáveis e precisando do suporte da bengala. De vez em quando ele parava, como se estivesse calibrando a direção, e Mels não o interrompia com perguntas.
A construção onde finalmente chegaram combinava com as lápides e sepulturas. Sua fachada de pedra ecoava a arquitetura usada na entrada principal e nos balaústres que se intercalavam aos portões de ferro.
– Eu estava nu – ele disse. – Vim até aqui, entrei pela janela e peguei...
Ele empurrou a porta, que rangeu enquanto se abria. Lá dentro, caminhou até a parede de trás e comparou o pedaço de tecido rasgado com um macacão impermeável que estava pendurado.
Nu?, ela pensou.
– Onde estavam suas roupas?
Ele deu de ombros.
– Só sei que estive aqui na noite passada.
Matthias voltou para fora e continuou pelo caminho que estavam fazendo, mas agora ele andava em zigue-zague – talvez para manter a trilha ou para tentar encontrá-la; Mels não sabia e também não perguntou. Apenas o seguiu, e eles passaram por dezenas de lápides, além de funcionários que cuidavam do gramado e pessoas que visitavam túmulos de parentes.
Finalmente, quando estavam a quase meio quilômetro de onde deixaram o carro, ele parou.
– Aqui. Isto é... sim, foi aqui que começou. Tenho certeza.
A lápide que ele observava pertencia a um dos túmulos mais recentes – e em cima da terra fofa que fora colocada sobre o caixão, havia realmente a silhueta de um corpo, como se uma pessoa do tamanho dele tivesse deitado ali em posição fetal.
– Foi aqui que começou – ele se apoiou na bengala e se agachou. Tocando a terra, sussurrou: – Aqui.
– James Heron – ela disse, lendo a inscrição simples na lápide. – Você conhece ele?
Matthias olhou ao redor do cemitério.
– Sim.
– Em que contexto?
– Preciso ir – ele se levantou e se afastou dela. – Obrigado.
Mels franziu a testa.
– Do que está falando?
– Você precisa ir embora agora...
– Você não tem condições de andar de volta até a cidade. E boa sorte se quiser achar um táxi.
– Por favor, você precisa ir embora.
– Diga por que e talvez eu considere.
Em um movimento súbito, o homem se aproximou dela, chegando perto... muito perto. Tomando fôlego, Mels precisou forçar para que seus pés não se mexessem... e foi um choque quando percebeu que os pés desejavam que seu corpo terminasse o que ele havia começado.
Só era preciso mais um passo para que seus peitos se tocassem e seus quadris se apertassem um contra o outro.
Não era a ideia mais brilhante, já que parecia que o predador dentro dele se libertara. Mas ela não queria ser sensata.
Mels o desejava.
Mas isso não fazia parte do plano.
Levantando o queixo, ela disse:
– Se pensa que essa agressividade é persuasiva, você está errado. E eu estou esperando uma explicação.
Matthias se inclinou para frente, e o movimento de seus quadris a deixou totalmente ciente do quão mais alto ele era. Quão mais forte, mesmo machucado. E o quanto seus olhos ardiam, mesmo através dos óculos escuros.
Com uma voz grave e perigosa, Matthias disse:
– Porque você vai morrer se não se afastar de mim.
CAPÍTULO 11
Local não revelado Washington, D.C.
– Este é o alvo.
A foto que caiu com a imagem para cima na lustrosa mesa chegou ao agente por força da inércia.
O rosto instantaneamente pareceu familiar. Afinal, quem nas Operações Extraoficiais não conhecia aquele homem?
O agente ergueu os olhos na direção de seu superior.
– Qual a localização?
– Caldwell, Nova York.
O endereço foi passado oralmente, assim como todas as outras instruções. E ele não podia ficar com a foto. E aquela sala, em um prédio absolutamente comum na capital da nação, não registrava nada daquela conversa. Sem rastros. Nunca.
– Obviamente, consideramos que ele está armado e é extremamente perigoso.
Com certeza. Sempre fora – mas glórias não duram para sempre, e você nunca deixa de ser um agente das Operações. As únicas classificações para um agente eram “em atividade” ou “eliminado”.
E ele seria o responsável pelo carimbo de “eliminado”, nesse caso.
– As regras normais se aplicam – disse o superior.
É claro que sim: agiria sozinho, era o único responsável pela missão e, se falhasse, era melhor rezar para morrer – ou fazer isso por si próprio. Essas regras eram muito conhecidas pelo pequeno grupo de agentes que foram escolhidos a dedo pelo diabo em pessoa...
Matthias. Aquele que os liderara nos últimos dez anos. O astuto jogador de xadrez, o mestre da manipulação, o violento sociopata que servira de modelo para todos eles.
Por um momento, parecia estranho receber ordens de outra pessoa – mas, considerando quem era o alvo...
No entanto, a organização precisava seguir em frente, e seu atual superior subira rápido na hierarquia, claramente se posicionando como o herdeiro do trono. Isso explicava o que estava fazendo agora. Pontas soltas eram inaceitáveis.
– Mais alguma coisa de que eu precise saber?
– Apenas não estrague tudo. Você tem 24 horas.
O agente esticou a mão enluvada e trouxe a foto para mais perto. Observando aquele rosto, pensou que, se alguém tivesse lhe contado sobre as mudanças que aconteceram nos últimos dois anos, ele se convenceria de que essa pessoa estava maluca.
Porém, lá estava ele, olhando para aquele poderoso homem na fotografia, que agora estava condenado à morte. Se o agente falhasse ao tentar matá-lo, a organização mandaria outro. E outro. E mais outro. Até que a missão fosse cumprida.
E, conhecendo o alvo, talvez precisassem de mais de uma tentativa.
Seu superior pegou de volta a fotografia e caminhou até uma porta que parecia normal, mas que na verdade era à prova de balas, fogo, bombas e som. Assim como as paredes, o teto e o chão.
Após um escaneamento da retina, a porta se abriu e depois fechou, deixando o agente sozinho para ponderar suas opções: uma vez que a missão fosse entregue, os métodos de execução ficavam por conta do agente designado. Os chefes se importavam apenas com os fins, não com os meios.
Caldwell, em Nova York, ficava a apenas uma hora e meia de avião, mas era melhor ir de carro. Não dava para saber que recursos tinha seu alvo, e aviões podiam ser rastreados mais facilmente do que carros sem identificação.
Enquanto o agente deixava o edifício, o fato de que poderia estar se dirigindo para a própria morte era irrelevante – e essa era parte da razão de ele ter sido selecionado dentre tantos outros soldados e civis que se “inscreviam” para as Operações Extraoficiais. Cuidadosas avaliações psicológicas e físicas eram conduzidas, não durante semanas ou meses, mas por anos, antes que o candidato recebesse o sinal verde. Afinal, o trabalho exigia uma incomum combinação de urgência e desapego, lógica e iniciativa, disciplina mental e física.
Assim como o simples prazer em matar outros seres humanos.
Ao final do dia, ele achava divertido bancar o Ceifeiro da Morte, e essa era a única maneira legal e sancionada de fazer isso. Mesmo o mais cuidadoso assassino em série acaba preso com o passar do tempo. Mas e trabalhando para o governo dos Estados Unidos?
Seu único limite era sua habilidade de permanecer vivo.
CAPÍTULO 12
Matthias precisava se afastar de Mels.
Não havia nenhuma outra opção. No cemitério, junto dela, encarando a lápide de Jim Heron, pareceu muito claro que eles estavam separados entre a vida e a morte – e ela estava no lado da vida.
Matthias queria mantê-la assim.
Depois de discutirem por um momento, ela o deixou, afastando-se com uma rapidez eficiente que ele aprovava. Matthias permaneceu no local de descanso de Jim Heron pelo tempo que julgou ser necessário até Mels chegar ao carro de seu amigo – e, como ele esperava, o Toyota não estava mais no portão principal do cemitério quando ele retornou.
E ela estava certa quanto à falta de táxis, mas havia um ponto de ônibus não muito longe e, embora isso o obrigasse a esperar, acabou conseguindo voltar ao centro da cidade por conta própria.
Melhor assim. Uma separação definitiva – ao menos fisicamente. Em sua mente, ele tinha o pressentimento de que não seria tão fácil.
Apesar de ainda possuir uma parte dela, de forma concreta: os óculos escuros. Ela não os pedira de volta, e ele esqueceu que estavam em seu rosto.
E esconder seu olho ruim seria muito útil em uma situação como a dele.
Matthias entrou no Starbucks da rua Quinze e avaliou o local através de seu Ray-Ban. O horário de pico do almoço já tinha passado e os fregueses das três da tarde ainda não tinham aparecido para lotar o local em busca de um remédio para sua sonolência vespertina. Havia apenas duas pessoas tomando café com leite, além de um par de baristas do outro lado no balcão.
Ele escolheu a barista cheia de piercings na sobrancelha e cabelo espetado azul e rosa.
Quando se aproximou, ela ergueu um olhar que parecia contar as horas para ir embora, mas sua expressão mudou rapidamente. Para algo a que ele já estava acostumado.
Era uma expressão de interesse feminino.
Matthias escolheu sabiamente.
– Olá – ela disse, enquanto pesquisava seu rosto... e depois a bengala e a jaqueta preta.
Ele sorriu, como se também estivesse momentaneamente interessado nela.
– Ah, escuta, eu combinei de encontrar um amigo aqui, mas ele não apareceu. Eu ia ligar para ele do meu celular, mas percebi que esqueci em casa. Posso usar seu telefone?
Ela deu uma olhada em seu colega de cafeteria. O cara estava encostado nos fundos ao lado das máquinas de café, braços cruzados ao redor do peito magro, como se estivesse descansando em pé.
– Sim. Pode sim. Venha aqui.
Matthias a seguiu pelo balcão, exagerando seu andar manco.
– Preciso ligar para o disque-informações primeiro, pois não lembro o número dele. Mas não se preocupe, é uma ligação local. Não acredito que esqueci meu celular!
– Acontece com todo mundo! – ela estava toda agitada, seus olhos pousavam rapidamente nele e depois se desviavam, como se ele fosse brilhante demais para se olhar por muito tempo. – Mas eu preciso discar, você não pode entrar atrás do balcão.
– Sem problema – quando ela lhe entregou o fone, ele o pegou e sorriu devagar. – Obrigado.
Ela ficou ainda mais encabulada. Ao ponto de precisar discar duas vezes até conseguir chamar o número desejado.
Matthias casualmente se virou e fingiu checar a entrada procurando por seu “amigo” quando uma voz gravada atendeu:
– Cidade e estado, por favor.
– Caldwell, Nova York – houve uma pausa. Ele esperou um atendente. – Por favor, o número de James Heron.
Enquanto Matthias esperava pela informação, a garota pegou um pano e passou casualmente pelo balcão. Mas ela estava escutando, com as sobrancelhas abaixadas.
– H-E-R-O-N – soletrou Matthias. – O primeiro nome é James.
Mas que droga, de que outro jeito dá para soletrar esse nome?
A atendente voltou a falar:
– Desculpe, mas não encontro ninguém com esse sobrenome em Caldwell. Quer tentar algum outro nome?
Que merda! Mas, de alguma forma, isso não o surpreendia. Seria muito fácil. E nem um pouco seguro.
– Não, obrigado – Matthias virou-se e entregou o fone para a garota. – Não tive sorte. O nome não está na lista.
– Você disse “Heron”? – perguntou a garota enquanto pendurava o fone. – Aquele cara que morreu?
Matthias estreitou os olhos – mas ela não podia ver, graças ao Ray-Ban.
– Mais ou menos. Meu amigo é irmão dele, na verdade. Moravam juntos. O telefone estava no nome de Jim. Como eu disse, meu amigo e eu combinamos de nos encontrar aqui pra, você sabe, conversar sobre tudo isso. É tão difícil perder alguém dessa maneira, e estou preocupado com o que isso pode fazer com a cabeça dele.
– Oh, Deus, foi triste demais – a garota jogava o pano de uma mão para outra. – Meu tio trabalhou com ele. E estava lá quando foi eletrocutado. E pensar que levou um tiro, tipo, dias depois. Quer dizer, como é possível? Sinto muito por seu amigo.
– Seu tio conhecia o Jim?
– Ele é gerente de recursos humanos na construtora em que Jim trabalhava.
Matthias respirou fundo, como se estivesse engasgando.
– Jim era um cara muito legal. Nós estivemos na guerra juntos – bateu com a bengala no balcão. – Sabe como isso é.
Quatro... três... dois... um...
– Olha, eu posso ligar pro meu tio se você quiser. Talvez ele tenha o telefone. Espera um pouco.
A garota saiu de trás do balcão, parou um pouco, depois assentiu para si mesma, como se estivesse em uma missão pelo bem, determinada a “fazer a coisa certa”.
Enquanto Matthias esperava ela voltar, ficou esperando também que sua consciência o repreendesse por causa da manipulação.
Quando não sentiu nada, ficou perturbado com a facilidade da coisa. Como se mentir fosse tão familiar e insignificante que seu cérebro registrasse essa ação como um simples reflexo.
A barista retornou cerca de cinco minutos depois com um número escrito em um papel de carta feminino, que traía completamente seu visual radical.
– Vou discar pra você.
A barista voltou para trás do balcão e entregou novamente o telefone a Matthias, que ficou escutando o som das teclas enquanto ela apertava os botões.
Ouviu o som de chamada. Um. Dois. Três. Quatro toques.
Nada de correio de voz. Nenhuma resposta.
Ele devolveu o telefone.
– Não tem ninguém em casa.
Afinal, o que ele esperava? Acordara no túmulo do cara e agora achava que Heron fosse atender o telefone? Era uma longa distância entre o caixão e a companhia telefônica.
– Talvez ele esteja a caminho?
– Talvez – Matthias encarou a garota por um momento. – Obrigado. Obrigado mesmo.
– Quer um café enquanto espera?
– Acho que vou dar uma passada na casa dele. Às vezes as pessoas reagem a uma tragédia... de um jeito estranho.
Ela assentiu, preocupada.
– Sinto muito.
E sentia mesmo. Uma completa estranha sentia pena, honestamente, por o que quer que ele estava passando.
Ele imediatamente pensou em Mels, que também parecia tão disposta a ajudar.
Pessoas boas. Pessoas gentis. E sua memória defeituosa dizia que Matthias não merecia ficar entre esse tipo de companhia.
– Obrigado – ele disse com a voz rouca antes de sair mancando pela porta.
A pistola calibre quarenta na mão de Jim pesava menos de um quilo, e já estava carregada com dez balas no pente e uma na agulha.
Ele manteve a arma abaixada ao lado da coxa enquanto saía da garagem. Depois do episódio no chuveiro, Adrian saíra para tomar ar e trazer comida, levando sua Harley, mas não o capacete. O Cachorro estava seguro no andar de cima, descansando na cama sob o sol. Jim estava de guarda.
Você não vê? Ela está dentro de mim... e está me dominando...
Merda.
Pelo menos Jim tinha um escape. O bom da garagem era que ela ficava nos fundos do terreno de uma casa de fazenda – e a casa da frente, branca, com sua varanda e chaminé de tijolos, estava vazia desde que ele começara a alugar o local.
Ninguém veria. Mas isso ainda não era suficiente.
Ele enfiou a mão livre dentro da bota e retirou um silenciador. A peça adicionava quase trezentos gramas ao peso da pistola automática e mudava seu centro de gravidade, mas Jim estava acostumado a usá-la daquela maneira.
Agora, ninguém ouviria também.
De pé sobre o cascalho solto do caminho de entrada, ele tragou o cigarro e então o segurou com a mão esquerda. Concentrando-se em um galho que estava a dez metros do chão, levantou a arma e mirou no pedaço de madeira de três centímetros.
Respirando calmamente, Jim fechou os olhos e pensou no rosto de Devina.
Crack!
Graças ao silenciador, o som da pistola foi bastante reduzido, apenas um estampido contra sua mão e o impacto na árvore.
Crack!
O gatilho, assim como o cabo e o tambor, não eram apenas uma extensão de seu braço, mas também de seu corpo, e ele não precisava dos olhos para reajustar a trajetória. Sabia exatamente onde o chumbo acertaria.
Crack!
Calmo. Concentrado. Respirando pela barriga, não pelo peito. Imóvel, exceto pelo dedo indicador e depois pelos músculos do antebraço ao absorverem o súbito coice da arma.
O impacto da última bala foi mais suave; afinal, já não restava muita madeira.
Ele abriu os olhos assim que o galho começou uma queda livre, batendo em seus irmãos até chegar ao chão duro.
Colocando o Marlboro de volta entre os dentes, Jim esmagou as pinhas e a grama rala com suas botas de combate ao andar até a árvore e pegar o galho. Foi um corte preciso, relativamente falando. Nada igual ao que uma serra faria, mas, considerando a distância e os meios, parecia bom o suficiente.
– Você é um ótimo atirador.
O sotaque inglês altivo vindo de trás de Jim o fez querer continuar apertando o gatilho.
– Nigel.
– Cheguei num momento inapropriado?
– Ainda tenho sete balas. Você decide.
– Devina sofreu uma reprimenda – Jim girou o corpo e estreitou os olhos na direção do arcanjo aristocrático, que assentiu. – Queria que soubesse. Pensei que seria muito importante te informar disso.
– Está preocupado pensando que estou perdendo o rumo?
– Mas é claro.
Jim teve de sorrir.
– Você consegue ser direto quando lhe convém. Então, o que é que seu Criador fez com minha inimiga?
– Ela é seu oponente...
– Inimiga.
Nigel colocou as mãos para trás e começou uma caminhada excêntrica. Vestia um terno fora de moda cortado à mão, do tipo que era totalmente estranho a Jim, e que continuaria desse jeito.
– Qual é o problema, chefe? – Jim murmurou. – O gato comeu sua língua?
O arcanjo lhe lançou um olhar que o faria cair morto ali mesmo, se Jim estivesse vivo do jeito convencional.
– Você não é o único com temperamento explosivo, e eu devo te lembrar de tomar cuidado com o tom e as palavras quando se dirigir a mim.
Jim guardou a arma na cintura.
– Certo. Chega de papo furado. O que posso fazer por você?
– Nada. Eu simplesmente pensei que você se acalmaria se soubesse que o Criador agiu. Eu te disse pra deixar que o demônio cruzasse os limites. Eu te disse pra esperar pelas consequências. E elas vieram.
– O que Ele fez com ela?
– As vitórias e derrotas que vocês conquistaram são permanentes. Não há nada que Ele ou qualquer um de nós possa fazer a respeito de onde as bandeiras foram... elas são imutáveis. Mas Ele decretou que as ações de Devina não podem ficar impunes.
– Espere, não estou entendendo. Se o que Devina fez afetou o resultado de uma rodada, então sua vitória tem que ser anulada.
– Não é assim que essa competição funciona. As vitórias... – o arcanjo olhou para o céu. – O paralelo seria propriedade pessoal, suponho.
– Minha?
– De certa maneira, eu diria que sim.
– Então, se ela quebrou as regras e isso mudou o resultado, o Criador deveria dar de volta aquilo que é meu de direito. E, já que estamos falando nisso, quero lembrar que, se eu soubesse que a alma em questão era o Matthias, eu não teria me concentrado no homem errado.
– E isso foi corrigido.
– Como?
Ao longe, do outro lado do campo, um carro saiu da estrada e entrou no caminho que passava pela casa da fazenda.
Merda. Visitantes não eram nada bem-vindos – e a cor amarela sugeria um táxi.
O carro não parou na residência principal.
Nigel levantou uma sobrancelha.
– Acredito que ficará evidente.
Após mais uma de suas frases enigmáticas, o chefe desapareceu.
– Obrigado, amigão – Jim murmurou. – Grande ajuda de merda. Como sempre.
Protegendo-se em um canto, Jim encostou os ombros na parede de alumínio. A arma não permaneceu na cintura. Ele a segurou mais uma vez, preparado para atirar.
O táxi estacionou na frente da garagem.
Um momento depois, um homem que ele nunca esperava ver de novo saiu do banco do passageiro... um pesadelo que vivia e respirava... um problema do passado, que Jim já resolvera.
Então esta era a solução para a trapaça de Devina?
– Filho... da puta – Jim sussurrou.
CAPÍTULO 13
Matthias saiu do táxi e pediu que o motorista esperasse. A garagem à sua frente era uma espécie de galpão de armazenamento, com escadas que levavam para o segundo andar. As portas duplas no andar térreo estavam fechadas; a do andar de cima e as cortinas também.
Na janela do andar superior, as cortinas se separaram e um cachorro desgrenhado apareceu, como se estivesse de pé com as patas da frente apoiadas na parede.
Alguém claramente vivia ali.
– Mande o táxi embora.
Matthias virou rapidamente a cabeça para a direita, e o homem que surgiu de trás da garagem o fez quase perder o equilíbrio, fazendo uma lembrança vívida e instantânea surgir em sua memória.
Jim Heron. De volta do mundo dos mortos.
O instinto de Matthias lhe dizia que o cara sempre tivera aquele grande corpo musculoso, cabelo loiro escuro, o rosto frio e de feições endurecidas. Mas não havia contexto em sua lembrança, não havia um comentário interno sobre como ele conhecia o homem, ou o que viram e fizeram juntos. Porém, uma coisa estava clara... mesmo sem a arma, era óbvio que aquele não era o tipo de cara que você quer por perto se estiver desarmado e sem um veículo de fuga.
Matthias bateu no vidro, entregou uma nota de vinte ao motorista e o deixou ir embora.
Quando o carro manobrou e partiu pelo caminho de entrada, o som dos pneus esmagando o cascalho parecia tão alto quanto disparos de uma arma.
– Isso é uma arma na sua perna ou você está apenas feliz de me ver? – Matthias disse secamente.
– É uma arma. E você quer me dizer o que está fazendo aqui?
– Diria, se soubesse. Talvez você possa me ajudar com essa pergunta.
– O quê? – quando Matthias não respondeu, os olhos azuis cínicos de Heron ficaram ainda mais estreitos. – Você está falando sério. Isso foi uma pergunta sincera.
Matthias deu de ombros.
– Interprete do jeito que quiser. E enquanto pensa, eu gostaria de comentar que você supostamente está morto.
– Como você me encontrou?
– Procurei na central de informações. De certa maneira.
Quando Heron se aproximou, Matthias percebeu que a posição da arma com o silenciador mudou e que agora o tambor estava apontado diretamente para seu peito. E podia apostar que o gatilho seria apertado em um instante, se fosse preciso. O que significava que aquele homem com estilo militar era paranoico... ou que, por alguma razão, considerava Matthias perigoso.
– Estou desarmado – Matthias anunciou.
– Não faz o seu feitio.
A arma não foi abaixada; aquele corpo não relaxou; aqueles olhos não perderam o ar de alerta.
– Você não acredita em mim – disse Matthias.
– Depois de tudo o que passamos? Nem um pouco, meu velho amigo.
– Nós éramos amigos?
– Não, você está certo. Nós fomos muitas coisas, mas nunca amigos – Heron balançou a cabeça. – Mas que merda, sempre que não espero mais te ver, você aparece.
Heron sabia as respostas, pensou Matthias. O homem que estava bem à sua frente era o caminho para ele descobrir quem era.
– Bom – murmurou Matthias –, considerando que você ainda está respirando, mas que eu visitei o seu túmulo uma hora atrás, eu não sou o único tirando coelhos da cartola. Se importa de me contar onde foi que nos vimos pela última vez?
– Você está falando sério? – quando ele assentiu, Heron balançou a cabeça novamente. – Está dizendo que não se lembra?
Matthias levantou as mãos, mostrando as palmas.
– Não tenho nada.
A atitude desconfiada de Jim foi substituída por uma breve surpresa.
– Jesus.
– Acho que não. Minha carteira de motorista diz “Matthias”.
A risada que recebeu como resposta foi um pouco assustadora.
– Se importa se eu te revistar?
Matthias encostou a bengala na perna e levantou as mãos.
– Manda ver.
Jim fez o procedimento com uma das mãos e, quando se afastou de novo, soltou outro palavrão.
– Claramente você perdeu a cabeça.
– Não, apenas minha memória. E preciso que você me diga quem sou eu.
Houve um longo silêncio, como se Heron tentasse preencher os buracos da história em sua cabeça. Finalmente, disse:
– Vou pensar bem antes de contar as coisas do seu passado. Mas vou te ajudar. Disso você pode ter certeza.
– Isso não é bom o suficiente. Preciso das informações. Agora.
– Acha mesmo que está em posição para fazer exigências?
Enquanto Jim conduzia seu antigo chefe, Matthias, o Cretino, para o andar de cima, ele não conseguia acreditar em tudo aquilo. E não importava o quanto seu cérebro se esforçasse: parecia que os porcos realmente podiam voar, que o Inferno estava cheio de bolas de neve, e que em algum lugar um cachorro velho aprendia a dirigir uma droga de um carro.
Era disso que Nigel estava falando? Uma repetição da segunda rodada?
Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
Parece que concentrar-se na alma errada não seria um problema desta vez – desde que o discurso cifrado de Nigel estivesse mesmo certo e Matthias, mais uma vez, fosse a alma em jogo.
O que não era uma maneira tão boa de penalizar Devina. Merda!
Mas havia uma boa notícia – se é que podia existir alguma notícia boa nessa história de voltar do mundo dos mortos: a perda de memória. O velho Matthias nunca se exporia com uma fraqueza como amnésia, portanto provavelmente era verdade – e Deus sabia que esse buraco negro de informações seria muito útil.
Assim, Jim precisava trabalhar apenas contra a natureza.
Abriu a porta e deu espaço para Matthias entrar.
– Humilde lar, e essas coisas.
Enquanto Matthias mancava para dentro, o Cachorro correu e balançou o rabo lhe dando boas-vindas, com suas patas fazendo barulho no chão de madeira.
Considerando a alegria do cão, parecia óbvio que Devina não estava usando o corpo daquele homem. O que foi uma boa dica.
Jim fechou a porta e observou seu ex-chefe. Mancava do mesmo jeito. Tinha a mesma voz. O mesmo rosto. Os óculos escuros não surpreendiam, considerando o estado dos olhos do cara.
– Eu ofereceria comida, mas tenho que esperar meu amigo voltar. Pode usar o sofá enquanto isso.
Matthias grunhiu quando sentou.
– Eu ainda fumo – ele disse, acenando para o maço em cima da mesa.
– Pensei que não se lembrava de nada.
– Certas coisas... eu acabo lembrando.
Jim foi até a pequena cozinha e parou em frente à pia. Por alguma razão, ele queria estar perto de Eddie.
– Então, vamos começar com exatamente o que você lembra.
– Eu sei que acordei na sua sepultura.
– A morte é relativa.
– Então, nós dois somos um milagre.
Jim levantou uma sobrancelha.
– Pelo menos um de nós é. Vamos ver quanto ao outro. Como me encontrou?
– Central de informações.
– O telefone daqui não está no meu nome.
– Mas você deu esse número no seu último emprego. Fui até a biblioteca, busquei o número na internet e achei você. Não é um esconderijo muito bom.
– Não estou me escondendo de ninguém.
– Então, por que você está morto, mas vivo?
– Vamos nos concentrar apenas em você, certo?
– Certo. Então, por que está com medo de mim? – quando Jim apertou o maxilar, Matthias sorriu do jeito que sempre fazia, mostrando todos os dentes brancos e afiados. – Aliás, isso não é uma lembrança. É a arma na sua mão. Estamos na sua casa, protegidos... se eu não fosse uma ameaça, você guardaria a arma.
Filho... da puta.
Mesmo com amnésia, o cara era um cretino.
Com essa deixa, Jim se aproximou, mantendo os olhos no Ray-Ban que o outro usava. Com a ponta da arma virada para Matthias, colocou a pistola na mesa e a empurrou para o outro lado.
– Fica com ela, se quiser.
– Você vai me dar uma arma?
– Claro, por que não? Pense nisso como um presente por sua volta pra casa.
– Estou em casa?
– Não neste lugar em particular... você não pode ficar aqui, e nunca esteve aqui. Nunca.
Matthias sorriu um pouco.
– Bom, não quero ficar na minha casa.
– E onde é isso exatamente?
O homem colocou a mão no bolso, tirou a carteira e jogou a carteira de motorista na mesa, sobre a arma.
Jim olhou a identificação. Era bem feita, com todos os hologramas no lugar certo. O sobrenome não estava correto, é claro, mas o primeiro nome e a foto estavam.
– O que você sabe sobre mim? – exigiu o homem.
– Bela foto – Jim disse ao recostar-se na parede.
– Não estou perguntando sobre meu futuro como modelo. Por que está evitando minhas perguntas?
– Estou tentando decidir como fazer esta jogada.
– Estamos em um jogo?
– Sim, estamos. E você não pode nem imaginar o que está em jogo – Jim decidiu sentar ao lado de seu hóspede. – Como eu disse antes, por que não começa contando o que você lembra?
Os óculos escuros baixaram, como se Matthias estivesse encarando o chão. Ou talvez suas botas, ou a bengala.
– Fui atropelado por um carro do lado de fora do Cemitério Pine Grove ontem à noite e acordei no hospital sem saber quem eu era ou onde estava. Hoje, tentei me lembrar refazendo meus passos, até que cheguei na sua sepultura – o Ray-Ban subiu de novo e ele olhou ao redor. – Eu reconheci seu nome no instante em que o vi. Reconheci você também, no exato momento em que saiu de trás da casa.
A expressão no rosto de Jim não mudou.
– Não é uma surpresa... nós dois temos muita história juntos. E é por isso que vou te ajudar.
– Então comece dizendo como isso tudo... – Matthias fez um gesto com a mão, mostrando todo o seu corpo – aconteceu.
– Os ferimentos?
– Não, minha roupa de balé. De que merda você acha que estou falando?
– Tire os óculos.
– Por quê?
– Quero olhar nos seus olhos quando responder.
A mão tremeu quando tirou os óculos, mas Jim apostava que era uma fraqueza física, e não mental. E ele estava certo.
– Como os ferimentos aconteceram? – seu ex-chefe repetiu, com uma voz grave.
– Você tentou se matar na minha frente. Plantou uma bomba na areia e pisou nela, bem na minha frente.
Matthias olhou para a própria perna e suas sobrancelhas se juntaram, como se o cérebro estivesse calculando dois mais dois.
– Por que eu fiz isso?
Como responder sem revelar demais?
– Você odiava o homem que era. Não podia mais continuar daquele jeito, e deu um jeito de não ter mais que fazer isso.
– Mas eu não morri.
– Não dessa vez – Jim levantou-se. – Meu amigo voltou.
Um segundo depois, o som de uma Harley invadiu o local através da janela, aumentando até parar totalmente.
– Você tem um bom ouvido – Matthias comentou.
Jim encarou o homem, pensando em como faria para trabalhar a situação em seu favor. Com um pequeno sorriso, murmurou:
– É o menor dos meus truques.
CONTINUA
CAPÍTULO 1
Sepultura.
Como na lápide e na terra recém-cavada, como em um corpo lá em baixo, como das cinzas às cinzas e do pó ao pó.
Matthias estava nu em uma sepultura. Em meio a um cemitério que se estendia até onde seus olhos podiam enxergar.
A primeira coisa que surgiu em sua mente foi a tatuagem que fizera seus homens usarem nas costas, com o desenho do Ceifeiro da Morte pairando sobre um campo de lápides e tumbas.
Que irônico – talvez estivesse prestes a ser cortado por uma foice a qualquer momento.
Tente repetir isso três vezes, bem rápido.
Piscou os olhos tentando clarear a vista, juntou os braços para se aquecer e esperou que o cenário voltasse à realidade. Quando nada mudou, ele se perguntou aonde teria ido aquele muro em que estivera preso para toda a eternidade.
Será que finalmente estava livre daquela tortura nojenta e superlotada?
Teria escapado do Inferno?
Soltando um grunhido, tentou se erguer, mas até levantar a cabeça estava difícil. Afinal, descobrir em primeira mão que aqueles lunáticos religiosos estavam certos sobre uma porção de coisas realmente faz você querer tirar um cochilo: de fato, os pecadores iam lá para baixo, e não para o Sul, e, uma vez lá, o sofrimento faz todas as coisas de que você reclamava em vida parecerem um passeio no Universal Studios.
O Demônio existia.
E sua sala de estar era uma merda.
Mas os religiosos não sabiam de toda a história. Acontece que Satã não possuía chifres ou uma calda. Também não havia nada de tridente e pés de bode. Bom, era mesmo metade bicho – se você considerar que o bicho em questão seja uma vaca. E usa muito vermelho. Afinal, morenas ficam bem com essa cor – ao menos, era isso que ela dizia a si mesma.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/FASC_NIO.jpg
Com seu olho esquerdo, que ainda funcionava, Matthias piscou novamente, preparando-se para retornar para a densa e ardente escuridão, com os gritos dos condenados ecoando em seus ouvidos e sua própria dor rasgando pela garganta e explodindo pelos lábios rachados...
Mas nada disso aconteceu. Ele ainda estava em uma sepultura. Ainda estava em um cemitério.
Completamente pelado.
Concentrando-se, enxergou, com seu único olho bom, uma paisagem cheia de túmulos de mármore branco, sepulturas de famílias marcadas com anjos e fantasmagóricas estátuas da Virgem Maria – embora as lápides simples fossem bem mais numerosas, como se os plebeus tivessem tomado conta do lugar. Pinheiros e carvalhos projetavam sombras através de gramados desalinhados e bancos de metal. As lâmpadas dos postes emitiam um brilho alaranjado, como velas num bolo de aniversário, e as passarelas estreitas poderiam até ser românticas se estivessem em outro lugar.
Mas ali, com certeza, não eram. Não naquele contexto de morte...
De repente, cenas de sua vida passaram por sua mente, fazendo-o se perguntar se estaria experimentando a morte pela segunda vez. Ou pela terceira, como seria o caso.
Não havia alegria nessa retrospectiva. Nada de esposa amorosa, nem filhos bonitos, nem uma casinha aconchegante. Apenas cadáveres, dezenas, centenas de cadáveres, todos mortos por ele próprio ou por ordem sua.
Matthias havia feito muito mal, o verdadeiro mal, durante sua vida.
Forçou-se a sentar na terra úmida. Seu corpo parecia um quebra-cabeça cujas peças não encaixavam direito: seus membros se uniam em juntas que pareciam folgadas em alguns lugares e apertadas em outros. Mas isso é o que acontece quando você se despedaça e tudo o que tem para se recompor são as habilidades limitadas de cura e medicina.
Ele direcionou seu olho para a lápide e franziu a testa.
James Heron.
Meu Deus, James Heron...
Ignorando o tremor de suas mãos, ele traçou as letras gravadas na pedra – a ponta de seus dedos percorreu o texto esculpido no granito cinzento.
Soltou um suspiro áspero, como se a dor repentina atrás de suas costelas tivesse forçado o ar para fora dos pulmões.
Matthias nunca soubera que realmente havia uma recompensa eterna após a morte, que suas ações eram de fato levadas em conta, que havia um julgamento ao final da última batida de seu coração. Mas a dor não era por causa disso. Era porque sabia que, mesmo se tivesse conhecimento do que o esperava, ele não seria capaz de fazer nada diferente.
– Sinto muito – falou, se perguntando para quem realmente dizia aquilo. – Porra, sinto muito mesmo...
Nenhuma resposta.
Olhou para o céu.
– Sinto muito.
De novo, nada de resposta, mas tudo bem. De qualquer forma, os arrependimentos estavam se acumulando em sua mente e não havia muito espaço para contribuições de terceiros.
Enquanto se esforçava para levantar, seu tronco tombou e precisou se apoiar na lápide para retomar o equilíbrio. Deus, ele estava acabado. Suas coxas estavam cobertas de cicatrizes, sua barriga cheia de lesões, uma panturrilha quase despida de carne. Os médicos realizaram um verdadeiro milagre com seus parafusos e hastes, mas, comparado com o jeito como nascera, Matthias parecia um brinquedo quebrado remendado com fita adesiva e supercola.
E o suicídio deveria ter funcionado. Mas Jim Heron foi a razão de ele ter sobrevivido por outros dois anos. Até que a morte o encontrou e o levou, provando que a Terra apenas pegava as almas emprestado – o outro lado é que realmente as possuía.
Por força do hábito, olhou ao redor procurando sua bengala, mas então se concentrou naquilo que seria mais provável encontrar: sombras que o perseguiam, fossem aquelas criaturas ardilosas do Inferno ou meros humanos.
De um jeito ou de outro, ele estava ferrado: como ex-chefe da organização secreta que eles chamavam de Operações Extraoficiais, Matthias tinha mais inimigos do que um ditador do Terceiro Mundo, e todos eles possuíam armas e podiam contratar quem as tivesse. E, como fugitivo do parquinho do diabo, nem era preciso mencionar que ele não escapara de graça da prisão.
Mais cedo ou mais tarde, alguém viria atrás dele. E, apesar de Matthias não possuir nada pelo que valesse a pena viver, seu ego era razão suficiente para lutar e se defender.
Ou pelo menos fazer de si um alvo menos fácil.
Começou a caminhar mancando e continuou com a graça de um espantalho – seu corpo sacudia com espasmos que culminavam numa marcha que doía como o diabo. Para conservar o calor, tentou abraçar a si mesmo, mas isso não durou muito. Precisava usar os braços para manter o equilíbrio.
Com movimentos de zumbi e a cabeça completamente confusa, ele continuou a caminhada, atravessando a grama desalinhada, passando pelas lápides, sentindo o toque da fria brisa que cortava sua pele. Não tinha a menor ideia de como conseguira escapar. Não sabia para onde iria. Que dia, mês, ano seria.
Roupas. Abrigo. Comida. Armas.
Assim que tivesse assegurado o básico, ele se preocuparia com o resto. Isso se não fosse abatido antes – afinal, um predador ferido se torna uma presa rapidamente. É a lei da selva.
Pensou ter encontrado mais uma sepultura ao se aproximar de uma construção de pedra com ornamentos de ferro fundido. Mas o nome “Cemitério Pine Grove” gravado no topo da fachada e a grande fechadura na porta frontal sugeriam que era uma instalação dos funcionários.
Felizmente, alguém deixara aberta uma fresta da janela dos fundos.
Mas é claro, a janela estava emperrada naquela posição.
Ele pegou um galho caído, o colocou na fresta e forçou até a madeira curvar.
A janela começou a ceder, soltando um chiado agudo.
Matthias congelou.
Pânico, uma sensação pouco familiar, que foi aprendida da maneira difícil, o fez girar e procurar as sombras. Conhecia aquele som. Era o barulho que os lacaios do demônio faziam quando estavam atrás de você...
Nada.
Apenas túmulos e postes de luz que, não importa o quanto sua adrenalina sugerisse o contrário, não se transformavam em nada.
Praguejando, ele voltou ao trabalho. Usou o galho como alavanca até abrir espaço suficiente para poder se espremer e passar. Erguer o corpo foi um sacrifício, mas, assim que seus ombros passaram, ele deixou a gravidade cuidar do resto. O chão de concreto no qual aterrissou parecia uma grade de ferro, e ele precisou de um tempo enquanto seu fôlego escapava da garganta, seu estômago embrulhava e dores surgiam em mais lugares do que ele conseguia contar.
No teto, luzes fluorescentes piscaram e depois acenderam de vez, cegando-o.
Malditos sensores de movimento. O lado bom era que, assim que seus olhos se ajustaram, ele teve uma clara visão de todo tipo de ferramenta de jardinagem. O lado ruim? Ele era um diamante em uma vitrine, pronto para ser capturado.
Pendurados em ganchos na parede, como se fossem peles de animais mortos, havia vários conjuntos de macacões impermeáveis, esperando para serem usados. Ele prontamente vestiu uma parte de baixo e uma parte de cima. Essas roupas foram feitas para ficar folgadas, mas em seu corpo pareciam grandes velas de um barco.
Melhor assim. Melhor com as roupas, mesmo elas cheirando a fertilizante, e mesmo com o atrito, que logo se tornaria um problema. Havia um boné do Boston Red Sox em um dos cantos, e Matthias o vestiu para ajudar a conservar o calor do corpo; então olhou ao redor procurando qualquer coisa que pudesse servir como bengala. As pás eram muito pesadas para ser eficientes, e os rastelos também não ajudariam.
Dane-se. Sua missão imediata era se afastar das luzes que banhavam o show de horrores do seu corpo.
Saiu da mesma maneira que entrou, forçando-se através da janela e aterrissando duramente no chão. Não tinha tempo para reclamar do impacto desta vez; precisava continuar se movendo.
Antes de morrer e ir para o Inferno, Matthias sempre fora o perseguidor. Caramba, durante sua vida inteira ele fora o caçador, aquele que espreitava, encurralava e destruía. Mas agora, retornando à escuridão daquelas sepulturas, todas as intangibilidades da noite eram perigosas até que se provasse o contrário.
Esperava que estivesse de volta em Caldwell.
Se estivesse, tudo o que precisava fazer era manter-se discreto e seguir para Nova York, onde possuía um abrigo com mantimentos.
Sim, rezava para que fosse Caldwell. Quarenta e cinco minutos ao sul pela estrada era tudo o que precisaria. Já acabara de arrombar e invadir um lugar; fazer uma ligação direta em um carro velho era outra habilidade que poderia ressuscitar.
Uma vida depois, ou pelo menos o que pareceu ser uma vida depois, ele chegou até o portão de ferro que cercava todo o terreno daqueles que descansam em paz. A coisa tinha uns três metros de altura, e as grades tinham pontas que poderiam ter sido facas em outra encarnação.
Encarando as barras que o mantinham do lado dos mortos, Matthias as agarrou e sentiu o frio do metal agarrá-lo de volta. Olhando para cima, concentrou-se no céu. As estrelas realmente cintilavam.
Engraçado, ele sempre pensou que isso fosse apenas um modo de dizer.
Respirando fundo, puxou ar puro e limpo para os pulmões e percebeu que tinha se acostumado com o fedor do Inferno. No começo, aquilo era o que mais detestava, aquele cheiro nauseante de ovo podre impregnado nas vias aéreas e que invadia a garganta e viajava até envenenar suas entranhas: mais do que um cheiro ruim, era uma infecção que entrava pelo nariz e conquistava todos os territórios que tocasse.
Mas ele se habituara.
Com o tempo, e em meio ao sofrimento, ele se acostumara ao horror, ao desespero, à dor.
Seu olho ruim, o que não conseguia usar, encheu-se de lágrimas.
Nunca conseguiria alcançar aquelas estrelas.
E essa pausa no sofrimento servia apenas para aumentar a tortura. Afinal, não existe nada como um período de alívio para revitalizar um pesadelo. Quando você retorna para a merda, o contraste aumenta tudo, eliminando a aclimatação e fazendo voltar o choque inicial.
Eles voltariam a persegui-lo. Afinal, era exatamente isso que ele merecia.
Mas, seja lá quanto tempo tivesse, lutaria contra o inevitável – não com a esperança de se livrar do Inferno, não pela possibilidade de um adiamento, mas simplesmente porque essa era uma função automática, que fazia parte do seu ser.
Matthias lutava pela mesma razão que cometera o mal.
Aquilo era simplesmente o que ele fazia.
Impulsionando a si mesmo para longe do chão, colocou contra as barras o pé que funcionava melhor e jogou seu peso para cima. Fez isso novamente. E de novo. O topo parecia estar a quilômetros de distância, o que apenas o fez concentrar-se mais em seu objetivo.
Uma eternidade depois, sua palma agarrou uma das pontas e seu braço enlaçou a perigosa lâmina.
Sangue escorreu rapidamente quando Matthias jogou a perna por cima do portão e uma das pontas cortou um pedaço de sua coxa.
Mas não havia motivo para voltar. Havia se comprometido, e de um jeito ou de outro a gravidade venceria e o puxaria para a terra – então era melhor que isso acontecesse lá fora do que dentro do cemitério.
Quando começou a cair, seus olhos focaram as estrelas. Ele chegou até a estender uma das mãos naquela direção.
O fato de que elas estavam cada vez mais distantes parecia apropriado.
CAPÍTULO 2
Mels Carmichael estava sozinha na redação. De novo.
Às nove da noite, o labirinto de cubículos do Correio de Caldwell estava povoado apenas por material de escritório, nada de pessoas – do ponto de vista do pessoal da redação, a edição do dia seguinte já zarpara para o mar: as prensas trabalhavam a todo vapor do outro lado do prédio.
Quando Mels se recostou na cadeira, as molas soltaram um chiado, e ela transformou aquele som em um instrumento, tocando uma musiquinha feliz que compusera após muitas noites iguais àquela. O título era “Rapidamente chegando a lugar nenhum”, e ela fazia um acompanhamento assoviando a parte do soprano.
– Ainda está aqui, Carmichael?
Mels se recompôs e cruzou os braços.
– Oi, Dick.
Seu chefe se esgueirou no pouco espaço que havia ali, com o sobretudo dobrado no braço e a gravata folgada ao redor do pescoço. Ele acabara de voltar da saideira no bar Charlie’s, onde os homens do jornal costumavam assistir esportes após o expediente.
– Trabalhando até tarde de novo? – Seus olhos percorreram os botões da blusa dela, como se esperasse que o uísque que tomou tivesse lhe dado poderes telecinéticos. – Tenho que dizer, você é bonita demais pra fazer isso. Você não tem namorado?
– Você me conhece, o trabalho é sempre mais importante.
– Bem... eu poderia dar algo para você trabalhar.
Mels imediatamente o encarou com firmeza:
– Obrigada, mas estou ocupada. Estou pesquisando sobre assédio sexual em mercados que antes eram dominados por homens, como companhias aéreas, esportes... jornalismo...
Dick franziu a testa como se não tivesse escutado o que esperava. O que era uma loucura. A reposta dela era a mesma desde o primeiro dia.
Mais de dois anos dando um fora nele. Deus, já tinha passado tanto tempo?
– É esclarecedor – ela esticou o braço e tocou o mouse, desativando a proteção de tela. – Muitas estatísticas. Poderia ser minha primeira reportagem de âmbito nacional. Igualdade de sexos na América pós-feminismo é um assunto quente hoje em dia... é claro, eu poderia apenas colocar no meu blog. Talvez você pudesse me dar uma declaração.
Dick arrumou o sobretudo em seu braço.
– Eu não te passei essa pauta.
– Sou uma pessoa de iniciativa.
Ele levantou a cabeça como se estivesse procurando outra pessoa para importunar.
– Só leio aquilo que eu mandei escrever.
– Você pode achar útil.
O cara tentou afrouxar a gravata e... surpresa! Já estava aberta.
– Está perdendo seu tempo, Carmichael. Vejo você amanhã.
Enquanto saía, vestiu aquele sobretudo estilo Walter Cronkite com lapelas dos anos 1970 e o cinto que ficava pendurado, fazendo parecer que parte das suas entranhas não estava onde deveria. Ele provavelmente tinha aquele casaco desde os tempos de Watergate, quando Woodward e Bernstein provavelmente o inspiraram a seguir seu próprio sonho jornalístico... que terminou no topo do expediente de um jornal de cidade pequena.
Nada mal para um emprego. Mas também não era nenhum chefe de redação do The New York Times, ou do The Wall Street Journal.
Isso parecia incomodá-lo.
Então, pois é, não era necessário ser um gênio para atribuir suas inadequações ao tédio de um ex-timoneiro calvo, amargurado por ter passado sessenta anos na intersecção entre o quase-lá e o meu-tempo-está-acabando.
Por outro lado, talvez ele fosse apenas um cretino mesmo.
O que estava claro na mente dela era que um cara mais parecido com uma rã do que com Jon Hamm não tinha nenhuma razão objetiva para acreditar que a resposta para os problemas de qualquer mulher estava dentro da calça dele.
Quando as portas duplas se fecharam, Mels respirou fundo e ficou imaginando um ônibus passando por cima daquele sobretudo anacrônico e deixando as marcas dos pneus. Mas, graças ao corte nos orçamentos, a linha de ônibus da rua Trade não passava mais depois das nove da noite e agora eram... sim, o horário já tinha acabado dezessete minutos atrás.
Ela encarou a tela do computador, sabendo que deveria ir para casa.
Seu artigo de iniciativa própria não era exatamente sobre chefes de olhar malicioso que fazem suas funcionárias pensarem que o transporte público seria uma ótima maneira de assassinar alguém. O artigo era sobre pessoas desaparecidas. As centenas de pessoas desaparecidas da cidade de Caldwell.
Caldie, como a cidade era conhecida, lar das pontes gêmeas, era também a líder nacional em desaparecimentos. Durante os últimos anos, a cidade de dois milhões de habitantes tivera o triplo de desaparecimentos de Manhattan (contando todos os seus cinco municípios) e Chicago – juntas. E o total da última década ultrapassara os números de toda a costa Leste. O que tornava tudo ainda mais estranho é que a questão não era só os números em si: acontece que as pessoas não estavam desaparecendo apenas temporariamente. Elas nunca voltavam e nunca eram encontradas. Nada de corpos, nada de vestígios e nada de relocação para outras jurisdições.
Era como se fossem sugadas para outro mundo.
Depois de toda sua pesquisa, Mels sentia que o horrível massacre em uma fazenda no mês anterior tinha algo a ver com a abundância de desaparecimentos...
Todos aqueles jovens estraçalhados.
As informações preliminares sugeriam que muitos daqueles que foram identificados já haviam sido declarados desaparecidos em algum ponto de suas vidas. Muitos deles eram casos de delinquência juvenil ou tinham antecedentes com drogas. Mas nada daquilo importava para as famílias – e nem deveria.
Não é preciso ser um santo para ser uma vítima.
A horripilante cena da zona rural de Caldwell foi notícia em âmbito nacional, com todos os canais enviando seus melhores repórteres, desde Brian Willians até Anderson Cooper. Os jornais também estavam presentes. Mas, mesmo com toda a atenção, a pressão dos políticos e o clamor por justiça de comunidades abaladas (e com razão), a verdadeira história ainda estava para surgir: a polícia de Caldwell tentava ligar as mortes a uma pessoa, qualquer pessoa, mas não conseguiu nada – mesmo trabalhando no caso dia e noite.
Mas tinha de haver uma resposta. Sempre há uma resposta.
E Mels estava determinada a descobri-la – pelo bem das vítimas e de suas famílias.
Além disso, esse era o momento para ela se destacar. Chegara a Caldwell aos 27 anos, depois de pedir transferência de Manhattan porque viver em Nova York estava muito caro e ela não estava chegando a lugar algum no New York Post. Seu plano era se mudar por seis meses, juntar algumas economias morando com sua mãe e depois se concentrar nos peixes grandes: The New York Times, The Wall Street Journal, talvez até um emprego de correspondente na CNN.
Mas não foi exatamente como as coisas aconteceram.
Voltando a focar na tela do computador, ela vasculhou as colunas que conhecia de cor, buscando padrões que ainda não tinha enxergado... pronta para encontrar a chave que abriria a porta não apenas da história, mas também de sua vida.
O tempo estava passando depressa, e Deus sabe que ela não era imortal...
Quando Mels deixou a redação, por volta das nove e meia, aquelas linhas de informação continuavam surgindo em sua mente sempre que piscava, como se fosse um videogame que ela tivesse jogado por muito tempo.
Seu carro, que batizara de Josephine, era um Honda Civic de doze anos com quase 125 mil quilômetros rodados – e a Fifi estava acostumada a esperar por ela no frio da noite. Mels deu partida naquele velho motor de máquina de costura e foi embora, deixando para trás seu emprego meia boca. E foi para a casa de sua mãe. Aos trinta anos de idade.
Que bela profissional. E pensava que iria acordar magicamente na manhã seguinte como uma Diane Sawyer sem o spray de cabelo?
Seguindo pela rua Trade para fora do centro da cidade, deixou os prédios de escritório para trás, passou pelas boates e ruas abandonadas do lado sujo do município. Ao final de todos aqueles prédios com janelas lacradas, as coisas melhoraram quando entrou nos arredores de uma vizinhança residencial, com casas bonitas e ruas com nomes de árvores...
– Meeeerda!
Virando o volante com força para a direita, tentou evitar o homem que apareceu no meio da rua, mas era tarde demais. Ela o acertou em cheio, erguendo-o com o para-choque até ele voar em seu para-brisa, cujo vidro laminado estilhaçou-se com um lampejo brilhante.
E aquele foi apenas o primeiro de três impactos.
O corpo do homem simplesmente voou pelos ares, e Mels teve a terrível visão dele atingindo o pavimento com força. E então ela teve seus próprios problemas. O impacto desviou o carro, que atingiu o meio-fio. Os freios diminuíram o impulso, mas não rápido o suficiente – e então se tornaram inúteis quando o carro também saiu do chão.
O carvalho que os faróis iluminaram fez seu cérebro realizar um raciocínio rápido: ela ia atingir a maldita coisa, e isso ia doer muito.
A colisão fez um barulho seco, um estampido ao qual ela não prestou muita atenção – estava ocupada recebendo o air bag em seu rosto, e a falta do cinto de segurança veio com tudo para morder seu traseiro. Ou a virilha, nesse caso.
Mels foi jogada para a frente e ricocheteou para trás, e um pó vindo do air bag invadiu seu olhos, nariz e pulmões, causando irritação e fazendo-a engasgar. Então tudo ficou silencioso.
No final, tudo o que podia fazer, assim como a pobre Fifi, era ficar onde estava. Debruçada sobre o air bag vazio, ela tossiu um pouco...
Alguém estava assoviando.
Não, era o motor que soltava vapor de algo que deveria estar selado.
Ela virou a cabeça com cuidado e olhou para fora através da janela do motorista. O homem estava caído no meio da rua, totalmente parado, parado demais.
– Oh... meu Deus...
O rádio do carro ganhou vida, arranhando a princípio, depois se recuperando com um curto circuito. Uma música... qual era?
Do nada, uma luz surgiu no meio da estrada, iluminando a pilha de trapos que ela sabia ser uma pessoa. Piscando, imaginou se aquele seria o momento em que descobriria as respostas sobre a vida após a morte.
Não era exatamente o furo jornalístico que ela esperava, mas aceitaria mesmo assim...
Porém, não era nenhum tipo de chegada celeste. Eram apenas faróis.
Um sedan derrapou até parar e duas pessoas saíram do carro. O homem correu para a vítima, a mulher correu até ela. A boa samaritana de Mels teve que se esforçar para abrir a porta, mas, depois de alguns puxões, ar fresco substituiu o cheiro ruim de plástico do air bag.
– Você está bem?
A mulher tinha cerca de quarenta anos e parecia rica, seu cabelo estava arrumado para cima, os brincos dourados brilhavam, suas roupas finas e elegantes não combinavam com aquele cenário de acidente.
Ela pegou um iPhone.
– Chamei a emergência; não, não se mova. Você pode ter uma lesão no pescoço.
Mels se rendeu à súbita pressão em seu ombro, mantendo-se junto ao volante.
– Ele está bem? Eu não enxerguei... apareceu do nada.
Pelo menos, foi isso que ela tentou dizer. Seus ouvidos captaram apenas murmúrios que não faziam sentido algum.
Dane-se a lesão no pescoço; estava preocupada com seu cérebro.
– Meu marido é médico – disse a mulher. – Ele sabe o que fazer com o homem. Só se preocupe com você mesma...
– Não o vi. Não o vi – ah, bom, isso soou mais inteligível. – Voltando do trabalho. Eu não...
– É claro que não. A mulher se ajoelhou. Realmente, ela parecia a esposa de um médico – e cheirava a perfume caro.
– Apenas fique parada, a ambulância está chegando...
– Ele está vivo, pelo menos? – Lágrimas surgiram nos olhos de Mels, substituindo uma irritação por outra. – Oh, meu Deus, eu matei ele?
Quando começou a tremer, ela lembrou qual era aquela canção... Blinded by the light, pensou.
– Porque meu rádio ainda está funcionando? – ela murmurou entre as lágrimas.
– Como é? – disse a mulher. – Que rádio?
– Você não está escutando?
O que se seguiu foi um gentil e alarmante toque em seu ombro.
– Apenas respire fundo e fique comigo.
– Meu rádio está tocando...
CAPÍTULO 3
– Está calor aqui? Quero dizer, você acha que está calor aqui?
O demônio cruzava e descruzava suas longas pernas à la Gisele Bündchen enquanto puxava o decote de seu vestido.
– Não, Devina, não acho – a terapeuta do outro lado da sala era exatamente como o sofá em que estava sentada: fofa e reconfortante. Até seu rosto era como um travesseiro de algodão, com as linhas de expressão parecendo bordadas em tecido macio. – Mas posso abrir uma janela se você quiser.
Devina recusou balançando a cabeça e enfiou a mão dentro de sua bolsa Prada. Além da carteira, chiclete de menta, uma garrafa de Smartwater e uma barra de chocolate Green & Black’s Organic Dark, havia vários batons YSL Rouge pur Couture. Pelo menos... deveria haver.
Enquanto ela procurava, tentou parecer casual, como se estivesse checando se não perdeu as chaves.
Na verdade, ela estava contando para se certificar de que ainda tinha treze tubos do batom: começando pelo da esquerda no fundo da bolsa, foi movendo para a direita. Treze era o número correto. Um, dois, três...
– Devina?
... quatro, cinco, seis...
– Devina.
Quando perdeu a conta, ela fechou os olhos e lutou contra a tentação de estrangular quem fizera a interrupção...
Sua terapeuta limpou a garganta. Tossiu. E depois engasgou.
Devina abriu os olhos e encontrou a mulher com as mãos no pescoço, parecendo que tinha engolido um McLanche Feliz da maneira errada. Foi bom ver a dor e a confusão, um pequeno show que fez Devina apertar os dedos dos pés, pedindo por mais.
Mas a diversão não podia ir mais longe. Se perdesse essa terapeuta, o que seria dela? Estavam fazendo progresso, e encontrar outra pessoa com quem sentisse uma conexão poderia tomar um tempo que ela não tinha.
Praguejando, o demônio chamou de volta seus cães mentais, aliviando a esganadura invisível que lançara sem perceber.
A terapeuta respirou fundo e olhou ao redor, aliviada.
– Eu... ah... acho que vou abrir a janela.
A mulher se levantou, alheia ao fato de que suas habilidades como psicóloga haviam acabado de salvar sua vida. As duas se encontravam cinco vezes por semana nos últimos dois meses, conversando por cinquenta minutos ao custo de 75 dólares por sessão. Graças a toda aquela baboseira emotiva, os sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo de Devina estavam ficando um pouco mais fáceis de aguentar. E, considerando como as coisas estavam caminhando na guerra contra aquele anjo Jim Heron, a terapia seria muito necessária na próxima rodada.
Devina não podia acreditar que estava perdendo.
Na batalha derradeira pela supremacia na Terra, aquele anjo vencera duas vezes. Havia apenas mais quatro almas na disputa. E se ela perdesse mais duas? Não sobraria nada dela ou de sua coleção: tudo desapareceria, aqueles objetos preciosos que juntara durante os milênios, cada qual uma valiosa lembrança de seu trabalho, estariam perdidos, perdidos, perdidos. E isso não era a pior parte. Suas crianças, aquelas gloriosas almas torturadas e presas em seu muro, seriam incorporadas pelo bem, pelos beatos, pelos imaculados.
Esse mero pensamento a deixava enjoada.
E, ainda por cima, ela tinha acabado de ser penalizada pelo Criador.
A terapeuta voltou a se ajeitar nas almofadas depois de sua busca por ar fresco.
– Então, Devina, conte o que está em sua mente.
– Eu... ah... – quando a ansiedade subiu, ela levantou a bolsa, procurando algum furo; não encontrou nenhum. – Tem sido difícil...
Nenhum dos batons poderia ter caído, ela disse a si mesma. E havia checado o número antes de sair de seu covil. Treze, um perfeito treze. Então, logicamente, estavam todos lá. Tinham de estar.
Mas... oh, Deus, talvez ela tivesse segurado a bolsa de lado e deitado um deles cair por não ter fechado o zíper...
– Devina – disse a terapeuta –, você parece muito nervosa. Pode me dizer o que está acontecendo, por favor?
Fale, disse a si mesma. Era a única maneira para escapar disso. Mesmo que contar, arrumar, checar e recontar parecessem a solução, ela gastaria milênios fazendo isso sem chegar a lugar algum. E esse novo jeito estava funcionando. Mais ou menos.
– Aquele novo colega de trabalho de que eu te falei... – ela abraçou a bolsa, segurando tudo com o corpo que assumia quando andava entre os macacos. – Ele é um mentiroso. Um completo mentiroso. Ele me enganou... e eu fui acusada de jogar sujo.
Desde que começara a terapia, ela vinha explicando a guerra contra o anjo Jim Heron em termos que um humano do começo do século XXI pudesse entender: ela e seu inimigo eram colegas em uma empresa de consultoria, e competiam pela vice-presidência. Cada alma que disputavam era um cliente. O Criador era o CEO, e os dois tinham um número limitado de tentativas para impressioná-lo. Blá, blá, blá. A metáfora não era perfeita, mas era melhor do que se revelar completamente e correr o risco de sua terapeuta perder a cabeça, ou pensar que Devina não era apenas compulsiva, mas digna de um manicômio.
– Pode ser mais específica?
– O CEO enviou nós dois para um cliente em potencial. No final, o homem nos contratou e queria trabalhar comigo. Tudo estava bem. Eu estava contente, o cliente estava... – bem, não contente. Matthias não estava nem um pouco contente, o que era mais uma razão para ela ficar satisfeita com a vitória: quanto mais sofrimento, melhor. – Estávamos cuidando do cliente, e tudo estava combinado, o contrato estava assinado, o assunto encerrado. Então fui chamada para uma reunião idiota e me disseram que teríamos que disputar o cliente de novo.
– Você e seu colega de trabalho, certo?
– Isso! – ela jogou as mãos para cima. – Quer dizer, qual é? Estava feito. Estava tudo combinado. A disputa tinha terminado. E agora temos que refazer tudo? Que merda é essa? E daí o CEO disse pra mim: “Bom, você ainda pode ficar com a comissão pelo contrato.” Como se isso compensasse tudo!
– Melhor do que perder tudo.
Devina balançou a cabeça. A mulher simplesmente não entendia. Uma vez que ela se apoderava de algo, se deixasse isso escapar, ou se alguém a roubasse, era como se uma parte de seu verdadeiro corpo fosse removida: Matthias fora arrancado de seus muros e colocado novamente na Terra.
Francamente, o poder do Criador era a única coisa capaz de assustá-la.
Além de suas próprias compulsões.
Não conseguiu controlar a ansiedade: abriu a bolsa novamente e recomeçou a contar...
– Devina, você trabalhou bem com o cliente, certo?
Ela fez uma pausa.
– Sim.
– E você possui um bom relacionamento com ele ou ela?
– Ele. Sim.
– Então você está numa posição mais vantajosa do que seu colega de trabalho, não é?
A terapeuta fez um gesto com as mãos, como se dissesse “então, qual o problema?”.
– Não tinha pensado assim – estivera irritada demais para isso.
– Você deveria. Mas, eu devo dizer, tem uma coisa que está me confundindo. Por que o CEO sentiu a necessidade de intervir? Especialmente se o cliente não apenas assinou um contrato, como também parecia satisfeito?
– Ele não aprovou algum dos... métodos... usados para assegurar o negócio.
– Métodos seus?
Quando Devina hesitou, os olhos da terapeuta rapidamente focaram o decote que a paciente usava.
– Sim, meus – disse o demônio. – Mas, qual é, eu consegui o cliente e ninguém pode criticar minha ética no trabalho: estou trabalhando o tempo todo. Literalmente. Não tenho vida que não seja meu trabalho.
– Você aprova as táticas que usou?
– É claro. Consegui o cliente, isso é tudo que importa.
O silêncio que se seguiu sugeria que a terapeuta não aprovava essa coisa de “fins justificando os meios”. Mas que se dane, isso era problema dela – e era provavelmente a razão de ela parecer um travesseiro e passar os dias escutando os problemas dos outros.
Em vez de governar o mundo inferior e ficar uma gostosa usando sapatos Louboutins...
Quando a ansiedade apertou de novo, Devina começou outra recontagem, jogando os batons um atrás do outro, da esquerda para a direita. Um, dois, três...
– Devina, o que você está fazendo?
Por uma fração de segundo, ela quase atacou de verdade. Mas a razão e um chamado para a realidade prevaleceram: as compulsões estavam quase dominando-a completamente. E não se pode ser efetivo contra um inimigo como Jim Heron quando se está presa em uma eterna ansiedade causada por objetos que se sabem perfeitamente bem que não foram perdidos, movidos ou tocados por nenhuma outra pessoa.
– Batom. Estou apenas me certificando de que trouxe meus batons.
– Certo. Bom, quero que você pare com isso.
Devina levantou o olhar com verdadeiro desespero.
– Eu... não consigo.
– Sim, você consegue. Lembre-se, o problema não são os objetos. Você deve lidar com seus medos de maneira mais efetiva e permanente do que simplesmente cedendo às compulsões. Você sabe, o alívio que consegue no final de um ritual nunca, nunca dura mais que uma fração de segundo; e nunca ataca a raiz do problema. O fato é que, quanto mais obedece às compulsões, mais fortemente elas controlam você. A única maneira de melhorar é aprender a suportar a ansiedade e repensar os impulsos como algo que você pode controlar; e não o contrário – a terapeuta se inclinou para frente, com uma seriedade de quem vai dizer algo cruel, mas para o seu bem. – Quero que você jogue um deles fora.
– O quê?
– Jogue um dos batons fora – a terapeuta se esticou para o lado e pegou um cesto de lixo cor-de-rosa. – Agora mesmo.
– Não! Deus, você está louca? – O pânico se espalhou pelo seu corpo. As palmas das mãos começaram a suar, seus ouvidos zumbiram, seus pés adormeceram. Logo, a onda se propagou: seu estômago embrulhou, o fôlego foi se perdendo, o coração batia mais rápido. Tudo isso pareceu durar uma eternidade. – Eu nunca vou conseguir...
– Você consegue e, além do mais, você precisa. Escolha a cor de que menos gosta e coloque no cesto.
– Não tenho uma cor de que eu não gosto, todos são da mesma cor: 1 Le Rouge.
– Então qualquer um vai servir.
– Não consigo... – lágrimas ameaçavam cair. – Não consigo...
– Pequenos passos, Devina. Essa é a chave da terapia cognitiva comportamental. Temos que tirar você da zona de conforto, te expor ao medo, e então te conduzir a superar o obstáculo para que aprenda que pode chegar inteira do outro lado. Faça isso muitas vezes e o transtorno vai começar a perder o controle sobre seus pensamentos e suas decisões. Por exemplo, o que acha que vai acontecer se jogar um deles fora?
