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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FASCÍNIO
FASCÍNIO

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 14

– Você quer que eu faça o quê?

Em resposta, uma caixa da L’Oreal foi jogada das sombras e quando a mulher a pegou, ela pensou: certo, a noite começou muito bem. Já estava cansada, dolorida e querendo que fosse uma da manhã, quando acabava seu turno – e esse “cliente” era um esquisitão com algum fetiche por tintura de cabelo?

Estava cansada dessa rotina de prostituta; estava mesmo. Já não aguentava mais aqueles motéis velhos e escuros, e homens feios com ideias malucas – isso sem contar aquele “gerente”.

– Você quer que eu pinte meu cabelo de loiro. Sem brincadeira.

Um maço de quinhentos dólares foi jogado do canto, e a luz do teto fez as notas brilharem no quarto pouco iluminado. Com certeza parecia um presente dos céus – principalmente considerando-se que o idiota já pagara para poder entrar naquela espelunca junto dela.

– Está bem, certo – ela se aproximou e pegou o dinheiro. – Mais alguma coisa?

A voz profunda soou em um tom baixo:

– Quero que o deixe bem liso.

– Só isso?

– Só isso.

– Nada de sexo?

– Não quero você pra isso.

Sentiu um calafrio começando a subir por suas costas até chegar à base do pescoço. Mas não havia motivo para se preocupar. Havia outras garotas nos quartos dos dois lados, e o patrão estava no estacionamento a menos de dez metros. Além disso, ela carregava um spray de pimenta.

O que ele poderia fazer com ela?

Resmungando para si mesma, entrou no banheiro e acendeu a luz. No espelho, ela parecia estar em seus quarenta anos, com bolsas sob os olhos e o cabelo com a consistência de um tufo de feno. A boa notícia era que ela precisava mesmo retocar as raízes – a lateral do cabelo já estava parecendo um mapa rodoviário, com a cor natural subindo pelo couro cabeludo. Mas não porque ela quisesse imitar Marilyn Monroe.

Acontece que gostava de ser ruiva. E, caramba, se o cabelo já estava crespo daquele jeito, não seria uma tintura que iria ajudar...

Ah, veja só, veio um condicionador junto. Legal.

Colocou em cima da pia o frasco cheio de creme, o tubo da tinta e o aplicador. Demorou um pouco para ler as instruções, afinal, ela nunca fora muito boa nessa coisa de ler e escrever, apesar de aquele texto não ser nenhum tratado científico.

Através da porta entreaberta, pôde ver que o cliente sentou-se no canto mais distante, com as botas bem separadas plantadas no chão, e as mãos descansando nos joelhos em vez de estarem no meio das pernas. A luz no teto iluminava apenas a parte inferior de seu corpo, portanto não dava para enxergar o rosto. Melhor assim – isso o deixava ainda mais anônimo.

Engraçado, ela não lembrava que esses quartos eram tão escuros.

Voltando ao trabalho, furou a ponta do tubo com a tampa de plástico, espremeu a gosma mal cheirosa dentro do aplicador e mexeu a mistura como se estivesse dando um trato em um cliente. Empurrou as mãos para dentro das luvas de plástico que estavam atrás das instruções. Ainda bem que eram grandes, pois assim havia espaço para suas unhas postiças.

Aplicou a tintura nas laterais sem problemas, mas as pontas estavam embaraçadas demais. Pegou uma escova em sua bolsa e forçou os cabelos da raiz às pontas duplas até que pudesse terminar o trabalho; depois se livrou como pôde de tudo o que saiu na escova.

A tintura cheirava a aromatizador misturado com cola química e tinha a consistência de sêmen.

Será que era isso que excitava aquele cara?

Homens são tão nojentos.

Durante a espera para a tinta secar, enquanto sua cabeça queimava e o nariz coçava, enviou mensagens de texto contando sobre o esquisitão que estava com ela. Não havia razão para conversar com o cliente – ele ainda estava apenas sentado lá, como uma estátua.

Trinta e cinco minutos depois ela entrou no banho com um frasco de xampu que fora deixado na pia. Fora usado até a metade por outra pessoa, mas tinha o suficiente para uma boa enxaguada. A água morna estava gostosa e o condicionador cheirava bem melhor que a tintura.

Quando saiu, seu cabelo tinha a mesma cor de pipoca de cinema, e todo aquele amarelo dourado fez sua bunda branca quase parecer esverdeada. Vestir suas roupas de puta não ajudou muito a melhorar a imagem.

Ligando o secador na tomada, virou-se, com os pés ainda descalços.

– Está pronto?

O homem levantou da cadeira e, ao se aproximar, a luz brilhou em seu rosto. Era bonito o suficiente, mas, por alguma razão, ela desejou devolver o dinheiro e sair dali. Rápido.

– Deixe o resto comigo – ele disse, tirando o secador e a escova das suas mãos.

O barulho do ar quente rugiu em seus ouvidos quando ele começou a escovar vagarosamente os cabelos dela. Com firmeza. Com decisão. Como se já tivesse feito aquilo antes.

Que cara maluco.

Quando tudo estava seco e macio, ele desligou o secador e o colocou na pia ao lado.

Encontrando os olhos dela através do espelho, o homem apenas a encarou.

Ela limpou a garganta.

– Eu preciso ir...

De repente, o rosto dele parecia diferente, as feições pareciam estar mudando...

Ela abriu a boca e tomou seu último fôlego para gritar quando uma lâmina surgiu atrás de sua cabeça.

Com um rápido corte na garganta, o monstro abriu um novo caminho para o ar entrar nos pulmões dela, e o que seria um grito agudo de terror transformou-se em um bizarro borbulhar de sangue.

A última coisa que ela viu foi um cadáver ambulante, com um sorriso em meio à carne podre.

– É hora da festa – disse uma voz feminina.


CAPÍTULO 15

Suicídio.

Enquanto Matthias digeria a palavra, um homem do tamanho de um ônibus entrou pela porta da frente: sua jaqueta preta, luvas e calça de couro o deixavam parecido com um membro da gangue dos Hells Angels. Sua expressão severa também se encaixava na descrição – e todos aqueles piercings confirmavam que Matthias não estava diante de nenhum cara frouxo.

Jim os apresentou, classificando Matthias como um “amigo” e o colega motoqueiro como “Adrian”.

Suicídio.

Experimentando o conceito em sua mente, Matthias descobriu que se encaixava e tentou se lembrar de mais coisas: um contexto, um lugar, uma razão. Mas nada surgiu, mesmo quando ele forçou seu cérebro até doer.

Com uma súbita clareza, olhou para Heron.

– O deserto.

O homem que tinha as respostas parou de conversar com seu colega e assentiu.

– Sim. Foi lá que aconteceu.

– E você estava junto – quando Heron assentiu novamente, a frustração de Matthias rugiu. – Como diabos nós nos conhecemos...?

A resposta foi interrompida pelo som de um carro parando na frente da garagem. Instantaneamente, armas foram sacadas, e Matthias também se juntou à festa, empunhando a pistola que estava na mesa.

Deus... ele sentia-se tão bem com ela na mão. Parecia tão natural!

Matthias se esquivou pela parede e olhou por entre as cortinas. Assim que viu o que estava lá fora, se acalmou, soltando um grunhido.

– Filha da puta.

– Você conhece ela? – perguntou Jim, que estava na janela perto da porta.

Voltando a olhar entre as cortinas, Matthias observou Mels sair do Toyota e concentrar-se na Harley. Não era uma surpresa que ela tivesse encontrado a droga do endereço; se ele conseguira, ela também conseguiria. Mas não podia acreditar que ela o seguira até ali. Antes de se separarem, Matthias falara a dura realidade, e a maioria das pessoas deixaria aquele drama para trás na mesma hora.

Sou faixa preta, tenho permissão para porte de armas e nunca vou a lugar algum sem uma boa faca.

– Deixa que eu cuido disso – ele falou, andando até a porta e tirando Jim do caminho, mesmo o cara sendo muito mais pesado e saudável. – E vou deixar bem claro: ninguém toca nela. Entenderam? Ninguém.

Ele podia estar comprometido fisicamente, mas não era preciso muita força para apertar um gatilho. E se alguém se aproximasse demais daquela mulher encantadora lá fora, ele os caçaria e mataria, mesmo que fosse a última coisa que fizesse em sua vida.

No silêncio pesado, dois pares de sobrancelhas foram erguidos, mas nenhum dos homens abriu a boca.

Acho bom mesmo, garotos.

No instante em que Matthias pisou na varanda superior, os olhos de Mels dispararam em sua direção.

Com as mãos na cintura, ela de alguma forma o confrontou olho no olho, mesmo estando no térreo.

– Surpresa!

Mantendo a arma fora da vista, ele disse:

– Você precisa ir embora.

Ela acenou para a moto.

– Pegou carona com um homem morto?

– É claro que não.

Franzindo a testa, ela subitamente atravessou o cascalho e pegou o que parecia ser uma das pedras. Mas a luz do sol refletida no objeto sugeria que era algo metálico.

Mels levou a cápsula vazia de uma bala de revólver até o nariz e cheirou.

– Andou praticando um pouco sua mira?

Enquanto ela segurava a bala vazia, Matthias quis praguejar. Principalmente quando ela sorriu friamente.

– Essa bala foi atirada recentemente, não mais do que vinte minutos atrás, talvez trinta.

Guardando a arma nas costas da cintura, ele desceu o mais rápido que pôde. Ficaram frente a frente, e Matthias nunca se sentira tão impotente em sua vida. Ele tentara intimidá-la para que nunca voltasse, mas isso claramente não funcionara. Talvez a honestidade funcionasse.

Ele percorreu seu rosto com os olhos, aquele lindo e teimoso rosto.

– Por favor – ele disse num tom baixo. – Estou implorando. Esqueça tudo isso.

– Você continua falando sobre perigo, mas tudo o que vejo é um homem sem memória que não sabe o que está procurando. Olha, apenas converse comigo...

– Jim Heron está morto. E eu não sei de quem é essa Harley, ou quem estava atirando...

– Então, com quem você estava falando lá em cima? E se disser que não tem ninguém, é mentira. Não tem como você ter trazido essa moto até aqui. Seria impossível. E o motor ainda está engatado. Aposto que se eu for até ela vou sentir o tanque ainda quente.

– Você realmente precisa esquecer isso tudo...

– Não vou colocar nada disso no papel, já combinamos assim. Tudo que me disser será extraoficial...

– Então por que você se importa?

– O trabalho não é tudo pra mim.

Matthias levantou as mãos.

– Por que diabos estou discutindo com você? Você nem usa cinto de segurança. Por que eu devo esperar que...

Nesse momento, a porta se abriu e Jim Heron saiu na luz do sol.

Mels olhou para o cara e balançou a cabeça.

– Bem, quem diria... sabe, você se parece muito com aquele trabalhador da construção que levou um tiro e morreu umas duas semanas atrás. Na verdade, eu mesma escrevi o artigo sobre você para o Correio de Caldwell.

Matthias apertou os olhos com as mãos.

– Filho da puta...


A primeira boa notícia, pensou Jim, era que a mulher tinha uma sombra. Ou seja, sem chance de ela ser uma criação de Devina.

A segunda boa notícia foi Matthias ter aquela atitude que dizia “ela é minha e de mais ninguém”. Aquele bastardo cruel nunca tinha mostrado preferência por nenhuma mulher, exceto se fosse um alvo marcado para morrer – e nunca bancara o protetor em relação a ninguém. Mas algo naquela jornalista de olhos faiscantes e personalidade forte o afetara. E isso era bom.

A mulher em questão pousou os olhos em Matthias. Na verdade, ela o encarava.

– Não vai nos apresentar?

– Deixa que eu faço isso – anunciou Jim enquanto descia as escadas.

– Como é bom ver que a boa educação ainda não morreu – ela murmurou. – Se bem que, com vocês, a morte é algo relativo, não é?

Matthias não estava contente por trás daquele Ray-Ban, mas teria de engolir sua insatisfação. Junto com outras coisas.

– Meu nome é Jim – ele estendeu a mão. – Prazer em conhecê-la.

Mels parecia desconfiada, mas também estendeu a mão.

– Talvez você queira me contar o que está acontecendo aqui...

No instante que suas mãos se tocaram, Jim a colocou em transe: ela apenas o encarou, relaxada, pronta para ser informada, com a memória de curto prazo totalmente apagada.

Legal. Jim não tinha certeza se conseguiria fazer aquilo.

Matthias apertou com força o braço dele.

– Que merda você fez com ela?

– Nada. Só um pouco de hipnose – olhou para seu ex-chefe. – Vou dizer o que vai acontecer. Ela não vai se lembrar de mim, vai ser mais fácil e limpo desse jeito. E você vai levar ela até o hotel que eu vou reservar pra vocês...

Matthias estava concentrado apenas em sua jornalista.

– Mels? Mels... você está bem?

Jim colocou o rosto bem em frente aos olhos do cara.

– Ela tá bem... nunca ouviu falar em Heron, o Mágico?

Eeeee... uma arma foi sacada. Matthias a encostou no pescoço de Jim, seu rosto subitamente mostrando os velhos traços tensos dos dias de glória no antigo emprego.

– Que merda você fez com ela? – não era exatamente uma pergunta, mas uma contagem regressiva antes de apertar o gatilho.

– Bom – disse Jim calmamente –, se você atirar no meu pescoço, nunca vai conseguir tirar ela do transe, não é mesmo?

Na verdade, se o cara atirasse, nada aconteceria. Mas já havia drama demais ali, e Jim não tinha certeza se conseguiria fazer aquele truque mental em mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Além disso, por causa do estado mental frágil de Matthias, Jim não queria arriscar explodir o cérebro do cara, revelando toda aquela história de anjos e demônios. Pelo menos, não agora.

A arma não saiu do lugar.

– Faça ela voltar. Agora.

– Você vai levá-la para um quarto de hotel.

– Sou eu quem tá segurando uma arma. Eu faço os planos.

– Pense bem. Se você estiver com ela, vai poder se certificar de que eu não vou mais importunar ela, certo?

A voz de Matthias ficou mais grave do que o normal.

– Você não sabe com quem está falando.

– E você também não – Jim inclinou-se na direção do cara. – Você precisa de mim. Sou o único que pode te contar o que você quer saber. Confie em mim. Estou mais ciente que você sobre o quanto seu passado está enterrado, e ninguém além de mim pode desenterrá-lo. Então entre na merda do carro, faça ela dirigir com você até o hotel Marriott no centro da cidade, e eu te encontro lá quando achar que estou pronto.

Matthias apenas ficou onde estava, impassível por um longo tempo.

– Eu poderia atirar agora mesmo.

– Então atire.

Matthias franziu a testa e levou a mão livre até a têmpora, como se estivesse com dor de cabeça.

– Eu... já atirei em você, não é...?

– Temos muita história juntos. E se quiser descobrir tudo, fique com ela. E não discuta. Agora eu tenho controle sobre você, e sou eu quem dita as regras. Uma ótima mudança de cenário, se me permite dizer.

Jim voltou para as escadas e subiu, deixando Matthias parado em frente a Mels. No andar de cima, ele estalou os dedos e entrou no apartamento. Depois assistiu por trás da cortina quando a mulher saiu do transe e os dois começaram a conversar.

– Então Matthias é a alma – disse Ad enquanto mordia um sanduíche.

– Parece que sim.

– Tem certeza de que quer colocar a mulher no meio disso?

– Você viu a maneira como ele olha para ela?

– Talvez ele só queira uma transa.

– Boa sorte pra ele – Jim murmurou. – E, sim, ela vai ser valiosa para nós.

A questão agora era descobrir qual seria a encruzilhada. Mais cedo ou mais tarde, Devina apresentaria uma escolha para Matthias, e Jim teria até então para mudar completamente aquele déspota sem consciência e faminto por poder, transformando-o no oposto disso.

Ótimo. Que maravilha.

Estava tão plenamente satisfeito com seu emprego que praticamente engasgava com essa merda toda.

– Vamos até o hotel – ele disse.

– Que hotel?

– O Marriott – Jim foi buscar sua carteira. Havia um cartão de crédito em seu nome que não estava exatamente atualizado, mas a Master-Card não descobriria que ele estava tecnicamente morto, simplesmente porque Jim não iria contar.

Adrian limpou a boca com um guardanapo.

– Tem certeza de que quer fazer isso num local tão público? O centro da cidade é cheio de gente e Devina adora ser o centro das atenções.

– Sim, mas a falta de privacidade vai deixá-la de mãos atadas. Primeiro, ela vai ter que limpar qualquer confusão. Segundo, ela vai precisar ter muito cuidado ao decidir como proceder nessa rodada; e não acho que matar civis inocentes seria visto com bons olhos pelo Criador.

Jim foi até o armário improvisado e tirou seus coldres. Vestindo-os, colocou sua adaga de um lado e uma arma do outro. Checou os bolsos, querendo saber quantos cigarros ainda tinha...

Um pedaço de papel dobrado no bolso de trás da calça o fez parar e fechar os olhos por um instante.

Não havia razão para pegar o artigo de jornal; ele já sabia o texto de cor. Cada palavra, cada parágrafo – e principalmente a foto.

Sua Sissy.

Que não era realmente dele.

Mas que estava sempre com ele. Nunca esquecida.

Certificando-se de que Adrian não podia vê-lo, tirou o papel, desdobrou a página e observou a foto. Ela tinha dezenove anos quando foi levada pelo demônio, eternamente presa naquele muro de almas.

Jim franziu a testa e olhou para a porta. Matthias estivera naquele Inferno maldito. As coisas que vira lá dentro...

Oh, merda, o que ele tinha feito lá?

A ideia de que a garota ainda estava lá sofrendo era suficiente para deixar Jim queimando de raiva.

– Se apresse, Ad – ele murmurou. – Temos que ir.


CAPÍTULO 16

Sentado no banco do passageiro do Toyota, Matthias sentia que estavam em um passeio. Mels não apenas obedecia a todos os sinais de trânsito, como também dirigia a dez quilômetros por hora em uma via em obras cheia de britadeiras e rolos compressores.

Ele a observou. Ela parecia estar bem, calma, normal, mesmo não se lembrando de Jim Heron.

Que diabos aquele cara tinha feito com ela?

Normalmente, Matthias não teria acreditado naquela coisa toda. Que merda é essa de hipnose? Mas... bem, ele estava mais ou menos na mesma situação, mas em vez de esquecer alguns minutos, ele não se lembrava da droga da sua vida inteira.

E, de qualquer maneira, o que “normalmente” significava nesses dias?

Quando pararam em um sinal vermelho ao final da via em obras, ele olhou através da janela.

– Não gosto de não estar no controle.

– Ninguém gosta – Mels respirou fundo. – Estou contente por você me deixar te levar de volta ao hotel.

Se você estiver com ela, vai poder se certificar de que eu não vou mais importunar ela, certo?

Matthias passou os dedos por baixo do Ray-Ban e esfregou os olhos.

– Estamos quase chegando – ela disse. Como se pensasse que ele iria desmaiar, ou algo assim.

Mas aquilo não tinha nada a ver com sua saúde física.

– Você me faz sentir... impotente.

– Não acho que seja eu. Acho que é por causa da situação em que você está.

– Não, é você – ele sentia que, se Mels não estivesse envolvida, as coisas seriam mais fáceis, mesmo se ele nunca se lembrasse de qualquer evento de sua vida: ele só precisaria se preocupar consigo mesmo, e ter um problema era definitivamente melhor do que ter dois.

– Eu tentei fazer a coisa certa – ele murmurou, e então se perguntou para quem realmente dissera aquilo.

– E você está fazendo a coisa certa ao se dirigir pra um lugar onde pode descansar. Suas últimas 24 horas foram caóticas. Você precisa dormir.

Deixando a cabeça cair no encosto do banco, Matthias fechou os olhos e pensou no confronto com Jim. Estivera plenamente preparado para apertar o gatilho e matar o cara.

Dormir não era exatamente o que ele precisava. Talvez algemas e uma avaliação psicológica: naquele momento em que seu dedo esteve no gatilho, não houve hesitação de sua parte – encostara o cano no pescoço do cara com rapidez, sem se importar com testemunhas e sem nenhum apelo moral de sua consciência quanto ao valor de uma vida humana.

Será que ele fora um soldado? Porque aquela atitude não tinha nada de civil, era totalmente militar.

Sim, pensou, era isso. E ele fora um dos tipos mais perigosos de soldados... aqueles que possuem um grande vazio no peito. O que significava que eram capazes de tudo.

Você odiava o homem que era.

Quando o semáforo ficou verde, Mels dirigiu por uma rua onde havia um pequeno centro comercial cheio de lojas grudadas umas nas outras. Eram coisas que ele nunca notava: os pequenos cafés aconchegantes, as lojas que vendiam presentes artesanais, as butiques de bijuterias e badulaques. Tudo tão banal. Tão cotidiano. Tão normal...

– Eu tentei cometer suicídio.

Mels pisou no freio por um instante, mesmo com o trânsito fluindo bem pela via de quatro pistas em que estava.

– Você tentou...? – limpou a garganta. – Sua memória está voltando?

– Algumas coisas.

– O que aconteceu? Quero dizer, se eu não estiver me intrometendo demais.

Pensando novamente em Jim Heron, ele respondeu com suas palavras:

– Eu não gostava de quem eu era.

– E quem você era?

Era sombrio como a noite, frio como o inverno, cruel como uma lâmina. Mas guardou isso para si.

– Você é persistente, sabia?

Ela tocou o próprio peito.

– Repórter. Faz parte do meu emprego.

– Estou descobrindo isso.

Matthias fechou novamente os olhos e escutou o motor do carro rugir e se acalmar. Quando algo morno e macio cobriu seu pulso, ele se exaltou. Era a mão de Mels, sua bondosa e elegante mão.

Por algum motivo, ele não podia acreditar que ela gostaria de tocá-lo.

Engolindo seco, ele apertou a mão dela e então desfez o contato.

Eles chegaram ao Marriott dez minutos depois. O lugar era um típico hotel de cidade grande, pairando sobre jardins bem cuidados no meio do centro comercial de Caldwell. Entraram pelo pórtico principal e acabaram em meio a uma confusão de carros, porteiros e pessoas carregando bagagens. Afinal, já passava das três da tarde, o que significava que era a hora da correria para os viajantes.

– Você vai subir comigo? – Matthias escutou a si mesmo dizer, enquanto imaginava quem poderia tê-los seguido; e que tipo de relacionamento ele realmente tinha com Jim Heron.

O cara tinha usado a palavra ajuda, mas sempre é preciso se perguntar que tipo de motivação está por trás de um gesto bem intencionado, e não é muito esperto simplesmente aceitá-lo cegamente.

– Vou te fazer companhia até você estar bem instalado, o que acha?

– Está... bem – ele ainda preferia uma separação direta, mas isso já não era possível.

Graças a Heron.

Se bem que... não era nada mal poder passar mais um pouco de tempo com ela.

Mels dirigiu lentamente entre funcionários que empurravam carrinhos de bagagem e seguiu para o estacionamento. O ar quente do motor invadia o interior do carro, então Matthias abriu uma fresta da janela – mas logo percebeu que aquilo não adiantaria. O ar que vinha do motor era a fonte do mal cheiro.

Mels entregou o carro de seu amigo para um manobrista – que não pareceu muito entusiasmado para estacionar aquela lata velha – e os dois entraram por uma porta giratória até o saguão subterrâneo, que estava decorado com carpetes vermelho-sangue e paredes douradas. Infelizmente, apesar daquela combinação – ou talvez por causa dela –, a decoração parecia mais a de um bordel do que um lugar para negócios: era uma tentativa mal sucedida de imitar o luxo de um Four Seasons.

– Sempre achei que este lugar se esforçava demais para parecer o Waldorf – Mels disse enquanto apertava o botão do elevador. – Mas estamos em Caldwell, não em Manhattan.

– Engraçado, eu estava pensando a mesma coisa.

– Aliás, não repara no meu mau humor – ela disse. – Sabe como é, eu não sou daqui.

– Você é de Nova York?

– Bom, eu nasci aqui, mas sou de lá. Estou só esperando pra voltar.

– O que te mantém em Caldwell?

– Tudo. Nada – Mels olhou ao redor. – De um jeito estranho, eu invejo a sua amnésia.

– Se eu fosse você, não invejaria.

Pois é, Matthias realmente não queria isso para ela, e não porque estava sendo um cavalheiro. De pé ao seu lado, ele até mataria para saber mais sobre Mels, sua família, onde ela crescera, tudo o que a trouxera para este momento de fragilidade.

– Mels...

Antes que ele pudesse perguntar, uma família se juntou a eles na espera pelo elevador, as filhas correndo de lá para cá, os pais parecendo viver presos em uma versão do Inferno que cheirava a chiclete e era povoada por diabinhos vestindo roupas de princesa que pediam sorvete a cada três minutos.

Ding!

Quando as portas do elevador de abriram, Matthias colocou as mãos nas costas de Mels e a conduziu para dentro. Ele não queria parar de tocá-la, mas baixou o braço e teve de aguentar o olhar vidrado das crianças em cima dele.

No saguão do andar térreo, a agitação do pórtico invadia a área da recepção, e havia uma fila de pessoas serpenteando por um labirinto de cordões de veludo.

– Isso é um pesadelo – Matthias murmurou secamente.

– Poderia ser pior. Nunca ouviu falar do Motel 6?2

– Bom argumento.

Quando finalmente chegou sua vez de serem atendidos na recepção, Matthias deu seu nome, mas não tinha certeza de como aquilo funcionaria. Normalmente, você precisa apresentar o cartão de crédito com o qual fez a reserva...

– Ah, sim, sr. Hault, o senhor já fez o check-in – a mulher disse, digitando com rapidez. – Só preciso da sua carteira de motorista.

Matthias olhou ao redor do saguão. Como diabos Heron conseguira chegar até ali e arranjar tudo? O trânsito estava pesado, mas não tão pesado na rota que ele e Mels fizeram. Podia ser, é claro, que o cara tivesse tirado um helicóptero do traseiro.

E quanto ao cartão de credito, será que Heron usara um próprio? O filho da puta supostamente estava morto, então era de se imaginar como a companhia poderia enviar a conta para o Cemitério Pine Grove. Por outro lado, números de cartão de crédito eram tão fáceis de arranjar como um livro em uma biblioteca, se você conhecesse as pessoas certas – e, considerando o olhar no rosto do colega de Heron, acesso ao mercado negro com certeza não seria difícil.

– Senhor? A carteira de motorista?

– Sim, desculpe.

Quando entregou a carteira, a recepcionista sorriu profissionalmente. Sua expressão era equivalente a um tapete de boas-vindas.

– Certo, aqui estão os cartões para o seu quarto. É só pegar o elevador até o sexto andar. O senhor vai ficar no quarto...

Não no 666, pensou ele, sem motivo aparente.

– ... 642. Gostaria de alguém pra ajudar com a bagagem?