– Terei um ataque de pânico. Principalmente quando chegar em casa e o batom não estiver comigo.
– E depois?
– Vou comprar outro para substituir, mas não vai ser o mesmo que joguei fora, então não vai adiantar nada. Vou só ficar mais compulsiva...
– Mas você não vai morrer.
É claro que não, ela era imortal. Contanto que ganhasse a guerra, obviamente.
– Não, mas...
– E o mundo não vai acabar.
Bem, não por causa do batom.
– Mas vai parecer que sim.
– Emoções vêm e vão. Não duram para sempre – a mulher balançou o cesto. – Vamos lá, Devina, vamos tentar. Se você achar que é muita coisa para aguentar, pode pegar o batom de volta. Mas precisamos começar a nos concentrar nisso.
Como previsto, um ataque de ansiedade começou a surgir, mas, ironicamente, foi o medo que a fez prosseguir: medo de ser dominada por esse problema que não conseguia controlar, medo de que Jim vencesse não porque era o melhor no jogo do Criador, mas porque ela não suportava a pressão; medo de nunca conseguir mudar...
Devina enfiou a mão na bolsa e agarrou o primeiro batom que encontrou. Então jogou fora. Apenas o deixou cair no cesto de lixo.
O som macio que o objeto fez ao acertar os lenços de papel dos pacientes anteriores pareceu o portão do Inferno se fechando atrás dela.
– Bom trabalho – disse a terapeuta, como se Devina fosse uma garotinha de cinco anos que tinha recitado o alfabeto. – Como se sente?
– Como se fosse vomitar – olhando para o cesto, a única coisa que a impediu de vomitar foi o fato de que faria isso em cima do batom.
– Você pode classificar sua ansiedade numa escala de um a dez?
Quando Devina disse “dez”, a terapeuta começou um discurso sobre respirar durante o pânico, blá, blá, blá...
A mulher se inclinou para frente de novo, como se soubesse que não estava sendo ouvida.
– O importante não é o batom, Devina. E a ansiedade que você sente agora não vai durar para sempre. Não vamos exigir demais de você, e vai ficar impressionada com os avanços. A mente humana pode ser reprogramada, podemos criar novos caminhos de experiência. A terapia de exposição funciona: é tão poderosa quanto as compulsões. Você precisa acreditar nisso, Devina.
Com a mão trêmula, o demônio limpou o suor da testa. Então, recompondo-se dentro de seu traje de carne humana, ela assentiu.
A mulher que parecia um travesseiro estava certa. O que Devina vinha fazendo até então não estava funcionando. As coisas estavam piorando, e os riscos só aumentavam.
Afinal, ela não apenas estava perdendo... também estava apaixonada pelo inimigo.
Não que gostasse de se lembrar disso.
– Você não precisa acreditar que isso vai funcionar, Devina. Apenas tem que acreditar nos resultados. É difícil, mas você consegue. Tenho fé em você.
Devina observou os olhos da humana e invejou a convicção da terapeuta. Inferno, uma pessoa com aquele tipo de confiança devia estar delirante... ou se apoiando em muita experiência e treinamento.
Houve um tempo em que Devina também tinha essa confiança em si mesma.
E precisava ter isso de volta.
Jim Heron provara ser muito mais do que um oponente digno e uma boa transa. E ela não podia deixá-lo manter a vantagem. Perder não era uma opção. Assim que a sessão de terapia terminasse, ela precisava voltar ao trabalho com a mente limpa e livre de qualquer besteira.
Devina fechou os olhos e se ajeitou na poltrona, apoiando as mãos nos braços estofados e enterrando as unhas no tecido aveludado.
– Como está se sentindo? – perguntou a terapeuta.
– Como se fosse superar isso de um jeito ou de outro.
CAPÍTULO 4
– Apenas me diga se ele está vivo ou não.
A enfermeira ao lado da cama simplesmente ignorou o pedido de Mels. Oferecendo uma caneta, a mulher disse:
– Se você assinar esses papéis eu passarei as receitas...
Danem-se os papéis.
– Preciso saber se o homem sobreviveu.
– Por lei, eu não posso divulgar a condição de nenhum paciente. Assine aqui para eu poder te liberar.
Leia-se: Não encha minha paciência e me deixe voltar a trabalhar.
Praguejando baixinho, Mels assinou no local indicado e guardou as duas folhas de papel e a cópia, enquanto a enfermeira partia para aterrorizar o próximo paciente.
Que noite! A boa notícia era que a polícia estava pelo menos chamando aquilo de acidente, reconhecendo que ela não tinha sido negligente ou bebido. Mas ainda havia problemas...
Observando seus papéis de alta, ela passou a vista nas notas. Concussão leve. Distensão no pescoço. Retorno com seu médico de preferência em uma semana ou mais cedo no caso de visão dupla, náusea, tontura ou piora da dor de cabeça.
O carro provavelmente sofrera perda total.
E não havia como o homem ter sobrevivido.
Com um grunhido, ela sentou, encostando-se nos travesseiros, e sua cabeça enfaixada registrou o movimento como se fosse o giro de uma bailarina. Enquanto esperava a tontura passar, ela observou suas roupas penduradas em uma cadeira de plástico laranja à sua frente. Ela pudera manter o sutiã e a calça durante os exames. A camisa, a jaqueta e o casaco estavam apenas esperando para ser vestidos de novo.
Mels não ligou para sua mãe.
A família já passara por um acidente automobilístico – e, naquele caso, a pessoa que não tinha sobrevivido era seu pai.
Então, pois é, apenas mandou uma mensagem de texto dizendo que sairia com os amigos e chegaria em casa mais tarde. A última coisa de que precisava era deixar sua mãe nervosa e insistindo em ir buscá-la no hospital, especialmente levando em consideração o que ela queria fazer agora.
Mels começou lentamente o esforço para vestir-se, embora esse atraso não tivesse nada a ver com ser uma boa paciente. Evidentemente, o choque de ter se sentido como um boneco de teste de colisão não era algo de que podia se livrar facilmente. Ela sentia-se velha e decrépita – e estranhamente aterrorizada.
Ter matado alguém... era inimaginável.
Ela enfiou os papéis na bolsa, abriu a cortina verde e encarou o enorme caos do hospital: pessoas com jalecos brancos e batas de enfermeira andavam para cima e para baixo, entrando e saindo de quartos, dando e obedecendo ordens.
Considerando que já estivera em uma colisão naquela noite, ela foi cuidadosa para não entrar no caminho de ninguém enquanto se dirigia para a saída.
Que ela não usou.
A sala de espera estava cheia de pessoas buscando cuidados médicos, incluindo um cara com um olho roxo e uma mão cheia de ataduras que sangrava muito. Ele levantou a cabeça, olhou para Mels e assentiu, como se compartilhassem uma ligação por terem começado uma briga em um bar.
Pois é, você deveria ver como o carvalho ficou depois que eu acabei com ele. Toca aqui.
Na recepção, ela se instalou no balcão e esperou até ser notada. Quando um homem se aproximou, Mels sorriu como se o assunto não fosse muito importante.
– Você pode me dizer o número do quarto daquele desconhecido que foi atropelado?
– Ei, eu te conheço. Você é repórter.
– Sim – ela enfiou a mão dentro da bolsa, pegou seu passe de imprensa e o mostrou, como se fosse um distintivo do FBI. – Você pode me ajudar?
– É claro – ele começou a digitar no teclado. – Ele foi transferido para um quarto hospitalar. Número 666. É só pegar o elevador e seguir as placas.
– Obrigada – Mels deu uma leve batida no balcão. Pelo menos, ele ainda estava respirando. – Você ajudou muito.
– Sabe, você não parece muito bem – disse o enfermeiro, fazendo um círculo em volta de seu olho.
– Noite difícil.
– Estou vendo.
A viagem até o sexto andar foi um exercício de processamento de informações, em que seu cérebro falhou miseravelmente. Para começar, ainda sentia tontura, e a subida fez seu ouvido zumbir tanto que foi preciso segurar no corrimão. Ótima ideia colocar um corrimão no elevador; afinal, gente com tontura era parte da rotina por ali. E o fato de a parede ser revestida com metal cinza fosco era outro benefício. Ela ainda não tinha se olhado no espelho, mas, pela maneira como o enfermeiro a olhou na recepção, o air bag que ela quase comera provavelmente não fizera muito bem à sua pele.
A campainha do elevador era alegre como se estivesse na Disneylândia, mas as portas se abriram tão vagarosamente que pareciam exaustas.
Seguindo as instruções, ela observou as placas e encontrou a direção, entrando em um longo e amplo corredor marcado por incontáveis portas largas. Tudo era mais quieto por lá, e ninguém na estação das enfermeiras se manifestou enquanto ela se aproximava. Melhor assim – não queria correr o risco de alguém começar a fazer perguntas, não gostar das repostas e enviá-la de volta.
O quarto ficava quase no final do corredor, e ela meio que esperava ver um policial de guarda na porta. Mas não havia nada nem ninguém. Apenas mais uma porta com uma placa amarela numerada no batente e uma superfície laminada, que parecia madeira de pinheiro.
Empurrando a porta, ela se inclinou para dentro. Sob a luz fraca, pôde ver o pé da cama, uma janela na parede mais distante e uma TV instalada no teto. O som de bipes e o cheiro de desinfetante provavam que aquilo não era um quarto de hotel – não que ela precisasse de ajuda para saber disso.
Mels limpou a garganta.
– Olá?
Quando não houve resposta, entrou e deixou a porta entreaberta. Passando pelo banheiro, parou quando teve uma visão clara do paciente.
Então levou as mãos ao rosto e cobriu a boca quando seu queixo caiu.
– Oh... meu Deus!
No pequeno apartamento acima da garagem que alugava na zona rural, Jim Heron não conseguia dormir.
Todos ao redor dormiam como pedras: o Cachorro estava ao pé da cama, suas patas tremendo enquanto sonhava com coelhos ou esquilos... ou talvez com sombras negras que possuem presas. Adrian estava sentado em um canto, com as costas contra a parede e o corpo tenso, apesar da respiração regular. E Eddie? Bom, o cara estava morto, então não era como se estivesse andando por aí em círculos.
Desesperado por um cigarro, Jim saiu da cama pelo lado errado, para evitar perturbar o Cachorro, e pegou seu maço de Marlboro. Antes de sair, se aproximou para checar Adrian.
Sim. Dormindo sentado.
Com uma adaga de cristal na mão, caso alguém viesse atrás de seu amigo.
Pobre coitado. A perda de Eddie fora um duro golpe na equipe... mas fora particularmente ruim para aquele maluco tatuado cheio de piercings que estava em vigília desde o dia da morte.
Por que será que, quando um homem tenta esconder sua dor, parece ser muito mais triste do que se estivesse em qualquer tipo de histeria e choradeira?
E, em uma nota não relacionada, Jim estava estranhando trabalhar com parceiros.
No tempo em que era um assassino das Operações Extraoficiais, ele agia estritamente sozinho. Agora tanta coisa tinha mudado, desde seu chefe e o tipo de trabalho, passando por suas armas – e Eddie Blackhawk era quem mostrava o caminho, ensinando o que precisavam saber, acalmando ele e Adrian quando os dois discutiam, sendo a voz da razão em situações nas quais parecia não haver lógica... como quando se está diante do próprio cadáver. Ou quando se luta contra um demônio que gosta de usar Prada e que tem uma queda por homens que a rejeitam. Ou quando se leva nas costas o futuro das boas almas, e das más, e de todas aquelas que já existiram ou que iriam existir.
Tipo de coisa que fazia a pessoa querer trocar de emprego com o cara que frita hambúrgueres na lanchonete.
Praguejando, Jim andou até o sofá, pegou uma jaqueta de couro e cobriu as pernas de Adrian. O outro anjo grunhiu e se ajeitou no chão, mas continuou debaixo da jaqueta. Ótimo – o objetivo era manter o cara aquecido, não conversar com ele.
Jim não estava a fim de conversar com ninguém.
Mas isso não era novidade.
Ele pisou no patamar no topo da escada e o ar frio percorreu a pele nua de seu peito. Antes de ter um colega de quarto e um cão, ele sempre dormira nu. Agora usava um moletom. O que o ajudava era o fato de que as noites de abril eram muito frias em Caldwell.
Não que ele dormisse muito.
O maço de Marlboro ainda estava embrulhado e Jim o bateu contra a palma da mão enquanto fechava a porta silenciosamente. Uma das vantagens de ser ao mesmo tempo imortal e corpóreo é que você não precisa se preocupar com câncer, mas a nicotina faz efeito em seu sistema nervoso.
E também não precisa procurar um isqueiro no bolso.
Ele rasgou a embalagem, retirou um cigarro, colocou-o nos lábios e levantou a mão. Quando seu dedo indicador se iluminou ao seu comando, ele pensou em Eddie novamente – e, como de costume, desejou matar Devina.
Pelo menos, os caras do bem ainda estavam com vantagem de dois a um na guerra. Se conseguisse mais duas vitórias, tudo terminaria: ele livraria a Terra das garras do demônio, manteria sua mãe segura na Mansão das Almas... e tiraria sua Sissy do Inferno.
Não que ela fosse sua.
Ele exalou o ar. Não tinha total certeza sobre Sissy, mas as coisas tinham de funcionar assim, não é? Se os anjos ganhassem e Devina deixasse de existir, ele poderia ir lá embaixo e livrar aquela pobre garota da prisão. O Inferno seria dele para fazer o que quisesse.
Certo?
Com essa deixa, começou a imaginar quem seria a próxima alma.
Pensou em seu novo chefe e ouviu a voz com sotaque britânico em sua cabeça. O som macio orgulhoso das palavras de Nigel ecoava ao redor, irritando-o: Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
– Muito obrigado – murmurou enquanto a fumaça escapava de seus lábios junto com a respiração. – Ajudou muito, cara.
Era completamente injusto que sua inimiga soubesse quem era o alvo e ele não.
Que merda.
Na última rodada, ele enganara Devina para conseguir a informação, mas ela não cairia nessa de novo – diga o que quiser sobre aquele demônio, mas ela não era uma loira burra, nem de longe. E isso significava que lá estava ele de novo, emperrado em ponto morto, enquanto o inimigo com certeza saía na frente.
Esse era precisamente o mesmo problema que ele tivera na disputa pela alma de seu antigo chefe. Durante todo o tempo, ele pensou que era outra alma que estava em jogo, mas no fim era Matthias quem estava sendo disputado.
Mas já era tarde, e o filho da puta havia feito a escolha errada.
Vencedora: Devina.
Nesse ritmo, o jogo estava destinado a ser injusto, enquanto Devina continuasse interagindo diretamente com as almas. De acordo com as regras, Jim era o único que poderia fazer isso, mas, na prática, ela fazia parte do corpo a corpo tanto quanto ele. Naturalmente, Nigel, o chefe dos escoteiros, estava convencido de que ela seria punida por pisar fora de seus limites – e talvez até fosse. Mas quem poderia saber quando e onde?
Nesse meio tempo, Jim não tinha outra escolha além de ficar esperto e torcer para não estragar tudo.
Ele precisava vencer. Por sua mãe... e por Sissy.
Ele tragou e exalou outra vez, observando a fumaça girar no ar frio e subir até desaparecer. Ao piscar os olhos, viu uma imagem de Sissy Barten, aquela linda jovem, pendurada de cabeça para baixo em uma banheira de porcelana branca, o sangue vermelho vivo manchando seus cabelos dourados, a pele marcada com símbolos que ele nunca vira antes, mas que Eddie tinha entendido muito bem...
O som discreto de algo raspando o fez perder a linha de raciocínio, então ele virou para trás e abriu a porta do apartamento. O Cachorro saiu mancando com o pelo todo desgrenhado – o que era seu estado natural, e não consequência de ter dormido em uma posição esquisita.
– Ei, amigo! – Jim disse com a voz macia enquanto fechava a porta. – Você precisa ir lá fora?
O pobre e velho cão tinha dificuldade com as escadas, então Jim geralmente o carregava até o chão. Quando ele se abaixou para pegá-lo, o Cachorro prontamente se sentou: era sua maneira de dizer que queria ser apanhado e carregado.
– Sim, senhor.
O animal, que Jim sabia ser mais do que um vira-lata qualquer, pesava quase nada em seu braço, e era quente como um bico de Bunsen.
– Eu disse pra ela pensar em você – Jim disse, segurando o cigarro longe do Cachorro, só para o caso de estar errado quanto ao cão ser especial. – Eu disse pra Sissy pensar em você mastigando minhas meias. Quero que ela imagine você brincando na grama fresca quando as coisas ficarem...
Não podia terminar aquele pensamento em voz alta.
Em seu tempo de vida, Jim fizera muitas coisas feias, horrorosas, para pessoas feias e horrorosas – o que significava que há muito tempo já se tornara durão em relação às suas emoções...
Bom, na verdade, isso tinha acontecido ainda quando era adolescente. Naquele dia, quando tudo mudou para sempre.
No dia em que sua mãe foi assassinada.
Dane-se. São águas passadas.
O fato era que a ideia de Sissy mergulhada no Poço das Almas do demônio era suficiente para fazer até um soldado endurecido pela guerra perder a cabeça.
– Eu disse a ela... pra pensar em você, quando sentisse que não conseguiria aguentar mais.
A pequena cauda do Cachorro balançou para um lado e para o outro, como se Jim tivesse feito a coisa certa.
É, esperava que ela estivesse pensando no Cachorro lá embaixo, e que isso lhe desse um pouco de alívio.
Pois não havia mais nada.
– Preciso encontrar a próxima alma – sussurrou Jim antes de fumar outro trago do cigarro. – Preciso saber quem é o próximo na lista. Precisamos vencer, Cachorro.
Aquele nariz frio e molhado encostou em seu rosto, e ele teve o cuidado de soprar a fumaça por cima do ombro.
O fato de Nigel dizer que Jim conhecia a alma não significava absolutamente nada. Ele conhecera muita gente durante sua vida.
Podia apenas rezar para que fosse alguém que ele pudesse trazer para o seu lado.
CAPÍTULO 5
Matthias percebeu o momento em que não estava mais sozinho. A luz ao redor se intensificou, significando que uma porta se abriu, e isso não acontecia por acaso.
Sua mão direita se fechou por reflexo, como se segurasse uma arma. Mas isso era tudo o que podia fazer. Seu corpo estava imóvel por causa da dor, como se uma corrente o prendesse onde quer que ele estivesse deitado... era uma cama. Sim, estava numa cama, e o som ambiente cheio de bipes lhe informava que tipo de cama. Um hospital. Ele ainda estava no hospital.
Será que nunca iria se recuperar da...
Seus pensamentos empacaram nesse ponto.
Não havia nada além de um buraco negro.
Não fazia ideia da razão de estar ali. Nenhuma pista de por que seu corpo doía tanto. Não... Deus, sabia apenas que seu nome era Matthias, e nada mais.
O pânico o fez arregalar os olhos. Havia uma mulher ao pé da cama, aterrorizada, com as mãos no rosto e uma expressão de completo choque. Um de seus olhos estava roxo e sua testa estava enfaixada. O cabelo preto estava preso para trás. Olhos bonitos. Alta... ela era alta...
Olhos lindos, na verdade.
– Eu sinto muito – ela disse, com a voz rouca.
Como é?
– Sobre...? – a voz dele estava áspera, a garganta doía. E um de seus olhos não funcionava direito.
Não, o olho estava completamente inutilizado. Perdera metade da vista no passado. Foi isso mesmo, quando ele era...
Franziu a testa e seus pensamentos caíram no abismo novamente.
– Eu te atropelei. Sinto muito... não enxerguei você. Estava tão escuro, e você apareceu na rua antes que eu pudesse frear.
Ele tentou estender a mão, em um impulso para acalmá-la que ultrapassou a dor e a confusão.
– Não foi sua culpa... não... sem lágrimas. Venha...
Por algum motivo, ele não podia acreditar que alguém choraria por ele, agora ou em qualquer tempo. Não era o tipo de homem que inspira reações assim. Não ele. Mas por que isso era assim, ele não sabia...
A mulher se aproximou um pouco, e Matthias observou com seu olho bom enquanto ela estendia a mão quente e macia... até tocar a palma dele.
O contato o fez sentir aquecido por todo o corpo, como se tivesse deitado em uma banheira quente.
Engraçado, ele nem tinha percebido que sentia frio até ela o tocar.
– Estou apertando sua mão... – ele disse, com a voz entrecortada. – Caso não consiga perceber.
Ela foi gentil e não comentou o fato de que claramente não sentia sua tentativa de retribuir o contato. Mas ele estava se esforçando. E quando seus olhos se encontraram, por alguma razão, Matthias quis dizer que nem sempre estivera quebrado. Um dia, não faz muito tempo, ele fora capaz de levantar-se orgulhoso, correr longas distâncias e usar seus músculos. Porém, agora ele era como um colchão com pulsação cardíaca.
Mas o motivo disso não fora o atropelamento. Não, ele já estava quebrado havia um bom tempo.
Talvez sua memória estivesse voltando.
– Sinto muito – ela disse novamente.
– Foi assim que você... – ele fez um gesto mostrando o próprio rosto, mas isso a fez focar ainda mais nele, e a maneira como estremeceu sugeria que para ela era difícil olhar o quanto ele estava feio. – Você também se machucou.
– Ah, estou bem. A polícia já veio conversar com você?
– Acabei de acordar. Não sei.
Ela desfez o contato entre eles e enfiou a mão em uma bolsa que mais parecia uma mala.
– Aqui. Este é o meu cartão. Eles conversaram comigo enquanto eu estava sendo medicada, e eu disse que aceito toda a responsabilidade.
Ela colocou o cartão na frente de seu rosto, mas sua visão se recusou a focar.
E Matthias não queria olhar para nada além dos olhos dela.
– Qual é o seu nome?
– Mels Carmichael. Na verdade, é Melissa – ela tocou o próprio peito. – As pessoas me chamam de Mels.
Quando ela deixou o cartão na mesa ao lado, ele franziu a testa, mesmo isso fazendo sua cabeça latejar.
– Como você se machucou?
– Me ligue se precisar de alguma coisa. Não tenho muito dinheiro, mas...
– Não estava usando cinto de segurança, não é?
A mulher olhou ao redor como se já tivesse ouvido isso da polícia.
– Ah...
– Você devia usar o cinto...
A porta abriu bruscamente, e a enfermeira que entrou parecia como se fosse a dona do lugar.
– Estou aqui – ela anunciou enquanto caminhava até os aparelhos que ficavam atrás da cama. – Ouvi o alarme.
A primeira coisa em que Matthias reparou foram os grandes peitos da mulher. Depois, na cintura pequena. E nos longos cabelos castanhos, macios como um edredom e brilhantes como porcelana.
Mas aquela imagem fez sua pele se arrepiar. Ao ponto de ele tentar se sentar para poder sair dali...
– Shh... está tudo bem – sorrindo, a enfermeira quase botou Mels para fora. – Estou aqui pra ajudar.
Olhos negros. Olhos negros que o lembravam de alguma coisa, em algum lugar... uma prisão onde você ficava sufocado pela escuridão, incapaz de se livrar...
A enfermeira se inclinou e seus seios se apertaram um contra o outro.
– Vou cuidar de você.
– Não – ele disse com veemência. – Não, você não vai...
– Ah, sim, eu vou.
Sentia seu inconsciente tentando avisá-lo sobre alguma coisa, algo que não conseguia distinguir com clareza, mas que enviava sinais como um caminho de pólvora antes de uma bomba explodir. Mas não encontrou nada específico. Suas memórias pareciam bases camufladas em um horizonte visto através de óculos de visão noturna – ele sabia que o inimigo estabelecera bases em algum lugar, mas era impossível visualizar qualquer detalhe.
– Se você não se importar – a enfermeira disse para Mels –, eu preciso cuidar do meu paciente.
– Ah, sim. Claro. Eu vou... é, vou embora – Mels se esticou sobre a mulher para poder enxergá-lo. – Bom... falo com você mais tarde.
Matthias também precisou se desviar da enfermeira, mudando a posição do corpo e fazendo os músculos da barriga se contraírem.
A enfermeira bloqueou sua visão.
– Feche a porta quando sair, certo? Obrigada.
E então ficaram a sós.
A enfermeira sorriu e encostou o quadril na beira da cama.
– Que tal eu te dar um banho?
Parecia uma ordem, não um pedido. E, cara, de repente ele sentiu-se nu – e não de um jeito bom.
– Não estou sujo – ele disse.
– Sim, você está – ela colocou a mão em seu braço, bem no lugar onde as sondas se conectavam com a veia. – Você está imundo.
Do nada, seu corpo começou a ganhar força: a energia invadia e inflava seus músculos com saúde, como se ele tivesse passado por dias de descanso, noites bem dormidas e muita comida.
Estava vindo dela, ele percebeu. Mas... como isso era possível?
– O que você está fazendo comigo?
– Nada – a enfermeira sorriu. – Se sente diferente?
Olhando em seus olhos negros, a escuridão parecia tão irresistível quanto repulsiva – e ele não saberia dizer quanto tempo ficaram ali daquele jeito, ligados pela mão dela, que transferia o que parecia uma droga miraculosa.
– Eu conheço você – ele pensou em voz alta.
– É engraçado quando a gente sente isso com uma pessoa desconhecida.
O poder que entrava nele parecia maligno e muito familiar.
– Eu não quero...
– Não quer o quê, Matthias? Não quer se sentir melhor, ficar mais forte, viver pra sempre? – ela se inclinou para ainda mais perto. – Está me dizendo que não quer ser um homem de novo?
Os lábios dele começaram a se mover, mas nenhum som saiu. Uma lentidão se apoderou de seu corpo quando ela retirou a mão. Desorientado e confuso, ele tentou se levantar, mas parecia que, afinal, fora mesmo drogado.
– Vou te dar um banho agora – ela disse com um olhar malicioso e um sorriso que faziam parecer que estava falando de sexo oral e não de esponja e sabonete.
Quando ela se aproximou da pia, Matthias aspirou profundamente, suas costelas se expandindo sem dor, e conseguiu expirar sem dificuldade. Todas as dores desapareceram, dando a impressão de que fazia anos que seu corpo não apresentava nenhuma complicação. Talvez séculos?
– Que dia é hoje? – ele murmurou, enquanto ela enchia uma bacia.
A enfermeira olhou por cima do ombro.
– É mesmo! Você está com amnésia.
Um momento depois ela voltou à cama, trazendo junto a mesa de rodinhas. Quando ela abaixou o lençol até a cintura dele e desamarrou o avental do hospital, Matthias levantou a cabeça pesada e olhou para si mesmo. A parte de cima não estava tão ruim, apenas uma cicatriz aqui e outra ali. Mas a parte de baixo estava arrasada.
Sentiu a esponja macia e quente.
Enquanto a enfermeira massageava seu peito, ele observou a maciez e a luminosidade da pele dela: era como uma pintura, e seu cabelo era mais espesso e voluptuoso do que parecia ser possível. Seus lábios pareciam até partes de uma fruta: molhados, com a promessa de doçura.
Eu não a quero, ele pensou.
Mas não conseguia se mover.
– Você precisa ganhar peso – ela comentou, passando a esponja em seu peito. – Está muito magro.
A esponja foi descendo cada vez mais, demorando-se na barriga: os cuidados estavam mais para de uma amante do que de uma enfermeira. Com súbita clareza, Matthias lembrou que houve um tempo em que ela poderia ter se impressionado – as mulheres que ele contratava para o exercício sexual sempre ficavam animadas com seu corpo...
Espere um pouco, isso realmente estava acontecendo?
Quando ela começou a baixar o lençol ainda mais, Matthias a fez parar:
– Não, pare.
– Sim, continuo.
Com os olhos dela presos aos seus, a enfermeira afastou a mão dele e arrancou o resto da roupa de cama. A violência do ato o fez lembrar de algo lá no fundo de sua mente... mas não sabia o quê.
– Fiz você lembrar de algo? – ela disse, mesmo sabendo bem a resposta. De alguma maneira... ela sabia que ele gostava de coisas perigosas. – Fiz? Matthias.
– Talvez – de repente sua voz parecia mais forte, mais profunda...
– E agora?
Ela o tocou naquele lugar que definia sua masculinidade: a esponja raspou seu pênis de leve.
Quando ela lambeu os lábios com volúpia, ele teve de rir alto. Seja lá qual fosse o seu motivo para quebrar todas as regras, a enfermeira não chegaria a lugar nenhum – o que resolveria o problema de ele não querer aquilo. Ela podia ficar nua e montá-lo; aquele pedaço mole de carne não se levantaria de jeito nenhum.
Mesmo com amnésia, sabia disso, da mesma maneira que sabia que não enxergava com um dos olhos. Era um fato, não uma lembrança.
– Minha memória não é a única coisa que perdi – ele disse secamente.
– É mesmo?
Quando ela massageou onde não deveria, Matthias deu um salto. Bom, mas a impotência não significava que você não sentia nada. Significava apenas que não podia fazer nada a respeito...
O fluxo de poder voltou a se apoderar dele, desta vez mais forte. E com um gemido, ele se arqueou, automaticamente levantando o quadril até a fonte do prazer.
– Isso mesmo – ela disse suavemente. – Sinta meu toque. Estou dentro de você.
O desejo sexual há muito esquecido explodiu por todo o corpo de Matthias; a agressividade e a necessidade de penetrar algo que ele não sentia há muito tempo. Deus, lembrar-se de que era de fato um macho, e não algum doente andrógino...
Oh, droga, isso era bom. Muito... bom.
– Olhe pra mim – ela ordenou enquanto trabalhava em seu pênis. – Olhe para mim.
Ele ficou tão distraído pela novidade que quase esqueceu quem a proporcionava, e a visão dela acabou drenando a sensação para longe: o que se tornou impotente agora foram suas emoções, mesmo que o corpo funcionasse plenamente. Ela era linda, mas... era uma beleza cheia de veneno.
– Você não gosta disto, Matthias?
Não, ele não gostava. Não gostava mesmo.
– Nem um pouco.
– Mentiroso. Precisamos terminar o que começamos, você e eu. Sim, precisamos.
Devina entrou na loja Saks Fifth Avenue no shopping Caldwell Galleria perto das cinco da manhã. Passou pelas portas de vidro e caminhou até um mostruário com manequins que vestiam tons pastéis. Ela posou junto deles por um momento, arqueando as costas e sentindo os seios apertarem o tecido da blusa sob o casaco.
A primavera estava no auge, e isso era uma boa notícia para suas coxas.
Já que estava ali, talvez pegasse algumas coisinhas.
Com uma febre de compras correndo por suas veias, ela apareceu atrás do balcão e, com um aceno das mãos, desativou os detectores de movimento. Por um segundo, pensou em deixar as câmeras de segurança ligadas, só por diversão.
Nada mais divertido do que ter uma plateia – mesmo que fosse apenas um humano gorducho sentado em uma sala de segurança ao final de um turno de trabalho durante o qual provavelmente só dormira.
Porém, ela estava ali por uma razão muito séria.
Seus sapatos de salto faziam barulho no chão de mármore, e ela gostava daquele som ecoando: pisou mais forte para que seu domínio sobre o vazio alcançasse todas as direções. Deus, ela adorava aquele cheiro no ar: chão polido, perfume, colônia... e riqueza.
Passando pelas bolsas de grife penduradas na parede, ela checou os estandes da Prada, Miu Miu e Chanel. As bolsas pareciam lindas mesmo sob o brilho fraco das luzes de segurança, e ela quase engasgou quando encontrou uma Gucci. Atravessando como um fantasma pelo painel trancado, agarrou uma bolsa de pele de cobra verde-escuro e continuou.
Fora sexo, pensou Devina, lojas de departamento de luxo proporcionam a melhor sensação que existe: milhares e milhares de metros quadrados cheios de coisas, tudo bem organizado, etiquetado e catalogado. E protegido.
Era um completo orgasmo para pessoas obsessivo-compulsivas.
Então precisava ter cuidado. Estava sentindo uma ligação surgir entre ela e todas aquelas mercadorias e, se isso acontecesse, havia o perigo de criar uma sensação de posse sobre aquelas preciosidades. E isso não seria bom para ninguém. Ela teria de matar os humanos que entrassem ali para fazer compras, e isso seria exaustivo.
Mas toda aquela organização a fez pensar que poderia usar seu notebook Lenovo e entrar para a era digital com suas próprias coleções.
Talvez o próximo virgem que sacrificaria para proteger seu espelho seria um nerd. Depois ela poderia reanimá-lo e fazê-lo trabalhar para si.
Afinal, havia muitos programadores de computador por aí que não conseguiam nem chegar perto de uma mulher. Seria muito fácil.
Entrando na parte central do primeiro andar, ela encontrou os balcões de maquiagem: o balcão da Chanel com sua conhecida maquiagem preta e brilhante, o da Lancôme cheio de recipientes de vidro... e o da Yves Saint Laurent, com muitos detalhes dourados ao redor dos mostruários.
Indo para trás do balcão, ela abriu o cadeado da prateleira que estava ao chão, e, enquanto abaixava e se apoiava na ponta dos pés, sua mão iluminou o caminho, lançando luz sobre as pequenas etiquetas grudadas nas embalagens.
A etiqueta 1 Le Rouge foi fácil de achar. Ela pegou um pacote, abriu a caixa e retirou o brilhante tubo de metal. Lindo, tão lindo, novinho em folha, intocado. Ela quase estremeceu quando girou e expôs a perfeita coluna de batom vermelho.
O perfume, delicado e com toques florais, fez Devina revirar os olhos.
A terapeuta estava certa: o ataque de pânico não durou para sempre naquele consultório, e quando Devina continuou com seus afazeres mais tarde, a ansiedade de ter jogado o batom fora acabou sendo esquecida enquanto ela dava atenção a outras coisas. Porém, a sensação ressurgiu quando ela voltou para seu espaço privado e sentou em frente ao espelho, pronta para descer até seu muro e aproveitar um pouco de tempo sozinha com suas crianças.
Entram os problemas.
Seus pensamentos rapidamente saíram de controle, surgiam imagens de um compactador de lixo e pilhas enormes e mal cheirosas de dejetos em grandes aterros desolados, que a faziam querer chorar.
Devina poderia ter voltado para pegar aquele batom específico, mas queria honrar a religião da terapeuta: tornar-se obcecada em conseguir de volta aquele batom, sem se importar com as consequências, seria voltar também para seu ciclo vicioso.
Mas ela não podia trilhar esse caminho o tempo todo – e por isso estava na loja e não no consultório, e agora tinha um novo e lindo batom para substituir aquele que sacrificara em nome do autoaperfeiçoamento.
Havia mais cinco batons da cor que gostava, todos empilhados formando uma bonita pirâmide. Ela esticou a mão, com vontade de pegar todos, para servirem de reservas dos reservas, mas impediu a si mesma. Fechou a prateleira. Teletransportou-se para longe.
Saiu de lá orgulhosa de si mesma.
Fim do intervalo; hora de voltar ao trabalho.
Voltando à vitrine pela qual entrara, parou em frente a um dos manequins. A coisa usava uma peruca loira e vestia uma roupa florida que Devina nunca usaria, nem morta.
Mas, então, começou a imaginar o que Jim Heron pensaria se a visse vestindo aquilo.
Sem dúvida fazia seu tipo: feminina, bonita, nada muito revelador. Modesta.
Aquele cretino. Enganador mentiroso.
Naturalmente, o fato de tê-la enganado tão bem apenas o deixava mais atraente.
Devina franziu a testa quando a voz da terapeuta surgiu em sua mente. Terapia cognitiva de comportamento... reprogramar o cérebro por meio de experiências...
O demônio se aproximou e passou a mão pelos cabelos falsos, aqueles longos e lisos fios amarelos.
Sissy Barten, a queridinha de Jim, tinha cabelos iguais àqueles. E teria adorado aquele vestido. Teria se mantido ao longe e esperado Jim se aproximar, nunca se jogaria nele, manteria sempre aquele jeitinho virginal.
O que era suficiente para fazê-la querer matar os dois – e com aquela garotinha estúpida seria a segunda vez, pois já tinha rasgado sua garganta na banheira.
Devina começou a sorrir. E então riu.
Com um rápido movimento, arrancou a peruca, deixando o manequim careca, e saiu através do vidro.
CAPÍTULO 6
Tinha de ser um sonho, não é?
Adrian tinha de estar sonhando. Mas, caramba, tudo parecia real, desde o sofá de veludo sob o seu traseiro, a cerveja gelada em sua mão, até a batida visceral do som na boate.
Estava com medo de virar a cabeça. Medo de descobrir que estava ali sozinho naquele lugar barulhento e desesperador, cheio de pessoas vazias iguais a ele.
Se estivesse sozinho, então Eddie estava mesmo morto.
Deu um gole na cerveja, preparou-se e então virou.
Adrian lentamente abaixou a garrafa, exalando todo o oxigênio para fora de seus pulmões.
– E aí, cara? – ele sussurrou.
Os olhos vermelhos de Eddie se viraram.
– Ah... oi – o cara se ajeitou no assento. – Escute, você tá bem?
– Sim, é só que...
– Por que tá olhando pra mim desse jeito?
– Senti sua falta – Ad disse com a voz grave. – Achei que nunca mais ia te ver.
– Só porque fui até o banheiro? – Eddie sorriu. – Geralmente, eu volto de lá.
Ad esticou a mão, sabendo que um toque provaria de que lado estavam...
Eddie franziu a testa e se inclinou para trás, como se Ad tivesse revelado um par de chifres.
– O que há de errado com você?
O rosto de Eddie parecia exatamente o mesmo: a pele bronzeada pelo sol, um vestígio de barba, aqueles olhos avermelhados estavam abertos para o mundo, nem desconfiados e nem ingênuos, e uma pesada trança que percorria as costas musculosas.
– Eu não sei – disse Ad esfregando o rosto.
– Quer ir embora?
– Deus, não.
– Certo – aqueles olhos vermelhos voltaram-se para a multidão. – Então, você vai me forçar a transar de novo?
Ad riu alto.
– Certo. Foi isso que aconteceu. Claro.
– Jogando mulheres para cima de mim...
– Eu nunca joguei...
– Escolhendo as que sabe que vou gostar...
– Bem, isso eu fiz...
– Arruinando minha virtude.
Quando o cara deu outro gole, Ad ficou sério.
– Ninguém poderia fazer isso.
– É, você tem razão. Antes de me tornar um anjo, eu era uma virgem imaculada.
– O que explicaria esse cabelo todo.
– Não, o cabelo me faz parecer gostosão.
Ad riu novamente e se recostou no sofá sentindo uma súbita injeção de energia percorrer seu corpo. Era uma sensação de que a vida voltara ao normal, que a tragédia não acontecera, que tudo voltara à maneira como deveria ser; era um alívio tão grande que, mesmo sentado, ele sentia como se estivesse voando. Com uma pontada de otimismo, seus olhos percorreram a multidão. Seu radar para mulheres voltava a funcionar e sua rara felicidade transformava periguetes em modelos internacionais.
– Está vendo alguma coisa que te agrade? – Eddie perguntou.
– Se não fosse por mim, você nunca conseguiria uma transa.
– Sabe, eu não acho que isso seja verdade.
– Você é sincero demais.
– Droga.
Ah, sim, aquela ruiva serviria, Ad pensou. E ela estava junto com uma morena...
Franziu a testa e ficou tenso. Havia alguém ao redor, no canto mais afastado, observando-os das sombras.
– Tá na hora – disse Eddie. – Ou fazemos isso agora, ou pedimos outra rodada. Ad? Olá?
Adrian chacoalhou a cabeça.
– Sim... claro.
Seu melhor amigo lhe lançou um olhar desconfiado novamente.
– O que há de errado com você, cara?
Boa pergunta, pensou enquanto se levantava.
– Vou ver o que posso pescar por aí.
– Sem pressa... só não demore muito.
– Isso não é uma contradição?
– Não quando se trata de você.
Os dois riram um pouco. E então Ad se concentrou nas duas mulheres. Quando se aproximou da ruiva e da morena, elas responderam com uma previsível risadinha, nada comparado com os orgasmos que resultariam daquele encontro.
– Meu nome é Adrian – ele disse. Seu lento sorriso fez as mulheres arregalarem os olhos e ajeitarem suas poses: peito levantado, barriga para dentro, pernas esticadas para expor as coxas.
– Gosto do seu perfume – ele disse, inclinando-se para perto do pescoço da ruiva.
Na verdade, não tinha sentido o cheiro ainda, e nem se importava.
Quando puxou o ar, ele congelou. Aquele cheiro. Era...
– Que bom que gostou – ela disse, enquanto acariciava as costas dele até chegar em seu traseiro. – Escolhi exatamente pra alguém como você.
Adrian se afastou, seu cérebro doía. Ou talvez fosse seu peito.
– Certo. Bom.
Olhou por cima do ombro. Eddie estava no sofá, todo espreguiçado, mas totalmente atento, como se estive pronto para o sexo.
Ou seja, estava normal.
Adrian assentiu na direção dele.
– Trouxe um amigo. E você?
– Minha amiga tem namorado – murmurou a ruiva, como se isso fosse um defeito.
– Desculpe – disse a outra mulher.
Como se isso importasse.
– Certo, só você então. Consegue aguentar os dois?
Quando a garota assentiu como se tivesse ganhado na loteria, ele tomou sua mão, e o perfume dela os seguiu, fazendo Ad desejar que a solteira fosse a morena, e que fosse aquela Jessica Rabbit com maquiagem gótica quem tivesse namorado. Mas não dava para voltar atrás – seria trabalhoso demais achar outra candidata e, além disso, o que fariam não era nada permanente. Nunca era permanente.
Mas que droga de perfume de flores – dava até arrepios.
Quando chegaram no sofá, a ruiva foi se jogando no meio, cobrindo tanto as pernas dele como as de Eddie. E, como ela acabou de frente para o outro anjo, Eddie começou a beijá-la intensamente.
Para um cara que não sabia se aproximar de mulheres, ele tinha um apetite e tanto.
Enquanto Ad assistia, e impulsionava seu quadril e peito contra o corpo da mulher, pensou que era incrível o poder que um pesadelo pode ter. Era como se toda aquela merda que ele imaginara sobre Eddie tivesse realmente acontecido: aquele lacaio do demônio aparecendo do nada e rasgando o anjo com uma lâmina, tirando a letra I da palavra imortal. E então a morte, no saguão daquele banco, não muito longe dali. E depois o sofrimento de Adrian, a sensação de ter perdido toda a razão de viver...
Adrian franziu a testa e se perguntou por que falava consigo mesmo como se aquilo realmente tivesse acontecido...
A ruiva se arqueou e abriu as pernas, claramente o convidando-o para brincar no parquinho. E quando ele obedeceu, Eddie passou a trabalhar em seus peitos, baixando um pedaço da blusa, de forma mais agressiva do que o normal, e expondo um par de seios menor do que aparentava.
Quando Adrian estava prestes a mergulhar a mão em território inexplorado, a garçonete apareceu trazendo novas garrafas. Parecia acostumada com aquele showzinho, pois nem piscou ao servir a cerveja.
– Eu pago – disse Ad, tirando a carteira do bolso da calça e entregando uma nota de vinte. Quando a garçonete foi embora, ele olhou para a cerveja, e então virou imediatamente para Eddie. – Coors Light? Que merda é essa?
O outro anjo parou o beijo e deu de ombros.
– Estou controlando meu peso.
Ad revirou os olhos e voltou ao trabalho com o prato principal. Subindo as mãos debaixo da saia curta, ficou surpreso ao descobrir uma calcinha com a resistência de vigas de aço e a elasticidade de uma tenda do exército. Que diabos? Bem, ele pensou, uma calcinha modeladora era mais barata do que uma sessão de lipo.
O perfume voltou a invadir seu nariz, sugerindo que, afinal, talvez não viesse da mulher.
Olhou ao redor, mas não enxergou nada fora do comum.
– Acho que você deveria ser o primeiro – disse Eddie, enquanto brincava com aqueles seios... que agora pareciam meio caídos.
E aquele cabelo. Antes era volumoso e ondulado, agora parecia um pouco crespo.
A mulher sorriu, revelando dentes tortos.
– Vai, Adrian... transa com ela – na escuridão, os olhos de Eddie pareciam tudo menos brilhantes. – Quero assistir vocês.
A mulher tomou a mão de Ad e a colocou de volta entre suas pernas, esfregando a si mesma contra sua palma e dedos...
No meio da multidão, uma pessoa surgiu: uma figura alta e orgulhosa, vestindo um roupão branco. Quando se aproximou, o cheiro de flores ficou mais forte e tomou todo o ar ao redor...
Eddie.
Era o Eddie real, de pé ali na sua frente, uma presença verdadeira em meio a uma multidão de mortos vivos.
– Ah, que merda! Justo agora que as coisas estavam ficando interessantes!
Ad virou a cabeça bruscamente. Devina estava ao seu lado na outra ponta do sofá, pela primeira vez mostrando sua forma verdadeira: era um cadáver animado, a carne perpetuamente caindo dos ossos, a grotesca palma apodrecida passeando pelos seios da ruiva. A expressão do demônio mostrava irritação, seu queixo e lábios estavam apertados ao máximo.
Adrian gritou e tentou se levantar rapidamente, mas a ruiva segurou sua mão no lugar – e, enquanto ele lutava contra sua imensa força, ela também revelou sua verdadeira aparência: outro corpo decrépito, a ilusão de beleza sumindo como se não fosse mais possível sustentá-la.
Enquanto ele tentava se desvencilhar, uma mancha negra começou a subir ao longo do braço, primeiro nos dedos, depois nos pulsos, seguindo seu caminho para o cotovelo.
Gritando alto, ele se sacudiu violentamente, mas estava preso como uma mosca em uma teia de aranha, como um rato em uma ratoeira, como um...
Eddie, o verdadeiro, aquele que estava morto, quebrou aquela conexão com um simples toque, não em Ad, mas na ruiva: aparecendo atrás deles de repente, apenas se inclinou e encostou o dedo iluminado no ombro do monstro. Puff! Ela simplesmente sumiu.
Enquanto Devina xingava o anjo, Adrian se libertou: seu corpo caiu para trás do sofá, com os olhos fixos em Eddie enquanto o coração se partia novamente por causa da perda.
– Vá se foder! – Devina gritou para o anjo.
O rosto de Eddie, aquele rosto esperto, gentil e maravilhoso, não mostrou reação ao insulto. Ele apenas acenou com a cabeça para a garrafa de cerveja Coors e disse:
– Na sua condição, eu estaria preocupado com muitas outras coisas mais importantes do que meu peso.
Mais xingamentos vieram, mas Devina não fez nada além disso – era de se imaginar o que Eddie tinha realmente feito com aquele dedo luminoso do E.T.
O outro anjo observou Ad por um longo tempo, como se sentisse ainda mais falta do amigo vivo.
– Nunca estarei longe – disse Eddie com um sussurro.
– Ah, merda... não vá embora – murmurou Ad. – Fique aqui.
– Que comovente – os olhos negros de Devina estavam furiosos. – Você quer dar um beijinho antes de ir embora?
Eddie começou a se mover como se fosse uma estátua em uma esteira rolante, seu corpo paralisado sendo puxado através da multidão, o perfume de flores se desvanecendo.
– Eddie! – quando Adrian levantou as mãos na direção do anjo, a mancha negra em seu braço quase chegava aos ombros.
– Estou dentro de você – disse Devina com satisfação. – E é tarde demais pra fazer qualquer coisa a respeito disso. Tarde demais!
Adrian gritou a plenos pulmões.
CAPÍTULO 7
Matthias acordou com a luz do dia batendo em seu rosto. Não tinha certeza de quando aquela enfermeira de mão boba saíra, mas ele pretendia partir assim que ela fosse embora. Um sono não natural o arrebatara, deixando-o inconsciente de tal forma que se sentiu dominado.
Francamente, estava surpreso por ter conseguido acordar.
O quarto do hospital parecia exatamente o mesmo, mas por que haveria de mudar durante a noite? E Matthias sentia-se mesmo melhor, como se seu corpo fosse um carro recém-saído do mecânico.
Quem diria que uma masturbação não solicitada poderia ter um impacto tão grande...
Mas era estranho. Quando olhou ao redor, teve a sensação de que era um milagre o fato de ele ainda estar “do lado de fora”. Mas estava fora de onde? Uma prisão? Um hospício? Algo ainda pior?
Forçando seu cérebro confuso a prestar atenção, tentou lembrar onde estivera na noite anterior, o que havia acontecido antes de acordar ali...
Eu te atropelei. Sinto muito.
Matthias fechou os olhos e se lembrou daquela mulher, Mels Carmichael. Alguma coisa nela penetrara o nevoeiro que o cercava, tocando-o onde realmente importava. Por quê? Não fazia ideia – mas sabia que, sob outras circunstâncias, gostaria de passar mais tempo com ela.
Muito mais.
Mas, qual é, ele não era do tipo romântico – sua intuição dizia isso em alto e bom som.
Levantando a cabeça dos travesseiros, ficou surpreso por não se sentir pior. Deu uma chance a seu corpo para deixar a ficha cair e começar a dar as informações corretas, algo mais consistente para alguém que fora atropelado há menos de doze horas.
Nada. Ainda sentia-se bem...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Certo, ajudaria se soubesse quem estava atrás dele, ou por que estava fugindo, mas não perderia tempo tentando decifrar essas perguntas – não quando sua adrenalina estava consistentemente apontando para a saída e gritando para ele dar o fora dali.
– Acho que você não é um anônimo, afinal.
Matthias tentou sacar uma arma que não tinha e olhou ao redor. A enfermeira estava de volta, de pé ao lado da porta, aparecendo como se fosse carregada pelo vento.
Sua aparência era diferente sob a luz do dia. Já não parecia sedutora.
Talvez ela fosse um vampiro. Há, há.
– Encontraram sua carteira – ela disse, mostrando uma carteira de couro preto. – Está tudo aqui, identidade, cartão de crédito... até seu cartão de seguro saúde! A conta no hospital vai ficar cara, mas a maioria das despesas está coberta.
Ela andou e colocou a carteira na mesa de rodinhas, bem ao lado do cartão que aquela jornalista tinha deixado. Então ela deu um passo para trás, como se soubesse que ele queria espaço.
Houve uma longa pausa.
– Obrigado – ele disse, tentando preencher o silêncio.
Ela estava vestida com roupas casuais: jeans azul, sapatos pretos, jaqueta branca folgada que parecia nova em folha. O cabelo estava solto e chegava até os ombros, e ela o alisou com a mão, mesmo já estando perfeito.
– Também trouxe algumas roupas – ela acenou com a cabeça. – Estão no armário atrás de você. Espero que sirvam.
– Então vão me liberar?
– Desde que se sinta bem esta manhã. Tem alguém te esperando em casa?
Ele não respondeu – e não por não saber a resposta. Nunca respondia nada para ninguém. Esse era seu jeito.
Mais uma longa pausa.
Ela limpou a garganta e desviou os olhos quando disse:
– Escuta, sobre ontem à noite...
Então era por isso que ela estava ali.
– Vou me esquecer disso, e você deveria fazer o mesmo – ele disse secamente.
Deus sabia que Matthias tinha problemas mais importantes do que ter sido abusado por uma mulher bonita. Pois é, que história triste. Especialmente se comparada com as coisas que ele fez com outras pessoas...
Lembranças emergiram do fundo de sua consciência, como um monstro esquecido num lago profundo ameaçando se revelar.
Afinal, quem era ele?
De repente os olhos negros da enfermeira grudaram nos seus.
– Sinto muito mesmo. Aquilo foi muito errado da minha parte. Nunca deveria ter...
Voltando ao presente, Matthias pensou que era engraçado que, à luz do dia, todo aquele poder que ela tinha sobre ele houvesse desaparecido totalmente. Ela nem parecia ser o tipo de mulher que poderia ser tão agressiva. Era apenas uma jovem enfermeira bonita, com um belo corpo e um cabelo lindo, e que agora parecia vulnerável.
Será que aquilo tinha mesmo acontecido? Ele provavelmente recebera vários analgésicos, e Deus sabe o quanto esses remédios podem bagunçar a cabeça de uma pessoa.
Por outro lado, se nada tivesse acontecido, ela não estaria ali se desculpando, não é?
– Foi uma total quebra de protocolo, eu nunca fiz nada assim antes. É só que... você estava com tanta dor, e você queria... e...
Ele queria? Lembrava-se do completo oposto. E lembrava que... teve um orgasmo. Talvez isso também não tivesse acontecido.
O que faria sentido.
– Enfim, pensei que deveria te dizer isso antes de ir embora... e você não vai mais estar aqui quando eu voltar da minha folga.
Ela parecia honestamente envergonhada e constrangida. Por alguma razão, Matthias teve a sensação de que fazia parte de sua personalidade tirar vantagem das pessoas, por nenhum motivo além de deixá-las constrangidas.
– Foi minha culpa – ele se ouviu dizer e, no instante que as palavras saíram, acreditou na confissão. – Sou eu quem deveria pedir desculpas.
Afinal, sexo por piedade acontecia sempre com um mesmo princípio, quer o ato fosse até o fim ou não: “oh, estou doente; pode cuidar do meu pau? obrigado, querida”.
A enfermeira pousou a mão na armação da cama.
– Eu só... é, bom, só não quero que pense que fico por aí fazendo essas coisas – ela riu, sem jeito. – Não sei por que isso importa. Mas importa.
– Você não precisa se explicar.
Quando ela ergueu o olhar, sua expressão cuidadosa relaxou e se transformou em um sorriso genuíno. O que o fez checar seu dedo anelar procurando por algum certificado de casamento.
Nada. Nenhuma aliança.
– Obrigada por não ficar bravo – ela olhou por cima do ombro em direção à porta. – Acho que eu deveria ir. Se cuide... e por favor lembre-se de fazer a consulta de retorno com seu médico. Lesões na cabeça e perda de memória são coisas sérias.
– Sim. Vou fazer isso.
Mentir foi muito fácil, Matthias sabia que tinha mentido muito durante sua vida. E quando acenou de volta, sua mente a analisava como se ela fosse um relatório ou uma correspondência, não uma pessoa – mas isso não era culpa dela.
Ele sentia que era assim que sua mente funcionava.
Ótimo. Nada como acordar de manhã e aprender passo a passo que você é um verdadeiro filho da puta.
Observou a mesa ao lado da cama. O cartão de visitas e a carteira estavam um ao lado do outro.
Matthias estendeu a mão, sem saber qual deles pegar.
No fim, a atração pela carteira parecia maior. Ao abrir o couro dobrado, observou a carteira de motorista que estava na parte transparente. A foto era... bem, não reconhecia aquele rosto, mas a enfermeira da mão boba parecia pensar que era ele. Era assim que se parecia? Um cara de cabelo preto e um rosto bonito, porém frio.
As informações impressas diziam que ele tinha olhos azuis – e naquela foto parecia que ambos funcionavam. A data de nascimento era naquele mesmo mês. E a data de validade já havia passado.
O primeiro nome, Matthias, de fato era como as pessoas o chamavam. O endereço ficava na cidade de Caldwell, Nova York, o que resolvia o problema geográfico... que ele nem percebera ter.
Caldwell, Nova York.
Estava de volta. Pelo menos era isso que seus instintos diziam...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Deixando a urgência de lado, começou a sair da cama devagar. Quando percebeu que estava preso, retirou as sondas intravenosas e o monitor cardíaco. Inclinando-se até os equipamentos ao lado, desligou os alarmes e arrastou-se para o banheiro.
A luz estava apagada, e quando apertou o interruptor... o show começou.
Matthias quase perdeu o fôlego ao ver a própria imagem refletida no espelho da pia. Um de seus olhos exibia um branco leitoso, e seu rosto estava esculpido com as linhas indeléveis de um passado cheio de dor – além de cicatrizes na testa onde sua lesão ocular aconteceu.
A fotografia na identidade era mesmo dele, principalmente se você adicionar um pouco de cabelo grisalho nas laterais, mas tinha sido tirada antes de...
– Senhor, preciso pedir que volte para a cama, pois está correndo o risco de escorregar e cair. E não deveria ter tirado as...
Ele ignorou a nova enfermeira.
– Estou indo embora. Agora mesmo. As regras do hospital, é, eu sei.
Fechou a porta na cara dela e abriu o chuveiro. Por alguma razão, quando voltou a focar o espelho, pensou em Mels Carmichael. Não foi à toa que a primeira reação dela ao vê-lo fora na linha do oh, meu Deus.
Ele não estava exatamente bonito...
Deus, por que estava pensando daquela maneira? Que importava o que os outros achavam dele?
Com a coordenação melhorando depressa, abriu a porta e olhou para dentro do quarto. A enfermeira não estava mais ali, mas com certeza voltaria trazendo alguém com um crachá de médico – era hora de se mexer rapidamente. Agarrou o cartão que Mels deixara e o guardou na carteira. Então pegou as roupas do armário e se trancou no banheiro.
Dez minutos mais tarde, Matthias estava com os cabelos e o corpo limpos, vestindo camiseta e jaqueta pretas e um jeans folgado.
Ao caminhar para fora do quarto, agarrou uma bengala que assumiu estar lá para ele.
O objeto parecia natural em sua mão e fez seus passos ficarem muito mais rápidos. Como se estivesse acostumado a usá-la.
Dirigindo-se para os elevadores, não pediu autorização para ninguém, não assinou nenhuma linha tracejada. O departamento de cobrança encontraria o homem que morava no endereço que aparecia na carteira de motorista.
E talvez ele também encontrasse esse homem.
O grito de Adrian acordou Jim e o fez saltar da cama, aterrissando em uma posição de luta. Com uma adaga de cristal em uma das mãos e uma pistola semiautomática na outra, estava pronto para lutar, fosse na arena dos humanos ou na de Devina. O Cachorro, que não era bobo, estava se protegendo debaixo da cama.
– Estou bem – disse Adrian, com a convicção de alguém que estava sangrando por uma veia.
Claro, com certeza, pensou Jim, que chegara correndo.
Sob a luz do sol que raiava entre as persianas, o anjo parecia completamente acabado, esparramado ali no chão, com grandes olheiras, cabelo desarrumado, mãos tremendo ao puxar a gola de sua camiseta Hanes. Seus piercings, aquelas argolas de metal que circulavam seus lábios, todo o lado da orelha e marcavam sua sobrancelha, eram as únicas coisas que brilhavam. Tudo o mais parecia sem vida.
Sua luz interior havia se apagado.
Jim estendeu a mão para o cara.
– Hora de levantar.
O outro anjo tomou sua mão, e por um momento os músculos de Jim ficaram tensos ao sentir uma desagradável pontada fluindo por seu braço e ativando seus instintos de um modo ruim. Mas então levantou Ad do chão, e aquilo desapareceu.
– Você já foi encontrar Nigel e os garotos? – perguntou Ad, enquanto andava como se tentasse se livrar da sensação ruim que tivera durante o sono.
– Por que eu faria isso?
– Boa pergunta.
Com essa deixa, Adrian foi até o banheiro e fechou a porta. Depois da descarga, o chuveiro foi ligado, e então foi a vez da pia.
Jim aproximou-se da porta e falou através da madeira fina:
– Você sonhou com o quê?
Quando não obteve resposta, fechou o punho e bateu.
– Adrian. Conte o que foi.
Deus sabia que Devina usava todo tipo de truques para conseguir o que queria. A ideia de que ela poderia invadir a cabeça de Ad pela porta dos fundos soava bem óbvia.
Bateu de novo na porta.
Quando não houve resposta novamente, Jim mandou a privacidade para o inferno e entrou.
Através da cortina de plástico do chuveiro, viu Adrian no chão de novo, desta vez com o piso frio do banheiro sob seu traseiro. Estava encolhido, com os cotovelos contra o peito, o rosto enterrado nas mãos. Não estava chorando, ou praguejando, nem parecia desesperado, mas talvez isso fosse o mais preocupante. O anjo estava apenas sentado debaixo da água quente, seu grande corpo enrolado em si próprio.
Jim abaixou o assento da privada e sentou.
– Converse comigo.
Depois de um momento, o anjo disse com a voz rouca:
– Ela era o Eddie. No meu sonho, ela era o Eddie.
Merda.
– Isso faria qualquer um gritar.
– Ele estava lá também. Foi ele quem me acordou, na verdade. Droga, Jim... ver Eddie de novo foi...
Enquanto a frase sumia, Jim inspecionou a lâmina de sua adaga com um cuidado especial.
– É, eu sei.
– Vou matá-la.
– Só se chegar antes de mim.
Adrian deixou os braços caírem para os lados e seus punhos acertaram a poça de água que se acumulava ao redor de seu corpo. Ele parecia derrotado, mas seria apenas por um momento. Sua raiva retornaria assim que aquele demônio aparecesse por perto e, francamente, a previsível resposta seria um problema: ninguém quer ver o próprio parceiro ficar cego pela raiva, e aquele sentimento não era fácil de controlar.
– Acho que você precisa pedir um novo parceiro para Nigel – Ad disse suavemente. Como se tivesse lido os pensamentos de Jim.
– Não quero outra pessoa.
Mas isso era mentira. Ainda estava aprendendo a lidar com as próprias habilidades e armas – claro, a curva de aprendizado já não era mais tão íngreme quanto nas primeiras rodadas, mas ele ainda estava longe de saber tudo. E Devina não era o tipo de inimigo contra o qual um desempenho mediano fosse aceitável.
Por causa disso, ele precisava de um parceiro sólido lhe dando cobertura.
Honestamente, Eddie era a peça que estava faltando. E fora precisamente por isso que o inimigo o abatera.
Maldita vadia!
– Você conhece mais alguém? – perguntou Jim.
– Tinha outro cara; na verdade, ele ficava acima de mim e de Eddie. Quase no nível de Nigel e Colin. Mas ele teve problemas. A última vez que ouvi falar, ele estava preso no Limbo. Bom, mas era um cara imprevisível. Talvez você fique melhor comigo mesmo, nesse caso.
– Temos que trazer Eddie de volta de alguma maneira...
– Ele era o único que saberia como fazer isso – Adrian soltou um grunhido e ficou de pé, sua figura massiva se erguendo como uma árvore. – Talvez o Colin.
Jim assentiu e voltou a observar sua adaga de cristal. A arma era transparente como um cubo de gelo, forte como aço, leve como uma pena. Fora Eddie quem lhe dera.
Ouviu um barulho de algo caindo no chão molhado e voltou os olhos para o parceiro. Ad deixara cair o sabonete, suas mãos estavam erguidas próximas ao rosto e sua boca parecia tentar praguejar.
– O que foi?
– Ah... merda... – Ad observou as costas das mãos. – Merda, não...
– O quê?
– Estão pretas – o anjo mostrou os braços. – Você não vê? Ela está dentro de mim, Devina está dentro de mim... e está me dominando...
Jim ficou aturdido por um momento, mas sabia que precisava fazer alguma coisa para trazer aquela situação de volta à realidade, e mais que depressa. Deixou a adaga na pia, tirou a cortina de plástico do caminho e agarrou os pulsos de Adrian.
Aquela sensação ruim se apoderou dele de novo, estimulando as terminações nervosas de seus dedos e palmas, como se as tivesse mergulhado em ácido. Concentrou-se na pele de Adrian e imaginou o que diabos tinha acontecido naquele sonho.
Mas a carne estava completamente normal. E pessoas que perdem seus melhores amigos têm motivos de sobra para perder também a razão. Mas não podiam permanecer assim.
– Adrian, meu amigo... – ele deu uma bela sacudida no cara – ei, olhe para mim.
Quando o pobre coitado finalmente olhou, Jim encarou aqueles olhos como se estivesse entrando em sua mente e tomando parte de seu cérebro.
– Você está bem. Não há nada de errado aqui. Ela não está dentro de você, ela não está aqui e...
– Você está errado.
As palavras sombrias fizeram Jim parar de repente. Mas então balançou a cabeça.
– Você é um anjo, Adrian.
– Eu sou?
Com a voz grave, Jim respondeu:
– Digamos que... é bom que você seja.
Após um silêncio tenso, os lábios de Jim começaram a se mover, palavras eram ditas, sílabas sensatas e apaziguadoras cruzavam a distância que os separava. Mas, no fundo de sua mente, ele rezava por quem quer que estivesse ouvindo.
Devina era um parasita, o tipo de coisa que invade as pessoas e as infecta.
Fazia sentido que alguém emocionalmente abalado fosse mais vulnerável.
Porém, a tragédia era que ele não podia ter o inimigo tão perto assim.
Não importava o quanto amasse seu amigo.
CAPÍTULO 8
– O que aconteceu com seu olho?
Mels entrou na cozinha de sua mãe, não respondeu a pergunta e foi direto para a garrafa de café. O fato de o objeto estar do outro lado, e por isso permitir que ela tomasse o café de costas para a mãe, era um bônus além da cafeína.
Maldita maquiagem. Elas supostamente serviam para cobrir aquilo que você queria esconder. Como pés de galinha, olheiras... e hematomas de acidentes de carro sobre os quais você preferia que sua família não ficasse sabendo.
– Mels?
Não precisava se virar para ver o que estava atrás dela: sua mãe, magrinha e baixinha, aparentando ser mais jovem do que era, estaria sentada do outro lado da mesa, com o Correio de Caldwell aberto ao lado de uma tigela de cereal rico em fibras e uma xícara de café. Os cabelos lisos pretos com mechas grisalhas estariam penteados num corte bem aparado, e as roupas seriam casuais, mas parecendo perfeitamente passadas a ferro.
Sua mãe era uma dessas mulheres pequeninas que sempre pareciam bem arrumadas, mesmo sem maquiagem. Como se tivesse nascido com uma lata de spray para cabelo debaixo de um braço e uma escova debaixo do outro.
Mas ela era frágil. Como um bibelô gentil e bondoso.
Era uma porcelana delicada, em contraste com o touro que fora seu pai.
Sabendo muito bem que a pergunta ainda estava no ar, Mels serviu-se de café. Tomou um gole. Manteve-se ocupada passando uma toalha de papel em um balcão que já estava limpo e seco.
– Ah, não foi nada. Escorreguei e caí. Bati a cabeça na torneira do chuveiro. Foi tão estúpido!
Houve um momento de silêncio.
– Você chegou tarde ontem à noite.
– Fiquei na casa de uma amiga.
– Você não tinha falado que ia num bar?
– Fui pra casa dela depois do bar.
– Ah. Entendi.
Mels ficou observando a janela em cima da pia. Com sorte, sua tia ligaria a qualquer momento, como geralmente fazia, e ela não teria que inventar mais uma mentira para explicar por que voltara de táxi do trabalho.
Os sons de goles de café e cereal sendo mastigado preencheram a cozinha, e Mels tentou pensar em algum assunto minimamente normal para conversarem. O clima. Esportes – não, sua mãe não tinha interesse em atividades organizadas que envolviam campos, bolas ou raquetes de qualquer tipo. Livros seria uma boa opção – porém Mels não lia nada além de estatísticas criminais, e sua mãe ainda estava no trem do Clube do Livro da Oprah, mesmo esse trem já não tendo motor ou trilhos.
Deus... momentos como esse a faziam sentir tanta falta do pai que até doía. Os dois nunca ficavam constrangidos um com o outro. Nunca. Conversavam sobre a cidade, ou sobre seu trabalho como policial, ou sobre a escola... ou simplesmente ficavam em silêncio – e, de um jeito ou de outro, nunca havia problema. Mas com sua mãe?
– Então – Mels tomou outro gole de café –, o que vai fazer de bom hoje?
Recebeu uma resposta, mas não a ouviu porque seu desejo de sair gritava alto demais.
Mels terminou o resto de seu café preto – sua mãe tomava com leite e açúcar –, colocou a xícara na lava-louça e cruzou os braços.
– Então, vejo você à noite – ela disse. – Não vou chegar tarde. Prometo.
Os olhos de sua mãe se levantaram para encontrar os dela. A tigela cheia de cereal integral era rosa e tinha pequenas flores brancas em volta, a toalha de mesa tinha flores amarelas e o papel de parede tinha flores maiores azuis.
Flores por toda a parte.
– Você está bem? – perguntou a mãe. – Precisa ir ao médico?
– É só um machucado. Nada de mais – olhou para a sala de jantar. Do outro lado da mesa de mogno, depois da cortina branca, um Chevrolet amarelo estacionou. – O táxi chegou. Deixei meu carro no bar porque bebi uma ou duas taças de vinho.
– Ah, você podia pegar o meu carro para ir trabalhar.
– Você vai precisar dele – ela olhou para o calendário pendurado na parede, rezando para que algo estivesse marcado ali. – Hoje você tem jogo de cartas às quatro.
– Eu podia ir de carona. Ainda posso, se você quiser...
– Não, é melhor assim. Posso pegar meu carro e dirigir de volta pra casa.
Droga. Acabara de criar um problema. A única maneira de Fifi ir para qualquer lugar seria na traseira de um caminhão de guincho – a pobrezinha fora levada para um mecânico.
– Ah. Tá bom.
Quando sua mãe caiu no silêncio, Mels teve vontade de pedir desculpas, mas era difícil demais colocar aquele complicado desculpe em palavras. Inferno, talvez ela precisasse simplesmente se mudar dali. Ficar constantemente exposta àquela bondade e autossacrifício, em vez de ser uma alegria, era um peso muito grande para carregar, pois nunca tinha um fim. Sempre havia uma sugestão, uma oferta, um quer-que-eu-isso-ou-aquilo...
– Preciso ir. Mas agradeço.
– Tá bom.
– Vejo você à noite.
Mels beijou o rosto macio que sua mãe ofereceu e saiu apressada pela porta da frente. Lá fora o ar estava fresco e agradável e o sol brilhava, prometendo calor na hora do almoço.
Entrando no banco de trás do táxi, ela disse:
– Escritório do Correio de Caldwell, na rua Trade.
– Pode deixar.
A caminho do centro da cidade, as molas do banco do táxi pareciam feitas de aço, e o estofado não era muito diferente de cimento, mas ela nem se importou com a viagem desconfortável. Sua mente estava caótica demais para pensar em seu traseiro sendo castigado por um banco duro.
Aquele homem da noite anterior ainda estava em seus pensamentos – podia quase senti-lo ao seu lado.
Fora assim durante toda a noite.
Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos e relembrou o acidente, checando duas, três vezes para ter certeza de que não poderia ter feito nada para evitá-lo. Então ficou pensando em outras coisas, como a maneira como o homem ficara deitado, totalmente imóvel, naquela cama de hospital.
Mesmo machucado, em alguns lugares com gravidade, ele ainda parecia um... predador.
Um poderoso animal, ferido, mas...
Certo, agora ela realmente estava perdendo a cabeça. E talvez devesse olhar mais de perto para sua vida amorosa – que era completamente vazia...
Infelizmente, Mels não conseguia parar de pensar na estranha atração que aquele homem exercera. Que desagradável, ela deveria é estar preocupada com a saúde e o bem-estar dele, além da possibilidade de querer processá-la e tirar dela o pouco que tinha.
Em vez disso, ela ficou pensando no som daquela voz rouca, e na maneira como ele a observara, como se qualquer detalhe dela fosse uma fonte de fascinação e importância...
Ele fora ferido há algum tempo, ela pensou. As cicatrizes ao lado do olho tinham se curado com o tempo.
O que será que acontecera com ele? Como era seu nome...?
Enquanto ela vagava pela terra das perguntas sem resposta, o motorista do táxi fez seu trabalho discretamente. Dezesseis dólares, dezoito minutos e um traseiro dolorido depois, ela chegou à redação.
O local já estava barulhento, com pessoas falando e andando apressadas, e aquele caos acalmou seus nervos – da mesma maneira que uma aula de ioga a deixava nervosa.
Ela sentou em sua mesa, checou o correio de voz, entrou em seu e-mail e pegou a xícara que vinha usando desde que herdou aquele lugar, há pouco mais de um ano e meio. Caminhou até a cozinha coletiva e encontrou seis opções de potes de café: nenhum deles era descafeinado; três eram da boa e velha marca Maxwell House; e os outros eram aquele horror com essência de nozes, um daqueles macchiato-sei-lá-o-quê.
Dane-se esse último. Se quisesse uma droga de um sorvete de caramelo, ela pediria um no almoço. Aquela coisa não devia ser colocada em uma xícara de café.
Enquanto servia seu café preto e puro, pensou na verdadeira dona da xícara, Beth Randall, a jornalista que sentara naquele cubículo por... bem, devia ter sido mais de dois anos. Em uma certa tarde, a mulher partira e nunca mais voltara. Mels lamentava o desaparecimento – não que conhecesse a colega muito bem – e sentia-se mal porque foram nessas as circunstâncias que ela finalmente conseguira um lugar só para ela.
Mantivera a xícara por nenhuma razão especial. Mas agora, enquanto tomava um gole, percebeu que a guardara por ainda ter esperança de que a mulher retornasse. Ou que pelo menos estivesse bem.
Parecia que Mels estava rodeada de pessoas desaparecidas.
Ou pelo menos foi assim que se sentiu naquela manhã. Principalmente quando pensou sobre o homem da noite anterior – aquele que nunca veria novamente, mas que não conseguia tirar da cabeça.
Aquela não era sua casa.
Quando o táxi estacionou em frente a um rancho em uma vizinhança modesta, Matthias sabia que não morava sob aquele teto. Nunca tinha morado. Não iria morar.
– Você vai descer do carro ou não?
Matthias encontrou os olhos do motorista através do retrovisor.
– Me dê um minuto.
– O taxímetro está correndo.
Concordando, ele desceu e usou a bengala para andar no passeio que levava à frente da casa, balançando a perna machucada em um longo arco para não ter de dobrar os joelhos. Não havia nada de lar, doce lar: a trepadeira invadia as janelas. O gramado não estava aparado. As calhas estavam cheias de mato que subia alto em busca do sol.
A porta da frente estava trancada, então ele fez uma viseira com as mãos para tentar olhar pela janela. Viu camadas de poeira. Móveis que não combinavam. Cortinas envelhecidas.
Havia uma caixa de correio barata pregada na parede. Ele abriu a tampa. Propagandas. Um talão de cupons de desconto endereçado ao “ocupante”. Nada de contas, solicitações de cartão de crédito, cartas. A única outra correspondência era uma revista da AARP1 endereçada ao mesmo nome que havia na sua carteira de motorista.
Matthias enrolou a revista, guardou no bolso da jaqueta e voltou para o táxi. Aquela não era sua residência – e mais ninguém morava ali. A pessoa que vivia ali devia ter morrido, digamos, há umas quatro ou seis semanas – tempo suficiente para a família cuidar das contas, mas não para esvaziar a casa e colocá-la à venda.
Entrando no táxi, fixou o olhar à frente.
– Para onde?
Com um grunhido, Matthias se ajeitou e puxou a carteira. Pegou o cartão de Mels Carmichael e foi atingido por uma profunda convicção de que não deveria envolver aquela mulher.
Era perigoso demais.
– E então, chefe?
Mas, droga, ele tinha de começar por algum lugar. E seu cérebro estava como uma conexão de internet fora do ar.
– Rua Trade – murmurou.
Enquanto dirigiam-se para o centro da cidade em meio ao trânsito pesado, ele observou os outros carros, onde pessoas bebiam café, conversavam com outros passageiros, paravam nos sinais vermelhos, avançavam nos verdes. Um mundo que parecia muito distante dele. O tipo de vida em que a pessoa trabalha das nove às sete todo dia, até morrer aos setenta e poucos anos. Essa não era a maneira como Matthias vivia.
Então, como ele vivia?, perguntou ao seu cérebro idiota. Como diabos ele vivia?
Tudo o que recebeu de resposta foi uma dor de cabeça.
Quando o edifício do Correio de Caldwell surgiu, Matthias pegou uma das dez notas de vinte que tinha na carteira.
– Guarde o troco.
O motorista parecia mais do que feliz em se livrar dele.
Usando a porta da frente como apoio, Matthias emergiu do carro sob a luz do sol, tomando cuidado para não corresponder a nenhum dos olhares curiosos. E havia muitos deles. Por algum motivo, ele tinha a tendência de atrair atenção, geralmente das mulheres – se bem que ficar atraída por alguém machucado era coisa normal de mulher, e ele estava cheio de cicatrizes no rosto.
Uau, que romântico.
Por fim, sentou-se na cadeira de plástico duro do ponto de ônibus do outro lado da rua, respirando a fumaça dos fumantes impacientes que esperavam o transporte público. A espera não o incomodava. Era como se ele estivesse acostumado a espreitar. Para passar o tempo, inventou um jogo: memorizava os rostos das pessoas que entravam e saíam dos escritórios do Correio de Caldwell.
Matthias era extremamente bom nisso. Só era preciso uma olhada para adicionar a pessoa ao seu banco de dados interno.
Pelo menos sua memória de curto prazo estava funcionando...
As portas duplas se abriram e lá estava ela.
Matthias se ajeitou na cadeira quando a luz do sol atingiu os cabelos de Mels e fez brilhar vários tons de castanho. Mels Carmichael, repórter associada, estava junto de um cara bem arrumado que precisava puxar a calça cáqui para cima antes de pisar nos degraus. Os dois pareciam estar discutindo amigavelmente sobre alguma coisa e, quando Mels sorriu, parecia que ela vencera o debate.
Como se soubesse que estava sendo observada, Mels olhou para o outro lado da rua e parou de repente. Ela tocou a manga do casaco de seu colega e disse algo, então eles se separaram e ela começou a se aproximar de Matthias, andando no meio do trânsito.
Matthias cravou a bengala no chão, levantou-se e ajeitou as roupas. Não tinha ideia de por que queria se arrumar para ela, mas queria – mas não dava para parecer pior. Vestia roupas que não eram dele, ainda cheirava a quarto de hospital e lavara o cabelo com xampu antibacteriano, pois era o único disponível.
Naturalmente, a primeira coisa para a qual ela olhou foi seu olho ruim, aquela coisa feia e arruinada. Como não poderia?
– Oi – ela disse.
Mels estava linda com suas roupas normais do dia a dia: com aquela calça, a blusa de lã e o lenço bege que usava ao redor do pescoço, para Matthias ela poderia muito bem estar em uma passarela.
E continuava sem aliança.
Isso é bom, ele pensou, sem uma razão especial.
Desviando o olhar para a direita, esperando que assim seu defeito fosse menos aparente, ele respondeu:
– Oi.
Certo. Hum. E agora?
– Não estou te seguindo, eu juro – mentiroso. – Eu teria ligado, mas não tenho telefone.
– Não tem problema. Você precisa de alguma coisa? A polícia me ligou hoje de manhã, e acho que eles ainda querem falar com você.
– Pois é – deixou esse assunto do jeito que estava. – Escuta, eu...
O fato de que estava interrompendo uma frase no meio parecia pouco natural, mas seu cérebro simplesmente não conseguia produzir nada.
– Vamos sentar – ela disse, mostrando os assentos. – Não acredito que eles deixaram você sair.
Naquele momento, um ônibus chegou e parou, bloqueando a luz do sol e soltando uma fumaça que o fez tossir. Os dois sentaram e ficaram em silêncio enquanto esperavam os passageiros embarcarem.
O ônibus partiu e o sol reapareceu, banhando-a com sua luz amarela.
Por alguma razão estúpida, os olhos dele começaram a piscar com força.
– O que posso fazer por você? – ela perguntou suavemente. – Está sentindo dor?
Sim. Mas não era dor física. E piorava sempre que olhava para ela.
– Como você sabe que eu preciso de ajuda?
– Imagino que sua memória não tenha voltado magicamente.
– Não, não voltou. Mas isso não é culpa sua.
– Bom, eu te atropelei. Então estou te devendo uma.
Ele gesticulou mostrando a perna ruim.
– Eu já estava assim antes.
– Consegue lembrar de alguma coisa? Quer dizer, anterior ao acidente? – quando ele negou com a cabeça, ela murmurou: – Muitos militares também voltaram na sua condição.
Ah... ela queria dizer o Exército, Marinha, Aeronáutica. E parte disso parecia ser correto. O governo... sim, Matthias tinha alguma ligação com o Departamento de Defesa, ou com a segurança nacional... ou...
Mas não era um soldado abatido. Porque nunca fora um herói.
– Eles encontraram minha carteira – ele murmurou.
– Oh, isso é ótimo.
Por alguma razão, Matthias entregou o objeto para ela.
Quando Mels abriu e olhou a carteira de motorista, ela assentiu.
– Esse é você.
Observando o emblema do Correio de Caldwell sobre a porta da qual ela saíra, ele disse:
– Veja bem, tudo o que estou falando fica entre nós dois, certo?
– É claro.
– Gostaria de ter outra opção. Gostaria... não quero te colocar em encrenca.
– Você ainda não me pediu pra fazer nada – ela o observou. – Em que está pensando?
– Consegue descobrir quem é esse cara? – apontou para a carteira de motorista. – Porque não sou eu.
N.T.: AARP é uma ONG norte-americana destinada a defender os interesses dos cidadãos com mais de cinquenta anos.
CAPÍTULO 9
Durante o silêncio que se seguiu, tudo o que Mels podia pensar era no fato de que tivera plena certeza de que nunca mais veria aquele homem.
Pelo jeito, o destino tinha outros planos.
O homem de roupas pretas sentado ao seu lado era grande, supermalhado e dava a impressão de ser forte em todos os sentidos, com seus olhos estreitos e o queixo quadrado... mas parecia envergonhado de suas cicatrizes e do defeito na perna.
Olhando mais uma vez a carteira de motorista, ela franziu a testa. A foto parecia verdadeira, os hologramas estavam onde deveriam estar, altura, peso e data de nascimento estavam corretos, o endereço ficava ali mesmo em Caldwell – e não muito longe da casa de sua mãe, na verdade.
Ele provavelmente estava voltando para casa no momento do atropelamento. Assim como ela.
Observando agora o homem em vez da imagem, ela teve a sensação de que, para procurá-la, ele fizera um grande esforço e engolira o orgulho. Ele não parecia o tipo de pessoa que gostava de depender dos outros, mas a vida claramente não lhe deixara outra escolha.
Sem memória. Poucos recursos.
E com aqueles olhos assombrados e um corpo remendado, ele tinha de ser um militar, voltara da guerra apenas fisicamente, mas não em espírito.
Naturalmente, a jornalista dentro dela gostava de um bom mistério – e o fato de ter um pouco de culpa em relação à sua amnésia era outra razão para ela mergulhar de cabeça nisso. Mas Mels não era idiota. Não queria se envolver em algum tipo de drama, principalmente se ele fosse um maluco ou paranoico.
A foto era dele mesmo, sem dúvida.
– Odeio colocar você nessa posição – suas mãos grandes acariciaram a bengala que equilibrava nas coxas. – Mas não tenho mais ninguém. E a casa nesse endereço não é minha. Não sei onde moro, mas com certeza não é naquela casa. Eu chequei a correspondência quando fui até lá – ele recostou-se para o lado e retirou uma revista dobrada do bolso da jaqueta. – Encontrei isto. O nome está certo, mas eu não tenho mais de cinquenta e cinco anos. Por que isto estaria na minha caixa de correio, endereçado a mim?
Ela desdobrou a revista e observou o logotipo da AARP e a foto de uma graciosa modelo da terceira idade vestindo roupas de ginástica. O nome acima do endereço era Matthias Hault, e o número e rua eram os mesmos da carteira de motorista... talvez ele morasse com o pai e os dois tivessem o mesmo nome.
Mas um pai não teria ficado feliz em ver o filho aparecer na porta de casa?
– Eu poderia contratar um detetive particular – ele disse –, mas isso custa dinheiro, e nesse momento tenho apenas duzentos dólares no bolso... bom, cento e oitenta, depois que paguei o taxista.
– Tem certeza de que ninguém está tentando te encontrar? – quando ele permaneceu em silêncio, ela pensou que Matthias estava vasculhando sua memória, mas ele encontrou apenas o vazio, por culpa dela. – O que os médicos disseram? Como eu disse, honestamente, estou chocada de você estar de pé andando por aí.
– Então, você vai me ajudar? – ele respondeu.
Aquele era um momento de limite que precisava ser considerado com respeito. Mas ela decidiu cruzar a linha.
– Se eu ajudar, você vai ter que falar comigo. O que os médicos disseram?
Seu olho bom procurou ao redor, como se estivesse pensando em uma resposta.
– Fui embora sem avisar.
– O quê?! Por quê?
– Não me senti seguro. E não posso explicar mais do que isso. É tudo o que sei.
Estresse pós-traumático, ela pensou. Só podia ser.
Talvez se Mels confirmasse a identidade dele, sua mente poderia descansar e isso ajudaria na recuperação.
– Certo, vou fazer o possível – ela disse.
Matthias abaixou a cabeça, como se aceitar ajuda de outra pessoa fosse um tipo de derrota.
– Obrigado. Tudo o que preciso é de uma busca com esse nome. Um lugar para começar.
– Posso voltar pro escritório e fazer isso na minha mesa agora mesmo – ela apontou para o lado direito. – Tem um restaurante ao lado do rio, a uns dois quarteirões daqui. Você pode comer algo e eu te encontro lá assim que puder. Ah... claro, se você conseguir andar...
– Eu consigo chegar lá – ele disse, rangendo os dentes.
Ou morreria tentando, ela pensou, ao observar seu queixo contraído.
Que, por sinal, lembrava muito o ator Jon Hamm.
O homem levantou-se com a ajuda da bengala.
– Então eu te encontro lá. Não precisa se apressar.
Quando ele olhou para a rua, a luz do sol brilhou em seus olhos; tanto naquele que obviamente ainda enxergava como no que estava cego.
– Quer ficar com meus óculos escuros? – ela perguntou. – É um Ray-Ban, mais unissex que isso é impossível. E também não precisa de receita.
Ela não esperou ele dar uma de fortão e recusar. Pegou a caixa e a estendeu na sua frente.
Matthias Hault ficou observando a sua oferta por um longo tempo, como se o simples gesto fosse algo a que não estava acostumado.
– Aceite – ela disse suavemente.
Sua mão tremeu um pouco ao aceitar a caixa, e ele não a olhou mais nos olhos.
– Não vou riscá-los. E vou devolver no restaurante.
– Sem pressa.
Quando ele colocou os óculos escuros, seu rosto se transformou em algo... inegavelmente perigoso.
E definitivamente sensual.
Um calor percorreu o corpo de Mels, atingindo-a num lugar que há muito tempo não se acendia.
– Melhor? – ele disse.
– Eu acho que sim.
Ele ainda se recusava a olhar para ela. Seus ombros e costas estavam retos, os lábios tensos. Um homem tão orgulhoso, preso daquele jeito em uma posição de fraqueza...
Ela sempre lembraria daquele momento, pensou, sem qualquer motivo. Sim, este momento agora, com o sol brilhando nas feições endurecidas de seu rosto bonito.
Aquilo era um momento decisivo, concluiu. Essa intersecção aparentemente aleatória entre os dois mudaria as coisas para sempre.
– Eu queria te perguntar uma coisa – ele disse.
– O quê? – ela sussurrou, imersa em um momento que não podia compreender totalmente.
– Onde aconteceu o acidente?
Sacudindo a si mesma, ela puxou seu cérebro de volta à realidade.
– Foi, ah, bem ao lado do Cemitério Pine Grove. Perto de onde moro. Não muito longe do bairro onde fica sua casa.
– Um cemitério.
– Isso mesmo.
Ele assentiu e, quando começou a caminhar em direção ao restaurante, ela podia jurar que o ouviu dizer “Por que isso não me surpreende?”.
O Riverside Diner era um restaurante típico de cidade pequena americana. Cheio de estofados de couro sintético, cortinas com estampa xadrez e garçonetes mal-humoradas. A comida era gordurosa, mas de uma maneira gloriosa, e quando Matthias cortou seus ovos mexidos com o garfo, seu estômago roncou como se fizesse anos que não comia.
Já era tarde para o café da manhã, mas não existe acompanhamento melhor para uma xícara de café do que ovos e bacon.
Enquanto comia, os óculos escuros que recebera da repórter eram uma benção, pois lhe permitiam ficar de olho nas pessoas que entravam e saíam, nas garçonetes indo e vindo, e nos fregueses que entravam no banheiro e em quanto tempo ficavam lá.
Mas vigilância não era o motivo de Mels ter lhe emprestado os óculos.
Droga. Por que aquela mulher fazia ele desejar não ter mais seus defeitos?
– Mais café? – perguntou a garçonete.
– Sim, por favor – ele ofereceu a xícara e ela despejou o café fumegante. – E mais um prato de tudo isto também.
Ela sorriu como se estivesse calculando uma gorjeta maior.
– Você come bem.
Quando não se sabe quando ou onde vai ser a próxima refeição, é melhor fazer valer a pena, ele pensou consigo mesmo.
A repórter apareceu pouco depois de Matthias terminar o segundo café da manhã. Ela olhou para a esquerda e depois para a direita e o encontrou sentado nos fundos, ao lado da saída de emergência. Então começou a percorrer o longo caminho de mesas vazias.
Quando sentou à sua frente, seu rosto estava vermelho, como se tivesse se apressado.
– Devia estar lotado quando você chegou – ela disse.
– Estava – mentira: ele queria ficar nos fundos para o caso de precisar sair às pressas.
A garçonete voltou com o pote de café.
– Olá... gostaria de café?
– Sim, por favor – Mels tirou a blusa. – E o meu de sempre.
– Almoço ou café da manhã?
– Almoço.
– Já está saindo.
– Você almoça sempre aqui? – ele perguntou, imaginando por que se importava.
– Duas, três vezes por semana, desde que comecei a trabalhar no jornal.
– E quando começou?
– Um milhão de anos atrás.
– Engraçado, você não parece um dinossauro.
Sorrindo um pouco, ela tomou um gole do café e se preparou para a conversa. Seus lábios ficaram tensos e seus olhos se estreitaram.
Ela ficava sexy daquele jeito. A intensidade. O foco. Naquele momento, ela o fazia se lembrar de si mesmo...
E isso era um milagre, se você pensar que Matthias tinha a mesma quantidade de informação sobre os dois... sendo ela uma estranha.
– Diga o que descobriu – ele exigiu.
– Você está morto.
– E eu que achei que era só uma sensação.
Durante a pausa que se seguiu, ele podia sentir que Mels tentava entendê-lo.
– Você não está surpreso – ela disse.
Ele observou sua xícara meio vazia e balançou a cabeça.
– Eu sabia que havia algo de errado naquela casa.
– O dono verdadeiro desse nome tinha oitenta e sete anos e morreu de insuficiência cardíaca cinco semanas atrás.
– Em se tratando de identidades falsas, essa não é uma das melhores, não é?
– Você fala como se conhecesse bem o assunto – quando ele não comentou nada, ela se inclinou para frente. – Por acaso você faz parte do programa governamental de proteção a testemunhas?
Não, ele estava do outro lado da lei... seja lá o que isso significasse.
– Se for o caso – ele disse –, não estão cuidando muito bem de mim.
– Tenho uma ideia. Vamos voltar ao cemitério, no local do acidente. Vamos ver se você se lembra de alguma coisa.
– Não posso pedir pra você fazer isso.
– Não pediu. Estou oferecendo... – ela parou. Franziu a testa. Coçou a sobrancelha. – Meu Deus, espero não estar me transformando na minha mãe.
– Ela gosta de cemitérios?
– Não, é uma longa história. Enfim, peguei emprestado o carro do meu amigo. Posso te levar até lá depois que terminarmos de comer.
– Não. Mas eu agradeço.
– Por que você se deu ao trabalho de perguntar sobre o nome se não vai continuar investigando?
– Posso pegar um táxi, foi o que quis dizer.
– Ah.
A garçonete voltou com o “de sempre”, que era um sanduíche de frango em pão integral e o que parecia ser tomates extras, além de batatas fritas em vez de batatas chips.
– Acho que eu deveria levar você – ela disse, pegando o ketchup.
Matthias observou quando dois policiais entraram pela porta da frente e sentaram no balcão.
– Posso ser sincero com você?
– Por favor.
Ele abaixou o queixo e a olhou por cima dos óculos escuros.
– Não quero que fique sozinha comigo. É muito perigoso.
Ela parou com uma batata frita a meio caminho da boca.
– Sem ofensa, mas, considerando sua condição física, eu poderia quebrar suas duas pernas e te deixar inconsciente em questão de segundos – as sobrancelhas dele foram erguidas ao máximo, e ela assentiu. – Sou faixa preta, tenho permissão para porte de armas e nunca vou a lugar algum sem uma boa faca ou sem minha arma.
Ela deu um sorriso rápido, pegou o sanduíche de frango e deu uma mordida.
– Então, o que me diz?
CAPÍTULO 10
Felizmente, aquilo não era um encontro romântico, pensou Mels quando o silêncio imperou. Pois dizer a um homem que você é capaz de acabar com ele não seria um bom começo, meio ou fim para um almoço a dois.
Aquilo era trabalho – é claro que a história daquele homem, seja lá qual fosse, não terminaria nos jornais, mas era algo a ser investigado, e Deus sabia que ela nunca dispensava uma oportunidade dessas.
– É um belo currículo – ele disse depois de um bom tempo.
– Meu pai se certificou de que eu seria capaz de me defender. Ele era um policial à moda antiga.
– O que isso quer dizer?
Ela limpou a boca com um guardanapo, tomou outro gole de café e desejou ter pedido uma Coca.
– Digamos que hoje em dia, com câmeras nos carros de polícia, reuniões da corregedoria, e pastas cheias de protocolos de procedimentos, ele não teria durado nem um mês antes de ser suspenso. Mas no passado ele fazia seu trabalho, e as pessoas estavam mais seguras nesta cidade graças a ele. Ele dava conta de tudo.
– Um cara durão?
– Um cara justo.
– E você aprova esses métodos?
Ela deu de ombros.
– Ele tinha minha aprovação. Por outro lado, sua maneira de agir... digamos apenas que era outra época. Antes de testes de DNA e internet.
– Parece meu tipo de pessoa.
Mels teve que sorrir ao ouvir aquilo. Mas então uma tristeza pela perda do pai a fez virar o rosto e observar o rio e as gaivotas que seguiam a lenta correnteza.
– Ele nunca perdia o controle ou ficava bravo. Mas às vezes os criminosos só entendem as coisas quando elas são explicadas na língua deles.
– Você tem irmãos ou irmãs?
– Apenas eu. E meu pai não se importava por eu ser uma garota. Ele me tratava como trataria um filho: me treinou, ensinou autodefesa, insistiu que eu aprendesse a disparar armas de fogo – ela riu. – Minha mãe quase tinha ataques do coração por causa disso. Até hoje ela é assim.
– Ele já se aposentou?
– Faleceu – ela voltou ao sanduíche. – Foi morto em serviço.
Houve uma pausa. Então Matthias disse suavemente:
– Sinto muito.
Mels não ousou levantar os olhos, pois falara demais e, com aqueles óculos escuros, não sabia onde estavam os olhos dele – embora não fosse necessário ser um gênio para saber que estavam focados nela.
– Obrigada. Mas chega de falar de mim. E chega dessa porcaria de é-perigoso-demais. Tenho cuidado de mim mesma faz tempo, e sou muito boa nisso. Não teria oferecido ajuda se não achasse que poderia lidar com você.
Ele soltou uma risada súbita.
– Você é muito segura de si mesma.
– Sei quais são meus limites.
– Mas você não me conhece. E eu também não.
– E nós queremos consertar isso, não é?
O homem recostou-se.
– Sim.
Quando terminou o sanduíche – deixando o resto das batatas de lado – ela pagou a conta e levantou-se.
– Então, vamos lá.
Quando ele pousou os olhos nela, aquele calor a invadiu novamente, uma atração sem sentido passando por seu corpo.
– Prometa uma coisa – ele disse em voz baixa.
– Depende do que for.
– Você não vai correr nenhum risco.
– Feito.
Matthias assentiu, pegou a bengala, deslizou as pernas para fora da cadeira e esperou por um momento, como se estivesse preparando o corpo para um massacre. O primeiro instinto de Mels foi colocar um braço sob o ombro dele para ajudar, mas sabia que ele não gostaria disso. E ficar encarando sua fragilidade também não era respeitoso, então ela se virou e fingiu checar o cardápio iluminado que ficava sobre o balcão.
Um grunhido denunciou que ele se levantara, então Mels seguiu em frente até a porta. Enquanto passavam pelos outros fregueses, ela sentiu os olhos de todos pairando sobre o homem que estava atrás dela.
Deus, ela imaginava como seria a vida daquele jeito, atraindo constantemente os olhares curiosos. Se bem que as mulheres provavelmente estavam vendo apenas aquilo que ela própria enxergava. Que não tinha nada a ver com defeitos.
Muito pelo contrário.
O carro de Tony, que estava no estacionamento, parecia já ter visto dias melhores, não era como a Fifi, mantida com carinho. Aquele carro parecia mais uma lata de lixo ambulante.
– Não repara na sujeira – ela disse ao destrancar o veículo.
Ao entrar, Mels tirou do banco do passageiro as várias revistas Newsweek e The New Republics. Como era de se imaginar, Matthias levou um tempo para entrar no carro e, quando colocou os joelhos para dentro, suas botas pisaram em lixo, amassando embalagens vazias de Taco Bells, McDonald’s, Burger King e Wendy’s.
– Seu amigo gosta de fast-food – ele comentou.
– E come rápido também.
Ela acelerou e entrou no trânsito, espremendo o sedã entre um táxi e uma caminhonete.
– Cinto de segurança – disse Matthias.
Mels olhou para ele.
– Pois é. Você está usando um.
– Gosta de viver perigosamente?
– Cintos de segurança nem sempre salvam vidas.
– Então todas essas pessoas ao redor estão erradas?
– Elas podem fazer o que quiserem, e eu também.
– E as multas?
– Nunca fui parada no trânsito. E se acontecer, simplesmente pago a multa.
– Quando. Você quer dizer “quando acontecer”.
O Cemitério Pine Grove ficava a uns dez minutos – mas não do jeito que Mels dirigia. Em nenhum momento ela foi imprudente, apenas eficiente, escolhendo rotas que evitavam semáforos e as obras ao redor do parque.
– É ali, à direita – Mels se inclinou sobre o volante e olhou através do para-brisa. – Na verdade, é um lugar lindo. Há algo tão pacífico em cemitérios...
Matthias não parecia impressionado.
– Toda essa coisa de descanso eterno é uma ilusão.
– Você não acredita no Céu?
– Acredito no Inferno, isso sim.
Não houve tempo para ela responder quando chegaram na entrada.
– O acidente aconteceu por aqui... um pouco depois do portão principal. Bem... um pouco mais para frente... aqui.
Enquanto ela estacionava o carro de Tony e desligava o motor, Matthias já estava saindo. Andando rápido com sua bengala, ele parou no meio da rua, em cima das marcas onde ele havia aterrissado. Olhou para os dois lados e seguiu até as marcas dos pneus da Fifi e a árvore atingida... e finalmente chegou no portão de três metros de altura que cercava o cemitério.
Aquilo é que era estilo gótico. Feitas com barras de ferro com pontas em forma de flor de lis, as fronteiras do Pine Grove eram imponentes... e perigosas, se alguém tentasse escalá-las.
E veja só, enquanto se aproximava, Mels viu uma mancha de sangue no topo de uma das pontas – e havia também um pedaço de roupa. Como se alguém tivesse tentado pular o cercado.
– Eu pego – ela disse, pulando e agarrando o tecido. – Aqui.
Matthias segurou o pano.
– Tecido impermeável. Aposto que aquele sangue seco é meu. Tenho um ferimento recente na perna.
Mas por que ele não teria simplesmente passado pelo portão da frente? Bem, à noite ele provavelmente ficava trancado.
– Podemos entrar? – ele perguntou.
– Agora mesmo.
De volta ao carro, ela passou pela entrada e virou à esquerda, indo em direção ao ponto onde encontraram o tecido. Chegando lá, ela parou novamente, saiu e esperou que a memória dele se manifestasse. Se é que isso aconteceria.
Enquanto ele olhava ao redor, Mels ficou um pouco distante, ouvindo a brisa que soprava entre os galhos dos pinheiros e sentindo o sol brilhar em seus ombros... e tentou não pensar no lugar onde estava seu pai...
Logo atrás, a uns cem metros, no meio do cemitério, entre a família Thomas e os três irmãos Krensky.
Pelo jeito, ela se lembrava muito bem.
A última vez em que estivera ali fora no dia seguinte ao enterro do pai. Mels estivera trabalhando em Nova York por quase cinco anos. Ele estava tão orgulhoso de sua filha na cidade grande, fazendo aquilo que tinha estudado – o jornalismo...
– É por aqui – Matthias disse, distraído.
Enquanto ele caminhava pelo gramado desigual, Mels largou seu passado para se concentrar no presente dele, e juntos andaram decididamente, mesmo com os passos de Matthias se mostrando instáveis e precisando do suporte da bengala. De vez em quando ele parava, como se estivesse calibrando a direção, e Mels não o interrompia com perguntas.
A construção onde finalmente chegaram combinava com as lápides e sepulturas. Sua fachada de pedra ecoava a arquitetura usada na entrada principal e nos balaústres que se intercalavam aos portões de ferro.
– Eu estava nu – ele disse. – Vim até aqui, entrei pela janela e peguei...
Ele empurrou a porta, que rangeu enquanto se abria. Lá dentro, caminhou até a parede de trás e comparou o pedaço de tecido rasgado com um macacão impermeável que estava pendurado.
Nu?, ela pensou.
– Onde estavam suas roupas?
Ele deu de ombros.
– Só sei que estive aqui na noite passada.
Matthias voltou para fora e continuou pelo caminho que estavam fazendo, mas agora ele andava em zigue-zague – talvez para manter a trilha ou para tentar encontrá-la; Mels não sabia e também não perguntou. Apenas o seguiu, e eles passaram por dezenas de lápides, além de funcionários que cuidavam do gramado e pessoas que visitavam túmulos de parentes.
Finalmente, quando estavam a quase meio quilômetro de onde deixaram o carro, ele parou.
– Aqui. Isto é... sim, foi aqui que começou. Tenho certeza.
A lápide que ele observava pertencia a um dos túmulos mais recentes – e em cima da terra fofa que fora colocada sobre o caixão, havia realmente a silhueta de um corpo, como se uma pessoa do tamanho dele tivesse deitado ali em posição fetal.
– Foi aqui que começou – ele se apoiou na bengala e se agachou. Tocando a terra, sussurrou: – Aqui.
– James Heron – ela disse, lendo a inscrição simples na lápide. – Você conhece ele?
Matthias olhou ao redor do cemitério.
– Sim.
– Em que contexto?
– Preciso ir – ele se levantou e se afastou dela. – Obrigado.
Mels franziu a testa.
– Do que está falando?
– Você precisa ir embora agora...
– Você não tem condições de andar de volta até a cidade. E boa sorte se quiser achar um táxi.
– Por favor, você precisa ir embora.
– Diga por que e talvez eu considere.
Em um movimento súbito, o homem se aproximou dela, chegando perto... muito perto. Tomando fôlego, Mels precisou forçar para que seus pés não se mexessem... e foi um choque quando percebeu que os pés desejavam que seu corpo terminasse o que ele havia começado.
Só era preciso mais um passo para que seus peitos se tocassem e seus quadris se apertassem um contra o outro.
Não era a ideia mais brilhante, já que parecia que o predador dentro dele se libertara. Mas ela não queria ser sensata.
Mels o desejava.
Mas isso não fazia parte do plano.
Levantando o queixo, ela disse:
– Se pensa que essa agressividade é persuasiva, você está errado. E eu estou esperando uma explicação.
Matthias se inclinou para frente, e o movimento de seus quadris a deixou totalmente ciente do quão mais alto ele era. Quão mais forte, mesmo machucado. E o quanto seus olhos ardiam, mesmo através dos óculos escuros.
Com uma voz grave e perigosa, Matthias disse:
– Porque você vai morrer se não se afastar de mim.
CAPÍTULO 11
Local não revelado Washington, D.C.
– Este é o alvo.
A foto que caiu com a imagem para cima na lustrosa mesa chegou ao agente por força da inércia.
O rosto instantaneamente pareceu familiar. Afinal, quem nas Operações Extraoficiais não conhecia aquele homem?
O agente ergueu os olhos na direção de seu superior.
– Qual a localização?
– Caldwell, Nova York.
O endereço foi passado oralmente, assim como todas as outras instruções. E ele não podia ficar com a foto. E aquela sala, em um prédio absolutamente comum na capital da nação, não registrava nada daquela conversa. Sem rastros. Nunca.
– Obviamente, consideramos que ele está armado e é extremamente perigoso.
Com certeza. Sempre fora – mas glórias não duram para sempre, e você nunca deixa de ser um agente das Operações. As únicas classificações para um agente eram “em atividade” ou “eliminado”.
E ele seria o responsável pelo carimbo de “eliminado”, nesse caso.
– As regras normais se aplicam – disse o superior.
É claro que sim: agiria sozinho, era o único responsável pela missão e, se falhasse, era melhor rezar para morrer – ou fazer isso por si próprio. Essas regras eram muito conhecidas pelo pequeno grupo de agentes que foram escolhidos a dedo pelo diabo em pessoa...
Matthias. Aquele que os liderara nos últimos dez anos. O astuto jogador de xadrez, o mestre da manipulação, o violento sociopata que servira de modelo para todos eles.
Por um momento, parecia estranho receber ordens de outra pessoa – mas, considerando quem era o alvo...
No entanto, a organização precisava seguir em frente, e seu atual superior subira rápido na hierarquia, claramente se posicionando como o herdeiro do trono. Isso explicava o que estava fazendo agora. Pontas soltas eram inaceitáveis.
– Mais alguma coisa de que eu precise saber?
– Apenas não estrague tudo. Você tem 24 horas.
O agente esticou a mão enluvada e trouxe a foto para mais perto. Observando aquele rosto, pensou que, se alguém tivesse lhe contado sobre as mudanças que aconteceram nos últimos dois anos, ele se convenceria de que essa pessoa estava maluca.
Porém, lá estava ele, olhando para aquele poderoso homem na fotografia, que agora estava condenado à morte. Se o agente falhasse ao tentar matá-lo, a organização mandaria outro. E outro. E mais outro. Até que a missão fosse cumprida.
E, conhecendo o alvo, talvez precisassem de mais de uma tentativa.
Seu superior pegou de volta a fotografia e caminhou até uma porta que parecia normal, mas que na verdade era à prova de balas, fogo, bombas e som. Assim como as paredes, o teto e o chão.
Após um escaneamento da retina, a porta se abriu e depois fechou, deixando o agente sozinho para ponderar suas opções: uma vez que a missão fosse entregue, os métodos de execução ficavam por conta do agente designado. Os chefes se importavam apenas com os fins, não com os meios.
Caldwell, em Nova York, ficava a apenas uma hora e meia de avião, mas era melhor ir de carro. Não dava para saber que recursos tinha seu alvo, e aviões podiam ser rastreados mais facilmente do que carros sem identificação.
Enquanto o agente deixava o edifício, o fato de que poderia estar se dirigindo para a própria morte era irrelevante – e essa era parte da razão de ele ter sido selecionado dentre tantos outros soldados e civis que se “inscreviam” para as Operações Extraoficiais. Cuidadosas avaliações psicológicas e físicas eram conduzidas, não durante semanas ou meses, mas por anos, antes que o candidato recebesse o sinal verde. Afinal, o trabalho exigia uma incomum combinação de urgência e desapego, lógica e iniciativa, disciplina mental e física.
Assim como o simples prazer em matar outros seres humanos.
Ao final do dia, ele achava divertido bancar o Ceifeiro da Morte, e essa era a única maneira legal e sancionada de fazer isso. Mesmo o mais cuidadoso assassino em série acaba preso com o passar do tempo. Mas e trabalhando para o governo dos Estados Unidos?
Seu único limite era sua habilidade de permanecer vivo.
CAPÍTULO 12
Matthias precisava se afastar de Mels.
Não havia nenhuma outra opção. No cemitério, junto dela, encarando a lápide de Jim Heron, pareceu muito claro que eles estavam separados entre a vida e a morte – e ela estava no lado da vida.
Matthias queria mantê-la assim.
Depois de discutirem por um momento, ela o deixou, afastando-se com uma rapidez eficiente que ele aprovava. Matthias permaneceu no local de descanso de Jim Heron pelo tempo que julgou ser necessário até Mels chegar ao carro de seu amigo – e, como ele esperava, o Toyota não estava mais no portão principal do cemitério quando ele retornou.
E ela estava certa quanto à falta de táxis, mas havia um ponto de ônibus não muito longe e, embora isso o obrigasse a esperar, acabou conseguindo voltar ao centro da cidade por conta própria.
Melhor assim. Uma separação definitiva – ao menos fisicamente. Em sua mente, ele tinha o pressentimento de que não seria tão fácil.
Apesar de ainda possuir uma parte dela, de forma concreta: os óculos escuros. Ela não os pedira de volta, e ele esqueceu que estavam em seu rosto.
E esconder seu olho ruim seria muito útil em uma situação como a dele.
Matthias entrou no Starbucks da rua Quinze e avaliou o local através de seu Ray-Ban. O horário de pico do almoço já tinha passado e os fregueses das três da tarde ainda não tinham aparecido para lotar o local em busca de um remédio para sua sonolência vespertina. Havia apenas duas pessoas tomando café com leite, além de um par de baristas do outro lado no balcão.
Ele escolheu a barista cheia de piercings na sobrancelha e cabelo espetado azul e rosa.
Quando se aproximou, ela ergueu um olhar que parecia contar as horas para ir embora, mas sua expressão mudou rapidamente. Para algo a que ele já estava acostumado.
Era uma expressão de interesse feminino.
Matthias escolheu sabiamente.
– Olá – ela disse, enquanto pesquisava seu rosto... e depois a bengala e a jaqueta preta.
Ele sorriu, como se também estivesse momentaneamente interessado nela.
– Ah, escuta, eu combinei de encontrar um amigo aqui, mas ele não apareceu. Eu ia ligar para ele do meu celular, mas percebi que esqueci em casa. Posso usar seu telefone?
Ela deu uma olhada em seu colega de cafeteria. O cara estava encostado nos fundos ao lado das máquinas de café, braços cruzados ao redor do peito magro, como se estivesse descansando em pé.
– Sim. Pode sim. Venha aqui.
Matthias a seguiu pelo balcão, exagerando seu andar manco.
– Preciso ligar para o disque-informações primeiro, pois não lembro o número dele. Mas não se preocupe, é uma ligação local. Não acredito que esqueci meu celular!
– Acontece com todo mundo! – ela estava toda agitada, seus olhos pousavam rapidamente nele e depois se desviavam, como se ele fosse brilhante demais para se olhar por muito tempo. – Mas eu preciso discar, você não pode entrar atrás do balcão.
– Sem problema – quando ela lhe entregou o fone, ele o pegou e sorriu devagar. – Obrigado.
Ela ficou ainda mais encabulada. Ao ponto de precisar discar duas vezes até conseguir chamar o número desejado.
Matthias casualmente se virou e fingiu checar a entrada procurando por seu “amigo” quando uma voz gravada atendeu:
– Cidade e estado, por favor.
– Caldwell, Nova York – houve uma pausa. Ele esperou um atendente. – Por favor, o número de James Heron.
Enquanto Matthias esperava pela informação, a garota pegou um pano e passou casualmente pelo balcão. Mas ela estava escutando, com as sobrancelhas abaixadas.
– H-E-R-O-N – soletrou Matthias. – O primeiro nome é James.
Mas que droga, de que outro jeito dá para soletrar esse nome?
A atendente voltou a falar:
– Desculpe, mas não encontro ninguém com esse sobrenome em Caldwell. Quer tentar algum outro nome?
Que merda! Mas, de alguma forma, isso não o surpreendia. Seria muito fácil. E nem um pouco seguro.
– Não, obrigado – Matthias virou-se e entregou o fone para a garota. – Não tive sorte. O nome não está na lista.
– Você disse “Heron”? – perguntou a garota enquanto pendurava o fone. – Aquele cara que morreu?
Matthias estreitou os olhos – mas ela não podia ver, graças ao Ray-Ban.
– Mais ou menos. Meu amigo é irmão dele, na verdade. Moravam juntos. O telefone estava no nome de Jim. Como eu disse, meu amigo e eu combinamos de nos encontrar aqui pra, você sabe, conversar sobre tudo isso. É tão difícil perder alguém dessa maneira, e estou preocupado com o que isso pode fazer com a cabeça dele.
– Oh, Deus, foi triste demais – a garota jogava o pano de uma mão para outra. – Meu tio trabalhou com ele. E estava lá quando foi eletrocutado. E pensar que levou um tiro, tipo, dias depois. Quer dizer, como é possível? Sinto muito por seu amigo.
– Seu tio conhecia o Jim?
– Ele é gerente de recursos humanos na construtora em que Jim trabalhava.
Matthias respirou fundo, como se estivesse engasgando.
– Jim era um cara muito legal. Nós estivemos na guerra juntos – bateu com a bengala no balcão. – Sabe como isso é.
Quatro... três... dois... um...
– Olha, eu posso ligar pro meu tio se você quiser. Talvez ele tenha o telefone. Espera um pouco.
A garota saiu de trás do balcão, parou um pouco, depois assentiu para si mesma, como se estivesse em uma missão pelo bem, determinada a “fazer a coisa certa”.
Enquanto Matthias esperava ela voltar, ficou esperando também que sua consciência o repreendesse por causa da manipulação.
Quando não sentiu nada, ficou perturbado com a facilidade da coisa. Como se mentir fosse tão familiar e insignificante que seu cérebro registrasse essa ação como um simples reflexo.
A barista retornou cerca de cinco minutos depois com um número escrito em um papel de carta feminino, que traía completamente seu visual radical.
– Vou discar pra você.
A barista voltou para trás do balcão e entregou novamente o telefone a Matthias, que ficou escutando o som das teclas enquanto ela apertava os botões.
Ouviu o som de chamada. Um. Dois. Três. Quatro toques.
Nada de correio de voz. Nenhuma resposta.
Ele devolveu o telefone.
– Não tem ninguém em casa.
Afinal, o que ele esperava? Acordara no túmulo do cara e agora achava que Heron fosse atender o telefone? Era uma longa distância entre o caixão e a companhia telefônica.
– Talvez ele esteja a caminho?
– Talvez – Matthias encarou a garota por um momento. – Obrigado. Obrigado mesmo.
– Quer um café enquanto espera?
– Acho que vou dar uma passada na casa dele. Às vezes as pessoas reagem a uma tragédia... de um jeito estranho.
Ela assentiu, preocupada.
– Sinto muito.
E sentia mesmo. Uma completa estranha sentia pena, honestamente, por o que quer que ele estava passando.
Ele imediatamente pensou em Mels, que também parecia tão disposta a ajudar.
Pessoas boas. Pessoas gentis. E sua memória defeituosa dizia que Matthias não merecia ficar entre esse tipo de companhia.
– Obrigado – ele disse com a voz rouca antes de sair mancando pela porta.
A pistola calibre quarenta na mão de Jim pesava menos de um quilo, e já estava carregada com dez balas no pente e uma na agulha.
Ele manteve a arma abaixada ao lado da coxa enquanto saía da garagem. Depois do episódio no chuveiro, Adrian saíra para tomar ar e trazer comida, levando sua Harley, mas não o capacete. O Cachorro estava seguro no andar de cima, descansando na cama sob o sol. Jim estava de guarda.
Você não vê? Ela está dentro de mim... e está me dominando...
Merda.
Pelo menos Jim tinha um escape. O bom da garagem era que ela ficava nos fundos do terreno de uma casa de fazenda – e a casa da frente, branca, com sua varanda e chaminé de tijolos, estava vazia desde que ele começara a alugar o local.
Ninguém veria. Mas isso ainda não era suficiente.
Ele enfiou a mão livre dentro da bota e retirou um silenciador. A peça adicionava quase trezentos gramas ao peso da pistola automática e mudava seu centro de gravidade, mas Jim estava acostumado a usá-la daquela maneira.
Agora, ninguém ouviria também.
De pé sobre o cascalho solto do caminho de entrada, ele tragou o cigarro e então o segurou com a mão esquerda. Concentrando-se em um galho que estava a dez metros do chão, levantou a arma e mirou no pedaço de madeira de três centímetros.
Respirando calmamente, Jim fechou os olhos e pensou no rosto de Devina.
Crack!
Graças ao silenciador, o som da pistola foi bastante reduzido, apenas um estampido contra sua mão e o impacto na árvore.
Crack!
O gatilho, assim como o cabo e o tambor, não eram apenas uma extensão de seu braço, mas também de seu corpo, e ele não precisava dos olhos para reajustar a trajetória. Sabia exatamente onde o chumbo acertaria.
Crack!
Calmo. Concentrado. Respirando pela barriga, não pelo peito. Imóvel, exceto pelo dedo indicador e depois pelos músculos do antebraço ao absorverem o súbito coice da arma.
O impacto da última bala foi mais suave; afinal, já não restava muita madeira.
Ele abriu os olhos assim que o galho começou uma queda livre, batendo em seus irmãos até chegar ao chão duro.
Colocando o Marlboro de volta entre os dentes, Jim esmagou as pinhas e a grama rala com suas botas de combate ao andar até a árvore e pegar o galho. Foi um corte preciso, relativamente falando. Nada igual ao que uma serra faria, mas, considerando a distância e os meios, parecia bom o suficiente.
– Você é um ótimo atirador.
O sotaque inglês altivo vindo de trás de Jim o fez querer continuar apertando o gatilho.
– Nigel.
– Cheguei num momento inapropriado?
– Ainda tenho sete balas. Você decide.
– Devina sofreu uma reprimenda – Jim girou o corpo e estreitou os olhos na direção do arcanjo aristocrático, que assentiu. – Queria que soubesse. Pensei que seria muito importante te informar disso.
– Está preocupado pensando que estou perdendo o rumo?
– Mas é claro.
Jim teve de sorrir.
– Você consegue ser direto quando lhe convém. Então, o que é que seu Criador fez com minha inimiga?
– Ela é seu oponente...
– Inimiga.
Nigel colocou as mãos para trás e começou uma caminhada excêntrica. Vestia um terno fora de moda cortado à mão, do tipo que era totalmente estranho a Jim, e que continuaria desse jeito.
– Qual é o problema, chefe? – Jim murmurou. – O gato comeu sua língua?
O arcanjo lhe lançou um olhar que o faria cair morto ali mesmo, se Jim estivesse vivo do jeito convencional.
– Você não é o único com temperamento explosivo, e eu devo te lembrar de tomar cuidado com o tom e as palavras quando se dirigir a mim.
Jim guardou a arma na cintura.
– Certo. Chega de papo furado. O que posso fazer por você?
– Nada. Eu simplesmente pensei que você se acalmaria se soubesse que o Criador agiu. Eu te disse pra deixar que o demônio cruzasse os limites. Eu te disse pra esperar pelas consequências. E elas vieram.
– O que Ele fez com ela?
– As vitórias e derrotas que vocês conquistaram são permanentes. Não há nada que Ele ou qualquer um de nós possa fazer a respeito de onde as bandeiras foram... elas são imutáveis. Mas Ele decretou que as ações de Devina não podem ficar impunes.
– Espere, não estou entendendo. Se o que Devina fez afetou o resultado de uma rodada, então sua vitória tem que ser anulada.
– Não é assim que essa competição funciona. As vitórias... – o arcanjo olhou para o céu. – O paralelo seria propriedade pessoal, suponho.
– Minha?
– De certa maneira, eu diria que sim.
– Então, se ela quebrou as regras e isso mudou o resultado, o Criador deveria dar de volta aquilo que é meu de direito. E, já que estamos falando nisso, quero lembrar que, se eu soubesse que a alma em questão era o Matthias, eu não teria me concentrado no homem errado.
– E isso foi corrigido.
– Como?
Ao longe, do outro lado do campo, um carro saiu da estrada e entrou no caminho que passava pela casa da fazenda.
Merda. Visitantes não eram nada bem-vindos – e a cor amarela sugeria um táxi.
O carro não parou na residência principal.
Nigel levantou uma sobrancelha.
– Acredito que ficará evidente.
Após mais uma de suas frases enigmáticas, o chefe desapareceu.
– Obrigado, amigão – Jim murmurou. – Grande ajuda de merda. Como sempre.
Protegendo-se em um canto, Jim encostou os ombros na parede de alumínio. A arma não permaneceu na cintura. Ele a segurou mais uma vez, preparado para atirar.
O táxi estacionou na frente da garagem.
Um momento depois, um homem que ele nunca esperava ver de novo saiu do banco do passageiro... um pesadelo que vivia e respirava... um problema do passado, que Jim já resolvera.
Então esta era a solução para a trapaça de Devina?
– Filho... da puta – Jim sussurrou.
CAPÍTULO 13
Matthias saiu do táxi e pediu que o motorista esperasse. A garagem à sua frente era uma espécie de galpão de armazenamento, com escadas que levavam para o segundo andar. As portas duplas no andar térreo estavam fechadas; a do andar de cima e as cortinas também.
Na janela do andar superior, as cortinas se separaram e um cachorro desgrenhado apareceu, como se estivesse de pé com as patas da frente apoiadas na parede.
Alguém claramente vivia ali.
– Mande o táxi embora.
Matthias virou rapidamente a cabeça para a direita, e o homem que surgiu de trás da garagem o fez quase perder o equilíbrio, fazendo uma lembrança vívida e instantânea surgir em sua memória.
Jim Heron. De volta do mundo dos mortos.
O instinto de Matthias lhe dizia que o cara sempre tivera aquele grande corpo musculoso, cabelo loiro escuro, o rosto frio e de feições endurecidas. Mas não havia contexto em sua lembrança, não havia um comentário interno sobre como ele conhecia o homem, ou o que viram e fizeram juntos. Porém, uma coisa estava clara... mesmo sem a arma, era óbvio que aquele não era o tipo de cara que você quer por perto se estiver desarmado e sem um veículo de fuga.
Matthias bateu no vidro, entregou uma nota de vinte ao motorista e o deixou ir embora.
Quando o carro manobrou e partiu pelo caminho de entrada, o som dos pneus esmagando o cascalho parecia tão alto quanto disparos de uma arma.
– Isso é uma arma na sua perna ou você está apenas feliz de me ver? – Matthias disse secamente.
– É uma arma. E você quer me dizer o que está fazendo aqui?
– Diria, se soubesse. Talvez você possa me ajudar com essa pergunta.
– O quê? – quando Matthias não respondeu, os olhos azuis cínicos de Heron ficaram ainda mais estreitos. – Você está falando sério. Isso foi uma pergunta sincera.
Matthias deu de ombros.
– Interprete do jeito que quiser. E enquanto pensa, eu gostaria de comentar que você supostamente está morto.
– Como você me encontrou?
– Procurei na central de informações. De certa maneira.
Quando Heron se aproximou, Matthias percebeu que a posição da arma com o silenciador mudou e que agora o tambor estava apontado diretamente para seu peito. E podia apostar que o gatilho seria apertado em um instante, se fosse preciso. O que significava que aquele homem com estilo militar era paranoico... ou que, por alguma razão, considerava Matthias perigoso.
– Estou desarmado – Matthias anunciou.
– Não faz o seu feitio.
A arma não foi abaixada; aquele corpo não relaxou; aqueles olhos não perderam o ar de alerta.
– Você não acredita em mim – disse Matthias.
– Depois de tudo o que passamos? Nem um pouco, meu velho amigo.
– Nós éramos amigos?
– Não, você está certo. Nós fomos muitas coisas, mas nunca amigos – Heron balançou a cabeça. – Mas que merda, sempre que não espero mais te ver, você aparece.
Heron sabia as respostas, pensou Matthias. O homem que estava bem à sua frente era o caminho para ele descobrir quem era.
– Bom – murmurou Matthias –, considerando que você ainda está respirando, mas que eu visitei o seu túmulo uma hora atrás, eu não sou o único tirando coelhos da cartola. Se importa de me contar onde foi que nos vimos pela última vez?
– Você está falando sério? – quando ele assentiu, Heron balançou a cabeça novamente. – Está dizendo que não se lembra?
Matthias levantou as mãos, mostrando as palmas.
– Não tenho nada.
A atitude desconfiada de Jim foi substituída por uma breve surpresa.
– Jesus.
– Acho que não. Minha carteira de motorista diz “Matthias”.
A risada que recebeu como resposta foi um pouco assustadora.
– Se importa se eu te revistar?
Matthias encostou a bengala na perna e levantou as mãos.
– Manda ver.
Jim fez o procedimento com uma das mãos e, quando se afastou de novo, soltou outro palavrão.
– Claramente você perdeu a cabeça.
– Não, apenas minha memória. E preciso que você me diga quem sou eu.
Houve um longo silêncio, como se Heron tentasse preencher os buracos da história em sua cabeça. Finalmente, disse:
– Vou pensar bem antes de contar as coisas do seu passado. Mas vou te ajudar. Disso você pode ter certeza.
– Isso não é bom o suficiente. Preciso das informações. Agora.
– Acha mesmo que está em posição para fazer exigências?
Enquanto Jim conduzia seu antigo chefe, Matthias, o Cretino, para o andar de cima, ele não conseguia acreditar em tudo aquilo. E não importava o quanto seu cérebro se esforçasse: parecia que os porcos realmente podiam voar, que o Inferno estava cheio de bolas de neve, e que em algum lugar um cachorro velho aprendia a dirigir uma droga de um carro.
Era disso que Nigel estava falando? Uma repetição da segunda rodada?
Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
Parece que concentrar-se na alma errada não seria um problema desta vez – desde que o discurso cifrado de Nigel estivesse mesmo certo e Matthias, mais uma vez, fosse a alma em jogo.
O que não era uma maneira tão boa de penalizar Devina. Merda!
Mas havia uma boa notícia – se é que podia existir alguma notícia boa nessa história de voltar do mundo dos mortos: a perda de memória. O velho Matthias nunca se exporia com uma fraqueza como amnésia, portanto provavelmente era verdade – e Deus sabia que esse buraco negro de informações seria muito útil.
Assim, Jim precisava trabalhar apenas contra a natureza.
Abriu a porta e deu espaço para Matthias entrar.
– Humilde lar, e essas coisas.
Enquanto Matthias mancava para dentro, o Cachorro correu e balançou o rabo lhe dando boas-vindas, com suas patas fazendo barulho no chão de madeira.
Considerando a alegria do cão, parecia óbvio que Devina não estava usando o corpo daquele homem. O que foi uma boa dica.
Jim fechou a porta e observou seu ex-chefe. Mancava do mesmo jeito. Tinha a mesma voz. O mesmo rosto. Os óculos escuros não surpreendiam, considerando o estado dos olhos do cara.
– Eu ofereceria comida, mas tenho que esperar meu amigo voltar. Pode usar o sofá enquanto isso.
Matthias grunhiu quando sentou.
– Eu ainda fumo – ele disse, acenando para o maço em cima da mesa.
– Pensei que não se lembrava de nada.
– Certas coisas... eu acabo lembrando.
Jim foi até a pequena cozinha e parou em frente à pia. Por alguma razão, ele queria estar perto de Eddie.
– Então, vamos começar com exatamente o que você lembra.
– Eu sei que acordei na sua sepultura.
– A morte é relativa.
– Então, nós dois somos um milagre.
Jim levantou uma sobrancelha.
– Pelo menos um de nós é. Vamos ver quanto ao outro. Como me encontrou?
– Central de informações.
– O telefone daqui não está no meu nome.
– Mas você deu esse número no seu último emprego. Fui até a biblioteca, busquei o número na internet e achei você. Não é um esconderijo muito bom.
– Não estou me escondendo de ninguém.
– Então, por que você está morto, mas vivo?
– Vamos nos concentrar apenas em você, certo?
– Certo. Então, por que está com medo de mim? – quando Jim apertou o maxilar, Matthias sorriu do jeito que sempre fazia, mostrando todos os dentes brancos e afiados. – Aliás, isso não é uma lembrança. É a arma na sua mão. Estamos na sua casa, protegidos... se eu não fosse uma ameaça, você guardaria a arma.
Filho... da puta.
Mesmo com amnésia, o cara era um cretino.
Com essa deixa, Jim se aproximou, mantendo os olhos no Ray-Ban que o outro usava. Com a ponta da arma virada para Matthias, colocou a pistola na mesa e a empurrou para o outro lado.
– Fica com ela, se quiser.
– Você vai me dar uma arma?
– Claro, por que não? Pense nisso como um presente por sua volta pra casa.
– Estou em casa?
– Não neste lugar em particular... você não pode ficar aqui, e nunca esteve aqui. Nunca.
Matthias sorriu um pouco.
– Bom, não quero ficar na minha casa.
– E onde é isso exatamente?
O homem colocou a mão no bolso, tirou a carteira e jogou a carteira de motorista na mesa, sobre a arma.
Jim olhou a identificação. Era bem feita, com todos os hologramas no lugar certo. O sobrenome não estava correto, é claro, mas o primeiro nome e a foto estavam.
– O que você sabe sobre mim? – exigiu o homem.
– Bela foto – Jim disse ao recostar-se na parede.
– Não estou perguntando sobre meu futuro como modelo. Por que está evitando minhas perguntas?
– Estou tentando decidir como fazer esta jogada.
– Estamos em um jogo?
– Sim, estamos. E você não pode nem imaginar o que está em jogo – Jim decidiu sentar ao lado de seu hóspede. – Como eu disse antes, por que não começa contando o que você lembra?
Os óculos escuros baixaram, como se Matthias estivesse encarando o chão. Ou talvez suas botas, ou a bengala.
– Fui atropelado por um carro do lado de fora do Cemitério Pine Grove ontem à noite e acordei no hospital sem saber quem eu era ou onde estava. Hoje, tentei me lembrar refazendo meus passos, até que cheguei na sua sepultura – o Ray-Ban subiu de novo e ele olhou ao redor. – Eu reconheci seu nome no instante em que o vi. Reconheci você também, no exato momento em que saiu de trás da casa.
A expressão no rosto de Jim não mudou.
– Não é uma surpresa... nós dois temos muita história juntos. E é por isso que vou te ajudar.
– Então comece dizendo como isso tudo... – Matthias fez um gesto com a mão, mostrando todo o seu corpo – aconteceu.
– Os ferimentos?
– Não, minha roupa de balé. De que merda você acha que estou falando?
– Tire os óculos.
– Por quê?
– Quero olhar nos seus olhos quando responder.
A mão tremeu quando tirou os óculos, mas Jim apostava que era uma fraqueza física, e não mental. E ele estava certo.
– Como os ferimentos aconteceram? – seu ex-chefe repetiu, com uma voz grave.
– Você tentou se matar na minha frente. Plantou uma bomba na areia e pisou nela, bem na minha frente.
Matthias olhou para a própria perna e suas sobrancelhas se juntaram, como se o cérebro estivesse calculando dois mais dois.
– Por que eu fiz isso?
Como responder sem revelar demais?
– Você odiava o homem que era. Não podia mais continuar daquele jeito, e deu um jeito de não ter mais que fazer isso.
– Mas eu não morri.
– Não dessa vez – Jim levantou-se. – Meu amigo voltou.
Um segundo depois, o som de uma Harley invadiu o local através da janela, aumentando até parar totalmente.
– Você tem um bom ouvido – Matthias comentou.
Jim encarou o homem, pensando em como faria para trabalhar a situação em seu favor. Com um pequeno sorriso, murmurou:
– É o menor dos meus truques.
CONTINUA
CAPÍTULO 1
Sepultura.
Como na lápide e na terra recém-cavada, como em um corpo lá em baixo, como das cinzas às cinzas e do pó ao pó.
Matthias estava nu em uma sepultura. Em meio a um cemitério que se estendia até onde seus olhos podiam enxergar.
A primeira coisa que surgiu em sua mente foi a tatuagem que fizera seus homens usarem nas costas, com o desenho do Ceifeiro da Morte pairando sobre um campo de lápides e tumbas.
Que irônico – talvez estivesse prestes a ser cortado por uma foice a qualquer momento.
Tente repetir isso três vezes, bem rápido.
Piscou os olhos tentando clarear a vista, juntou os braços para se aquecer e esperou que o cenário voltasse à realidade. Quando nada mudou, ele se perguntou aonde teria ido aquele muro em que estivera preso para toda a eternidade.
Será que finalmente estava livre daquela tortura nojenta e superlotada?
Teria escapado do Inferno?
Soltando um grunhido, tentou se erguer, mas até levantar a cabeça estava difícil. Afinal, descobrir em primeira mão que aqueles lunáticos religiosos estavam certos sobre uma porção de coisas realmente faz você querer tirar um cochilo: de fato, os pecadores iam lá para baixo, e não para o Sul, e, uma vez lá, o sofrimento faz todas as coisas de que você reclamava em vida parecerem um passeio no Universal Studios.
O Demônio existia.
E sua sala de estar era uma merda.
Mas os religiosos não sabiam de toda a história. Acontece que Satã não possuía chifres ou uma calda. Também não havia nada de tridente e pés de bode. Bom, era mesmo metade bicho – se você considerar que o bicho em questão seja uma vaca. E usa muito vermelho. Afinal, morenas ficam bem com essa cor – ao menos, era isso que ela dizia a si mesma.