– Não, pode deixar. Obrigado.

– Espero que goste da estadia.

Enquanto ele e Mels se dirigiam para os elevadores, Matthias observou todo o saguão, sem mover a cabeça. As pessoas ao redor não eram nada especiais... apenas gente normal carregando malas, ou falando no celular, ou discutindo com a esposa/marido/namorado. Ninguém estava prestando atenção nele, e é por isso que às vezes locais públicos podem ser o lugar mais seguro para você se esconder.

Mesmo assim, ele estava contente por ainda possuir a arma que pegara de Jim.

A segunda espera por um elevador foi maior do que a primeira, e quando finalmente chegou, Mels deu um passo para a frente junto de outro casal.

Matthias tocou seu braço e a fez esperar.

– Vamos pegar o próximo.

As portas se fecharam enquanto ela o observava.

– Claustrofobia?

– É. É isso.

Desta vez, ele deixou a mão em Mels por um pouco mais de tempo. De pé atrás dela, era possível observar o quão mais alto ele era, mesmo Mels não sendo nenhuma baixinha – e Matthias imaginou como seria apertar o corpo dela contra o seu.

Um pensamento estranho, por muitas razões. Mas que inegavelmente lhe trouxe uma imagem mental...

– Chegou outro – ela disse, quebrando o contato entre eles. – E estamos sozinhos desta vez.

Cara, quando se tratava de Mels Carmichael, sozinhos parecia realmente um termo muito bom.

A viagem até o quarto foi tranquila – com exceção da direção que seus pensamentos estavam tomando. E a outra boa notícia era que o quarto não ficava longe da saída de emergência. Perfeito. Lá dentro, o espaço era preenchido de maneira padrão, com uma cama, escrivaninha, armário e cadeira, mas o que mais chamou sua atenção foi o colchão king-size.

Mas ela não estava procurando por um caso com um estranho, e ele nem conseguiria dar conta do serviço, de qualquer maneira.

Quando Matthias se aproximou da janela e fechou a cortina, Mels acendeu a luz do banheiro e olhou ao redor.

– Você vai ter uma bela banheira.

Sem querer, ele observou-a de cima a baixo e concluiu que sim realmente gostava de suas curvas naquela calça apertada.

Merda. Ele a desejava – e muito. Queria ela nua e debaixo de seu corpo, com as pernas bem abertas enquanto a penetrava fortemente.

Limpando a garganta, ele disse, com a voz rouca:

– Posso te pagar um jantar? Eu sei que é cedo, mas estou com fome.

Estava mesmo era faminto por ela. Dane-se a comida.

Endireitando-se, ela o observou, e Matthias ficou aliviado por ainda estar usando os óculos dela. Nada de bom poderia sair do olhar que ele estava escondendo por trás das lentes escuras. “Desejo” não era a palavra certa, não naquela circunstância.

Ei, veja só, quem diria. Ele podia ser um assassino casual, mas ao menos tinha um pouco de decência.

– Sim – ela sorriu um pouco. – Claro. Eu gostaria de comer algo.

Enquanto Matthias olhava o cardápio que pegou sobre a escrivaninha, disse a si mesmo que estava apenas fazendo o que Jim Heron sugerira: mantendo-se junto de Mels, pois assim saberia que ela estava bem.

Ele podia não conhecer seu passado, mas de uma coisa tinha certeza: estava disposto a morrer para proteger aquela mulher inteligente e bondosa... e seu traseiro perfeito.


N.T.: Motel 6 é uma rede de hotéis de baixo custo e qualidade.


CAPÍTULO 17

Mels finalmente conseguiu terminar uma porção de batatas fritas.

Elas vieram junto com um hambúrguer perfeitamente ao ponto, uma fatia de picles bem generosa e uma Coca saída de um comercial, com o copo transpirando e tudo mais.

Sobre o console de mogno, a televisão do quarto estava ligada no canal WCLD, uma afiliada local da NBC, e o jornal das cinco horas estava começando.

– Tenho que dizer – ela murmurou, pegando a última batata e passando no ketchup – que essas batatas são bem melhores que as do Riverside.

Matthias, sentado na cama, ainda estava comendo seu sanduíche, mas ela podia perceber que ele olhava em sua direção. Mesmo com os óculos escuros.

Ele fazia muito isso: seus olhos pousavam nela como se gostasse da maneira como ela se movia, mesmo quando estava sentada – e, por alguma razão, aquilo o deixava ainda mais sexy... ao ponto de fazer Mels se perguntar como seria ter aquilo sem nenhuma barreira.

Quer dizer, os olhares.

Você sabe, sem o Ray-Ban...

Droga, ela estava se fazendo corar.

– Sabe, você pode tirar se quiser – ela disse suavemente. – Os óculos.

Ele congelou. E então voltou a mastigar. Depois de engolir, disse:

– Me sinto melhor com eles.

– Certo, é você quem manda.

Matthias não disse nada sobre sua busca por Jim Heron, ou sobre como descobriu o endereço no qual se encontraram. Ele apenas entrara no carro do Tony e a deixara dirigir até ali.

Mas é claro que Mels não questionaria essa mudança de postura.

– Não tem alguém em casa te esperando? – ele perguntou casualmente.

– Ah, na verdade não. Acho que não tenho muita vida pessoal.

– Sei como é isso... – ele parou. – Caramba, na verdade eu sei mesmo como é isso.

Ela esperou que ele continuasse. Em vez disso, Matthias apenas ficou lá sentado encarando seu prato de comida, que ainda estava na metade, como se aquilo fosse uma televisão.

– Me conta – ela disse.

Ele deu de ombros.

– Não sou casado. Não tenho filhos. Não tenho ninguém permanente. O que explica por que ninguém está me procurando... bem, pelo menos não no sentido familiar.

– Sinto muito. E quanto a seus pais?

Matthias estremeceu, depois pareceu se recompor.

– E então...? – ela insistiu.

– Não lembro nada sobre eles.

No silêncio que se seguiu, ela apanhou sua bandeja e colocou no corredor. Quando voltou para dentro, sabia que era hora ir.

Provavelmente, também era hora de esquecer aquela história.

Jim Heron estava morto – ao menos de acordo com o arquivo não-tão-distante do Correio de Caldwell, e também com aquela lápide do túmulo. Ela encontrara seu endereço por meio de uma das fontes que dera declarações para o jornal – mas, claro, ele não estava lá.

Uma dor de cabeça surgiu em suas têmporas, mas passou quando ela mudou seu pensamento para Matthias Hault. Ele estava seguro ali, e se recuperando bem. E, quanto à sua memória, ele era o único que podia chegar ao fundo da questão. Mels fizera o que podia para ajudar com o básico; mais do que isso... ela poderia dar dinheiro se ele a processasse pelo atropelamento, mas ele não parecia ter essa intenção.

Claro, havia algo de estranho sobre aquela casa que supostamente era “dele”, e outras coisas que não faziam sentido, como quem realmente estivera naquela garagem. Mas, se ela não iria publicar nada daquilo, os detalhes realmente não eram da sua conta.

Mels se aproximou e sentou ao pé da cama. Quando Matthias colocou a bandeja de lado e a encarou, aquele calor percorreu novamente seu corpo.

Definitivamente, ela estava atraída.

Principalmente ali naquele quarto, onde estavam a sós. Mas ela realmente não estava procurando esse tipo de complicação.

– É melhor eu ir – Mels disse, tentando ler seu rosto.

– Então vá – ele sussurrou, olhando-a olhos nos olhos através das lentes escuras.

Nenhum dos dois se mexeu, o corpo grande e malhado dele ficou tão imóvel quanto o dela.

Deus... Mels queria que ele a beijasse. O que era loucura...

– Você me faz... – Matthias respirou fundo.

– O quê?

Inclinando-se para frente, ele esticou a mão e acariciou seu rosto.

– Você me faz desejar que eu fosse diferente.

O toque fez o coração dela parar – e então acelerar.

– Acho que você é um homem muito melhor do que pensa.

– E é exatamente isso que me assusta.

– A ideia de que você é um homem bom?

– Não, a ideia de que você pensa assim.

Mels desviou o olhar brevemente e se perguntou o que diabos estava fazendo naquele quarto de hotel... desejando que os dois arrancassem a roupa e suas inibições. Caramba, eram ambos adultos, e ela estava realmente cansada de viver uma vida pela metade, de querer coisas que não tinha, de adiar seus sonhos em troca de nada.

Ela queria viver plenamente de novo. Do jeito que era antes de as coisas mudarem, antes de se mudar para Caldwell e sabotar... a si mesma.

Franzindo a testa, ela começou a imaginar há quanto tempo não sentia-se dessa maneira.

E então...

Não tinha certeza do que a fez agir – a voz dele? Os olhos, que ela não podia ver, mas podia sentir? Seu orgulho inveterado misturado com uma ponta de insegurança?

A garota das cavernas que havia dentro dela?

Qualquer que fosse a motivação, Mels colou os lábios contra os dele. De um jeito breve, recatado. Mas poderoso.

Quando ela se afastou, Matthias parecia surpreso.

– Mais uma coisa fora do seu controle, não é? – ela disse com a voz baixa.

– Você parece ter um talento para isso.

Bom, ela também surpreendera a si mesma. Mas acontece que simplesmente não conseguia pensar em uma razão para lutar contra o desejo que sentia por ele. A vida é curta... e, depois daqueles últimos dois anos, Mels tinha mais medo de não correr riscos do que de voar por um instante para depois cair em um desastre.

– Se importa se eu terminar o que você começou? – ele disse com um grunhido.

– Nem... um pouco.

Ouvindo a resposta que queria, Matthias deslizou a mão atrás do pescoço de Mels e a puxou para mais perto, possuindo-a, tomando o controle. E, no segundo antes das bocas se encontrarem, ela pensou que era incrível como os dois eram relativos estranhos e, no entanto, a essência dele era melhor do que qualquer contexto ou situação: ela se sentia segura com aquele homem misterioso, apesar de ele tentar convencê-la do contrário.

E, meu Deus, ela realmente o desejava.

E parecia que o sentimento era mútuo.

Matthias a beijou com força e a soltou; então voltou a beijá-la como se ainda não fosse suficiente. Enquanto travavam uma luta com as línguas, ele a segurava pela nuca, controlando o ritmo, ganhando e cedendo espaço. Com um ardor se concentrando onde há muito não sentia nada, Mels parecia decolar de maneira louca e selvagem – e pensou que aquilo era o que precisava. Exatamente aquilo, ali mesmo, com aquele homem.

Sexo naquele quarto, naquela cama. Com ele.

Abruptamente, Matthias se afastou, como se precisasse recuperar o fôlego.

– Por acaso você tem o hábito de beijar suas histórias? – ele perguntou com a voz rouca.

– Você não é uma história. Nada disso é oficial, lembra?

– Bem lembrado – os olhos dele percorreram o corpo de Mels. – Quero você nua.

Ela sorriu vagarosamente.

– Não é exatamente uma surpresa, considerando o jeito como me beijou.

Com um grunhido, ele avançou para cima dela novamente, deslocando-a pelo colchão, rolando sobre ela. Antes do “acidente”, ele provavelmente dominava fisicamente as mulheres – não de maneira violadora; não havia coerção ou o sentimento de estar presa por ele. A melhor descrição seria dizer que era uma dominação animal.

Principalmente quando sua perna se enfiou entre as dela, a coxa pressionando seu sexo.

Mels se arqueou contra o peso do peito dele e colocou os braços ao redor de seu corpo.

Com um movimento sutil, ele a segurou, e então parou totalmente. Quando se afastou, havia tensão em seu rosto – e não do tipo vou-agarrar-você-agora.

– O que foi? – ela sussurrou. – Qual é o problema?


Matthias se arrastou para o pé da cama. Seus pulmões estavam queimando e sua cabeça doía muito. Mas que droga de corpo! Lá estava ele com uma bela e saudável mulher que tinha todos os sinais de estar sexualmente atraída por ele, porém... o desejo existia, mas o corpo não ajudava.

Ele a queria. Mas não havia muito que pudesse fazer.

Pensando naquela enfermeira e na maneira como ela o havia tocado, parecia uma piada cruel que seu problema tivesse voltado justo agora: a distância entre ele e sua repórter era tal que nenhuma quantidade de beijos a resolveria. Nem carícias, toques ou mesmo nudez total. Mais uma vez, estavam em lados opostos de um túmulo – ela no mundo dos vivos, ele no cemitério.

Por alguma razão, aquilo o deixou ainda mais desesperado para possuí-la. E, com uma súbita clareza, ele lembrou que no passado tivera todas as mulheres que quis – e nunca sofrera por falta de voluntárias. Mas isso não significava que se importasse com elas.

No caso de Mels era diferente. Ela era diferente.

Mas Matthias nunca poderia tê-la totalmente, não com seu corpo naquele estado.

– Qual é o problema? – ela perguntou novamente.

Matthias não queria que ela soubesse. Mesmo que Mels fosse descobrir mais tarde, gostaria de preservar por um pouco mais de tempo a ilusão de que era um homem de verdade. Se é que iria vê-la novamente.

– Não acredito que estamos fazendo isto – ele se esquivou. Mas era verdade. Toda aquela história, desde acordar ao pé da sepultura de Jim Heron até o acidente com ela, não parecia estar certa. Era como se alguém estivesse manipulando tudo, como se a perda de memória tivesse um propósito.

– Nem eu – ela respondeu, olhando para sua boca como se quisesse mais.

Ela não parecia o tipo de mulher que gostava de encontros casuais. Não se vestia com roupas provocantes, não se insinuava em seus movimentos, não tentava seduzir a todo momento. E emanava uma vibração hesitante, mas positiva, como se fizesse algum tempo que as coisas não aconteciam com ela, e sentisse que estava na hora.

Diga para ela ir embora, pensou Matthias. Impotência à parte, havia muitas outras razões para não ficarem juntos naquela noite. Ou em qualquer noite.

Voltando a se aproximar, ele colocou as mãos ao redor de seu corpo e a puxou para perto – mas não perto demais. Os quadris não se encostaram.

Deus, ela cheirava muito bem.

As sensações estavam todas lá: o calor correndo em seu quadril, o coração batendo com urgência, os braços e pernas parecendo ainda mais fortes do que o normal. Mas seu pênis não participava desse conjunto.

Talvez fosse melhor assim, pois precisava dizer a ela que...

– Posso fazer algo por você? – ele soltou.

Certo, isso não era exatamente um “boa noite”.

– Você já fez.

– Tenho muita certeza de que posso fazer melhor.

– Bom, quem sou eu para impedir um especialista?

Quando ele se aproximou para beijá-la novamente, pensou em como ela ficaria com a blusa aberta e sem o sutiã, os seios prontos para receber seus lábios, a pele macia da barriga conduzindo-o para outros territórios.

Tudo aquilo era incrivelmente bom, e também parecia tão novo para ele – mas essa sensação não se devia ao fato de que nunca estivera com Mels antes. Ele sentia como se nunca tivesse se apaixonado de verdade por alguém. Por outro lado, considerando a falta de memória... realmente era como se ele nunca tivesse ficado com outra pessoa antes.

Do nada, uma imagem atingiu seus sentidos. Ele e uma mulher de pele escura e macia de pé contra uma parede. Ele a segurava pela garganta e ela o envolvia com as pernas, e Matthias a penetrava furiosamente...

Ele se afastou num sobressalto. De uma só vez, várias imagens inundaram sua mente, uma linha cronológica de todas as mulheres com quem já tinha transado – jovens, quando ele era jovem; mais velhas e variadas, quando já estava adulto; e então uma série de mulheres extremamente agressivas.

Ele viu a si mesmo com elas, quando seu corpo era forte e inteiro, suas emoções claras e organizadas, seu coração frio como gelo. Ele via as mulheres, nuas ou seminuas, armadas e desarmadas, tendo orgasmos com grandes movimentos exagerados.

– Do que está se lembrando? – Mels perguntou.

Ele abriu a boca para falar, mas a sucessão de nomes, lugares, rostos era um dilúvio do qual não conseguia se livrar, uma avalanche entupindo seus neurônios, deixando-o quase inconsciente. E, quando cedeu àquela força, sentiu seu corpo sendo conduzido de volta para os travesseiros, não mais no papel de dominador.

Levando as mãos à cabeça, ele praguejou.

– Vou chamar um médico...

Matthias esticou o braço e agarrou o pulso dela.

– Não, estou bem...

– Não, não está!

– Só me dê um minuto.

Ele respirou brevemente e decidiu parar de lutar contra aquela onda. Foi a decisão certa – em vez de se atropelar, as lembranças começaram a se revelar de modo mais ordenado. Ao menos... até chegar ao final. A última lembrança o mostravam junto com... algum tipo de monstro? Deve ter sido um pesadelo... mas, Deus, ela era horrível, e estava transando com ele como uma forma de tomar posse de seu corpo, em um calabouço no fundo de um poço escuro...

Pânico o atingiu como um relâmpago, fazendo Matthias se contorcer fortemente. Mas ele continuou segurando Mels pelo pulso, certificando-se de que ela não correria para o telefone.

– Por favor – ouviu-a dizer.

– Nada... de médico... já está passando...

Por fim, ele a soltou, tirou os óculos escuros e esfregou os olhos.

– Achei que lembraria das coisas devagar.

– Posso, por favor, chamar o atendimento médico? – ela pegou uma pasta e colocou em frente ao seu rosto. – Tá vendo? O hotel tem um médico de prontidão.

– Não, sério, estou bem. É que veio tudo de uma vez. A gente nunca pensa em quanta coisa fica guardada aqui em cima – ele apontou para a cabeça. – É muita informação.

– De que tipo de informação estamos falando?

Ele desviou o olhar.

– Bom, eu definitivamente não sou virgem. E não vamos nos aprofundar no assunto.

– Ah.

Houve um embaraçoso momento de silêncio. Então, Mels limpou a garganta.

– Sabe, acho melhor eu ir embora.

– Pois é.

Ela se levantou. Pegou o casaco. Vestiu-o.

– Antes de eu ir... – ela se aproximou da escrivaninha e escreveu algo no bloco de notas do hotel. – Aqui está o número do meu celular de novo...

O celular começou a tocar em seu bolso.

– Falando no diabo... – Matthias murmurou enquanto a observava terminar de escrever antes de atender a chamada.

– Alô – sua voz estava animada e profissional, e ele gostou de saber que ela podia se recuperar tão rápido.

Bom, na verdade isso era só mais uma coisa de que ele gostava naquela mulher.

Mels franziu a testa.

– Onde? Temos alguém ligado a ela? Como ela morreu? É mesmo? Certo, estou indo agora mesmo. Ainda estou com o carro do Tony – ela desligou o celular e pegou a bolsa. – Tenho que ir.

– Alguma coisa oficial?

– Meu chefe deve estar mudando de atitude. Ele me mandou para uma cena de crime.

– Ele não costuma reconhecer suas qualidades?

– Não aquelas que eu quero que reconheça – ela parou na porta. – Você tem certeza de que está bem?

– Você sempre foi uma santa assim? – ele murmurou.

– Não até te conhecer.

Quando ela já estava saindo pela porta, ele a chamou:

– Mels.

Ela virou a cabeça e a luz do corredor iluminou seu rosto. Quando seus olhos se encontraram, Matthias pensou que seria capaz de trocar todas aquelas mulheres que apareceram em sua memória por uma noite com Mels.

Não vou sair desta vivo, ele pensou.

Então, se algum dia tivesse mais uma chance de beijá-la, não iria parar. E quem sabe? Talvez tivesse mais sorte da segunda vez.

Contanto que não tivesse mais uma daquelas tempestades em sua memória.

– Use o cinto de segurança – ele ordenou, com a voz baixa.

– Chame um maldito médico – ela retrucou, com um pequeno sorriso.

Quando a porta se fechou, ele praguejou consigo mesmo. E então pensou em como se sentira quando a beijou.

Correndo o olhar por seu quadril, começou a pensar que gostaria de se tornar um homem saudável outra vez.


CAPÍTULO 18

O bar do saguão do Marriott fora nomeado em homenagem ao proprietário original do hotel, um tal de Não-Sei-Lá-Quem Sasseman. Pelo menos foi isso que a garçonete contou a Adrian com uma voz provocante enquanto anotava o pedido de cervejas dele e de Jim. Ela também fingiu deixar cair sua caneta e abaixou lentamente para pegar, depois foi embora rebolando como se sua pélvis tivesse recebido uma troca de óleo e ficado lubrificada demais.

Sua atitude até fazia sentido, já que os outros clientes dali eram homens de negócios com olhares esguios que provavelmente já estavam no time do Viagra, e ela era uma bela jovem com vinte e poucos anos.

Nos tempos de Eddie, Adrian teria ido atrás dela em um piscar de olhos.

Mas agora aquilo simplesmente não despertava sua atenção.

O banco no qual estavam sentados era revestido de couro sintético e fazia um barulho peculiar toda vez que um deles se ajeitava. Mas o lugar era perfeito para seus propósitos: ficava de frente para a grande porta que dava no saguão. Ninguém podia entrar ou sair sem que eles soubessem.

Se bem que, com o radar de Jim, eles conseguiriam rastrear Matthias e aquela mulher mesmo se estivessem parados no estacionamento de trás: o anjo certificara-se de tocar os dois, e mesmo Ad podia sentir a magia de rastreamento emanando pelos andares do hotel. O casal estava seis andares acima, muito próximos um do outro.

O que fazia ele se perguntar o que estavam fazendo.

Provavelmente jogando cartas.

É claro.

Enquanto os minutos passavam, transformando-se em uma hora inteira, as conversas dos outros clientes eram a única coisa que preenchia o silêncio. As cervejas transformaram-se em jantares. O tempo... parecia não passar.

Cara, ser imortal podia ser mesmo um saco quando a pessoa não se importava com nada. Tudo o que se tem é o tempo. Que ótimo, longas horas que perpetuamente o mastigavam com seus dentes, comendo-o vivo, mas mantendo-o inalterado.

Bom, com que ótimo humor ele estava naquela noite!

E esse humor não mudou nada enquanto observava as próprias mãos. A mancha negra que vira quando estava no chuveiro não reaparecera, mas ele não conseguia parar de checar a cada segundo para ver se ela tinha voltado. Até agora tudo bem, com exceção do sentimento de morte que o perseguia naquela noite.

Sentia literalmente como se seu corpo tivesse sido esvaziado por dentro, e não restasse nada além de um espaço dentro de seu peito...

– Ela está descendo – disse Jim, dando um último gole na cerveja quente que estava guardando. – A mulher saiu do quarto.

Ad não se importou em terminar seu copo. Na verdade, não tinha gostado nem de começá-lo.

Mas era melhor que Coors Light, de qualquer maneira.

– Você fica com ela – disse Jim enquanto entravam no saguão. – Não quero que ela fique sozinha.

– Mas a alma não é ele?

– Acho que sim. E se for, então ela é a chave para esta rodada.

– Tem certeza?

– Percebi o jeito como ele olha pra ela. Isso é tudo o que preciso saber – Jim acenou na direção da repórter que estava saindo do elevador. – Fique na cola dela. Vou esperar Devina aparecer por aqui.

Ad não estava interessado em ficar seguindo a namorada de Matthias. Ele queria esperar pelo demônio. Queria ficar cara a cara e rezar para que ela fizesse outra piada sobre Eddie – só para poder mostrar que não se abalava mais com qualquer coisa que ela dissesse. E depois, queria olhar em seus olhos enquanto a frustração explodia dentro dela até forçá-la a atacá-lo fisicamente.

E nesse momento ele poderia acabar com tudo. Lutar até morrer. Ter o fim de um verdadeiro guerreiro.

A vadia com certeza venceria, mas como seria bom arrancar umas camadas de carne dela. E depois, sentiria o alívio por tudo estar acabado.

– Adrian? Alô? Você está aí?

– Quero ficar aqui.

– Preciso de você junto daquela mulher. Ela precisa ficar viva tempo suficiente para influenciar Matthias. Se Devina conseguir farejar essa conexão entre eles, a mulher vai virar um defunto flutuando no rio Hudson. Ou pior...

Jim o encarou, deixando sua lógica subentendida – o anjo mais poderoso deveria enfrentar o demônio, e naquele momento não era Ad. E não por ele não possuir aqueles poderes legais de Jim.

– Você quer vencer – Jim disse com a voz calma –, ou quer nos ferrar de vez?

Ad praguejou, virou-se e concentrou-se na essência da mulher. Começou a andar normalmente, pois seria complicado demais desaparecer em meio àquela plateia.

Dirigindo-se para o elevador que levava ao estacionamento, a namorada de Matthias andava como se estivesse em uma missão, e Ad invejou aquele senso de propósito. Mas não invejou seu meio de locomoção. A lata velha tinha um motor e um teto – fora isso, mal se podia chamar aquilo de carro.

Só para deixar as coisas mais engraçadas, ele se transportou para o banco de trás – e apareceu em meio a um monte de jornais e revistas velhas, suficientes para encher a Biblioteca do Congresso. A boa notícia foi que ela escolheu justo aquele momento para ligar o motor – mas ainda ouviu o barulho de traseiro invisível amassando aquele monte de papel. Ela virou a cabeça e encarou o vazio onde ele estava. Só para ser legal, Ad deu um tchauzinho, mesmo que ela pensasse estar sozinha no carro.

– Estou perdendo a cabeça – ela murmurou enquanto engatava a primeira marcha e acelerava o carro.

Era uma boa motorista. Rápida nos pedais, eficiente no trânsito.

Acabaram na parte oeste do centro da cidade, em um motel que era apenas um pouco melhor do que um canil. Depois de saírem do carro – ele ainda invisível, ela ainda obstinada –, eles se juntaram a uma convenção de policiais e repórteres que se concentrava em um quarto à esquerda.

Adrian franziu a testa e abruptamente passou a se preocupar com aquela cena. Quando a mulher que estava protegendo se aproximou dos policiais que guardavam a fita amarela de isolamento, ele passou pela fraca proteção e se infiltrou na aglomeração de pessoas.

Que diabos?, pensou consigo mesmo.

Devina estivera ali; seu fedor residual pairava no ar como se um caminhão de lixo tivesse despejado um carregamento por toda parte.

Adrian se espremeu para dentro e precisou pressionar o nariz para não engasgar com o cheiro ruim que não afetava os humanos.

Olá, garota morta.

Do outro lado de quatro ou cinco policiais, um corpo estava visível através da porta aberta do banheiro: pernas brancas, tatuagem nas coxas, roupas que estavam amarrotadas como se ela tivesse resistido a um ataque. A garganta fora cortada e o sangue respingara na blusa cheia de lantejoulas e nos azulejos onde ela estava deitada.

Era loira, graças à L’Oréal: os restos do kit de tintura de cabelo estavam espalhados pela pia, e luvas de plástico manchadas, no lixo. E o cabelo fora alisado – graças ao secador Conair e a uma escova que tinha fios pretos grudados no meio e fios mais claros nas laterais.