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Com seu olho esquerdo, que ainda funcionava, Matthias piscou novamente, preparando-se para retornar para a densa e ardente escuridão, com os gritos dos condenados ecoando em seus ouvidos e sua própria dor rasgando pela garganta e explodindo pelos lábios rachados...
Mas nada disso aconteceu. Ele ainda estava em uma sepultura. Ainda estava em um cemitério.
Completamente pelado.
Concentrando-se, enxergou, com seu único olho bom, uma paisagem cheia de túmulos de mármore branco, sepulturas de famílias marcadas com anjos e fantasmagóricas estátuas da Virgem Maria – embora as lápides simples fossem bem mais numerosas, como se os plebeus tivessem tomado conta do lugar. Pinheiros e carvalhos projetavam sombras através de gramados desalinhados e bancos de metal. As lâmpadas dos postes emitiam um brilho alaranjado, como velas num bolo de aniversário, e as passarelas estreitas poderiam até ser românticas se estivessem em outro lugar.
Mas ali, com certeza, não eram. Não naquele contexto de morte...
De repente, cenas de sua vida passaram por sua mente, fazendo-o se perguntar se estaria experimentando a morte pela segunda vez. Ou pela terceira, como seria o caso.
Não havia alegria nessa retrospectiva. Nada de esposa amorosa, nem filhos bonitos, nem uma casinha aconchegante. Apenas cadáveres, dezenas, centenas de cadáveres, todos mortos por ele próprio ou por ordem sua.
Matthias havia feito muito mal, o verdadeiro mal, durante sua vida.
Forçou-se a sentar na terra úmida. Seu corpo parecia um quebra-cabeça cujas peças não encaixavam direito: seus membros se uniam em juntas que pareciam folgadas em alguns lugares e apertadas em outros. Mas isso é o que acontece quando você se despedaça e tudo o que tem para se recompor são as habilidades limitadas de cura e medicina.
Ele direcionou seu olho para a lápide e franziu a testa.
James Heron.
Meu Deus, James Heron...
Ignorando o tremor de suas mãos, ele traçou as letras gravadas na pedra – a ponta de seus dedos percorreu o texto esculpido no granito cinzento.
Soltou um suspiro áspero, como se a dor repentina atrás de suas costelas tivesse forçado o ar para fora dos pulmões.
Matthias nunca soubera que realmente havia uma recompensa eterna após a morte, que suas ações eram de fato levadas em conta, que havia um julgamento ao final da última batida de seu coração. Mas a dor não era por causa disso. Era porque sabia que, mesmo se tivesse conhecimento do que o esperava, ele não seria capaz de fazer nada diferente.
– Sinto muito – falou, se perguntando para quem realmente dizia aquilo. – Porra, sinto muito mesmo...
Nenhuma resposta.
Olhou para o céu.
– Sinto muito.
De novo, nada de resposta, mas tudo bem. De qualquer forma, os arrependimentos estavam se acumulando em sua mente e não havia muito espaço para contribuições de terceiros.
Enquanto se esforçava para levantar, seu tronco tombou e precisou se apoiar na lápide para retomar o equilíbrio. Deus, ele estava acabado. Suas coxas estavam cobertas de cicatrizes, sua barriga cheia de lesões, uma panturrilha quase despida de carne. Os médicos realizaram um verdadeiro milagre com seus parafusos e hastes, mas, comparado com o jeito como nascera, Matthias parecia um brinquedo quebrado remendado com fita adesiva e supercola.
E o suicídio deveria ter funcionado. Mas Jim Heron foi a razão de ele ter sobrevivido por outros dois anos. Até que a morte o encontrou e o levou, provando que a Terra apenas pegava as almas emprestado – o outro lado é que realmente as possuía.
Por força do hábito, olhou ao redor procurando sua bengala, mas então se concentrou naquilo que seria mais provável encontrar: sombras que o perseguiam, fossem aquelas criaturas ardilosas do Inferno ou meros humanos.
De um jeito ou de outro, ele estava ferrado: como ex-chefe da organização secreta que eles chamavam de Operações Extraoficiais, Matthias tinha mais inimigos do que um ditador do Terceiro Mundo, e todos eles possuíam armas e podiam contratar quem as tivesse. E, como fugitivo do parquinho do diabo, nem era preciso mencionar que ele não escapara de graça da prisão.
Mais cedo ou mais tarde, alguém viria atrás dele. E, apesar de Matthias não possuir nada pelo que valesse a pena viver, seu ego era razão suficiente para lutar e se defender.
Ou pelo menos fazer de si um alvo menos fácil.
Começou a caminhar mancando e continuou com a graça de um espantalho – seu corpo sacudia com espasmos que culminavam numa marcha que doía como o diabo. Para conservar o calor, tentou abraçar a si mesmo, mas isso não durou muito. Precisava usar os braços para manter o equilíbrio.
Com movimentos de zumbi e a cabeça completamente confusa, ele continuou a caminhada, atravessando a grama desalinhada, passando pelas lápides, sentindo o toque da fria brisa que cortava sua pele. Não tinha a menor ideia de como conseguira escapar. Não sabia para onde iria. Que dia, mês, ano seria.
Roupas. Abrigo. Comida. Armas.
Assim que tivesse assegurado o básico, ele se preocuparia com o resto. Isso se não fosse abatido antes – afinal, um predador ferido se torna uma presa rapidamente. É a lei da selva.
Pensou ter encontrado mais uma sepultura ao se aproximar de uma construção de pedra com ornamentos de ferro fundido. Mas o nome “Cemitério Pine Grove” gravado no topo da fachada e a grande fechadura na porta frontal sugeriam que era uma instalação dos funcionários.
Felizmente, alguém deixara aberta uma fresta da janela dos fundos.
Mas é claro, a janela estava emperrada naquela posição.
Ele pegou um galho caído, o colocou na fresta e forçou até a madeira curvar.
A janela começou a ceder, soltando um chiado agudo.
Matthias congelou.
Pânico, uma sensação pouco familiar, que foi aprendida da maneira difícil, o fez girar e procurar as sombras. Conhecia aquele som. Era o barulho que os lacaios do demônio faziam quando estavam atrás de você...
Nada.
Apenas túmulos e postes de luz que, não importa o quanto sua adrenalina sugerisse o contrário, não se transformavam em nada.
Praguejando, ele voltou ao trabalho. Usou o galho como alavanca até abrir espaço suficiente para poder se espremer e passar. Erguer o corpo foi um sacrifício, mas, assim que seus ombros passaram, ele deixou a gravidade cuidar do resto. O chão de concreto no qual aterrissou parecia uma grade de ferro, e ele precisou de um tempo enquanto seu fôlego escapava da garganta, seu estômago embrulhava e dores surgiam em mais lugares do que ele conseguia contar.
No teto, luzes fluorescentes piscaram e depois acenderam de vez, cegando-o.
Malditos sensores de movimento. O lado bom era que, assim que seus olhos se ajustaram, ele teve uma clara visão de todo tipo de ferramenta de jardinagem. O lado ruim? Ele era um diamante em uma vitrine, pronto para ser capturado.
Pendurados em ganchos na parede, como se fossem peles de animais mortos, havia vários conjuntos de macacões impermeáveis, esperando para serem usados. Ele prontamente vestiu uma parte de baixo e uma parte de cima. Essas roupas foram feitas para ficar folgadas, mas em seu corpo pareciam grandes velas de um barco.
Melhor assim. Melhor com as roupas, mesmo elas cheirando a fertilizante, e mesmo com o atrito, que logo se tornaria um problema. Havia um boné do Boston Red Sox em um dos cantos, e Matthias o vestiu para ajudar a conservar o calor do corpo; então olhou ao redor procurando qualquer coisa que pudesse servir como bengala. As pás eram muito pesadas para ser eficientes, e os rastelos também não ajudariam.
Dane-se. Sua missão imediata era se afastar das luzes que banhavam o show de horrores do seu corpo.
Saiu da mesma maneira que entrou, forçando-se através da janela e aterrissando duramente no chão. Não tinha tempo para reclamar do impacto desta vez; precisava continuar se movendo.
Antes de morrer e ir para o Inferno, Matthias sempre fora o perseguidor. Caramba, durante sua vida inteira ele fora o caçador, aquele que espreitava, encurralava e destruía. Mas agora, retornando à escuridão daquelas sepulturas, todas as intangibilidades da noite eram perigosas até que se provasse o contrário.
Esperava que estivesse de volta em Caldwell.
Se estivesse, tudo o que precisava fazer era manter-se discreto e seguir para Nova York, onde possuía um abrigo com mantimentos.
Sim, rezava para que fosse Caldwell. Quarenta e cinco minutos ao sul pela estrada era tudo o que precisaria. Já acabara de arrombar e invadir um lugar; fazer uma ligação direta em um carro velho era outra habilidade que poderia ressuscitar.
Uma vida depois, ou pelo menos o que pareceu ser uma vida depois, ele chegou até o portão de ferro que cercava todo o terreno daqueles que descansam em paz. A coisa tinha uns três metros de altura, e as grades tinham pontas que poderiam ter sido facas em outra encarnação.
Encarando as barras que o mantinham do lado dos mortos, Matthias as agarrou e sentiu o frio do metal agarrá-lo de volta. Olhando para cima, concentrou-se no céu. As estrelas realmente cintilavam.
Engraçado, ele sempre pensou que isso fosse apenas um modo de dizer.
Respirando fundo, puxou ar puro e limpo para os pulmões e percebeu que tinha se acostumado com o fedor do Inferno. No começo, aquilo era o que mais detestava, aquele cheiro nauseante de ovo podre impregnado nas vias aéreas e que invadia a garganta e viajava até envenenar suas entranhas: mais do que um cheiro ruim, era uma infecção que entrava pelo nariz e conquistava todos os territórios que tocasse.
Mas ele se habituara.
Com o tempo, e em meio ao sofrimento, ele se acostumara ao horror, ao desespero, à dor.
Seu olho ruim, o que não conseguia usar, encheu-se de lágrimas.
Nunca conseguiria alcançar aquelas estrelas.
E essa pausa no sofrimento servia apenas para aumentar a tortura. Afinal, não existe nada como um período de alívio para revitalizar um pesadelo. Quando você retorna para a merda, o contraste aumenta tudo, eliminando a aclimatação e fazendo voltar o choque inicial.
Eles voltariam a persegui-lo. Afinal, era exatamente isso que ele merecia.
Mas, seja lá quanto tempo tivesse, lutaria contra o inevitável – não com a esperança de se livrar do Inferno, não pela possibilidade de um adiamento, mas simplesmente porque essa era uma função automática, que fazia parte do seu ser.
Matthias lutava pela mesma razão que cometera o mal.
Aquilo era simplesmente o que ele fazia.
Impulsionando a si mesmo para longe do chão, colocou contra as barras o pé que funcionava melhor e jogou seu peso para cima. Fez isso novamente. E de novo. O topo parecia estar a quilômetros de distância, o que apenas o fez concentrar-se mais em seu objetivo.
Uma eternidade depois, sua palma agarrou uma das pontas e seu braço enlaçou a perigosa lâmina.
Sangue escorreu rapidamente quando Matthias jogou a perna por cima do portão e uma das pontas cortou um pedaço de sua coxa.
Mas não havia motivo para voltar. Havia se comprometido, e de um jeito ou de outro a gravidade venceria e o puxaria para a terra – então era melhor que isso acontecesse lá fora do que dentro do cemitério.
Quando começou a cair, seus olhos focaram as estrelas. Ele chegou até a estender uma das mãos naquela direção.
O fato de que elas estavam cada vez mais distantes parecia apropriado.
CAPÍTULO 2
Mels Carmichael estava sozinha na redação. De novo.
Às nove da noite, o labirinto de cubículos do Correio de Caldwell estava povoado apenas por material de escritório, nada de pessoas – do ponto de vista do pessoal da redação, a edição do dia seguinte já zarpara para o mar: as prensas trabalhavam a todo vapor do outro lado do prédio.
Quando Mels se recostou na cadeira, as molas soltaram um chiado, e ela transformou aquele som em um instrumento, tocando uma musiquinha feliz que compusera após muitas noites iguais àquela. O título era “Rapidamente chegando a lugar nenhum”, e ela fazia um acompanhamento assoviando a parte do soprano.
– Ainda está aqui, Carmichael?
Mels se recompôs e cruzou os braços.
– Oi, Dick.
Seu chefe se esgueirou no pouco espaço que havia ali, com o sobretudo dobrado no braço e a gravata folgada ao redor do pescoço. Ele acabara de voltar da saideira no bar Charlie’s, onde os homens do jornal costumavam assistir esportes após o expediente.
– Trabalhando até tarde de novo? – Seus olhos percorreram os botões da blusa dela, como se esperasse que o uísque que tomou tivesse lhe dado poderes telecinéticos. – Tenho que dizer, você é bonita demais pra fazer isso. Você não tem namorado?
– Você me conhece, o trabalho é sempre mais importante.
– Bem... eu poderia dar algo para você trabalhar.
Mels imediatamente o encarou com firmeza:
– Obrigada, mas estou ocupada. Estou pesquisando sobre assédio sexual em mercados que antes eram dominados por homens, como companhias aéreas, esportes... jornalismo...
Dick franziu a testa como se não tivesse escutado o que esperava. O que era uma loucura. A reposta dela era a mesma desde o primeiro dia.
Mais de dois anos dando um fora nele. Deus, já tinha passado tanto tempo?
– É esclarecedor – ela esticou o braço e tocou o mouse, desativando a proteção de tela. – Muitas estatísticas. Poderia ser minha primeira reportagem de âmbito nacional. Igualdade de sexos na América pós-feminismo é um assunto quente hoje em dia... é claro, eu poderia apenas colocar no meu blog. Talvez você pudesse me dar uma declaração.
Dick arrumou o sobretudo em seu braço.
– Eu não te passei essa pauta.
– Sou uma pessoa de iniciativa.
Ele levantou a cabeça como se estivesse procurando outra pessoa para importunar.
– Só leio aquilo que eu mandei escrever.
– Você pode achar útil.
O cara tentou afrouxar a gravata e... surpresa! Já estava aberta.
– Está perdendo seu tempo, Carmichael. Vejo você amanhã.
Enquanto saía, vestiu aquele sobretudo estilo Walter Cronkite com lapelas dos anos 1970 e o cinto que ficava pendurado, fazendo parecer que parte das suas entranhas não estava onde deveria. Ele provavelmente tinha aquele casaco desde os tempos de Watergate, quando Woodward e Bernstein provavelmente o inspiraram a seguir seu próprio sonho jornalístico... que terminou no topo do expediente de um jornal de cidade pequena.
Nada mal para um emprego. Mas também não era nenhum chefe de redação do The New York Times, ou do The Wall Street Journal.
Isso parecia incomodá-lo.
Então, pois é, não era necessário ser um gênio para atribuir suas inadequações ao tédio de um ex-timoneiro calvo, amargurado por ter passado sessenta anos na intersecção entre o quase-lá e o meu-tempo-está-acabando.
Por outro lado, talvez ele fosse apenas um cretino mesmo.
O que estava claro na mente dela era que um cara mais parecido com uma rã do que com Jon Hamm não tinha nenhuma razão objetiva para acreditar que a resposta para os problemas de qualquer mulher estava dentro da calça dele.
Quando as portas duplas se fecharam, Mels respirou fundo e ficou imaginando um ônibus passando por cima daquele sobretudo anacrônico e deixando as marcas dos pneus. Mas, graças ao corte nos orçamentos, a linha de ônibus da rua Trade não passava mais depois das nove da noite e agora eram... sim, o horário já tinha acabado dezessete minutos atrás.
Ela encarou a tela do computador, sabendo que deveria ir para casa.
Seu artigo de iniciativa própria não era exatamente sobre chefes de olhar malicioso que fazem suas funcionárias pensarem que o transporte público seria uma ótima maneira de assassinar alguém. O artigo era sobre pessoas desaparecidas. As centenas de pessoas desaparecidas da cidade de Caldwell.
Caldie, como a cidade era conhecida, lar das pontes gêmeas, era também a líder nacional em desaparecimentos. Durante os últimos anos, a cidade de dois milhões de habitantes tivera o triplo de desaparecimentos de Manhattan (contando todos os seus cinco municípios) e Chicago – juntas. E o total da última década ultrapassara os números de toda a costa Leste. O que tornava tudo ainda mais estranho é que a questão não era só os números em si: acontece que as pessoas não estavam desaparecendo apenas temporariamente. Elas nunca voltavam e nunca eram encontradas. Nada de corpos, nada de vestígios e nada de relocação para outras jurisdições.
Era como se fossem sugadas para outro mundo.
Depois de toda sua pesquisa, Mels sentia que o horrível massacre em uma fazenda no mês anterior tinha algo a ver com a abundância de desaparecimentos...
Todos aqueles jovens estraçalhados.
As informações preliminares sugeriam que muitos daqueles que foram identificados já haviam sido declarados desaparecidos em algum ponto de suas vidas. Muitos deles eram casos de delinquência juvenil ou tinham antecedentes com drogas. Mas nada daquilo importava para as famílias – e nem deveria.
Não é preciso ser um santo para ser uma vítima.
A horripilante cena da zona rural de Caldwell foi notícia em âmbito nacional, com todos os canais enviando seus melhores repórteres, desde Brian Willians até Anderson Cooper. Os jornais também estavam presentes. Mas, mesmo com toda a atenção, a pressão dos políticos e o clamor por justiça de comunidades abaladas (e com razão), a verdadeira história ainda estava para surgir: a polícia de Caldwell tentava ligar as mortes a uma pessoa, qualquer pessoa, mas não conseguiu nada – mesmo trabalhando no caso dia e noite.
Mas tinha de haver uma resposta. Sempre há uma resposta.
E Mels estava determinada a descobri-la – pelo bem das vítimas e de suas famílias.
Além disso, esse era o momento para ela se destacar. Chegara a Caldwell aos 27 anos, depois de pedir transferência de Manhattan porque viver em Nova York estava muito caro e ela não estava chegando a lugar algum no New York Post. Seu plano era se mudar por seis meses, juntar algumas economias morando com sua mãe e depois se concentrar nos peixes grandes: The New York Times, The Wall Street Journal, talvez até um emprego de correspondente na CNN.
Mas não foi exatamente como as coisas aconteceram.
Voltando a focar na tela do computador, ela vasculhou as colunas que conhecia de cor, buscando padrões que ainda não tinha enxergado... pronta para encontrar a chave que abriria a porta não apenas da história, mas também de sua vida.
O tempo estava passando depressa, e Deus sabe que ela não era imortal...
Quando Mels deixou a redação, por volta das nove e meia, aquelas linhas de informação continuavam surgindo em sua mente sempre que piscava, como se fosse um videogame que ela tivesse jogado por muito tempo.
Seu carro, que batizara de Josephine, era um Honda Civic de doze anos com quase 125 mil quilômetros rodados – e a Fifi estava acostumada a esperar por ela no frio da noite. Mels deu partida naquele velho motor de máquina de costura e foi embora, deixando para trás seu emprego meia boca. E foi para a casa de sua mãe. Aos trinta anos de idade.
Que bela profissional. E pensava que iria acordar magicamente na manhã seguinte como uma Diane Sawyer sem o spray de cabelo?
Seguindo pela rua Trade para fora do centro da cidade, deixou os prédios de escritório para trás, passou pelas boates e ruas abandonadas do lado sujo do município. Ao final de todos aqueles prédios com janelas lacradas, as coisas melhoraram quando entrou nos arredores de uma vizinhança residencial, com casas bonitas e ruas com nomes de árvores...
– Meeeerda!
Virando o volante com força para a direita, tentou evitar o homem que apareceu no meio da rua, mas era tarde demais. Ela o acertou em cheio, erguendo-o com o para-choque até ele voar em seu para-brisa, cujo vidro laminado estilhaçou-se com um lampejo brilhante.
E aquele foi apenas o primeiro de três impactos.
O corpo do homem simplesmente voou pelos ares, e Mels teve a terrível visão dele atingindo o pavimento com força. E então ela teve seus próprios problemas. O impacto desviou o carro, que atingiu o meio-fio. Os freios diminuíram o impulso, mas não rápido o suficiente – e então se tornaram inúteis quando o carro também saiu do chão.
O carvalho que os faróis iluminaram fez seu cérebro realizar um raciocínio rápido: ela ia atingir a maldita coisa, e isso ia doer muito.
A colisão fez um barulho seco, um estampido ao qual ela não prestou muita atenção – estava ocupada recebendo o air bag em seu rosto, e a falta do cinto de segurança veio com tudo para morder seu traseiro. Ou a virilha, nesse caso.
Mels foi jogada para a frente e ricocheteou para trás, e um pó vindo do air bag invadiu seu olhos, nariz e pulmões, causando irritação e fazendo-a engasgar. Então tudo ficou silencioso.
No final, tudo o que podia fazer, assim como a pobre Fifi, era ficar onde estava. Debruçada sobre o air bag vazio, ela tossiu um pouco...
Alguém estava assoviando.
Não, era o motor que soltava vapor de algo que deveria estar selado.
Ela virou a cabeça com cuidado e olhou para fora através da janela do motorista. O homem estava caído no meio da rua, totalmente parado, parado demais.
– Oh... meu Deus...
O rádio do carro ganhou vida, arranhando a princípio, depois se recuperando com um curto circuito. Uma música... qual era?
Do nada, uma luz surgiu no meio da estrada, iluminando a pilha de trapos que ela sabia ser uma pessoa. Piscando, imaginou se aquele seria o momento em que descobriria as respostas sobre a vida após a morte.
Não era exatamente o furo jornalístico que ela esperava, mas aceitaria mesmo assim...
Porém, não era nenhum tipo de chegada celeste. Eram apenas faróis.
Um sedan derrapou até parar e duas pessoas saíram do carro. O homem correu para a vítima, a mulher correu até ela. A boa samaritana de Mels teve que se esforçar para abrir a porta, mas, depois de alguns puxões, ar fresco substituiu o cheiro ruim de plástico do air bag.
– Você está bem?
A mulher tinha cerca de quarenta anos e parecia rica, seu cabelo estava arrumado para cima, os brincos dourados brilhavam, suas roupas finas e elegantes não combinavam com aquele cenário de acidente.
Ela pegou um iPhone.
– Chamei a emergência; não, não se mova. Você pode ter uma lesão no pescoço.
Mels se rendeu à súbita pressão em seu ombro, mantendo-se junto ao volante.
– Ele está bem? Eu não enxerguei... apareceu do nada.
Pelo menos, foi isso que ela tentou dizer. Seus ouvidos captaram apenas murmúrios que não faziam sentido algum.
Dane-se a lesão no pescoço; estava preocupada com seu cérebro.
– Meu marido é médico – disse a mulher. – Ele sabe o que fazer com o homem. Só se preocupe com você mesma...
– Não o vi. Não o vi – ah, bom, isso soou mais inteligível. – Voltando do trabalho. Eu não...
– É claro que não. A mulher se ajoelhou. Realmente, ela parecia a esposa de um médico – e cheirava a perfume caro.
– Apenas fique parada, a ambulância está chegando...
– Ele está vivo, pelo menos? – Lágrimas surgiram nos olhos de Mels, substituindo uma irritação por outra. – Oh, meu Deus, eu matei ele?
Quando começou a tremer, ela lembrou qual era aquela canção... Blinded by the light, pensou.
– Porque meu rádio ainda está funcionando? – ela murmurou entre as lágrimas.
– Como é? – disse a mulher. – Que rádio?
– Você não está escutando?
O que se seguiu foi um gentil e alarmante toque em seu ombro.
– Apenas respire fundo e fique comigo.
– Meu rádio está tocando...
CAPÍTULO 3
– Está calor aqui? Quero dizer, você acha que está calor aqui?
O demônio cruzava e descruzava suas longas pernas à la Gisele Bündchen enquanto puxava o decote de seu vestido.
– Não, Devina, não acho – a terapeuta do outro lado da sala era exatamente como o sofá em que estava sentada: fofa e reconfortante. Até seu rosto era como um travesseiro de algodão, com as linhas de expressão parecendo bordadas em tecido macio. – Mas posso abrir uma janela se você quiser.
Devina recusou balançando a cabeça e enfiou a mão dentro de sua bolsa Prada. Além da carteira, chiclete de menta, uma garrafa de Smartwater e uma barra de chocolate Green & Black’s Organic Dark, havia vários batons YSL Rouge pur Couture. Pelo menos... deveria haver.
Enquanto ela procurava, tentou parecer casual, como se estivesse checando se não perdeu as chaves.
Na verdade, ela estava contando para se certificar de que ainda tinha treze tubos do batom: começando pelo da esquerda no fundo da bolsa, foi movendo para a direita. Treze era o número correto. Um, dois, três...
– Devina?
... quatro, cinco, seis...
– Devina.
Quando perdeu a conta, ela fechou os olhos e lutou contra a tentação de estrangular quem fizera a interrupção...
Sua terapeuta limpou a garganta. Tossiu. E depois engasgou.
Devina abriu os olhos e encontrou a mulher com as mãos no pescoço, parecendo que tinha engolido um McLanche Feliz da maneira errada. Foi bom ver a dor e a confusão, um pequeno show que fez Devina apertar os dedos dos pés, pedindo por mais.
Mas a diversão não podia ir mais longe. Se perdesse essa terapeuta, o que seria dela? Estavam fazendo progresso, e encontrar outra pessoa com quem sentisse uma conexão poderia tomar um tempo que ela não tinha.
Praguejando, o demônio chamou de volta seus cães mentais, aliviando a esganadura invisível que lançara sem perceber.
A terapeuta respirou fundo e olhou ao redor, aliviada.
– Eu... ah... acho que vou abrir a janela.
A mulher se levantou, alheia ao fato de que suas habilidades como psicóloga haviam acabado de salvar sua vida. As duas se encontravam cinco vezes por semana nos últimos dois meses, conversando por cinquenta minutos ao custo de 75 dólares por sessão. Graças a toda aquela baboseira emotiva, os sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo de Devina estavam ficando um pouco mais fáceis de aguentar. E, considerando como as coisas estavam caminhando na guerra contra aquele anjo Jim Heron, a terapia seria muito necessária na próxima rodada.
Devina não podia acreditar que estava perdendo.
Na batalha derradeira pela supremacia na Terra, aquele anjo vencera duas vezes. Havia apenas mais quatro almas na disputa. E se ela perdesse mais duas? Não sobraria nada dela ou de sua coleção: tudo desapareceria, aqueles objetos preciosos que juntara durante os milênios, cada qual uma valiosa lembrança de seu trabalho, estariam perdidos, perdidos, perdidos. E isso não era a pior parte. Suas crianças, aquelas gloriosas almas torturadas e presas em seu muro, seriam incorporadas pelo bem, pelos beatos, pelos imaculados.
Esse mero pensamento a deixava enjoada.
E, ainda por cima, ela tinha acabado de ser penalizada pelo Criador.
A terapeuta voltou a se ajeitar nas almofadas depois de sua busca por ar fresco.
– Então, Devina, conte o que está em sua mente.
– Eu... ah... – quando a ansiedade subiu, ela levantou a bolsa, procurando algum furo; não encontrou nenhum. – Tem sido difícil...
Nenhum dos batons poderia ter caído, ela disse a si mesma. E havia checado o número antes de sair de seu covil. Treze, um perfeito treze. Então, logicamente, estavam todos lá. Tinham de estar.
Mas... oh, Deus, talvez ela tivesse segurado a bolsa de lado e deitado um deles cair por não ter fechado o zíper...
– Devina – disse a terapeuta –, você parece muito nervosa. Pode me dizer o que está acontecendo, por favor?
Fale, disse a si mesma. Era a única maneira para escapar disso. Mesmo que contar, arrumar, checar e recontar parecessem a solução, ela gastaria milênios fazendo isso sem chegar a lugar algum. E esse novo jeito estava funcionando. Mais ou menos.
– Aquele novo colega de trabalho de que eu te falei... – ela abraçou a bolsa, segurando tudo com o corpo que assumia quando andava entre os macacos. – Ele é um mentiroso. Um completo mentiroso. Ele me enganou... e eu fui acusada de jogar sujo.
Desde que começara a terapia, ela vinha explicando a guerra contra o anjo Jim Heron em termos que um humano do começo do século XXI pudesse entender: ela e seu inimigo eram colegas em uma empresa de consultoria, e competiam pela vice-presidência. Cada alma que disputavam era um cliente. O Criador era o CEO, e os dois tinham um número limitado de tentativas para impressioná-lo. Blá, blá, blá. A metáfora não era perfeita, mas era melhor do que se revelar completamente e correr o risco de sua terapeuta perder a cabeça, ou pensar que Devina não era apenas compulsiva, mas digna de um manicômio.
– Pode ser mais específica?
– O CEO enviou nós dois para um cliente em potencial. No final, o homem nos contratou e queria trabalhar comigo. Tudo estava bem. Eu estava contente, o cliente estava... – bem, não contente. Matthias não estava nem um pouco contente, o que era mais uma razão para ela ficar satisfeita com a vitória: quanto mais sofrimento, melhor. – Estávamos cuidando do cliente, e tudo estava combinado, o contrato estava assinado, o assunto encerrado. Então fui chamada para uma reunião idiota e me disseram que teríamos que disputar o cliente de novo.
– Você e seu colega de trabalho, certo?
– Isso! – ela jogou as mãos para cima. – Quer dizer, qual é? Estava feito. Estava tudo combinado. A disputa tinha terminado. E agora temos que refazer tudo? Que merda é essa? E daí o CEO disse pra mim: “Bom, você ainda pode ficar com a comissão pelo contrato.” Como se isso compensasse tudo!
– Melhor do que perder tudo.
Devina balançou a cabeça. A mulher simplesmente não entendia. Uma vez que ela se apoderava de algo, se deixasse isso escapar, ou se alguém a roubasse, era como se uma parte de seu verdadeiro corpo fosse removida: Matthias fora arrancado de seus muros e colocado novamente na Terra.
Francamente, o poder do Criador era a única coisa capaz de assustá-la.
Além de suas próprias compulsões.
Não conseguiu controlar a ansiedade: abriu a bolsa novamente e recomeçou a contar...
– Devina, você trabalhou bem com o cliente, certo?
Ela fez uma pausa.
– Sim.
– E você possui um bom relacionamento com ele ou ela?
– Ele. Sim.
– Então você está numa posição mais vantajosa do que seu colega de trabalho, não é?
A terapeuta fez um gesto com as mãos, como se dissesse “então, qual o problema?”.
– Não tinha pensado assim – estivera irritada demais para isso.
– Você deveria. Mas, eu devo dizer, tem uma coisa que está me confundindo. Por que o CEO sentiu a necessidade de intervir? Especialmente se o cliente não apenas assinou um contrato, como também parecia satisfeito?
– Ele não aprovou algum dos... métodos... usados para assegurar o negócio.
– Métodos seus?
Quando Devina hesitou, os olhos da terapeuta rapidamente focaram o decote que a paciente usava.
– Sim, meus – disse o demônio. – Mas, qual é, eu consegui o cliente e ninguém pode criticar minha ética no trabalho: estou trabalhando o tempo todo. Literalmente. Não tenho vida que não seja meu trabalho.
– Você aprova as táticas que usou?
– É claro. Consegui o cliente, isso é tudo que importa.
O silêncio que se seguiu sugeria que a terapeuta não aprovava essa coisa de “fins justificando os meios”. Mas que se dane, isso era problema dela – e era provavelmente a razão de ela parecer um travesseiro e passar os dias escutando os problemas dos outros.
Em vez de governar o mundo inferior e ficar uma gostosa usando sapatos Louboutins...
Quando a ansiedade apertou de novo, Devina começou outra recontagem, jogando os batons um atrás do outro, da esquerda para a direita. Um, dois, três...
– Devina, o que você está fazendo?
Por uma fração de segundo, ela quase atacou de verdade. Mas a razão e um chamado para a realidade prevaleceram: as compulsões estavam quase dominando-a completamente. E não se pode ser efetivo contra um inimigo como Jim Heron quando se está presa em uma eterna ansiedade causada por objetos que se sabem perfeitamente bem que não foram perdidos, movidos ou tocados por nenhuma outra pessoa.
– Batom. Estou apenas me certificando de que trouxe meus batons.
– Certo. Bom, quero que você pare com isso.
Devina levantou o olhar com verdadeiro desespero.
– Eu... não consigo.
– Sim, você consegue. Lembre-se, o problema não são os objetos. Você deve lidar com seus medos de maneira mais efetiva e permanente do que simplesmente cedendo às compulsões. Você sabe, o alívio que consegue no final de um ritual nunca, nunca dura mais que uma fração de segundo; e nunca ataca a raiz do problema. O fato é que, quanto mais obedece às compulsões, mais fortemente elas controlam você. A única maneira de melhorar é aprender a suportar a ansiedade e repensar os impulsos como algo que você pode controlar; e não o contrário – a terapeuta se inclinou para frente, com uma seriedade de quem vai dizer algo cruel, mas para o seu bem. – Quero que você jogue um deles fora.
– O quê?
– Jogue um dos batons fora – a terapeuta se esticou para o lado e pegou um cesto de lixo cor-de-rosa. – Agora mesmo.
– Não! Deus, você está louca? – O pânico se espalhou pelo seu corpo. As palmas das mãos começaram a suar, seus ouvidos zumbiram, seus pés adormeceram. Logo, a onda se propagou: seu estômago embrulhou, o fôlego foi se perdendo, o coração batia mais rápido. Tudo isso pareceu durar uma eternidade. – Eu nunca vou conseguir...
– Você consegue e, além do mais, você precisa. Escolha a cor de que menos gosta e coloque no cesto.
– Não tenho uma cor de que eu não gosto, todos são da mesma cor: 1 Le Rouge.
– Então qualquer um vai servir.
– Não consigo... – lágrimas ameaçavam cair. – Não consigo...
– Pequenos passos, Devina. Essa é a chave da terapia cognitiva comportamental. Temos que tirar você da zona de conforto, te expor ao medo, e então te conduzir a superar o obstáculo para que aprenda que pode chegar inteira do outro lado. Faça isso muitas vezes e o transtorno vai começar a perder o controle sobre seus pensamentos e suas decisões. Por exemplo, o que acha que vai acontecer se jogar um deles fora?
– Terei um ataque de pânico. Principalmente quando chegar em casa e o batom não estiver comigo.
– E depois?
– Vou comprar outro para substituir, mas não vai ser o mesmo que joguei fora, então não vai adiantar nada. Vou só ficar mais compulsiva...
– Mas você não vai morrer.
É claro que não, ela era imortal. Contanto que ganhasse a guerra, obviamente.
– Não, mas...
– E o mundo não vai acabar.
Bem, não por causa do batom.
– Mas vai parecer que sim.
– Emoções vêm e vão. Não duram para sempre – a mulher balançou o cesto. – Vamos lá, Devina, vamos tentar. Se você achar que é muita coisa para aguentar, pode pegar o batom de volta. Mas precisamos começar a nos concentrar nisso.
Como previsto, um ataque de ansiedade começou a surgir, mas, ironicamente, foi o medo que a fez prosseguir: medo de ser dominada por esse problema que não conseguia controlar, medo de que Jim vencesse não porque era o melhor no jogo do Criador, mas porque ela não suportava a pressão; medo de nunca conseguir mudar...
Devina enfiou a mão na bolsa e agarrou o primeiro batom que encontrou. Então jogou fora. Apenas o deixou cair no cesto de lixo.
O som macio que o objeto fez ao acertar os lenços de papel dos pacientes anteriores pareceu o portão do Inferno se fechando atrás dela.
– Bom trabalho – disse a terapeuta, como se Devina fosse uma garotinha de cinco anos que tinha recitado o alfabeto. – Como se sente?
– Como se fosse vomitar – olhando para o cesto, a única coisa que a impediu de vomitar foi o fato de que faria isso em cima do batom.
– Você pode classificar sua ansiedade numa escala de um a dez?
Quando Devina disse “dez”, a terapeuta começou um discurso sobre respirar durante o pânico, blá, blá, blá...
A mulher se inclinou para frente de novo, como se soubesse que não estava sendo ouvida.
– O importante não é o batom, Devina. E a ansiedade que você sente agora não vai durar para sempre. Não vamos exigir demais de você, e vai ficar impressionada com os avanços. A mente humana pode ser reprogramada, podemos criar novos caminhos de experiência. A terapia de exposição funciona: é tão poderosa quanto as compulsões. Você precisa acreditar nisso, Devina.
Com a mão trêmula, o demônio limpou o suor da testa. Então, recompondo-se dentro de seu traje de carne humana, ela assentiu.
A mulher que parecia um travesseiro estava certa. O que Devina vinha fazendo até então não estava funcionando. As coisas estavam piorando, e os riscos só aumentavam.
Afinal, ela não apenas estava perdendo... também estava apaixonada pelo inimigo.
Não que gostasse de se lembrar disso.
– Você não precisa acreditar que isso vai funcionar, Devina. Apenas tem que acreditar nos resultados. É difícil, mas você consegue. Tenho fé em você.
Devina observou os olhos da humana e invejou a convicção da terapeuta. Inferno, uma pessoa com aquele tipo de confiança devia estar delirante... ou se apoiando em muita experiência e treinamento.
Houve um tempo em que Devina também tinha essa confiança em si mesma.
E precisava ter isso de volta.
Jim Heron provara ser muito mais do que um oponente digno e uma boa transa. E ela não podia deixá-lo manter a vantagem. Perder não era uma opção. Assim que a sessão de terapia terminasse, ela precisava voltar ao trabalho com a mente limpa e livre de qualquer besteira.
Devina fechou os olhos e se ajeitou na poltrona, apoiando as mãos nos braços estofados e enterrando as unhas no tecido aveludado.
– Como está se sentindo? – perguntou a terapeuta.
– Como se fosse superar isso de um jeito ou de outro.
CAPÍTULO 4
– Apenas me diga se ele está vivo ou não.
A enfermeira ao lado da cama simplesmente ignorou o pedido de Mels. Oferecendo uma caneta, a mulher disse:
– Se você assinar esses papéis eu passarei as receitas...
Danem-se os papéis.
– Preciso saber se o homem sobreviveu.
– Por lei, eu não posso divulgar a condição de nenhum paciente. Assine aqui para eu poder te liberar.
Leia-se: Não encha minha paciência e me deixe voltar a trabalhar.
Praguejando baixinho, Mels assinou no local indicado e guardou as duas folhas de papel e a cópia, enquanto a enfermeira partia para aterrorizar o próximo paciente.
Que noite! A boa notícia era que a polícia estava pelo menos chamando aquilo de acidente, reconhecendo que ela não tinha sido negligente ou bebido. Mas ainda havia problemas...
Observando seus papéis de alta, ela passou a vista nas notas. Concussão leve. Distensão no pescoço. Retorno com seu médico de preferência em uma semana ou mais cedo no caso de visão dupla, náusea, tontura ou piora da dor de cabeça.
O carro provavelmente sofrera perda total.
E não havia como o homem ter sobrevivido.
Com um grunhido, ela sentou, encostando-se nos travesseiros, e sua cabeça enfaixada registrou o movimento como se fosse o giro de uma bailarina. Enquanto esperava a tontura passar, ela observou suas roupas penduradas em uma cadeira de plástico laranja à sua frente. Ela pudera manter o sutiã e a calça durante os exames. A camisa, a jaqueta e o casaco estavam apenas esperando para ser vestidos de novo.
Mels não ligou para sua mãe.
A família já passara por um acidente automobilístico – e, naquele caso, a pessoa que não tinha sobrevivido era seu pai.
Então, pois é, apenas mandou uma mensagem de texto dizendo que sairia com os amigos e chegaria em casa mais tarde. A última coisa de que precisava era deixar sua mãe nervosa e insistindo em ir buscá-la no hospital, especialmente levando em consideração o que ela queria fazer agora.
Mels começou lentamente o esforço para vestir-se, embora esse atraso não tivesse nada a ver com ser uma boa paciente. Evidentemente, o choque de ter se sentido como um boneco de teste de colisão não era algo de que podia se livrar facilmente. Ela sentia-se velha e decrépita – e estranhamente aterrorizada.
Ter matado alguém... era inimaginável.
Ela enfiou os papéis na bolsa, abriu a cortina verde e encarou o enorme caos do hospital: pessoas com jalecos brancos e batas de enfermeira andavam para cima e para baixo, entrando e saindo de quartos, dando e obedecendo ordens.
Considerando que já estivera em uma colisão naquela noite, ela foi cuidadosa para não entrar no caminho de ninguém enquanto se dirigia para a saída.
Que ela não usou.
A sala de espera estava cheia de pessoas buscando cuidados médicos, incluindo um cara com um olho roxo e uma mão cheia de ataduras que sangrava muito. Ele levantou a cabeça, olhou para Mels e assentiu, como se compartilhassem uma ligação por terem começado uma briga em um bar.
Pois é, você deveria ver como o carvalho ficou depois que eu acabei com ele. Toca aqui.
Na recepção, ela se instalou no balcão e esperou até ser notada. Quando um homem se aproximou, Mels sorriu como se o assunto não fosse muito importante.
– Você pode me dizer o número do quarto daquele desconhecido que foi atropelado?
– Ei, eu te conheço. Você é repórter.
– Sim – ela enfiou a mão dentro da bolsa, pegou seu passe de imprensa e o mostrou, como se fosse um distintivo do FBI. – Você pode me ajudar?
– É claro – ele começou a digitar no teclado. – Ele foi transferido para um quarto hospitalar. Número 666. É só pegar o elevador e seguir as placas.
– Obrigada – Mels deu uma leve batida no balcão. Pelo menos, ele ainda estava respirando. – Você ajudou muito.
– Sabe, você não parece muito bem – disse o enfermeiro, fazendo um círculo em volta de seu olho.
– Noite difícil.
– Estou vendo.
A viagem até o sexto andar foi um exercício de processamento de informações, em que seu cérebro falhou miseravelmente. Para começar, ainda sentia tontura, e a subida fez seu ouvido zumbir tanto que foi preciso segurar no corrimão. Ótima ideia colocar um corrimão no elevador; afinal, gente com tontura era parte da rotina por ali. E o fato de a parede ser revestida com metal cinza fosco era outro benefício. Ela ainda não tinha se olhado no espelho, mas, pela maneira como o enfermeiro a olhou na recepção, o air bag que ela quase comera provavelmente não fizera muito bem à sua pele.
A campainha do elevador era alegre como se estivesse na Disneylândia, mas as portas se abriram tão vagarosamente que pareciam exaustas.
Seguindo as instruções, ela observou as placas e encontrou a direção, entrando em um longo e amplo corredor marcado por incontáveis portas largas. Tudo era mais quieto por lá, e ninguém na estação das enfermeiras se manifestou enquanto ela se aproximava. Melhor assim – não queria correr o risco de alguém começar a fazer perguntas, não gostar das repostas e enviá-la de volta.
O quarto ficava quase no final do corredor, e ela meio que esperava ver um policial de guarda na porta. Mas não havia nada nem ninguém. Apenas mais uma porta com uma placa amarela numerada no batente e uma superfície laminada, que parecia madeira de pinheiro.
Empurrando a porta, ela se inclinou para dentro. Sob a luz fraca, pôde ver o pé da cama, uma janela na parede mais distante e uma TV instalada no teto. O som de bipes e o cheiro de desinfetante provavam que aquilo não era um quarto de hotel – não que ela precisasse de ajuda para saber disso.
Mels limpou a garganta.
– Olá?
Quando não houve resposta, entrou e deixou a porta entreaberta. Passando pelo banheiro, parou quando teve uma visão clara do paciente.
Então levou as mãos ao rosto e cobriu a boca quando seu queixo caiu.
– Oh... meu Deus!
No pequeno apartamento acima da garagem que alugava na zona rural, Jim Heron não conseguia dormir.
Todos ao redor dormiam como pedras: o Cachorro estava ao pé da cama, suas patas tremendo enquanto sonhava com coelhos ou esquilos... ou talvez com sombras negras que possuem presas. Adrian estava sentado em um canto, com as costas contra a parede e o corpo tenso, apesar da respiração regular. E Eddie? Bom, o cara estava morto, então não era como se estivesse andando por aí em círculos.
Desesperado por um cigarro, Jim saiu da cama pelo lado errado, para evitar perturbar o Cachorro, e pegou seu maço de Marlboro. Antes de sair, se aproximou para checar Adrian.
Sim. Dormindo sentado.
Com uma adaga de cristal na mão, caso alguém viesse atrás de seu amigo.
Pobre coitado. A perda de Eddie fora um duro golpe na equipe... mas fora particularmente ruim para aquele maluco tatuado cheio de piercings que estava em vigília desde o dia da morte.
Por que será que, quando um homem tenta esconder sua dor, parece ser muito mais triste do que se estivesse em qualquer tipo de histeria e choradeira?
E, em uma nota não relacionada, Jim estava estranhando trabalhar com parceiros.
No tempo em que era um assassino das Operações Extraoficiais, ele agia estritamente sozinho. Agora tanta coisa tinha mudado, desde seu chefe e o tipo de trabalho, passando por suas armas – e Eddie Blackhawk era quem mostrava o caminho, ensinando o que precisavam saber, acalmando ele e Adrian quando os dois discutiam, sendo a voz da razão em situações nas quais parecia não haver lógica... como quando se está diante do próprio cadáver. Ou quando se luta contra um demônio que gosta de usar Prada e que tem uma queda por homens que a rejeitam. Ou quando se leva nas costas o futuro das boas almas, e das más, e de todas aquelas que já existiram ou que iriam existir.
Tipo de coisa que fazia a pessoa querer trocar de emprego com o cara que frita hambúrgueres na lanchonete.
Praguejando, Jim andou até o sofá, pegou uma jaqueta de couro e cobriu as pernas de Adrian. O outro anjo grunhiu e se ajeitou no chão, mas continuou debaixo da jaqueta. Ótimo – o objetivo era manter o cara aquecido, não conversar com ele.
Jim não estava a fim de conversar com ninguém.
Mas isso não era novidade.
Ele pisou no patamar no topo da escada e o ar frio percorreu a pele nua de seu peito. Antes de ter um colega de quarto e um cão, ele sempre dormira nu. Agora usava um moletom. O que o ajudava era o fato de que as noites de abril eram muito frias em Caldwell.
Não que ele dormisse muito.
O maço de Marlboro ainda estava embrulhado e Jim o bateu contra a palma da mão enquanto fechava a porta silenciosamente. Uma das vantagens de ser ao mesmo tempo imortal e corpóreo é que você não precisa se preocupar com câncer, mas a nicotina faz efeito em seu sistema nervoso.
E também não precisa procurar um isqueiro no bolso.
Ele rasgou a embalagem, retirou um cigarro, colocou-o nos lábios e levantou a mão. Quando seu dedo indicador se iluminou ao seu comando, ele pensou em Eddie novamente – e, como de costume, desejou matar Devina.
Pelo menos, os caras do bem ainda estavam com vantagem de dois a um na guerra. Se conseguisse mais duas vitórias, tudo terminaria: ele livraria a Terra das garras do demônio, manteria sua mãe segura na Mansão das Almas... e tiraria sua Sissy do Inferno.
Não que ela fosse sua.
Ele exalou o ar. Não tinha total certeza sobre Sissy, mas as coisas tinham de funcionar assim, não é? Se os anjos ganhassem e Devina deixasse de existir, ele poderia ir lá embaixo e livrar aquela pobre garota da prisão. O Inferno seria dele para fazer o que quisesse.
Certo?
Com essa deixa, começou a imaginar quem seria a próxima alma.
Pensou em seu novo chefe e ouviu a voz com sotaque britânico em sua cabeça. O som macio orgulhoso das palavras de Nigel ecoava ao redor, irritando-o: Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
– Muito obrigado – murmurou enquanto a fumaça escapava de seus lábios junto com a respiração. – Ajudou muito, cara.
Era completamente injusto que sua inimiga soubesse quem era o alvo e ele não.
Que merda.
Na última rodada, ele enganara Devina para conseguir a informação, mas ela não cairia nessa de novo – diga o que quiser sobre aquele demônio, mas ela não era uma loira burra, nem de longe. E isso significava que lá estava ele de novo, emperrado em ponto morto, enquanto o inimigo com certeza saía na frente.
Esse era precisamente o mesmo problema que ele tivera na disputa pela alma de seu antigo chefe. Durante todo o tempo, ele pensou que era outra alma que estava em jogo, mas no fim era Matthias quem estava sendo disputado.
Mas já era tarde, e o filho da puta havia feito a escolha errada.
Vencedora: Devina.
Nesse ritmo, o jogo estava destinado a ser injusto, enquanto Devina continuasse interagindo diretamente com as almas. De acordo com as regras, Jim era o único que poderia fazer isso, mas, na prática, ela fazia parte do corpo a corpo tanto quanto ele. Naturalmente, Nigel, o chefe dos escoteiros, estava convencido de que ela seria punida por pisar fora de seus limites – e talvez até fosse. Mas quem poderia saber quando e onde?
Nesse meio tempo, Jim não tinha outra escolha além de ficar esperto e torcer para não estragar tudo.
Ele precisava vencer. Por sua mãe... e por Sissy.
Ele tragou e exalou outra vez, observando a fumaça girar no ar frio e subir até desaparecer. Ao piscar os olhos, viu uma imagem de Sissy Barten, aquela linda jovem, pendurada de cabeça para baixo em uma banheira de porcelana branca, o sangue vermelho vivo manchando seus cabelos dourados, a pele marcada com símbolos que ele nunca vira antes, mas que Eddie tinha entendido muito bem...
O som discreto de algo raspando o fez perder a linha de raciocínio, então ele virou para trás e abriu a porta do apartamento. O Cachorro saiu mancando com o pelo todo desgrenhado – o que era seu estado natural, e não consequência de ter dormido em uma posição esquisita.
– Ei, amigo! – Jim disse com a voz macia enquanto fechava a porta. – Você precisa ir lá fora?
O pobre e velho cão tinha dificuldade com as escadas, então Jim geralmente o carregava até o chão. Quando ele se abaixou para pegá-lo, o Cachorro prontamente se sentou: era sua maneira de dizer que queria ser apanhado e carregado.
– Sim, senhor.
O animal, que Jim sabia ser mais do que um vira-lata qualquer, pesava quase nada em seu braço, e era quente como um bico de Bunsen.
– Eu disse pra ela pensar em você – Jim disse, segurando o cigarro longe do Cachorro, só para o caso de estar errado quanto ao cão ser especial. – Eu disse pra Sissy pensar em você mastigando minhas meias. Quero que ela imagine você brincando na grama fresca quando as coisas ficarem...
Não podia terminar aquele pensamento em voz alta.
Em seu tempo de vida, Jim fizera muitas coisas feias, horrorosas, para pessoas feias e horrorosas – o que significava que há muito tempo já se tornara durão em relação às suas emoções...
Bom, na verdade, isso tinha acontecido ainda quando era adolescente. Naquele dia, quando tudo mudou para sempre.
No dia em que sua mãe foi assassinada.
Dane-se. São águas passadas.
O fato era que a ideia de Sissy mergulhada no Poço das Almas do demônio era suficiente para fazer até um soldado endurecido pela guerra perder a cabeça.
– Eu disse a ela... pra pensar em você, quando sentisse que não conseguiria aguentar mais.
A pequena cauda do Cachorro balançou para um lado e para o outro, como se Jim tivesse feito a coisa certa.
É, esperava que ela estivesse pensando no Cachorro lá embaixo, e que isso lhe desse um pouco de alívio.
Pois não havia mais nada.
– Preciso encontrar a próxima alma – sussurrou Jim antes de fumar outro trago do cigarro. – Preciso saber quem é o próximo na lista. Precisamos vencer, Cachorro.
Aquele nariz frio e molhado encostou em seu rosto, e ele teve o cuidado de soprar a fumaça por cima do ombro.
O fato de Nigel dizer que Jim conhecia a alma não significava absolutamente nada. Ele conhecera muita gente durante sua vida.
Podia apenas rezar para que fosse alguém que ele pudesse trazer para o seu lado.
CAPÍTULO 5
Matthias percebeu o momento em que não estava mais sozinho. A luz ao redor se intensificou, significando que uma porta se abriu, e isso não acontecia por acaso.
Sua mão direita se fechou por reflexo, como se segurasse uma arma. Mas isso era tudo o que podia fazer. Seu corpo estava imóvel por causa da dor, como se uma corrente o prendesse onde quer que ele estivesse deitado... era uma cama. Sim, estava numa cama, e o som ambiente cheio de bipes lhe informava que tipo de cama. Um hospital. Ele ainda estava no hospital.
Será que nunca iria se recuperar da...
Seus pensamentos empacaram nesse ponto.
Não havia nada além de um buraco negro.
Não fazia ideia da razão de estar ali. Nenhuma pista de por que seu corpo doía tanto. Não... Deus, sabia apenas que seu nome era Matthias, e nada mais.
O pânico o fez arregalar os olhos. Havia uma mulher ao pé da cama, aterrorizada, com as mãos no rosto e uma expressão de completo choque. Um de seus olhos estava roxo e sua testa estava enfaixada. O cabelo preto estava preso para trás. Olhos bonitos. Alta... ela era alta...
Olhos lindos, na verdade.
– Eu sinto muito – ela disse, com a voz rouca.
Como é?
– Sobre...? – a voz dele estava áspera, a garganta doía. E um de seus olhos não funcionava direito.
Não, o olho estava completamente inutilizado. Perdera metade da vista no passado. Foi isso mesmo, quando ele era...
Franziu a testa e seus pensamentos caíram no abismo novamente.
– Eu te atropelei. Sinto muito... não enxerguei você. Estava tão escuro, e você apareceu na rua antes que eu pudesse frear.
Ele tentou estender a mão, em um impulso para acalmá-la que ultrapassou a dor e a confusão.
– Não foi sua culpa... não... sem lágrimas. Venha...
Por algum motivo, ele não podia acreditar que alguém choraria por ele, agora ou em qualquer tempo. Não era o tipo de homem que inspira reações assim. Não ele. Mas por que isso era assim, ele não sabia...
A mulher se aproximou um pouco, e Matthias observou com seu olho bom enquanto ela estendia a mão quente e macia... até tocar a palma dele.
O contato o fez sentir aquecido por todo o corpo, como se tivesse deitado em uma banheira quente.
Engraçado, ele nem tinha percebido que sentia frio até ela o tocar.
– Estou apertando sua mão... – ele disse, com a voz entrecortada. – Caso não consiga perceber.
Ela foi gentil e não comentou o fato de que claramente não sentia sua tentativa de retribuir o contato. Mas ele estava se esforçando. E quando seus olhos se encontraram, por alguma razão, Matthias quis dizer que nem sempre estivera quebrado. Um dia, não faz muito tempo, ele fora capaz de levantar-se orgulhoso, correr longas distâncias e usar seus músculos. Porém, agora ele era como um colchão com pulsação cardíaca.
Mas o motivo disso não fora o atropelamento. Não, ele já estava quebrado havia um bom tempo.
Talvez sua memória estivesse voltando.
– Sinto muito – ela disse novamente.
– Foi assim que você... – ele fez um gesto mostrando o próprio rosto, mas isso a fez focar ainda mais nele, e a maneira como estremeceu sugeria que para ela era difícil olhar o quanto ele estava feio. – Você também se machucou.
– Ah, estou bem. A polícia já veio conversar com você?
– Acabei de acordar. Não sei.
Ela desfez o contato entre eles e enfiou a mão em uma bolsa que mais parecia uma mala.
– Aqui. Este é o meu cartão. Eles conversaram comigo enquanto eu estava sendo medicada, e eu disse que aceito toda a responsabilidade.
Ela colocou o cartão na frente de seu rosto, mas sua visão se recusou a focar.
E Matthias não queria olhar para nada além dos olhos dela.
– Qual é o seu nome?
– Mels Carmichael. Na verdade, é Melissa – ela tocou o próprio peito. – As pessoas me chamam de Mels.
Quando ela deixou o cartão na mesa ao lado, ele franziu a testa, mesmo isso fazendo sua cabeça latejar.
– Como você se machucou?
– Me ligue se precisar de alguma coisa. Não tenho muito dinheiro, mas...
– Não estava usando cinto de segurança, não é?
A mulher olhou ao redor como se já tivesse ouvido isso da polícia.
– Ah...
– Você devia usar o cinto...
A porta abriu bruscamente, e a enfermeira que entrou parecia como se fosse a dona do lugar.
– Estou aqui – ela anunciou enquanto caminhava até os aparelhos que ficavam atrás da cama. – Ouvi o alarme.
A primeira coisa em que Matthias reparou foram os grandes peitos da mulher. Depois, na cintura pequena. E nos longos cabelos castanhos, macios como um edredom e brilhantes como porcelana.
Mas aquela imagem fez sua pele se arrepiar. Ao ponto de ele tentar se sentar para poder sair dali...
– Shh... está tudo bem – sorrindo, a enfermeira quase botou Mels para fora. – Estou aqui pra ajudar.
Olhos negros. Olhos negros que o lembravam de alguma coisa, em algum lugar... uma prisão onde você ficava sufocado pela escuridão, incapaz de se livrar...
A enfermeira se inclinou e seus seios se apertaram um contra o outro.
– Vou cuidar de você.
– Não – ele disse com veemência. – Não, você não vai...
– Ah, sim, eu vou.
Sentia seu inconsciente tentando avisá-lo sobre alguma coisa, algo que não conseguia distinguir com clareza, mas que enviava sinais como um caminho de pólvora antes de uma bomba explodir. Mas não encontrou nada específico. Suas memórias pareciam bases camufladas em um horizonte visto através de óculos de visão noturna – ele sabia que o inimigo estabelecera bases em algum lugar, mas era impossível visualizar qualquer detalhe.
– Se você não se importar – a enfermeira disse para Mels –, eu preciso cuidar do meu paciente.
– Ah, sim. Claro. Eu vou... é, vou embora – Mels se esticou sobre a mulher para poder enxergá-lo. – Bom... falo com você mais tarde.
Matthias também precisou se desviar da enfermeira, mudando a posição do corpo e fazendo os músculos da barriga se contraírem.
A enfermeira bloqueou sua visão.
– Feche a porta quando sair, certo? Obrigada.
E então ficaram a sós.
A enfermeira sorriu e encostou o quadril na beira da cama.
– Que tal eu te dar um banho?
Parecia uma ordem, não um pedido. E, cara, de repente ele sentiu-se nu – e não de um jeito bom.
– Não estou sujo – ele disse.
– Sim, você está – ela colocou a mão em seu braço, bem no lugar onde as sondas se conectavam com a veia. – Você está imundo.
Do nada, seu corpo começou a ganhar força: a energia invadia e inflava seus músculos com saúde, como se ele tivesse passado por dias de descanso, noites bem dormidas e muita comida.
Estava vindo dela, ele percebeu. Mas... como isso era possível?
– O que você está fazendo comigo?
– Nada – a enfermeira sorriu. – Se sente diferente?
Olhando em seus olhos negros, a escuridão parecia tão irresistível quanto repulsiva – e ele não saberia dizer quanto tempo ficaram ali daquele jeito, ligados pela mão dela, que transferia o que parecia uma droga miraculosa.
– Eu conheço você – ele pensou em voz alta.
– É engraçado quando a gente sente isso com uma pessoa desconhecida.
O poder que entrava nele parecia maligno e muito familiar.
– Eu não quero...
– Não quer o quê, Matthias? Não quer se sentir melhor, ficar mais forte, viver pra sempre? – ela se inclinou para ainda mais perto. – Está me dizendo que não quer ser um homem de novo?
Os lábios dele começaram a se mover, mas nenhum som saiu. Uma lentidão se apoderou de seu corpo quando ela retirou a mão. Desorientado e confuso, ele tentou se levantar, mas parecia que, afinal, fora mesmo drogado.
– Vou te dar um banho agora – ela disse com um olhar malicioso e um sorriso que faziam parecer que estava falando de sexo oral e não de esponja e sabonete.
Quando ela se aproximou da pia, Matthias aspirou profundamente, suas costelas se expandindo sem dor, e conseguiu expirar sem dificuldade. Todas as dores desapareceram, dando a impressão de que fazia anos que seu corpo não apresentava nenhuma complicação. Talvez séculos?
– Que dia é hoje? – ele murmurou, enquanto ela enchia uma bacia.
A enfermeira olhou por cima do ombro.
– É mesmo! Você está com amnésia.
Um momento depois ela voltou à cama, trazendo junto a mesa de rodinhas. Quando ela abaixou o lençol até a cintura dele e desamarrou o avental do hospital, Matthias levantou a cabeça pesada e olhou para si mesmo. A parte de cima não estava tão ruim, apenas uma cicatriz aqui e outra ali. Mas a parte de baixo estava arrasada.
Sentiu a esponja macia e quente.
Enquanto a enfermeira massageava seu peito, ele observou a maciez e a luminosidade da pele dela: era como uma pintura, e seu cabelo era mais espesso e voluptuoso do que parecia ser possível. Seus lábios pareciam até partes de uma fruta: molhados, com a promessa de doçura.
Eu não a quero, ele pensou.
Mas não conseguia se mover.
– Você precisa ganhar peso – ela comentou, passando a esponja em seu peito. – Está muito magro.
A esponja foi descendo cada vez mais, demorando-se na barriga: os cuidados estavam mais para de uma amante do que de uma enfermeira. Com súbita clareza, Matthias lembrou que houve um tempo em que ela poderia ter se impressionado – as mulheres que ele contratava para o exercício sexual sempre ficavam animadas com seu corpo...
Espere um pouco, isso realmente estava acontecendo?
Quando ela começou a baixar o lençol ainda mais, Matthias a fez parar:
– Não, pare.
– Sim, continuo.
Com os olhos dela presos aos seus, a enfermeira afastou a mão dele e arrancou o resto da roupa de cama. A violência do ato o fez lembrar de algo lá no fundo de sua mente... mas não sabia o quê.
– Fiz você lembrar de algo? – ela disse, mesmo sabendo bem a resposta. De alguma maneira... ela sabia que ele gostava de coisas perigosas. – Fiz? Matthias.
– Talvez – de repente sua voz parecia mais forte, mais profunda...
– E agora?
Ela o tocou naquele lugar que definia sua masculinidade: a esponja raspou seu pênis de leve.
Quando ela lambeu os lábios com volúpia, ele teve de rir alto. Seja lá qual fosse o seu motivo para quebrar todas as regras, a enfermeira não chegaria a lugar nenhum – o que resolveria o problema de ele não querer aquilo. Ela podia ficar nua e montá-lo; aquele pedaço mole de carne não se levantaria de jeito nenhum.
Mesmo com amnésia, sabia disso, da mesma maneira que sabia que não enxergava com um dos olhos. Era um fato, não uma lembrança.
– Minha memória não é a única coisa que perdi – ele disse secamente.
– É mesmo?
Quando ela massageou onde não deveria, Matthias deu um salto. Bom, mas a impotência não significava que você não sentia nada. Significava apenas que não podia fazer nada a respeito...
O fluxo de poder voltou a se apoderar dele, desta vez mais forte. E com um gemido, ele se arqueou, automaticamente levantando o quadril até a fonte do prazer.
– Isso mesmo – ela disse suavemente. – Sinta meu toque. Estou dentro de você.
O desejo sexual há muito esquecido explodiu por todo o corpo de Matthias; a agressividade e a necessidade de penetrar algo que ele não sentia há muito tempo. Deus, lembrar-se de que era de fato um macho, e não algum doente andrógino...
Oh, droga, isso era bom. Muito... bom.
– Olhe pra mim – ela ordenou enquanto trabalhava em seu pênis. – Olhe para mim.
Ele ficou tão distraído pela novidade que quase esqueceu quem a proporcionava, e a visão dela acabou drenando a sensação para longe: o que se tornou impotente agora foram suas emoções, mesmo que o corpo funcionasse plenamente. Ela era linda, mas... era uma beleza cheia de veneno.
– Você não gosta disto, Matthias?
Não, ele não gostava. Não gostava mesmo.
– Nem um pouco.
– Mentiroso. Precisamos terminar o que começamos, você e eu. Sim, precisamos.
Devina entrou na loja Saks Fifth Avenue no shopping Caldwell Galleria perto das cinco da manhã. Passou pelas portas de vidro e caminhou até um mostruário com manequins que vestiam tons pastéis. Ela posou junto deles por um momento, arqueando as costas e sentindo os seios apertarem o tecido da blusa sob o casaco.
A primavera estava no auge, e isso era uma boa notícia para suas coxas.
Já que estava ali, talvez pegasse algumas coisinhas.
Com uma febre de compras correndo por suas veias, ela apareceu atrás do balcão e, com um aceno das mãos, desativou os detectores de movimento. Por um segundo, pensou em deixar as câmeras de segurança ligadas, só por diversão.
Nada mais divertido do que ter uma plateia – mesmo que fosse apenas um humano gorducho sentado em uma sala de segurança ao final de um turno de trabalho durante o qual provavelmente só dormira.
Porém, ela estava ali por uma razão muito séria.
Seus sapatos de salto faziam barulho no chão de mármore, e ela gostava daquele som ecoando: pisou mais forte para que seu domínio sobre o vazio alcançasse todas as direções. Deus, ela adorava aquele cheiro no ar: chão polido, perfume, colônia... e riqueza.
Passando pelas bolsas de grife penduradas na parede, ela checou os estandes da Prada, Miu Miu e Chanel. As bolsas pareciam lindas mesmo sob o brilho fraco das luzes de segurança, e ela quase engasgou quando encontrou uma Gucci. Atravessando como um fantasma pelo painel trancado, agarrou uma bolsa de pele de cobra verde-escuro e continuou.
Fora sexo, pensou Devina, lojas de departamento de luxo proporcionam a melhor sensação que existe: milhares e milhares de metros quadrados cheios de coisas, tudo bem organizado, etiquetado e catalogado. E protegido.
Era um completo orgasmo para pessoas obsessivo-compulsivas.
Então precisava ter cuidado. Estava sentindo uma ligação surgir entre ela e todas aquelas mercadorias e, se isso acontecesse, havia o perigo de criar uma sensação de posse sobre aquelas preciosidades. E isso não seria bom para ninguém. Ela teria de matar os humanos que entrassem ali para fazer compras, e isso seria exaustivo.
Mas toda aquela organização a fez pensar que poderia usar seu notebook Lenovo e entrar para a era digital com suas próprias coleções.
Talvez o próximo virgem que sacrificaria para proteger seu espelho seria um nerd. Depois ela poderia reanimá-lo e fazê-lo trabalhar para si.
Afinal, havia muitos programadores de computador por aí que não conseguiam nem chegar perto de uma mulher. Seria muito fácil.
Entrando na parte central do primeiro andar, ela encontrou os balcões de maquiagem: o balcão da Chanel com sua conhecida maquiagem preta e brilhante, o da Lancôme cheio de recipientes de vidro... e o da Yves Saint Laurent, com muitos detalhes dourados ao redor dos mostruários.
Indo para trás do balcão, ela abriu o cadeado da prateleira que estava ao chão, e, enquanto abaixava e se apoiava na ponta dos pés, sua mão iluminou o caminho, lançando luz sobre as pequenas etiquetas grudadas nas embalagens.
A etiqueta 1 Le Rouge foi fácil de achar. Ela pegou um pacote, abriu a caixa e retirou o brilhante tubo de metal. Lindo, tão lindo, novinho em folha, intocado. Ela quase estremeceu quando girou e expôs a perfeita coluna de batom vermelho.
O perfume, delicado e com toques florais, fez Devina revirar os olhos.
A terapeuta estava certa: o ataque de pânico não durou para sempre naquele consultório, e quando Devina continuou com seus afazeres mais tarde, a ansiedade de ter jogado o batom fora acabou sendo esquecida enquanto ela dava atenção a outras coisas. Porém, a sensação ressurgiu quando ela voltou para seu espaço privado e sentou em frente ao espelho, pronta para descer até seu muro e aproveitar um pouco de tempo sozinha com suas crianças.
Entram os problemas.
Seus pensamentos rapidamente saíram de controle, surgiam imagens de um compactador de lixo e pilhas enormes e mal cheirosas de dejetos em grandes aterros desolados, que a faziam querer chorar.
Devina poderia ter voltado para pegar aquele batom específico, mas queria honrar a religião da terapeuta: tornar-se obcecada em conseguir de volta aquele batom, sem se importar com as consequências, seria voltar também para seu ciclo vicioso.
Mas ela não podia trilhar esse caminho o tempo todo – e por isso estava na loja e não no consultório, e agora tinha um novo e lindo batom para substituir aquele que sacrificara em nome do autoaperfeiçoamento.
Havia mais cinco batons da cor que gostava, todos empilhados formando uma bonita pirâmide. Ela esticou a mão, com vontade de pegar todos, para servirem de reservas dos reservas, mas impediu a si mesma. Fechou a prateleira. Teletransportou-se para longe.
Saiu de lá orgulhosa de si mesma.
Fim do intervalo; hora de voltar ao trabalho.
Voltando à vitrine pela qual entrara, parou em frente a um dos manequins. A coisa usava uma peruca loira e vestia uma roupa florida que Devina nunca usaria, nem morta.
Mas, então, começou a imaginar o que Jim Heron pensaria se a visse vestindo aquilo.
Sem dúvida fazia seu tipo: feminina, bonita, nada muito revelador. Modesta.
Aquele cretino. Enganador mentiroso.
Naturalmente, o fato de tê-la enganado tão bem apenas o deixava mais atraente.
Devina franziu a testa quando a voz da terapeuta surgiu em sua mente. Terapia cognitiva de comportamento... reprogramar o cérebro por meio de experiências...
O demônio se aproximou e passou a mão pelos cabelos falsos, aqueles longos e lisos fios amarelos.
Sissy Barten, a queridinha de Jim, tinha cabelos iguais àqueles. E teria adorado aquele vestido. Teria se mantido ao longe e esperado Jim se aproximar, nunca se jogaria nele, manteria sempre aquele jeitinho virginal.
O que era suficiente para fazê-la querer matar os dois – e com aquela garotinha estúpida seria a segunda vez, pois já tinha rasgado sua garganta na banheira.
Devina começou a sorrir. E então riu.
Com um rápido movimento, arrancou a peruca, deixando o manequim careca, e saiu através do vidro.
CAPÍTULO 6
Tinha de ser um sonho, não é?
Adrian tinha de estar sonhando. Mas, caramba, tudo parecia real, desde o sofá de veludo sob o seu traseiro, a cerveja gelada em sua mão, até a batida visceral do som na boate.
Estava com medo de virar a cabeça. Medo de descobrir que estava ali sozinho naquele lugar barulhento e desesperador, cheio de pessoas vazias iguais a ele.
Se estivesse sozinho, então Eddie estava mesmo morto.
Deu um gole na cerveja, preparou-se e então virou.
Adrian lentamente abaixou a garrafa, exalando todo o oxigênio para fora de seus pulmões.
– E aí, cara? – ele sussurrou.
Os olhos vermelhos de Eddie se viraram.
– Ah... oi – o cara se ajeitou no assento. – Escute, você tá bem?
– Sim, é só que...
– Por que tá olhando pra mim desse jeito?
– Senti sua falta – Ad disse com a voz grave. – Achei que nunca mais ia te ver.
– Só porque fui até o banheiro? – Eddie sorriu. – Geralmente, eu volto de lá.
Ad esticou a mão, sabendo que um toque provaria de que lado estavam...
Eddie franziu a testa e se inclinou para trás, como se Ad tivesse revelado um par de chifres.
– O que há de errado com você?
O rosto de Eddie parecia exatamente o mesmo: a pele bronzeada pelo sol, um vestígio de barba, aqueles olhos avermelhados estavam abertos para o mundo, nem desconfiados e nem ingênuos, e uma pesada trança que percorria as costas musculosas.
– Eu não sei – disse Ad esfregando o rosto.
– Quer ir embora?
– Deus, não.
– Certo – aqueles olhos vermelhos voltaram-se para a multidão. – Então, você vai me forçar a transar de novo?
Ad riu alto.
– Certo. Foi isso que aconteceu. Claro.
– Jogando mulheres para cima de mim...
– Eu nunca joguei...
– Escolhendo as que sabe que vou gostar...
– Bem, isso eu fiz...
– Arruinando minha virtude.
Quando o cara deu outro gole, Ad ficou sério.
– Ninguém poderia fazer isso.
– É, você tem razão. Antes de me tornar um anjo, eu era uma virgem imaculada.
– O que explicaria esse cabelo todo.
– Não, o cabelo me faz parecer gostosão.
Ad riu novamente e se recostou no sofá sentindo uma súbita injeção de energia percorrer seu corpo. Era uma sensação de que a vida voltara ao normal, que a tragédia não acontecera, que tudo voltara à maneira como deveria ser; era um alívio tão grande que, mesmo sentado, ele sentia como se estivesse voando. Com uma pontada de otimismo, seus olhos percorreram a multidão. Seu radar para mulheres voltava a funcionar e sua rara felicidade transformava periguetes em modelos internacionais.
– Está vendo alguma coisa que te agrade? – Eddie perguntou.
– Se não fosse por mim, você nunca conseguiria uma transa.
– Sabe, eu não acho que isso seja verdade.
– Você é sincero demais.
– Droga.
Ah, sim, aquela ruiva serviria, Ad pensou. E ela estava junto com uma morena...
Franziu a testa e ficou tenso. Havia alguém ao redor, no canto mais afastado, observando-os das sombras.
– Tá na hora – disse Eddie. – Ou fazemos isso agora, ou pedimos outra rodada. Ad? Olá?
Adrian chacoalhou a cabeça.
– Sim... claro.
Seu melhor amigo lhe lançou um olhar desconfiado novamente.
– O que há de errado com você, cara?
Boa pergunta, pensou enquanto se levantava.
– Vou ver o que posso pescar por aí.
– Sem pressa... só não demore muito.
– Isso não é uma contradição?
– Não quando se trata de você.
Os dois riram um pouco. E então Ad se concentrou nas duas mulheres. Quando se aproximou da ruiva e da morena, elas responderam com uma previsível risadinha, nada comparado com os orgasmos que resultariam daquele encontro.
– Meu nome é Adrian – ele disse. Seu lento sorriso fez as mulheres arregalarem os olhos e ajeitarem suas poses: peito levantado, barriga para dentro, pernas esticadas para expor as coxas.
– Gosto do seu perfume – ele disse, inclinando-se para perto do pescoço da ruiva.
Na verdade, não tinha sentido o cheiro ainda, e nem se importava.
Quando puxou o ar, ele congelou. Aquele cheiro. Era...
– Que bom que gostou – ela disse, enquanto acariciava as costas dele até chegar em seu traseiro. – Escolhi exatamente pra alguém como você.
Adrian se afastou, seu cérebro doía. Ou talvez fosse seu peito.
– Certo. Bom.
Olhou por cima do ombro. Eddie estava no sofá, todo espreguiçado, mas totalmente atento, como se estive pronto para o sexo.
Ou seja, estava normal.
Adrian assentiu na direção dele.
– Trouxe um amigo. E você?
– Minha amiga tem namorado – murmurou a ruiva, como se isso fosse um defeito.
– Desculpe – disse a outra mulher.
Como se isso importasse.
– Certo, só você então. Consegue aguentar os dois?
Quando a garota assentiu como se tivesse ganhado na loteria, ele tomou sua mão, e o perfume dela os seguiu, fazendo Ad desejar que a solteira fosse a morena, e que fosse aquela Jessica Rabbit com maquiagem gótica quem tivesse namorado. Mas não dava para voltar atrás – seria trabalhoso demais achar outra candidata e, além disso, o que fariam não era nada permanente. Nunca era permanente.
Mas que droga de perfume de flores – dava até arrepios.
Quando chegaram no sofá, a ruiva foi se jogando no meio, cobrindo tanto as pernas dele como as de Eddie. E, como ela acabou de frente para o outro anjo, Eddie começou a beijá-la intensamente.
Para um cara que não sabia se aproximar de mulheres, ele tinha um apetite e tanto.
Enquanto Ad assistia, e impulsionava seu quadril e peito contra o corpo da mulher, pensou que era incrível o poder que um pesadelo pode ter. Era como se toda aquela merda que ele imaginara sobre Eddie tivesse realmente acontecido: aquele lacaio do demônio aparecendo do nada e rasgando o anjo com uma lâmina, tirando a letra I da palavra imortal. E então a morte, no saguão daquele banco, não muito longe dali. E depois o sofrimento de Adrian, a sensação de ter perdido toda a razão de viver...
Adrian franziu a testa e se perguntou por que falava consigo mesmo como se aquilo realmente tivesse acontecido...
A ruiva se arqueou e abriu as pernas, claramente o convidando-o para brincar no parquinho. E quando ele obedeceu, Eddie passou a trabalhar em seus peitos, baixando um pedaço da blusa, de forma mais agressiva do que o normal, e expondo um par de seios menor do que aparentava.
Quando Adrian estava prestes a mergulhar a mão em território inexplorado, a garçonete apareceu trazendo novas garrafas. Parecia acostumada com aquele showzinho, pois nem piscou ao servir a cerveja.
– Eu pago – disse Ad, tirando a carteira do bolso da calça e entregando uma nota de vinte. Quando a garçonete foi embora, ele olhou para a cerveja, e então virou imediatamente para Eddie. – Coors Light? Que merda é essa?
O outro anjo parou o beijo e deu de ombros.
– Estou controlando meu peso.
Ad revirou os olhos e voltou ao trabalho com o prato principal. Subindo as mãos debaixo da saia curta, ficou surpreso ao descobrir uma calcinha com a resistência de vigas de aço e a elasticidade de uma tenda do exército. Que diabos? Bem, ele pensou, uma calcinha modeladora era mais barata do que uma sessão de lipo.
O perfume voltou a invadir seu nariz, sugerindo que, afinal, talvez não viesse da mulher.
Olhou ao redor, mas não enxergou nada fora do comum.
– Acho que você deveria ser o primeiro – disse Eddie, enquanto brincava com aqueles seios... que agora pareciam meio caídos.
E aquele cabelo. Antes era volumoso e ondulado, agora parecia um pouco crespo.
A mulher sorriu, revelando dentes tortos.
– Vai, Adrian... transa com ela – na escuridão, os olhos de Eddie pareciam tudo menos brilhantes. – Quero assistir vocês.
A mulher tomou a mão de Ad e a colocou de volta entre suas pernas, esfregando a si mesma contra sua palma e dedos...
No meio da multidão, uma pessoa surgiu: uma figura alta e orgulhosa, vestindo um roupão branco. Quando se aproximou, o cheiro de flores ficou mais forte e tomou todo o ar ao redor...
Eddie.
Era o Eddie real, de pé ali na sua frente, uma presença verdadeira em meio a uma multidão de mortos vivos.
– Ah, que merda! Justo agora que as coisas estavam ficando interessantes!
Ad virou a cabeça bruscamente. Devina estava ao seu lado na outra ponta do sofá, pela primeira vez mostrando sua forma verdadeira: era um cadáver animado, a carne perpetuamente caindo dos ossos, a grotesca palma apodrecida passeando pelos seios da ruiva. A expressão do demônio mostrava irritação, seu queixo e lábios estavam apertados ao máximo.
Adrian gritou e tentou se levantar rapidamente, mas a ruiva segurou sua mão no lugar – e, enquanto ele lutava contra sua imensa força, ela também revelou sua verdadeira aparência: outro corpo decrépito, a ilusão de beleza sumindo como se não fosse mais possível sustentá-la.
Enquanto ele tentava se desvencilhar, uma mancha negra começou a subir ao longo do braço, primeiro nos dedos, depois nos pulsos, seguindo seu caminho para o cotovelo.
Gritando alto, ele se sacudiu violentamente, mas estava preso como uma mosca em uma teia de aranha, como um rato em uma ratoeira, como um...
Eddie, o verdadeiro, aquele que estava morto, quebrou aquela conexão com um simples toque, não em Ad, mas na ruiva: aparecendo atrás deles de repente, apenas se inclinou e encostou o dedo iluminado no ombro do monstro. Puff! Ela simplesmente sumiu.
Enquanto Devina xingava o anjo, Adrian se libertou: seu corpo caiu para trás do sofá, com os olhos fixos em Eddie enquanto o coração se partia novamente por causa da perda.
– Vá se foder! – Devina gritou para o anjo.
O rosto de Eddie, aquele rosto esperto, gentil e maravilhoso, não mostrou reação ao insulto. Ele apenas acenou com a cabeça para a garrafa de cerveja Coors e disse:
– Na sua condição, eu estaria preocupado com muitas outras coisas mais importantes do que meu peso.
Mais xingamentos vieram, mas Devina não fez nada além disso – era de se imaginar o que Eddie tinha realmente feito com aquele dedo luminoso do E.T.
O outro anjo observou Ad por um longo tempo, como se sentisse ainda mais falta do amigo vivo.
– Nunca estarei longe – disse Eddie com um sussurro.
– Ah, merda... não vá embora – murmurou Ad. – Fique aqui.
– Que comovente – os olhos negros de Devina estavam furiosos. – Você quer dar um beijinho antes de ir embora?
Eddie começou a se mover como se fosse uma estátua em uma esteira rolante, seu corpo paralisado sendo puxado através da multidão, o perfume de flores se desvanecendo.
– Eddie! – quando Adrian levantou as mãos na direção do anjo, a mancha negra em seu braço quase chegava aos ombros.
– Estou dentro de você – disse Devina com satisfação. – E é tarde demais pra fazer qualquer coisa a respeito disso. Tarde demais!
Adrian gritou a plenos pulmões.
CAPÍTULO 7
Matthias acordou com a luz do dia batendo em seu rosto. Não tinha certeza de quando aquela enfermeira de mão boba saíra, mas ele pretendia partir assim que ela fosse embora. Um sono não natural o arrebatara, deixando-o inconsciente de tal forma que se sentiu dominado.
Francamente, estava surpreso por ter conseguido acordar.
O quarto do hospital parecia exatamente o mesmo, mas por que haveria de mudar durante a noite? E Matthias sentia-se mesmo melhor, como se seu corpo fosse um carro recém-saído do mecânico.
Quem diria que uma masturbação não solicitada poderia ter um impacto tão grande...
Mas era estranho. Quando olhou ao redor, teve a sensação de que era um milagre o fato de ele ainda estar “do lado de fora”. Mas estava fora de onde? Uma prisão? Um hospício? Algo ainda pior?
Forçando seu cérebro confuso a prestar atenção, tentou lembrar onde estivera na noite anterior, o que havia acontecido antes de acordar ali...
Eu te atropelei. Sinto muito.
Matthias fechou os olhos e se lembrou daquela mulher, Mels Carmichael. Alguma coisa nela penetrara o nevoeiro que o cercava, tocando-o onde realmente importava. Por quê? Não fazia ideia – mas sabia que, sob outras circunstâncias, gostaria de passar mais tempo com ela.
Muito mais.
Mas, qual é, ele não era do tipo romântico – sua intuição dizia isso em alto e bom som.
Levantando a cabeça dos travesseiros, ficou surpreso por não se sentir pior. Deu uma chance a seu corpo para deixar a ficha cair e começar a dar as informações corretas, algo mais consistente para alguém que fora atropelado há menos de doze horas.
Nada. Ainda sentia-se bem...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Certo, ajudaria se soubesse quem estava atrás dele, ou por que estava fugindo, mas não perderia tempo tentando decifrar essas perguntas – não quando sua adrenalina estava consistentemente apontando para a saída e gritando para ele dar o fora dali.
– Acho que você não é um anônimo, afinal.
Matthias tentou sacar uma arma que não tinha e olhou ao redor. A enfermeira estava de volta, de pé ao lado da porta, aparecendo como se fosse carregada pelo vento.
Sua aparência era diferente sob a luz do dia. Já não parecia sedutora.
Talvez ela fosse um vampiro. Há, há.
– Encontraram sua carteira – ela disse, mostrando uma carteira de couro preto. – Está tudo aqui, identidade, cartão de crédito... até seu cartão de seguro saúde! A conta no hospital vai ficar cara, mas a maioria das despesas está coberta.
Ela andou e colocou a carteira na mesa de rodinhas, bem ao lado do cartão que aquela jornalista tinha deixado. Então ela deu um passo para trás, como se soubesse que ele queria espaço.
Houve uma longa pausa.
– Obrigado – ele disse, tentando preencher o silêncio.
Ela estava vestida com roupas casuais: jeans azul, sapatos pretos, jaqueta branca folgada que parecia nova em folha. O cabelo estava solto e chegava até os ombros, e ela o alisou com a mão, mesmo já estando perfeito.
– Também trouxe algumas roupas – ela acenou com a cabeça. – Estão no armário atrás de você. Espero que sirvam.
– Então vão me liberar?
– Desde que se sinta bem esta manhã. Tem alguém te esperando em casa?
Ele não respondeu – e não por não saber a resposta. Nunca respondia nada para ninguém. Esse era seu jeito.
Mais uma longa pausa.
Ela limpou a garganta e desviou os olhos quando disse:
– Escuta, sobre ontem à noite...
Então era por isso que ela estava ali.
– Vou me esquecer disso, e você deveria fazer o mesmo – ele disse secamente.
Deus sabia que Matthias tinha problemas mais importantes do que ter sido abusado por uma mulher bonita. Pois é, que história triste. Especialmente se comparada com as coisas que ele fez com outras pessoas...
Lembranças emergiram do fundo de sua consciência, como um monstro esquecido num lago profundo ameaçando se revelar.
Afinal, quem era ele?
De repente os olhos negros da enfermeira grudaram nos seus.
– Sinto muito mesmo. Aquilo foi muito errado da minha parte. Nunca deveria ter...
Voltando ao presente, Matthias pensou que era engraçado que, à luz do dia, todo aquele poder que ela tinha sobre ele houvesse desaparecido totalmente. Ela nem parecia ser o tipo de mulher que poderia ser tão agressiva. Era apenas uma jovem enfermeira bonita, com um belo corpo e um cabelo lindo, e que agora parecia vulnerável.
Será que aquilo tinha mesmo acontecido? Ele provavelmente recebera vários analgésicos, e Deus sabe o quanto esses remédios podem bagunçar a cabeça de uma pessoa.
Por outro lado, se nada tivesse acontecido, ela não estaria ali se desculpando, não é?
– Foi uma total quebra de protocolo, eu nunca fiz nada assim antes. É só que... você estava com tanta dor, e você queria... e...
Ele queria? Lembrava-se do completo oposto. E lembrava que... teve um orgasmo. Talvez isso também não tivesse acontecido.
O que faria sentido.
– Enfim, pensei que deveria te dizer isso antes de ir embora... e você não vai mais estar aqui quando eu voltar da minha folga.
Ela parecia honestamente envergonhada e constrangida. Por alguma razão, Matthias teve a sensação de que fazia parte de sua personalidade tirar vantagem das pessoas, por nenhum motivo além de deixá-las constrangidas.
– Foi minha culpa – ele se ouviu dizer e, no instante que as palavras saíram, acreditou na confissão. – Sou eu quem deveria pedir desculpas.
Afinal, sexo por piedade acontecia sempre com um mesmo princípio, quer o ato fosse até o fim ou não: “oh, estou doente; pode cuidar do meu pau? obrigado, querida”.
A enfermeira pousou a mão na armação da cama.
– Eu só... é, bom, só não quero que pense que fico por aí fazendo essas coisas – ela riu, sem jeito. – Não sei por que isso importa. Mas importa.
– Você não precisa se explicar.
Quando ela ergueu o olhar, sua expressão cuidadosa relaxou e se transformou em um sorriso genuíno. O que o fez checar seu dedo anelar procurando por algum certificado de casamento.
Nada. Nenhuma aliança.
– Obrigada por não ficar bravo – ela olhou por cima do ombro em direção à porta. – Acho que eu deveria ir. Se cuide... e por favor lembre-se de fazer a consulta de retorno com seu médico. Lesões na cabeça e perda de memória são coisas sérias.
– Sim. Vou fazer isso.
Mentir foi muito fácil, Matthias sabia que tinha mentido muito durante sua vida. E quando acenou de volta, sua mente a analisava como se ela fosse um relatório ou uma correspondência, não uma pessoa – mas isso não era culpa dela.
Ele sentia que era assim que sua mente funcionava.
Ótimo. Nada como acordar de manhã e aprender passo a passo que você é um verdadeiro filho da puta.
Observou a mesa ao lado da cama. O cartão de visitas e a carteira estavam um ao lado do outro.
Matthias estendeu a mão, sem saber qual deles pegar.
No fim, a atração pela carteira parecia maior. Ao abrir o couro dobrado, observou a carteira de motorista que estava na parte transparente. A foto era... bem, não reconhecia aquele rosto, mas a enfermeira da mão boba parecia pensar que era ele. Era assim que se parecia? Um cara de cabelo preto e um rosto bonito, porém frio.
As informações impressas diziam que ele tinha olhos azuis – e naquela foto parecia que ambos funcionavam. A data de nascimento era naquele mesmo mês. E a data de validade já havia passado.
O primeiro nome, Matthias, de fato era como as pessoas o chamavam. O endereço ficava na cidade de Caldwell, Nova York, o que resolvia o problema geográfico... que ele nem percebera ter.
Caldwell, Nova York.
Estava de volta. Pelo menos era isso que seus instintos diziam...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Deixando a urgência de lado, começou a sair da cama devagar. Quando percebeu que estava preso, retirou as sondas intravenosas e o monitor cardíaco. Inclinando-se até os equipamentos ao lado, desligou os alarmes e arrastou-se para o banheiro.
A luz estava apagada, e quando apertou o interruptor... o show começou.
Matthias quase perdeu o fôlego ao ver a própria imagem refletida no espelho da pia. Um de seus olhos exibia um branco leitoso, e seu rosto estava esculpido com as linhas indeléveis de um passado cheio de dor – além de cicatrizes na testa onde sua lesão ocular aconteceu.
A fotografia na identidade era mesmo dele, principalmente se você adicionar um pouco de cabelo grisalho nas laterais, mas tinha sido tirada antes de...
– Senhor, preciso pedir que volte para a cama, pois está correndo o risco de escorregar e cair. E não deveria ter tirado as...
Ele ignorou a nova enfermeira.
– Estou indo embora. Agora mesmo. As regras do hospital, é, eu sei.
Fechou a porta na cara dela e abriu o chuveiro. Por alguma razão, quando voltou a focar o espelho, pensou em Mels Carmichael. Não foi à toa que a primeira reação dela ao vê-lo fora na linha do oh, meu Deus.
Ele não estava exatamente bonito...
Deus, por que estava pensando daquela maneira? Que importava o que os outros achavam dele?
Com a coordenação melhorando depressa, abriu a porta e olhou para dentro do quarto. A enfermeira não estava mais ali, mas com certeza voltaria trazendo alguém com um crachá de médico – era hora de se mexer rapidamente. Agarrou o cartão que Mels deixara e o guardou na carteira. Então pegou as roupas do armário e se trancou no banheiro.
Dez minutos mais tarde, Matthias estava com os cabelos e o corpo limpos, vestindo camiseta e jaqueta pretas e um jeans folgado.
Ao caminhar para fora do quarto, agarrou uma bengala que assumiu estar lá para ele.
O objeto parecia natural em sua mão e fez seus passos ficarem muito mais rápidos. Como se estivesse acostumado a usá-la.
Dirigindo-se para os elevadores, não pediu autorização para ninguém, não assinou nenhuma linha tracejada. O departamento de cobrança encontraria o homem que morava no endereço que aparecia na carteira de motorista.
E talvez ele também encontrasse esse homem.
O grito de Adrian acordou Jim e o fez saltar da cama, aterrissando em uma posição de luta. Com uma adaga de cristal em uma das mãos e uma pistola semiautomática na outra, estava pronto para lutar, fosse na arena dos humanos ou na de Devina. O Cachorro, que não era bobo, estava se protegendo debaixo da cama.
– Estou bem – disse Adrian, com a convicção de alguém que estava sangrando por uma veia.
Claro, com certeza, pensou Jim, que chegara correndo.
Sob a luz do sol que raiava entre as persianas, o anjo parecia completamente acabado, esparramado ali no chão, com grandes olheiras, cabelo desarrumado, mãos tremendo ao puxar a gola de sua camiseta Hanes. Seus piercings, aquelas argolas de metal que circulavam seus lábios, todo o lado da orelha e marcavam sua sobrancelha, eram as únicas coisas que brilhavam. Tudo o mais parecia sem vida.
Sua luz interior havia se apagado.
Jim estendeu a mão para o cara.
– Hora de levantar.
O outro anjo tomou sua mão, e por um momento os músculos de Jim ficaram tensos ao sentir uma desagradável pontada fluindo por seu braço e ativando seus instintos de um modo ruim. Mas então levantou Ad do chão, e aquilo desapareceu.
– Você já foi encontrar Nigel e os garotos? – perguntou Ad, enquanto andava como se tentasse se livrar da sensação ruim que tivera durante o sono.
– Por que eu faria isso?
– Boa pergunta.
Com essa deixa, Adrian foi até o banheiro e fechou a porta. Depois da descarga, o chuveiro foi ligado, e então foi a vez da pia.
Jim aproximou-se da porta e falou através da madeira fina:
– Você sonhou com o quê?
Quando não obteve resposta, fechou o punho e bateu.
– Adrian. Conte o que foi.
Deus sabia que Devina usava todo tipo de truques para conseguir o que queria. A ideia de que ela poderia invadir a cabeça de Ad pela porta dos fundos soava bem óbvia.
Bateu de novo na porta.
Quando não houve resposta novamente, Jim mandou a privacidade para o inferno e entrou.
Através da cortina de plástico do chuveiro, viu Adrian no chão de novo, desta vez com o piso frio do banheiro sob seu traseiro. Estava encolhido, com os cotovelos contra o peito, o rosto enterrado nas mãos. Não estava chorando, ou praguejando, nem parecia desesperado, mas talvez isso fosse o mais preocupante. O anjo estava apenas sentado debaixo da água quente, seu grande corpo enrolado em si próprio.
Jim abaixou o assento da privada e sentou.
– Converse comigo.
Depois de um momento, o anjo disse com a voz rouca:
– Ela era o Eddie. No meu sonho, ela era o Eddie.
Merda.
– Isso faria qualquer um gritar.
– Ele estava lá também. Foi ele quem me acordou, na verdade. Droga, Jim... ver Eddie de novo foi...
Enquanto a frase sumia, Jim inspecionou a lâmina de sua adaga com um cuidado especial.
– É, eu sei.
– Vou matá-la.
– Só se chegar antes de mim.
Adrian deixou os braços caírem para os lados e seus punhos acertaram a poça de água que se acumulava ao redor de seu corpo. Ele parecia derrotado, mas seria apenas por um momento. Sua raiva retornaria assim que aquele demônio aparecesse por perto e, francamente, a previsível resposta seria um problema: ninguém quer ver o próprio parceiro ficar cego pela raiva, e aquele sentimento não era fácil de controlar.
– Acho que você precisa pedir um novo parceiro para Nigel – Ad disse suavemente. Como se tivesse lido os pensamentos de Jim.
– Não quero outra pessoa.
Mas isso era mentira. Ainda estava aprendendo a lidar com as próprias habilidades e armas – claro, a curva de aprendizado já não era mais tão íngreme quanto nas primeiras rodadas, mas ele ainda estava longe de saber tudo. E Devina não era o tipo de inimigo contra o qual um desempenho mediano fosse aceitável.
Por causa disso, ele precisava de um parceiro sólido lhe dando cobertura.
Honestamente, Eddie era a peça que estava faltando. E fora precisamente por isso que o inimigo o abatera.
Maldita vadia!
– Você conhece mais alguém? – perguntou Jim.
– Tinha outro cara; na verdade, ele ficava acima de mim e de Eddie. Quase no nível de Nigel e Colin. Mas ele teve problemas. A última vez que ouvi falar, ele estava preso no Limbo. Bom, mas era um cara imprevisível. Talvez você fique melhor comigo mesmo, nesse caso.
– Temos que trazer Eddie de volta de alguma maneira...
– Ele era o único que saberia como fazer isso – Adrian soltou um grunhido e ficou de pé, sua figura massiva se erguendo como uma árvore. – Talvez o Colin.
Jim assentiu e voltou a observar sua adaga de cristal. A arma era transparente como um cubo de gelo, forte como aço, leve como uma pena. Fora Eddie quem lhe dera.
Ouviu um barulho de algo caindo no chão molhado e voltou os olhos para o parceiro. Ad deixara cair o sabonete, suas mãos estavam erguidas próximas ao rosto e sua boca parecia tentar praguejar.
– O que foi?
– Ah... merda... – Ad observou as costas das mãos. – Merda, não...
– O quê?
– Estão pretas – o anjo mostrou os braços. – Você não vê? Ela está dentro de mim, Devina está dentro de mim... e está me dominando...
Jim ficou aturdido por um momento, mas sabia que precisava fazer alguma coisa para trazer aquela situação de volta à realidade, e mais que depressa. Deixou a adaga na pia, tirou a cortina de plástico do caminho e agarrou os pulsos de Adrian.
Aquela sensação ruim se apoderou dele de novo, estimulando as terminações nervosas de seus dedos e palmas, como se as tivesse mergulhado em ácido. Concentrou-se na pele de Adrian e imaginou o que diabos tinha acontecido naquele sonho.
Mas a carne estava completamente normal. E pessoas que perdem seus melhores amigos têm motivos de sobra para perder também a razão. Mas não podiam permanecer assim.
– Adrian, meu amigo... – ele deu uma bela sacudida no cara – ei, olhe para mim.
Quando o pobre coitado finalmente olhou, Jim encarou aqueles olhos como se estivesse entrando em sua mente e tomando parte de seu cérebro.
– Você está bem. Não há nada de errado aqui. Ela não está dentro de você, ela não está aqui e...
– Você está errado.
As palavras sombrias fizeram Jim parar de repente. Mas então balançou a cabeça.
– Você é um anjo, Adrian.
– Eu sou?
Com a voz grave, Jim respondeu:
– Digamos que... é bom que você seja.
Após um silêncio tenso, os lábios de Jim começaram a se mover, palavras eram ditas, sílabas sensatas e apaziguadoras cruzavam a distância que os separava. Mas, no fundo de sua mente, ele rezava por quem quer que estivesse ouvindo.
Devina era um parasita, o tipo de coisa que invade as pessoas e as infecta.
Fazia sentido que alguém emocionalmente abalado fosse mais vulnerável.
Porém, a tragédia era que ele não podia ter o inimigo tão perto assim.
Não importava o quanto amasse seu amigo.
CAPÍTULO 8
– O que aconteceu com seu olho?
Mels entrou na cozinha de sua mãe, não respondeu a pergunta e foi direto para a garrafa de café. O fato de o objeto estar do outro lado, e por isso permitir que ela tomasse o café de costas para a mãe, era um bônus além da cafeína.
Maldita maquiagem. Elas supostamente serviam para cobrir aquilo que você queria esconder. Como pés de galinha, olheiras... e hematomas de acidentes de carro sobre os quais você preferia que sua família não ficasse sabendo.
– Mels?
Não precisava se virar para ver o que estava atrás dela: sua mãe, magrinha e baixinha, aparentando ser mais jovem do que era, estaria sentada do outro lado da mesa, com o Correio de Caldwell aberto ao lado de uma tigela de cereal rico em fibras e uma xícara de café. Os cabelos lisos pretos com mechas grisalhas estariam penteados num corte bem aparado, e as roupas seriam casuais, mas parecendo perfeitamente passadas a ferro.
Sua mãe era uma dessas mulheres pequeninas que sempre pareciam bem arrumadas, mesmo sem maquiagem. Como se tivesse nascido com uma lata de spray para cabelo debaixo de um braço e uma escova debaixo do outro.
Mas ela era frágil. Como um bibelô gentil e bondoso.
Era uma porcelana delicada, em contraste com o touro que fora seu pai.
Sabendo muito bem que a pergunta ainda estava no ar, Mels serviu-se de café. Tomou um gole. Manteve-se ocupada passando uma toalha de papel em um balcão que já estava limpo e seco.
– Ah, não foi nada. Escorreguei e caí. Bati a cabeça na torneira do chuveiro. Foi tão estúpido!
Houve um momento de silêncio.
– Você chegou tarde ontem à noite.
– Fiquei na casa de uma amiga.
– Você não tinha falado que ia num bar?
– Fui pra casa dela depois do bar.
– Ah. Entendi.
Mels ficou observando a janela em cima da pia. Com sorte, sua tia ligaria a qualquer momento, como geralmente fazia, e ela não teria que inventar mais uma mentira para explicar por que voltara de táxi do trabalho.
Os sons de goles de café e cereal sendo mastigado preencheram a cozinha, e Mels tentou pensar em algum assunto minimamente normal para conversarem. O clima. Esportes – não, sua mãe não tinha interesse em atividades organizadas que envolviam campos, bolas ou raquetes de qualquer tipo. Livros seria uma boa opção – porém Mels não lia nada além de estatísticas criminais, e sua mãe ainda estava no trem do Clube do Livro da Oprah, mesmo esse trem já não tendo motor ou trilhos.
Deus... momentos como esse a faziam sentir tanta falta do pai que até doía. Os dois nunca ficavam constrangidos um com o outro. Nunca. Conversavam sobre a cidade, ou sobre seu trabalho como policial, ou sobre a escola... ou simplesmente ficavam em silêncio – e, de um jeito ou de outro, nunca havia problema. Mas com sua mãe?
– Então – Mels tomou outro gole de café –, o que vai fazer de bom hoje?
Recebeu uma resposta, mas não a ouviu porque seu desejo de sair gritava alto demais.
Mels terminou o resto de seu café preto – sua mãe tomava com leite e açúcar –, colocou a xícara na lava-louça e cruzou os braços.
– Então, vejo você à noite – ela disse. – Não vou chegar tarde. Prometo.
Os olhos de sua mãe se levantaram para encontrar os dela. A tigela cheia de cereal integral era rosa e tinha pequenas flores brancas em volta, a toalha de mesa tinha flores amarelas e o papel de parede tinha flores maiores azuis.
Flores por toda a parte.
– Você está bem? – perguntou a mãe. – Precisa ir ao médico?
– É só um machucado. Nada de mais – olhou para a sala de jantar. Do outro lado da mesa de mogno, depois da cortina branca, um Chevrolet amarelo estacionou. – O táxi chegou. Deixei meu carro no bar porque bebi uma ou duas taças de vinho.
– Ah, você podia pegar o meu carro para ir trabalhar.
– Você vai precisar dele – ela olhou para o calendário pendurado na parede, rezando para que algo estivesse marcado ali. – Hoje você tem jogo de cartas às quatro.
– Eu podia ir de carona. Ainda posso, se você quiser...
– Não, é melhor assim. Posso pegar meu carro e dirigir de volta pra casa.
Droga. Acabara de criar um problema. A única maneira de Fifi ir para qualquer lugar seria na traseira de um caminhão de guincho – a pobrezinha fora levada para um mecânico.
– Ah. Tá bom.
Quando sua mãe caiu no silêncio, Mels teve vontade de pedir desculpas, mas era difícil demais colocar aquele complicado desculpe em palavras. Inferno, talvez ela precisasse simplesmente se mudar dali. Ficar constantemente exposta àquela bondade e autossacrifício, em vez de ser uma alegria, era um peso muito grande para carregar, pois nunca tinha um fim. Sempre havia uma sugestão, uma oferta, um quer-que-eu-isso-ou-aquilo...
– Preciso ir. Mas agradeço.
– Tá bom.
– Vejo você à noite.
Mels beijou o rosto macio que sua mãe ofereceu e saiu apressada pela porta da frente. Lá fora o ar estava fresco e agradável e o sol brilhava, prometendo calor na hora do almoço.
Entrando no banco de trás do táxi, ela disse:
– Escritório do Correio de Caldwell, na rua Trade.
– Pode deixar.
A caminho do centro da cidade, as molas do banco do táxi pareciam feitas de aço, e o estofado não era muito diferente de cimento, mas ela nem se importou com a viagem desconfortável. Sua mente estava caótica demais para pensar em seu traseiro sendo castigado por um banco duro.
Aquele homem da noite anterior ainda estava em seus pensamentos – podia quase senti-lo ao seu lado.
Fora assim durante toda a noite.
Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos e relembrou o acidente, checando duas, três vezes para ter certeza de que não poderia ter feito nada para evitá-lo. Então ficou pensando em outras coisas, como a maneira como o homem ficara deitado, totalmente imóvel, naquela cama de hospital.
Mesmo machucado, em alguns lugares com gravidade, ele ainda parecia um... predador.
Um poderoso animal, ferido, mas...
Certo, agora ela realmente estava perdendo a cabeça. E talvez devesse olhar mais de perto para sua vida amorosa – que era completamente vazia...
Infelizmente, Mels não conseguia parar de pensar na estranha atração que aquele homem exercera. Que desagradável, ela deveria é estar preocupada com a saúde e o bem-estar dele, além da possibilidade de querer processá-la e tirar dela o pouco que tinha.
Em vez disso, ela ficou pensando no som daquela voz rouca, e na maneira como ele a observara, como se qualquer detalhe dela fosse uma fonte de fascinação e importância...
Ele fora ferido há algum tempo, ela pensou. As cicatrizes ao lado do olho tinham se curado com o tempo.
O que será que acontecera com ele? Como era seu nome...?
Enquanto ela vagava pela terra das perguntas sem resposta, o motorista do táxi fez seu trabalho discretamente. Dezesseis dólares, dezoito minutos e um traseiro dolorido depois, ela chegou à redação.
O local já estava barulhento, com pessoas falando e andando apressadas, e aquele caos acalmou seus nervos – da mesma maneira que uma aula de ioga a deixava nervosa.
Ela sentou em sua mesa, checou o correio de voz, entrou em seu e-mail e pegou a xícara que vinha usando desde que herdou aquele lugar, há pouco mais de um ano e meio. Caminhou até a cozinha coletiva e encontrou seis opções de potes de café: nenhum deles era descafeinado; três eram da boa e velha marca Maxwell House; e os outros eram aquele horror com essência de nozes, um daqueles macchiato-sei-lá-o-quê.
Dane-se esse último. Se quisesse uma droga de um sorvete de caramelo, ela pediria um no almoço. Aquela coisa não devia ser colocada em uma xícara de café.
Enquanto servia seu café preto e puro, pensou na verdadeira dona da xícara, Beth Randall, a jornalista que sentara naquele cubículo por... bem, devia ter sido mais de dois anos. Em uma certa tarde, a mulher partira e nunca mais voltara. Mels lamentava o desaparecimento – não que conhecesse a colega muito bem – e sentia-se mal porque foram nessas as circunstâncias que ela finalmente conseguira um lugar só para ela.
Mantivera a xícara por nenhuma razão especial. Mas agora, enquanto tomava um gole, percebeu que a guardara por ainda ter esperança de que a mulher retornasse. Ou que pelo menos estivesse bem.
Parecia que Mels estava rodeada de pessoas desaparecidas.
Ou pelo menos foi assim que se sentiu naquela manhã. Principalmente quando pensou sobre o homem da noite anterior – aquele que nunca veria novamente, mas que não conseguia tirar da cabeça.
Aquela não era sua casa.
Quando o táxi estacionou em frente a um rancho em uma vizinhança modesta, Matthias sabia que não morava sob aquele teto. Nunca tinha morado. Não iria morar.
– Você vai descer do carro ou não?
Matthias encontrou os olhos do motorista através do retrovisor.
– Me dê um minuto.
– O taxímetro está correndo.
Concordando, ele desceu e usou a bengala para andar no passeio que levava à frente da casa, balançando a perna machucada em um longo arco para não ter de dobrar os joelhos. Não havia nada de lar, doce lar: a trepadeira invadia as janelas. O gramado não estava aparado. As calhas estavam cheias de mato que subia alto em busca do sol.
A porta da frente estava trancada, então ele fez uma viseira com as mãos para tentar olhar pela janela. Viu camadas de poeira. Móveis que não combinavam. Cortinas envelhecidas.
Havia uma caixa de correio barata pregada na parede. Ele abriu a tampa. Propagandas. Um talão de cupons de desconto endereçado ao “ocupante”. Nada de contas, solicitações de cartão de crédito, cartas. A única outra correspondência era uma revista da AARP1 endereçada ao mesmo nome que havia na sua carteira de motorista.
Matthias enrolou a revista, guardou no bolso da jaqueta e voltou para o táxi. Aquela não era sua residência – e mais ninguém morava ali. A pessoa que vivia ali devia ter morrido, digamos, há umas quatro ou seis semanas – tempo suficiente para a família cuidar das contas, mas não para esvaziar a casa e colocá-la à venda.
Entrando no táxi, fixou o olhar à frente.
– Para onde?
Com um grunhido, Matthias se ajeitou e puxou a carteira. Pegou o cartão de Mels Carmichael e foi atingido por uma profunda convicção de que não deveria envolver aquela mulher.
Era perigoso demais.
– E então, chefe?
Mas, droga, ele tinha de começar por algum lugar. E seu cérebro estava como uma conexão de internet fora do ar.
– Rua Trade – murmurou.
Enquanto dirigiam-se para o centro da cidade em meio ao trânsito pesado, ele observou os outros carros, onde pessoas bebiam café, conversavam com outros passageiros, paravam nos sinais vermelhos, avançavam nos verdes. Um mundo que parecia muito distante dele. O tipo de vida em que a pessoa trabalha das nove às sete todo dia, até morrer aos setenta e poucos anos. Essa não era a maneira como Matthias vivia.
Então, como ele vivia?, perguntou ao seu cérebro idiota. Como diabos ele vivia?
Tudo o que recebeu de resposta foi uma dor de cabeça.
Quando o edifício do Correio de Caldwell surgiu, Matthias pegou uma das dez notas de vinte que tinha na carteira.
– Guarde o troco.
O motorista parecia mais do que feliz em se livrar dele.
Usando a porta da frente como apoio, Matthias emergiu do carro sob a luz do sol, tomando cuidado para não corresponder a nenhum dos olhares curiosos. E havia muitos deles. Por algum motivo, ele tinha a tendência de atrair atenção, geralmente das mulheres – se bem que ficar atraída por alguém machucado era coisa normal de mulher, e ele estava cheio de cicatrizes no rosto.
Uau, que romântico.
Por fim, sentou-se na cadeira de plástico duro do ponto de ônibus do outro lado da rua, respirando a fumaça dos fumantes impacientes que esperavam o transporte público. A espera não o incomodava. Era como se ele estivesse acostumado a espreitar. Para passar o tempo, inventou um jogo: memorizava os rostos das pessoas que entravam e saíam dos escritórios do Correio de Caldwell.
Matthias era extremamente bom nisso. Só era preciso uma olhada para adicionar a pessoa ao seu banco de dados interno.
Pelo menos sua memória de curto prazo estava funcionando...
As portas duplas se abriram e lá estava ela.
Matthias se ajeitou na cadeira quando a luz do sol atingiu os cabelos de Mels e fez brilhar vários tons de castanho. Mels Carmichael, repórter associada, estava junto de um cara bem arrumado que precisava puxar a calça cáqui para cima antes de pisar nos degraus. Os dois pareciam estar discutindo amigavelmente sobre alguma coisa e, quando Mels sorriu, parecia que ela vencera o debate.
Como se soubesse que estava sendo observada, Mels olhou para o outro lado da rua e parou de repente. Ela tocou a manga do casaco de seu colega e disse algo, então eles se separaram e ela começou a se aproximar de Matthias, andando no meio do trânsito.
Matthias cravou a bengala no chão, levantou-se e ajeitou as roupas. Não tinha ideia de por que queria se arrumar para ela, mas queria – mas não dava para parecer pior. Vestia roupas que não eram dele, ainda cheirava a quarto de hospital e lavara o cabelo com xampu antibacteriano, pois era o único disponível.
Naturalmente, a primeira coisa para a qual ela olhou foi seu olho ruim, aquela coisa feia e arruinada. Como não poderia?
– Oi – ela disse.
Mels estava linda com suas roupas normais do dia a dia: com aquela calça, a blusa de lã e o lenço bege que usava ao redor do pescoço, para Matthias ela poderia muito bem estar em uma passarela.
E continuava sem aliança.
Isso é bom, ele pensou, sem uma razão especial.
Desviando o olhar para a direita, esperando que assim seu defeito fosse menos aparente, ele respondeu:
– Oi.
Certo. Hum. E agora?
– Não estou te seguindo, eu juro – mentiroso. – Eu teria ligado, mas não tenho telefone.
– Não tem problema. Você precisa de alguma coisa? A polícia me ligou hoje de manhã, e acho que eles ainda querem falar com você.
– Pois é – deixou esse assunto do jeito que estava. – Escuta, eu...
O fato de que estava interrompendo uma frase no meio parecia pouco natural, mas seu cérebro simplesmente não conseguia produzir nada.
– Vamos sentar – ela disse, mostrando os assentos. – Não acredito que eles deixaram você sair.
Naquele momento, um ônibus chegou e parou, bloqueando a luz do sol e soltando uma fumaça que o fez tossir. Os dois sentaram e ficaram em silêncio enquanto esperavam os passageiros embarcarem.
O ônibus partiu e o sol reapareceu, banhando-a com sua luz amarela.
Por alguma razão estúpida, os olhos dele começaram a piscar com força.
– O que posso fazer por você? – ela perguntou suavemente. – Está sentindo dor?
Sim. Mas não era dor física. E piorava sempre que olhava para ela.
– Como você sabe que eu preciso de ajuda?
– Imagino que sua memória não tenha voltado magicamente.
– Não, não voltou. Mas isso não é culpa sua.
– Bom, eu te atropelei. Então estou te devendo uma.
Ele gesticulou mostrando a perna ruim.
– Eu já estava assim antes.
– Consegue lembrar de alguma coisa? Quer dizer, anterior ao acidente? – quando ele negou com a cabeça, ela murmurou: – Muitos militares também voltaram na sua condição.
Ah... ela queria dizer o Exército, Marinha, Aeronáutica. E parte disso parecia ser correto. O governo... sim, Matthias tinha alguma ligação com o Departamento de Defesa, ou com a segurança nacional... ou...
Mas não era um soldado abatido. Porque nunca fora um herói.
– Eles encontraram minha carteira – ele murmurou.
– Oh, isso é ótimo.
Por alguma razão, Matthias entregou o objeto para ela.
Quando Mels abriu e olhou a carteira de motorista, ela assentiu.
– Esse é você.
Observando o emblema do Correio de Caldwell sobre a porta da qual ela saíra, ele disse:
– Veja bem, tudo o que estou falando fica entre nós dois, certo?
– É claro.
– Gostaria de ter outra opção. Gostaria... não quero te colocar em encrenca.
– Você ainda não me pediu pra fazer nada – ela o observou. – Em que está pensando?
– Consegue descobrir quem é esse cara? – apontou para a carteira de motorista. – Porque não sou eu.
N.T.: AARP é uma ONG norte-americana destinada a defender os interesses dos cidadãos com mais de cinquenta anos.
CAPÍTULO 9
Durante o silêncio que se seguiu, tudo o que Mels podia pensar era no fato de que tivera plena certeza de que nunca mais veria aquele homem.
Pelo jeito, o destino tinha outros planos.
O homem de roupas pretas sentado ao seu lado era grande, supermalhado e dava a impressão de ser forte em todos os sentidos, com seus olhos estreitos e o queixo quadrado... mas parecia envergonhado de suas cicatrizes e do defeito na perna.
Olhando mais uma vez a carteira de motorista, ela franziu a testa. A foto parecia verdadeira, os hologramas estavam onde deveriam estar, altura, peso e data de nascimento estavam corretos, o endereço ficava ali mesmo em Caldwell – e não muito longe da casa de sua mãe, na verdade.
Ele provavelmente estava voltando para casa no momento do atropelamento. Assim como ela.
Observando agora o homem em vez da imagem, ela teve a sensação de que, para procurá-la, ele fizera um grande esforço e engolira o orgulho. Ele não parecia o tipo de pessoa que gostava de depender dos outros, mas a vida claramente não lhe deixara outra escolha.
Sem memória. Poucos recursos.
E com aqueles olhos assombrados e um corpo remendado, ele tinha de ser um militar, voltara da guerra apenas fisicamente, mas não em espírito.
Naturalmente, a jornalista dentro dela gostava de um bom mistério – e o fato de ter um pouco de culpa em relação à sua amnésia era outra razão para ela mergulhar de cabeça nisso. Mas Mels não era idiota. Não queria se envolver em algum tipo de drama, principalmente se ele fosse um maluco ou paranoico.
A foto era dele mesmo, sem dúvida.
– Odeio colocar você nessa posição – suas mãos grandes acariciaram a bengala que equilibrava nas coxas. – Mas não tenho mais ninguém. E a casa nesse endereço não é minha. Não sei onde moro, mas com certeza não é naquela casa. Eu chequei a correspondência quando fui até lá – ele recostou-se para o lado e retirou uma revista dobrada do bolso da jaqueta. – Encontrei isto. O nome está certo, mas eu não tenho mais de cinquenta e cinco anos. Por que isto estaria na minha caixa de correio, endereçado a mim?
Ela desdobrou a revista e observou o logotipo da AARP e a foto de uma graciosa modelo da terceira idade vestindo roupas de ginástica. O nome acima do endereço era Matthias Hault, e o número e rua eram os mesmos da carteira de motorista... talvez ele morasse com o pai e os dois tivessem o mesmo nome.
Mas um pai não teria ficado feliz em ver o filho aparecer na porta de casa?
– Eu poderia contratar um detetive particular – ele disse –, mas isso custa dinheiro, e nesse momento tenho apenas duzentos dólares no bolso... bom, cento e oitenta, depois que paguei o taxista.
– Tem certeza de que ninguém está tentando te encontrar? – quando ele permaneceu em silêncio, ela pensou que Matthias estava vasculhando sua memória, mas ele encontrou apenas o vazio, por culpa dela. – O que os médicos disseram? Como eu disse, honestamente, estou chocada de você estar de pé andando por aí.
– Então, você vai me ajudar? – ele respondeu.
Aquele era um momento de limite que precisava ser considerado com respeito. Mas ela decidiu cruzar a linha.
– Se eu ajudar, você vai ter que falar comigo. O que os médicos disseram?
Seu olho bom procurou ao redor, como se estivesse pensando em uma resposta.
– Fui embora sem avisar.
– O quê?! Por quê?
– Não me senti seguro. E não posso explicar mais do que isso. É tudo o que sei.
Estresse pós-traumático, ela pensou. Só podia ser.
Talvez se Mels confirmasse a identidade dele, sua mente poderia descansar e isso ajudaria na recuperação.
– Certo, vou fazer o possível – ela disse.
Matthias abaixou a cabeça, como se aceitar ajuda de outra pessoa fosse um tipo de derrota.
– Obrigado. Tudo o que preciso é de uma busca com esse nome. Um lugar para começar.
– Posso voltar pro escritório e fazer isso na minha mesa agora mesmo – ela apontou para o lado direito. – Tem um restaurante ao lado do rio, a uns dois quarteirões daqui. Você pode comer algo e eu te encontro lá assim que puder. Ah... claro, se você conseguir andar...
– Eu consigo chegar lá – ele disse, rangendo os dentes.
Ou morreria tentando, ela pensou, ao observar seu queixo contraído.
Que, por sinal, lembrava muito o ator Jon Hamm.
O homem levantou-se com a ajuda da bengala.
– Então eu te encontro lá. Não precisa se apressar.
Quando ele olhou para a rua, a luz do sol brilhou em seus olhos; tanto naquele que obviamente ainda enxergava como no que estava cego.
– Quer ficar com meus óculos escuros? – ela perguntou. – É um Ray-Ban, mais unissex que isso é impossível. E também não precisa de receita.
Ela não esperou ele dar uma de fortão e recusar. Pegou a caixa e a estendeu na sua frente.
Matthias Hault ficou observando a sua oferta por um longo tempo, como se o simples gesto fosse algo a que não estava acostumado.
– Aceite – ela disse suavemente.
Sua mão tremeu um pouco ao aceitar a caixa, e ele não a olhou mais nos olhos.
– Não vou riscá-los. E vou devolver no restaurante.
– Sem pressa.
Quando ele colocou os óculos escuros, seu rosto se transformou em algo... inegavelmente perigoso.
E definitivamente sensual.
Um calor percorreu o corpo de Mels, atingindo-a num lugar que há muito tempo não se acendia.
– Melhor? – ele disse.
– Eu acho que sim.
Ele ainda se recusava a olhar para ela. Seus ombros e costas estavam retos, os lábios tensos. Um homem tão orgulhoso, preso daquele jeito em uma posição de fraqueza...
Ela sempre lembraria daquele momento, pensou, sem qualquer motivo. Sim, este momento agora, com o sol brilhando nas feições endurecidas de seu rosto bonito.
Aquilo era um momento decisivo, concluiu. Essa intersecção aparentemente aleatória entre os dois mudaria as coisas para sempre.
– Eu queria te perguntar uma coisa – ele disse.
– O quê? – ela sussurrou, imersa em um momento que não podia compreender totalmente.
– Onde aconteceu o acidente?
Sacudindo a si mesma, ela puxou seu cérebro de volta à realidade.
– Foi, ah, bem ao lado do Cemitério Pine Grove. Perto de onde moro. Não muito longe do bairro onde fica sua casa.
– Um cemitério.
– Isso mesmo.
Ele assentiu e, quando começou a caminhar em direção ao restaurante, ela podia jurar que o ouviu dizer “Por que isso não me surpreende?”.
O Riverside Diner era um restaurante típico de cidade pequena americana. Cheio de estofados de couro sintético, cortinas com estampa xadrez e garçonetes mal-humoradas. A comida era gordurosa, mas de uma maneira gloriosa, e quando Matthias cortou seus ovos mexidos com o garfo, seu estômago roncou como se fizesse anos que não comia.
Já era tarde para o café da manhã, mas não existe acompanhamento melhor para uma xícara de café do que ovos e bacon.
Enquanto comia, os óculos escuros que recebera da repórter eram uma benção, pois lhe permitiam ficar de olho nas pessoas que entravam e saíam, nas garçonetes indo e vindo, e nos fregueses que entravam no banheiro e em quanto tempo ficavam lá.
Mas vigilância não era o motivo de Mels ter lhe emprestado os óculos.
Droga. Por que aquela mulher fazia ele desejar não ter mais seus defeitos?
– Mais café? – perguntou a garçonete.
– Sim, por favor – ele ofereceu a xícara e ela despejou o café fumegante. – E mais um prato de tudo isto também.
Ela sorriu como se estivesse calculando uma gorjeta maior.
– Você come bem.
Quando não se sabe quando ou onde vai ser a próxima refeição, é melhor fazer valer a pena, ele pensou consigo mesmo.
A repórter apareceu pouco depois de Matthias terminar o segundo café da manhã. Ela olhou para a esquerda e depois para a direita e o encontrou sentado nos fundos, ao lado da saída de emergência. Então começou a percorrer o longo caminho de mesas vazias.
Quando sentou à sua frente, seu rosto estava vermelho, como se tivesse se apressado.
– Devia estar lotado quando você chegou – ela disse.
– Estava – mentira: ele queria ficar nos fundos para o caso de precisar sair às pressas.
A garçonete voltou com o pote de café.
– Olá... gostaria de café?
– Sim, por favor – Mels tirou a blusa. – E o meu de sempre.
– Almoço ou café da manhã?
– Almoço.
– Já está saindo.
– Você almoça sempre aqui? – ele perguntou, imaginando por que se importava.
– Duas, três vezes por semana, desde que comecei a trabalhar no jornal.
– E quando começou?
– Um milhão de anos atrás.
– Engraçado, você não parece um dinossauro.
Sorrindo um pouco, ela tomou um gole do café e se preparou para a conversa. Seus lábios ficaram tensos e seus olhos se estreitaram.
Ela ficava sexy daquele jeito. A intensidade. O foco. Naquele momento, ela o fazia se lembrar de si mesmo...
E isso era um milagre, se você pensar que Matthias tinha a mesma quantidade de informação sobre os dois... sendo ela uma estranha.
– Diga o que descobriu – ele exigiu.
– Você está morto.
– E eu que achei que era só uma sensação.
Durante a pausa que se seguiu, ele podia sentir que Mels tentava entendê-lo.
– Você não está surpreso – ela disse.
Ele observou sua xícara meio vazia e balançou a cabeça.
– Eu sabia que havia algo de errado naquela casa.
– O dono verdadeiro desse nome tinha oitenta e sete anos e morreu de insuficiência cardíaca cinco semanas atrás.
– Em se tratando de identidades falsas, essa não é uma das melhores, não é?
– Você fala como se conhecesse bem o assunto – quando ele não comentou nada, ela se inclinou para frente. – Por acaso você faz parte do programa governamental de proteção a testemunhas?
Não, ele estava do outro lado da lei... seja lá o que isso significasse.
– Se for o caso – ele disse –, não estão cuidando muito bem de mim.
– Tenho uma ideia. Vamos voltar ao cemitério, no local do acidente. Vamos ver se você se lembra de alguma coisa.
– Não posso pedir pra você fazer isso.
– Não pediu. Estou oferecendo... – ela parou. Franziu a testa. Coçou a sobrancelha. – Meu Deus, espero não estar me transformando na minha mãe.
– Ela gosta de cemitérios?
– Não, é uma longa história. Enfim, peguei emprestado o carro do meu amigo. Posso te levar até lá depois que terminarmos de comer.
– Não. Mas eu agradeço.
– Por que você se deu ao trabalho de perguntar sobre o nome se não vai continuar investigando?
– Posso pegar um táxi, foi o que quis dizer.
– Ah.
A garçonete voltou com o “de sempre”, que era um sanduíche de frango em pão integral e o que parecia ser tomates extras, além de batatas fritas em vez de batatas chips.
– Acho que eu deveria levar você – ela disse, pegando o ketchup.
Matthias observou quando dois policiais entraram pela porta da frente e sentaram no balcão.
– Posso ser sincero com você?
– Por favor.
Ele abaixou o queixo e a olhou por cima dos óculos escuros.
– Não quero que fique sozinha comigo. É muito perigoso.
Ela parou com uma batata frita a meio caminho da boca.
– Sem ofensa, mas, considerando sua condição física, eu poderia quebrar suas duas pernas e te deixar inconsciente em questão de segundos – as sobrancelhas dele foram erguidas ao máximo, e ela assentiu. – Sou faixa preta, tenho permissão para porte de armas e nunca vou a lugar algum sem uma boa faca ou sem minha arma.
Ela deu um sorriso rápido, pegou o sanduíche de frango e deu uma mordida.
– Então, o que me diz?
CAPÍTULO 10
Felizmente, aquilo não era um encontro romântico, pensou Mels quando o silêncio imperou. Pois dizer a um homem que você é capaz de acabar com ele não seria um bom começo, meio ou fim para um almoço a dois.
Aquilo era trabalho – é claro que a história daquele homem, seja lá qual fosse, não terminaria nos jornais, mas era algo a ser investigado, e Deus sabia que ela nunca dispensava uma oportunidade dessas.
– É um belo currículo – ele disse depois de um bom tempo.
– Meu pai se certificou de que eu seria capaz de me defender. Ele era um policial à moda antiga.
– O que isso quer dizer?
Ela limpou a boca com um guardanapo, tomou outro gole de café e desejou ter pedido uma Coca.
– Digamos que hoje em dia, com câmeras nos carros de polícia, reuniões da corregedoria, e pastas cheias de protocolos de procedimentos, ele não teria durado nem um mês antes de ser suspenso. Mas no passado ele fazia seu trabalho, e as pessoas estavam mais seguras nesta cidade graças a ele. Ele dava conta de tudo.
– Um cara durão?
– Um cara justo.
– E você aprova esses métodos?
Ela deu de ombros.
– Ele tinha minha aprovação. Por outro lado, sua maneira de agir... digamos apenas que era outra época. Antes de testes de DNA e internet.
– Parece meu tipo de pessoa.
Mels teve que sorrir ao ouvir aquilo. Mas então uma tristeza pela perda do pai a fez virar o rosto e observar o rio e as gaivotas que seguiam a lenta correnteza.
– Ele nunca perdia o controle ou ficava bravo. Mas às vezes os criminosos só entendem as coisas quando elas são explicadas na língua deles.
– Você tem irmãos ou irmãs?
– Apenas eu. E meu pai não se importava por eu ser uma garota. Ele me tratava como trataria um filho: me treinou, ensinou autodefesa, insistiu que eu aprendesse a disparar armas de fogo – ela riu. – Minha mãe quase tinha ataques do coração por causa disso. Até hoje ela é assim.
– Ele já se aposentou?
– Faleceu – ela voltou ao sanduíche. – Foi morto em serviço.
Houve uma pausa. Então Matthias disse suavemente:
– Sinto muito.
Mels não ousou levantar os olhos, pois falara demais e, com aqueles óculos escuros, não sabia onde estavam os olhos dele – embora não fosse necessário ser um gênio para saber que estavam focados nela.
– Obrigada. Mas chega de falar de mim. E chega dessa porcaria de é-perigoso-demais. Tenho cuidado de mim mesma faz tempo, e sou muito boa nisso. Não teria oferecido ajuda se não achasse que poderia lidar com você.
Ele soltou uma risada súbita.
– Você é muito segura de si mesma.
– Sei quais são meus limites.
– Mas você não me conhece. E eu também não.
– E nós queremos consertar isso, não é?
O homem recostou-se.
– Sim.
Quando terminou o sanduíche – deixando o resto das batatas de lado – ela pagou a conta e levantou-se.
– Então, vamos lá.
Quando ele pousou os olhos nela, aquele calor a invadiu novamente, uma atração sem sentido passando por seu corpo.
– Prometa uma coisa – ele disse em voz baixa.
– Depende do que for.
– Você não vai correr nenhum risco.
– Feito.
Matthias assentiu, pegou a bengala, deslizou as pernas para fora da cadeira e esperou por um momento, como se estivesse preparando o corpo para um massacre. O primeiro instinto de Mels foi colocar um braço sob o ombro dele para ajudar, mas sabia que ele não gostaria disso. E ficar encarando sua fragilidade também não era respeitoso, então ela se virou e fingiu checar o cardápio iluminado que ficava sobre o balcão.
Um grunhido denunciou que ele se levantara, então Mels seguiu em frente até a porta. Enquanto passavam pelos outros fregueses, ela sentiu os olhos de todos pairando sobre o homem que estava atrás dela.
Deus, ela imaginava como seria a vida daquele jeito, atraindo constantemente os olhares curiosos. Se bem que as mulheres provavelmente estavam vendo apenas aquilo que ela própria enxergava. Que não tinha nada a ver com defeitos.
Muito pelo contrário.
O carro de Tony, que estava no estacionamento, parecia já ter visto dias melhores, não era como a Fifi, mantida com carinho. Aquele carro parecia mais uma lata de lixo ambulante.
– Não repara na sujeira – ela disse ao destrancar o veículo.
Ao entrar, Mels tirou do banco do passageiro as várias revistas Newsweek e The New Republics. Como era de se imaginar, Matthias levou um tempo para entrar no carro e, quando colocou os joelhos para dentro, suas botas pisaram em lixo, amassando embalagens vazias de Taco Bells, McDonald’s, Burger King e Wendy’s.
– Seu amigo gosta de fast-food – ele comentou.
– E come rápido também.
Ela acelerou e entrou no trânsito, espremendo o sedã entre um táxi e uma caminhonete.
– Cinto de segurança – disse Matthias.
Mels olhou para ele.
– Pois é. Você está usando um.
– Gosta de viver perigosamente?
– Cintos de segurança nem sempre salvam vidas.
– Então todas essas pessoas ao redor estão erradas?
– Elas podem fazer o que quiserem, e eu também.
– E as multas?
– Nunca fui parada no trânsito. E se acontecer, simplesmente pago a multa.
– Quando. Você quer dizer “quando acontecer”.
O Cemitério Pine Grove ficava a uns dez minutos – mas não do jeito que Mels dirigia. Em nenhum momento ela foi imprudente, apenas eficiente, escolhendo rotas que evitavam semáforos e as obras ao redor do parque.
– É ali, à direita – Mels se inclinou sobre o volante e olhou através do para-brisa. – Na verdade, é um lugar lindo. Há algo tão pacífico em cemitérios...
Matthias não parecia impressionado.
– Toda essa coisa de descanso eterno é uma ilusão.
– Você não acredita no Céu?
– Acredito no Inferno, isso sim.
Não houve tempo para ela responder quando chegaram na entrada.
– O acidente aconteceu por aqui... um pouco depois do portão principal. Bem... um pouco mais para frente... aqui.
Enquanto ela estacionava o carro de Tony e desligava o motor, Matthias já estava saindo. Andando rápido com sua bengala, ele parou no meio da rua, em cima das marcas onde ele havia aterrissado. Olhou para os dois lados e seguiu até as marcas dos pneus da Fifi e a árvore atingida... e finalmente chegou no portão de três metros de altura que cercava o cemitério.
Aquilo é que era estilo gótico. Feitas com barras de ferro com pontas em forma de flor de lis, as fronteiras do Pine Grove eram imponentes... e perigosas, se alguém tentasse escalá-las.