– Maldita Devina – murmurou Ad.

– A fotógrafa já chegou? – gritou um homem de aparência cansada.

Os policiais olharam uns para os outros, como se não quisessem dar a má notícia.

– Ainda não, detetive De la Cruz – disse alguém.

– Aquela mulher me deixa louco – o cara falou, pegando o celular e andando para o outro lado.

Quando os policiais se aproximaram do detetive, como se quisessem assistir à fotógrafa levar uma bronca, Adrian aproveitou o espaço livre no banheiro e ajoelhou-se.

Rezando para não encontrar nada, levantou um pedaço da blusa ensopada.

– Ah, mas que droga...

Por baixo da blusa, a pele clara fora marcada com símbolos que não estavam endereçados àquela mulher, nem aos homens que a encontraram ou à família que lamentaria sua morte.

Era uma mensagem de Devina.

E Ad nunca, nunca permitiria que Jim visse aquilo.

Ad olhou o aglomerado de policiais ao redor do detetive, certificando-se novamente de que o telefonema estava lhe proporcionando um pouco de privacidade. Então passou a palma da mão várias vezes sobre a carne que fora marcada.

Felizmente, ainda restava um pouco vitalidade nas células da pele. Mas a remoção foi vagarosa.

– ... venha aqui agora – gritou o detetive – ou eu mesmo vou tirar as fotos! Você tem quinze minutos para chegar...

Ad franziu a testa, concentrando-se, esforçando-se o máximo que podia. Os símbolos foram esculpidos fundo na pele e pareciam irregulares, como se tivessem sido desenhados com uma faca dentada... ou, mais provável, com uma garra.

– Vamos lá... vamos lá... – ele olhou para trás. A reunião estava terminada, e o detetive estava voltando.

Retirou a mão e levantou-se rapidamente – então lembrou que ainda estava invisível.

– Quem mexeu no corpo? – exclamou o detetive. – Quem mexeu no maldito corpo?

Merda. A camisa ainda estava levantada um pouco acima dos seios. E não era assim que estava antes. E a pele estava avermelhada de um jeito não natural, considerando-se não apenas a etnia da vítima, mas também o seu estado de decomposição. Ainda assim, Ad atingira seu objetivo e isso era mais importante do que qualquer confusão que os humanos teriam para entender o que acontecera.

Que diabos Devina estava aprontando agora?

– Aquela vadia! – Adrian rosnou enquanto caminhava para fora. – Ela vai pagar por isso.

Jim já estava cansado de vigiar o saguão, mas ficou por lá mesmo com o cair da noite. Matthias ainda estava em seu quarto e isso significava que tudo o que Jim podia fazer era esperar.

Assim era a vida de um agente: grandes períodos de inatividade separados por grandes arroubos de uma dança que decidia entre a vida e a morte.

Droga, aquilo era igualzinho aos bons e velhos tempos – que não tiveram nada de “bons” e naquele momento nem pareciam tão velhos, pois a antiga identidade de Matthias não era a única coisa em que Jim estava pensando. Desde que seu novo emprego como anjo tomara conta de sua vida, era como se tudo o que acontecera antes tivesse sido apagado – mas nesta rodada isso não acontecera. Jim podia ter deixado sua outra vida de lado, mas isso não significava que ele não tinha muita história...

Olhando para o teto circular, ele franziu a testa. Matthias estava se movendo.

Um minuto e meio depois, as portas do elevador se abriram e o homem surgiu no saguão, apoiando-se em sua bengala, usando óculos escuros mesmo à noite. As pessoas ao redor notaram sua presença – mas sempre fora assim, como se o poder de Matthias criasse um farol que sinalizava até para os mais desatentos.

Tornando-se visível, Jim entrou no caminho do cara.

– Marcou algum encontro para tarde da noite?

O Ray-Ban virou em sua direção, mas a reação parou por aí.

– Você virou minha babá?

– Pois é, e estou sendo mal pago – Jim acenou para a porta giratória da entrada principal. – Está indo a algum lugar?

– Não, só quero tomar um pouco de ar. Sinto que... – Matthias passou a mão no cabelo. – Estou preso. Não aguento mais olhar para aquelas paredes... O que foi? Por que está me olhando desse jeito?

Antes que Jim pudesse pensar em uma mentira, disse:

– Você parece muito mais humano agora.

– Que merda isso quer dizer?

Jim deu de ombros.

– Não importa. Posso ir junto?

– Eu tenho escolha?

– Você pode tentar sair correndo.

– Não é legal tirar sarro de um inválido.

– Inválido? Onde?

Matthias soltou uma risada.

– Certo. Faça o que quiser.

Lá fora, a noite estava mais quente do que o normal para essa época do ano e um grosso nevoeiro deixava o ar pesado, com sua umidade pairando entre nuvens sobre o asfalto, como se não conseguisse decidir se despejava a água ou não.

Jim tirou seu maço de cigarros do bolso, acendeu um e exalou um fio de fumaça. Com o nevoeiro, os Marlboros e o ressoar de seus passos na calçada, aquela cena podia perfeitamente fazer parte de um film noir... principalmente quando perceberam que havia um grupo de homens seguindo seus passos – ou marchando, como parecia o caso.

Mas. Que. Diabos?

Todos os seis cretinos vestiam roupas de couro, o que poderia indicar que eram góticos... mas a maneira como andavam atrás de seu líder tinha um ar de militar profissional.

Quando o grupo passou por eles, Matthias e Jim se puseram de lado, e o líder lhes lançou um olhar.

Realmente era um filho da puta mal encarado, com os olhos cheios de agressividade.

Hum... em sua antiga vida, Jim poderia até considerá-los candidatos para recrutamento. Pareciam capazes de matar qualquer coisa ou qualquer pessoa em seu caminho, principalmente o cara da frente.

Mas Jim já não era o mesmo. E tinha esperança de que Matthias também não fosse.

– Lembrei de uma coisa – disse seu antigo chefe, quando ficaram novamente sozinhos na calçada.

– Lembrou?

– Apenas coisas pessoais. Nada em que eu estivesse interessado.

Quando o silêncio se tornou tão pronunciado quanto o nevoeiro, Jim deu outro trago no cigarro e falou, enquanto exalava a fumaça:

– Está esperando que eu preencha o silêncio?

– Você é quem quis vir junto. Podia pelo menos fazer alguma coisa útil.

– E eu pensando que estava aqui só pra deixar a paisagem mais bonita.

– Não pra mim, cara – quando Jim não respondeu, Matthias virou o olhar em sua direção. – Então, estive pensando sobre você.

– Não de um jeito romântico, espero.

– Não, eu costumava gostar de mulheres. Gostar muito.

– Costumava?

Matthias parou e o encarou.

– O que quero saber é...

Da outra ponta do quarteirão, uma figura surgiu na calçada com jeito de quem está acostumado a fazer emboscadas, e a arma que disparou na direção deles quase não fez barulho. Tudo o que Jim viu foi a breve explosão quando a bala saiu pelo cano do silenciador.

Praguejando, ele saltou sobre Matthias e o empurrou para um beco. Sua força de seus cem quilos levantou o homem no ar e os dois voaram juntos até atingirem o chão como se estivessem em câmera lenta. No meio da queda, e com perfeita sincronização, ambos sacaram suas armas, miraram no atirador e puxaram o gatilho – e então Jim girou o corpo para cair no pavimento por baixo de Matthias servindo como colchão para o outro.

Não havia tempo a perder, e ele não precisava dizer isso a seu ex-chefe – claramente, sua preferência por mulheres não era a única coisa que Matthias lembrava. Em um piscar de olhos ele já estava de pé e pronto para se proteger atrás de um carro que estava a uns três metros de distância.

Mais tiros foram disparados na direção deles, ricocheteando no pavimento, na porta e no pneu do carro. O atirador os seguiu e se manteve nas sombras enquanto se aproximava.

Esse tipo de movimentação esquiva também era um indicativo. O agressor chegou sem fazer barulho, e não só porque usava uma arma com silenciador igual à de Jim: não havia som dos passos nem respiração pesada; aquela pessoa era um assassino treinado, acostumado com aquele tipo de situação.

Um agente das Operações Extraoficiais, pensou Jim. Tinha que ser.

Praguejando novamente, olhou ao redor à procura de opções. O carro não era bom o suficiente para dar cobertura, pois tinha um tanque de gasolina – Jim sabia o quanto poderia aguentar, mas não sabia bem como Matthias se encaixava nessa coisa de voltar dos mortos, e uma explosão de um carro não seria a melhor maneira de testar.

Agarrando um dos braços de Matthias, ele ajudou o cara a correr para trás do carro – que, por pura sorte, estava estacionado em frente à entrada de serviço do hotel, com duas portas de metal no meio de um muro de tijolos. Jim foi direto para a maçaneta e tentou girar.

Obviamente estava trancada.

Mas que se dane. Ele sabia o que tinha de fazer.

Lançando uma rajada de energia no metal, ele explodiu o mecanismo da tranca e, usando o ombro, empurrou a porta. Quando ela cedeu com um rangido, Matthias congelou, como que condicionado pelo medo.

Ele arrastou o homem para dentro e voltou a fechar as portas. Ajudando-o a ficar de pé, lançou outra rajada de energia, desta vez mais longa e forte, e soldou rapidamente a porta, para que ganhassem um pouco de tempo para a fuga.

A boa notícia era que funcionou – e seu ex-chefe estava ocupado demais checando a munição para notar o truque mágico.

Com a bengala em uma das mãos e a arma na outra, Matthias recobrou a consciência.

– Por aqui – gritou, como se estivesse no controle. – Tem que ter uma saída.

Jim não contestou a liderança e voltou a apoiar o cara. Enquanto percorriam o caminho, manteve um olho na retaguarda.

Não era preciso ser um gênio para saber quem era o alvo. Matthias era o antigo chefe das Operações e havia “morrido”. O procedimento padrão era confirmar visualmente a morte, mas ninguém pudera fazer isso, já que Isaac Rothe se livrara dos restos mortais.

De algum jeito, eles descobriram que Matthias estava bem vivo e perambulando por Caldwell.

Talvez Devina tivesse um “contato” na organização.

– Você trancou a porta atrás de nós? – Matthias grunhiu.

– Sim – e provavelmente o assassino teria dificuldade em...

A explosão foi rápida e precisa, pouco mais do que um lampejo de luz. E então a porta rangeu mais uma vez e o agente surgiu no corredor.

À frente, Jim não encontrou nenhuma porta. Apenas o longo corredor que se estendia até onde podia enxergar.

Como se tivessem o mesmo cérebro, Matthias e ele se viraram e apertaram o gatilho, disparando tudo que tinham. Tiros, deles e do agente, ricochetearam por toda parte – e nem é preciso dizer que Jim se posicionou na frente de Matthias, usando o próprio corpo como escudo.

Alguns tiros o acertaram e a dor foi desagradável, mas nada que pudesse matá-lo ou desviar sua atenção. E então, a munição da dupla acabou.

O mesmo aconteceu com o agente.

Houve uma breve calmaria, que claramente estava sendo usada pelo agente para recarregar, e Jim não tinha escolha a não ser correr novamente. Feitiços de proteção eram ótimos contra os lacaios de Devina, mas não eram muito eficazes contra tiros reais. Então, usando o corpo como escudo, escolheu um lado do corredor e correu como um louco. E enquanto passavam por pilhas de cadeiras do restaurante, Matthias ajudou como pôde – mas, com sua deficiência nas pernas, era melhor que ficasse parado e se deixasse carregar pelo chão.

Afinal, não tinham tempo para discutir se aquilo feria a dignidade de Matthias ou não.

Percorreram três metros e então Jim percebeu que não havia mais tiros.

Nenhum profissional demoraria tanto para recarregar. O que diabos estava se passando?

Naquele instante, sentiu a presença de Devina, tão perceptível quanto uma sombra passando por sua própria tumba.

Que merda fantástica.


CAPÍTULO 19

– Vamos lá, Monty, você precisa me dar alguma coisa.

Diferente dos outros repórteres na cena do crime, Mels não ficou no meio da confusão em frente à fita amarela que isolava a porta entreaberta do quarto. Ela estava do outro lado, em meio ao nevoeiro que surgiu de repente junto com seu velho amigo Monty, o Boca. Monty era um bom policial, mas o que o tornava muito útil era seu ego. Ele adorava contar detalhes dos crimes só para mostrar que podia, e isso era muito conveniente.

Mas aquela noite era diferente, pois a história era sua – dessa vez Mels não estava juntando informações para outra pessoa.

Ela se aproximou.

– Eu sei que você sabe o que tá acontecendo.

Monty ajeitou o cinto e passou a mão no cabelo cheio de gel. Aquela figura parecia saída de outra época. Se raspasse a cabeça e tivesse um pirulito na mão, ficaria a cara do Kojak.

– Pois é, fui um dos primeiros a chegar. Você sabe, na cena do crime.

O problema com Monty era que ele fazia você se esforçar pelas informações.

– Quando você foi chamado?

– Duas horas atrás. O gerente ligou para a emergência e eu era o policial mais próximo do local. O cara que alugou o quarto pagou por apenas um período de uma a cinco horas, mas já tinham se passado nove horas e ninguém tinha feito o check-out na recepção. Eu bati na porta. Ninguém respondeu. O gerente usou sua chave e... bom, lá estava.

– O que você acha que aconteceu? – era importante usar o pronome você.

– Era sabido que ela era uma prostituta, então há três possibilidades.

Depois de uma pausa, ela completou o raciocínio, como já era o costume entre eles.

– Um cafetão, um desconhecido ou um namorado ciumento.

– Nada mal, nada mal – ele ajeitou novamente o cinto. – A porta não foi arrombada. Claramente houve resistência, já que as roupas dela estavam amarrotadas. Mas nem tudo parecia ser um caso do beco azul.

“Beco azul” era uma referência a um corredor pelo qual, por gerações, os policiais levavam suspeitos para dar entrada na delegacia. Com o tempo, o termo se tornou um código para casos criminosos sem nada de anormal ou de inesperado.

– E a surpresa foi...?

Monty aproximou o rosto, como se estivesse prestes a contar um segredo.

– Ela tinha acabado de pintar o cabelo. Por alguma razão, isso fez parte do programa. Deixou o cabelo loiro e liso. E então ele a matou.

– Como sabe que era um “ele”?

Monty lançou um olhar descrente.

– E, não, não posso dar o nome dela. Ainda não foi divulgado porque estamos procurando a família. Mas eu sei quem ela era, e ela tem sorte de ter sobrevivido os últimos dois anos. Sua ficha é longa e tem muita violência... e ela como agressora.

– Certo, bom, você me liga se puder contar mais alguma coisa? Eu não divulgo minhas fontes, você sabe disso.

– Sim, nisso você é boa, mas, sem ofensa, você não cobre muito esse tipo de crime. Escuta, você não pode me colocar em contato com seu amigo Tony? Geralmente é ele quem faz esse tipo de show.

Naquele momento, ela perdeu um pouco do respeito por Monty, e não por ele desdenhar da falta de credenciais dela com o Correio de Caldwell. Pelo amor de Deus, ele não era nenhum astro do rock, aquilo não era nenhum show e, caramba, será que dava para parar de mexer naquele coldre? Aquilo era uma cena de crime, e a filha, irmã ou namorada de alguém estava morta ali no banheiro.

Ele podia pelo menos ficar um pouco constrangido e se sentir culpado por vazar aquelas informações. Assim como ela estava.

– Dick me passou essa pauta – ela disse.

– É mesmo? Ei, parece que você está evoluindo. E, sim, eu te ligo, desde que não cite meu nome.

– Eu prometo.

– Nos falamos mais tarde – ele acenou para o lado, dispensando-a. – E atenda o telefone quando eu ligar, tenho um pressentimento sobre este caso.

Ela mostrou o celular.

– Eu sempre atendo.

Quando Mels se virou, ela passou a mão na nuca e sentiu os fios de cabelo arrepiados. Olhando ao redor, viu apenas pessoas trabalhando. Policiais. Detetives. Uma fotógrafa passando apressada pela fita. Havia também duas equipes de jornalismo no estacionamento, uma delas gravando e lançando luzes fortes sobre uma jornalista de cabelos morenos.

Mels virou-se completamente. Esfregou a nuca mais um pouco.

Cara, esse nevoeiro estava estranho.

Checando o relógio, pegou o celular e fez uma chamada. Quando alguém atendeu, colocou as mãos em forma de concha ao redor da boca.

– Mãe? Oi, sou eu. Escuta, eu sei que disse que ia chegar cedo, mas ainda estou trabalhando. O quê? Desculpe, não estou escutando... Certo, agora melhorou. Sim, eu... ah, não, não se preocupe. Estou com metade da força policial aqui... – provavelmente não foi a melhor coisa para dizer. – Não, estou bem, mãe. Sim, é um homicídio, mas é um caso grande, e estou contente porque o Dick me passou. Sim, eu prometo. Certo... sim, claro. Escuta, preciso ir... e eu bato na porta assim que chegar em casa.

Ela desligou, achando que não chegaria tão cedo em casa – e estava preparada para esperar o tempo que fosse necessário. O corpo precisaria ser fotografado, a equipe forense viria fazer exames e só então a vítima poderia ser removida.

Mels ficaria até que a polícia terminasse seu trabalho, os jornalistas da televisão fossem embora e qualquer outro repórter tivesse desistido.

Andando até o carro de Tony, enviou uma mensagem de texto ao colega, dizendo que ainda não dera perda total em seu veículo – e que o levaria para almoçar amanhã e o pegaria em casa às oito e meia em seu caminho para o trabalho.

Então ela dobrou o casaco sobre si mesma e sentou no capô do carro.

Imediatamente, Mels se levantou, tensa e olhou para trás. Mas não havia nada além de postes de luz no lado mais distante do longo estacionamento do motel. Ninguém espreitando atrás dela, ninguém mesmo.

Então por que tinha a sensação de estar sendo vigiada?

Massageando a cabeça, ela começou a imaginar se a paranoia de Matthias era contagiosa. Ou talvez aquilo que acontecera entre os dois na cama estivesse embaralhando seu cérebro.

Não importa o que digam sobre amnésia, aquele homem sabia muito bem como usar os lábios...

Por algum motivo, ela não podia acreditar que aquilo tinha acontecido. Mels nunca gostara de encontros casuais, mesmo nos tempos de faculdade – mas, se Matthias não tivesse parado, ela deixaria que as coisas chegassem à sua conclusão natural cheia de nudez.

Que surpresa. Principalmente porque sabia que seria capaz de fazer aquilo de novo.

Se é que teria uma nova chance.


Congelado no corredor do porão do Marriott, com Jim Heron o cobrindo como um cobertor, Matthias sentia-se como um boxeador. Mas não como Muhammad Ali ou George Foreman. Sentia como se fosse um sparring, aqueles caras que servem como parceiros de treino e que os verdadeiros lutadores esmurravam antes de encarar um oponente à altura: sua arma estava descarregada, seu peito arfava, a cabeça girava, estava exausto por toda aquela correria. Pelo menos parecia que não fora atingido pelos tiros.

Mas alguém fora. O cheiro de sangue fresco os perseguia e o som de alguma coisa pingando sugeria um vazamento – e provavelmente não era no encanamento do hotel.

– Fique aqui – ordenou Jim.

Como se fosse uma garotinha?

– Vai se foder.

Juntos, eles marcharam em direção ao atirador incapacitado, com Jim na frente porque ele conseguia andar um pouco mais rápido.

Pouco depois da porta que eles arrombaram, um homem vestindo roupas apertadas pretas estava de costas no chão, com os olhos fixos e dilatados, encarando o vazio. Sua garganta fora rasgada logo abaixo da linha do queixo – as veias e artérias não foram apenas cortadas, mas totalmente abertas, em um corte limpo.

– Que sujeira – murmurou Matthias, que olhava ao redor pensando em como limpar tudo aquilo... e se perguntando quem diabos os salvara.

Enquanto considerava os prós e contras de várias técnicas de descarte de cadáveres, estava ciente de que a morte, o corpo, a violência de ter sido perseguido a tiros, essas coisas pouco o afetaram emocionalmente: aquilo era o trabalho de sempre, nada além de ações práticas que visavam evitar o envolvimento da polícia.

Era assim que ele vivia, pensou. Aquela era a sua praia.

Apoiando-se na bengala, abaixou-se e um de seus joelhos estalou como um galho de árvore.

– Você tem um carro?

– Não aqui, agora, mas posso cuidar disso. Faça um favor e...

Matthias começou a revistar o cadáver, apalpando-o, retirando a munição extra, uma faca e outra arma.

– Certo, certo – Jim disse com a voz seca. – Vou dar uma olhada lá fora pra ver se não tem ninguém na rua.

– Então você também não sabe quem é o nosso bom samaritano?

– Nem ideia.

A porta de metal rangeu novamente quando Jim a abriu e, por uma fração de segundo, Matthias ficou paralisado de medo, o terror congelou seu corpo do coração até os pés. Seus olhos percorreram todas as direções buscando inimigos nas sombras, esperando que saltassem sobre ele a qualquer momento.

Não havia nada.

Resmungando consigo mesmo, voltou a se concentrar e abriu a camisa do homem. O colete à prova de balas tinha pelo menos uma marca de tiro – então ele e Jim não haviam desperdiçado toda a munição. Nada de celular. E, considerando que Jim acabara de sair mas não fora de encontro a uma saraivada de balas, não havia ninguém para dar cobertura àquele soldado.

Sentando-se, Matthias avaliou a porta de metal. No centro, ao redor do mecanismo da tranca, havia uma mancha queimada onde o agressor usara algum tipo de bomba portátil.

De repente, Matthias foi atingido por uma lembrança, na qual enxergou as próprias mãos segurando um detonador de uma bomba improvisada. Ele a preparara para atingir a si próprio: era uma combinação de circuitos eletrônicos e explosivos que serviriam como rota de fuga da sua vida...

Jim estava errado. Ele não odiava a si mesmo ou o que se tornara. Estava apenas exausto de ser quem era.

E ele era o...

A dor de cabeça surgiu com força, como se o cérebro tivesse uma cãibra: a dor limpou seus pensamentos e as memórias foram bloqueadas novamente pela agonia.

Merda, ele queria acesso ao que estava escondido, mas não podia arriscar ficar indefeso debruçado sobre um cadáver.

Baixando os olhos até o rosto do morto, se forçou a parar de pensar na amnésia e notou a mudança na cor da pele do cara: a vermelhidão causada pelo exercício era substituída por um cinza opaco. Acompanhando o processo da morte e concentrando-se apenas nisso, ele conseguiu voltar à realidade.

– Eu conheço você? – perguntou ao cadáver.

Parte de si estava convencida de que sim. O rosto pertencia a um jovem de pele clara, magro por falta de gordura no corpo, pálido por falta de sol, como se estivesse acostumado a trabalhar à noite. Por outro lado, quantos milhões de caucasianos na casa dos vinte anos existiam por aí?

Não, pensou, ele conhecia aquele garoto de algum lugar.

Na verdade, sentia que escolhera aquele filho da puta.

Será que ele participava de algum recrutamento? Para os militares?

Jim voltou ao corredor, fechou a porta e se recostou nela, cruzando os braços em cima do peito e parecendo querer socar uma parede.

– Estamos sozinhos? – perguntou Matthias.

– Eu diria que sim.

Abruptamente, notou os furos na camisa de Jim.

– Ainda bem que você também está usando colete à prova de balas.

– O quê?

Matthias franziu a testa.

– Você foi atingido...

De uma só vez, seu cérebro cuspiu outro pedaço do passado: viu os dois em uma sala forrada de aço inoxidável, um corpo gelado deitado em uma maca entre eles, uma arma levantada, um gatilho sendo acionado... na direção do maldito Heron. E foi Matthias quem atirou.

– Eu atirei em você em um necrotério – Matthias soltou. – Eu atirei em você... bem no meio do peito.


CAPÍTULO 20

Que sincronia perfeita, pensou Jim enquanto Matthias o encarava como se tivesse brotado um chifre no meio de sua testa.

Não era uma boa hora para a memória dele voltar a se conectar: claramente, alguém das Operações estava seguindo o rastro de Matthias. Essa era a única explicação lógica para o que acontecera – embora não fosse isso que estava embaralhando seu cérebro.

Evidentemente, Devina salvara seus traseiros.

Ela surgiu, esfaqueou e sumiu. E, como o demônio nunca fazia nada que não fosse para o próprio benefício, Jim ficou imaginando qual seria o motivo daquilo tudo. Talvez nenhum – afinal, se queria influenciar Matthias em sua nova encruzilhada, Devina precisava que ele continuasse vivo.

E Jim obviamente não fizera um trabalho muito bom protegendo o cara.

– Eu atirei em você... – Matthias repetiu.

Jim lançou um olhar do tipo supere-logo-isso.

– E daí? Você quer uma medalha? Vou comprar uma pra você na internet. Mas antes que fique aí todo existencialista, saiba que é pra isso que existe colete à prova de balas, certo?

– Você não estava usando um – Matthias retirou os óculos escuros e estreitou o olhar. – E não está usando agora.

– Certo, estamos num local público com um cadáver cheio de balas que saíram das nossas armas. Você realmente acha que é hora pra ficar de conversa?

– Eu conheço esse cara – Matthias apontou para o morto. – Mas não sei dizer de onde.

– Olha, vou levar o lixo para fora. Se não se importa, dá pra voltar para a droga do seu hotel agora?

– Fale comigo. Ou não vou a lugar nenhum.

Por uma fração de segundo, Jim lembrou-se claramente da razão de sempre chamar o cara de Matthias, o Cretino.

– Que seja. Você era o chefe dele.

– Que tipo de chefe eu era?

Eles não tinham tempo para aquilo.

– Bom, posso dizer que não era do tipo que eu gostava.

– Eu também era seu chefe... não é mesmo? – quando Jim não respondeu, o outro apertou os dentes. – Por que diabos você tá me deixando no escuro? De um jeito ou de outro vou acabar juntando todos os pedaços, e tudo o que você tá fazendo é me deixar cada vez mais nervoso.

Merda. Havia uma possibilidade muito real de o cara não se mover, e Devina poderia voltar – ou, quase tão ruim, a polícia ou os seguranças do hotel poderiam aparecer.

– Certo – Jim disse, frustrado. – Acontece que eu tenho medo que, se você souber, vai acabar no Inferno. Satisfeito?

Matthias recuou.

– Você não parece um religioso fanático.

– Porque eu não sou. Então, podemos parar com essa besteira e começar a nos mexer?

Matthias apoiou-se nos pés, colocou a bengala nos ombros e segurou os calcanhares do cadáver.

– Você não vai conseguir evitar essa pergunta pra sempre.

– Que diabos você está fazendo?

– Vamos lidar com isto juntos.

– Não, não vamos...

O som de sirenes interrompeu a discussão e os dois olharam para a porta ao mesmo tempo. Com sorte, os policiais passariam direto – o som aumentaria e depois diminuiria quando as viaturas começassem a se distanciar...