E veja só, enquanto se aproximava, Mels viu uma mancha de sangue no topo de uma das pontas – e havia também um pedaço de roupa. Como se alguém tivesse tentado pular o cercado.
– Eu pego – ela disse, pulando e agarrando o tecido. – Aqui.
Matthias segurou o pano.
– Tecido impermeável. Aposto que aquele sangue seco é meu. Tenho um ferimento recente na perna.
Mas por que ele não teria simplesmente passado pelo portão da frente? Bem, à noite ele provavelmente ficava trancado.
– Podemos entrar? – ele perguntou.
– Agora mesmo.
De volta ao carro, ela passou pela entrada e virou à esquerda, indo em direção ao ponto onde encontraram o tecido. Chegando lá, ela parou novamente, saiu e esperou que a memória dele se manifestasse. Se é que isso aconteceria.
Enquanto ele olhava ao redor, Mels ficou um pouco distante, ouvindo a brisa que soprava entre os galhos dos pinheiros e sentindo o sol brilhar em seus ombros... e tentou não pensar no lugar onde estava seu pai...
Logo atrás, a uns cem metros, no meio do cemitério, entre a família Thomas e os três irmãos Krensky.
Pelo jeito, ela se lembrava muito bem.
A última vez em que estivera ali fora no dia seguinte ao enterro do pai. Mels estivera trabalhando em Nova York por quase cinco anos. Ele estava tão orgulhoso de sua filha na cidade grande, fazendo aquilo que tinha estudado – o jornalismo...
– É por aqui – Matthias disse, distraído.
Enquanto ele caminhava pelo gramado desigual, Mels largou seu passado para se concentrar no presente dele, e juntos andaram decididamente, mesmo com os passos de Matthias se mostrando instáveis e precisando do suporte da bengala. De vez em quando ele parava, como se estivesse calibrando a direção, e Mels não o interrompia com perguntas.
A construção onde finalmente chegaram combinava com as lápides e sepulturas. Sua fachada de pedra ecoava a arquitetura usada na entrada principal e nos balaústres que se intercalavam aos portões de ferro.
– Eu estava nu – ele disse. – Vim até aqui, entrei pela janela e peguei...
Ele empurrou a porta, que rangeu enquanto se abria. Lá dentro, caminhou até a parede de trás e comparou o pedaço de tecido rasgado com um macacão impermeável que estava pendurado.
Nu?, ela pensou.
– Onde estavam suas roupas?
Ele deu de ombros.
– Só sei que estive aqui na noite passada.
Matthias voltou para fora e continuou pelo caminho que estavam fazendo, mas agora ele andava em zigue-zague – talvez para manter a trilha ou para tentar encontrá-la; Mels não sabia e também não perguntou. Apenas o seguiu, e eles passaram por dezenas de lápides, além de funcionários que cuidavam do gramado e pessoas que visitavam túmulos de parentes.
Finalmente, quando estavam a quase meio quilômetro de onde deixaram o carro, ele parou.
– Aqui. Isto é... sim, foi aqui que começou. Tenho certeza.
A lápide que ele observava pertencia a um dos túmulos mais recentes – e em cima da terra fofa que fora colocada sobre o caixão, havia realmente a silhueta de um corpo, como se uma pessoa do tamanho dele tivesse deitado ali em posição fetal.
– Foi aqui que começou – ele se apoiou na bengala e se agachou. Tocando a terra, sussurrou: – Aqui.
– James Heron – ela disse, lendo a inscrição simples na lápide. – Você conhece ele?
Matthias olhou ao redor do cemitério.
– Sim.
– Em que contexto?
– Preciso ir – ele se levantou e se afastou dela. – Obrigado.
Mels franziu a testa.
– Do que está falando?
– Você precisa ir embora agora...
– Você não tem condições de andar de volta até a cidade. E boa sorte se quiser achar um táxi.
– Por favor, você precisa ir embora.
– Diga por que e talvez eu considere.
Em um movimento súbito, o homem se aproximou dela, chegando perto... muito perto. Tomando fôlego, Mels precisou forçar para que seus pés não se mexessem... e foi um choque quando percebeu que os pés desejavam que seu corpo terminasse o que ele havia começado.
Só era preciso mais um passo para que seus peitos se tocassem e seus quadris se apertassem um contra o outro.
Não era a ideia mais brilhante, já que parecia que o predador dentro dele se libertara. Mas ela não queria ser sensata.
Mels o desejava.
Mas isso não fazia parte do plano.
Levantando o queixo, ela disse:
– Se pensa que essa agressividade é persuasiva, você está errado. E eu estou esperando uma explicação.
Matthias se inclinou para frente, e o movimento de seus quadris a deixou totalmente ciente do quão mais alto ele era. Quão mais forte, mesmo machucado. E o quanto seus olhos ardiam, mesmo através dos óculos escuros.
Com uma voz grave e perigosa, Matthias disse:
– Porque você vai morrer se não se afastar de mim.
CAPÍTULO 11
Local não revelado Washington, D.C.
– Este é o alvo.
A foto que caiu com a imagem para cima na lustrosa mesa chegou ao agente por força da inércia.
O rosto instantaneamente pareceu familiar. Afinal, quem nas Operações Extraoficiais não conhecia aquele homem?
O agente ergueu os olhos na direção de seu superior.
– Qual a localização?
– Caldwell, Nova York.
O endereço foi passado oralmente, assim como todas as outras instruções. E ele não podia ficar com a foto. E aquela sala, em um prédio absolutamente comum na capital da nação, não registrava nada daquela conversa. Sem rastros. Nunca.
– Obviamente, consideramos que ele está armado e é extremamente perigoso.
Com certeza. Sempre fora – mas glórias não duram para sempre, e você nunca deixa de ser um agente das Operações. As únicas classificações para um agente eram “em atividade” ou “eliminado”.
E ele seria o responsável pelo carimbo de “eliminado”, nesse caso.
– As regras normais se aplicam – disse o superior.
É claro que sim: agiria sozinho, era o único responsável pela missão e, se falhasse, era melhor rezar para morrer – ou fazer isso por si próprio. Essas regras eram muito conhecidas pelo pequeno grupo de agentes que foram escolhidos a dedo pelo diabo em pessoa...
Matthias. Aquele que os liderara nos últimos dez anos. O astuto jogador de xadrez, o mestre da manipulação, o violento sociopata que servira de modelo para todos eles.
Por um momento, parecia estranho receber ordens de outra pessoa – mas, considerando quem era o alvo...
No entanto, a organização precisava seguir em frente, e seu atual superior subira rápido na hierarquia, claramente se posicionando como o herdeiro do trono. Isso explicava o que estava fazendo agora. Pontas soltas eram inaceitáveis.
– Mais alguma coisa de que eu precise saber?
– Apenas não estrague tudo. Você tem 24 horas.
O agente esticou a mão enluvada e trouxe a foto para mais perto. Observando aquele rosto, pensou que, se alguém tivesse lhe contado sobre as mudanças que aconteceram nos últimos dois anos, ele se convenceria de que essa pessoa estava maluca.
Porém, lá estava ele, olhando para aquele poderoso homem na fotografia, que agora estava condenado à morte. Se o agente falhasse ao tentar matá-lo, a organização mandaria outro. E outro. E mais outro. Até que a missão fosse cumprida.
E, conhecendo o alvo, talvez precisassem de mais de uma tentativa.
Seu superior pegou de volta a fotografia e caminhou até uma porta que parecia normal, mas que na verdade era à prova de balas, fogo, bombas e som. Assim como as paredes, o teto e o chão.
Após um escaneamento da retina, a porta se abriu e depois fechou, deixando o agente sozinho para ponderar suas opções: uma vez que a missão fosse entregue, os métodos de execução ficavam por conta do agente designado. Os chefes se importavam apenas com os fins, não com os meios.
Caldwell, em Nova York, ficava a apenas uma hora e meia de avião, mas era melhor ir de carro. Não dava para saber que recursos tinha seu alvo, e aviões podiam ser rastreados mais facilmente do que carros sem identificação.
Enquanto o agente deixava o edifício, o fato de que poderia estar se dirigindo para a própria morte era irrelevante – e essa era parte da razão de ele ter sido selecionado dentre tantos outros soldados e civis que se “inscreviam” para as Operações Extraoficiais. Cuidadosas avaliações psicológicas e físicas eram conduzidas, não durante semanas ou meses, mas por anos, antes que o candidato recebesse o sinal verde. Afinal, o trabalho exigia uma incomum combinação de urgência e desapego, lógica e iniciativa, disciplina mental e física.
Assim como o simples prazer em matar outros seres humanos.
Ao final do dia, ele achava divertido bancar o Ceifeiro da Morte, e essa era a única maneira legal e sancionada de fazer isso. Mesmo o mais cuidadoso assassino em série acaba preso com o passar do tempo. Mas e trabalhando para o governo dos Estados Unidos?
Seu único limite era sua habilidade de permanecer vivo.
CAPÍTULO 12
Matthias precisava se afastar de Mels.
Não havia nenhuma outra opção. No cemitério, junto dela, encarando a lápide de Jim Heron, pareceu muito claro que eles estavam separados entre a vida e a morte – e ela estava no lado da vida.
Matthias queria mantê-la assim.
Depois de discutirem por um momento, ela o deixou, afastando-se com uma rapidez eficiente que ele aprovava. Matthias permaneceu no local de descanso de Jim Heron pelo tempo que julgou ser necessário até Mels chegar ao carro de seu amigo – e, como ele esperava, o Toyota não estava mais no portão principal do cemitério quando ele retornou.
E ela estava certa quanto à falta de táxis, mas havia um ponto de ônibus não muito longe e, embora isso o obrigasse a esperar, acabou conseguindo voltar ao centro da cidade por conta própria.
Melhor assim. Uma separação definitiva – ao menos fisicamente. Em sua mente, ele tinha o pressentimento de que não seria tão fácil.
Apesar de ainda possuir uma parte dela, de forma concreta: os óculos escuros. Ela não os pedira de volta, e ele esqueceu que estavam em seu rosto.
E esconder seu olho ruim seria muito útil em uma situação como a dele.
Matthias entrou no Starbucks da rua Quinze e avaliou o local através de seu Ray-Ban. O horário de pico do almoço já tinha passado e os fregueses das três da tarde ainda não tinham aparecido para lotar o local em busca de um remédio para sua sonolência vespertina. Havia apenas duas pessoas tomando café com leite, além de um par de baristas do outro lado no balcão.
Ele escolheu a barista cheia de piercings na sobrancelha e cabelo espetado azul e rosa.
Quando se aproximou, ela ergueu um olhar que parecia contar as horas para ir embora, mas sua expressão mudou rapidamente. Para algo a que ele já estava acostumado.
Era uma expressão de interesse feminino.
Matthias escolheu sabiamente.
– Olá – ela disse, enquanto pesquisava seu rosto... e depois a bengala e a jaqueta preta.
Ele sorriu, como se também estivesse momentaneamente interessado nela.
– Ah, escuta, eu combinei de encontrar um amigo aqui, mas ele não apareceu. Eu ia ligar para ele do meu celular, mas percebi que esqueci em casa. Posso usar seu telefone?
Ela deu uma olhada em seu colega de cafeteria. O cara estava encostado nos fundos ao lado das máquinas de café, braços cruzados ao redor do peito magro, como se estivesse descansando em pé.
– Sim. Pode sim. Venha aqui.
Matthias a seguiu pelo balcão, exagerando seu andar manco.
– Preciso ligar para o disque-informações primeiro, pois não lembro o número dele. Mas não se preocupe, é uma ligação local. Não acredito que esqueci meu celular!
– Acontece com todo mundo! – ela estava toda agitada, seus olhos pousavam rapidamente nele e depois se desviavam, como se ele fosse brilhante demais para se olhar por muito tempo. – Mas eu preciso discar, você não pode entrar atrás do balcão.
– Sem problema – quando ela lhe entregou o fone, ele o pegou e sorriu devagar. – Obrigado.
Ela ficou ainda mais encabulada. Ao ponto de precisar discar duas vezes até conseguir chamar o número desejado.
Matthias casualmente se virou e fingiu checar a entrada procurando por seu “amigo” quando uma voz gravada atendeu:
– Cidade e estado, por favor.
– Caldwell, Nova York – houve uma pausa. Ele esperou um atendente. – Por favor, o número de James Heron.
Enquanto Matthias esperava pela informação, a garota pegou um pano e passou casualmente pelo balcão. Mas ela estava escutando, com as sobrancelhas abaixadas.
– H-E-R-O-N – soletrou Matthias. – O primeiro nome é James.
Mas que droga, de que outro jeito dá para soletrar esse nome?
A atendente voltou a falar:
– Desculpe, mas não encontro ninguém com esse sobrenome em Caldwell. Quer tentar algum outro nome?
Que merda! Mas, de alguma forma, isso não o surpreendia. Seria muito fácil. E nem um pouco seguro.
– Não, obrigado – Matthias virou-se e entregou o fone para a garota. – Não tive sorte. O nome não está na lista.
– Você disse “Heron”? – perguntou a garota enquanto pendurava o fone. – Aquele cara que morreu?
Matthias estreitou os olhos – mas ela não podia ver, graças ao Ray-Ban.
– Mais ou menos. Meu amigo é irmão dele, na verdade. Moravam juntos. O telefone estava no nome de Jim. Como eu disse, meu amigo e eu combinamos de nos encontrar aqui pra, você sabe, conversar sobre tudo isso. É tão difícil perder alguém dessa maneira, e estou preocupado com o que isso pode fazer com a cabeça dele.
– Oh, Deus, foi triste demais – a garota jogava o pano de uma mão para outra. – Meu tio trabalhou com ele. E estava lá quando foi eletrocutado. E pensar que levou um tiro, tipo, dias depois. Quer dizer, como é possível? Sinto muito por seu amigo.
– Seu tio conhecia o Jim?
– Ele é gerente de recursos humanos na construtora em que Jim trabalhava.
Matthias respirou fundo, como se estivesse engasgando.
– Jim era um cara muito legal. Nós estivemos na guerra juntos – bateu com a bengala no balcão. – Sabe como isso é.
Quatro... três... dois... um...
– Olha, eu posso ligar pro meu tio se você quiser. Talvez ele tenha o telefone. Espera um pouco.
A garota saiu de trás do balcão, parou um pouco, depois assentiu para si mesma, como se estivesse em uma missão pelo bem, determinada a “fazer a coisa certa”.
Enquanto Matthias esperava ela voltar, ficou esperando também que sua consciência o repreendesse por causa da manipulação.
Quando não sentiu nada, ficou perturbado com a facilidade da coisa. Como se mentir fosse tão familiar e insignificante que seu cérebro registrasse essa ação como um simples reflexo.
A barista retornou cerca de cinco minutos depois com um número escrito em um papel de carta feminino, que traía completamente seu visual radical.
– Vou discar pra você.
A barista voltou para trás do balcão e entregou novamente o telefone a Matthias, que ficou escutando o som das teclas enquanto ela apertava os botões.
Ouviu o som de chamada. Um. Dois. Três. Quatro toques.
Nada de correio de voz. Nenhuma resposta.
Ele devolveu o telefone.
– Não tem ninguém em casa.
Afinal, o que ele esperava? Acordara no túmulo do cara e agora achava que Heron fosse atender o telefone? Era uma longa distância entre o caixão e a companhia telefônica.
– Talvez ele esteja a caminho?
– Talvez – Matthias encarou a garota por um momento. – Obrigado. Obrigado mesmo.
– Quer um café enquanto espera?
– Acho que vou dar uma passada na casa dele. Às vezes as pessoas reagem a uma tragédia... de um jeito estranho.
Ela assentiu, preocupada.
– Sinto muito.
E sentia mesmo. Uma completa estranha sentia pena, honestamente, por o que quer que ele estava passando.
Ele imediatamente pensou em Mels, que também parecia tão disposta a ajudar.
Pessoas boas. Pessoas gentis. E sua memória defeituosa dizia que Matthias não merecia ficar entre esse tipo de companhia.
– Obrigado – ele disse com a voz rouca antes de sair mancando pela porta.
A pistola calibre quarenta na mão de Jim pesava menos de um quilo, e já estava carregada com dez balas no pente e uma na agulha.
Ele manteve a arma abaixada ao lado da coxa enquanto saía da garagem. Depois do episódio no chuveiro, Adrian saíra para tomar ar e trazer comida, levando sua Harley, mas não o capacete. O Cachorro estava seguro no andar de cima, descansando na cama sob o sol. Jim estava de guarda.
Você não vê? Ela está dentro de mim... e está me dominando...
Merda.
Pelo menos Jim tinha um escape. O bom da garagem era que ela ficava nos fundos do terreno de uma casa de fazenda – e a casa da frente, branca, com sua varanda e chaminé de tijolos, estava vazia desde que ele começara a alugar o local.
Ninguém veria. Mas isso ainda não era suficiente.
Ele enfiou a mão livre dentro da bota e retirou um silenciador. A peça adicionava quase trezentos gramas ao peso da pistola automática e mudava seu centro de gravidade, mas Jim estava acostumado a usá-la daquela maneira.
Agora, ninguém ouviria também.
De pé sobre o cascalho solto do caminho de entrada, ele tragou o cigarro e então o segurou com a mão esquerda. Concentrando-se em um galho que estava a dez metros do chão, levantou a arma e mirou no pedaço de madeira de três centímetros.
Respirando calmamente, Jim fechou os olhos e pensou no rosto de Devina.
Crack!
Graças ao silenciador, o som da pistola foi bastante reduzido, apenas um estampido contra sua mão e o impacto na árvore.
Crack!
O gatilho, assim como o cabo e o tambor, não eram apenas uma extensão de seu braço, mas também de seu corpo, e ele não precisava dos olhos para reajustar a trajetória. Sabia exatamente onde o chumbo acertaria.
Crack!
Calmo. Concentrado. Respirando pela barriga, não pelo peito. Imóvel, exceto pelo dedo indicador e depois pelos músculos do antebraço ao absorverem o súbito coice da arma.
O impacto da última bala foi mais suave; afinal, já não restava muita madeira.
Ele abriu os olhos assim que o galho começou uma queda livre, batendo em seus irmãos até chegar ao chão duro.
Colocando o Marlboro de volta entre os dentes, Jim esmagou as pinhas e a grama rala com suas botas de combate ao andar até a árvore e pegar o galho. Foi um corte preciso, relativamente falando. Nada igual ao que uma serra faria, mas, considerando a distância e os meios, parecia bom o suficiente.
– Você é um ótimo atirador.
O sotaque inglês altivo vindo de trás de Jim o fez querer continuar apertando o gatilho.
– Nigel.
– Cheguei num momento inapropriado?
– Ainda tenho sete balas. Você decide.
– Devina sofreu uma reprimenda – Jim girou o corpo e estreitou os olhos na direção do arcanjo aristocrático, que assentiu. – Queria que soubesse. Pensei que seria muito importante te informar disso.
– Está preocupado pensando que estou perdendo o rumo?
– Mas é claro.
Jim teve de sorrir.
– Você consegue ser direto quando lhe convém. Então, o que é que seu Criador fez com minha inimiga?
– Ela é seu oponente...
– Inimiga.
Nigel colocou as mãos para trás e começou uma caminhada excêntrica. Vestia um terno fora de moda cortado à mão, do tipo que era totalmente estranho a Jim, e que continuaria desse jeito.
– Qual é o problema, chefe? – Jim murmurou. – O gato comeu sua língua?
O arcanjo lhe lançou um olhar que o faria cair morto ali mesmo, se Jim estivesse vivo do jeito convencional.
– Você não é o único com temperamento explosivo, e eu devo te lembrar de tomar cuidado com o tom e as palavras quando se dirigir a mim.
Jim guardou a arma na cintura.
– Certo. Chega de papo furado. O que posso fazer por você?
– Nada. Eu simplesmente pensei que você se acalmaria se soubesse que o Criador agiu. Eu te disse pra deixar que o demônio cruzasse os limites. Eu te disse pra esperar pelas consequências. E elas vieram.
– O que Ele fez com ela?
– As vitórias e derrotas que vocês conquistaram são permanentes. Não há nada que Ele ou qualquer um de nós possa fazer a respeito de onde as bandeiras foram... elas são imutáveis. Mas Ele decretou que as ações de Devina não podem ficar impunes.
– Espere, não estou entendendo. Se o que Devina fez afetou o resultado de uma rodada, então sua vitória tem que ser anulada.
– Não é assim que essa competição funciona. As vitórias... – o arcanjo olhou para o céu. – O paralelo seria propriedade pessoal, suponho.
– Minha?
– De certa maneira, eu diria que sim.
– Então, se ela quebrou as regras e isso mudou o resultado, o Criador deveria dar de volta aquilo que é meu de direito. E, já que estamos falando nisso, quero lembrar que, se eu soubesse que a alma em questão era o Matthias, eu não teria me concentrado no homem errado.
– E isso foi corrigido.
– Como?
Ao longe, do outro lado do campo, um carro saiu da estrada e entrou no caminho que passava pela casa da fazenda.
Merda. Visitantes não eram nada bem-vindos – e a cor amarela sugeria um táxi.
O carro não parou na residência principal.
Nigel levantou uma sobrancelha.
– Acredito que ficará evidente.
Após mais uma de suas frases enigmáticas, o chefe desapareceu.
– Obrigado, amigão – Jim murmurou. – Grande ajuda de merda. Como sempre.
Protegendo-se em um canto, Jim encostou os ombros na parede de alumínio. A arma não permaneceu na cintura. Ele a segurou mais uma vez, preparado para atirar.
O táxi estacionou na frente da garagem.
Um momento depois, um homem que ele nunca esperava ver de novo saiu do banco do passageiro... um pesadelo que vivia e respirava... um problema do passado, que Jim já resolvera.
Então esta era a solução para a trapaça de Devina?
– Filho... da puta – Jim sussurrou.
CAPÍTULO 13
Matthias saiu do táxi e pediu que o motorista esperasse. A garagem à sua frente era uma espécie de galpão de armazenamento, com escadas que levavam para o segundo andar. As portas duplas no andar térreo estavam fechadas; a do andar de cima e as cortinas também.
Na janela do andar superior, as cortinas se separaram e um cachorro desgrenhado apareceu, como se estivesse de pé com as patas da frente apoiadas na parede.
Alguém claramente vivia ali.
– Mande o táxi embora.
Matthias virou rapidamente a cabeça para a direita, e o homem que surgiu de trás da garagem o fez quase perder o equilíbrio, fazendo uma lembrança vívida e instantânea surgir em sua memória.
Jim Heron. De volta do mundo dos mortos.
O instinto de Matthias lhe dizia que o cara sempre tivera aquele grande corpo musculoso, cabelo loiro escuro, o rosto frio e de feições endurecidas. Mas não havia contexto em sua lembrança, não havia um comentário interno sobre como ele conhecia o homem, ou o que viram e fizeram juntos. Porém, uma coisa estava clara... mesmo sem a arma, era óbvio que aquele não era o tipo de cara que você quer por perto se estiver desarmado e sem um veículo de fuga.
Matthias bateu no vidro, entregou uma nota de vinte ao motorista e o deixou ir embora.
Quando o carro manobrou e partiu pelo caminho de entrada, o som dos pneus esmagando o cascalho parecia tão alto quanto disparos de uma arma.
– Isso é uma arma na sua perna ou você está apenas feliz de me ver? – Matthias disse secamente.
– É uma arma. E você quer me dizer o que está fazendo aqui?
– Diria, se soubesse. Talvez você possa me ajudar com essa pergunta.
– O quê? – quando Matthias não respondeu, os olhos azuis cínicos de Heron ficaram ainda mais estreitos. – Você está falando sério. Isso foi uma pergunta sincera.
Matthias deu de ombros.
– Interprete do jeito que quiser. E enquanto pensa, eu gostaria de comentar que você supostamente está morto.
– Como você me encontrou?
– Procurei na central de informações. De certa maneira.
Quando Heron se aproximou, Matthias percebeu que a posição da arma com o silenciador mudou e que agora o tambor estava apontado diretamente para seu peito. E podia apostar que o gatilho seria apertado em um instante, se fosse preciso. O que significava que aquele homem com estilo militar era paranoico... ou que, por alguma razão, considerava Matthias perigoso.
– Estou desarmado – Matthias anunciou.
– Não faz o seu feitio.
A arma não foi abaixada; aquele corpo não relaxou; aqueles olhos não perderam o ar de alerta.
– Você não acredita em mim – disse Matthias.
– Depois de tudo o que passamos? Nem um pouco, meu velho amigo.
– Nós éramos amigos?
– Não, você está certo. Nós fomos muitas coisas, mas nunca amigos – Heron balançou a cabeça. – Mas que merda, sempre que não espero mais te ver, você aparece.
Heron sabia as respostas, pensou Matthias. O homem que estava bem à sua frente era o caminho para ele descobrir quem era.
– Bom – murmurou Matthias –, considerando que você ainda está respirando, mas que eu visitei o seu túmulo uma hora atrás, eu não sou o único tirando coelhos da cartola. Se importa de me contar onde foi que nos vimos pela última vez?
– Você está falando sério? – quando ele assentiu, Heron balançou a cabeça novamente. – Está dizendo que não se lembra?
Matthias levantou as mãos, mostrando as palmas.
– Não tenho nada.
A atitude desconfiada de Jim foi substituída por uma breve surpresa.
– Jesus.
– Acho que não. Minha carteira de motorista diz “Matthias”.
A risada que recebeu como resposta foi um pouco assustadora.
– Se importa se eu te revistar?
Matthias encostou a bengala na perna e levantou as mãos.
– Manda ver.
Jim fez o procedimento com uma das mãos e, quando se afastou de novo, soltou outro palavrão.
– Claramente você perdeu a cabeça.
– Não, apenas minha memória. E preciso que você me diga quem sou eu.
Houve um longo silêncio, como se Heron tentasse preencher os buracos da história em sua cabeça. Finalmente, disse:
– Vou pensar bem antes de contar as coisas do seu passado. Mas vou te ajudar. Disso você pode ter certeza.
– Isso não é bom o suficiente. Preciso das informações. Agora.
– Acha mesmo que está em posição para fazer exigências?
Enquanto Jim conduzia seu antigo chefe, Matthias, o Cretino, para o andar de cima, ele não conseguia acreditar em tudo aquilo. E não importava o quanto seu cérebro se esforçasse: parecia que os porcos realmente podiam voar, que o Inferno estava cheio de bolas de neve, e que em algum lugar um cachorro velho aprendia a dirigir uma droga de um carro.
Era disso que Nigel estava falando? Uma repetição da segunda rodada?
Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
Parece que concentrar-se na alma errada não seria um problema desta vez – desde que o discurso cifrado de Nigel estivesse mesmo certo e Matthias, mais uma vez, fosse a alma em jogo.
O que não era uma maneira tão boa de penalizar Devina. Merda!
Mas havia uma boa notícia – se é que podia existir alguma notícia boa nessa história de voltar do mundo dos mortos: a perda de memória. O velho Matthias nunca se exporia com uma fraqueza como amnésia, portanto provavelmente era verdade – e Deus sabia que esse buraco negro de informações seria muito útil.
Assim, Jim precisava trabalhar apenas contra a natureza.
Abriu a porta e deu espaço para Matthias entrar.
– Humilde lar, e essas coisas.
Enquanto Matthias mancava para dentro, o Cachorro correu e balançou o rabo lhe dando boas-vindas, com suas patas fazendo barulho no chão de madeira.
Considerando a alegria do cão, parecia óbvio que Devina não estava usando o corpo daquele homem. O que foi uma boa dica.
Jim fechou a porta e observou seu ex-chefe. Mancava do mesmo jeito. Tinha a mesma voz. O mesmo rosto. Os óculos escuros não surpreendiam, considerando o estado dos olhos do cara.
– Eu ofereceria comida, mas tenho que esperar meu amigo voltar. Pode usar o sofá enquanto isso.
Matthias grunhiu quando sentou.
– Eu ainda fumo – ele disse, acenando para o maço em cima da mesa.
– Pensei que não se lembrava de nada.
– Certas coisas... eu acabo lembrando.
Jim foi até a pequena cozinha e parou em frente à pia. Por alguma razão, ele queria estar perto de Eddie.
– Então, vamos começar com exatamente o que você lembra.
– Eu sei que acordei na sua sepultura.
– A morte é relativa.
– Então, nós dois somos um milagre.
Jim levantou uma sobrancelha.
– Pelo menos um de nós é. Vamos ver quanto ao outro. Como me encontrou?
– Central de informações.
– O telefone daqui não está no meu nome.
– Mas você deu esse número no seu último emprego. Fui até a biblioteca, busquei o número na internet e achei você. Não é um esconderijo muito bom.
– Não estou me escondendo de ninguém.
– Então, por que você está morto, mas vivo?
– Vamos nos concentrar apenas em você, certo?
– Certo. Então, por que está com medo de mim? – quando Jim apertou o maxilar, Matthias sorriu do jeito que sempre fazia, mostrando todos os dentes brancos e afiados. – Aliás, isso não é uma lembrança. É a arma na sua mão. Estamos na sua casa, protegidos... se eu não fosse uma ameaça, você guardaria a arma.
Filho... da puta.
Mesmo com amnésia, o cara era um cretino.
Com essa deixa, Jim se aproximou, mantendo os olhos no Ray-Ban que o outro usava. Com a ponta da arma virada para Matthias, colocou a pistola na mesa e a empurrou para o outro lado.
– Fica com ela, se quiser.
– Você vai me dar uma arma?
– Claro, por que não? Pense nisso como um presente por sua volta pra casa.
– Estou em casa?
– Não neste lugar em particular... você não pode ficar aqui, e nunca esteve aqui. Nunca.
Matthias sorriu um pouco.
– Bom, não quero ficar na minha casa.
– E onde é isso exatamente?
O homem colocou a mão no bolso, tirou a carteira e jogou a carteira de motorista na mesa, sobre a arma.
Jim olhou a identificação. Era bem feita, com todos os hologramas no lugar certo. O sobrenome não estava correto, é claro, mas o primeiro nome e a foto estavam.
– O que você sabe sobre mim? – exigiu o homem.
– Bela foto – Jim disse ao recostar-se na parede.
– Não estou perguntando sobre meu futuro como modelo. Por que está evitando minhas perguntas?
– Estou tentando decidir como fazer esta jogada.
– Estamos em um jogo?
– Sim, estamos. E você não pode nem imaginar o que está em jogo – Jim decidiu sentar ao lado de seu hóspede. – Como eu disse antes, por que não começa contando o que você lembra?
Os óculos escuros baixaram, como se Matthias estivesse encarando o chão. Ou talvez suas botas, ou a bengala.
– Fui atropelado por um carro do lado de fora do Cemitério Pine Grove ontem à noite e acordei no hospital sem saber quem eu era ou onde estava. Hoje, tentei me lembrar refazendo meus passos, até que cheguei na sua sepultura – o Ray-Ban subiu de novo e ele olhou ao redor. – Eu reconheci seu nome no instante em que o vi. Reconheci você também, no exato momento em que saiu de trás da casa.
A expressão no rosto de Jim não mudou.
– Não é uma surpresa... nós dois temos muita história juntos. E é por isso que vou te ajudar.
– Então comece dizendo como isso tudo... – Matthias fez um gesto com a mão, mostrando todo o seu corpo – aconteceu.
– Os ferimentos?
– Não, minha roupa de balé. De que merda você acha que estou falando?
– Tire os óculos.
– Por quê?
– Quero olhar nos seus olhos quando responder.
A mão tremeu quando tirou os óculos, mas Jim apostava que era uma fraqueza física, e não mental. E ele estava certo.
– Como os ferimentos aconteceram? – seu ex-chefe repetiu, com uma voz grave.
– Você tentou se matar na minha frente. Plantou uma bomba na areia e pisou nela, bem na minha frente.
Matthias olhou para a própria perna e suas sobrancelhas se juntaram, como se o cérebro estivesse calculando dois mais dois.
– Por que eu fiz isso?
Como responder sem revelar demais?
– Você odiava o homem que era. Não podia mais continuar daquele jeito, e deu um jeito de não ter mais que fazer isso.
– Mas eu não morri.
– Não dessa vez – Jim levantou-se. – Meu amigo voltou.
Um segundo depois, o som de uma Harley invadiu o local através da janela, aumentando até parar totalmente.
– Você tem um bom ouvido – Matthias comentou.
Jim encarou o homem, pensando em como faria para trabalhar a situação em seu favor. Com um pequeno sorriso, murmurou:
– É o menor dos meus truques.
CONTINUA
CAPÍTULO 1
Sepultura.
Como na lápide e na terra recém-cavada, como em um corpo lá em baixo, como das cinzas às cinzas e do pó ao pó.
Matthias estava nu em uma sepultura. Em meio a um cemitério que se estendia até onde seus olhos podiam enxergar.
A primeira coisa que surgiu em sua mente foi a tatuagem que fizera seus homens usarem nas costas, com o desenho do Ceifeiro da Morte pairando sobre um campo de lápides e tumbas.
Que irônico – talvez estivesse prestes a ser cortado por uma foice a qualquer momento.
Tente repetir isso três vezes, bem rápido.
Piscou os olhos tentando clarear a vista, juntou os braços para se aquecer e esperou que o cenário voltasse à realidade. Quando nada mudou, ele se perguntou aonde teria ido aquele muro em que estivera preso para toda a eternidade.
Será que finalmente estava livre daquela tortura nojenta e superlotada?
Teria escapado do Inferno?
Soltando um grunhido, tentou se erguer, mas até levantar a cabeça estava difícil. Afinal, descobrir em primeira mão que aqueles lunáticos religiosos estavam certos sobre uma porção de coisas realmente faz você querer tirar um cochilo: de fato, os pecadores iam lá para baixo, e não para o Sul, e, uma vez lá, o sofrimento faz todas as coisas de que você reclamava em vida parecerem um passeio no Universal Studios.
O Demônio existia.
E sua sala de estar era uma merda.
Mas os religiosos não sabiam de toda a história. Acontece que Satã não possuía chifres ou uma calda. Também não havia nada de tridente e pés de bode. Bom, era mesmo metade bicho – se você considerar que o bicho em questão seja uma vaca. E usa muito vermelho. Afinal, morenas ficam bem com essa cor – ao menos, era isso que ela dizia a si mesma.
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Com seu olho esquerdo, que ainda funcionava, Matthias piscou novamente, preparando-se para retornar para a densa e ardente escuridão, com os gritos dos condenados ecoando em seus ouvidos e sua própria dor rasgando pela garganta e explodindo pelos lábios rachados...
Mas nada disso aconteceu. Ele ainda estava em uma sepultura. Ainda estava em um cemitério.
Completamente pelado.
Concentrando-se, enxergou, com seu único olho bom, uma paisagem cheia de túmulos de mármore branco, sepulturas de famílias marcadas com anjos e fantasmagóricas estátuas da Virgem Maria – embora as lápides simples fossem bem mais numerosas, como se os plebeus tivessem tomado conta do lugar. Pinheiros e carvalhos projetavam sombras através de gramados desalinhados e bancos de metal. As lâmpadas dos postes emitiam um brilho alaranjado, como velas num bolo de aniversário, e as passarelas estreitas poderiam até ser românticas se estivessem em outro lugar.
Mas ali, com certeza, não eram. Não naquele contexto de morte...
De repente, cenas de sua vida passaram por sua mente, fazendo-o se perguntar se estaria experimentando a morte pela segunda vez. Ou pela terceira, como seria o caso.
Não havia alegria nessa retrospectiva. Nada de esposa amorosa, nem filhos bonitos, nem uma casinha aconchegante. Apenas cadáveres, dezenas, centenas de cadáveres, todos mortos por ele próprio ou por ordem sua.
Matthias havia feito muito mal, o verdadeiro mal, durante sua vida.
Forçou-se a sentar na terra úmida. Seu corpo parecia um quebra-cabeça cujas peças não encaixavam direito: seus membros se uniam em juntas que pareciam folgadas em alguns lugares e apertadas em outros. Mas isso é o que acontece quando você se despedaça e tudo o que tem para se recompor são as habilidades limitadas de cura e medicina.
Ele direcionou seu olho para a lápide e franziu a testa.
James Heron.
Meu Deus, James Heron...
Ignorando o tremor de suas mãos, ele traçou as letras gravadas na pedra – a ponta de seus dedos percorreu o texto esculpido no granito cinzento.
Soltou um suspiro áspero, como se a dor repentina atrás de suas costelas tivesse forçado o ar para fora dos pulmões.
Matthias nunca soubera que realmente havia uma recompensa eterna após a morte, que suas ações eram de fato levadas em conta, que havia um julgamento ao final da última batida de seu coração. Mas a dor não era por causa disso. Era porque sabia que, mesmo se tivesse conhecimento do que o esperava, ele não seria capaz de fazer nada diferente.
– Sinto muito – falou, se perguntando para quem realmente dizia aquilo. – Porra, sinto muito mesmo...
Nenhuma resposta.
Olhou para o céu.
– Sinto muito.
De novo, nada de resposta, mas tudo bem. De qualquer forma, os arrependimentos estavam se acumulando em sua mente e não havia muito espaço para contribuições de terceiros.
Enquanto se esforçava para levantar, seu tronco tombou e precisou se apoiar na lápide para retomar o equilíbrio. Deus, ele estava acabado. Suas coxas estavam cobertas de cicatrizes, sua barriga cheia de lesões, uma panturrilha quase despida de carne. Os médicos realizaram um verdadeiro milagre com seus parafusos e hastes, mas, comparado com o jeito como nascera, Matthias parecia um brinquedo quebrado remendado com fita adesiva e supercola.
E o suicídio deveria ter funcionado. Mas Jim Heron foi a razão de ele ter sobrevivido por outros dois anos. Até que a morte o encontrou e o levou, provando que a Terra apenas pegava as almas emprestado – o outro lado é que realmente as possuía.
Por força do hábito, olhou ao redor procurando sua bengala, mas então se concentrou naquilo que seria mais provável encontrar: sombras que o perseguiam, fossem aquelas criaturas ardilosas do Inferno ou meros humanos.
De um jeito ou de outro, ele estava ferrado: como ex-chefe da organização secreta que eles chamavam de Operações Extraoficiais, Matthias tinha mais inimigos do que um ditador do Terceiro Mundo, e todos eles possuíam armas e podiam contratar quem as tivesse. E, como fugitivo do parquinho do diabo, nem era preciso mencionar que ele não escapara de graça da prisão.
Mais cedo ou mais tarde, alguém viria atrás dele. E, apesar de Matthias não possuir nada pelo que valesse a pena viver, seu ego era razão suficiente para lutar e se defender.
Ou pelo menos fazer de si um alvo menos fácil.
Começou a caminhar mancando e continuou com a graça de um espantalho – seu corpo sacudia com espasmos que culminavam numa marcha que doía como o diabo. Para conservar o calor, tentou abraçar a si mesmo, mas isso não durou muito. Precisava usar os braços para manter o equilíbrio.
Com movimentos de zumbi e a cabeça completamente confusa, ele continuou a caminhada, atravessando a grama desalinhada, passando pelas lápides, sentindo o toque da fria brisa que cortava sua pele. Não tinha a menor ideia de como conseguira escapar. Não sabia para onde iria. Que dia, mês, ano seria.
Roupas. Abrigo. Comida. Armas.
Assim que tivesse assegurado o básico, ele se preocuparia com o resto. Isso se não fosse abatido antes – afinal, um predador ferido se torna uma presa rapidamente. É a lei da selva.
Pensou ter encontrado mais uma sepultura ao se aproximar de uma construção de pedra com ornamentos de ferro fundido. Mas o nome “Cemitério Pine Grove” gravado no topo da fachada e a grande fechadura na porta frontal sugeriam que era uma instalação dos funcionários.
Felizmente, alguém deixara aberta uma fresta da janela dos fundos.
Mas é claro, a janela estava emperrada naquela posição.
Ele pegou um galho caído, o colocou na fresta e forçou até a madeira curvar.
A janela começou a ceder, soltando um chiado agudo.
Matthias congelou.
Pânico, uma sensação pouco familiar, que foi aprendida da maneira difícil, o fez girar e procurar as sombras. Conhecia aquele som. Era o barulho que os lacaios do demônio faziam quando estavam atrás de você...
Nada.
Apenas túmulos e postes de luz que, não importa o quanto sua adrenalina sugerisse o contrário, não se transformavam em nada.
Praguejando, ele voltou ao trabalho. Usou o galho como alavanca até abrir espaço suficiente para poder se espremer e passar. Erguer o corpo foi um sacrifício, mas, assim que seus ombros passaram, ele deixou a gravidade cuidar do resto. O chão de concreto no qual aterrissou parecia uma grade de ferro, e ele precisou de um tempo enquanto seu fôlego escapava da garganta, seu estômago embrulhava e dores surgiam em mais lugares do que ele conseguia contar.
No teto, luzes fluorescentes piscaram e depois acenderam de vez, cegando-o.
Malditos sensores de movimento. O lado bom era que, assim que seus olhos se ajustaram, ele teve uma clara visão de todo tipo de ferramenta de jardinagem. O lado ruim? Ele era um diamante em uma vitrine, pronto para ser capturado.
Pendurados em ganchos na parede, como se fossem peles de animais mortos, havia vários conjuntos de macacões impermeáveis, esperando para serem usados. Ele prontamente vestiu uma parte de baixo e uma parte de cima. Essas roupas foram feitas para ficar folgadas, mas em seu corpo pareciam grandes velas de um barco.
Melhor assim. Melhor com as roupas, mesmo elas cheirando a fertilizante, e mesmo com o atrito, que logo se tornaria um problema. Havia um boné do Boston Red Sox em um dos cantos, e Matthias o vestiu para ajudar a conservar o calor do corpo; então olhou ao redor procurando qualquer coisa que pudesse servir como bengala. As pás eram muito pesadas para ser eficientes, e os rastelos também não ajudariam.
Dane-se. Sua missão imediata era se afastar das luzes que banhavam o show de horrores do seu corpo.
Saiu da mesma maneira que entrou, forçando-se através da janela e aterrissando duramente no chão. Não tinha tempo para reclamar do impacto desta vez; precisava continuar se movendo.
Antes de morrer e ir para o Inferno, Matthias sempre fora o perseguidor. Caramba, durante sua vida inteira ele fora o caçador, aquele que espreitava, encurralava e destruía. Mas agora, retornando à escuridão daquelas sepulturas, todas as intangibilidades da noite eram perigosas até que se provasse o contrário.
Esperava que estivesse de volta em Caldwell.
Se estivesse, tudo o que precisava fazer era manter-se discreto e seguir para Nova York, onde possuía um abrigo com mantimentos.
Sim, rezava para que fosse Caldwell. Quarenta e cinco minutos ao sul pela estrada era tudo o que precisaria. Já acabara de arrombar e invadir um lugar; fazer uma ligação direta em um carro velho era outra habilidade que poderia ressuscitar.
Uma vida depois, ou pelo menos o que pareceu ser uma vida depois, ele chegou até o portão de ferro que cercava todo o terreno daqueles que descansam em paz. A coisa tinha uns três metros de altura, e as grades tinham pontas que poderiam ter sido facas em outra encarnação.
Encarando as barras que o mantinham do lado dos mortos, Matthias as agarrou e sentiu o frio do metal agarrá-lo de volta. Olhando para cima, concentrou-se no céu. As estrelas realmente cintilavam.
Engraçado, ele sempre pensou que isso fosse apenas um modo de dizer.
Respirando fundo, puxou ar puro e limpo para os pulmões e percebeu que tinha se acostumado com o fedor do Inferno. No começo, aquilo era o que mais detestava, aquele cheiro nauseante de ovo podre impregnado nas vias aéreas e que invadia a garganta e viajava até envenenar suas entranhas: mais do que um cheiro ruim, era uma infecção que entrava pelo nariz e conquistava todos os territórios que tocasse.
Mas ele se habituara.
Com o tempo, e em meio ao sofrimento, ele se acostumara ao horror, ao desespero, à dor.
Seu olho ruim, o que não conseguia usar, encheu-se de lágrimas.
Nunca conseguiria alcançar aquelas estrelas.
E essa pausa no sofrimento servia apenas para aumentar a tortura. Afinal, não existe nada como um período de alívio para revitalizar um pesadelo. Quando você retorna para a merda, o contraste aumenta tudo, eliminando a aclimatação e fazendo voltar o choque inicial.
Eles voltariam a persegui-lo. Afinal, era exatamente isso que ele merecia.
Mas, seja lá quanto tempo tivesse, lutaria contra o inevitável – não com a esperança de se livrar do Inferno, não pela possibilidade de um adiamento, mas simplesmente porque essa era uma função automática, que fazia parte do seu ser.
Matthias lutava pela mesma razão que cometera o mal.
Aquilo era simplesmente o que ele fazia.
Impulsionando a si mesmo para longe do chão, colocou contra as barras o pé que funcionava melhor e jogou seu peso para cima. Fez isso novamente. E de novo. O topo parecia estar a quilômetros de distância, o que apenas o fez concentrar-se mais em seu objetivo.
Uma eternidade depois, sua palma agarrou uma das pontas e seu braço enlaçou a perigosa lâmina.
Sangue escorreu rapidamente quando Matthias jogou a perna por cima do portão e uma das pontas cortou um pedaço de sua coxa.
Mas não havia motivo para voltar. Havia se comprometido, e de um jeito ou de outro a gravidade venceria e o puxaria para a terra – então era melhor que isso acontecesse lá fora do que dentro do cemitério.
Quando começou a cair, seus olhos focaram as estrelas. Ele chegou até a estender uma das mãos naquela direção.
O fato de que elas estavam cada vez mais distantes parecia apropriado.
CAPÍTULO 2
Mels Carmichael estava sozinha na redação. De novo.
Às nove da noite, o labirinto de cubículos do Correio de Caldwell estava povoado apenas por material de escritório, nada de pessoas – do ponto de vista do pessoal da redação, a edição do dia seguinte já zarpara para o mar: as prensas trabalhavam a todo vapor do outro lado do prédio.
Quando Mels se recostou na cadeira, as molas soltaram um chiado, e ela transformou aquele som em um instrumento, tocando uma musiquinha feliz que compusera após muitas noites iguais àquela. O título era “Rapidamente chegando a lugar nenhum”, e ela fazia um acompanhamento assoviando a parte do soprano.
– Ainda está aqui, Carmichael?
Mels se recompôs e cruzou os braços.
– Oi, Dick.
Seu chefe se esgueirou no pouco espaço que havia ali, com o sobretudo dobrado no braço e a gravata folgada ao redor do pescoço. Ele acabara de voltar da saideira no bar Charlie’s, onde os homens do jornal costumavam assistir esportes após o expediente.
– Trabalhando até tarde de novo? – Seus olhos percorreram os botões da blusa dela, como se esperasse que o uísque que tomou tivesse lhe dado poderes telecinéticos. – Tenho que dizer, você é bonita demais pra fazer isso. Você não tem namorado?
– Você me conhece, o trabalho é sempre mais importante.
– Bem... eu poderia dar algo para você trabalhar.
Mels imediatamente o encarou com firmeza:
– Obrigada, mas estou ocupada. Estou pesquisando sobre assédio sexual em mercados que antes eram dominados por homens, como companhias aéreas, esportes... jornalismo...
Dick franziu a testa como se não tivesse escutado o que esperava. O que era uma loucura. A reposta dela era a mesma desde o primeiro dia.
Mais de dois anos dando um fora nele. Deus, já tinha passado tanto tempo?
– É esclarecedor – ela esticou o braço e tocou o mouse, desativando a proteção de tela. – Muitas estatísticas. Poderia ser minha primeira reportagem de âmbito nacional. Igualdade de sexos na América pós-feminismo é um assunto quente hoje em dia... é claro, eu poderia apenas colocar no meu blog. Talvez você pudesse me dar uma declaração.
Dick arrumou o sobretudo em seu braço.
– Eu não te passei essa pauta.
– Sou uma pessoa de iniciativa.
Ele levantou a cabeça como se estivesse procurando outra pessoa para importunar.
– Só leio aquilo que eu mandei escrever.
– Você pode achar útil.
O cara tentou afrouxar a gravata e... surpresa! Já estava aberta.
– Está perdendo seu tempo, Carmichael. Vejo você amanhã.
Enquanto saía, vestiu aquele sobretudo estilo Walter Cronkite com lapelas dos anos 1970 e o cinto que ficava pendurado, fazendo parecer que parte das suas entranhas não estava onde deveria. Ele provavelmente tinha aquele casaco desde os tempos de Watergate, quando Woodward e Bernstein provavelmente o inspiraram a seguir seu próprio sonho jornalístico... que terminou no topo do expediente de um jornal de cidade pequena.
Nada mal para um emprego. Mas também não era nenhum chefe de redação do The New York Times, ou do The Wall Street Journal.
Isso parecia incomodá-lo.
Então, pois é, não era necessário ser um gênio para atribuir suas inadequações ao tédio de um ex-timoneiro calvo, amargurado por ter passado sessenta anos na intersecção entre o quase-lá e o meu-tempo-está-acabando.
Por outro lado, talvez ele fosse apenas um cretino mesmo.
O que estava claro na mente dela era que um cara mais parecido com uma rã do que com Jon Hamm não tinha nenhuma razão objetiva para acreditar que a resposta para os problemas de qualquer mulher estava dentro da calça dele.
Quando as portas duplas se fecharam, Mels respirou fundo e ficou imaginando um ônibus passando por cima daquele sobretudo anacrônico e deixando as marcas dos pneus. Mas, graças ao corte nos orçamentos, a linha de ônibus da rua Trade não passava mais depois das nove da noite e agora eram... sim, o horário já tinha acabado dezessete minutos atrás.
Ela encarou a tela do computador, sabendo que deveria ir para casa.
Seu artigo de iniciativa própria não era exatamente sobre chefes de olhar malicioso que fazem suas funcionárias pensarem que o transporte público seria uma ótima maneira de assassinar alguém. O artigo era sobre pessoas desaparecidas. As centenas de pessoas desaparecidas da cidade de Caldwell.
Caldie, como a cidade era conhecida, lar das pontes gêmeas, era também a líder nacional em desaparecimentos. Durante os últimos anos, a cidade de dois milhões de habitantes tivera o triplo de desaparecimentos de Manhattan (contando todos os seus cinco municípios) e Chicago – juntas. E o total da última década ultrapassara os números de toda a costa Leste. O que tornava tudo ainda mais estranho é que a questão não era só os números em si: acontece que as pessoas não estavam desaparecendo apenas temporariamente. Elas nunca voltavam e nunca eram encontradas. Nada de corpos, nada de vestígios e nada de relocação para outras jurisdições.
Era como se fossem sugadas para outro mundo.
Depois de toda sua pesquisa, Mels sentia que o horrível massacre em uma fazenda no mês anterior tinha algo a ver com a abundância de desaparecimentos...
Todos aqueles jovens estraçalhados.
As informações preliminares sugeriam que muitos daqueles que foram identificados já haviam sido declarados desaparecidos em algum ponto de suas vidas. Muitos deles eram casos de delinquência juvenil ou tinham antecedentes com drogas. Mas nada daquilo importava para as famílias – e nem deveria.
Não é preciso ser um santo para ser uma vítima.
A horripilante cena da zona rural de Caldwell foi notícia em âmbito nacional, com todos os canais enviando seus melhores repórteres, desde Brian Willians até Anderson Cooper. Os jornais também estavam presentes. Mas, mesmo com toda a atenção, a pressão dos políticos e o clamor por justiça de comunidades abaladas (e com razão), a verdadeira história ainda estava para surgir: a polícia de Caldwell tentava ligar as mortes a uma pessoa, qualquer pessoa, mas não conseguiu nada – mesmo trabalhando no caso dia e noite.
Mas tinha de haver uma resposta. Sempre há uma resposta.
E Mels estava determinada a descobri-la – pelo bem das vítimas e de suas famílias.
Além disso, esse era o momento para ela se destacar. Chegara a Caldwell aos 27 anos, depois de pedir transferência de Manhattan porque viver em Nova York estava muito caro e ela não estava chegando a lugar algum no New York Post. Seu plano era se mudar por seis meses, juntar algumas economias morando com sua mãe e depois se concentrar nos peixes grandes: The New York Times, The Wall Street Journal, talvez até um emprego de correspondente na CNN.
Mas não foi exatamente como as coisas aconteceram.
Voltando a focar na tela do computador, ela vasculhou as colunas que conhecia de cor, buscando padrões que ainda não tinha enxergado... pronta para encontrar a chave que abriria a porta não apenas da história, mas também de sua vida.
O tempo estava passando depressa, e Deus sabe que ela não era imortal...
Quando Mels deixou a redação, por volta das nove e meia, aquelas linhas de informação continuavam surgindo em sua mente sempre que piscava, como se fosse um videogame que ela tivesse jogado por muito tempo.
Seu carro, que batizara de Josephine, era um Honda Civic de doze anos com quase 125 mil quilômetros rodados – e a Fifi estava acostumada a esperar por ela no frio da noite. Mels deu partida naquele velho motor de máquina de costura e foi embora, deixando para trás seu emprego meia boca. E foi para a casa de sua mãe. Aos trinta anos de idade.
Que bela profissional. E pensava que iria acordar magicamente na manhã seguinte como uma Diane Sawyer sem o spray de cabelo?
Seguindo pela rua Trade para fora do centro da cidade, deixou os prédios de escritório para trás, passou pelas boates e ruas abandonadas do lado sujo do município. Ao final de todos aqueles prédios com janelas lacradas, as coisas melhoraram quando entrou nos arredores de uma vizinhança residencial, com casas bonitas e ruas com nomes de árvores...
– Meeeerda!
Virando o volante com força para a direita, tentou evitar o homem que apareceu no meio da rua, mas era tarde demais. Ela o acertou em cheio, erguendo-o com o para-choque até ele voar em seu para-brisa, cujo vidro laminado estilhaçou-se com um lampejo brilhante.
E aquele foi apenas o primeiro de três impactos.
O corpo do homem simplesmente voou pelos ares, e Mels teve a terrível visão dele atingindo o pavimento com força. E então ela teve seus próprios problemas. O impacto desviou o carro, que atingiu o meio-fio. Os freios diminuíram o impulso, mas não rápido o suficiente – e então se tornaram inúteis quando o carro também saiu do chão.
O carvalho que os faróis iluminaram fez seu cérebro realizar um raciocínio rápido: ela ia atingir a maldita coisa, e isso ia doer muito.
A colisão fez um barulho seco, um estampido ao qual ela não prestou muita atenção – estava ocupada recebendo o air bag em seu rosto, e a falta do cinto de segurança veio com tudo para morder seu traseiro. Ou a virilha, nesse caso.
Mels foi jogada para a frente e ricocheteou para trás, e um pó vindo do air bag invadiu seu olhos, nariz e pulmões, causando irritação e fazendo-a engasgar. Então tudo ficou silencioso.
No final, tudo o que podia fazer, assim como a pobre Fifi, era ficar onde estava. Debruçada sobre o air bag vazio, ela tossiu um pouco...
Alguém estava assoviando.
Não, era o motor que soltava vapor de algo que deveria estar selado.
Ela virou a cabeça com cuidado e olhou para fora através da janela do motorista. O homem estava caído no meio da rua, totalmente parado, parado demais.
– Oh... meu Deus...
O rádio do carro ganhou vida, arranhando a princípio, depois se recuperando com um curto circuito. Uma música... qual era?
Do nada, uma luz surgiu no meio da estrada, iluminando a pilha de trapos que ela sabia ser uma pessoa. Piscando, imaginou se aquele seria o momento em que descobriria as respostas sobre a vida após a morte.
Não era exatamente o furo jornalístico que ela esperava, mas aceitaria mesmo assim...
Porém, não era nenhum tipo de chegada celeste. Eram apenas faróis.
Um sedan derrapou até parar e duas pessoas saíram do carro. O homem correu para a vítima, a mulher correu até ela. A boa samaritana de Mels teve que se esforçar para abrir a porta, mas, depois de alguns puxões, ar fresco substituiu o cheiro ruim de plástico do air bag.
– Você está bem?
A mulher tinha cerca de quarenta anos e parecia rica, seu cabelo estava arrumado para cima, os brincos dourados brilhavam, suas roupas finas e elegantes não combinavam com aquele cenário de acidente.
Ela pegou um iPhone.
– Chamei a emergência; não, não se mova. Você pode ter uma lesão no pescoço.
Mels se rendeu à súbita pressão em seu ombro, mantendo-se junto ao volante.
– Ele está bem? Eu não enxerguei... apareceu do nada.
Pelo menos, foi isso que ela tentou dizer. Seus ouvidos captaram apenas murmúrios que não faziam sentido algum.
Dane-se a lesão no pescoço; estava preocupada com seu cérebro.
– Meu marido é médico – disse a mulher. – Ele sabe o que fazer com o homem. Só se preocupe com você mesma...
– Não o vi. Não o vi – ah, bom, isso soou mais inteligível. – Voltando do trabalho. Eu não...
– É claro que não. A mulher se ajoelhou. Realmente, ela parecia a esposa de um médico – e cheirava a perfume caro.
– Apenas fique parada, a ambulância está chegando...
– Ele está vivo, pelo menos? – Lágrimas surgiram nos olhos de Mels, substituindo uma irritação por outra. – Oh, meu Deus, eu matei ele?
Quando começou a tremer, ela lembrou qual era aquela canção... Blinded by the light, pensou.
– Porque meu rádio ainda está funcionando? – ela murmurou entre as lágrimas.
– Como é? – disse a mulher. – Que rádio?
– Você não está escutando?
O que se seguiu foi um gentil e alarmante toque em seu ombro.
– Apenas respire fundo e fique comigo.
– Meu rádio está tocando...
CAPÍTULO 3
– Está calor aqui? Quero dizer, você acha que está calor aqui?
O demônio cruzava e descruzava suas longas pernas à la Gisele Bündchen enquanto puxava o decote de seu vestido.
– Não, Devina, não acho – a terapeuta do outro lado da sala era exatamente como o sofá em que estava sentada: fofa e reconfortante. Até seu rosto era como um travesseiro de algodão, com as linhas de expressão parecendo bordadas em tecido macio. – Mas posso abrir uma janela se você quiser.
Devina recusou balançando a cabeça e enfiou a mão dentro de sua bolsa Prada. Além da carteira, chiclete de menta, uma garrafa de Smartwater e uma barra de chocolate Green & Black’s Organic Dark, havia vários batons YSL Rouge pur Couture. Pelo menos... deveria haver.
Enquanto ela procurava, tentou parecer casual, como se estivesse checando se não perdeu as chaves.
Na verdade, ela estava contando para se certificar de que ainda tinha treze tubos do batom: começando pelo da esquerda no fundo da bolsa, foi movendo para a direita. Treze era o número correto. Um, dois, três...
– Devina?
... quatro, cinco, seis...
– Devina.
Quando perdeu a conta, ela fechou os olhos e lutou contra a tentação de estrangular quem fizera a interrupção...
Sua terapeuta limpou a garganta. Tossiu. E depois engasgou.
Devina abriu os olhos e encontrou a mulher com as mãos no pescoço, parecendo que tinha engolido um McLanche Feliz da maneira errada. Foi bom ver a dor e a confusão, um pequeno show que fez Devina apertar os dedos dos pés, pedindo por mais.
Mas a diversão não podia ir mais longe. Se perdesse essa terapeuta, o que seria dela? Estavam fazendo progresso, e encontrar outra pessoa com quem sentisse uma conexão poderia tomar um tempo que ela não tinha.
Praguejando, o demônio chamou de volta seus cães mentais, aliviando a esganadura invisível que lançara sem perceber.
A terapeuta respirou fundo e olhou ao redor, aliviada.
– Eu... ah... acho que vou abrir a janela.
A mulher se levantou, alheia ao fato de que suas habilidades como psicóloga haviam acabado de salvar sua vida. As duas se encontravam cinco vezes por semana nos últimos dois meses, conversando por cinquenta minutos ao custo de 75 dólares por sessão. Graças a toda aquela baboseira emotiva, os sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo de Devina estavam ficando um pouco mais fáceis de aguentar. E, considerando como as coisas estavam caminhando na guerra contra aquele anjo Jim Heron, a terapia seria muito necessária na próxima rodada.
Devina não podia acreditar que estava perdendo.
Na batalha derradeira pela supremacia na Terra, aquele anjo vencera duas vezes. Havia apenas mais quatro almas na disputa. E se ela perdesse mais duas? Não sobraria nada dela ou de sua coleção: tudo desapareceria, aqueles objetos preciosos que juntara durante os milênios, cada qual uma valiosa lembrança de seu trabalho, estariam perdidos, perdidos, perdidos. E isso não era a pior parte. Suas crianças, aquelas gloriosas almas torturadas e presas em seu muro, seriam incorporadas pelo bem, pelos beatos, pelos imaculados.
Esse mero pensamento a deixava enjoada.
E, ainda por cima, ela tinha acabado de ser penalizada pelo Criador.
A terapeuta voltou a se ajeitar nas almofadas depois de sua busca por ar fresco.
– Então, Devina, conte o que está em sua mente.
– Eu... ah... – quando a ansiedade subiu, ela levantou a bolsa, procurando algum furo; não encontrou nenhum. – Tem sido difícil...
Nenhum dos batons poderia ter caído, ela disse a si mesma. E havia checado o número antes de sair de seu covil. Treze, um perfeito treze. Então, logicamente, estavam todos lá. Tinham de estar.
Mas... oh, Deus, talvez ela tivesse segurado a bolsa de lado e deitado um deles cair por não ter fechado o zíper...
– Devina – disse a terapeuta –, você parece muito nervosa. Pode me dizer o que está acontecendo, por favor?
Fale, disse a si mesma. Era a única maneira para escapar disso. Mesmo que contar, arrumar, checar e recontar parecessem a solução, ela gastaria milênios fazendo isso sem chegar a lugar algum. E esse novo jeito estava funcionando. Mais ou menos.
– Aquele novo colega de trabalho de que eu te falei... – ela abraçou a bolsa, segurando tudo com o corpo que assumia quando andava entre os macacos. – Ele é um mentiroso. Um completo mentiroso. Ele me enganou... e eu fui acusada de jogar sujo.
Desde que começara a terapia, ela vinha explicando a guerra contra o anjo Jim Heron em termos que um humano do começo do século XXI pudesse entender: ela e seu inimigo eram colegas em uma empresa de consultoria, e competiam pela vice-presidência. Cada alma que disputavam era um cliente. O Criador era o CEO, e os dois tinham um número limitado de tentativas para impressioná-lo. Blá, blá, blá. A metáfora não era perfeita, mas era melhor do que se revelar completamente e correr o risco de sua terapeuta perder a cabeça, ou pensar que Devina não era apenas compulsiva, mas digna de um manicômio.
– Pode ser mais específica?
– O CEO enviou nós dois para um cliente em potencial. No final, o homem nos contratou e queria trabalhar comigo. Tudo estava bem. Eu estava contente, o cliente estava... – bem, não contente. Matthias não estava nem um pouco contente, o que era mais uma razão para ela ficar satisfeita com a vitória: quanto mais sofrimento, melhor. – Estávamos cuidando do cliente, e tudo estava combinado, o contrato estava assinado, o assunto encerrado. Então fui chamada para uma reunião idiota e me disseram que teríamos que disputar o cliente de novo.
– Você e seu colega de trabalho, certo?
– Isso! – ela jogou as mãos para cima. – Quer dizer, qual é? Estava feito. Estava tudo combinado. A disputa tinha terminado. E agora temos que refazer tudo? Que merda é essa? E daí o CEO disse pra mim: “Bom, você ainda pode ficar com a comissão pelo contrato.” Como se isso compensasse tudo!
– Melhor do que perder tudo.
Devina balançou a cabeça. A mulher simplesmente não entendia. Uma vez que ela se apoderava de algo, se deixasse isso escapar, ou se alguém a roubasse, era como se uma parte de seu verdadeiro corpo fosse removida: Matthias fora arrancado de seus muros e colocado novamente na Terra.
Francamente, o poder do Criador era a única coisa capaz de assustá-la.
Além de suas próprias compulsões.
Não conseguiu controlar a ansiedade: abriu a bolsa novamente e recomeçou a contar...
– Devina, você trabalhou bem com o cliente, certo?
Ela fez uma pausa.
– Sim.
– E você possui um bom relacionamento com ele ou ela?
– Ele. Sim.
– Então você está numa posição mais vantajosa do que seu colega de trabalho, não é?
A terapeuta fez um gesto com as mãos, como se dissesse “então, qual o problema?”.
– Não tinha pensado assim – estivera irritada demais para isso.
– Você deveria. Mas, eu devo dizer, tem uma coisa que está me confundindo. Por que o CEO sentiu a necessidade de intervir? Especialmente se o cliente não apenas assinou um contrato, como também parecia satisfeito?
– Ele não aprovou algum dos... métodos... usados para assegurar o negócio.
– Métodos seus?
Quando Devina hesitou, os olhos da terapeuta rapidamente focaram o decote que a paciente usava.
– Sim, meus – disse o demônio. – Mas, qual é, eu consegui o cliente e ninguém pode criticar minha ética no trabalho: estou trabalhando o tempo todo. Literalmente. Não tenho vida que não seja meu trabalho.
– Você aprova as táticas que usou?
– É claro. Consegui o cliente, isso é tudo que importa.
O silêncio que se seguiu sugeria que a terapeuta não aprovava essa coisa de “fins justificando os meios”. Mas que se dane, isso era problema dela – e era provavelmente a razão de ela parecer um travesseiro e passar os dias escutando os problemas dos outros.
Em vez de governar o mundo inferior e ficar uma gostosa usando sapatos Louboutins...
Quando a ansiedade apertou de novo, Devina começou outra recontagem, jogando os batons um atrás do outro, da esquerda para a direita. Um, dois, três...
– Devina, o que você está fazendo?
Por uma fração de segundo, ela quase atacou de verdade. Mas a razão e um chamado para a realidade prevaleceram: as compulsões estavam quase dominando-a completamente. E não se pode ser efetivo contra um inimigo como Jim Heron quando se está presa em uma eterna ansiedade causada por objetos que se sabem perfeitamente bem que não foram perdidos, movidos ou tocados por nenhuma outra pessoa.
– Batom. Estou apenas me certificando de que trouxe meus batons.
– Certo. Bom, quero que você pare com isso.
Devina levantou o olhar com verdadeiro desespero.
– Eu... não consigo.
– Sim, você consegue. Lembre-se, o problema não são os objetos. Você deve lidar com seus medos de maneira mais efetiva e permanente do que simplesmente cedendo às compulsões. Você sabe, o alívio que consegue no final de um ritual nunca, nunca dura mais que uma fração de segundo; e nunca ataca a raiz do problema. O fato é que, quanto mais obedece às compulsões, mais fortemente elas controlam você. A única maneira de melhorar é aprender a suportar a ansiedade e repensar os impulsos como algo que você pode controlar; e não o contrário – a terapeuta se inclinou para frente, com uma seriedade de quem vai dizer algo cruel, mas para o seu bem. – Quero que você jogue um deles fora.
– O quê?
– Jogue um dos batons fora – a terapeuta se esticou para o lado e pegou um cesto de lixo cor-de-rosa. – Agora mesmo.
– Não! Deus, você está louca? – O pânico se espalhou pelo seu corpo. As palmas das mãos começaram a suar, seus ouvidos zumbiram, seus pés adormeceram. Logo, a onda se propagou: seu estômago embrulhou, o fôlego foi se perdendo, o coração batia mais rápido. Tudo isso pareceu durar uma eternidade. – Eu nunca vou conseguir...
– Você consegue e, além do mais, você precisa. Escolha a cor de que menos gosta e coloque no cesto.
– Não tenho uma cor de que eu não gosto, todos são da mesma cor: 1 Le Rouge.
– Então qualquer um vai servir.
– Não consigo... – lágrimas ameaçavam cair. – Não consigo...
– Pequenos passos, Devina. Essa é a chave da terapia cognitiva comportamental. Temos que tirar você da zona de conforto, te expor ao medo, e então te conduzir a superar o obstáculo para que aprenda que pode chegar inteira do outro lado. Faça isso muitas vezes e o transtorno vai começar a perder o controle sobre seus pensamentos e suas decisões. Por exemplo, o que acha que vai acontecer se jogar um deles fora?
– Terei um ataque de pânico. Principalmente quando chegar em casa e o batom não estiver comigo.
– E depois?
– Vou comprar outro para substituir, mas não vai ser o mesmo que joguei fora, então não vai adiantar nada. Vou só ficar mais compulsiva...
– Mas você não vai morrer.
É claro que não, ela era imortal. Contanto que ganhasse a guerra, obviamente.
– Não, mas...
– E o mundo não vai acabar.
Bem, não por causa do batom.
– Mas vai parecer que sim.
– Emoções vêm e vão. Não duram para sempre – a mulher balançou o cesto. – Vamos lá, Devina, vamos tentar. Se você achar que é muita coisa para aguentar, pode pegar o batom de volta. Mas precisamos começar a nos concentrar nisso.
Como previsto, um ataque de ansiedade começou a surgir, mas, ironicamente, foi o medo que a fez prosseguir: medo de ser dominada por esse problema que não conseguia controlar, medo de que Jim vencesse não porque era o melhor no jogo do Criador, mas porque ela não suportava a pressão; medo de nunca conseguir mudar...
Devina enfiou a mão na bolsa e agarrou o primeiro batom que encontrou. Então jogou fora. Apenas o deixou cair no cesto de lixo.
O som macio que o objeto fez ao acertar os lenços de papel dos pacientes anteriores pareceu o portão do Inferno se fechando atrás dela.
– Bom trabalho – disse a terapeuta, como se Devina fosse uma garotinha de cinco anos que tinha recitado o alfabeto. – Como se sente?
– Como se fosse vomitar – olhando para o cesto, a única coisa que a impediu de vomitar foi o fato de que faria isso em cima do batom.
– Você pode classificar sua ansiedade numa escala de um a dez?
Quando Devina disse “dez”, a terapeuta começou um discurso sobre respirar durante o pânico, blá, blá, blá...
A mulher se inclinou para frente de novo, como se soubesse que não estava sendo ouvida.
– O importante não é o batom, Devina. E a ansiedade que você sente agora não vai durar para sempre. Não vamos exigir demais de você, e vai ficar impressionada com os avanços. A mente humana pode ser reprogramada, podemos criar novos caminhos de experiência. A terapia de exposição funciona: é tão poderosa quanto as compulsões. Você precisa acreditar nisso, Devina.
Com a mão trêmula, o demônio limpou o suor da testa. Então, recompondo-se dentro de seu traje de carne humana, ela assentiu.
A mulher que parecia um travesseiro estava certa. O que Devina vinha fazendo até então não estava funcionando. As coisas estavam piorando, e os riscos só aumentavam.
Afinal, ela não apenas estava perdendo... também estava apaixonada pelo inimigo.
Não que gostasse de se lembrar disso.
– Você não precisa acreditar que isso vai funcionar, Devina. Apenas tem que acreditar nos resultados. É difícil, mas você consegue. Tenho fé em você.
Devina observou os olhos da humana e invejou a convicção da terapeuta. Inferno, uma pessoa com aquele tipo de confiança devia estar delirante... ou se apoiando em muita experiência e treinamento.
Houve um tempo em que Devina também tinha essa confiança em si mesma.
E precisava ter isso de volta.
Jim Heron provara ser muito mais do que um oponente digno e uma boa transa. E ela não podia deixá-lo manter a vantagem. Perder não era uma opção. Assim que a sessão de terapia terminasse, ela precisava voltar ao trabalho com a mente limpa e livre de qualquer besteira.
Devina fechou os olhos e se ajeitou na poltrona, apoiando as mãos nos braços estofados e enterrando as unhas no tecido aveludado.
– Como está se sentindo? – perguntou a terapeuta.
– Como se fosse superar isso de um jeito ou de outro.
CAPÍTULO 4
– Apenas me diga se ele está vivo ou não.
A enfermeira ao lado da cama simplesmente ignorou o pedido de Mels. Oferecendo uma caneta, a mulher disse:
– Se você assinar esses papéis eu passarei as receitas...
Danem-se os papéis.
– Preciso saber se o homem sobreviveu.
– Por lei, eu não posso divulgar a condição de nenhum paciente. Assine aqui para eu poder te liberar.
Leia-se: Não encha minha paciência e me deixe voltar a trabalhar.
Praguejando baixinho, Mels assinou no local indicado e guardou as duas folhas de papel e a cópia, enquanto a enfermeira partia para aterrorizar o próximo paciente.
Que noite! A boa notícia era que a polícia estava pelo menos chamando aquilo de acidente, reconhecendo que ela não tinha sido negligente ou bebido. Mas ainda havia problemas...
Observando seus papéis de alta, ela passou a vista nas notas. Concussão leve. Distensão no pescoço. Retorno com seu médico de preferência em uma semana ou mais cedo no caso de visão dupla, náusea, tontura ou piora da dor de cabeça.
O carro provavelmente sofrera perda total.
E não havia como o homem ter sobrevivido.
Com um grunhido, ela sentou, encostando-se nos travesseiros, e sua cabeça enfaixada registrou o movimento como se fosse o giro de uma bailarina. Enquanto esperava a tontura passar, ela observou suas roupas penduradas em uma cadeira de plástico laranja à sua frente. Ela pudera manter o sutiã e a calça durante os exames. A camisa, a jaqueta e o casaco estavam apenas esperando para ser vestidos de novo.
Mels não ligou para sua mãe.
A família já passara por um acidente automobilístico – e, naquele caso, a pessoa que não tinha sobrevivido era seu pai.
Então, pois é, apenas mandou uma mensagem de texto dizendo que sairia com os amigos e chegaria em casa mais tarde. A última coisa de que precisava era deixar sua mãe nervosa e insistindo em ir buscá-la no hospital, especialmente levando em consideração o que ela queria fazer agora.
Mels começou lentamente o esforço para vestir-se, embora esse atraso não tivesse nada a ver com ser uma boa paciente. Evidentemente, o choque de ter se sentido como um boneco de teste de colisão não era algo de que podia se livrar facilmente. Ela sentia-se velha e decrépita – e estranhamente aterrorizada.
Ter matado alguém... era inimaginável.
Ela enfiou os papéis na bolsa, abriu a cortina verde e encarou o enorme caos do hospital: pessoas com jalecos brancos e batas de enfermeira andavam para cima e para baixo, entrando e saindo de quartos, dando e obedecendo ordens.
Considerando que já estivera em uma colisão naquela noite, ela foi cuidadosa para não entrar no caminho de ninguém enquanto se dirigia para a saída.
Que ela não usou.
A sala de espera estava cheia de pessoas buscando cuidados médicos, incluindo um cara com um olho roxo e uma mão cheia de ataduras que sangrava muito. Ele levantou a cabeça, olhou para Mels e assentiu, como se compartilhassem uma ligação por terem começado uma briga em um bar.
Pois é, você deveria ver como o carvalho ficou depois que eu acabei com ele. Toca aqui.
Na recepção, ela se instalou no balcão e esperou até ser notada. Quando um homem se aproximou, Mels sorriu como se o assunto não fosse muito importante.
– Você pode me dizer o número do quarto daquele desconhecido que foi atropelado?
– Ei, eu te conheço. Você é repórter.
– Sim – ela enfiou a mão dentro da bolsa, pegou seu passe de imprensa e o mostrou, como se fosse um distintivo do FBI. – Você pode me ajudar?
– É claro – ele começou a digitar no teclado. – Ele foi transferido para um quarto hospitalar. Número 666. É só pegar o elevador e seguir as placas.
– Obrigada – Mels deu uma leve batida no balcão. Pelo menos, ele ainda estava respirando. – Você ajudou muito.
– Sabe, você não parece muito bem – disse o enfermeiro, fazendo um círculo em volta de seu olho.
– Noite difícil.
– Estou vendo.
A viagem até o sexto andar foi um exercício de processamento de informações, em que seu cérebro falhou miseravelmente. Para começar, ainda sentia tontura, e a subida fez seu ouvido zumbir tanto que foi preciso segurar no corrimão. Ótima ideia colocar um corrimão no elevador; afinal, gente com tontura era parte da rotina por ali. E o fato de a parede ser revestida com metal cinza fosco era outro benefício. Ela ainda não tinha se olhado no espelho, mas, pela maneira como o enfermeiro a olhou na recepção, o air bag que ela quase comera provavelmente não fizera muito bem à sua pele.
A campainha do elevador era alegre como se estivesse na Disneylândia, mas as portas se abriram tão vagarosamente que pareciam exaustas.
Seguindo as instruções, ela observou as placas e encontrou a direção, entrando em um longo e amplo corredor marcado por incontáveis portas largas. Tudo era mais quieto por lá, e ninguém na estação das enfermeiras se manifestou enquanto ela se aproximava. Melhor assim – não queria correr o risco de alguém começar a fazer perguntas, não gostar das repostas e enviá-la de volta.
O quarto ficava quase no final do corredor, e ela meio que esperava ver um policial de guarda na porta. Mas não havia nada nem ninguém. Apenas mais uma porta com uma placa amarela numerada no batente e uma superfície laminada, que parecia madeira de pinheiro.
Empurrando a porta, ela se inclinou para dentro. Sob a luz fraca, pôde ver o pé da cama, uma janela na parede mais distante e uma TV instalada no teto. O som de bipes e o cheiro de desinfetante provavam que aquilo não era um quarto de hotel – não que ela precisasse de ajuda para saber disso.
Mels limpou a garganta.
– Olá?
Quando não houve resposta, entrou e deixou a porta entreaberta. Passando pelo banheiro, parou quando teve uma visão clara do paciente.
Então levou as mãos ao rosto e cobriu a boca quando seu queixo caiu.
– Oh... meu Deus!
No pequeno apartamento acima da garagem que alugava na zona rural, Jim Heron não conseguia dormir.
Todos ao redor dormiam como pedras: o Cachorro estava ao pé da cama, suas patas tremendo enquanto sonhava com coelhos ou esquilos... ou talvez com sombras negras que possuem presas. Adrian estava sentado em um canto, com as costas contra a parede e o corpo tenso, apesar da respiração regular. E Eddie? Bom, o cara estava morto, então não era como se estivesse andando por aí em círculos.
Desesperado por um cigarro, Jim saiu da cama pelo lado errado, para evitar perturbar o Cachorro, e pegou seu maço de Marlboro. Antes de sair, se aproximou para checar Adrian.
Sim. Dormindo sentado.
Com uma adaga de cristal na mão, caso alguém viesse atrás de seu amigo.
Pobre coitado. A perda de Eddie fora um duro golpe na equipe... mas fora particularmente ruim para aquele maluco tatuado cheio de piercings que estava em vigília desde o dia da morte.
Por que será que, quando um homem tenta esconder sua dor, parece ser muito mais triste do que se estivesse em qualquer tipo de histeria e choradeira?
E, em uma nota não relacionada, Jim estava estranhando trabalhar com parceiros.
No tempo em que era um assassino das Operações Extraoficiais, ele agia estritamente sozinho. Agora tanta coisa tinha mudado, desde seu chefe e o tipo de trabalho, passando por suas armas – e Eddie Blackhawk era quem mostrava o caminho, ensinando o que precisavam saber, acalmando ele e Adrian quando os dois discutiam, sendo a voz da razão em situações nas quais parecia não haver lógica... como quando se está diante do próprio cadáver. Ou quando se luta contra um demônio que gosta de usar Prada e que tem uma queda por homens que a rejeitam. Ou quando se leva nas costas o futuro das boas almas, e das más, e de todas aquelas que já existiram ou que iriam existir.
Tipo de coisa que fazia a pessoa querer trocar de emprego com o cara que frita hambúrgueres na lanchonete.
Praguejando, Jim andou até o sofá, pegou uma jaqueta de couro e cobriu as pernas de Adrian. O outro anjo grunhiu e se ajeitou no chão, mas continuou debaixo da jaqueta. Ótimo – o objetivo era manter o cara aquecido, não conversar com ele.
Jim não estava a fim de conversar com ninguém.
Mas isso não era novidade.
Ele pisou no patamar no topo da escada e o ar frio percorreu a pele nua de seu peito. Antes de ter um colega de quarto e um cão, ele sempre dormira nu. Agora usava um moletom. O que o ajudava era o fato de que as noites de abril eram muito frias em Caldwell.
Não que ele dormisse muito.
O maço de Marlboro ainda estava embrulhado e Jim o bateu contra a palma da mão enquanto fechava a porta silenciosamente. Uma das vantagens de ser ao mesmo tempo imortal e corpóreo é que você não precisa se preocupar com câncer, mas a nicotina faz efeito em seu sistema nervoso.
E também não precisa procurar um isqueiro no bolso.
Ele rasgou a embalagem, retirou um cigarro, colocou-o nos lábios e levantou a mão. Quando seu dedo indicador se iluminou ao seu comando, ele pensou em Eddie novamente – e, como de costume, desejou matar Devina.
Pelo menos, os caras do bem ainda estavam com vantagem de dois a um na guerra. Se conseguisse mais duas vitórias, tudo terminaria: ele livraria a Terra das garras do demônio, manteria sua mãe segura na Mansão das Almas... e tiraria sua Sissy do Inferno.
Não que ela fosse sua.
Ele exalou o ar. Não tinha total certeza sobre Sissy, mas as coisas tinham de funcionar assim, não é? Se os anjos ganhassem e Devina deixasse de existir, ele poderia ir lá embaixo e livrar aquela pobre garota da prisão. O Inferno seria dele para fazer o que quisesse.
Certo?
Com essa deixa, começou a imaginar quem seria a próxima alma.
Pensou em seu novo chefe e ouviu a voz com sotaque britânico em sua cabeça. O som macio orgulhoso das palavras de Nigel ecoava ao redor, irritando-o: Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
– Muito obrigado – murmurou enquanto a fumaça escapava de seus lábios junto com a respiração. – Ajudou muito, cara.
Era completamente injusto que sua inimiga soubesse quem era o alvo e ele não.
Que merda.
Na última rodada, ele enganara Devina para conseguir a informação, mas ela não cairia nessa de novo – diga o que quiser sobre aquele demônio, mas ela não era uma loira burra, nem de longe. E isso significava que lá estava ele de novo, emperrado em ponto morto, enquanto o inimigo com certeza saía na frente.
Esse era precisamente o mesmo problema que ele tivera na disputa pela alma de seu antigo chefe. Durante todo o tempo, ele pensou que era outra alma que estava em jogo, mas no fim era Matthias quem estava sendo disputado.
Mas já era tarde, e o filho da puta havia feito a escolha errada.
Vencedora: Devina.
Nesse ritmo, o jogo estava destinado a ser injusto, enquanto Devina continuasse interagindo diretamente com as almas. De acordo com as regras, Jim era o único que poderia fazer isso, mas, na prática, ela fazia parte do corpo a corpo tanto quanto ele. Naturalmente, Nigel, o chefe dos escoteiros, estava convencido de que ela seria punida por pisar fora de seus limites – e talvez até fosse. Mas quem poderia saber quando e onde?
Nesse meio tempo, Jim não tinha outra escolha além de ficar esperto e torcer para não estragar tudo.
Ele precisava vencer. Por sua mãe... e por Sissy.
Ele tragou e exalou outra vez, observando a fumaça girar no ar frio e subir até desaparecer. Ao piscar os olhos, viu uma imagem de Sissy Barten, aquela linda jovem, pendurada de cabeça para baixo em uma banheira de porcelana branca, o sangue vermelho vivo manchando seus cabelos dourados, a pele marcada com símbolos que ele nunca vira antes, mas que Eddie tinha entendido muito bem...
O som discreto de algo raspando o fez perder a linha de raciocínio, então ele virou para trás e abriu a porta do apartamento. O Cachorro saiu mancando com o pelo todo desgrenhado – o que era seu estado natural, e não consequência de ter dormido em uma posição esquisita.
– Ei, amigo! – Jim disse com a voz macia enquanto fechava a porta. – Você precisa ir lá fora?
O pobre e velho cão tinha dificuldade com as escadas, então Jim geralmente o carregava até o chão. Quando ele se abaixou para pegá-lo, o Cachorro prontamente se sentou: era sua maneira de dizer que queria ser apanhado e carregado.
– Sim, senhor.
O animal, que Jim sabia ser mais do que um vira-lata qualquer, pesava quase nada em seu braço, e era quente como um bico de Bunsen.
– Eu disse pra ela pensar em você – Jim disse, segurando o cigarro longe do Cachorro, só para o caso de estar errado quanto ao cão ser especial. – Eu disse pra Sissy pensar em você mastigando minhas meias. Quero que ela imagine você brincando na grama fresca quando as coisas ficarem...
Não podia terminar aquele pensamento em voz alta.
Em seu tempo de vida, Jim fizera muitas coisas feias, horrorosas, para pessoas feias e horrorosas – o que significava que há muito tempo já se tornara durão em relação às suas emoções...
Bom, na verdade, isso tinha acontecido ainda quando era adolescente. Naquele dia, quando tudo mudou para sempre.
No dia em que sua mãe foi assassinada.
Dane-se. São águas passadas.
O fato era que a ideia de Sissy mergulhada no Poço das Almas do demônio era suficiente para fazer até um soldado endurecido pela guerra perder a cabeça.
– Eu disse a ela... pra pensar em você, quando sentisse que não conseguiria aguentar mais.
A pequena cauda do Cachorro balançou para um lado e para o outro, como se Jim tivesse feito a coisa certa.
É, esperava que ela estivesse pensando no Cachorro lá embaixo, e que isso lhe desse um pouco de alívio.
Pois não havia mais nada.
– Preciso encontrar a próxima alma – sussurrou Jim antes de fumar outro trago do cigarro. – Preciso saber quem é o próximo na lista. Precisamos vencer, Cachorro.
Aquele nariz frio e molhado encostou em seu rosto, e ele teve o cuidado de soprar a fumaça por cima do ombro.
O fato de Nigel dizer que Jim conhecia a alma não significava absolutamente nada. Ele conhecera muita gente durante sua vida.
Podia apenas rezar para que fosse alguém que ele pudesse trazer para o seu lado.
CAPÍTULO 5
Matthias percebeu o momento em que não estava mais sozinho. A luz ao redor se intensificou, significando que uma porta se abriu, e isso não acontecia por acaso.
Sua mão direita se fechou por reflexo, como se segurasse uma arma. Mas isso era tudo o que podia fazer. Seu corpo estava imóvel por causa da dor, como se uma corrente o prendesse onde quer que ele estivesse deitado... era uma cama. Sim, estava numa cama, e o som ambiente cheio de bipes lhe informava que tipo de cama. Um hospital. Ele ainda estava no hospital.
Será que nunca iria se recuperar da...
Seus pensamentos empacaram nesse ponto.
Não havia nada além de um buraco negro.
Não fazia ideia da razão de estar ali. Nenhuma pista de por que seu corpo doía tanto. Não... Deus, sabia apenas que seu nome era Matthias, e nada mais.
O pânico o fez arregalar os olhos. Havia uma mulher ao pé da cama, aterrorizada, com as mãos no rosto e uma expressão de completo choque. Um de seus olhos estava roxo e sua testa estava enfaixada. O cabelo preto estava preso para trás. Olhos bonitos. Alta... ela era alta...
Olhos lindos, na verdade.
– Eu sinto muito – ela disse, com a voz rouca.
Como é?
– Sobre...? – a voz dele estava áspera, a garganta doía. E um de seus olhos não funcionava direito.
Não, o olho estava completamente inutilizado. Perdera metade da vista no passado. Foi isso mesmo, quando ele era...
Franziu a testa e seus pensamentos caíram no abismo novamente.
– Eu te atropelei. Sinto muito... não enxerguei você. Estava tão escuro, e você apareceu na rua antes que eu pudesse frear.
Ele tentou estender a mão, em um impulso para acalmá-la que ultrapassou a dor e a confusão.
– Não foi sua culpa... não... sem lágrimas. Venha...
Por algum motivo, ele não podia acreditar que alguém choraria por ele, agora ou em qualquer tempo. Não era o tipo de homem que inspira reações assim. Não ele. Mas por que isso era assim, ele não sabia...
A mulher se aproximou um pouco, e Matthias observou com seu olho bom enquanto ela estendia a mão quente e macia... até tocar a palma dele.
O contato o fez sentir aquecido por todo o corpo, como se tivesse deitado em uma banheira quente.
Engraçado, ele nem tinha percebido que sentia frio até ela o tocar.
– Estou apertando sua mão... – ele disse, com a voz entrecortada. – Caso não consiga perceber.
Ela foi gentil e não comentou o fato de que claramente não sentia sua tentativa de retribuir o contato. Mas ele estava se esforçando. E quando seus olhos se encontraram, por alguma razão, Matthias quis dizer que nem sempre estivera quebrado. Um dia, não faz muito tempo, ele fora capaz de levantar-se orgulhoso, correr longas distâncias e usar seus músculos. Porém, agora ele era como um colchão com pulsação cardíaca.
Mas o motivo disso não fora o atropelamento. Não, ele já estava quebrado havia um bom tempo.
Talvez sua memória estivesse voltando.
– Sinto muito – ela disse novamente.
– Foi assim que você... – ele fez um gesto mostrando o próprio rosto, mas isso a fez focar ainda mais nele, e a maneira como estremeceu sugeria que para ela era difícil olhar o quanto ele estava feio. – Você também se machucou.
– Ah, estou bem. A polícia já veio conversar com você?
– Acabei de acordar. Não sei.
Ela desfez o contato entre eles e enfiou a mão em uma bolsa que mais parecia uma mala.
– Aqui. Este é o meu cartão. Eles conversaram comigo enquanto eu estava sendo medicada, e eu disse que aceito toda a responsabilidade.
Ela colocou o cartão na frente de seu rosto, mas sua visão se recusou a focar.
E Matthias não queria olhar para nada além dos olhos dela.
– Qual é o seu nome?
– Mels Carmichael. Na verdade, é Melissa – ela tocou o próprio peito. – As pessoas me chamam de Mels.
Quando ela deixou o cartão na mesa ao lado, ele franziu a testa, mesmo isso fazendo sua cabeça latejar.
– Como você se machucou?
– Me ligue se precisar de alguma coisa. Não tenho muito dinheiro, mas...
– Não estava usando cinto de segurança, não é?
A mulher olhou ao redor como se já tivesse ouvido isso da polícia.
– Ah...
– Você devia usar o cinto...
A porta abriu bruscamente, e a enfermeira que entrou parecia como se fosse a dona do lugar.
– Estou aqui – ela anunciou enquanto caminhava até os aparelhos que ficavam atrás da cama. – Ouvi o alarme.
A primeira coisa em que Matthias reparou foram os grandes peitos da mulher. Depois, na cintura pequena. E nos longos cabelos castanhos, macios como um edredom e brilhantes como porcelana.
Mas aquela imagem fez sua pele se arrepiar. Ao ponto de ele tentar se sentar para poder sair dali...
– Shh... está tudo bem – sorrindo, a enfermeira quase botou Mels para fora. – Estou aqui pra ajudar.
Olhos negros. Olhos negros que o lembravam de alguma coisa, em algum lugar... uma prisão onde você ficava sufocado pela escuridão, incapaz de se livrar...
A enfermeira se inclinou e seus seios se apertaram um contra o outro.
– Vou cuidar de você.
– Não – ele disse com veemência. – Não, você não vai...
– Ah, sim, eu vou.
Sentia seu inconsciente tentando avisá-lo sobre alguma coisa, algo que não conseguia distinguir com clareza, mas que enviava sinais como um caminho de pólvora antes de uma bomba explodir. Mas não encontrou nada específico. Suas memórias pareciam bases camufladas em um horizonte visto através de óculos de visão noturna – ele sabia que o inimigo estabelecera bases em algum lugar, mas era impossível visualizar qualquer detalhe.
– Se você não se importar – a enfermeira disse para Mels –, eu preciso cuidar do meu paciente.
– Ah, sim. Claro. Eu vou... é, vou embora – Mels se esticou sobre a mulher para poder enxergá-lo. – Bom... falo com você mais tarde.
Matthias também precisou se desviar da enfermeira, mudando a posição do corpo e fazendo os músculos da barriga se contraírem.
A enfermeira bloqueou sua visão.
– Feche a porta quando sair, certo? Obrigada.
E então ficaram a sós.
A enfermeira sorriu e encostou o quadril na beira da cama.
– Que tal eu te dar um banho?
Parecia uma ordem, não um pedido. E, cara, de repente ele sentiu-se nu – e não de um jeito bom.
– Não estou sujo – ele disse.
– Sim, você está – ela colocou a mão em seu braço, bem no lugar onde as sondas se conectavam com a veia. – Você está imundo.
Do nada, seu corpo começou a ganhar força: a energia invadia e inflava seus músculos com saúde, como se ele tivesse passado por dias de descanso, noites bem dormidas e muita comida.
Estava vindo dela, ele percebeu. Mas... como isso era possível?
– O que você está fazendo comigo?
– Nada – a enfermeira sorriu. – Se sente diferente?
Olhando em seus olhos negros, a escuridão parecia tão irresistível quanto repulsiva – e ele não saberia dizer quanto tempo ficaram ali daquele jeito, ligados pela mão dela, que transferia o que parecia uma droga miraculosa.
– Eu conheço você – ele pensou em voz alta.
– É engraçado quando a gente sente isso com uma pessoa desconhecida.
O poder que entrava nele parecia maligno e muito familiar.
– Eu não quero...
– Não quer o quê, Matthias? Não quer se sentir melhor, ficar mais forte, viver pra sempre? – ela se inclinou para ainda mais perto. – Está me dizendo que não quer ser um homem de novo?
Os lábios dele começaram a se mover, mas nenhum som saiu. Uma lentidão se apoderou de seu corpo quando ela retirou a mão. Desorientado e confuso, ele tentou se levantar, mas parecia que, afinal, fora mesmo drogado.
– Vou te dar um banho agora – ela disse com um olhar malicioso e um sorriso que faziam parecer que estava falando de sexo oral e não de esponja e sabonete.
Quando ela se aproximou da pia, Matthias aspirou profundamente, suas costelas se expandindo sem dor, e conseguiu expirar sem dificuldade. Todas as dores desapareceram, dando a impressão de que fazia anos que seu corpo não apresentava nenhuma complicação. Talvez séculos?
– Que dia é hoje? – ele murmurou, enquanto ela enchia uma bacia.
A enfermeira olhou por cima do ombro.
– É mesmo! Você está com amnésia.
Um momento depois ela voltou à cama, trazendo junto a mesa de rodinhas. Quando ela abaixou o lençol até a cintura dele e desamarrou o avental do hospital, Matthias levantou a cabeça pesada e olhou para si mesmo. A parte de cima não estava tão ruim, apenas uma cicatriz aqui e outra ali. Mas a parte de baixo estava arrasada.
Sentiu a esponja macia e quente.
Enquanto a enfermeira massageava seu peito, ele observou a maciez e a luminosidade da pele dela: era como uma pintura, e seu cabelo era mais espesso e voluptuoso do que parecia ser possível. Seus lábios pareciam até partes de uma fruta: molhados, com a promessa de doçura.
Eu não a quero, ele pensou.
Mas não conseguia se mover.
– Você precisa ganhar peso – ela comentou, passando a esponja em seu peito. – Está muito magro.
A esponja foi descendo cada vez mais, demorando-se na barriga: os cuidados estavam mais para de uma amante do que de uma enfermeira. Com súbita clareza, Matthias lembrou que houve um tempo em que ela poderia ter se impressionado – as mulheres que ele contratava para o exercício sexual sempre ficavam animadas com seu corpo...
Espere um pouco, isso realmente estava acontecendo?
Quando ela começou a baixar o lençol ainda mais, Matthias a fez parar:
– Não, pare.
– Sim, continuo.
Com os olhos dela presos aos seus, a enfermeira afastou a mão dele e arrancou o resto da roupa de cama. A violência do ato o fez lembrar de algo lá no fundo de sua mente... mas não sabia o quê.
– Fiz você lembrar de algo? – ela disse, mesmo sabendo bem a resposta. De alguma maneira... ela sabia que ele gostava de coisas perigosas. – Fiz? Matthias.
– Talvez – de repente sua voz parecia mais forte, mais profunda...
– E agora?
Ela o tocou naquele lugar que definia sua masculinidade: a esponja raspou seu pênis de leve.
Quando ela lambeu os lábios com volúpia, ele teve de rir alto. Seja lá qual fosse o seu motivo para quebrar todas as regras, a enfermeira não chegaria a lugar nenhum – o que resolveria o problema de ele não querer aquilo. Ela podia ficar nua e montá-lo; aquele pedaço mole de carne não se levantaria de jeito nenhum.
Mesmo com amnésia, sabia disso, da mesma maneira que sabia que não enxergava com um dos olhos. Era um fato, não uma lembrança.
– Minha memória não é a única coisa que perdi – ele disse secamente.
– É mesmo?
Quando ela massageou onde não deveria, Matthias deu um salto. Bom, mas a impotência não significava que você não sentia nada. Significava apenas que não podia fazer nada a respeito...
O fluxo de poder voltou a se apoderar dele, desta vez mais forte. E com um gemido, ele se arqueou, automaticamente levantando o quadril até a fonte do prazer.
– Isso mesmo – ela disse suavemente. – Sinta meu toque. Estou dentro de você.
O desejo sexual há muito esquecido explodiu por todo o corpo de Matthias; a agressividade e a necessidade de penetrar algo que ele não sentia há muito tempo. Deus, lembrar-se de que era de fato um macho, e não algum doente andrógino...
Oh, droga, isso era bom. Muito... bom.
– Olhe pra mim – ela ordenou enquanto trabalhava em seu pênis. – Olhe para mim.
Ele ficou tão distraído pela novidade que quase esqueceu quem a proporcionava, e a visão dela acabou drenando a sensação para longe: o que se tornou impotente agora foram suas emoções, mesmo que o corpo funcionasse plenamente. Ela era linda, mas... era uma beleza cheia de veneno.
– Você não gosta disto, Matthias?
Não, ele não gostava. Não gostava mesmo.
– Nem um pouco.
– Mentiroso. Precisamos terminar o que começamos, você e eu. Sim, precisamos.
Devina entrou na loja Saks Fifth Avenue no shopping Caldwell Galleria perto das cinco da manhã. Passou pelas portas de vidro e caminhou até um mostruário com manequins que vestiam tons pastéis. Ela posou junto deles por um momento, arqueando as costas e sentindo os seios apertarem o tecido da blusa sob o casaco.
A primavera estava no auge, e isso era uma boa notícia para suas coxas.
Já que estava ali, talvez pegasse algumas coisinhas.
Com uma febre de compras correndo por suas veias, ela apareceu atrás do balcão e, com um aceno das mãos, desativou os detectores de movimento. Por um segundo, pensou em deixar as câmeras de segurança ligadas, só por diversão.
Nada mais divertido do que ter uma plateia – mesmo que fosse apenas um humano gorducho sentado em uma sala de segurança ao final de um turno de trabalho durante o qual provavelmente só dormira.
Porém, ela estava ali por uma razão muito séria.
Seus sapatos de salto faziam barulho no chão de mármore, e ela gostava daquele som ecoando: pisou mais forte para que seu domínio sobre o vazio alcançasse todas as direções. Deus, ela adorava aquele cheiro no ar: chão polido, perfume, colônia... e riqueza.
Passando pelas bolsas de grife penduradas na parede, ela checou os estandes da Prada, Miu Miu e Chanel. As bolsas pareciam lindas mesmo sob o brilho fraco das luzes de segurança, e ela quase engasgou quando encontrou uma Gucci. Atravessando como um fantasma pelo painel trancado, agarrou uma bolsa de pele de cobra verde-escuro e continuou.
Fora sexo, pensou Devina, lojas de departamento de luxo proporcionam a melhor sensação que existe: milhares e milhares de metros quadrados cheios de coisas, tudo bem organizado, etiquetado e catalogado. E protegido.
Era um completo orgasmo para pessoas obsessivo-compulsivas.
Então precisava ter cuidado. Estava sentindo uma ligação surgir entre ela e todas aquelas mercadorias e, se isso acontecesse, havia o perigo de criar uma sensação de posse sobre aquelas preciosidades. E isso não seria bom para ninguém. Ela teria de matar os humanos que entrassem ali para fazer compras, e isso seria exaustivo.
Mas toda aquela organização a fez pensar que poderia usar seu notebook Lenovo e entrar para a era digital com suas próprias coleções.
Talvez o próximo virgem que sacrificaria para proteger seu espelho seria um nerd. Depois ela poderia reanimá-lo e fazê-lo trabalhar para si.
Afinal, havia muitos programadores de computador por aí que não conseguiam nem chegar perto de uma mulher. Seria muito fácil.
Entrando na parte central do primeiro andar, ela encontrou os balcões de maquiagem: o balcão da Chanel com sua conhecida maquiagem preta e brilhante, o da Lancôme cheio de recipientes de vidro... e o da Yves Saint Laurent, com muitos detalhes dourados ao redor dos mostruários.
Indo para trás do balcão, ela abriu o cadeado da prateleira que estava ao chão, e, enquanto abaixava e se apoiava na ponta dos pés, sua mão iluminou o caminho, lançando luz sobre as pequenas etiquetas grudadas nas embalagens.
A etiqueta 1 Le Rouge foi fácil de achar. Ela pegou um pacote, abriu a caixa e retirou o brilhante tubo de metal. Lindo, tão lindo, novinho em folha, intocado. Ela quase estremeceu quando girou e expôs a perfeita coluna de batom vermelho.
O perfume, delicado e com toques florais, fez Devina revirar os olhos.
A terapeuta estava certa: o ataque de pânico não durou para sempre naquele consultório, e quando Devina continuou com seus afazeres mais tarde, a ansiedade de ter jogado o batom fora acabou sendo esquecida enquanto ela dava atenção a outras coisas. Porém, a sensação ressurgiu quando ela voltou para seu espaço privado e sentou em frente ao espelho, pronta para descer até seu muro e aproveitar um pouco de tempo sozinha com suas crianças.
Entram os problemas.
Seus pensamentos rapidamente saíram de controle, surgiam imagens de um compactador de lixo e pilhas enormes e mal cheirosas de dejetos em grandes aterros desolados, que a faziam querer chorar.
Devina poderia ter voltado para pegar aquele batom específico, mas queria honrar a religião da terapeuta: tornar-se obcecada em conseguir de volta aquele batom, sem se importar com as consequências, seria voltar também para seu ciclo vicioso.
Mas ela não podia trilhar esse caminho o tempo todo – e por isso estava na loja e não no consultório, e agora tinha um novo e lindo batom para substituir aquele que sacrificara em nome do autoaperfeiçoamento.
Havia mais cinco batons da cor que gostava, todos empilhados formando uma bonita pirâmide. Ela esticou a mão, com vontade de pegar todos, para servirem de reservas dos reservas, mas impediu a si mesma. Fechou a prateleira. Teletransportou-se para longe.
Saiu de lá orgulhosa de si mesma.
Fim do intervalo; hora de voltar ao trabalho.
Voltando à vitrine pela qual entrara, parou em frente a um dos manequins. A coisa usava uma peruca loira e vestia uma roupa florida que Devina nunca usaria, nem morta.
Mas, então, começou a imaginar o que Jim Heron pensaria se a visse vestindo aquilo.
Sem dúvida fazia seu tipo: feminina, bonita, nada muito revelador. Modesta.
Aquele cretino. Enganador mentiroso.
Naturalmente, o fato de tê-la enganado tão bem apenas o deixava mais atraente.
Devina franziu a testa quando a voz da terapeuta surgiu em sua mente. Terapia cognitiva de comportamento... reprogramar o cérebro por meio de experiências...
O demônio se aproximou e passou a mão pelos cabelos falsos, aqueles longos e lisos fios amarelos.
Sissy Barten, a queridinha de Jim, tinha cabelos iguais àqueles. E teria adorado aquele vestido. Teria se mantido ao longe e esperado Jim se aproximar, nunca se jogaria nele, manteria sempre aquele jeitinho virginal.
O que era suficiente para fazê-la querer matar os dois – e com aquela garotinha estúpida seria a segunda vez, pois já tinha rasgado sua garganta na banheira.
Devina começou a sorrir. E então riu.
Com um rápido movimento, arrancou a peruca, deixando o manequim careca, e saiu através do vidro.
CAPÍTULO 6
Tinha de ser um sonho, não é?
Adrian tinha de estar sonhando. Mas, caramba, tudo parecia real, desde o sofá de veludo sob o seu traseiro, a cerveja gelada em sua mão, até a batida visceral do som na boate.
Estava com medo de virar a cabeça. Medo de descobrir que estava ali sozinho naquele lugar barulhento e desesperador, cheio de pessoas vazias iguais a ele.
Se estivesse sozinho, então Eddie estava mesmo morto.
Deu um gole na cerveja, preparou-se e então virou.
Adrian lentamente abaixou a garrafa, exalando todo o oxigênio para fora de seus pulmões.
– E aí, cara? – ele sussurrou.
Os olhos vermelhos de Eddie se viraram.
– Ah... oi – o cara se ajeitou no assento. – Escute, você tá bem?
– Sim, é só que...
– Por que tá olhando pra mim desse jeito?
– Senti sua falta – Ad disse com a voz grave. – Achei que nunca mais ia te ver.
– Só porque fui até o banheiro? – Eddie sorriu. – Geralmente, eu volto de lá.
Ad esticou a mão, sabendo que um toque provaria de que lado estavam...
Eddie franziu a testa e se inclinou para trás, como se Ad tivesse revelado um par de chifres.
– O que há de errado com você?
O rosto de Eddie parecia exatamente o mesmo: a pele bronzeada pelo sol, um vestígio de barba, aqueles olhos avermelhados estavam abertos para o mundo, nem desconfiados e nem ingênuos, e uma pesada trança que percorria as costas musculosas.
– Eu não sei – disse Ad esfregando o rosto.
– Quer ir embora?
– Deus, não.
– Certo – aqueles olhos vermelhos voltaram-se para a multidão. – Então, você vai me forçar a transar de novo?
Ad riu alto.
– Certo. Foi isso que aconteceu. Claro.
– Jogando mulheres para cima de mim...
– Eu nunca joguei...
– Escolhendo as que sabe que vou gostar...
– Bem, isso eu fiz...
– Arruinando minha virtude.
Quando o cara deu outro gole, Ad ficou sério.
– Ninguém poderia fazer isso.
– É, você tem razão. Antes de me tornar um anjo, eu era uma virgem imaculada.
– O que explicaria esse cabelo todo.
– Não, o cabelo me faz parecer gostosão.
Ad riu novamente e se recostou no sofá sentindo uma súbita injeção de energia percorrer seu corpo. Era uma sensação de que a vida voltara ao normal, que a tragédia não acontecera, que tudo voltara à maneira como deveria ser; era um alívio tão grande que, mesmo sentado, ele sentia como se estivesse voando. Com uma pontada de otimismo, seus olhos percorreram a multidão. Seu radar para mulheres voltava a funcionar e sua rara felicidade transformava periguetes em modelos internacionais.
– Está vendo alguma coisa que te agrade? – Eddie perguntou.
– Se não fosse por mim, você nunca conseguiria uma transa.
– Sabe, eu não acho que isso seja verdade.
– Você é sincero demais.
– Droga.
Ah, sim, aquela ruiva serviria, Ad pensou. E ela estava junto com uma morena...
Franziu a testa e ficou tenso. Havia alguém ao redor, no canto mais afastado, observando-os das sombras.
– Tá na hora – disse Eddie. – Ou fazemos isso agora, ou pedimos outra rodada. Ad? Olá?
Adrian chacoalhou a cabeça.
– Sim... claro.
Seu melhor amigo lhe lançou um olhar desconfiado novamente.
– O que há de errado com você, cara?
Boa pergunta, pensou enquanto se levantava.
– Vou ver o que posso pescar por aí.
– Sem pressa... só não demore muito.
– Isso não é uma contradição?
– Não quando se trata de você.
Os dois riram um pouco. E então Ad se concentrou nas duas mulheres. Quando se aproximou da ruiva e da morena, elas responderam com uma previsível risadinha, nada comparado com os orgasmos que resultariam daquele encontro.
– Meu nome é Adrian – ele disse. Seu lento sorriso fez as mulheres arregalarem os olhos e ajeitarem suas poses: peito levantado, barriga para dentro, pernas esticadas para expor as coxas.
– Gosto do seu perfume – ele disse, inclinando-se para perto do pescoço da ruiva.
Na verdade, não tinha sentido o cheiro ainda, e nem se importava.
Quando puxou o ar, ele congelou. Aquele cheiro. Era...
– Que bom que gostou – ela disse, enquanto acariciava as costas dele até chegar em seu traseiro. – Escolhi exatamente pra alguém como você.
Adrian se afastou, seu cérebro doía. Ou talvez fosse seu peito.
– Certo. Bom.
Olhou por cima do ombro. Eddie estava no sofá, todo espreguiçado, mas totalmente atento, como se estive pronto para o sexo.
Ou seja, estava normal.
Adrian assentiu na direção dele.
– Trouxe um amigo. E você?
– Minha amiga tem namorado – murmurou a ruiva, como se isso fosse um defeito.
– Desculpe – disse a outra mulher.
Como se isso importasse.
– Certo, só você então. Consegue aguentar os dois?
Quando a garota assentiu como se tivesse ganhado na loteria, ele tomou sua mão, e o perfume dela os seguiu, fazendo Ad desejar que a solteira fosse a morena, e que fosse aquela Jessica Rabbit com maquiagem gótica quem tivesse namorado. Mas não dava para voltar atrás – seria trabalhoso demais achar outra candidata e, além disso, o que fariam não era nada permanente. Nunca era permanente.
Mas que droga de perfume de flores – dava até arrepios.
Quando chegaram no sofá, a ruiva foi se jogando no meio, cobrindo tanto as pernas dele como as de Eddie. E, como ela acabou de frente para o outro anjo, Eddie começou a beijá-la intensamente.
Para um cara que não sabia se aproximar de mulheres, ele tinha um apetite e tanto.
Enquanto Ad assistia, e impulsionava seu quadril e peito contra o corpo da mulher, pensou que era incrível o poder que um pesadelo pode ter. Era como se toda aquela merda que ele imaginara sobre Eddie tivesse realmente acontecido: aquele lacaio do demônio aparecendo do nada e rasgando o anjo com uma lâmina, tirando a letra I da palavra imortal. E então a morte, no saguão daquele banco, não muito longe dali. E depois o sofrimento de Adrian, a sensação de ter perdido toda a razão de viver...
Adrian franziu a testa e se perguntou por que falava consigo mesmo como se aquilo realmente tivesse acontecido...
A ruiva se arqueou e abriu as pernas, claramente o convidando-o para brincar no parquinho. E quando ele obedeceu, Eddie passou a trabalhar em seus peitos, baixando um pedaço da blusa, de forma mais agressiva do que o normal, e expondo um par de seios menor do que aparentava.
Quando Adrian estava prestes a mergulhar a mão em território inexplorado, a garçonete apareceu trazendo novas garrafas. Parecia acostumada com aquele showzinho, pois nem piscou ao servir a cerveja.
– Eu pago – disse Ad, tirando a carteira do bolso da calça e entregando uma nota de vinte. Quando a garçonete foi embora, ele olhou para a cerveja, e então virou imediatamente para Eddie. – Coors Light? Que merda é essa?
O outro anjo parou o beijo e deu de ombros.
– Estou controlando meu peso.
Ad revirou os olhos e voltou ao trabalho com o prato principal. Subindo as mãos debaixo da saia curta, ficou surpreso ao descobrir uma calcinha com a resistência de vigas de aço e a elasticidade de uma tenda do exército. Que diabos? Bem, ele pensou, uma calcinha modeladora era mais barata do que uma sessão de lipo.
O perfume voltou a invadir seu nariz, sugerindo que, afinal, talvez não viesse da mulher.
Olhou ao redor, mas não enxergou nada fora do comum.
– Acho que você deveria ser o primeiro – disse Eddie, enquanto brincava com aqueles seios... que agora pareciam meio caídos.
E aquele cabelo. Antes era volumoso e ondulado, agora parecia um pouco crespo.
A mulher sorriu, revelando dentes tortos.
– Vai, Adrian... transa com ela – na escuridão, os olhos de Eddie pareciam tudo menos brilhantes. – Quero assistir vocês.
A mulher tomou a mão de Ad e a colocou de volta entre suas pernas, esfregando a si mesma contra sua palma e dedos...
No meio da multidão, uma pessoa surgiu: uma figura alta e orgulhosa, vestindo um roupão branco. Quando se aproximou, o cheiro de flores ficou mais forte e tomou todo o ar ao redor...
Eddie.
Era o Eddie real, de pé ali na sua frente, uma presença verdadeira em meio a uma multidão de mortos vivos.
– Ah, que merda! Justo agora que as coisas estavam ficando interessantes!
Ad virou a cabeça bruscamente. Devina estava ao seu lado na outra ponta do sofá, pela primeira vez mostrando sua forma verdadeira: era um cadáver animado, a carne perpetuamente caindo dos ossos, a grotesca palma apodrecida passeando pelos seios da ruiva. A expressão do demônio mostrava irritação, seu queixo e lábios estavam apertados ao máximo.
Adrian gritou e tentou se levantar rapidamente, mas a ruiva segurou sua mão no lugar – e, enquanto ele lutava contra sua imensa força, ela também revelou sua verdadeira aparência: outro corpo decrépito, a ilusão de beleza sumindo como se não fosse mais possível sustentá-la.
Enquanto ele tentava se desvencilhar, uma mancha negra começou a subir ao longo do braço, primeiro nos dedos, depois nos pulsos, seguindo seu caminho para o cotovelo.
Gritando alto, ele se sacudiu violentamente, mas estava preso como uma mosca em uma teia de aranha, como um rato em uma ratoeira, como um...
Eddie, o verdadeiro, aquele que estava morto, quebrou aquela conexão com um simples toque, não em Ad, mas na ruiva: aparecendo atrás deles de repente, apenas se inclinou e encostou o dedo iluminado no ombro do monstro. Puff! Ela simplesmente sumiu.
Enquanto Devina xingava o anjo, Adrian se libertou: seu corpo caiu para trás do sofá, com os olhos fixos em Eddie enquanto o coração se partia novamente por causa da perda.
– Vá se foder! – Devina gritou para o anjo.
O rosto de Eddie, aquele rosto esperto, gentil e maravilhoso, não mostrou reação ao insulto. Ele apenas acenou com a cabeça para a garrafa de cerveja Coors e disse:
– Na sua condição, eu estaria preocupado com muitas outras coisas mais importantes do que meu peso.
Mais xingamentos vieram, mas Devina não fez nada além disso – era de se imaginar o que Eddie tinha realmente feito com aquele dedo luminoso do E.T.
O outro anjo observou Ad por um longo tempo, como se sentisse ainda mais falta do amigo vivo.
– Nunca estarei longe – disse Eddie com um sussurro.
– Ah, merda... não vá embora – murmurou Ad. – Fique aqui.
– Que comovente – os olhos negros de Devina estavam furiosos. – Você quer dar um beijinho antes de ir embora?
Eddie começou a se mover como se fosse uma estátua em uma esteira rolante, seu corpo paralisado sendo puxado através da multidão, o perfume de flores se desvanecendo.
– Eddie! – quando Adrian levantou as mãos na direção do anjo, a mancha negra em seu braço quase chegava aos ombros.
– Estou dentro de você – disse Devina com satisfação. – E é tarde demais pra fazer qualquer coisa a respeito disso. Tarde demais!
Adrian gritou a plenos pulmões.
CAPÍTULO 7
Matthias acordou com a luz do dia batendo em seu rosto. Não tinha certeza de quando aquela enfermeira de mão boba saíra, mas ele pretendia partir assim que ela fosse embora. Um sono não natural o arrebatara, deixando-o inconsciente de tal forma que se sentiu dominado.
Francamente, estava surpreso por ter conseguido acordar.
O quarto do hospital parecia exatamente o mesmo, mas por que haveria de mudar durante a noite? E Matthias sentia-se mesmo melhor, como se seu corpo fosse um carro recém-saído do mecânico.
Quem diria que uma masturbação não solicitada poderia ter um impacto tão grande...
Mas era estranho. Quando olhou ao redor, teve a sensação de que era um milagre o fato de ele ainda estar “do lado de fora”. Mas estava fora de onde? Uma prisão? Um hospício? Algo ainda pior?
Forçando seu cérebro confuso a prestar atenção, tentou lembrar onde estivera na noite anterior, o que havia acontecido antes de acordar ali...
Eu te atropelei. Sinto muito.
Matthias fechou os olhos e se lembrou daquela mulher, Mels Carmichael. Alguma coisa nela penetrara o nevoeiro que o cercava, tocando-o onde realmente importava. Por quê? Não fazia ideia – mas sabia que, sob outras circunstâncias, gostaria de passar mais tempo com ela.
Muito mais.
Mas, qual é, ele não era do tipo romântico – sua intuição dizia isso em alto e bom som.
Levantando a cabeça dos travesseiros, ficou surpreso por não se sentir pior. Deu uma chance a seu corpo para deixar a ficha cair e começar a dar as informações corretas, algo mais consistente para alguém que fora atropelado há menos de doze horas.
Nada. Ainda sentia-se bem...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Certo, ajudaria se soubesse quem estava atrás dele, ou por que estava fugindo, mas não perderia tempo tentando decifrar essas perguntas – não quando sua adrenalina estava consistentemente apontando para a saída e gritando para ele dar o fora dali.
– Acho que você não é um anônimo, afinal.
Matthias tentou sacar uma arma que não tinha e olhou ao redor. A enfermeira estava de volta, de pé ao lado da porta, aparecendo como se fosse carregada pelo vento.
Sua aparência era diferente sob a luz do dia. Já não parecia sedutora.
Talvez ela fosse um vampiro. Há, há.
– Encontraram sua carteira – ela disse, mostrando uma carteira de couro preto. – Está tudo aqui, identidade, cartão de crédito... até seu cartão de seguro saúde! A conta no hospital vai ficar cara, mas a maioria das despesas está coberta.
Ela andou e colocou a carteira na mesa de rodinhas, bem ao lado do cartão que aquela jornalista tinha deixado. Então ela deu um passo para trás, como se soubesse que ele queria espaço.
Houve uma longa pausa.
– Obrigado – ele disse, tentando preencher o silêncio.
Ela estava vestida com roupas casuais: jeans azul, sapatos pretos, jaqueta branca folgada que parecia nova em folha. O cabelo estava solto e chegava até os ombros, e ela o alisou com a mão, mesmo já estando perfeito.
– Também trouxe algumas roupas – ela acenou com a cabeça. – Estão no armário atrás de você. Espero que sirvam.
– Então vão me liberar?
– Desde que se sinta bem esta manhã. Tem alguém te esperando em casa?
Ele não respondeu – e não por não saber a resposta. Nunca respondia nada para ninguém. Esse era seu jeito.
Mais uma longa pausa.
Ela limpou a garganta e desviou os olhos quando disse:
– Escuta, sobre ontem à noite...
Então era por isso que ela estava ali.
– Vou me esquecer disso, e você deveria fazer o mesmo – ele disse secamente.
Deus sabia que Matthias tinha problemas mais importantes do que ter sido abusado por uma mulher bonita. Pois é, que história triste. Especialmente se comparada com as coisas que ele fez com outras pessoas...
Lembranças emergiram do fundo de sua consciência, como um monstro esquecido num lago profundo ameaçando se revelar.
Afinal, quem era ele?
De repente os olhos negros da enfermeira grudaram nos seus.
– Sinto muito mesmo. Aquilo foi muito errado da minha parte. Nunca deveria ter...
Voltando ao presente, Matthias pensou que era engraçado que, à luz do dia, todo aquele poder que ela tinha sobre ele houvesse desaparecido totalmente. Ela nem parecia ser o tipo de mulher que poderia ser tão agressiva. Era apenas uma jovem enfermeira bonita, com um belo corpo e um cabelo lindo, e que agora parecia vulnerável.
Será que aquilo tinha mesmo acontecido? Ele provavelmente recebera vários analgésicos, e Deus sabe o quanto esses remédios podem bagunçar a cabeça de uma pessoa.
Por outro lado, se nada tivesse acontecido, ela não estaria ali se desculpando, não é?
– Foi uma total quebra de protocolo, eu nunca fiz nada assim antes. É só que... você estava com tanta dor, e você queria... e...
Ele queria? Lembrava-se do completo oposto. E lembrava que... teve um orgasmo. Talvez isso também não tivesse acontecido.
O que faria sentido.
– Enfim, pensei que deveria te dizer isso antes de ir embora... e você não vai mais estar aqui quando eu voltar da minha folga.
Ela parecia honestamente envergonhada e constrangida. Por alguma razão, Matthias teve a sensação de que fazia parte de sua personalidade tirar vantagem das pessoas, por nenhum motivo além de deixá-las constrangidas.
– Foi minha culpa – ele se ouviu dizer e, no instante que as palavras saíram, acreditou na confissão. – Sou eu quem deveria pedir desculpas.
Afinal, sexo por piedade acontecia sempre com um mesmo princípio, quer o ato fosse até o fim ou não: “oh, estou doente; pode cuidar do meu pau? obrigado, querida”.
A enfermeira pousou a mão na armação da cama.
– Eu só... é, bom, só não quero que pense que fico por aí fazendo essas coisas – ela riu, sem jeito. – Não sei por que isso importa. Mas importa.
– Você não precisa se explicar.
Quando ela ergueu o olhar, sua expressão cuidadosa relaxou e se transformou em um sorriso genuíno. O que o fez checar seu dedo anelar procurando por algum certificado de casamento.
Nada. Nenhuma aliança.
– Obrigada por não ficar bravo – ela olhou por cima do ombro em direção à porta. – Acho que eu deveria ir. Se cuide... e por favor lembre-se de fazer a consulta de retorno com seu médico. Lesões na cabeça e perda de memória são coisas sérias.
– Sim. Vou fazer isso.
Mentir foi muito fácil, Matthias sabia que tinha mentido muito durante sua vida. E quando acenou de volta, sua mente a analisava como se ela fosse um relatório ou uma correspondência, não uma pessoa – mas isso não era culpa dela.
Ele sentia que era assim que sua mente funcionava.
Ótimo. Nada como acordar de manhã e aprender passo a passo que você é um verdadeiro filho da puta.
Observou a mesa ao lado da cama. O cartão de visitas e a carteira estavam um ao lado do outro.
Matthias estendeu a mão, sem saber qual deles pegar.
No fim, a atração pela carteira parecia maior. Ao abrir o couro dobrado, observou a carteira de motorista que estava na parte transparente. A foto era... bem, não reconhecia aquele rosto, mas a enfermeira da mão boba parecia pensar que era ele. Era assim que se parecia? Um cara de cabelo preto e um rosto bonito, porém frio.
As informações impressas diziam que ele tinha olhos azuis – e naquela foto parecia que ambos funcionavam. A data de nascimento era naquele mesmo mês. E a data de validade já havia passado.
O primeiro nome, Matthias, de fato era como as pessoas o chamavam. O endereço ficava na cidade de Caldwell, Nova York, o que resolvia o problema geográfico... que ele nem percebera ter.
Caldwell, Nova York.
Estava de volta. Pelo menos era isso que seus instintos diziam...
Saia já daqui. Comece a andar agora.
Deixando a urgência de lado, começou a sair da cama devagar. Quando percebeu que estava preso, retirou as sondas intravenosas e o monitor cardíaco. Inclinando-se até os equipamentos ao lado, desligou os alarmes e arrastou-se para o banheiro.
A luz estava apagada, e quando apertou o interruptor... o show começou.
Matthias quase perdeu o fôlego ao ver a própria imagem refletida no espelho da pia. Um de seus olhos exibia um branco leitoso, e seu rosto estava esculpido com as linhas indeléveis de um passado cheio de dor – além de cicatrizes na testa onde sua lesão ocular aconteceu.
A fotografia na identidade era mesmo dele, principalmente se você adicionar um pouco de cabelo grisalho nas laterais, mas tinha sido tirada antes de...
– Senhor, preciso pedir que volte para a cama, pois está correndo o risco de escorregar e cair. E não deveria ter tirado as...
Ele ignorou a nova enfermeira.
– Estou indo embora. Agora mesmo. As regras do hospital, é, eu sei.
Fechou a porta na cara dela e abriu o chuveiro. Por alguma razão, quando voltou a focar o espelho, pensou em Mels Carmichael. Não foi à toa que a primeira reação dela ao vê-lo fora na linha do oh, meu Deus.
Ele não estava exatamente bonito...
Deus, por que estava pensando daquela maneira? Que importava o que os outros achavam dele?
Com a coordenação melhorando depressa, abriu a porta e olhou para dentro do quarto. A enfermeira não estava mais ali, mas com certeza voltaria trazendo alguém com um crachá de médico – era hora de se mexer rapidamente. Agarrou o cartão que Mels deixara e o guardou na carteira. Então pegou as roupas do armário e se trancou no banheiro.
Dez minutos mais tarde, Matthias estava com os cabelos e o corpo limpos, vestindo camiseta e jaqueta pretas e um jeans folgado.
Ao caminhar para fora do quarto, agarrou uma bengala que assumiu estar lá para ele.
O objeto parecia natural em sua mão e fez seus passos ficarem muito mais rápidos. Como se estivesse acostumado a usá-la.
Dirigindo-se para os elevadores, não pediu autorização para ninguém, não assinou nenhuma linha tracejada. O departamento de cobrança encontraria o homem que morava no endereço que aparecia na carteira de motorista.
E talvez ele também encontrasse esse homem.
O grito de Adrian acordou Jim e o fez saltar da cama, aterrissando em uma posição de luta. Com uma adaga de cristal em uma das mãos e uma pistola semiautomática na outra, estava pronto para lutar, fosse na arena dos humanos ou na de Devina. O Cachorro, que não era bobo, estava se protegendo debaixo da cama.
– Estou bem – disse Adrian, com a convicção de alguém que estava sangrando por uma veia.
Claro, com certeza, pensou Jim, que chegara correndo.
Sob a luz do sol que raiava entre as persianas, o anjo parecia completamente acabado, esparramado ali no chão, com grandes olheiras, cabelo desarrumado, mãos tremendo ao puxar a gola de sua camiseta Hanes. Seus piercings, aquelas argolas de metal que circulavam seus lábios, todo o lado da orelha e marcavam sua sobrancelha, eram as únicas coisas que brilhavam. Tudo o mais parecia sem vida.
Sua luz interior havia se apagado.
Jim estendeu a mão para o cara.
– Hora de levantar.
O outro anjo tomou sua mão, e por um momento os músculos de Jim ficaram tensos ao sentir uma desagradável pontada fluindo por seu braço e ativando seus instintos de um modo ruim. Mas então levantou Ad do chão, e aquilo desapareceu.
– Você já foi encontrar Nigel e os garotos? – perguntou Ad, enquanto andava como se tentasse se livrar da sensação ruim que tivera durante o sono.
– Por que eu faria isso?
– Boa pergunta.
Com essa deixa, Adrian foi até o banheiro e fechou a porta. Depois da descarga, o chuveiro foi ligado, e então foi a vez da pia.
Jim aproximou-se da porta e falou através da madeira fina:
– Você sonhou com o quê?
Quando não obteve resposta, fechou o punho e bateu.
– Adrian. Conte o que foi.
Deus sabia que Devina usava todo tipo de truques para conseguir o que queria. A ideia de que ela poderia invadir a cabeça de Ad pela porta dos fundos soava bem óbvia.
Bateu de novo na porta.
Quando não houve resposta novamente, Jim mandou a privacidade para o inferno e entrou.
Através da cortina de plástico do chuveiro, viu Adrian no chão de novo, desta vez com o piso frio do banheiro sob seu traseiro. Estava encolhido, com os cotovelos contra o peito, o rosto enterrado nas mãos. Não estava chorando, ou praguejando, nem parecia desesperado, mas talvez isso fosse o mais preocupante. O anjo estava apenas sentado debaixo da água quente, seu grande corpo enrolado em si próprio.
Jim abaixou o assento da privada e sentou.
– Converse comigo.
Depois de um momento, o anjo disse com a voz rouca:
– Ela era o Eddie. No meu sonho, ela era o Eddie.
Merda.
– Isso faria qualquer um gritar.
– Ele estava lá também. Foi ele quem me acordou, na verdade. Droga, Jim... ver Eddie de novo foi...
Enquanto a frase sumia, Jim inspecionou a lâmina de sua adaga com um cuidado especial.
– É, eu sei.
– Vou matá-la.
– Só se chegar antes de mim.
Adrian deixou os braços caírem para os lados e seus punhos acertaram a poça de água que se acumulava ao redor de seu corpo. Ele parecia derrotado, mas seria apenas por um momento. Sua raiva retornaria assim que aquele demônio aparecesse por perto e, francamente, a previsível resposta seria um problema: ninguém quer ver o próprio parceiro ficar cego pela raiva, e aquele sentimento não era fácil de controlar.
– Acho que você precisa pedir um novo parceiro para Nigel – Ad disse suavemente. Como se tivesse lido os pensamentos de Jim.
– Não quero outra pessoa.
Mas isso era mentira. Ainda estava aprendendo a lidar com as próprias habilidades e armas – claro, a curva de aprendizado já não era mais tão íngreme quanto nas primeiras rodadas, mas ele ainda estava longe de saber tudo. E Devina não era o tipo de inimigo contra o qual um desempenho mediano fosse aceitável.
Por causa disso, ele precisava de um parceiro sólido lhe dando cobertura.
Honestamente, Eddie era a peça que estava faltando. E fora precisamente por isso que o inimigo o abatera.
Maldita vadia!
– Você conhece mais alguém? – perguntou Jim.
– Tinha outro cara; na verdade, ele ficava acima de mim e de Eddie. Quase no nível de Nigel e Colin. Mas ele teve problemas. A última vez que ouvi falar, ele estava preso no Limbo. Bom, mas era um cara imprevisível. Talvez você fique melhor comigo mesmo, nesse caso.
– Temos que trazer Eddie de volta de alguma maneira...
– Ele era o único que saberia como fazer isso – Adrian soltou um grunhido e ficou de pé, sua figura massiva se erguendo como uma árvore. – Talvez o Colin.
Jim assentiu e voltou a observar sua adaga de cristal. A arma era transparente como um cubo de gelo, forte como aço, leve como uma pena. Fora Eddie quem lhe dera.
Ouviu um barulho de algo caindo no chão molhado e voltou os olhos para o parceiro. Ad deixara cair o sabonete, suas mãos estavam erguidas próximas ao rosto e sua boca parecia tentar praguejar.
– O que foi?
– Ah... merda... – Ad observou as costas das mãos. – Merda, não...
– O quê?
– Estão pretas – o anjo mostrou os braços. – Você não vê? Ela está dentro de mim, Devina está dentro de mim... e está me dominando...
Jim ficou aturdido por um momento, mas sabia que precisava fazer alguma coisa para trazer aquela situação de volta à realidade, e mais que depressa. Deixou a adaga na pia, tirou a cortina de plástico do caminho e agarrou os pulsos de Adrian.
Aquela sensação ruim se apoderou dele de novo, estimulando as terminações nervosas de seus dedos e palmas, como se as tivesse mergulhado em ácido. Concentrou-se na pele de Adrian e imaginou o que diabos tinha acontecido naquele sonho.
Mas a carne estava completamente normal. E pessoas que perdem seus melhores amigos têm motivos de sobra para perder também a razão. Mas não podiam permanecer assim.
– Adrian, meu amigo... – ele deu uma bela sacudida no cara – ei, olhe para mim.
Quando o pobre coitado finalmente olhou, Jim encarou aqueles olhos como se estivesse entrando em sua mente e tomando parte de seu cérebro.
– Você está bem. Não há nada de errado aqui. Ela não está dentro de você, ela não está aqui e...
– Você está errado.
As palavras sombrias fizeram Jim parar de repente. Mas então balançou a cabeça.
– Você é um anjo, Adrian.
– Eu sou?
Com a voz grave, Jim respondeu:
– Digamos que... é bom que você seja.
Após um silêncio tenso, os lábios de Jim começaram a se mover, palavras eram ditas, sílabas sensatas e apaziguadoras cruzavam a distância que os separava. Mas, no fundo de sua mente, ele rezava por quem quer que estivesse ouvindo.
Devina era um parasita, o tipo de coisa que invade as pessoas e as infecta.
Fazia sentido que alguém emocionalmente abalado fosse mais vulnerável.
Porém, a tragédia era que ele não podia ter o inimigo tão perto assim.
Não importava o quanto amasse seu amigo.
CAPÍTULO 8
– O que aconteceu com seu olho?
Mels entrou na cozinha de sua mãe, não respondeu a pergunta e foi direto para a garrafa de café. O fato de o objeto estar do outro lado, e por isso permitir que ela tomasse o café de costas para a mãe, era um bônus além da cafeína.
Maldita maquiagem. Elas supostamente serviam para cobrir aquilo que você queria esconder. Como pés de galinha, olheiras... e hematomas de acidentes de carro sobre os quais você preferia que sua família não ficasse sabendo.
– Mels?