Não. Alguém devia ter visto ou ouvido alguma coisa e chamado a polícia.

Quando um carro freou no beco, Jim quis sair daquela situação da maneira mais fácil – colocar Matthias em transe, teletransportar o cadáver e jogar uma névoa na mente dos policiais que, naquele exato instante, saíam das viaturas com lanternas nas mãos. Mas o truque mental era difícil de fazer com mais de uma pessoa ao mesmo tempo. E botar fogo no corpo denunciaria sua posição aos policiais.

Com sorte, eles levariam um tempo vasculhando o beco primeiro.

– Fique calado – Jim grunhiu. Então agarrou Matthias pelo tronco, sustentando-o com o ombro, e começou a correr pelo corredor.

– Você... está... de... brincadeira... – Matthias disse, aos pulos, enquanto era carregado.

A sessão de reclamação parecia ter terminado, fosse porque Matthias engolira a língua na correria ou porque seu cérebro fritara de vez. Mas, caramba, pelo menos conseguiram chegar ao final do longo corredor, e dessa vez Jim não precisou esconder a rajada de energia que usou para abrir outra tranca. Irrompendo pela porta, ele...

Oh, merda.

... entrou direto nos fundos de um dos restaurantes do hotel.

A boa notícia era que parecia ser uma instalação usada apenas para o café da manhã e almoço; o lugar parecia uma cidade fantasma, os balcões de aço inoxidável da cozinha estavam limpos e prontos para o próximo turno. Infelizmente, o arrombamento disparou o alarme de segurança e luzes vermelhas começaram a piscar por toda parte.

– Por ali – Matthias disse, apontando para um conjunto de portas duplas com janelas redondas. – E me ponha no chão.

Jim soltou o cara e ambos voltaram a andar, passando por um fogão tão longo quanto um campo de futebol e por uma pia grande o suficiente para dar banho em um elefante. Enquanto seus passos ecoavam no chão de ladrilho vermelho, Jim olhou ao redor em busca do controle do alarme. Que, claro, não estaria bem visível no meio daquela cozinha enorme. Além disso, mesmo se ele pudesse desligar o alarme, o sinal já fora enviado para alguma central.

Passando pelas portas duplas, entraram em um salão cheio de mesas quadradas esperando por esfomeados que só apareceriam dali a sete horas.

No lado mais distante, as grandes janelas de vidro vermelho que separavam o restaurante do saguão principal mostravam um trio de pessoas correndo – provavelmente seguranças do hotel.

Ele e Matthias olharam para a esquerda, onde cortinas que iam do chão ao teto cobriam grandes janelas duplas de estilo antigo.

Sem discussão, partiram para a única saída disponível. E, para o crédito de Matthias, ele não tentou bancar o herói quando chegaram ali; parou pouco antes e deixou Jim cuidar da tranca usando a alça de bronze da janela.

Jim usou mais do que o peso de seu corpo para abrir a janela. Usou seu poder mental, e a janela abriu com um estalo, como se estivesse se soltando de uma tintura recém-seca.

Era uma queda de quatro metros até o chão.

– Merda – disse Matthias. – Você vai ter que me pegar.

– Sim, senhor.

Com um impulso coordenado, Jim jogou-se nas mãos frouxas da gravidade. Aterrissou com firmeza em suas botas de combate e deixou os braços levantados. O pulo de Matthias seria mais complicado, parecia que ele tinha dificuldade para dobrar as pernas, mas o cara era esperto. Ele agarrou a janela e a fechou pelo lado de fora, mesmo com seu traseiro quase não cabendo no parapeito.

Quando deixou o corpo cair em queda livre, sua jaqueta preta se agitou inutilmente, como se fosse um paraquedas que levara um tiro.

Jim agarrou seu ex-chefe com um grunhido, impedindo que ele atingisse o chão.

– Encontraram nosso amigo – Matthias disse enquanto se recompunha.

De fato, do outro lado do edifício, os policiais haviam aberto aquela porta dupla e entrado no corredor. Suas lanternas se refletiam pelo beco, como se estivessem vasculhando ao redor do cadáver.

Hora de virar fantasma.

Movendo-se o mais rápido e silenciosamente que podiam, os dois tomaram a direção oposta. Diferente das Operações Extraoficiais, cobertura era o procedimento padrão da polícia de Caldwell e, como já esperavam, mais sirenes ecoaram pela noite.

Pouco mais de cinquenta metros depois, eles pararam no outro canto do hotel, olharam ao redor e saíram do beco, com o máximo de calma que conseguiam fingir.

– Tire os óculos – Jim disse enquanto focava a calçada à frente.

– Já tirei.

Jim olhou para seu ex-chefe. O homem estava com o queixo erguido e olhava diretamente para a frente. Seus lábios estavam entreabertos e ele respirava como um trem de carga, mas ninguém perceberia, a menos que procurassem especificamente por sinais de falta de ar.

Até onde as pessoas podiam notar, os dois eram apenas amigos que haviam saído para um passeio, longe de estarem ligados a qualquer acontecimento estranho.

Jim ficou com muita vontade de dizer ao seu antigo chefe que o cretino fizera um bom trabalho. Mas aquilo seria ridículo. Os dois foram treinados pelo mesmo sargento, passaram anos exercitando técnicas de evasão lado a lado e estiveram em muitas variações desse mesmo cenário.

Quando entraram no saguão, Matthias já estava respirando normalmente.

Nem é preciso dizer que o cara continuaria hospedado no Marriott. Agora que a tentativa de fuga não só fora frustrada, mas também acabara envolvendo a polícia, uma nova tentativa seria mais arriscada e complicada, pelo menos nos próximos dias.

Além disso, depois de conhecerem aquela cozinha de primeira...

Seria uma pena não experimentar o almoço.


A persistência de Mels foi recompensada... de um jeito triste.

As equipes de reportagem foram embora depois da meia-noite, e então os policiais começaram a deixar o local. Até Monty foi embora antes dela. Finalmente, restaram apenas a equipe forense, dois detetives e Mels.

A fita de isolamento da polícia foi diminuindo cada vez mais à medida que as pessoas iam embora, e Mels também foi se aproximando cada vez mais da porta aberta do quarto do motel. Então, quando chegou a hora de remover a vítima, ela teve uma visão clara do procedimento. Dois homens entraram com um grande saco preto e, por causa do espaço pequeno no banheiro, tiveram que colocar o saco na sala e carregá-la para fora.

Pobre garota.

– É, foi terrível.

Mels virou-se, sem saber se tinha falado em voz alta. Um cara alto e de aparência assustadora estava atrás dela – era um típico mal-encarado com piercings no rosto e uma jaqueta de motoqueiro. Mas sua expressão parecia denunciar um coração partido, o que imediatamente fez Mels mudar de opinião quanto ao sujeito. Ele não estava prestando atenção nela; encarava a garota morta cujo corpo estava sendo arrumado para entrar naquele grande saco preto.

Mels voltou a olhar para a cena.

– Sinto pena do pai dela.

– Você o conhece?

– Não. Mas posso imaginar o sofrimento – por outro lado, talvez o cara não tivesse sido um bom pai e isso fosse um dos motivos para a garota ter entrado naquela vida. – É só que... ela um dia foi só um bebê. Deve ter havido alguma inocência em algum ponto.

– Espero que sim.

A curiosidade fez Mels avaliar novamente o cara.

– Você está hospedado aqui?

– Sou apenas um espectador – o homem suspirou com uma curiosa aparência de derrota. – Cara, eu odeio a morte.

Naquele momento, por alguma razão, Mels pensou em seu pai. Ele também fora removido daquele acidente em um saco plástico – depois de as ferramentas de corte hidráulico terem cortado caminho até o banco do motorista.

Será que agora ele estava no Céu? Olhando-a lá de cima? Ou seria a morte realmente o apagar definitivo das luzes, como um carro sendo desligado ou um aspirador fora da tomada?

Bom, não havia vida após a morte para eletrodomésticos. Então, por que os humanos achavam que seu destino seria diferente?

– Porque é, sim, diferente.

Ela olhou por cima do ombro e sorriu sem jeito.

– Desculpa, não percebi que falei em voz alta.

– Tudo bem – o cara sorriu um pouco. – E não há nada de errado em ter fé e esperança de que seus entes queridos estejam em paz em algum lugar. Na verdade, a fé é uma coisa boa.

Mels voltou a olhar o quarto do motel, pensando que era estranho ter esse tipo de conversa com um total estranho.

– Mas eu queria ter certeza.

– Ah, mas você é uma repórter, então vazaria a informação.

Ela riu.

– Então a existência do Céu e do Inferno é um segredo?

– Exatamente. Os humanos precisam de duas coisas para criar vínculos verdadeiros entre si: a escassez e o desconhecido. Se as pessoas que amamos vivessem para sempre, talvez não déssemos importância para sua presença, e se soubéssemos com certeza que iríamos nos reencontrar, nunca sentiríamos falta delas. É tudo parte do plano divino.

Então ele era um maluco religioso.

– Bom, isso faz sentido.

Eles se afastaram quando os policiais pegaram as alças do saco plástico e começaram a retirar a vítima. Enquanto a sombria procissão passava, Mels começou a entender a razão de Dick ter lhe passado aquela pauta. Uma garota morta, uma cena macabra, as ruas perigosas de Caldwell, blá, blá, blá. Ele era simplesmente o tipo de cretino que revidaria por Mels tê-lo esnobado tantas vezes.

E a verdade é que aquilo a deixou realmente abalada, como qualquer pessoa com uma consciência ficaria. Mas ela faria seu trabalho mesmo assim.

Inclinando-se para a porta, ela falou com o homem que estava no comando:

– Detetive De la Cruz? Você poderia dar uma declaração?

O detetive levantou os olhos de seu bloco de anotações antiquado.

– Você ainda está aqui, Carmichael?

– É claro.

– Seu pai ficaria orgulhoso, você sabe disso.

– Obrigada, detetive.

Quando se aproximou, o detetive nem sequer olhou para o grande homem que estava ao lado dela; mas De la Cruz era assim mesmo. Não se perturbava com quase nada.

– Não tenho nada para dizer ainda. Desculpe.

– Nenhum suspeito?

– Sem comentários – ele apertou o ombro dela. – Diga “oi” para sua mãe, certo?

– E quanto à cor do cabelo?

Ele apenas acenou e continuou andando, entrou no seu velho Ford cinza e dirigiu para fora do estacionamento.

Quando o último policial trancou a porta do quarto e colocou a fita de segurança, Mels virou-se para o homem atrás dela...

Sumiu. Como se nunca tivesse estado ali.

Estranho.

Andando até o carro de Tony, ela ainda podia jurar que estava sendo seguida, mas não havia ninguém por perto. A sensação persistiu enquanto dirigia para casa, ao ponto de ela se perguntar se paranoia poderia ser um vírus contagioso.

Matthias com certeza estava nervoso, mas ele tinha razão para estar. Ela com certeza não tinha.

Mels tomou o caminho mais curto para casa e, quando passou pelo cemitério novamente, decidiu fazer um pequeno desvio.

Parou em uma rua onde cada garagem possuía dois postes de luz brilhando em cada lado da porta. Com exceção desse rancho em particular, que tinha as luzes apagadas, tanto fora como dentro, como um buraco negro em meio a uma rua cheia de casas ocupadas e iluminadas.

Ela aproximou a mão da porta do carro, querendo dar uma olhada ao redor, espiar dentro das janelas, talvez encontrar uma porta aberta para entrar na garagem. Mas, assim que tocou a maçaneta, uma onda de pavor tomou seu corpo, como se aquela sensação de estar sendo vigiada tivesse se transformado em um bicho papão real prestes a pular nela com uma faca.

Mels deu um tempo para que o medo passasse, caso fosse apenas uma indigestão do hambúrguer com batata frita que comera no Marriott, mas quando a sensação não passou, ela engatou a primeira marcha e deu meia volta com o carro.

Provavelmente o culpado era o nevoeiro que ainda pairava no ar.

Sim, tinha de ser isso – um nevoeiro de cinema, que fazia a noite parecer ainda mais escura e perigosa do que realmente era.

Acelerando, ela trancou a porta e segurou firme o volante.

Não relaxou enquanto não entrou na garagem da casa de sua mãe, com os faróis do carro de Tony iluminando a casa em que crescera.

Por alguma razão, ela observou as janelas duplas no segundo andar. Aquelas que ficavam no parapeito de seu quarto.

Seu pai consertara aquelas janelas quando ela tinha dez anos: depois que um vendaval as arrancou completamente, ele usou uma brilhante escada de alumínio e carregou os pesados painéis de madeira para cima, equilibrando-os no beiral, apertando os parafusos, deixando tudo novo em folha.

Ela segurara a base da escada só porque queria fazer parte daquilo. Não estava preocupada que ele fosse cair. Ele parecia o Super-Homem naquele dia.

Na verdade, em todos os dias.

Mels pensou naquele estranho no motel, aquele maluco religioso cheio de piercings. Talvez aquela teoria da escassez e do mistério estivesse certa em se tratando de algumas pessoas. Mas se ela soubesse com certeza que seu pai estava bem, conseguiria encontrar um pouco de paz para si mesma.

Engraçado, até aquela noite não havia percebido que talvez precisasse disso.

Afinal, desde que ele se fora, ela vinha se esforçando para não pensar muito nas coisas.

Era doloroso demais.


CAPÍTULO 21

Por volta das cinco da manhã, Jim estava no quarto de Matthias no hotel Marriott, sentado em uma cadeira no canto, encarando a televisão sem som. Duas horas antes, ele recebera uma mensagem de texto de Ad informando que a repórter estava segura na casa de sua mãe e que o anjo checaria se estava tudo bem com Eddie e deixaria o Cachorro sair um pouco. A próxima mensagem chegou 45 minutos depois: Ad ia tirar um cochilo.

Ao lado, na cama de casal, Matthias dormia sobre as cobertas como uma pedra, deitado de costas, cabeça no travesseiro, mãos cruzadas sobre o peito. Só faltava uma rosa branca entre os dedos e o som de um órgão de igreja para que Jim começasse a prestar suas condolências.

Por que diabos Devina ajudara os dois?

Droga, a única coisa pior do que ela atacando era ela o salvando. E Jim não precisava daquele resgate. Ainda tinha truques na manga, caramba. Estava prestes a fazer um grande show de luzes.

Talvez ela estivesse tentando puxar o saco do Criador.

O que seria algo muito irritante...

A edição das cinco da manhã do programa Wake Up, Caldwell! começou com uma repórter cobrindo uma cena de crime no centro da cidade. A mulher, que estava em frente a um motel, virou e apontou para um quarto aberto onde policiais entravam e saíam. Então o vídeo cortou para uma caixa de tintura de cabelo e depois para a foto de uma mulher com cabelo tingido.

Havia tanto pecado no mundo, pensou Jim.

E, pensando nisso, lembrou que precisava de mais munição.

Quando um comercial de salsicha apareceu, seu estômago roncou e ele quase pegou o telefone para chamar o serviço de quarto.

– Você pode pelo menos dizer qual é o meu nome?

Jim olhou para a cama. Os olhos de Matthias estavam abertos, mas ele ficou estático, como uma cobra enrolada ao sol.

– Sempre conheci você como Matthias.

– Fomos treinados juntos, não é? Ontem nós usamos exatamente os mesmos movimentos, ao mesmo tempo.

– Pois é.

Sentindo aonde ele queria chegar, Jim pegou seu maço de cigarros, puxou um entre os dentes e então lembrou que estava em um local público. E não seria irônico se fossem expulsos do hotel por acender um cigarro, sendo que o invadiram pelos fundos, abriram fogo, deixaram um corpo e fugiram dali?

É, seria muito engraçado.

Jim voltou a olhar para a televisão, que agora passava um comercial de desodorante. Por uma fração de segundo, invejou os caras na propaganda: tudo o que tinham para se preocupar eram suas axilas, e, desde que usassem Speed Stick, não precisariam se preocupar com nada.

Se pelo menos a solução para Devina também viesse em spray ou em bastão...

– Conte como eu me matei – quando Jim não respondeu, o outro homem disse: – Por que você tá com medo de falar sobre isso? Você não parece ser um covarde.

Jim esfregou o rosto.

– Sabe de uma coisa? Você devia dormir menos, porque quando está descansado você é um saco.

– Então acho que você é um covarde, sim, afinal de contas.

Jim bufou e soltou ar, desejando que fosse fumaça.

– Certo, sabe o que me preocupa? Que quando você descobrir quem era, vai se tornar aquele homem novamente e eu vou te perder. Sem ofensa, mas essa sua mente vazia é uma benção.

– Você fala como se eu fosse uma pessoa do mal...

– Você era – Jim encarou seu ex-chefe. – Você estava completamente infectado, ao ponto de me fazer concluir que nasceu assim. Mas vendo você do jeito que está agora... – Fez um gesto com as mãos. – É uma surpresa descobrir que não é de nascença.

– Que diabos aconteceu comigo? – Matthias sussurrou.

– Não sei nada do seu passado antes das Operações Extraoficiais.

– Esse era o nome da organização?

– Esse é o nome. E, sim, nós dois treinamos juntos. Antes disso, não sei de nada. Havia rumores sobre você, mas provavelmente eram exageros por causa da sua reputação.

– Que reputação?

– Diziam que você era um sociopata – o homem praguejou baixinho e Jim deu de ombros. – Escuta, eu também não era nenhum santo. Não antes de entrar, e com certeza não enquanto eu estive lá. Mas você... estabeleceu um outro nível. Você era... algo mais.

Houve um período de silêncio. Então, Matthias disse:

– Você ainda não está falando nada específico.

Jim esfregou os cabelos e pensou. Bem, que inferno, havia tanta coisa para escolher.

– Certo, que tal isso: havia um homem, o coronel Alistair Childe. Esse nome traz alguma lembrança? – quando Matthias balançou a cabeça, Jim realmente desejou que estivessem lá fora, para poder acender um cigarro. – Ele era um cara legal, tinha uma filha que era advogada. O filho tinha problemas com drogas. A esposa morreu de câncer. Morava em Boston, mas trabalhava bastante em D.C. Ele chegou perto demais.

– Perto demais do quê?

– Da firma, digamos assim. Você mandou sequestrarem e levarem ele para a casa onde o filho se drogava. Seus agentes encheram o garoto até ele ter uma overdose de heroína e filmaram Alistair gritando enquanto o filho espumava pela boca até morrer. E você pensou que fez um favor para o cara, porque, nas suas próprias palavras, usou o filho que já estava perdido. A ameaça, é claro, era que, se Childe não se afastasse, você mandaria matar sua filha também.

Matthias não se moveu, mal respirava, apenas piscava. Mas sua voz foi o que o denunciou. Rouca e áspera, mal conseguiu pronunciar as palavras.

– Não me lembro disso.

– Você vai lembrar. Em algum momento. Vai se lembrar de muitas outras merdas como essa... e coisas que eu provavelmente nem faço ideia.

– E como você sabe tanto?

– Sobre o caso do Childe? Eu estava lá quando você foi atrás da filha.

Matthias fechou os olhos e seu peito subiu e desceu devagar, como se houvesse um grande peso em cima dele.

Isso deu um pouco de esperança para Jim. Talvez a revelação o afastasse um pouco mais do pecado.

– Se isso é verdade, posso entender por que está preocupado com minha bússola moral.

– É a mais pura verdade. E, como eu disse, tem muito mais.

Matthias limpou a garganta.

– Então, como exatamente isso aconteceu?

Matthias apontou para os olhos e Jim começou a relembrar o passado que compartilhavam.

– Eu quis sair, mas não existe aposentadoria das Operações, e você era o único que podia me exonerar. Nós discutimos sobre isso, e então você apareceu onde eu estava numa missão no deserto. Você disse pra eu te encontrar sozinho à noite num lugar muito longe do acampamento, e eu achei que era o fim, tudo estava acabado pra mim. Mas você estava sozinho. Olhou nos meus olhos quando levantou o pé e pisou na areia. A explosão... foi direcionada pra cima, não pra fora. Você não queria me acertar, e não foi um acidente – memórias daquela cabana, da areia áspera em seus olhos e da fumaça em seu nariz voltaram rápido e com força. – Depois de tudo, eu carreguei você pra fora e te levei pra onde teria ajuda.

– Por que não me deixou para morrer?

– Eu não aguentava mais jogar segundo suas regras. Era hora de o poderoso chefão não conseguir o que queria.

– Mas se você desejava sair e, se eu tivesse me matado... quem iria atrás de você? Se isso for mesmo verdade, você estaria livre.

Jim deu de ombros.

– Eu estava numa posição ideal. Você não queria que as pessoas soubessem que tentou suicídio, então eu tinha o melhor dos dois mundos. Eu estava livre e você passaria o resto da vida todo quebrado e morrendo de dor.

Matthias riu de repente.

– De um jeito estranho, eu até respeito isso. Mas não entendo por que está me ajudando agora.

– Mudei de emprego – Jim pegou o controle remoto. – Olha, nós saímos no jornal!

Quando colocou som na televisão, um apresentador diferente dava informações sobre um corpo que fora encontrado, veja só, bem onde eles estiveram naquele corredor de serviço. Não havia suspeitos. Não havia documento com a vítima – e boa sorte com isso. Mesmo que encontrassem algo, as identidades falsas das Operações Extraoficiais eram impenetráveis. Além disso, o legista não teria muito tempo: o corpo desapareceria do necrotério a qualquer instante – se é que já não fora removido.

Seria apenas mais um caso não resolvido que ficaria perdido num arquivo da polícia.

– Que tipo de trabalho você faz agora? – perguntou Matthias.

– Sou um trabalhador autônomo.

– Isso ainda não explica por que está ajudando um homem que odeia.

Jim o encarou e pensou em tudo o que Matthias representava na guerra contra Devina.

– Agora... eu preciso de você.


Arrumando-se para o trabalho, Mels quebrou uma unha enquanto se vestia e derramou café na blusa. E, como falta de sorte vem sempre em três, ela continuava com a sensação de estar na lista de algum assassino, mas pelo menos sua mãe estava na aula de ioga – e isso significava que podia sair sem ter de conversar muito.

À vezes, conversar com sua mãe sobre o trabalho era difícil. Ela não precisava ouvir os detalhes do que acontecera com aquela garota no motel.

Não era um assunto para o café da manhã.

Além disso, Mels não estava com vontade nenhuma de conversar. A noite fora longa, principalmente porque escrevera o artigo sobre o assassinato ainda na madrugada, para que o editorial pudesse postar a notícia primeiro na versão on-line. E hoje se concentraria em conseguir mais informações para escrever um artigo mais detalhado para a edição impressa de amanhã.

Com sorte, Monty não aguentaria e ligaria para ela, deixando aquela boca dele fazer sua parte.

No caminho para pegar Tony, ela ficou presa na fila do drive-thru no McDonald’s, pois não queria de jeito nenhum aparecer na casa dele sem um café da manhã. Finalmente, com dois pãezinhos de salsicha em uma sacola e um par de copos cheios de café, Mels voltou para as ruas no Toyota emprestado.

Quando estacionou o carro em frente ao prédio dele, o cara se levantou dos degraus da escada frontal e desceu correndo, seu grande corpo fazendo-o parecer mais alto do que era.

– Eu já disse ultimamente o quanto eu te amo? – ela perguntou enquanto Tony entrava no carro.

Tony abriu um grande sorriso.

– Se isso é café da manhã, então sim, você disse.

– Comprei dois pãezinhos e um café pra você – ela entregou a sacola. – O outro café é pra mim.

– Melhor do que um par de brincos – ele desembrulhou um dos pacotes. – Hum... comestível...

– Eu queria agradecer de verdade por você ter emprestado o carro.

– Ah, nem preciso tanto assim dele. Desde que consiga ir e voltar do trabalho, pra mim está bom – enquanto mastigava, ele franziu a testa e pegou um recibo no cinzeiro. – Você esteve no Marriott ontem?

Mels ligou a seta para a esquerda e entrou no trânsito, desejando que seu amigo não fosse um observador tão bom.


– Ah, sim, estive.

– Que horas?

Mels manteve os olhos na rua, reconhecendo a “voz de repórter” que seu amigo estava usando.

– Ontem à noite. Estava só visitando um amigo.

– Então você viu toda a movimentação?

– Movimentação?

– Você não sabe o que aconteceu?

– Fui chamada pra cobrir uma cena de crime do centro da cidade. Do que você tá falando?

– Espera um pouco, você pegou a história da prostituta de cabelo loiro?

– Sim. Então, o que aconteceu no Marriott?

Enquanto Tony levava um milhão de anos pra terminar de mastigar o Mc-Sei-Lá-O-Quê, o estômago de Mels começou a embrulhar. Cara, se ele começasse a comer o segundo pãozinho ela pularia em seu pescoço...

– Aconteceu um tiroteio no porão do hotel. O Eric vai cobrir a história. Teve troca de tiros no beco, e alguém invadiu o prédio pela entrada dos fundos de um dos restaurantes. Ligaram pra central da polícia e os policiais encontraram um homem morto sem identificação e desarmado, com a garganta cortada.

– Mas você não disse que houve tiros?

– Ah, ele foi atingido por tiros, sim. Mas não foi isso que matou ele – Tony fez um gesto como se cortasse a própria garganta. – Cortou de um lado a outro.

Mels sentiu um arrepio.

Porque você vai morrer se não se afastar de mim.

Mels disse a si mesma para se acalmar. Aquele era um hotel grande em uma parte da cidade que era perigosa à noite. Assassinatos acontecem, principalmente entre traficantes e seus clientes.

Tony revirou a sacola para pegar o segundo pãozinho de salsicha.

– Parece que o cara poderia ter morrido por causa dos tiros, mas ele usava um belo colete à prova de balas. Eric disse que os policiais ficaram babando quando viram o colete. Nunca tinham visto um daquele jeito – o gentil som da embalagem branca sendo dobrada foi seguido por um generoso suspiro de satisfação causado por aquela comida não saudável, mas deliciosa. – Então, o que você descobriu ontem à noite? – ele perguntou com a boca cheia.

Mels ignorou uma placa “Pare” e virou à esquerda na rua Trade. Sua mente estava muito longe: Matthias estava se preparando para dormir quando ela foi embora – embora isso não significasse que ele não poderia ter saído depois que ela...

– Olá? Mels?

– Desculpa, o que foi?

– Quando você estava no motel. O que descobriu?

– Ah... certo, desculpa. Não descobri muita coisa. A mulher foi morta depois de ter tingido o cabelo... a garganta dela estava cortada.

– Duas numa única noite. É uma epidemia.

Bom, podia até ser, ela pensou. Ninguém poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo, não é?

Certo, agora ela estava ficando maluca.

– Pois é. Que estranho.

Cinco quarteirões depois, eles chegaram ao prédio do Correio de Caldwell. Mels estacionou e devolveu as chaves para Tony enquanto andavam até a entrada dos fundos.