Não precisava se virar para ver o que estava atrás dela: sua mãe, magrinha e baixinha, aparentando ser mais jovem do que era, estaria sentada do outro lado da mesa, com o Correio de Caldwell aberto ao lado de uma tigela de cereal rico em fibras e uma xícara de café. Os cabelos lisos pretos com mechas grisalhas estariam penteados num corte bem aparado, e as roupas seriam casuais, mas parecendo perfeitamente passadas a ferro.
Sua mãe era uma dessas mulheres pequeninas que sempre pareciam bem arrumadas, mesmo sem maquiagem. Como se tivesse nascido com uma lata de spray para cabelo debaixo de um braço e uma escova debaixo do outro.
Mas ela era frágil. Como um bibelô gentil e bondoso.
Era uma porcelana delicada, em contraste com o touro que fora seu pai.
Sabendo muito bem que a pergunta ainda estava no ar, Mels serviu-se de café. Tomou um gole. Manteve-se ocupada passando uma toalha de papel em um balcão que já estava limpo e seco.
– Ah, não foi nada. Escorreguei e caí. Bati a cabeça na torneira do chuveiro. Foi tão estúpido!
Houve um momento de silêncio.
– Você chegou tarde ontem à noite.
– Fiquei na casa de uma amiga.
– Você não tinha falado que ia num bar?
– Fui pra casa dela depois do bar.
– Ah. Entendi.
Mels ficou observando a janela em cima da pia. Com sorte, sua tia ligaria a qualquer momento, como geralmente fazia, e ela não teria que inventar mais uma mentira para explicar por que voltara de táxi do trabalho.
Os sons de goles de café e cereal sendo mastigado preencheram a cozinha, e Mels tentou pensar em algum assunto minimamente normal para conversarem. O clima. Esportes – não, sua mãe não tinha interesse em atividades organizadas que envolviam campos, bolas ou raquetes de qualquer tipo. Livros seria uma boa opção – porém Mels não lia nada além de estatísticas criminais, e sua mãe ainda estava no trem do Clube do Livro da Oprah, mesmo esse trem já não tendo motor ou trilhos.
Deus... momentos como esse a faziam sentir tanta falta do pai que até doía. Os dois nunca ficavam constrangidos um com o outro. Nunca. Conversavam sobre a cidade, ou sobre seu trabalho como policial, ou sobre a escola... ou simplesmente ficavam em silêncio – e, de um jeito ou de outro, nunca havia problema. Mas com sua mãe?
– Então – Mels tomou outro gole de café –, o que vai fazer de bom hoje?
Recebeu uma resposta, mas não a ouviu porque seu desejo de sair gritava alto demais.
Mels terminou o resto de seu café preto – sua mãe tomava com leite e açúcar –, colocou a xícara na lava-louça e cruzou os braços.
– Então, vejo você à noite – ela disse. – Não vou chegar tarde. Prometo.
Os olhos de sua mãe se levantaram para encontrar os dela. A tigela cheia de cereal integral era rosa e tinha pequenas flores brancas em volta, a toalha de mesa tinha flores amarelas e o papel de parede tinha flores maiores azuis.
Flores por toda a parte.
– Você está bem? – perguntou a mãe. – Precisa ir ao médico?
– É só um machucado. Nada de mais – olhou para a sala de jantar. Do outro lado da mesa de mogno, depois da cortina branca, um Chevrolet amarelo estacionou. – O táxi chegou. Deixei meu carro no bar porque bebi uma ou duas taças de vinho.
– Ah, você podia pegar o meu carro para ir trabalhar.
– Você vai precisar dele – ela olhou para o calendário pendurado na parede, rezando para que algo estivesse marcado ali. – Hoje você tem jogo de cartas às quatro.
– Eu podia ir de carona. Ainda posso, se você quiser...
– Não, é melhor assim. Posso pegar meu carro e dirigir de volta pra casa.
Droga. Acabara de criar um problema. A única maneira de Fifi ir para qualquer lugar seria na traseira de um caminhão de guincho – a pobrezinha fora levada para um mecânico.
– Ah. Tá bom.
Quando sua mãe caiu no silêncio, Mels teve vontade de pedir desculpas, mas era difícil demais colocar aquele complicado desculpe em palavras. Inferno, talvez ela precisasse simplesmente se mudar dali. Ficar constantemente exposta àquela bondade e autossacrifício, em vez de ser uma alegria, era um peso muito grande para carregar, pois nunca tinha um fim. Sempre havia uma sugestão, uma oferta, um quer-que-eu-isso-ou-aquilo...
– Preciso ir. Mas agradeço.
– Tá bom.
– Vejo você à noite.
Mels beijou o rosto macio que sua mãe ofereceu e saiu apressada pela porta da frente. Lá fora o ar estava fresco e agradável e o sol brilhava, prometendo calor na hora do almoço.
Entrando no banco de trás do táxi, ela disse:
– Escritório do Correio de Caldwell, na rua Trade.
– Pode deixar.
A caminho do centro da cidade, as molas do banco do táxi pareciam feitas de aço, e o estofado não era muito diferente de cimento, mas ela nem se importou com a viagem desconfortável. Sua mente estava caótica demais para pensar em seu traseiro sendo castigado por um banco duro.
Aquele homem da noite anterior ainda estava em seus pensamentos – podia quase senti-lo ao seu lado.
Fora assim durante toda a noite.
Deixando a cabeça cair para trás, fechou os olhos e relembrou o acidente, checando duas, três vezes para ter certeza de que não poderia ter feito nada para evitá-lo. Então ficou pensando em outras coisas, como a maneira como o homem ficara deitado, totalmente imóvel, naquela cama de hospital.
Mesmo machucado, em alguns lugares com gravidade, ele ainda parecia um... predador.
Um poderoso animal, ferido, mas...
Certo, agora ela realmente estava perdendo a cabeça. E talvez devesse olhar mais de perto para sua vida amorosa – que era completamente vazia...
Infelizmente, Mels não conseguia parar de pensar na estranha atração que aquele homem exercera. Que desagradável, ela deveria é estar preocupada com a saúde e o bem-estar dele, além da possibilidade de querer processá-la e tirar dela o pouco que tinha.
Em vez disso, ela ficou pensando no som daquela voz rouca, e na maneira como ele a observara, como se qualquer detalhe dela fosse uma fonte de fascinação e importância...
Ele fora ferido há algum tempo, ela pensou. As cicatrizes ao lado do olho tinham se curado com o tempo.
O que será que acontecera com ele? Como era seu nome...?
Enquanto ela vagava pela terra das perguntas sem resposta, o motorista do táxi fez seu trabalho discretamente. Dezesseis dólares, dezoito minutos e um traseiro dolorido depois, ela chegou à redação.
O local já estava barulhento, com pessoas falando e andando apressadas, e aquele caos acalmou seus nervos – da mesma maneira que uma aula de ioga a deixava nervosa.
Ela sentou em sua mesa, checou o correio de voz, entrou em seu e-mail e pegou a xícara que vinha usando desde que herdou aquele lugar, há pouco mais de um ano e meio. Caminhou até a cozinha coletiva e encontrou seis opções de potes de café: nenhum deles era descafeinado; três eram da boa e velha marca Maxwell House; e os outros eram aquele horror com essência de nozes, um daqueles macchiato-sei-lá-o-quê.
Dane-se esse último. Se quisesse uma droga de um sorvete de caramelo, ela pediria um no almoço. Aquela coisa não devia ser colocada em uma xícara de café.
Enquanto servia seu café preto e puro, pensou na verdadeira dona da xícara, Beth Randall, a jornalista que sentara naquele cubículo por... bem, devia ter sido mais de dois anos. Em uma certa tarde, a mulher partira e nunca mais voltara. Mels lamentava o desaparecimento – não que conhecesse a colega muito bem – e sentia-se mal porque foram nessas as circunstâncias que ela finalmente conseguira um lugar só para ela.
Mantivera a xícara por nenhuma razão especial. Mas agora, enquanto tomava um gole, percebeu que a guardara por ainda ter esperança de que a mulher retornasse. Ou que pelo menos estivesse bem.
Parecia que Mels estava rodeada de pessoas desaparecidas.
Ou pelo menos foi assim que se sentiu naquela manhã. Principalmente quando pensou sobre o homem da noite anterior – aquele que nunca veria novamente, mas que não conseguia tirar da cabeça.
Aquela não era sua casa.
Quando o táxi estacionou em frente a um rancho em uma vizinhança modesta, Matthias sabia que não morava sob aquele teto. Nunca tinha morado. Não iria morar.
– Você vai descer do carro ou não?
Matthias encontrou os olhos do motorista através do retrovisor.
– Me dê um minuto.
– O taxímetro está correndo.
Concordando, ele desceu e usou a bengala para andar no passeio que levava à frente da casa, balançando a perna machucada em um longo arco para não ter de dobrar os joelhos. Não havia nada de lar, doce lar: a trepadeira invadia as janelas. O gramado não estava aparado. As calhas estavam cheias de mato que subia alto em busca do sol.
A porta da frente estava trancada, então ele fez uma viseira com as mãos para tentar olhar pela janela. Viu camadas de poeira. Móveis que não combinavam. Cortinas envelhecidas.
Havia uma caixa de correio barata pregada na parede. Ele abriu a tampa. Propagandas. Um talão de cupons de desconto endereçado ao “ocupante”. Nada de contas, solicitações de cartão de crédito, cartas. A única outra correspondência era uma revista da AARP1 endereçada ao mesmo nome que havia na sua carteira de motorista.
Matthias enrolou a revista, guardou no bolso da jaqueta e voltou para o táxi. Aquela não era sua residência – e mais ninguém morava ali. A pessoa que vivia ali devia ter morrido, digamos, há umas quatro ou seis semanas – tempo suficiente para a família cuidar das contas, mas não para esvaziar a casa e colocá-la à venda.
Entrando no táxi, fixou o olhar à frente.
– Para onde?
Com um grunhido, Matthias se ajeitou e puxou a carteira. Pegou o cartão de Mels Carmichael e foi atingido por uma profunda convicção de que não deveria envolver aquela mulher.
Era perigoso demais.
– E então, chefe?
Mas, droga, ele tinha de começar por algum lugar. E seu cérebro estava como uma conexão de internet fora do ar.
– Rua Trade – murmurou.
Enquanto dirigiam-se para o centro da cidade em meio ao trânsito pesado, ele observou os outros carros, onde pessoas bebiam café, conversavam com outros passageiros, paravam nos sinais vermelhos, avançavam nos verdes. Um mundo que parecia muito distante dele. O tipo de vida em que a pessoa trabalha das nove às sete todo dia, até morrer aos setenta e poucos anos. Essa não era a maneira como Matthias vivia.
Então, como ele vivia?, perguntou ao seu cérebro idiota. Como diabos ele vivia?
Tudo o que recebeu de resposta foi uma dor de cabeça.
Quando o edifício do Correio de Caldwell surgiu, Matthias pegou uma das dez notas de vinte que tinha na carteira.
– Guarde o troco.
O motorista parecia mais do que feliz em se livrar dele.
Usando a porta da frente como apoio, Matthias emergiu do carro sob a luz do sol, tomando cuidado para não corresponder a nenhum dos olhares curiosos. E havia muitos deles. Por algum motivo, ele tinha a tendência de atrair atenção, geralmente das mulheres – se bem que ficar atraída por alguém machucado era coisa normal de mulher, e ele estava cheio de cicatrizes no rosto.
Uau, que romântico.
Por fim, sentou-se na cadeira de plástico duro do ponto de ônibus do outro lado da rua, respirando a fumaça dos fumantes impacientes que esperavam o transporte público. A espera não o incomodava. Era como se ele estivesse acostumado a espreitar. Para passar o tempo, inventou um jogo: memorizava os rostos das pessoas que entravam e saíam dos escritórios do Correio de Caldwell.
Matthias era extremamente bom nisso. Só era preciso uma olhada para adicionar a pessoa ao seu banco de dados interno.
Pelo menos sua memória de curto prazo estava funcionando...
As portas duplas se abriram e lá estava ela.
Matthias se ajeitou na cadeira quando a luz do sol atingiu os cabelos de Mels e fez brilhar vários tons de castanho. Mels Carmichael, repórter associada, estava junto de um cara bem arrumado que precisava puxar a calça cáqui para cima antes de pisar nos degraus. Os dois pareciam estar discutindo amigavelmente sobre alguma coisa e, quando Mels sorriu, parecia que ela vencera o debate.
Como se soubesse que estava sendo observada, Mels olhou para o outro lado da rua e parou de repente. Ela tocou a manga do casaco de seu colega e disse algo, então eles se separaram e ela começou a se aproximar de Matthias, andando no meio do trânsito.
Matthias cravou a bengala no chão, levantou-se e ajeitou as roupas. Não tinha ideia de por que queria se arrumar para ela, mas queria – mas não dava para parecer pior. Vestia roupas que não eram dele, ainda cheirava a quarto de hospital e lavara o cabelo com xampu antibacteriano, pois era o único disponível.
Naturalmente, a primeira coisa para a qual ela olhou foi seu olho ruim, aquela coisa feia e arruinada. Como não poderia?
– Oi – ela disse.
Mels estava linda com suas roupas normais do dia a dia: com aquela calça, a blusa de lã e o lenço bege que usava ao redor do pescoço, para Matthias ela poderia muito bem estar em uma passarela.
E continuava sem aliança.
Isso é bom, ele pensou, sem uma razão especial.
Desviando o olhar para a direita, esperando que assim seu defeito fosse menos aparente, ele respondeu:
– Oi.
Certo. Hum. E agora?
– Não estou te seguindo, eu juro – mentiroso. – Eu teria ligado, mas não tenho telefone.
– Não tem problema. Você precisa de alguma coisa? A polícia me ligou hoje de manhã, e acho que eles ainda querem falar com você.
– Pois é – deixou esse assunto do jeito que estava. – Escuta, eu...
O fato de que estava interrompendo uma frase no meio parecia pouco natural, mas seu cérebro simplesmente não conseguia produzir nada.
– Vamos sentar – ela disse, mostrando os assentos. – Não acredito que eles deixaram você sair.
Naquele momento, um ônibus chegou e parou, bloqueando a luz do sol e soltando uma fumaça que o fez tossir. Os dois sentaram e ficaram em silêncio enquanto esperavam os passageiros embarcarem.
O ônibus partiu e o sol reapareceu, banhando-a com sua luz amarela.
Por alguma razão estúpida, os olhos dele começaram a piscar com força.
– O que posso fazer por você? – ela perguntou suavemente. – Está sentindo dor?
Sim. Mas não era dor física. E piorava sempre que olhava para ela.
– Como você sabe que eu preciso de ajuda?
– Imagino que sua memória não tenha voltado magicamente.
– Não, não voltou. Mas isso não é culpa sua.
– Bom, eu te atropelei. Então estou te devendo uma.
Ele gesticulou mostrando a perna ruim.
– Eu já estava assim antes.
– Consegue lembrar de alguma coisa? Quer dizer, anterior ao acidente? – quando ele negou com a cabeça, ela murmurou: – Muitos militares também voltaram na sua condição.
Ah... ela queria dizer o Exército, Marinha, Aeronáutica. E parte disso parecia ser correto. O governo... sim, Matthias tinha alguma ligação com o Departamento de Defesa, ou com a segurança nacional... ou...
Mas não era um soldado abatido. Porque nunca fora um herói.
– Eles encontraram minha carteira – ele murmurou.
– Oh, isso é ótimo.
Por alguma razão, Matthias entregou o objeto para ela.
Quando Mels abriu e olhou a carteira de motorista, ela assentiu.
– Esse é você.
Observando o emblema do Correio de Caldwell sobre a porta da qual ela saíra, ele disse:
– Veja bem, tudo o que estou falando fica entre nós dois, certo?
– É claro.
– Gostaria de ter outra opção. Gostaria... não quero te colocar em encrenca.
– Você ainda não me pediu pra fazer nada – ela o observou. – Em que está pensando?
– Consegue descobrir quem é esse cara? – apontou para a carteira de motorista. – Porque não sou eu.
N.T.: AARP é uma ONG norte-americana destinada a defender os interesses dos cidadãos com mais de cinquenta anos.
CAPÍTULO 9
Durante o silêncio que se seguiu, tudo o que Mels podia pensar era no fato de que tivera plena certeza de que nunca mais veria aquele homem.
Pelo jeito, o destino tinha outros planos.
O homem de roupas pretas sentado ao seu lado era grande, supermalhado e dava a impressão de ser forte em todos os sentidos, com seus olhos estreitos e o queixo quadrado... mas parecia envergonhado de suas cicatrizes e do defeito na perna.
Olhando mais uma vez a carteira de motorista, ela franziu a testa. A foto parecia verdadeira, os hologramas estavam onde deveriam estar, altura, peso e data de nascimento estavam corretos, o endereço ficava ali mesmo em Caldwell – e não muito longe da casa de sua mãe, na verdade.
Ele provavelmente estava voltando para casa no momento do atropelamento. Assim como ela.
Observando agora o homem em vez da imagem, ela teve a sensação de que, para procurá-la, ele fizera um grande esforço e engolira o orgulho. Ele não parecia o tipo de pessoa que gostava de depender dos outros, mas a vida claramente não lhe deixara outra escolha.
Sem memória. Poucos recursos.
E com aqueles olhos assombrados e um corpo remendado, ele tinha de ser um militar, voltara da guerra apenas fisicamente, mas não em espírito.
Naturalmente, a jornalista dentro dela gostava de um bom mistério – e o fato de ter um pouco de culpa em relação à sua amnésia era outra razão para ela mergulhar de cabeça nisso. Mas Mels não era idiota. Não queria se envolver em algum tipo de drama, principalmente se ele fosse um maluco ou paranoico.
A foto era dele mesmo, sem dúvida.
– Odeio colocar você nessa posição – suas mãos grandes acariciaram a bengala que equilibrava nas coxas. – Mas não tenho mais ninguém. E a casa nesse endereço não é minha. Não sei onde moro, mas com certeza não é naquela casa. Eu chequei a correspondência quando fui até lá – ele recostou-se para o lado e retirou uma revista dobrada do bolso da jaqueta. – Encontrei isto. O nome está certo, mas eu não tenho mais de cinquenta e cinco anos. Por que isto estaria na minha caixa de correio, endereçado a mim?
Ela desdobrou a revista e observou o logotipo da AARP e a foto de uma graciosa modelo da terceira idade vestindo roupas de ginástica. O nome acima do endereço era Matthias Hault, e o número e rua eram os mesmos da carteira de motorista... talvez ele morasse com o pai e os dois tivessem o mesmo nome.
Mas um pai não teria ficado feliz em ver o filho aparecer na porta de casa?
– Eu poderia contratar um detetive particular – ele disse –, mas isso custa dinheiro, e nesse momento tenho apenas duzentos dólares no bolso... bom, cento e oitenta, depois que paguei o taxista.
– Tem certeza de que ninguém está tentando te encontrar? – quando ele permaneceu em silêncio, ela pensou que Matthias estava vasculhando sua memória, mas ele encontrou apenas o vazio, por culpa dela. – O que os médicos disseram? Como eu disse, honestamente, estou chocada de você estar de pé andando por aí.
– Então, você vai me ajudar? – ele respondeu.
Aquele era um momento de limite que precisava ser considerado com respeito. Mas ela decidiu cruzar a linha.
– Se eu ajudar, você vai ter que falar comigo. O que os médicos disseram?
Seu olho bom procurou ao redor, como se estivesse pensando em uma resposta.
– Fui embora sem avisar.
– O quê?! Por quê?
– Não me senti seguro. E não posso explicar mais do que isso. É tudo o que sei.
Estresse pós-traumático, ela pensou. Só podia ser.
Talvez se Mels confirmasse a identidade dele, sua mente poderia descansar e isso ajudaria na recuperação.
– Certo, vou fazer o possível – ela disse.
Matthias abaixou a cabeça, como se aceitar ajuda de outra pessoa fosse um tipo de derrota.
– Obrigado. Tudo o que preciso é de uma busca com esse nome. Um lugar para começar.
– Posso voltar pro escritório e fazer isso na minha mesa agora mesmo – ela apontou para o lado direito. – Tem um restaurante ao lado do rio, a uns dois quarteirões daqui. Você pode comer algo e eu te encontro lá assim que puder. Ah... claro, se você conseguir andar...
– Eu consigo chegar lá – ele disse, rangendo os dentes.
Ou morreria tentando, ela pensou, ao observar seu queixo contraído.
Que, por sinal, lembrava muito o ator Jon Hamm.
O homem levantou-se com a ajuda da bengala.
– Então eu te encontro lá. Não precisa se apressar.
Quando ele olhou para a rua, a luz do sol brilhou em seus olhos; tanto naquele que obviamente ainda enxergava como no que estava cego.
– Quer ficar com meus óculos escuros? – ela perguntou. – É um Ray-Ban, mais unissex que isso é impossível. E também não precisa de receita.
Ela não esperou ele dar uma de fortão e recusar. Pegou a caixa e a estendeu na sua frente.
Matthias Hault ficou observando a sua oferta por um longo tempo, como se o simples gesto fosse algo a que não estava acostumado.
– Aceite – ela disse suavemente.
Sua mão tremeu um pouco ao aceitar a caixa, e ele não a olhou mais nos olhos.
– Não vou riscá-los. E vou devolver no restaurante.
– Sem pressa.
Quando ele colocou os óculos escuros, seu rosto se transformou em algo... inegavelmente perigoso.
E definitivamente sensual.
Um calor percorreu o corpo de Mels, atingindo-a num lugar que há muito tempo não se acendia.
– Melhor? – ele disse.
– Eu acho que sim.
Ele ainda se recusava a olhar para ela. Seus ombros e costas estavam retos, os lábios tensos. Um homem tão orgulhoso, preso daquele jeito em uma posição de fraqueza...
Ela sempre lembraria daquele momento, pensou, sem qualquer motivo. Sim, este momento agora, com o sol brilhando nas feições endurecidas de seu rosto bonito.
Aquilo era um momento decisivo, concluiu. Essa intersecção aparentemente aleatória entre os dois mudaria as coisas para sempre.
– Eu queria te perguntar uma coisa – ele disse.
– O quê? – ela sussurrou, imersa em um momento que não podia compreender totalmente.
– Onde aconteceu o acidente?
Sacudindo a si mesma, ela puxou seu cérebro de volta à realidade.
– Foi, ah, bem ao lado do Cemitério Pine Grove. Perto de onde moro. Não muito longe do bairro onde fica sua casa.
– Um cemitério.
– Isso mesmo.
Ele assentiu e, quando começou a caminhar em direção ao restaurante, ela podia jurar que o ouviu dizer “Por que isso não me surpreende?”.
O Riverside Diner era um restaurante típico de cidade pequena americana. Cheio de estofados de couro sintético, cortinas com estampa xadrez e garçonetes mal-humoradas. A comida era gordurosa, mas de uma maneira gloriosa, e quando Matthias cortou seus ovos mexidos com o garfo, seu estômago roncou como se fizesse anos que não comia.
Já era tarde para o café da manhã, mas não existe acompanhamento melhor para uma xícara de café do que ovos e bacon.
Enquanto comia, os óculos escuros que recebera da repórter eram uma benção, pois lhe permitiam ficar de olho nas pessoas que entravam e saíam, nas garçonetes indo e vindo, e nos fregueses que entravam no banheiro e em quanto tempo ficavam lá.
Mas vigilância não era o motivo de Mels ter lhe emprestado os óculos.
Droga. Por que aquela mulher fazia ele desejar não ter mais seus defeitos?
– Mais café? – perguntou a garçonete.
– Sim, por favor – ele ofereceu a xícara e ela despejou o café fumegante. – E mais um prato de tudo isto também.
Ela sorriu como se estivesse calculando uma gorjeta maior.
– Você come bem.
Quando não se sabe quando ou onde vai ser a próxima refeição, é melhor fazer valer a pena, ele pensou consigo mesmo.
A repórter apareceu pouco depois de Matthias terminar o segundo café da manhã. Ela olhou para a esquerda e depois para a direita e o encontrou sentado nos fundos, ao lado da saída de emergência. Então começou a percorrer o longo caminho de mesas vazias.
Quando sentou à sua frente, seu rosto estava vermelho, como se tivesse se apressado.
– Devia estar lotado quando você chegou – ela disse.
– Estava – mentira: ele queria ficar nos fundos para o caso de precisar sair às pressas.
A garçonete voltou com o pote de café.
– Olá... gostaria de café?
– Sim, por favor – Mels tirou a blusa. – E o meu de sempre.
– Almoço ou café da manhã?
– Almoço.
– Já está saindo.
– Você almoça sempre aqui? – ele perguntou, imaginando por que se importava.
– Duas, três vezes por semana, desde que comecei a trabalhar no jornal.
– E quando começou?
– Um milhão de anos atrás.
– Engraçado, você não parece um dinossauro.
Sorrindo um pouco, ela tomou um gole do café e se preparou para a conversa. Seus lábios ficaram tensos e seus olhos se estreitaram.
Ela ficava sexy daquele jeito. A intensidade. O foco. Naquele momento, ela o fazia se lembrar de si mesmo...
E isso era um milagre, se você pensar que Matthias tinha a mesma quantidade de informação sobre os dois... sendo ela uma estranha.
– Diga o que descobriu – ele exigiu.
– Você está morto.
– E eu que achei que era só uma sensação.
Durante a pausa que se seguiu, ele podia sentir que Mels tentava entendê-lo.
– Você não está surpreso – ela disse.
Ele observou sua xícara meio vazia e balançou a cabeça.
– Eu sabia que havia algo de errado naquela casa.
– O dono verdadeiro desse nome tinha oitenta e sete anos e morreu de insuficiência cardíaca cinco semanas atrás.
– Em se tratando de identidades falsas, essa não é uma das melhores, não é?
– Você fala como se conhecesse bem o assunto – quando ele não comentou nada, ela se inclinou para frente. – Por acaso você faz parte do programa governamental de proteção a testemunhas?
Não, ele estava do outro lado da lei... seja lá o que isso significasse.
– Se for o caso – ele disse –, não estão cuidando muito bem de mim.
– Tenho uma ideia. Vamos voltar ao cemitério, no local do acidente. Vamos ver se você se lembra de alguma coisa.
– Não posso pedir pra você fazer isso.
– Não pediu. Estou oferecendo... – ela parou. Franziu a testa. Coçou a sobrancelha. – Meu Deus, espero não estar me transformando na minha mãe.
– Ela gosta de cemitérios?
– Não, é uma longa história. Enfim, peguei emprestado o carro do meu amigo. Posso te levar até lá depois que terminarmos de comer.
– Não. Mas eu agradeço.
– Por que você se deu ao trabalho de perguntar sobre o nome se não vai continuar investigando?
– Posso pegar um táxi, foi o que quis dizer.
– Ah.
A garçonete voltou com o “de sempre”, que era um sanduíche de frango em pão integral e o que parecia ser tomates extras, além de batatas fritas em vez de batatas chips.
– Acho que eu deveria levar você – ela disse, pegando o ketchup.
Matthias observou quando dois policiais entraram pela porta da frente e sentaram no balcão.
– Posso ser sincero com você?
– Por favor.
Ele abaixou o queixo e a olhou por cima dos óculos escuros.
– Não quero que fique sozinha comigo. É muito perigoso.
Ela parou com uma batata frita a meio caminho da boca.
– Sem ofensa, mas, considerando sua condição física, eu poderia quebrar suas duas pernas e te deixar inconsciente em questão de segundos – as sobrancelhas dele foram erguidas ao máximo, e ela assentiu. – Sou faixa preta, tenho permissão para porte de armas e nunca vou a lugar algum sem uma boa faca ou sem minha arma.
Ela deu um sorriso rápido, pegou o sanduíche de frango e deu uma mordida.
– Então, o que me diz?
CAPÍTULO 10
Felizmente, aquilo não era um encontro romântico, pensou Mels quando o silêncio imperou. Pois dizer a um homem que você é capaz de acabar com ele não seria um bom começo, meio ou fim para um almoço a dois.
Aquilo era trabalho – é claro que a história daquele homem, seja lá qual fosse, não terminaria nos jornais, mas era algo a ser investigado, e Deus sabia que ela nunca dispensava uma oportunidade dessas.
– É um belo currículo – ele disse depois de um bom tempo.
– Meu pai se certificou de que eu seria capaz de me defender. Ele era um policial à moda antiga.
– O que isso quer dizer?
Ela limpou a boca com um guardanapo, tomou outro gole de café e desejou ter pedido uma Coca.
– Digamos que hoje em dia, com câmeras nos carros de polícia, reuniões da corregedoria, e pastas cheias de protocolos de procedimentos, ele não teria durado nem um mês antes de ser suspenso. Mas no passado ele fazia seu trabalho, e as pessoas estavam mais seguras nesta cidade graças a ele. Ele dava conta de tudo.
– Um cara durão?
– Um cara justo.
– E você aprova esses métodos?
Ela deu de ombros.
– Ele tinha minha aprovação. Por outro lado, sua maneira de agir... digamos apenas que era outra época. Antes de testes de DNA e internet.
– Parece meu tipo de pessoa.
Mels teve que sorrir ao ouvir aquilo. Mas então uma tristeza pela perda do pai a fez virar o rosto e observar o rio e as gaivotas que seguiam a lenta correnteza.
– Ele nunca perdia o controle ou ficava bravo. Mas às vezes os criminosos só entendem as coisas quando elas são explicadas na língua deles.
– Você tem irmãos ou irmãs?
– Apenas eu. E meu pai não se importava por eu ser uma garota. Ele me tratava como trataria um filho: me treinou, ensinou autodefesa, insistiu que eu aprendesse a disparar armas de fogo – ela riu. – Minha mãe quase tinha ataques do coração por causa disso. Até hoje ela é assim.
– Ele já se aposentou?
– Faleceu – ela voltou ao sanduíche. – Foi morto em serviço.
Houve uma pausa. Então Matthias disse suavemente:
– Sinto muito.
Mels não ousou levantar os olhos, pois falara demais e, com aqueles óculos escuros, não sabia onde estavam os olhos dele – embora não fosse necessário ser um gênio para saber que estavam focados nela.
– Obrigada. Mas chega de falar de mim. E chega dessa porcaria de é-perigoso-demais. Tenho cuidado de mim mesma faz tempo, e sou muito boa nisso. Não teria oferecido ajuda se não achasse que poderia lidar com você.
Ele soltou uma risada súbita.
– Você é muito segura de si mesma.
– Sei quais são meus limites.
– Mas você não me conhece. E eu também não.
– E nós queremos consertar isso, não é?
O homem recostou-se.
– Sim.
Quando terminou o sanduíche – deixando o resto das batatas de lado – ela pagou a conta e levantou-se.
– Então, vamos lá.
Quando ele pousou os olhos nela, aquele calor a invadiu novamente, uma atração sem sentido passando por seu corpo.
– Prometa uma coisa – ele disse em voz baixa.
– Depende do que for.
– Você não vai correr nenhum risco.
– Feito.
Matthias assentiu, pegou a bengala, deslizou as pernas para fora da cadeira e esperou por um momento, como se estivesse preparando o corpo para um massacre. O primeiro instinto de Mels foi colocar um braço sob o ombro dele para ajudar, mas sabia que ele não gostaria disso. E ficar encarando sua fragilidade também não era respeitoso, então ela se virou e fingiu checar o cardápio iluminado que ficava sobre o balcão.
Um grunhido denunciou que ele se levantara, então Mels seguiu em frente até a porta. Enquanto passavam pelos outros fregueses, ela sentiu os olhos de todos pairando sobre o homem que estava atrás dela.
Deus, ela imaginava como seria a vida daquele jeito, atraindo constantemente os olhares curiosos. Se bem que as mulheres provavelmente estavam vendo apenas aquilo que ela própria enxergava. Que não tinha nada a ver com defeitos.
Muito pelo contrário.
O carro de Tony, que estava no estacionamento, parecia já ter visto dias melhores, não era como a Fifi, mantida com carinho. Aquele carro parecia mais uma lata de lixo ambulante.
– Não repara na sujeira – ela disse ao destrancar o veículo.
Ao entrar, Mels tirou do banco do passageiro as várias revistas Newsweek e The New Republics. Como era de se imaginar, Matthias levou um tempo para entrar no carro e, quando colocou os joelhos para dentro, suas botas pisaram em lixo, amassando embalagens vazias de Taco Bells, McDonald’s, Burger King e Wendy’s.
– Seu amigo gosta de fast-food – ele comentou.
– E come rápido também.
Ela acelerou e entrou no trânsito, espremendo o sedã entre um táxi e uma caminhonete.
– Cinto de segurança – disse Matthias.
Mels olhou para ele.
– Pois é. Você está usando um.
– Gosta de viver perigosamente?
– Cintos de segurança nem sempre salvam vidas.
– Então todas essas pessoas ao redor estão erradas?
– Elas podem fazer o que quiserem, e eu também.
– E as multas?
– Nunca fui parada no trânsito. E se acontecer, simplesmente pago a multa.
– Quando. Você quer dizer “quando acontecer”.
O Cemitério Pine Grove ficava a uns dez minutos – mas não do jeito que Mels dirigia. Em nenhum momento ela foi imprudente, apenas eficiente, escolhendo rotas que evitavam semáforos e as obras ao redor do parque.
– É ali, à direita – Mels se inclinou sobre o volante e olhou através do para-brisa. – Na verdade, é um lugar lindo. Há algo tão pacífico em cemitérios...
Matthias não parecia impressionado.
– Toda essa coisa de descanso eterno é uma ilusão.
– Você não acredita no Céu?
– Acredito no Inferno, isso sim.
Não houve tempo para ela responder quando chegaram na entrada.
– O acidente aconteceu por aqui... um pouco depois do portão principal. Bem... um pouco mais para frente... aqui.
Enquanto ela estacionava o carro de Tony e desligava o motor, Matthias já estava saindo. Andando rápido com sua bengala, ele parou no meio da rua, em cima das marcas onde ele havia aterrissado. Olhou para os dois lados e seguiu até as marcas dos pneus da Fifi e a árvore atingida... e finalmente chegou no portão de três metros de altura que cercava o cemitério.
Aquilo é que era estilo gótico. Feitas com barras de ferro com pontas em forma de flor de lis, as fronteiras do Pine Grove eram imponentes... e perigosas, se alguém tentasse escalá-las.
E veja só, enquanto se aproximava, Mels viu uma mancha de sangue no topo de uma das pontas – e havia também um pedaço de roupa. Como se alguém tivesse tentado pular o cercado.
– Eu pego – ela disse, pulando e agarrando o tecido. – Aqui.
Matthias segurou o pano.
– Tecido impermeável. Aposto que aquele sangue seco é meu. Tenho um ferimento recente na perna.
Mas por que ele não teria simplesmente passado pelo portão da frente? Bem, à noite ele provavelmente ficava trancado.
– Podemos entrar? – ele perguntou.
– Agora mesmo.
De volta ao carro, ela passou pela entrada e virou à esquerda, indo em direção ao ponto onde encontraram o tecido. Chegando lá, ela parou novamente, saiu e esperou que a memória dele se manifestasse. Se é que isso aconteceria.
Enquanto ele olhava ao redor, Mels ficou um pouco distante, ouvindo a brisa que soprava entre os galhos dos pinheiros e sentindo o sol brilhar em seus ombros... e tentou não pensar no lugar onde estava seu pai...
Logo atrás, a uns cem metros, no meio do cemitério, entre a família Thomas e os três irmãos Krensky.
Pelo jeito, ela se lembrava muito bem.
A última vez em que estivera ali fora no dia seguinte ao enterro do pai. Mels estivera trabalhando em Nova York por quase cinco anos. Ele estava tão orgulhoso de sua filha na cidade grande, fazendo aquilo que tinha estudado – o jornalismo...
– É por aqui – Matthias disse, distraído.
Enquanto ele caminhava pelo gramado desigual, Mels largou seu passado para se concentrar no presente dele, e juntos andaram decididamente, mesmo com os passos de Matthias se mostrando instáveis e precisando do suporte da bengala. De vez em quando ele parava, como se estivesse calibrando a direção, e Mels não o interrompia com perguntas.
A construção onde finalmente chegaram combinava com as lápides e sepulturas. Sua fachada de pedra ecoava a arquitetura usada na entrada principal e nos balaústres que se intercalavam aos portões de ferro.
– Eu estava nu – ele disse. – Vim até aqui, entrei pela janela e peguei...
Ele empurrou a porta, que rangeu enquanto se abria. Lá dentro, caminhou até a parede de trás e comparou o pedaço de tecido rasgado com um macacão impermeável que estava pendurado.
Nu?, ela pensou.
– Onde estavam suas roupas?
Ele deu de ombros.
– Só sei que estive aqui na noite passada.
Matthias voltou para fora e continuou pelo caminho que estavam fazendo, mas agora ele andava em zigue-zague – talvez para manter a trilha ou para tentar encontrá-la; Mels não sabia e também não perguntou. Apenas o seguiu, e eles passaram por dezenas de lápides, além de funcionários que cuidavam do gramado e pessoas que visitavam túmulos de parentes.
Finalmente, quando estavam a quase meio quilômetro de onde deixaram o carro, ele parou.
– Aqui. Isto é... sim, foi aqui que começou. Tenho certeza.
A lápide que ele observava pertencia a um dos túmulos mais recentes – e em cima da terra fofa que fora colocada sobre o caixão, havia realmente a silhueta de um corpo, como se uma pessoa do tamanho dele tivesse deitado ali em posição fetal.
– Foi aqui que começou – ele se apoiou na bengala e se agachou. Tocando a terra, sussurrou: – Aqui.
– James Heron – ela disse, lendo a inscrição simples na lápide. – Você conhece ele?
Matthias olhou ao redor do cemitério.
– Sim.
– Em que contexto?
– Preciso ir – ele se levantou e se afastou dela. – Obrigado.
Mels franziu a testa.
– Do que está falando?
– Você precisa ir embora agora...
– Você não tem condições de andar de volta até a cidade. E boa sorte se quiser achar um táxi.
– Por favor, você precisa ir embora.
– Diga por que e talvez eu considere.
Em um movimento súbito, o homem se aproximou dela, chegando perto... muito perto. Tomando fôlego, Mels precisou forçar para que seus pés não se mexessem... e foi um choque quando percebeu que os pés desejavam que seu corpo terminasse o que ele havia começado.
Só era preciso mais um passo para que seus peitos se tocassem e seus quadris se apertassem um contra o outro.
Não era a ideia mais brilhante, já que parecia que o predador dentro dele se libertara. Mas ela não queria ser sensata.
Mels o desejava.
Mas isso não fazia parte do plano.
Levantando o queixo, ela disse:
– Se pensa que essa agressividade é persuasiva, você está errado. E eu estou esperando uma explicação.
Matthias se inclinou para frente, e o movimento de seus quadris a deixou totalmente ciente do quão mais alto ele era. Quão mais forte, mesmo machucado. E o quanto seus olhos ardiam, mesmo através dos óculos escuros.
Com uma voz grave e perigosa, Matthias disse:
– Porque você vai morrer se não se afastar de mim.
CAPÍTULO 11
Local não revelado Washington, D.C.
– Este é o alvo.
A foto que caiu com a imagem para cima na lustrosa mesa chegou ao agente por força da inércia.
O rosto instantaneamente pareceu familiar. Afinal, quem nas Operações Extraoficiais não conhecia aquele homem?
O agente ergueu os olhos na direção de seu superior.
– Qual a localização?
– Caldwell, Nova York.
O endereço foi passado oralmente, assim como todas as outras instruções. E ele não podia ficar com a foto. E aquela sala, em um prédio absolutamente comum na capital da nação, não registrava nada daquela conversa. Sem rastros. Nunca.
– Obviamente, consideramos que ele está armado e é extremamente perigoso.
Com certeza. Sempre fora – mas glórias não duram para sempre, e você nunca deixa de ser um agente das Operações. As únicas classificações para um agente eram “em atividade” ou “eliminado”.
E ele seria o responsável pelo carimbo de “eliminado”, nesse caso.
– As regras normais se aplicam – disse o superior.
É claro que sim: agiria sozinho, era o único responsável pela missão e, se falhasse, era melhor rezar para morrer – ou fazer isso por si próprio. Essas regras eram muito conhecidas pelo pequeno grupo de agentes que foram escolhidos a dedo pelo diabo em pessoa...
Matthias. Aquele que os liderara nos últimos dez anos. O astuto jogador de xadrez, o mestre da manipulação, o violento sociopata que servira de modelo para todos eles.
Por um momento, parecia estranho receber ordens de outra pessoa – mas, considerando quem era o alvo...
No entanto, a organização precisava seguir em frente, e seu atual superior subira rápido na hierarquia, claramente se posicionando como o herdeiro do trono. Isso explicava o que estava fazendo agora. Pontas soltas eram inaceitáveis.
– Mais alguma coisa de que eu precise saber?
– Apenas não estrague tudo. Você tem 24 horas.
O agente esticou a mão enluvada e trouxe a foto para mais perto. Observando aquele rosto, pensou que, se alguém tivesse lhe contado sobre as mudanças que aconteceram nos últimos dois anos, ele se convenceria de que essa pessoa estava maluca.
Porém, lá estava ele, olhando para aquele poderoso homem na fotografia, que agora estava condenado à morte. Se o agente falhasse ao tentar matá-lo, a organização mandaria outro. E outro. E mais outro. Até que a missão fosse cumprida.
E, conhecendo o alvo, talvez precisassem de mais de uma tentativa.
Seu superior pegou de volta a fotografia e caminhou até uma porta que parecia normal, mas que na verdade era à prova de balas, fogo, bombas e som. Assim como as paredes, o teto e o chão.
Após um escaneamento da retina, a porta se abriu e depois fechou, deixando o agente sozinho para ponderar suas opções: uma vez que a missão fosse entregue, os métodos de execução ficavam por conta do agente designado. Os chefes se importavam apenas com os fins, não com os meios.
Caldwell, em Nova York, ficava a apenas uma hora e meia de avião, mas era melhor ir de carro. Não dava para saber que recursos tinha seu alvo, e aviões podiam ser rastreados mais facilmente do que carros sem identificação.
Enquanto o agente deixava o edifício, o fato de que poderia estar se dirigindo para a própria morte era irrelevante – e essa era parte da razão de ele ter sido selecionado dentre tantos outros soldados e civis que se “inscreviam” para as Operações Extraoficiais. Cuidadosas avaliações psicológicas e físicas eram conduzidas, não durante semanas ou meses, mas por anos, antes que o candidato recebesse o sinal verde. Afinal, o trabalho exigia uma incomum combinação de urgência e desapego, lógica e iniciativa, disciplina mental e física.
Assim como o simples prazer em matar outros seres humanos.
Ao final do dia, ele achava divertido bancar o Ceifeiro da Morte, e essa era a única maneira legal e sancionada de fazer isso. Mesmo o mais cuidadoso assassino em série acaba preso com o passar do tempo. Mas e trabalhando para o governo dos Estados Unidos?
Seu único limite era sua habilidade de permanecer vivo.
CAPÍTULO 12
Matthias precisava se afastar de Mels.
Não havia nenhuma outra opção. No cemitério, junto dela, encarando a lápide de Jim Heron, pareceu muito claro que eles estavam separados entre a vida e a morte – e ela estava no lado da vida.
Matthias queria mantê-la assim.
Depois de discutirem por um momento, ela o deixou, afastando-se com uma rapidez eficiente que ele aprovava. Matthias permaneceu no local de descanso de Jim Heron pelo tempo que julgou ser necessário até Mels chegar ao carro de seu amigo – e, como ele esperava, o Toyota não estava mais no portão principal do cemitério quando ele retornou.
E ela estava certa quanto à falta de táxis, mas havia um ponto de ônibus não muito longe e, embora isso o obrigasse a esperar, acabou conseguindo voltar ao centro da cidade por conta própria.
Melhor assim. Uma separação definitiva – ao menos fisicamente. Em sua mente, ele tinha o pressentimento de que não seria tão fácil.
Apesar de ainda possuir uma parte dela, de forma concreta: os óculos escuros. Ela não os pedira de volta, e ele esqueceu que estavam em seu rosto.
E esconder seu olho ruim seria muito útil em uma situação como a dele.
Matthias entrou no Starbucks da rua Quinze e avaliou o local através de seu Ray-Ban. O horário de pico do almoço já tinha passado e os fregueses das três da tarde ainda não tinham aparecido para lotar o local em busca de um remédio para sua sonolência vespertina. Havia apenas duas pessoas tomando café com leite, além de um par de baristas do outro lado no balcão.
Ele escolheu a barista cheia de piercings na sobrancelha e cabelo espetado azul e rosa.
Quando se aproximou, ela ergueu um olhar que parecia contar as horas para ir embora, mas sua expressão mudou rapidamente. Para algo a que ele já estava acostumado.
Era uma expressão de interesse feminino.
Matthias escolheu sabiamente.
– Olá – ela disse, enquanto pesquisava seu rosto... e depois a bengala e a jaqueta preta.
Ele sorriu, como se também estivesse momentaneamente interessado nela.
– Ah, escuta, eu combinei de encontrar um amigo aqui, mas ele não apareceu. Eu ia ligar para ele do meu celular, mas percebi que esqueci em casa. Posso usar seu telefone?
Ela deu uma olhada em seu colega de cafeteria. O cara estava encostado nos fundos ao lado das máquinas de café, braços cruzados ao redor do peito magro, como se estivesse descansando em pé.
– Sim. Pode sim. Venha aqui.
Matthias a seguiu pelo balcão, exagerando seu andar manco.
– Preciso ligar para o disque-informações primeiro, pois não lembro o número dele. Mas não se preocupe, é uma ligação local. Não acredito que esqueci meu celular!
– Acontece com todo mundo! – ela estava toda agitada, seus olhos pousavam rapidamente nele e depois se desviavam, como se ele fosse brilhante demais para se olhar por muito tempo. – Mas eu preciso discar, você não pode entrar atrás do balcão.
– Sem problema – quando ela lhe entregou o fone, ele o pegou e sorriu devagar. – Obrigado.
Ela ficou ainda mais encabulada. Ao ponto de precisar discar duas vezes até conseguir chamar o número desejado.
Matthias casualmente se virou e fingiu checar a entrada procurando por seu “amigo” quando uma voz gravada atendeu:
– Cidade e estado, por favor.
– Caldwell, Nova York – houve uma pausa. Ele esperou um atendente. – Por favor, o número de James Heron.
Enquanto Matthias esperava pela informação, a garota pegou um pano e passou casualmente pelo balcão. Mas ela estava escutando, com as sobrancelhas abaixadas.
– H-E-R-O-N – soletrou Matthias. – O primeiro nome é James.
Mas que droga, de que outro jeito dá para soletrar esse nome?
A atendente voltou a falar:
– Desculpe, mas não encontro ninguém com esse sobrenome em Caldwell. Quer tentar algum outro nome?
Que merda! Mas, de alguma forma, isso não o surpreendia. Seria muito fácil. E nem um pouco seguro.
– Não, obrigado – Matthias virou-se e entregou o fone para a garota. – Não tive sorte. O nome não está na lista.
– Você disse “Heron”? – perguntou a garota enquanto pendurava o fone. – Aquele cara que morreu?
Matthias estreitou os olhos – mas ela não podia ver, graças ao Ray-Ban.
– Mais ou menos. Meu amigo é irmão dele, na verdade. Moravam juntos. O telefone estava no nome de Jim. Como eu disse, meu amigo e eu combinamos de nos encontrar aqui pra, você sabe, conversar sobre tudo isso. É tão difícil perder alguém dessa maneira, e estou preocupado com o que isso pode fazer com a cabeça dele.
– Oh, Deus, foi triste demais – a garota jogava o pano de uma mão para outra. – Meu tio trabalhou com ele. E estava lá quando foi eletrocutado. E pensar que levou um tiro, tipo, dias depois. Quer dizer, como é possível? Sinto muito por seu amigo.
– Seu tio conhecia o Jim?
– Ele é gerente de recursos humanos na construtora em que Jim trabalhava.
Matthias respirou fundo, como se estivesse engasgando.
– Jim era um cara muito legal. Nós estivemos na guerra juntos – bateu com a bengala no balcão. – Sabe como isso é.
Quatro... três... dois... um...
– Olha, eu posso ligar pro meu tio se você quiser. Talvez ele tenha o telefone. Espera um pouco.
A garota saiu de trás do balcão, parou um pouco, depois assentiu para si mesma, como se estivesse em uma missão pelo bem, determinada a “fazer a coisa certa”.
Enquanto Matthias esperava ela voltar, ficou esperando também que sua consciência o repreendesse por causa da manipulação.
Quando não sentiu nada, ficou perturbado com a facilidade da coisa. Como se mentir fosse tão familiar e insignificante que seu cérebro registrasse essa ação como um simples reflexo.
A barista retornou cerca de cinco minutos depois com um número escrito em um papel de carta feminino, que traía completamente seu visual radical.
– Vou discar pra você.
A barista voltou para trás do balcão e entregou novamente o telefone a Matthias, que ficou escutando o som das teclas enquanto ela apertava os botões.
Ouviu o som de chamada. Um. Dois. Três. Quatro toques.
Nada de correio de voz. Nenhuma resposta.
Ele devolveu o telefone.
– Não tem ninguém em casa.
Afinal, o que ele esperava? Acordara no túmulo do cara e agora achava que Heron fosse atender o telefone? Era uma longa distância entre o caixão e a companhia telefônica.
– Talvez ele esteja a caminho?
– Talvez – Matthias encarou a garota por um momento. – Obrigado. Obrigado mesmo.
– Quer um café enquanto espera?
– Acho que vou dar uma passada na casa dele. Às vezes as pessoas reagem a uma tragédia... de um jeito estranho.
Ela assentiu, preocupada.
– Sinto muito.
E sentia mesmo. Uma completa estranha sentia pena, honestamente, por o que quer que ele estava passando.
Ele imediatamente pensou em Mels, que também parecia tão disposta a ajudar.
Pessoas boas. Pessoas gentis. E sua memória defeituosa dizia que Matthias não merecia ficar entre esse tipo de companhia.
– Obrigado – ele disse com a voz rouca antes de sair mancando pela porta.
A pistola calibre quarenta na mão de Jim pesava menos de um quilo, e já estava carregada com dez balas no pente e uma na agulha.
Ele manteve a arma abaixada ao lado da coxa enquanto saía da garagem. Depois do episódio no chuveiro, Adrian saíra para tomar ar e trazer comida, levando sua Harley, mas não o capacete. O Cachorro estava seguro no andar de cima, descansando na cama sob o sol. Jim estava de guarda.
Você não vê? Ela está dentro de mim... e está me dominando...
Merda.
Pelo menos Jim tinha um escape. O bom da garagem era que ela ficava nos fundos do terreno de uma casa de fazenda – e a casa da frente, branca, com sua varanda e chaminé de tijolos, estava vazia desde que ele começara a alugar o local.
Ninguém veria. Mas isso ainda não era suficiente.
Ele enfiou a mão livre dentro da bota e retirou um silenciador. A peça adicionava quase trezentos gramas ao peso da pistola automática e mudava seu centro de gravidade, mas Jim estava acostumado a usá-la daquela maneira.
Agora, ninguém ouviria também.
De pé sobre o cascalho solto do caminho de entrada, ele tragou o cigarro e então o segurou com a mão esquerda. Concentrando-se em um galho que estava a dez metros do chão, levantou a arma e mirou no pedaço de madeira de três centímetros.
Respirando calmamente, Jim fechou os olhos e pensou no rosto de Devina.
Crack!
Graças ao silenciador, o som da pistola foi bastante reduzido, apenas um estampido contra sua mão e o impacto na árvore.
Crack!
O gatilho, assim como o cabo e o tambor, não eram apenas uma extensão de seu braço, mas também de seu corpo, e ele não precisava dos olhos para reajustar a trajetória. Sabia exatamente onde o chumbo acertaria.
Crack!
Calmo. Concentrado. Respirando pela barriga, não pelo peito. Imóvel, exceto pelo dedo indicador e depois pelos músculos do antebraço ao absorverem o súbito coice da arma.
O impacto da última bala foi mais suave; afinal, já não restava muita madeira.
Ele abriu os olhos assim que o galho começou uma queda livre, batendo em seus irmãos até chegar ao chão duro.
Colocando o Marlboro de volta entre os dentes, Jim esmagou as pinhas e a grama rala com suas botas de combate ao andar até a árvore e pegar o galho. Foi um corte preciso, relativamente falando. Nada igual ao que uma serra faria, mas, considerando a distância e os meios, parecia bom o suficiente.
– Você é um ótimo atirador.
O sotaque inglês altivo vindo de trás de Jim o fez querer continuar apertando o gatilho.
– Nigel.
– Cheguei num momento inapropriado?
– Ainda tenho sete balas. Você decide.
– Devina sofreu uma reprimenda – Jim girou o corpo e estreitou os olhos na direção do arcanjo aristocrático, que assentiu. – Queria que soubesse. Pensei que seria muito importante te informar disso.
– Está preocupado pensando que estou perdendo o rumo?
– Mas é claro.
Jim teve de sorrir.
– Você consegue ser direto quando lhe convém. Então, o que é que seu Criador fez com minha inimiga?
– Ela é seu oponente...
– Inimiga.
Nigel colocou as mãos para trás e começou uma caminhada excêntrica. Vestia um terno fora de moda cortado à mão, do tipo que era totalmente estranho a Jim, e que continuaria desse jeito.
– Qual é o problema, chefe? – Jim murmurou. – O gato comeu sua língua?
O arcanjo lhe lançou um olhar que o faria cair morto ali mesmo, se Jim estivesse vivo do jeito convencional.
– Você não é o único com temperamento explosivo, e eu devo te lembrar de tomar cuidado com o tom e as palavras quando se dirigir a mim.
Jim guardou a arma na cintura.
– Certo. Chega de papo furado. O que posso fazer por você?
– Nada. Eu simplesmente pensei que você se acalmaria se soubesse que o Criador agiu. Eu te disse pra deixar que o demônio cruzasse os limites. Eu te disse pra esperar pelas consequências. E elas vieram.
– O que Ele fez com ela?
– As vitórias e derrotas que vocês conquistaram são permanentes. Não há nada que Ele ou qualquer um de nós possa fazer a respeito de onde as bandeiras foram... elas são imutáveis. Mas Ele decretou que as ações de Devina não podem ficar impunes.
– Espere, não estou entendendo. Se o que Devina fez afetou o resultado de uma rodada, então sua vitória tem que ser anulada.
– Não é assim que essa competição funciona. As vitórias... – o arcanjo olhou para o céu. – O paralelo seria propriedade pessoal, suponho.
– Minha?
– De certa maneira, eu diria que sim.
– Então, se ela quebrou as regras e isso mudou o resultado, o Criador deveria dar de volta aquilo que é meu de direito. E, já que estamos falando nisso, quero lembrar que, se eu soubesse que a alma em questão era o Matthias, eu não teria me concentrado no homem errado.
– E isso foi corrigido.
– Como?
Ao longe, do outro lado do campo, um carro saiu da estrada e entrou no caminho que passava pela casa da fazenda.
Merda. Visitantes não eram nada bem-vindos – e a cor amarela sugeria um táxi.
O carro não parou na residência principal.
Nigel levantou uma sobrancelha.
– Acredito que ficará evidente.
Após mais uma de suas frases enigmáticas, o chefe desapareceu.
– Obrigado, amigão – Jim murmurou. – Grande ajuda de merda. Como sempre.
Protegendo-se em um canto, Jim encostou os ombros na parede de alumínio. A arma não permaneceu na cintura. Ele a segurou mais uma vez, preparado para atirar.
O táxi estacionou na frente da garagem.
Um momento depois, um homem que ele nunca esperava ver de novo saiu do banco do passageiro... um pesadelo que vivia e respirava... um problema do passado, que Jim já resolvera.
Então esta era a solução para a trapaça de Devina?
– Filho... da puta – Jim sussurrou.
CAPÍTULO 13
Matthias saiu do táxi e pediu que o motorista esperasse. A garagem à sua frente era uma espécie de galpão de armazenamento, com escadas que levavam para o segundo andar. As portas duplas no andar térreo estavam fechadas; a do andar de cima e as cortinas também.
Na janela do andar superior, as cortinas se separaram e um cachorro desgrenhado apareceu, como se estivesse de pé com as patas da frente apoiadas na parede.
Alguém claramente vivia ali.
– Mande o táxi embora.
Matthias virou rapidamente a cabeça para a direita, e o homem que surgiu de trás da garagem o fez quase perder o equilíbrio, fazendo uma lembrança vívida e instantânea surgir em sua memória.
Jim Heron. De volta do mundo dos mortos.
O instinto de Matthias lhe dizia que o cara sempre tivera aquele grande corpo musculoso, cabelo loiro escuro, o rosto frio e de feições endurecidas. Mas não havia contexto em sua lembrança, não havia um comentário interno sobre como ele conhecia o homem, ou o que viram e fizeram juntos. Porém, uma coisa estava clara... mesmo sem a arma, era óbvio que aquele não era o tipo de cara que você quer por perto se estiver desarmado e sem um veículo de fuga.
Matthias bateu no vidro, entregou uma nota de vinte ao motorista e o deixou ir embora.
Quando o carro manobrou e partiu pelo caminho de entrada, o som dos pneus esmagando o cascalho parecia tão alto quanto disparos de uma arma.
– Isso é uma arma na sua perna ou você está apenas feliz de me ver? – Matthias disse secamente.
– É uma arma. E você quer me dizer o que está fazendo aqui?
– Diria, se soubesse. Talvez você possa me ajudar com essa pergunta.
– O quê? – quando Matthias não respondeu, os olhos azuis cínicos de Heron ficaram ainda mais estreitos. – Você está falando sério. Isso foi uma pergunta sincera.
Matthias deu de ombros.
– Interprete do jeito que quiser. E enquanto pensa, eu gostaria de comentar que você supostamente está morto.
– Como você me encontrou?
– Procurei na central de informações. De certa maneira.
Quando Heron se aproximou, Matthias percebeu que a posição da arma com o silenciador mudou e que agora o tambor estava apontado diretamente para seu peito. E podia apostar que o gatilho seria apertado em um instante, se fosse preciso. O que significava que aquele homem com estilo militar era paranoico... ou que, por alguma razão, considerava Matthias perigoso.
– Estou desarmado – Matthias anunciou.
– Não faz o seu feitio.
A arma não foi abaixada; aquele corpo não relaxou; aqueles olhos não perderam o ar de alerta.
– Você não acredita em mim – disse Matthias.
– Depois de tudo o que passamos? Nem um pouco, meu velho amigo.
– Nós éramos amigos?
– Não, você está certo. Nós fomos muitas coisas, mas nunca amigos – Heron balançou a cabeça. – Mas que merda, sempre que não espero mais te ver, você aparece.
Heron sabia as respostas, pensou Matthias. O homem que estava bem à sua frente era o caminho para ele descobrir quem era.
– Bom – murmurou Matthias –, considerando que você ainda está respirando, mas que eu visitei o seu túmulo uma hora atrás, eu não sou o único tirando coelhos da cartola. Se importa de me contar onde foi que nos vimos pela última vez?
– Você está falando sério? – quando ele assentiu, Heron balançou a cabeça novamente. – Está dizendo que não se lembra?
Matthias levantou as mãos, mostrando as palmas.
– Não tenho nada.
A atitude desconfiada de Jim foi substituída por uma breve surpresa.
– Jesus.
– Acho que não. Minha carteira de motorista diz “Matthias”.
A risada que recebeu como resposta foi um pouco assustadora.
– Se importa se eu te revistar?
Matthias encostou a bengala na perna e levantou as mãos.
– Manda ver.
Jim fez o procedimento com uma das mãos e, quando se afastou de novo, soltou outro palavrão.
– Claramente você perdeu a cabeça.
– Não, apenas minha memória. E preciso que você me diga quem sou eu.
Houve um longo silêncio, como se Heron tentasse preencher os buracos da história em sua cabeça. Finalmente, disse:
– Vou pensar bem antes de contar as coisas do seu passado. Mas vou te ajudar. Disso você pode ter certeza.
– Isso não é bom o suficiente. Preciso das informações. Agora.
– Acha mesmo que está em posição para fazer exigências?
Enquanto Jim conduzia seu antigo chefe, Matthias, o Cretino, para o andar de cima, ele não conseguia acreditar em tudo aquilo. E não importava o quanto seu cérebro se esforçasse: parecia que os porcos realmente podiam voar, que o Inferno estava cheio de bolas de neve, e que em algum lugar um cachorro velho aprendia a dirigir uma droga de um carro.
Era disso que Nigel estava falando? Uma repetição da segunda rodada?
Você o reconhecerá como um antigo amigo e um antigo inimigo a quem encontrou recentemente. O caminho não poderia ser mais óbvio se estivesse iluminado com placas.
Parece que concentrar-se na alma errada não seria um problema desta vez – desde que o discurso cifrado de Nigel estivesse mesmo certo e Matthias, mais uma vez, fosse a alma em jogo.
O que não era uma maneira tão boa de penalizar Devina. Merda!
Mas havia uma boa notícia – se é que podia existir alguma notícia boa nessa história de voltar do mundo dos mortos: a perda de memória. O velho Matthias nunca se exporia com uma fraqueza como amnésia, portanto provavelmente era verdade – e Deus sabia que esse buraco negro de informações seria muito útil.
Assim, Jim precisava trabalhar apenas contra a natureza.
Abriu a porta e deu espaço para Matthias entrar.
– Humilde lar, e essas coisas.
Enquanto Matthias mancava para dentro, o Cachorro correu e balançou o rabo lhe dando boas-vindas, com suas patas fazendo barulho no chão de madeira.
Considerando a alegria do cão, parecia óbvio que Devina não estava usando o corpo daquele homem. O que foi uma boa dica.
Jim fechou a porta e observou seu ex-chefe. Mancava do mesmo jeito. Tinha a mesma voz. O mesmo rosto. Os óculos escuros não surpreendiam, considerando o estado dos olhos do cara.
– Eu ofereceria comida, mas tenho que esperar meu amigo voltar. Pode usar o sofá enquanto isso.
Matthias grunhiu quando sentou.
– Eu ainda fumo – ele disse, acenando para o maço em cima da mesa.
– Pensei que não se lembrava de nada.
– Certas coisas... eu acabo lembrando.
Jim foi até a pequena cozinha e parou em frente à pia. Por alguma razão, ele queria estar perto de Eddie.
– Então, vamos começar com exatamente o que você lembra.
– Eu sei que acordei na sua sepultura.
– A morte é relativa.
– Então, nós dois somos um milagre.
Jim levantou uma sobrancelha.
– Pelo menos um de nós é. Vamos ver quanto ao outro. Como me encontrou?
– Central de informações.
– O telefone daqui não está no meu nome.
– Mas você deu esse número no seu último emprego. Fui até a biblioteca, busquei o número na internet e achei você. Não é um esconderijo muito bom.
– Não estou me escondendo de ninguém.
– Então, por que você está morto, mas vivo?
– Vamos nos concentrar apenas em você, certo?
– Certo. Então, por que está com medo de mim? – quando Jim apertou o maxilar, Matthias sorriu do jeito que sempre fazia, mostrando todos os dentes brancos e afiados. – Aliás, isso não é uma lembrança. É a arma na sua mão. Estamos na sua casa, protegidos... se eu não fosse uma ameaça, você guardaria a arma.
Filho... da puta.
Mesmo com amnésia, o cara era um cretino.
Com essa deixa, Jim se aproximou, mantendo os olhos no Ray-Ban que o outro usava. Com a ponta da arma virada para Matthias, colocou a pistola na mesa e a empurrou para o outro lado.
– Fica com ela, se quiser.
– Você vai me dar uma arma?
– Claro, por que não? Pense nisso como um presente por sua volta pra casa.
– Estou em casa?
– Não neste lugar em particular... você não pode ficar aqui, e nunca esteve aqui. Nunca.
Matthias sorriu um pouco.
– Bom, não quero ficar na minha casa.
– E onde é isso exatamente?
O homem colocou a mão no bolso, tirou a carteira e jogou a carteira de motorista na mesa, sobre a arma.
Jim olhou a identificação. Era bem feita, com todos os hologramas no lugar certo. O sobrenome não estava correto, é claro, mas o primeiro nome e a foto estavam.
– O que você sabe sobre mim? – exigiu o homem.
– Bela foto – Jim disse ao recostar-se na parede.
– Não estou perguntando sobre meu futuro como modelo. Por que está evitando minhas perguntas?
– Estou tentando decidir como fazer esta jogada.
– Estamos em um jogo?
– Sim, estamos. E você não pode nem imaginar o que está em jogo – Jim decidiu sentar ao lado de seu hóspede. – Como eu disse antes, por que não começa contando o que você lembra?
Os óculos escuros baixaram, como se Matthias estivesse encarando o chão. Ou talvez suas botas, ou a bengala.
– Fui atropelado por um carro do lado de fora do Cemitério Pine Grove ontem à noite e acordei no hospital sem saber quem eu era ou onde estava. Hoje, tentei me lembrar refazendo meus passos, até que cheguei na sua sepultura – o Ray-Ban subiu de novo e ele olhou ao redor. – Eu reconheci seu nome no instante em que o vi. Reconheci você também, no exato momento em que saiu de trás da casa.
A expressão no rosto de Jim não mudou.
– Não é uma surpresa... nós dois temos muita história juntos. E é por isso que vou te ajudar.
– Então comece dizendo como isso tudo... – Matthias fez um gesto com a mão, mostrando todo o seu corpo – aconteceu.
– Os ferimentos?
– Não, minha roupa de balé. De que merda você acha que estou falando?
– Tire os óculos.
– Por quê?
– Quero olhar nos seus olhos quando responder.
A mão tremeu quando tirou os óculos, mas Jim apostava que era uma fraqueza física, e não mental. E ele estava certo.
– Como os ferimentos aconteceram? – seu ex-chefe repetiu, com uma voz grave.
– Você tentou se matar na minha frente. Plantou uma bomba na areia e pisou nela, bem na minha frente.
Matthias olhou para a própria perna e suas sobrancelhas se juntaram, como se o cérebro estivesse calculando dois mais dois.
– Por que eu fiz isso?
Como responder sem revelar demais?
– Você odiava o homem que era. Não podia mais continuar daquele jeito, e deu um jeito de não ter mais que fazer isso.
– Mas eu não morri.
– Não dessa vez – Jim levantou-se. – Meu amigo voltou.
Um segundo depois, o som de uma Harley invadiu o local através da janela, aumentando até parar totalmente.
– Você tem um bom ouvido – Matthias comentou.
Jim encarou o homem, pensando em como faria para trabalhar a situação em seu favor. Com um pequeno sorriso, murmurou:
– É o menor dos meus truques.