– Obrigada de novo.

– Como eu disse, pode pedir sempre que precisar. Principalmente se comprar café da manhã pra mim. E pare de colocar dinheiro na minha gaveta quando pegar um chocolate meu. Você tem permissão pra usar minha reserva de comida sempre que quiser.

Tony guardava um monte de comida em sua escrivaninha e ela já era conhecida por beliscar ali de vez em quando. Mas não pegava simplesmente de graça.

Mels segurou a porta aberta para ele entrar.

– Não vou roubar comida de você.

– Mas se eu der permissão, não é roubo. Além disso, você não pega mais do que uns dois bombons e um chocolate por mês.

– Furto é furto.

Eles alcançaram os degraus que levavam à redação, e desta vez foi ele quem segurou aberta a porta de vidro.

– Queria que todo mundo pensasse assim.

– É disso que eu estou falando. Você não tem a obrigação de alimentar todo mundo.

No instante em que entraram, Mels ouviu os telefones tocando, as vozes agitadas, os passos rápidos: tudo isso era uma sinfonia familiar que invadiu seu corpo, carregando-a até sua escrivaninha. Quando sentou, aquele burburinho acalmou a ansiedade que sentia por causa de Matthias, e ela ligou o computador sem sequer pensar no que estava fazendo.

Um envelope marrom foi jogado em sua mesa, assustando-a.

– Tenho algo bonito pra você ver – disse Dick com um sorriso maroto.

Ela pegou o pacote e abriu.

Ficou contente em ter dado os dois pãezinhos para Tony: dentro do envelope estavam as fotos do corpo da prostituta, fotos grandes e em cores mostrando tudo em detalhes.

Dick ficou ao lado, como se estivesse esperando que ela se abalasse, e Mels se recusou a satisfazer seu desejo, mesmo com o peito doendo por causa das imagens... principalmente a que mostrava em detalhes o ferimento na garganta, o corte profundo que atravessou a pele e penetrou os músculos rosa e vermelho, e a cartilagem pálida.

Mels colocou as fotos em cima mesa, fazendo questão de deixar a da garganta virada para cima, e notou que Dick, mesmo com todo aquele jeito machão, não quis olhar para a imagem.

– Obrigada – ela manteve os olhos colados nos dele. – Isso vai ajudar bastante.

Dick limpou a garganta como se tivesse percebido que fora longe demais, mesmo para seus padrões de cretinice.

– Quero ler o artigo detalhado assim que estiver pronto.

– Pode deixar.

Assim que ele sumiu, ela balançou a cabeça. Ele deveria saber que não podia mexer com Mels, sendo filha de quem era.

Na verdade, só o fato de querer dar em cima dela era nojento por si só.

Fez Mels pensar na maneira como Monty tirava proveito da tragédia dos outros.


Franzindo a testa, ela olhou as fotografias novamente, e então se concentrou na que fora tirada no necrotério. Havia uma mancha avermelhada estranha na barriga da vítima, como uma queimadura de sol...

O celular tocou e Mels atendeu sem olhar quem era.

– Carmichael.

– Olá.

A voz profunda despejou um calor que desceu por todo seu corpo. Matthias.

Por uma fração de segundo, ela imaginou como conseguira o número de seu celular. Mas então lembrou que escrevera o número em seu cartão de visitas.

– Ah, bom dia – ela disse.

– Como você está?

Em sua mente, começou uma partida de pingue-pongue entre o que Tony contara no carro e como se sentira ao beijar Matthias. Indo e vindo, indo e vindo...

– Mels, você está aí?

– Sim – ela esfregou os olhos, mas teve de parar, pois um deles ficou irritado. – Desculpa. Estou bem, e você? Lembrou de mais alguma coisa?

– Pra falar a verdade, lembrei sim.

Mels se ajeitou na cadeira e voltou a concentrar-se em uma coisa só.

– Como o quê?

– Será que você se importaria de investigar uma coisa para mim?

– Nem um pouco. Diga o que quer saber – enquanto ele falava, Mels tomava nota e escrevia nomes, aceitando a tarefa. – Certo. Sem problemas. Você quer que eu ligue de volta?

– Sim, por favor.

Houve uma pausa estranha.

– Certo – ela disse, constrangida. – Então, eu te ligo...

– Mels...

Fechando os olhos, ela sentiu aquele corpo pressionando contra o seu, aquela boca tomando a sua, a dominação intrínseca à personalidade dele começando a se manifestar.

– Você sabe o que aconteceu no seu hotel ontem à noite? – ela perguntou, abruptamente.

– Sim. Passei horas pensando em você.

Ela fechou novamente os olhos, tentando lutar contra a sedução.

– A polícia encontrou um cadáver. Que estava vestindo um colete à prova de balas muito moderno.

Outra pausa. Então, ele respondeu:

– Hum. Suspeitos?

– Ainda não.

– Eu não o matei, Mels, se é isso que está perguntando.

– Eu não disse que você matou.

– Mas é isso que está pensando.

– Quem são essas pessoas que você quer checar? – ela interrompeu, desenhando quadrados em volta dos nomes que ele havia passado.

– Apenas coisas que surgiram na minha mente – sua voz se tornou distante. – Olha, eu não deveria ter pedido isso. Vou conseguir as informações de outro jeito...

– Não – ela disse com firmeza. – Vou fazer isso e depois te ligo.

Mels desligou e ficou encarando o vazio. Então levantou e andou até chegar em outro cubículo. Inclinando-se por sobre a divisória, deu um sorriso forçado para um colega que não a conhecia bem o suficiente para perceber a falsidade.

– Oi, Eric, como é que vai?

Os olhos do cara se desviaram do computador.

– Oi, Carmichael. O que posso fazer por você?

– Queria saber sobre o assassinato do Marriott.

O repórter sorriu, como se estivesse orgulhoso de sua pauta.

– Algo específico?

– O colete.

– Ah, o colete – ele buscou em seus papéis em cima da mesa. – O colete, vejamos... – puxou uma folha e entregou para ela. – Encontrei isto na internet.

Mels franziu a testa enquanto lia as especificações.

– Cinco mil dólares?

– É o que custam sem ser personalizados. E o colete dele com certeza foi.

– Quem é que pode pagar tudo isso?

– É exatamente o que estou me perguntando – ele procurou outros papéis. – Grandes empresas de segurança é uma opção. O governo é outra, mas não pra um agente qualquer do FBI. Teria que ser um agente muito especial.

– Tinha algum VIP no hotel?

– Bom, foi isso que tentei descobrir na noite de ontem. Oficialmente, a equipe do hotel não pode divulgar nomes, mas ouvi o gerente da noite falando com um dos policiais. Não havia ninguém de especial sob o teto deles.

– E quanto aos arredores, no centro da cidade?

– Pois é, existem algumas grandes empresas na vizinhança, mas estavam todas fechadas, pois já tinha passado bastante da hora de expediente normal. E não faz sentido que alguém importante estivesse andando em Caldwell e algum de seus seguranças tivesse enlouquecido e entrado no caminho da faca de alguém.

– A que horas aconteceu?

– Perto das onze.

Depois que ela saiu em direção à cena do crime no motel.

– E ninguém tem pistas sobre a identidade?

– Nenhuma. O que nos leva a outra questão interessante – Eric mordeu a ponta de uma caneta Bic. – Não havia impressões digitais.

– Na cena?

– No cadáver. Ele não tinha impressões: foram totalmente removidas.

Os ouvidos de Mels começaram a zumbir.

– Algum outro tipo de identificador?

– Uma tatuagem, aparentemente. Estou tentando conseguir umas fotos dela e do corpo, mas minhas fontes estão meio devagar – ele estreitou os olhos. – Por que está tão interessada?

Colete à prova de balas moderno. Sem digitais.

– E armas?

– Nenhuma arma, alguém deve ter levado – Eric inclinou-se para frente em sua cadeira. – Então, você não está pensando em falar com Dick pra conseguir um lugarzinho nessa história, não é?

– Meu Deus, não. É só curiosidade – ela se virou. – Mas agradeço pelas informações.


CAPÍTULO 22

Quando o telefone toucou meia hora depois, Matthias ficou apenas olhando para a coisa. Provavelmente era Mels retornando a ligação.

Droga, que confusão...

Depois que Jim saiu para tomar café da manhã, ou cuidar de suas coisas, ou fazer seja lá o quê, a primeira coisa que Matthias fez ao ficar sozinho, naturalmente, foi ligar para Mels e tentar descobrir se era verdadeira aquela história sobre o pai e o filho em Boston. Mas ainda não estava raciocinando direito, e nem passou por sua cabeça que ela já tinha ouvido sobre o tiroteio da noite passada. Estava em todos os jornais. Não precisava ser um repórter para saber da merda que acontecera por lá.

O telefone parou de tocar. Mas ela iria tentar de novo.

Deus, a voz dela quando ele telefonou... Mels parecia desconfiada, e por muitos motivos isso era bom para ela. Mas também o deixava triste.

Quando o telefone voltou a tocar, ele não aguentou mais. Pegou sua bengala, saiu do quarto e andou cegamente até um elevador. Começou a descer, sem fazer ideia de onde estava indo. Talvez para o café da manhã.

Sim, café da manhã.

Era o que as pessoas faziam às nove da manhã no país inteiro.

E, é claro, o único restaurante aberto era aquele que ele conhecera intimamente na noite anterior – ao passar pelas paredes de vidro colorido, ele decidiu que sairia do Marriott para...

– Matthias?

Ao ouvir a voz feminina, ele se virou. Era a enfermeira do hospital, aquela que lhe dera uma mãozinha, por assim dizer. Fora do trabalho, ela tinha um frescor de verão, com o cabelo preto solto sobre os ombros e um vestido esverdeado que descia até os joelhos.

Até parecia uma noiva.

– O que você está fazendo aqui? – ela disse quando se aproximou. – Pensei que estaria em casa se recuperando.

Quando as pessoas passavam por ela, os olhares eram inevitáveis: homens com desejo nos olhos, mulheres com vários níveis de inveja e desdém. Afinal, ela era realmente linda.

– Estou bem – ele tentou não olhar demais, pois era como encarar o sol: doía nos olhos. – E você?

– Minha mãe está vindo me visitar. Ou melhor, já deveria estar aqui. O voo dela deveria ter chegado meia hora atrás, mas teve um atraso em Cincinnati por causa das tempestades. Estou decidindo se espero ou se vou pra casa: iríamos tomar café da manhã juntas no restaurante. É pra lá que você tá indo?

– Ah, sim.

– Bom, que tal se formos juntos? Estou com fome.

Seus olhos negros brilhavam com alegria, ao ponto de lembrá-lo de uma noite estrelada. Mas isso não era suficiente para fazê-lo aceitar o convite.

– Sim, vamos – ouviu sua própria voz, como se outra pessoa estivesse controlando sua boca.

Juntos, caminharam até a entrada do restaurante.

– Duas pessoas – Matthias disse, enquanto o recepcionista checava a enfermeira de cima a baixo para depois congelar como um animal na estrada olhando para os faróis de um carro, aparentemente impressionado com toda aquela beleza.

– Gostaria de um lugar perto da janela – ela disse, sorrindo vagarosamente para o cara. – Talvez perto...

Não a janela que ele usara para escapar, pensou Matthias.

– ... daquela ali.

Mas é claro que ela escolheu exatamente aquela.

– Ah, sim, claro, é para já – o recepcionista fez sua parte, conduzindo-os com alguns cardápios debaixo do braço. – Mas temos vistas melhores no salão, que dão pro jardim.

– Não queremos que bata muito sol – ela colocou a mão no braço de Matthias e apertou um pouco, como se quisesse demonstrar que estava preocupada com seu olho ruim.

Cara, ele realmente não gostava que ela o tocasse.

Enquanto andavam pelo salão, a enfermeira criou uma total comoção, com homens olhando por cima dos jornais, das canecas de café e até sobre a cabeça de suas esposas. Ela continuou andando a passos largos, como se aquilo fosse totalmente natural.

Depois de sentarem na frente da janela que ele e Jim haviam violado, o café chegou rápido e eles olharam o cardápio. Aquele ritual civilizado de escolher entre cinquenta tipos de pratos o deixava nervoso. E Matthias não queria comer junto com a enfermeira. Bom, não queria comer com ninguém.

A situação desconfortável com Mels era o problema. Sim, ele ligara pedindo as informações, mas a verdade era que queria apenas ouvir a voz dela.

Ele sentira saudade durante a noite...

– Em que está pensando? – disse a enfermeira suavemente.

Ele olhou através da janela para o prédio do outro lado da rua.

– Acabei de perceber... que ainda não sei o seu nome.

– Oh, desculpe. Achei que estava escrito na ficha do quarto do hospital.

– Provavelmente estava, mas mesmo que estivesse escrito em neon não sei se notaria.

Era mentira, claro. Na verdade, não havia nenhuma enfermeira registrada na ficha, apenas um médico, e cujo uniforme também não tinha um crachá com nome.

O que parecia um pouco estranho, pensando bem...

Ela pousou elegantemente a mão no meio do peito, como se fosse um convite para ele olhar seu decote.

– Você pode me chamar de Dê.

Olhou em seus olhos.

– De Deidre?

– De Devina – ela desviou os olhos, como se não quisesse falar muito sobre seu nome. – Minha mãe sempre foi uma pessoa religiosa.

– O que explica seu vestido.

Dê balançou a cabeça com pesar e ajeitou a saia.

– Como você sabia que eu não me visto assim normalmente?

– Bom, primeiro porque parece um vestido para uma mulher com mais de quarenta anos. A calça jeans e a blusa que usou naquele dia pareciam mais apropriadas pra sua idade.

– Quantos anos você acha que eu tenho?

– Uns vinte e cinco – e talvez fosse por isso que não gostava quando ela o tocava. Ela era muito jovem, jovem demais para um cara como ele.

– Na verdade, tenho vinte e quatro. É por isso que minha mãe vem me visitar – ela tocou o peito novamente. – Meu aniversário.

– Parabéns.

– Obrigada.

– Seu pai também vai vir?

– Ah... então. Não – agora ela se fechou completamente. – Não, ele não virá.

Droga, a última coisa que ele precisava era entrar em detalhes pessoais.

– Por que não?

Ela ficou mexendo na caneca de café em cima do pires, movendo de lá para cá.

– Você é tão estranho.

– Por quê?

– Eu não gosto de falar sobre mim mesma, mas aqui estou eu, falando sem parar.

– Não me contou muita coisa, se isso faz você se sentir melhor.

– Mas... eu quero falar – por um segundo, seus olhos focaram os lábios dele, como se estivesse pensando em fazer coisas de que Matthias realmente não precisava. – Eu quero.

Não. Nem pensar.

Principalmente não depois de Mels, ele pensou.

Dê se inclinou e seus peitos ameaçaram saltar para fora do vestido.

– Não consigo parar de pensar em você.

Ótimo. Que maravilha. Que merda perfeita.

No tenso silêncio que se seguiu, Matthias olhou brevemente para a janela. Já tinha escapado por ali uma vez.

Se as coisas continuassem constrangedoras, poderia tentar de novo.

Mels colocou o telefone na base e se esticou na cadeira do escritório. Quando ouviu o chiado de sempre, fez uma nova musiquinha com o couro, balançando para frente e para trás.

Por alguma razão, seus olhos ficaram encarando a caneca de café que pertencera àquela repórter que trabalhava em seu cubículo.

Quando o celular tocou, Mels pulou e o agarrou. Checou rapidamente quem estava ligando e praguejou – não por causa de quem era, mas por causa de quem não era.

Talvez Matthias estivesse tomando banho.

As pessoas tomam banho pela manhã, não é?

Mas, tipo, por meia hora? Ela estava ligando de cinco em cinco minutos!

– Alô?

– Oi, Carmichael – era Monty, o Boca. Ela sabia por causa do jeito como ele falava. – Sou eu.

Bom, pelo menos ela também queria que ele ligasse.

– Bom dia.

– Eu tenho algo pra contar – sua voz ficou mais baixa, como se fosse um agente secreto falando. – É uma coisa explosiva.

Mels ajeitou-se na cadeira, mas não ficou com muita expectativa. Com sua sorte, “explosivo” devia ser apenas um grande exagero da parte dele.

– É mesmo?

– Alguém adulterou o corpo.

– Como é?

– Como eu disse, fui o primeiro na cena do crime e tirei algumas fotos. Você sabe, como parte do trabalho – ela ouviu algo se mexendo, e então uma conversa aos fundos, como se ele estivesse falando com alguém enquanto cobria o fone. – Desculpa. Estou na delegacia. Vou sair daqui e depois ligo de novo.

Ele desligou antes que Mels pudesse dizer alguma coisa, e ela o visualizou evitando seus colegas e correndo para o estacionamento como se fosse um jogador de futebol.


De fato, quando ligou de volta, ele estava sem fôlego.

– Está me ouvindo?

– Sim, estou.

– Então, minhas fotos do corpo mostram algo que não aparece nas fotos oficiais.

Essa era a deixa para ela mostrar surpresa, e neste caso nem precisava fingir.

– Qual é a diferença?

– Venha me encontrar e eu te mostro.

– Quando e onde?

Depois de desligar, Mels checou seu relógio e ligou para Matthias novamente. Ninguém respondeu.

– Ei, Tony – ela disse, esticando-se no corredor entre os cubículos. – Posso emprestar seu...

O cara jogou a chave sem nem mesmo parar de falar ao telefone. Quando ela mandou um beijo, ele agarrou o ar e beijou de volta.

Saindo apressada da redação, Mels entrou no carro de Tony e dirigiu para o centro da cidade, usando um caminho que... olha só, passava pelo hotel Marriott.

E digamos que ela estava uma meia hora adiantada de seu encontro com o Boca.

Por pura sorte, encontrou uma vaga apertada bem em frente à entrada do saguão. Precisou de duas tentativas para colocar o carro no lugar – sua habilidade para fazer balizas já não era a mesma desde que se mudara para Caldwell.

Além disso, a culpa que sentia por perseguir Matthias também não estava ajudando.

Enquanto entrava no saguão, pensou que alguém da segurança iria barrá-la a qualquer momento, mas ninguém prestou muita atenção nela – o que a fez pensar quantas outras pessoas entravam e saíam despercebidas dali.

No elevador, subiu até o sexto andar junto com um homem de negócios cujo terno antiquado e olhos vermelhos sugeriam que acabara de chegar de um longo voo noturno. Talvez até tivesse vindo batendo as próprias asas.

Ao chegar no andar, virou à esquerda e andou pelo corredor acarpetado. Bandejas do serviço de quarto estavam ao lado das portas, como traiçoeiros tapetes de boas-vindas com seus pratos sujos, canecas vazias e guardanapos manchados. Ao final do corredor, um carrinho da camareira estava estacionado em frente a uma porta aberta, que vazava luz iluminando pacotes de papel higiênico, toalhas dobradas e várias latas de spray.

A porta de Matthias ainda tinha o sinal de “não perturbe” pendurado, e Mels entendeu que aquilo significava que ele ainda não fizera o check-out. Colando a orelha na porta, rezou para ele não escolher aquele momento para sair.

Não ouviu água correndo. Nem som de televisão. Nenhuma voz profunda ao telefone.

Ela bateu na porta. Depois bateu um pouco mais forte.

– Matthias – ela disse. – Sou eu. Abra a porta.

Enquanto esperava por uma resposta que não veio, Mels olhou para a camareira que saíra com um saco de lixo na mão. Por um instante, considerou mentir dizendo que tinha esquecido a chave do quarto, mas, em um mundo pós-onze de setembro, sentiu que isso não iria funcionar – e poderia acabar sendo expulsa do hotel.

Bom, isso dizia muito sobre sua bússola moral: o problema nem era a invasão de privacidade, mas sim o medo de ser descoberta.

Com desgosto de si mesma e brava com Matthias, Mels voltou para o elevador. Quando chegou no térreo, sua intenção era marchar até o carro de Tony, dirigir e chegar realmente cedo em seu encontro com Monty e sua boca grande.

Em vez disso, ficou perambulando casualmente no saguão do hotel, olhando as vitrines da loja de conveniência, passando pelo spa...

Porque, claro, ele estaria comprando toalhas e recebendo massagens com duas rodelas de chuchu nos olhos. Óbvio.

Quando chegou ao restaurante que estava aberto, Mels estava quase abandonando a busca, mas então deu uma última olhada lá dentro...

Do outro lado das mesas de jantar, sentado ao lado de uma janela, Matthias estava comendo junto com uma morena que usava um vestido verde-limão.


Quem era ela...?

Era aquela enfermeira? Do hospital?

– Gostaria de mesa pra um? – disse o recepcionista do restaurante.

Claro que não – a menos que a mesa tivesse um saco para vômito.

– Não, obrigada.

A morena começou a rir, jogando a cabeça para trás e deixando o cabelo voar para todo lado. Ela era tão perfeitamente bonita, como se fosse uma fotografia retocada em todos os lugares certos.

Era difícil dizer em que Matthias, sentado à sua frente, estava pensando, e em um momento absurdo de possessividade Mels ficou contente por ele estar usando os óculos escuros dela. Como se aquilo fosse um jeito de demarcar seu território.

– Então veio para se encontrar com alguém? – disse o recepcionista.

– Não – ela respondeu. – Acho que ele está ocupado.


CAPÍTULO 23

A risada de Dê era... bem, para falar a verdade, era divina. Ao ponto de até fritar um pouco o cérebro de Matthias: ele nem conseguia lembrar o que ela dissera de tão engraçado.

– Então, como está sua memória? – ela perguntou.

– Falhando.

– Ela vai voltar. Faz o quê, uns dois dias desde o acidente? – ela se ajeitou quando chegou seu prato com ovos mexidos, salsicha, torrada e batata assada. – É só dar um pouco de tempo.

O pão com manteiga que chegou para ele parecia anêmico em comparação com o prato dela.

– Tem certeza de que é só isso que você quer? – ela gesticulou com o garfo. – Você precisa ganhar peso. E eu acredito que um bom café da manhã é a melhor maneira de começar o dia.

– É bom estar com uma mulher que não é enjoada com comida.

– Pois é, eu sou assim, como de tudo – ela fez um sinal chamando o garçom novamente. – Ele vai querer um prato igual ao meu, obrigada.

Parecia falta de educação dizer que ele explodiria se comesse tudo aquilo, então apenas colocou de lado o pão com manteiga. Ela provavelmente estava certa. Matthias se sentia sem energia e desconectado: o sanduíche que comera com Mels já havia sido digerido faz tempo, graças àquele ninja cretino que apareceu do nada atirando.

– Não espere por mim – ele disse.

– Eu não ia esperar.

Matthias sorriu friamente e passou um tempo olhando ao redor no salão do restaurante. A maioria das pessoas era exatamente o que se esperava encontrar em um hotel daquele tipo... exceto por um sujeito no canto que parecia seriamente fora de lugar: estava usando um terno mais bem cortado do que qualquer outro ali, e parecia fora de moda até para quem não entende dessas coisas.

Caramba, aquela roupa parecia ser própria para uma festa dos anos 20 – talvez tivesse até sido criada nessa época...

Como se percebesse que estava sendo observado, o homem levantou os olhos, com uma aparência aristocrática.

Matthias voltou a se concentrar em sua companhia. Dê cortava a comida com movimentos precisos do garfo, cujas pontas penetravam com facilidade nos ovos mexidos e na batata.

– Às vezes, não lembrar pode ser uma coisa boa – ela disse.

Pois é, ele pensou, sentia que isso era particularmente verdade em se tratando de sua vida. Deus, se aquela história que Jim contou fosse verdade...

– E eu não tive intenção de ser evasiva quanto ao meu pai – ela continuou. – É só que... eu não gosto de pensar nele – baixou o garfo no prato e ficou observando a janela. – Eu faria qualquer coisa para esquecer meu pai. Ele era... um homem violento... malvado e violento.

Com um movimento rápido, o olhar dela voltou a se fixar nos olhos dele.

– Sabe do que estou falando? Matthias...

De repente, surgiu outra daquelas dores de cabeça, invadindo seus pensamentos e acumulando em suas têmporas, como duas pontadas de dor em cada lado da cabeça.

Ele viu, vagamente, que os perfeitos lábios vermelhos de Dê se moviam, mas não ouvia as palavras: era como se tivesse saído do corpo... e então, o próprio restaurante começou a recuar, como se as paredes estivessem sendo puxadas para trás e desaparecendo ao longe, até que repentinamente Matthias já não estava mais no Marriott, mas em algum outro lugar.

Estava no segundo andar de uma casa de fazenda forrada por tábuas de madeira no chão, paredes e teto. A escada à sua frente era íngreme, e o corrimão feito de pinho já estava escurecido pelas inúmeras mãos que o usaram como apoio.

O ar estava parado e abafado, embora não fizesse calor.

Matthias olhou para trás e encontrou um quarto que reconhecia como seu. As duas camas tinham cobertores diferentes e nenhum travesseiro... a escrivaninha tinha arranhões e os puxadores estavam caindo... não havia tapete. Mas, na pequena mesa perto de onde dormia, havia um rádio novo em folha que parecia completamente fora de lugar, com detalhes em imitação de madeira e um botão prateado.

Olhando para baixo, notou que vestia calças rasgadas com bainhas enroladas que deixavam os pés expostos; a mesma coisa acontecia com as mãos, que pareciam gigantes comparadas com os magros antebraços – suas extremidades estavam grandes demais em relação ao resto do corpo.

Lembrou-se desse estágio em sua vida e entendeu que era um jovem. Catorze ou quinze anos...

Um som o fez virar a cabeça.

Um homem estava subindo a escada. Seu sobretudo estava sujo; o cabelo estava liso de suor, como se um chapéu ou boné o tivesse coberto por muito tempo; as botas soavam alto.

Um homem grande. Um homem alto.

Um homem mau.

Seu pai.

De uma só vez, tudo mudou: sua consciência separou-se da carne de tal maneira que não era mais capaz de controlar o corpo, a direção de sua vida parecia ter sido tomada por outra pessoa.

Tudo o que podia fazer era olhar através dos próprios olhos quando seu pai subiu o último degrau e parou.

Aquele rosto tinha ficado exposto ao clima por tanto tempo que agora parecia revestido de couro bovino, e havia um dente faltando quando ele sorriu como um assassino em série.

Seu pai ia morrer, pensou Matthias. Aqui e agora.

Por mais improvável que fosse, dada a diferença de tamanho entre eles, o homem iria ao chão e estaria morto em questão de minutos...

De repente, Matthias sentiu a si mesmo começar a falar, seus lábios formando sons que ele não registrava, mas que tinham impacto em seu pai.

A expressão mudou, o sorriso sumiu, o dente faltando desapareceu quando a boca do pai se fechou. A raiva fez aqueles olhos azuis elétricos ficarem estreitos, mas isso não durou muito. Uma onda de choque se seguiu. Como se ele estivesse muito confiante sobre algo, mas agora não tivesse mais tanta certeza.

E, enquanto isso, Matthias continuava a falar devagar e com fimeza.

Foi ali que tudo começou, pensou consigo mesmo: aquele homem, aquele homem do mal com quem vivera sozinho por tempo demais, aquele cretino nojento que o “criou”. Mas agora era hora do acerto de contas, e sua versão mais jovem não sentia nada enquanto falava aquelas palavras, sabendo muito bem que estava finalmente enfrentando o monstro.

Seu pai agarrou a frente do próprio sobretudo, bem acima do coração, apertando o tecido com as unhas cheias de sujeira.

E Matthias continuou a falar.

Até o outro cair ao chão. Seu pai caiu de joelhos, a palma da mão livre escorregando do corrimão, a boca abrindo-se tanto que os outros dentes que faltavam no fundo também ficaram expostos.

Ele nunca achou que seria pego. Foi isso que o matou.

Bom... tecnicamente, a causa da morte foi um infarto no miocárdio. Mas a causa verdadeira foi o fato de que o segredo sujo que compartilhavam fora revelado.

A morte levou todo o tempo que precisava.

Enquanto seu pai agonizava deitado de costas, as mãos agora apertando a axila esquerda, que doía como o diabo, Matthias ficou parado onde estava e assistiu o processo se desenrolar. Aparentemente, respirar estava cada vez mais difícil, o peito subia e descia sem muito efeito; debaixo do bronzeado, a cor de seu pai estava sumindo.

Quando a vista voltou a mostrar o quarto, Matthias entendeu que ele se virara e estava andando em direção ao rádio, que ligou enquanto se sentava. Ainda podia enxergar seu pai lutando como uma mosca presa em um parapeito, os membros se contraindo de um lado para outro, a cabeça arqueando para trás como se pensasse que um ângulo diferente pudesse ajudar com a respiração.


Mas não ajudaria. Mesmo um garoto de quinze anos da fazenda sabia que, se o coração não estivesse bombeando, cérebro e órgãos vitais falhariam, não importava quanto ar ele tentasse puxar.

Lá no campo, o rádio pegava apenas cinco estações, e três eram religiosas. As outras duas tocavam música country e pop, então ficou virando o botão, indo e vindo entre elas. De tempos em tempos, apenas porque sabia que seu pai logo iria encontrar o Criador, ele deixava um sermão ecoar pela casa.

Matthias não sentiu nada além de frustração por não conseguir encontrar um rock pesado para tocar. Achava que um Van Halen combinava mais com a demorada morte de seu pai do que um cretino como Conway Twitty ou Phil Collins.

Fora isso, ele estava sereno como um lago, forte como concreto.

Caramba, ele nem se importava que aquilo significasse o fim dos abusos. Queria apenas saber se era capaz de se livrar do velho, como se a empreitada fosse um projeto da escola: ele planejou, colocou as peças no lugar e então acordou naquela manhã e decidiu empurrar a primeira peça do dominó.

E conseguiu, graças a sua professora muito religiosa, maleável e de bom coração.

No corredor da escola, ele chorou na frente dela enquanto contava sobre o inferno no qual vivia, mas aquele show de lágrimas era apenas para lhe dar uma motivação extra. Na verdade, a grande revelação não causou mais emoção nele do que uma troca de roupa: enquanto manipulava a professora com a verdade, em seu interior ele estava frio como gelo, sem sentir nem satisfação pela primeira parte do plano realizada, nem excitação por aquilo estar finalmente acontecendo.

O resto aconteceu rápido, e essa velocidade foi a única coisa que não esperava: ele foi mandado imediatamente para a enfermaria, depois a polícia chegou, papéis foram preenchidos e enviados, e lá se foi Matthias para as mãos do sistema.

As autoridades enviaram apenas mulheres para tratar dele, como se isso fosse deixar as coisas mais fáceis. Principalmente durante os exames físicos – que eles achavam que seriam realmente perturbadores para Matthias.

E quem era ele para não fazer o que eles queriam?

Entretanto, não esperava mesmo ser mandado para um lar adotivo em menos de duas horas.

Acontece que a única coisa que realmente queria era aquela parte, o acerto final com seu pai deitado ali no chão – e foi preciso escapar e roubar um carro para chegar antes que a polícia levasse seu pai para a prisão, quando o homem voltasse do trabalho nos campos de milho. Tudo teria sido em vão se ele estragasse essa parte.

Mas funcionou perfeitamente.

Nos últimos momentos da vida miserável de seu pai, Matthias virou o botão do rádio para uma das estações religiosas – e parou por um momento. O sermão era sobre o Inferno.

Parecia apropriado.

Ele assistiu quando o último suspiro surgiu e a calmaria prevaleceu. Era tão estranho, um ser humano repentinamente passando para o outro lado, um ser vivo tornando-se indistinguível de uma torradeira, um tapete, ou até mesmo um rádio relógio.

Matthias esperou mais um pouco até aquele rosto tornar-se completamente cinza. Então levantou, tirou o rádio da tomada e colocou-o debaixo do braço.

Os olhos de seu pai estavam abertos e encaravam o teto, da mesma maneira que ele próprio fizera por muitas noites durante o passar dos anos.

Matthias não mostrou o dedo do meio, não cuspiu nem chutou o corpo. Apenas passou por ele e desceu as escadas. Seu último pensamento enquanto deixava a casa era que aquilo tinha sido um interessante exercício mental...

E queria saber se conseguiria fazer de novo.

– Matthias?

Deixando escapar um grito, ele pulou em sua cadeira. O restaurante ressurgiu ao seu redor, as paredes se reergueram, o som ambiente de pessoas comendo e conversando voltou a ser registrado por seu cérebro.

Quando as pessoas olharam para ele, Dê se inclinou e disse:

– Você tá bem?

Seu belo rosto mostrava uma perfeita expressão de compaixão, os lábios entreabertos como se a aflição dele dificultasse sua respiração.

O afastamento que o seu eu jovem sentira voltou a ocupar um lugar em seu peito, como se a memória tivesse calibrado seu motor interno, reajustando-o, como um carro que precisa de alinhamento. Encarou a mulher com distanciamento, uma fria objetividade que os separava mesmo estando a poucos metros um do outro.

Emoções podiam ser facilmente fingidas. Ele sabia muito bem disso.

O sorriso que mostrou a ela parecia diferente em seu rosto – mas ao mesmo tempo era muito familiar.

– Estou muito bem.

O garçom se aproximou naquele momento trazendo o grande café da manhã e, quando o colocou na mesa, Matthias podia jurar que viu Dê recostar-se e sorrir de satisfação.


De pé ao lado do recepcionista do restaurante, Mels estava cansada de bancar a perseguidora. O fato de ela ter vindo até o hotel já era razão suficiente para se sentir mal, mas agora que o encontrara com aquela enfermeira... Tinha duas razões para se sentir mal: não respeitava a si mesma, e aquela outra mulher era tão bonita quanto a Sofia Vergara, só um tolo não veria isso.

Quando um prato do tamanho de um ônibus foi colocado na frente de Matthias, ele olhou para sua companheira com um sorriso maroto e...

A cabeça dele virou sem motivo, bem quando Mels estava prestes a dar meia-volta.

Seus olhos se encontraram e instantaneamente aquela expressão cínica dele se transformou em algo que Mels não conseguia interpretar – mas ela disse a si mesma que não se importava.

Tanto faz. Aquilo não era da sua conta.

E ela não faria nenhuma cena. Em vez disso, se dirigiu calmamente para a porta giratória do saguão...

– Mels! – ouviu um grito vindo de trás.

Não dava para fingir que ele não estava vindo atrás dela, e, além disso, ela não tinha razão para ignorá-lo.

– Eu não queria interromper seu café da manhã – ela disse quando parou e deixou ele se aproximar. – E estou a caminho de uma reunião. Quando você não atendeu o telefone, pensei em parar um pouco no hotel.

– Mels...

– Aquela história que você me pediu pra checar é verdadeira. A única diferença é que o nome é escrito com um “e”. O certo é Childe. O filho morreu de overdose, e o pai estava presente quando aconteceu. A filha ainda está viva... é uma advogada em Boston. O pai trabalha para o governo, em vários cargos. Pelo menos, é isso que consta nos jornais. Não sei de informações que não sejam públicas – enquanto ele apenas a encarou, Mels levantou o queixo. – Bom, o que esperava que eu encontrasse?

Ele esfregou o rosto como se estivesse com dor de cabeça.

– Não sei. Eu... quando o filho morreu?

– Não faz muito tempo. Dois anos e meio, acho...

– Seu café da manhã está esfriando.

Mels olhou para a enfermeira. A mulher olhava apenas para Matthias enquanto se aproximava, como se ele não estivesse falando com mais ninguém.

Certo, ela parecia fantástica com aquele vestido. Seu corpo transformava algo essencialmente recatado em um grande show sexy...

Repentinamente, Mels lembrou daquele episódio de Seinfeld com a Terri Hatcher... é, aqueles seios eram provavelmente reais e espetaculares. Já Mels tinha de usar sutiãs com armação para levantar um pouco os seus...

– Eu estava mesmo indo embora – Mels disse. – Ou vou me atrasar para minha reunião.

A enfermeira lançou um olhar dispensando-a, com aqueles olhos castanhos dizendo não apenas “vai logo embora”, mas também “dane-se você”.

– Vem, vamos voltar pra mesa.


Matthias apenas continuou encarando Mels, ao ponto de ela pensar que ele tentava dizer algo. Mas ele tinha ovos frios e pernas quentes para se preocupar, então seu prato já estava cheio sem Mels para atrapalhar.

Ela acenou para os dois e saiu pela porta em direção à rua.

O sol brilhava enquanto Mels andava até o carro de Tony. O interior do sedã estava quente. Ajeitando-se no banco do motorista, ela deu um sermão em si mesma antes de girar a chave – mas aquilo não ajudou em nada.

Nem mesmo a parte sobre como um homem misterioso e não disponível tinha muito mais chances de, segundo seu instinto de repórter, parecer muito mais atraente do que um cara normal qualquer – mas ser atraente não fazia dele uma boa opção.

Talvez fosse por isso que ela ainda estava solteira. Não era por falta de convites para sair. Provavelmente tinha mais a ver com o fato de que os homens que a convidavam para sair tinham empregos fixos, aparência boa o suficiente... e memórias.

Nada de mistério, nada de emoção.

Ela tinha de gostar de um cara com um passado nebuloso e uma companheira de café da manhã que tinha corpo de Barbie e cabelo de comercial de TV.

Saudável, muito saudável.

Mels deu a partida no carro e entrou no trânsito: seu encontro com Monty, o Boca, estava marcado em um parque a sete quarteirões dali.

Pelo menos a sincronia de tudo estava a seu favor: se tivesse de voltar à redação e encarar a tela do computador fingindo que trabalha, ela acabaria louca.

Malditos homens, pensou consigo mesma ao encontrar uma vaga, e desta vez fez uma baliza melhor.

Seguiu as instruções que recebeu – toda aquela história com Monty parecia saída de filmes de espionagem, com ela o encontrando em um banco debaixo de um bordo específico. Só precisava de um jornal para se esconder e uma senha secreta para entrar definitivamente no mundo de James Bond.

Monty chegou dez minutos depois, vestindo roupas civis que o faziam parecer um cafajeste qualquer. Ele estava de bom humor: essa coisa de espionagem claramente produzia o drama que ele necessitava.

– Ande atrás de mim – ele disse, com a voz baixa, ao passar por ela.

Ah, isso era ridículo!

Mels levantou quando ele estava a uns três metros. Ela caminhou mantendo o ritmo de Monty, se perguntando por que diabos estava se submetendo àquilo.

Depois de andarem um pouco, chegaram ao leito do rio, ao lado de um grande embarcadouro com estilo vitoriano onde as pessoas podiam ancorar suas canoas e barcos nos meses mais quentes.

Quando ela entrou, seus olhos levaram um segundo para se acostumar à escuridão: as janelas em forma de diamante não deixavam entrar muita luz do sol, as prateleiras cheias de remos, as pilhas de boias e as velas enroladas faziam o lugar parecer completamente lotado. E também era barulhento, em certo sentido: por toda parte, as ondas do rio batiam nas paredes do lugar e o som ecoava pelos espaços vazios debaixo do grande teto...

De repente, um bando de andorinhas voou de seu ninho, passando em rasante sobre eles antes de escapar pela janela, ganhando o céu.

Quando seu coração voltou a bater no ritmo normal, Mels disse:

– Então, o que você tem pra mim?

Monty lhe entregou um grande envelope.

– Imprimi isto em casa hoje de manhã.

Mels retirou o clipe de metal e abriu o envelope.

– Quem mais sabe sobre isto?

– No momento, apenas eu e você.

Uma a uma, ela retirou três fotos coloridas, todas da vítima: a primeira era de corpo inteiro com a camisa no lugar, a segunda mais aproximada e com a camisa levantada, a terceira em close mostrando o que parecia ser uma série de símbolos.

Cecília Barten.

Esse foi o nome que surgiu na mente de Mels enquanto examinava as imagens: Sissy fora outra garota, mais jovem e muito, muito longe de uma vida na qual ser assassinada fosse um dos ossos do ofício. Seu corpo fora encontrado recentemente em uma pedreira, com o mesmo tipo de símbolos gravados no abdômen. Sua garganta também fora cortada. E ela era loira.

– Você viu as fotos da cena do crime, não é? – perguntou Monty.

– Sim – Mels voltou a olhar a foto dos símbolos. – A pele estava vermelha, mas não havia nada disso. Então, me conte, de modo extraoficial se você preferir: como isso aconteceu? Você disse que foi um dos primeiros a chegar...

– Fui o primeiro a chegar. Fui com o gerente até o quarto e prontamente comecei os procedimentos de rotina. Isolei a porta e chamei reforços.

– Onde estava sua parceira?

– Ela estava doente, então eu saí sozinho. Corte de gastos, sabe como é. Nada de substitutos. Tanto faz, enquanto eu esperava, tirei essas fotos.

Ela odiava gente que falava tanto faz.

– Você mexeu na camisa.

– Eu estava examinando o corpo e a cena, seguindo os procedimentos normais.

Pervertido.

– Mas por que tirou as fotos se a fotógrafa oficial estava pra chegar?

– A verdadeira pergunta é: o que aconteceu com os símbolos?

Caramba, aquilo não estava cheirando bem, pensou Mels.

Olhando em seu rosto, ela perguntou:

– Então, o que posso fazer com isto?

– No momento, nada. Não quero ser acusado de adulterar o corpo.

Mas você fez exatamente isso, ela pensou consigo mesma.

– Então por que está me dando as fotos?

– Alguém tem que saber. Talvez eu fale com De la Cruz... ou talvez você possa publicar no jornal e dizer que as fotos são de uma fonte anônima. O negócio é que o horário da morte foi dado como perto das cinco ou seis horas, então o assassinato aconteceu logo depois que o sei-lá-quem pagou e entrou no quarto. Quando eu cheguei eram quase nove e quinze. Isso deixa quatro horas e meia para alguém ter entrado e saído de lá.

Mas o que ele não percebia, talvez de propósito, era o fato de que aqueles símbolos tinham desaparecido entre o momento em que ele chegara à cena do crime e o momento das fotos oficiais. O corpo não podia ter ficado muito tempo sozinho, e cicatrizes não desaparecem simplesmente.

Aquilo realmente não estava cheirando bem.

– Certo, só me diga o que posso publicar sem te trazer problemas – ela disse. – Quando você quiser.

Ele assentiu como se tivessem fechado um acordo e começou a andar.

– Espera um pouco, Monty, tenho uma pergunta rápida sobre outro assunto.

Ele parou na porta.

– O que foi?

– Sabe aquele homem que foi encontrado morto no Marriott?

– Ah, aquele cadáver na entrada de serviço? Que depois desapareceu do necrotério?

Mels parou de respirar.

– Como é?

– Você não ficou sabendo? – ele se aproximou novamente. – O corpo sumiu. Hoje de manhã.

Impossível.

– Foi roubado? Do necrotério do Hospital St. Francis?

– Aparentemente.

– Como uma coisa dessas pode acontecer? – quando Monty deu de ombros, ela balançou a cabeça, pois sabia que, seja lá o que acontecera com o corpo, boa coisa não era. – Bom, espero que encontrem. Escuta, você por acaso sabe que tipo de balas eles encontraram no colete que a vítima estava vestindo?

– Calibre quarenta.

– E ouvi falar que tinha uma tatuagem no corpo?

– Não sei. Mas posso descobrir.

– Eu agradeço.

Ele deu uma piscadela e um sorriso maroto.

– Sem problema, Carmichael.

Quando ficou sozinha, Mels observou as fotos novamente, uma a uma... e deduziu que Caldwell provavelmente tinha outro assassino serial em suas ruas.

Não era exatamente o tipo de segurança do trabalho que ela e os policiais esperavam.

E começou a suspeitar que talvez fosse alguém da própria força policial.


CAPÍTULO 24

Quando Devina dobrou seu guardanapo ao lado do prato vazio do café da manhã, ela sorriu para sua vítima, que estava sentada do outro lado da mesa. De uma forma geral, as coisas até que iam bem. A memória de Matthias estava voltando, e a lembrança que ela destravara sobre o pai dele trouxera de volta aos seus olhos o tipo de brilho que ela gostava de ver.

Seu velho pai fora essencial, é claro: fora o início da maldade, uma prova definitiva de que a infecção podia acontecer mesmo de humano para humano, e não apenas de demônio para humano.

Mas ela precisava ter cuidado ao mexer nesse vespeiro.

– Eu pago a conta – disse Matthias, levantando o braço para chamar o garçom.

– Você é um perfeito cavalheiro – ela colocou a mão dentro da bolsa e começou a contar seus batons da esquerda para a direita. – Estou feliz por termos encontrado um ao outro.

... três, quatro, cinco...

– Foi um golpe de sorte – ele olhou para a janela, como se estivesse fazendo planos. – Quais seriam as chances disso acontecer?

... seis, sete, oito...

– O que você vai fazer hoje? – ela perguntou, seu coração batendo mais forte enquanto o fim da contagem se aproximava.

... nove, dez, onze...

Ele respondeu, mas ela não prestou atenção, pois estava quase acabando de contar.

Doze.

Treze.

Deu um suspiro, pegou o último tubo e tirou a tampa. Encarando Matthias, ela o fez olhar para sua boca enquanto expunha a ponta vermelha do batom e passava lentamente pelos lábios.

Ele fez exatamente o que ela queria, mas a resposta não foi a que desejava: a reação dele foi mais clínica do que sexual. Como se ela fosse um instrumento que Matthias estava considerando brevemente se usaria ou não.

Devina franziu a testa. Quando ele disparou atrás daquela repórter, não havia nada dessa frieza distante. Mesmo vestido ele parecia nu, focado naquela mulher como se ela estivesse dentro dele, em vez de ser algo separado e distinto.

O demônio apertou e soltou os lábios, sentindo a boca voltar a mostrar a maciez de sempre – e, para ter certeza que ele entendera a intenção, ela inseriu em sua mente um pensamento sobre aquela boca envolvendo seu pau, chupando, sugando e engolindo.

Não funcionou.

Ele apenas olhou para o garçom, pegou a conta e escreveu o número de seu quarto.

Uma forte lufada de vento estremeceu as janelas e seu som fez todos no restaurante levantarem a cabeça, incluindo Matthias. Sentada em frente a ele, Devina fervilhava de raiva. Seu ódio se manifestou e tocou os elementos lá fora, atraindo uma ventania do Sul.

Tudo o que ela conseguia pensar era em como Jim a enganara – e agora esse cretino aleijado, que voltaria para o Inferno assim que a rodada terminasse, também a estava esnobando.

Cretinos. Os dois eram grandes cretinos.

Ela se levantou e pendurou a bolsa no ombro.

– Até quando você vai ficar hospedado aqui?

– Não por muito tempo.

Era verdade. As coisas estavam acontecendo com muita velocidade, mesmo que ele não estivesse ciente, e esta rodada terminaria rapidamente.

Talvez Devina devesse levá-lo para o quarto e lembrá-lo de que era um homem e não um robô – e aquela “dificuldade” não seria problema desde que estivesse com ela.

Boa sorte com aquela repórter nesse quesito, pensou ela.

– Vou sair agora – ele disse, como se a estivesse dispensando.

Devina estreitou os olhos e então lembrou que estava representando um papel.

– Bom, tenho certeza de que vou te encontrar por aí.

– Parece que sim. Boa sorte com sua mãe.

Quando ele se virou, ela quis transar com ele por outras razões além daquela rodada. Matthias tinha o mesmo tipo de força – e a mesma personalidade elusiva – de Jim.

Ela deveria ter prestado mais atenção nesse homem na época em que o possuía. Felizmente, ele logo voltaria para casa.

Nesse meio tempo, Devina precisava cuidar daquela repórter. Ela não precisava desse tipo de influência no jogo.

E acidentes acontecem a toda hora. O Criador não poderia culpá-la por isso.


Matthias tomou um táxi até a sede do Correio de Caldwell e esperou no estacionamento atrás do edifício. Ele deduziu que Mels tinha emprestado o Toyota para ir até o hotel e, de fato, aquela lata-velha não estava estacionada junto com os outros carros velhos cheios de lixo.

Parecia até que ter um carro caindo aos pedaços fazia parte da profissão de jornalista.

Ficou ao lado da porta dos fundos, encostado na parede e apoiando-se na bengala. No céu, nuvens cobriram o sol e sombras tomaram conta do lugar enquanto a noite se anunciava.

Ele estava sendo observado.

Não pelas pessoas que surgiam e sumiam pela saída... ou pelos fumantes que baforavam por alguns minutos e voltavam para dentro... ou pelas pessoas dirigindo pelo estacionamento lotado à procura de uma vaga.

Havia alguém observando-o constantemente, em posição fixa, à sua direita.

Poderia ser alguém em um daqueles carros alinhados na rua ao lado do estacionamento. A única outra opção era o telhado do edifício do outro lado da rua, já que as paredes não tinham janelas.

Ele precisava conseguir um pouco de munição. Sem balas, a arma calibre quarenta com silenciador que ele pegara “emprestado” de Jim servia apenas para golpear – o que não era exatamente inútil, mas não era a mesma coisa que um projétil mortal de longa distância.

O Toyota que ele esperava apareceu na curva e entrou. Quando o carro parou bruscamente, Matthias soube que Mels o avistara.

Ela estacionou na primeira vaga disponível, saiu do carro e se aproximou com a cabeça erguida e os cabelos balançando ao vento.

– Está queimando as calorias do seu café da manhã com uma boa caminhada? – ela perguntou.

Uma sutil pontada em seu peito surgiu quando ele a olhou nos olhos, e aumentou gradualmente, chegando até a dificultar sua respiração.

– Sinto muito – ele disse com a voz rouca.

– Pelo quê?

Tudo que ele conseguiu fazer foi balançar a cabeça, pois sua voz sumira. Aquela clareza fria e calculada que sentira após ser atingido pelas visões do passado havia sumido. Em seu lugar, havia uma sensação de impotência, como se ele fosse uma fortificação que perdeu a linha de defesa.

– Matthias, você está bem?

O que veio a seguir simplesmente aconteceu: ele se aproximou e colocou as mãos ao redor da cintura dela... e então a abraçou, mergulhando o rosto em seus cabelos soltos e perfumados.

– O que aconteceu? – ela disse suavemente enquanto acariciava as costas dele.

– Eu não... – que droga, ele estava fora de si. – Não posso...

– Está tudo bem...

Eles ficaram abraçados por um tempo enquanto trovões ecoaram, como se o céu não os aprovasse, e relâmpagos rasgaram o ar por baixo da camada de nuvens escuras.

Que diabos ele estava fazendo? A verdade era que Matthias queria ficar ali para sempre: quando abraçava o corpo quente daquela quase estranha, não havia passado nem futuro, apenas o presente, e aquela falta de um horizonte ou paisagem era o abrigo de que ele necessitava no momento.

A chuva começou a cair em grandes gotas, ao ponto de sentirem como se fossem atingidos por pedregulhos.

– Vem pra dentro – ela disse, tomando sua mão e usando um cartão de identificação para entrar no prédio.

Um estranho perfume químico invadiu o nariz dele. Mas não era nenhum produto de limpeza; Matthias estava sentindo o cheiro da tinta nas prensas.

– Aqui – ela disse, virando a maçaneta e empurrando a porta vermelha com o quadril.

A sala de reunião tinha cadeiras desiguais e uma longa mesa. Nada ali combinava, o lugar parecia um verdadeiro Frankenstein de móveis de escritório. Mas havia um bebedouro em um canto, e Mels trouxe um copo de água.

– Beba isto.

Matthias fez o que ela pediu e, enquanto bebia, fez o possível para se recompor.

Mels sentou em cima da mesa deixando as pernas balançarem de lá para cá vagarosamente.

– Converse comigo.

Mas que droga, como poderia contar o que aconteceu? O que é que ele estava fazendo ali, afinal?

Bom, pelo menos sabia a resposta para essa última pergunta. Ele queria ser honesto com uma pessoa. Finalmente. Precisava apenas fazer uma conexão com ela, como se Matthias estivesse em queda livre e Mels fosse uma corda para ser agarrada, e as palavras que ele precisava dizer fossem sua maneira de lutar pela vida.

– Eu matei meu pai.

Os pés dela pararam em meio ao balanço, os ombros ficaram tensos.

– Depois de muitos anos em que ele... – fale. Vamos, fale. Fale, seu idiota! – Ele era um homem violento, e bebia muito. Coisas... aconteceram. Coisas que não deveriam acontecer e eu...

O olhar no rosto dela gradualmente mudou, voltando a mostrar compaixão.

Mas, quando parecia que ela colocaria os pés no chão para abraçá-lo, Matthias levantou as duas mãos.

– Não, eu não posso... não vou conseguir terminar de falar se você me tocar.

– Certo – ela respondeu vagarosamente.

– Nem sei por que estou contando isso.

– Não precisa ter uma razão.

– Sinto que deveria ter.

– Você sabe que pode confiar em mim, não é? Posso ser repórter, mas eu estava falando a verdade quando disse que isso é apenas meu trabalho, e não quem eu sou.

– Sim – ele passou a mão nos cabelos e então tirou os óculos escuros. – Desculpa, mas preciso ter uma visão clara de você.

Ela franziu a testa.

– Não precisa pedir desculpa.

Ele mostrou o Ray-Ban e disse:

– Pensei que preferia que eu usasse os óculos. Você sabe, lá no restaurante... porque assim você não precisava olhar pro meu rosto.

– Não foi por isso que eu disse que você podia ficar com os óculos. Você não é feio pra mim, Matthias. Nem um pouco. E não precisa se esconder.

Por algum motivo, ele sabia que aquilo não iria durar. Sentia que quanto mais coisas ele lembrasse, pior seria a imagem de seu passado – como um quebra-cabeça que você achava que se tornaria uma linda paisagem, mas acaba sendo a horrível figura de Michael Myers, do filme Halloween.

– Eu denunciei ele – Matthias ouviu a si mesmo falar. – Falei com a minha professora, depois fui mandado para a enfermaria da escola, e eu contei tudo a eles, expliquei minhas faltas, os hematomas e... as outras coisas. Eu tinha quinze anos. Aguentei tudo calado até aquele ponto...

– Meu Deus, Matthias...

– ... mas então larguei mão de tudo, e o sistema entrou em ação. Ele teve um ataque do coração na minha frente quando eu contei que agora todo mundo sabia do segredo.

– E é por isso que você pensa que matou ele? Matthias, você não fez nada de errado.

– Sim, eu fiz. Assisti a morte dele. Não telefonei para a emergência, não corri para buscar ajuda, fiquei lá parado assistindo quando ele caiu na minha frente.

– Você era uma vítima de abuso e estava em estado de choque. Não é sua culpa...

– Eu fiz de propósito.

Agora ela franziu a testa novamente.

– Não estou entendendo.

– Eu não me importava com as coisas que ele fez comigo. Aquilo era mais uma chateação do que qualquer outra coisa – ele deu de ombros. – A coisa toda sobre a denúncia foi só um exercício mental pra mim. Entende? Eu conhecia ele muito bem – ele apertou as têmporas. – Eu conhecia a maneira como ele pensava, as coisas que o deixavam forte. Ele gostava de ser mal e ter poder sobre mim. Era um cara não muito esperto que trabalhava o dia todo com animais burros e espigas de milho. Quando ele precisava lidar com adultos do mesmo nível, seu complexo de inferioridade surgia. Ele ameaçava me matar se eu contasse pra alguém, e isso era seu inferno pessoal. Aquele segredo era muito importante pra ele, e não porque abusar de um filho é algo ilegal. Eu sabia que isso o afetaria além de parar com os abusos... e eu queria ver o que aconteceria.

– Espera, deixa eu perguntar uma coisa. Quanto tempo você passou vivendo com ele?

– Minha mãe morreu no parto.

– Então passou a vida inteira.

– Morei em outro lugar por um tempo, mas depois voltei a ficar com ele.

– Quando era pequeno.

– Sim.

– E não te ocorreu que naquela época você era apenas um garoto salvando a si próprio?

– Esse foi o resultado final, mas não era minha motivação. E é isso que me abala tanto.

Mels balançou a cabeça.

– Eu acho que você precisa aprender a se perdoar um pouco.

Ah, inferno, ela nunca entenderia. Matthias podia ver em seus olhos – ela já tinha cristalizado uma opinião sobre ele e nada mudaria aquilo.

– Matthias não é meu nome verdadeiro.

– Então como se chama?

Havia se lembrado. No café da manhã.

Ele a encarou por um longo tempo, observando o rosto, o pescoço, o corpo esguio... e então voltou aos olhos inteligentes.

Não compartilharia aquela informação. Não conseguiria.

E, no silêncio que se seguiu, ele sentiu uma necessidade esmagadora de ficar sozinho com ela novamente, e não em um lugar público. Em seu quarto. Naquela cama de hotel cujos lençóis cheiravam a limão. Ele queria mais um pouco dela antes de partir, como se ela fosse um remédio que o deixava vivo por mais um pouco de tempo.

Porque Matthias entendera que ia morrer logo.

Não era apenas paranoia. Era... inevitável, como se seu passado estivesse escrito em pedra.

– Meu tempo está acabando – ele disse suavemente. – E quero ficar com você antes de ir embora.

– Pra onde você vai?

– Pra longe – ele respondeu após um momento.


CAPÍTULO 25

Mels parou de respirar quando ficou convencida de que Matthias era uma das pessoas desaparecidas de Caldwell, mesmo ele possuindo carteira de motorista e, supostamente, uma casa. Ali na sua frente, olhando-a nos olhos, era como se ele nem estivesse na sala.

Esteve aqui por apenas uma fração de segundo e agora se fora para sempre.

– Por que está indo embora? – ele apenas balançou a cabeça, e ela perguntou: – É por causa disso que você não quer me dizer seu nome verdadeiro?

– Não, é porque não importa. São apenas sílabas. Não sou mais essa pessoa já faz muitos anos, é simplesmente irrelevante.

– Não tenho tanta certeza disso – ele deu de ombros, e ela teve de pressioná-lo. – E você não precisa ir pra lugar nenhum.

Ela não acreditava que as pessoas podiam saber do futuro. Se ele partisse, seria por vontade própria – e a decisão podia ser desfeita a qualquer momento. Por ele.

Exceto... o problema com aquele argumento era que Mels também sentia que os dois não teriam um final feliz. Eles haviam se encontrado por causa de um acidente. Suas vidas colidiram, e assim como o impacto, sua relação também não duraria muito.

Apenas os ferimentos seriam eternos.

Ela tinha uma terrível sensação de que nunca esqueceria os momentos que passara com aquele homem.

– Quanto tempo nós temos? – ela exigiu saber.

– Eu não sei.

Levantando da mesa, ela se aproximou, o envolveu com os braços e encostou o rosto no peito dele, ouvindo as batidas de seu coração. Quando Matthias a abraçou de volta, ela ficou imaginando por que sentia aquela conexão tão forte com ele. Todos os outros homens, os normais, nunca conseguiram realmente mexer com ela.

Mas este homem...

Matthias se inclinou para trás e tocou o rosto dela.

– Posso beijar aqui?

– Você quer dizer aqui no meu rosto ou aqui na sala de reunião?

– Bom, você trabalha aqui, então...

Ela pressionou os lábios contra os dele, silenciando-o. Quem se importava com o local onde estavam? Havia um monte de namoros entre funcionários, e pessoas traziam esposas, maridos e namorados pro trabalho a toda hora.

Além disso, se o chefe podia assediá-la sexualmente debaixo daquele teto, então Mels podia beijar ali o homem que realmente desejava.

Fechando os olhos, ela inclinou a cabeça e o beijou novamente, desta vez colando os lábios por mais tempo. E quando ele a beijou de volta, Mels desejou capturar aquele momento e torná-lo físico de alguma forma, para que pudesse segurá-lo com as mãos ou guardá-lo em um local seguro, como faria com um livro ou um vaso.

Mas a vida não é assim. As pessoas não podem guardar para sempre os momentos que as definem ou as emocionam – não é possível tocá-los com a palma da mão ou a ponta dos dedos. As maquinações do destino são tão elusivas quanto a ferramenta de um escultor, que surge de repente modelando contornos e depois parte para o próximo pedaço de argila.

Com um movimento decidido, Matthias subiu a palma da mão pelas costas dela até chegar em sua nuca, tomando controle. E quando sua língua lambeu entre os lábios de Mels, ela se abriu para ele, desejando que estivessem em um local privado quando o calor começou a se intensificar dentro dela, subindo por seu corpo cada vez mais rápido e quente...

Mels franziu a testa ao perceber que sua mão estava tocando algo duro nas costas de Matthias, na altura da cintura.

Não era parte de um suporte.

Não era nada médico.

Passando a mão por baixo da camisa ela encontrou... o cabo de uma pistola.

Mels puxou a arma para fora do coldre e se afastou.

Era uma pistola calibre quarenta, e ela rapidamente checou a câmara. Vazia. O mesmo com o carregador.

– Você não é a única que tem permissão de porte de armas – ele disse vagamente.

Ela entregou a automática de volta.

– Pelo visto não. Posso perguntar onde conseguiu isso?

– Eu comprei.

– E esqueceu a munição?

– Não veio junto no pacote.

– Sabe de uma coisa? A pessoa que morreu no seu hotel ontem à noite levou tiros de uma arma desse calibre.

– E você acha que fui eu porque estou sem munição.

Mels deu de ombros.

– Você me disse pra não me envolver porque eu poderia morrer. Você aparece com uma arma depois de alguém ser assassinado no Marriott. Não é preciso ser nenhum Einstein pra ver uma ligação aqui.

– Eu não matei aquele homem.

– Como sabe que era um homem?

– Apareceu em todos os jornais.

Mels cruzou os braços acima do peito e encarou o chão, pensando que nada de bom poderia sair daquela conversa, considerando a direção que estava tomando.

– Acho que é melhor eu ir embora.

– Pois é – ela disse.

Que grande decepção. De um beijo para uma discussão em menos de cinco segundos.

– Sinto muito – ele murmurou quando já estava na porta.

– Por que está pedindo desculpa?

– Não gosto de sair te deixando assim.

Bom, ela também não gostava nem um pouco.

Quando a porta se fechou, Mels se perguntou se o veria de novo – e deu mais um sermão em si mesma sobre manter a cabeça erguida e não deixar que sua libido a jogasse em situações perigosas.

Aquilo não era algo que seu pai aprovaria. Não era algo que mulheres inteligentes faziam.

Mas que droga...

Depois de chutar o próprio traseiro por quinze minutos, ela voltou para a redação, encheu uma xícara de café forte sem açúcar e retornou para sua mesa.

– Diga que você não bateu meu carro também.

Ela deu um sobressalto e olhou para Tony.

– O quê...? Ah, não. Aqui estão as chaves.

– Você parece ter saído de outro acidente.

Vai entender.

Ajeitando-se em sua cadeira, ela encarou a tela do computador.

– Você está bem? – perguntou Tony. – Precisa de um chocolate?

Mels riu.

– Acho que vou ficar no café mesmo, mas obrigada.

– Então, o que é que está te incomodando?

– Estou apenas pensando como é possível, fisiologicamente, que cicatrizes num cadáver possam sumir sozinhas.

Certo, não era a pergunta que realmente estava em sua mente, mas era uma boa substituta socialmente aceitável. Ela estava mesmo pensando naquilo em algum nível de sua consciência, e Tony era uma enciclopédia ambulante, portanto aquela era uma boa oportunidade para mencionar a questão.

Agora foi a vez dele se ajeitar e encarar o vazio enquanto pensava.

– Não é possível. Cicatrizes são cicatrizes.

– Então, como você explicaria dois conjuntos de fotografias, um que mostra marcas na pele e outro que mostra a pele sem as marcas?

– Fácil. Alguém usou Photoshop.

– É isso que estou pensando.

O que ela não entendia era o “porquê”. Embora suspeitasse do “quem”.

Mels deixou a cabeça pender para o lado. Qualquer alteração não poderia ter sido feita pela fotógrafa oficial – enquanto a mulher trabalhava, havia meia dúzia de homens no recinto. E, se ela mudasse alguma coisa nas imagens depois, eles teriam apontado para a discrepância no momento em que vissem as fotos.

Então restava Monty, um homem que masturbava seu ego falando com a imprensa quando não podia e tentando criar um drama onde não havia nenhum. Quais seriam as chances de ele adulterar as imagens apenas para se divertir?

Mels começou a agir, acessando os arquivos do Correio de Caldwell.

– Ou foi isso – Tony disse –, ou foi um caso de intervenção divina.

 

– Encontrei a tatuagem.

Às cinco da tarde, Mels tirou os olhos da versão final de seu artigo sobre a prostituta. Eric estava de pé à sua frente, com uma pasta na mão, um sorriso enorme no rosto.

– Da vítima do Marriott que desapareceu no necrotério?

– Exatamente.

– Deixa eu ver – ela disse, levantando a mão.

– É o desenho de... – ele entregou a foto. – Bom, não é meu estilo. Gosto mais das tribais.

Quando ela abriu a pasta, suas sobrancelhas se levantaram. A foto era colorida, mas nem precisava – pelo menos não considerando a tinta do desenho. A tatuagem mostrava o Ceifeiro da Morte em preto e branco, com detalhes assustadores... mesmo na foto, os olhos brilhantes sob o capuz rasgado e a mão esquelética apontando para quem olha pareciam se dirigir a ela especificamente.

– Bem macabro, né? – Eric comentou. – E o cemitério também ficou legal, você não acha?

Era verdade. A horrível figura estava de pé em um campo de lápides. As tumbas se estendiam até o horizonte e a túnica decrépita cobria e obscurecia o cenário, que parecia ser infinito.

– O que são esses traços marcados embaixo? – ela perguntou.

– Deve ser a contagem de alguma coisa... e com certeza não é a contagem de amores que ele teve, eu posso apostar.

– Pode ser relacionado a alguma gangue.

– É isso que eu estava pensando, principalmente porque, segundo a minha fonte, faz pouco tempo que outro corpo chegou no necrotério com algo parecido.

– O que a polícia pensa disso?

– Estou tentando descobrir agora mesmo.

Mels olhou para Eric.

– Você já procurou a imagem na internet?

– Existem milhares de representações do Ceifeiro da Morte na internet... algumas são tatuagens. Não encontrei nenhuma idêntica a essa, mas todas são meio parecidas, se é que isso faz sentido.

– Então, como sua fonte conseguiu isso? Ouvi dizer que o arquivo também tinha desaparecido.

O Hospital St. Francis estava uma loucura por causa do incidente; era como se o homem nunca tivesse entrado no sistema.

Alguém fizera um trabalho limpo. Muito limpo.

– Tenho um colega que gosta de tatuagens. Ele tirou as fotos no celular quando o corpo chegou.

– Que ótimo – ela murmurou enquanto voltava a olhar a pasta. – Então, se assumirmos que a tatuagem é de alguma gangue, o que diabos o cara estava fazendo vestindo um colete à prova de balas ultramoderno? E o desaparecimento? Gangues não são tão sofisticadas assim pra resgatar seus mortos invadindo um hospital dessa maneira, incluindo o sistema digital. Sem chance. A mesma coisa com a máfia.

Eric mastigou sua caneta Bic.

– Tem que ser algo do governo. Quer dizer, quem mais poderia fazer uma coisa dessas?

Ela pensou na pistola descarregada de Matthias.

– Ouvi dizer que as balas eram calibre quarenta.

– A arma que foi usada contra o cara? Sim. E a boa notícia é que a polícia guardou o colete, as roupas e as botas como evidências, então elas não sumiram, como o corpo – os olhos de Eric se estreitaram. – Então, agora você vai me dizer por que está tão interessada?


– A garota da minha história também morreu com a garganta cortada. – Embora, sendo realista, quais seriam as chances de as duas mortes estarem relacionadas?

– Ah, então você está colecionando ferimentos no pescoço?

– Estou apenas sendo detalhista.

– E como está saindo a história da prostituta? Alguma coisa nova?

– Estou trabalhando em algumas coisas.

– Me chame se precisar de ajuda.

– O mesmo para você.

Quando Eric foi embora, ela percebeu que a redação estava praticamente vazia. E seu prazo para entregar o artigo estava quase acabando.

Ela leu novamente a história, e ainda não estava satisfeita. Não havia nenhuma informação nova além da identidade da vítima e, quando Mels ligou para a família, recebeu uma resposta surpreendentemente desinteressada.

Como alguém poderia não ficar abalado com a morte de uma filha?

Mels não gostava de enviar seu material daquele jeito. Estava bem escrito, e a revisão automática fizera seu trabalho, mas a verdadeira história estava com Monty e suas fotos, e ela ainda não podia acrescentar nada daquilo.

Praguejando, clicou no botão enviar e jurou que chegaria até o fundo daquela história. Mesmo se não pudesse publicar nada.

Trocou de janela no computador e voltou a analisar uma montagem de duas imagens, que preparara uma hora antes: eram de marcas semelhantes gravadas na pele do abdômen. Uma era de Cecília Barten, encontrada morta na pedreira dos arredores da cidade há alguns dias... e a outra era a imagem do que Monty dizia ser a barriga da prostituta.

O padrão das marcas parecia algum tipo de linguagem: havia caracteres idênticos nas duas fotos, embora não estivessem na mesma sequência – o que em sua mente não descartava a teoria de que Monty alterara digitalmente as fotos. Afinal, aquilo seria perfeito, pois ligaria as duas mortes sem deixar a manipulação parecer óbvia demais.

Na verdade, quanto mais pensava naquilo, mais se convencia de que a manipulação se encaixava com a personalidade de Monty. O quanto ele se divertiria se pudesse ser a “fonte” de um novo assassino em série?

Mas ela então ficou pensando: quando ninguém mais aparecesse morto como aquelas garotas, o que ele iria fazer? E seu emprego estava em jogo. Entregar informações daquela maneira já era arriscado para ele. Aumentar os riscos mentindo sobre aquilo seria muita tolice.

Talvez ele simplesmente estivesse ficando desleixado.

Mas... e quanto à cor do cabelo? A prostituta usara tintura um pouco antes de ser assassinada, um tom de loiro igual ao de Cecília Barten. Isso não mudara entre as fotos: isso acontecera de verdade.

E se Monty fosse um imitador de assassinatos?

– Como está sua situação com o transporte? – quando Mels se sobressaltou, Tony parou de guardar suas coisas. – Tudo bem por aí?

– Sim. Desculpa. Estava só pensando.

O colega pendurou uma bolsa sobre os ombros.

– Precisa pegar emprestado meu velho carro de novo?

Mels hesitou.

– Ah, eu não poderia te incomodar de novo...

– Não se preocupe. Apenas me leve pra casa e o carro é todo seu, contanto que me traga café da manhã de novo amanhã cedo – ele segurou as chaves pelo chaveiro do Kiss e ficou balançando-as de um lado para o outro. – Eu realmente não preciso dele.

– Só mais uma noite – ela cedeu.

– Você quer dizer mais dois pãezinhos de salsicha com café.

Os dois riram enquanto Mels desligava o computador. Ela levantou, jogou dentro da bolsa as fotos que Monty lhe entregara e começou a andar de braços dados com Tony.

– Você é um príncipe entre os homens, sabia disso?

Ele sorriu.

– Sim, eu sei. Mas é legal ouvir isso de vez em quando.

– Escuta, você conhece alguém que seja bom com fotografias?

– Está querendo tirar um retrato de si mesma?

– Estou querendo uma análise.

– Ah – ele segurou a porta aberta para ela passar. – Pra falar a verdade, eu conheço uma pessoa com quem você pode conversar... e provavelmente podemos encontrar essa pessoa no caminho pra casa.

 

CONTINUA

CAPÍTULO 14

– Você quer que eu faça o quê?

Em resposta, uma caixa da L’Oreal foi jogada das sombras e quando a mulher a pegou, ela pensou: certo, a noite começou muito bem. Já estava cansada, dolorida e querendo que fosse uma da manhã, quando acabava seu turno – e esse “cliente” era um esquisitão com algum fetiche por tintura de cabelo?

Estava cansada dessa rotina de prostituta; estava mesmo. Já não aguentava mais aqueles motéis velhos e escuros, e homens feios com ideias malucas – isso sem contar aquele “gerente”.

– Você quer que eu pinte meu cabelo de loiro. Sem brincadeira.

Um maço de quinhentos dólares foi jogado do canto, e a luz do teto fez as notas brilharem no quarto pouco iluminado. Com certeza parecia um presente dos céus – principalmente considerando-se que o idiota já pagara para poder entrar naquela espelunca junto dela.

– Está bem, certo – ela se aproximou e pegou o dinheiro. – Mais alguma coisa?

A voz profunda soou em um tom baixo:

– Quero que o deixe bem liso.

– Só isso?

– Só isso.

– Nada de sexo?

– Não quero você pra isso.

Sentiu um calafrio começando a subir por suas costas até chegar à base do pescoço. Mas não havia motivo para se preocupar. Havia outras garotas nos quartos dos dois lados, e o patrão estava no estacionamento a menos de dez metros. Além disso, ela carregava um spray de pimenta.

O que ele poderia fazer com ela?

Resmungando para si mesma, entrou no banheiro e acendeu a luz. No espelho, ela parecia estar em seus quarenta anos, com bolsas sob os olhos e o cabelo com a consistência de um tufo de feno. A boa notícia era que ela precisava mesmo retocar as raízes – a lateral do cabelo já estava parecendo um mapa rodoviário, com a cor natural subindo pelo couro cabeludo. Mas não porque ela quisesse imitar Marilyn Monroe.

Acontece que gostava de ser ruiva. E, caramba, se o cabelo já estava crespo daquele jeito, não seria uma tintura que iria ajudar...

Ah, veja só, veio um condicionador junto. Legal.

Colocou em cima da pia o frasco cheio de creme, o tubo da tinta e o aplicador. Demorou um pouco para ler as instruções, afinal, ela nunca fora muito boa nessa coisa de ler e escrever, apesar de aquele texto não ser nenhum tratado científico.

Através da porta entreaberta, pôde ver que o cliente sentou-se no canto mais distante, com as botas bem separadas plantadas no chão, e as mãos descansando nos joelhos em vez de estarem no meio das pernas. A luz no teto iluminava apenas a parte inferior de seu corpo, portanto não dava para enxergar o rosto. Melhor assim – isso o deixava ainda mais anônimo.

Engraçado, ela não lembrava que esses quartos eram tão escuros.

Voltando ao trabalho, furou a ponta do tubo com a tampa de plástico, espremeu a gosma mal cheirosa dentro do aplicador e mexeu a mistura como se estivesse dando um trato em um cliente. Empurrou as mãos para dentro das luvas de plástico que estavam atrás das instruções. Ainda bem que eram grandes, pois assim havia espaço para suas unhas postiças.

Aplicou a tintura nas laterais sem problemas, mas as pontas estavam embaraçadas demais. Pegou uma escova em sua bolsa e forçou os cabelos da raiz às pontas duplas até que pudesse terminar o trabalho; depois se livrou como pôde de tudo o que saiu na escova.

A tintura cheirava a aromatizador misturado com cola química e tinha a consistência de sêmen.

Será que era isso que excitava aquele cara?

Homens são tão nojentos.

Durante a espera para a tinta secar, enquanto sua cabeça queimava e o nariz coçava, enviou mensagens de texto contando sobre o esquisitão que estava com ela. Não havia razão para conversar com o cliente – ele ainda estava apenas sentado lá, como uma estátua.

Trinta e cinco minutos depois ela entrou no banho com um frasco de xampu que fora deixado na pia. Fora usado até a metade por outra pessoa, mas tinha o suficiente para uma boa enxaguada. A água morna estava gostosa e o condicionador cheirava bem melhor que a tintura.

Quando saiu, seu cabelo tinha a mesma cor de pipoca de cinema, e todo aquele amarelo dourado fez sua bunda branca quase parecer esverdeada. Vestir suas roupas de puta não ajudou muito a melhorar a imagem.

Ligando o secador na tomada, virou-se, com os pés ainda descalços.

– Está pronto?

O homem levantou da cadeira e, ao se aproximar, a luz brilhou em seu rosto. Era bonito o suficiente, mas, por alguma razão, ela desejou devolver o dinheiro e sair dali. Rápido.

– Deixe o resto comigo – ele disse, tirando o secador e a escova das suas mãos.

O barulho do ar quente rugiu em seus ouvidos quando ele começou a escovar vagarosamente os cabelos dela. Com firmeza. Com decisão. Como se já tivesse feito aquilo antes.

Que cara maluco.

Quando tudo estava seco e macio, ele desligou o secador e o colocou na pia ao lado.

Encontrando os olhos dela através do espelho, o homem apenas a encarou.

Ela limpou a garganta.

– Eu preciso ir...

De repente, o rosto dele parecia diferente, as feições pareciam estar mudando...

Ela abriu a boca e tomou seu último fôlego para gritar quando uma lâmina surgiu atrás de sua cabeça.

Com um rápido corte na garganta, o monstro abriu um novo caminho para o ar entrar nos pulmões dela, e o que seria um grito agudo de terror transformou-se em um bizarro borbulhar de sangue.

A última coisa que ela viu foi um cadáver ambulante, com um sorriso em meio à carne podre.

– É hora da festa – disse uma voz feminina.


CAPÍTULO 15

Suicídio.

Enquanto Matthias digeria a palavra, um homem do tamanho de um ônibus entrou pela porta da frente: sua jaqueta preta, luvas e calça de couro o deixavam parecido com um membro da gangue dos Hells Angels. Sua expressão severa também se encaixava na descrição – e todos aqueles piercings confirmavam que Matthias não estava diante de nenhum cara frouxo.

Jim os apresentou, classificando Matthias como um “amigo” e o colega motoqueiro como “Adrian”.

Suicídio.

Experimentando o conceito em sua mente, Matthias descobriu que se encaixava e tentou se lembrar de mais coisas: um contexto, um lugar, uma razão. Mas nada surgiu, mesmo quando ele forçou seu cérebro até doer.

Com uma súbita clareza, olhou para Heron.

– O deserto.

O homem que tinha as respostas parou de conversar com seu colega e assentiu.

– Sim. Foi lá que aconteceu.

– E você estava junto – quando Heron assentiu novamente, a frustração de Matthias rugiu. – Como diabos nós nos conhecemos...?

A resposta foi interrompida pelo som de um carro parando na frente da garagem. Instantaneamente, armas foram sacadas, e Matthias também se juntou à festa, empunhando a pistola que estava na mesa.

Deus... ele sentia-se tão bem com ela na mão. Parecia tão natural!

Matthias se esquivou pela parede e olhou por entre as cortinas. Assim que viu o que estava lá fora, se acalmou, soltando um grunhido.

– Filha da puta.

– Você conhece ela? – perguntou Jim, que estava na janela perto da porta.

Voltando a olhar entre as cortinas, Matthias observou Mels sair do Toyota e concentrar-se na Harley. Não era uma surpresa que ela tivesse encontrado a droga do endereço; se ele conseguira, ela também conseguiria. Mas não podia acreditar que ela o seguira até ali. Antes de se separarem, Matthias falara a dura realidade, e a maioria das pessoas deixaria aquele drama para trás na mesma hora.

Sou faixa preta, tenho permissão para porte de armas e nunca vou a lugar algum sem uma boa faca.

– Deixa que eu cuido disso – ele falou, andando até a porta e tirando Jim do caminho, mesmo o cara sendo muito mais pesado e saudável. – E vou deixar bem claro: ninguém toca nela. Entenderam? Ninguém.

Ele podia estar comprometido fisicamente, mas não era preciso muita força para apertar um gatilho. E se alguém se aproximasse demais daquela mulher encantadora lá fora, ele os caçaria e mataria, mesmo que fosse a última coisa que fizesse em sua vida.

No silêncio pesado, dois pares de sobrancelhas foram erguidos, mas nenhum dos homens abriu a boca.

Acho bom mesmo, garotos.

No instante em que Matthias pisou na varanda superior, os olhos de Mels dispararam em sua direção.

Com as mãos na cintura, ela de alguma forma o confrontou olho no olho, mesmo estando no térreo.

– Surpresa!

Mantendo a arma fora da vista, ele disse:

– Você precisa ir embora.

Ela acenou para a moto.

– Pegou carona com um homem morto?

– É claro que não.

Franzindo a testa, ela subitamente atravessou o cascalho e pegou o que parecia ser uma das pedras. Mas a luz do sol refletida no objeto sugeria que era algo metálico.

Mels levou a cápsula vazia de uma bala de revólver até o nariz e cheirou.

– Andou praticando um pouco sua mira?

Enquanto ela segurava a bala vazia, Matthias quis praguejar. Principalmente quando ela sorriu friamente.

– Essa bala foi atirada recentemente, não mais do que vinte minutos atrás, talvez trinta.

Guardando a arma nas costas da cintura, ele desceu o mais rápido que pôde. Ficaram frente a frente, e Matthias nunca se sentira tão impotente em sua vida. Ele tentara intimidá-la para que nunca voltasse, mas isso claramente não funcionara. Talvez a honestidade funcionasse.

Ele percorreu seu rosto com os olhos, aquele lindo e teimoso rosto.

– Por favor – ele disse num tom baixo. – Estou implorando. Esqueça tudo isso.

– Você continua falando sobre perigo, mas tudo o que vejo é um homem sem memória que não sabe o que está procurando. Olha, apenas converse comigo...

– Jim Heron está morto. E eu não sei de quem é essa Harley, ou quem estava atirando...

– Então, com quem você estava falando lá em cima? E se disser que não tem ninguém, é mentira. Não tem como você ter trazido essa moto até aqui. Seria impossível. E o motor ainda está engatado. Aposto que se eu for até ela vou sentir o tanque ainda quente.

– Você realmente precisa esquecer isso tudo...

– Não vou colocar nada disso no papel, já combinamos assim. Tudo que me disser será extraoficial...

– Então por que você se importa?

– O trabalho não é tudo pra mim.

Matthias levantou as mãos.

– Por que diabos estou discutindo com você? Você nem usa cinto de segurança. Por que eu devo esperar que...

Nesse momento, a porta se abriu e Jim Heron saiu na luz do sol.

Mels olhou para o cara e balançou a cabeça.

– Bem, quem diria... sabe, você se parece muito com aquele trabalhador da construção que levou um tiro e morreu umas duas semanas atrás. Na verdade, eu mesma escrevi o artigo sobre você para o Correio de Caldwell.

Matthias apertou os olhos com as mãos.

– Filho da puta...


A primeira boa notícia, pensou Jim, era que a mulher tinha uma sombra. Ou seja, sem chance de ela ser uma criação de Devina.

A segunda boa notícia foi Matthias ter aquela atitude que dizia “ela é minha e de mais ninguém”. Aquele bastardo cruel nunca tinha mostrado preferência por nenhuma mulher, exceto se fosse um alvo marcado para morrer – e nunca bancara o protetor em relação a ninguém. Mas algo naquela jornalista de olhos faiscantes e personalidade forte o afetara. E isso era bom.

A mulher em questão pousou os olhos em Matthias. Na verdade, ela o encarava.

– Não vai nos apresentar?

– Deixa que eu faço isso – anunciou Jim enquanto descia as escadas.

– Como é bom ver que a boa educação ainda não morreu – ela murmurou. – Se bem que, com vocês, a morte é algo relativo, não é?

Matthias não estava contente por trás daquele Ray-Ban, mas teria de engolir sua insatisfação. Junto com outras coisas.

– Meu nome é Jim – ele estendeu a mão. – Prazer em conhecê-la.

Mels parecia desconfiada, mas também estendeu a mão.

– Talvez você queira me contar o que está acontecendo aqui...

No instante que suas mãos se tocaram, Jim a colocou em transe: ela apenas o encarou, relaxada, pronta para ser informada, com a memória de curto prazo totalmente apagada.

Legal. Jim não tinha certeza se conseguiria fazer aquilo.

Matthias apertou com força o braço dele.

– Que merda você fez com ela?

– Nada. Só um pouco de hipnose – olhou para seu ex-chefe. – Vou dizer o que vai acontecer. Ela não vai se lembrar de mim, vai ser mais fácil e limpo desse jeito. E você vai levar ela até o hotel que eu vou reservar pra vocês...

Matthias estava concentrado apenas em sua jornalista.

– Mels? Mels... você está bem?

Jim colocou o rosto bem em frente aos olhos do cara.

– Ela tá bem... nunca ouviu falar em Heron, o Mágico?

Eeeee... uma arma foi sacada. Matthias a encostou no pescoço de Jim, seu rosto subitamente mostrando os velhos traços tensos dos dias de glória no antigo emprego.

– Que merda você fez com ela? – não era exatamente uma pergunta, mas uma contagem regressiva antes de apertar o gatilho.

– Bom – disse Jim calmamente –, se você atirar no meu pescoço, nunca vai conseguir tirar ela do transe, não é mesmo?

Na verdade, se o cara atirasse, nada aconteceria. Mas já havia drama demais ali, e Jim não tinha certeza se conseguiria fazer aquele truque mental em mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Além disso, por causa do estado mental frágil de Matthias, Jim não queria arriscar explodir o cérebro do cara, revelando toda aquela história de anjos e demônios. Pelo menos, não agora.

A arma não saiu do lugar.

– Faça ela voltar. Agora.

– Você vai levá-la para um quarto de hotel.

– Sou eu quem tá segurando uma arma. Eu faço os planos.

– Pense bem. Se você estiver com ela, vai poder se certificar de que eu não vou mais importunar ela, certo?

A voz de Matthias ficou mais grave do que o normal.

– Você não sabe com quem está falando.

– E você também não – Jim inclinou-se na direção do cara. – Você precisa de mim. Sou o único que pode te contar o que você quer saber. Confie em mim. Estou mais ciente que você sobre o quanto seu passado está enterrado, e ninguém além de mim pode desenterrá-lo. Então entre na merda do carro, faça ela dirigir com você até o hotel Marriott no centro da cidade, e eu te encontro lá quando achar que estou pronto.

Matthias apenas ficou onde estava, impassível por um longo tempo.

– Eu poderia atirar agora mesmo.

– Então atire.

Matthias franziu a testa e levou a mão livre até a têmpora, como se estivesse com dor de cabeça.

– Eu... já atirei em você, não é...?

– Temos muita história juntos. E se quiser descobrir tudo, fique com ela. E não discuta. Agora eu tenho controle sobre você, e sou eu quem dita as regras. Uma ótima mudança de cenário, se me permite dizer.

Jim voltou para as escadas e subiu, deixando Matthias parado em frente a Mels. No andar de cima, ele estalou os dedos e entrou no apartamento. Depois assistiu por trás da cortina quando a mulher saiu do transe e os dois começaram a conversar.

– Então Matthias é a alma – disse Ad enquanto mordia um sanduíche.

– Parece que sim.

– Tem certeza de que quer colocar a mulher no meio disso?

– Você viu a maneira como ele olha para ela?

– Talvez ele só queira uma transa.

– Boa sorte pra ele – Jim murmurou. – E, sim, ela vai ser valiosa para nós.

A questão agora era descobrir qual seria a encruzilhada. Mais cedo ou mais tarde, Devina apresentaria uma escolha para Matthias, e Jim teria até então para mudar completamente aquele déspota sem consciência e faminto por poder, transformando-o no oposto disso.

Ótimo. Que maravilha.

Estava tão plenamente satisfeito com seu emprego que praticamente engasgava com essa merda toda.

– Vamos até o hotel – ele disse.

– Que hotel?

– O Marriott – Jim foi buscar sua carteira. Havia um cartão de crédito em seu nome que não estava exatamente atualizado, mas a Master-Card não descobriria que ele estava tecnicamente morto, simplesmente porque Jim não iria contar.

Adrian limpou a boca com um guardanapo.

– Tem certeza de que quer fazer isso num local tão público? O centro da cidade é cheio de gente e Devina adora ser o centro das atenções.

– Sim, mas a falta de privacidade vai deixá-la de mãos atadas. Primeiro, ela vai ter que limpar qualquer confusão. Segundo, ela vai precisar ter muito cuidado ao decidir como proceder nessa rodada; e não acho que matar civis inocentes seria visto com bons olhos pelo Criador.

Jim foi até o armário improvisado e tirou seus coldres. Vestindo-os, colocou sua adaga de um lado e uma arma do outro. Checou os bolsos, querendo saber quantos cigarros ainda tinha...

Um pedaço de papel dobrado no bolso de trás da calça o fez parar e fechar os olhos por um instante.

Não havia razão para pegar o artigo de jornal; ele já sabia o texto de cor. Cada palavra, cada parágrafo – e principalmente a foto.

Sua Sissy.

Que não era realmente dele.

Mas que estava sempre com ele. Nunca esquecida.

Certificando-se de que Adrian não podia vê-lo, tirou o papel, desdobrou a página e observou a foto. Ela tinha dezenove anos quando foi levada pelo demônio, eternamente presa naquele muro de almas.

Jim franziu a testa e olhou para a porta. Matthias estivera naquele Inferno maldito. As coisas que vira lá dentro...

Oh, merda, o que ele tinha feito lá?

A ideia de que a garota ainda estava lá sofrendo era suficiente para deixar Jim queimando de raiva.

– Se apresse, Ad – ele murmurou. – Temos que ir.


CAPÍTULO 16

Sentado no banco do passageiro do Toyota, Matthias sentia que estavam em um passeio. Mels não apenas obedecia a todos os sinais de trânsito, como também dirigia a dez quilômetros por hora em uma via em obras cheia de britadeiras e rolos compressores.

Ele a observou. Ela parecia estar bem, calma, normal, mesmo não se lembrando de Jim Heron.

Que diabos aquele cara tinha feito com ela?

Normalmente, Matthias não teria acreditado naquela coisa toda. Que merda é essa de hipnose? Mas... bem, ele estava mais ou menos na mesma situação, mas em vez de esquecer alguns minutos, ele não se lembrava da droga da sua vida inteira.

E, de qualquer maneira, o que “normalmente” significava nesses dias?

Quando pararam em um sinal vermelho ao final da via em obras, ele olhou através da janela.

– Não gosto de não estar no controle.

– Ninguém gosta – Mels respirou fundo. – Estou contente por você me deixar te levar de volta ao hotel.

Se você estiver com ela, vai poder se certificar de que eu não vou mais importunar ela, certo?

Matthias passou os dedos por baixo do Ray-Ban e esfregou os olhos.

– Estamos quase chegando – ela disse. Como se pensasse que ele iria desmaiar, ou algo assim.

Mas aquilo não tinha nada a ver com sua saúde física.

– Você me faz sentir... impotente.

– Não acho que seja eu. Acho que é por causa da situação em que você está.

– Não, é você – ele sentia que, se Mels não estivesse envolvida, as coisas seriam mais fáceis, mesmo se ele nunca se lembrasse de qualquer evento de sua vida: ele só precisaria se preocupar consigo mesmo, e ter um problema era definitivamente melhor do que ter dois.

– Eu tentei fazer a coisa certa – ele murmurou, e então se perguntou para quem realmente dissera aquilo.

– E você está fazendo a coisa certa ao se dirigir pra um lugar onde pode descansar. Suas últimas 24 horas foram caóticas. Você precisa dormir.

Deixando a cabeça cair no encosto do banco, Matthias fechou os olhos e pensou no confronto com Jim. Estivera plenamente preparado para apertar o gatilho e matar o cara.

Dormir não era exatamente o que ele precisava. Talvez algemas e uma avaliação psicológica: naquele momento em que seu dedo esteve no gatilho, não houve hesitação de sua parte – encostara o cano no pescoço do cara com rapidez, sem se importar com testemunhas e sem nenhum apelo moral de sua consciência quanto ao valor de uma vida humana.

Será que ele fora um soldado? Porque aquela atitude não tinha nada de civil, era totalmente militar.

Sim, pensou, era isso. E ele fora um dos tipos mais perigosos de soldados... aqueles que possuem um grande vazio no peito. O que significava que eram capazes de tudo.

Você odiava o homem que era.

Quando o semáforo ficou verde, Mels dirigiu por uma rua onde havia um pequeno centro comercial cheio de lojas grudadas umas nas outras. Eram coisas que ele nunca notava: os pequenos cafés aconchegantes, as lojas que vendiam presentes artesanais, as butiques de bijuterias e badulaques. Tudo tão banal. Tão cotidiano. Tão normal...

– Eu tentei cometer suicídio.

Mels pisou no freio por um instante, mesmo com o trânsito fluindo bem pela via de quatro pistas em que estava.

– Você tentou...? – limpou a garganta. – Sua memória está voltando?

– Algumas coisas.

– O que aconteceu? Quero dizer, se eu não estiver me intrometendo demais.

Pensando novamente em Jim Heron, ele respondeu com suas palavras:

– Eu não gostava de quem eu era.

– E quem você era?

Era sombrio como a noite, frio como o inverno, cruel como uma lâmina. Mas guardou isso para si.

– Você é persistente, sabia?

Ela tocou o próprio peito.

– Repórter. Faz parte do meu emprego.

– Estou descobrindo isso.

Matthias fechou novamente os olhos e escutou o motor do carro rugir e se acalmar. Quando algo morno e macio cobriu seu pulso, ele se exaltou. Era a mão de Mels, sua bondosa e elegante mão.

Por algum motivo, ele não podia acreditar que ela gostaria de tocá-lo.

Engolindo seco, ele apertou a mão dela e então desfez o contato.

Eles chegaram ao Marriott dez minutos depois. O lugar era um típico hotel de cidade grande, pairando sobre jardins bem cuidados no meio do centro comercial de Caldwell. Entraram pelo pórtico principal e acabaram em meio a uma confusão de carros, porteiros e pessoas carregando bagagens. Afinal, já passava das três da tarde, o que significava que era a hora da correria para os viajantes.

– Você vai subir comigo? – Matthias escutou a si mesmo dizer, enquanto imaginava quem poderia tê-los seguido; e que tipo de relacionamento ele realmente tinha com Jim Heron.

O cara tinha usado a palavra ajuda, mas sempre é preciso se perguntar que tipo de motivação está por trás de um gesto bem intencionado, e não é muito esperto simplesmente aceitá-lo cegamente.

– Vou te fazer companhia até você estar bem instalado, o que acha?

– Está... bem – ele ainda preferia uma separação direta, mas isso já não era possível.

Graças a Heron.

Se bem que... não era nada mal poder passar mais um pouco de tempo com ela.

Mels dirigiu lentamente entre funcionários que empurravam carrinhos de bagagem e seguiu para o estacionamento. O ar quente do motor invadia o interior do carro, então Matthias abriu uma fresta da janela – mas logo percebeu que aquilo não adiantaria. O ar que vinha do motor era a fonte do mal cheiro.

Mels entregou o carro de seu amigo para um manobrista – que não pareceu muito entusiasmado para estacionar aquela lata velha – e os dois entraram por uma porta giratória até o saguão subterrâneo, que estava decorado com carpetes vermelho-sangue e paredes douradas. Infelizmente, apesar daquela combinação – ou talvez por causa dela –, a decoração parecia mais a de um bordel do que um lugar para negócios: era uma tentativa mal sucedida de imitar o luxo de um Four Seasons.

– Sempre achei que este lugar se esforçava demais para parecer o Waldorf – Mels disse enquanto apertava o botão do elevador. – Mas estamos em Caldwell, não em Manhattan.

– Engraçado, eu estava pensando a mesma coisa.

– Aliás, não repara no meu mau humor – ela disse. – Sabe como é, eu não sou daqui.

– Você é de Nova York?

– Bom, eu nasci aqui, mas sou de lá. Estou só esperando pra voltar.

– O que te mantém em Caldwell?

– Tudo. Nada – Mels olhou ao redor. – De um jeito estranho, eu invejo a sua amnésia.

– Se eu fosse você, não invejaria.

Pois é, Matthias realmente não queria isso para ela, e não porque estava sendo um cavalheiro. De pé ao seu lado, ele até mataria para saber mais sobre Mels, sua família, onde ela crescera, tudo o que a trouxera para este momento de fragilidade.

– Mels...

Antes que ele pudesse perguntar, uma família se juntou a eles na espera pelo elevador, as filhas correndo de lá para cá, os pais parecendo viver presos em uma versão do Inferno que cheirava a chiclete e era povoada por diabinhos vestindo roupas de princesa que pediam sorvete a cada três minutos.

Ding!

Quando as portas do elevador de abriram, Matthias colocou as mãos nas costas de Mels e a conduziu para dentro. Ele não queria parar de tocá-la, mas baixou o braço e teve de aguentar o olhar vidrado das crianças em cima dele.

No saguão do andar térreo, a agitação do pórtico invadia a área da recepção, e havia uma fila de pessoas serpenteando por um labirinto de cordões de veludo.

– Isso é um pesadelo – Matthias murmurou secamente.

– Poderia ser pior. Nunca ouviu falar do Motel 6?2

– Bom argumento.

Quando finalmente chegou sua vez de serem atendidos na recepção, Matthias deu seu nome, mas não tinha certeza de como aquilo funcionaria. Normalmente, você precisa apresentar o cartão de crédito com o qual fez a reserva...

– Ah, sim, sr. Hault, o senhor já fez o check-in – a mulher disse, digitando com rapidez. – Só preciso da sua carteira de motorista.

Matthias olhou ao redor do saguão. Como diabos Heron conseguira chegar até ali e arranjar tudo? O trânsito estava pesado, mas não tão pesado na rota que ele e Mels fizeram. Podia ser, é claro, que o cara tivesse tirado um helicóptero do traseiro.

E quanto ao cartão de credito, será que Heron usara um próprio? O filho da puta supostamente estava morto, então era de se imaginar como a companhia poderia enviar a conta para o Cemitério Pine Grove. Por outro lado, números de cartão de crédito eram tão fáceis de arranjar como um livro em uma biblioteca, se você conhecesse as pessoas certas – e, considerando o olhar no rosto do colega de Heron, acesso ao mercado negro com certeza não seria difícil.

– Senhor? A carteira de motorista?

– Sim, desculpe.

Quando entregou a carteira, a recepcionista sorriu profissionalmente. Sua expressão era equivalente a um tapete de boas-vindas.

– Certo, aqui estão os cartões para o seu quarto. É só pegar o elevador até o sexto andar. O senhor vai ficar no quarto...

Não no 666, pensou ele, sem motivo aparente.

– ... 642. Gostaria de alguém pra ajudar com a bagagem?

– Não, pode deixar. Obrigado.

– Espero que goste da estadia.

Enquanto ele e Mels se dirigiam para os elevadores, Matthias observou todo o saguão, sem mover a cabeça. As pessoas ao redor não eram nada especiais... apenas gente normal carregando malas, ou falando no celular, ou discutindo com a esposa/marido/namorado. Ninguém estava prestando atenção nele, e é por isso que às vezes locais públicos podem ser o lugar mais seguro para você se esconder.

Mesmo assim, ele estava contente por ainda possuir a arma que pegara de Jim.

A segunda espera por um elevador foi maior do que a primeira, e quando finalmente chegou, Mels deu um passo para a frente junto de outro casal.

Matthias tocou seu braço e a fez esperar.

– Vamos pegar o próximo.

As portas se fecharam enquanto ela o observava.

– Claustrofobia?

– É. É isso.

Desta vez, ele deixou a mão em Mels por um pouco mais de tempo. De pé atrás dela, era possível observar o quão mais alto ele era, mesmo Mels não sendo nenhuma baixinha – e Matthias imaginou como seria apertar o corpo dela contra o seu.

Um pensamento estranho, por muitas razões. Mas que inegavelmente lhe trouxe uma imagem mental...

– Chegou outro – ela disse, quebrando o contato entre eles. – E estamos sozinhos desta vez.

Cara, quando se tratava de Mels Carmichael, sozinhos parecia realmente um termo muito bom.

A viagem até o quarto foi tranquila – com exceção da direção que seus pensamentos estavam tomando. E a outra boa notícia era que o quarto não ficava longe da saída de emergência. Perfeito. Lá dentro, o espaço era preenchido de maneira padrão, com uma cama, escrivaninha, armário e cadeira, mas o que mais chamou sua atenção foi o colchão king-size.

Mas ela não estava procurando por um caso com um estranho, e ele nem conseguiria dar conta do serviço, de qualquer maneira.

Quando Matthias se aproximou da janela e fechou a cortina, Mels acendeu a luz do banheiro e olhou ao redor.

– Você vai ter uma bela banheira.

Sem querer, ele observou-a de cima a baixo e concluiu que sim realmente gostava de suas curvas naquela calça apertada.

Merda. Ele a desejava – e muito. Queria ela nua e debaixo de seu corpo, com as pernas bem abertas enquanto a penetrava fortemente.

Limpando a garganta, ele disse, com a voz rouca:

– Posso te pagar um jantar? Eu sei que é cedo, mas estou com fome.

Estava mesmo era faminto por ela. Dane-se a comida.

Endireitando-se, ela o observou, e Matthias ficou aliviado por ainda estar usando os óculos dela. Nada de bom poderia sair do olhar que ele estava escondendo por trás das lentes escuras. “Desejo” não era a palavra certa, não naquela circunstância.

Ei, veja só, quem diria. Ele podia ser um assassino casual, mas ao menos tinha um pouco de decência.

– Sim – ela sorriu um pouco. – Claro. Eu gostaria de comer algo.

Enquanto Matthias olhava o cardápio que pegou sobre a escrivaninha, disse a si mesmo que estava apenas fazendo o que Jim Heron sugerira: mantendo-se junto de Mels, pois assim saberia que ela estava bem.

Ele podia não conhecer seu passado, mas de uma coisa tinha certeza: estava disposto a morrer para proteger aquela mulher inteligente e bondosa... e seu traseiro perfeito.


N.T.: Motel 6 é uma rede de hotéis de baixo custo e qualidade.


CAPÍTULO 17

Mels finalmente conseguiu terminar uma porção de batatas fritas.

Elas vieram junto com um hambúrguer perfeitamente ao ponto, uma fatia de picles bem generosa e uma Coca saída de um comercial, com o copo transpirando e tudo mais.

Sobre o console de mogno, a televisão do quarto estava ligada no canal WCLD, uma afiliada local da NBC, e o jornal das cinco horas estava começando.

– Tenho que dizer – ela murmurou, pegando a última batata e passando no ketchup – que essas batatas são bem melhores que as do Riverside.

Matthias, sentado na cama, ainda estava comendo seu sanduíche, mas ela podia perceber que ele olhava em sua direção. Mesmo com os óculos escuros.

Ele fazia muito isso: seus olhos pousavam nela como se gostasse da maneira como ela se movia, mesmo quando estava sentada – e, por alguma razão, aquilo o deixava ainda mais sexy... ao ponto de fazer Mels se perguntar como seria ter aquilo sem nenhuma barreira.

Quer dizer, os olhares.

Você sabe, sem o Ray-Ban...

Droga, ela estava se fazendo corar.

– Sabe, você pode tirar se quiser – ela disse suavemente. – Os óculos.

Ele congelou. E então voltou a mastigar. Depois de engolir, disse:

– Me sinto melhor com eles.

– Certo, é você quem manda.

Matthias não disse nada sobre sua busca por Jim Heron, ou sobre como descobriu o endereço no qual se encontraram. Ele apenas entrara no carro do Tony e a deixara dirigir até ali.

Mas é claro que Mels não questionaria essa mudança de postura.

– Não tem alguém em casa te esperando? – ele perguntou casualmente.

– Ah, na verdade não. Acho que não tenho muita vida pessoal.

– Sei como é isso... – ele parou. – Caramba, na verdade eu sei mesmo como é isso.

Ela esperou que ele continuasse. Em vez disso, Matthias apenas ficou lá sentado encarando seu prato de comida, que ainda estava na metade, como se aquilo fosse uma televisão.

– Me conta – ela disse.

Ele deu de ombros.

– Não sou casado. Não tenho filhos. Não tenho ninguém permanente. O que explica por que ninguém está me procurando... bem, pelo menos não no sentido familiar.

– Sinto muito. E quanto a seus pais?

Matthias estremeceu, depois pareceu se recompor.

– E então...? – ela insistiu.

– Não lembro nada sobre eles.

No silêncio que se seguiu, ela apanhou sua bandeja e colocou no corredor. Quando voltou para dentro, sabia que era hora ir.

Provavelmente, também era hora de esquecer aquela história.

Jim Heron estava morto – ao menos de acordo com o arquivo não-tão-distante do Correio de Caldwell, e também com aquela lápide do túmulo. Ela encontrara seu endereço por meio de uma das fontes que dera declarações para o jornal – mas, claro, ele não estava lá.

Uma dor de cabeça surgiu em suas têmporas, mas passou quando ela mudou seu pensamento para Matthias Hault. Ele estava seguro ali, e se recuperando bem. E, quanto à sua memória, ele era o único que podia chegar ao fundo da questão. Mels fizera o que podia para ajudar com o básico; mais do que isso... ela poderia dar dinheiro se ele a processasse pelo atropelamento, mas ele não parecia ter essa intenção.

Claro, havia algo de estranho sobre aquela casa que supostamente era “dele”, e outras coisas que não faziam sentido, como quem realmente estivera naquela garagem. Mas, se ela não iria publicar nada daquilo, os detalhes realmente não eram da sua conta.

Mels se aproximou e sentou ao pé da cama. Quando Matthias colocou a bandeja de lado e a encarou, aquele calor percorreu novamente seu corpo.

Definitivamente, ela estava atraída.

Principalmente ali naquele quarto, onde estavam a sós. Mas ela realmente não estava procurando esse tipo de complicação.

– É melhor eu ir – Mels disse, tentando ler seu rosto.

– Então vá – ele sussurrou, olhando-a olhos nos olhos através das lentes escuras.

Nenhum dos dois se mexeu, o corpo grande e malhado dele ficou tão imóvel quanto o dela.

Deus... Mels queria que ele a beijasse. O que era loucura...

– Você me faz... – Matthias respirou fundo.

– O quê?

Inclinando-se para frente, ele esticou a mão e acariciou seu rosto.

– Você me faz desejar que eu fosse diferente.

O toque fez o coração dela parar – e então acelerar.

– Acho que você é um homem muito melhor do que pensa.

– E é exatamente isso que me assusta.

– A ideia de que você é um homem bom?

– Não, a ideia de que você pensa assim.

Mels desviou o olhar brevemente e se perguntou o que diabos estava fazendo naquele quarto de hotel... desejando que os dois arrancassem a roupa e suas inibições. Caramba, eram ambos adultos, e ela estava realmente cansada de viver uma vida pela metade, de querer coisas que não tinha, de adiar seus sonhos em troca de nada.

Ela queria viver plenamente de novo. Do jeito que era antes de as coisas mudarem, antes de se mudar para Caldwell e sabotar... a si mesma.

Franzindo a testa, ela começou a imaginar há quanto tempo não sentia-se dessa maneira.

E então...

Não tinha certeza do que a fez agir – a voz dele? Os olhos, que ela não podia ver, mas podia sentir? Seu orgulho inveterado misturado com uma ponta de insegurança?

A garota das cavernas que havia dentro dela?

Qualquer que fosse a motivação, Mels colou os lábios contra os dele. De um jeito breve, recatado. Mas poderoso.

Quando ela se afastou, Matthias parecia surpreso.

– Mais uma coisa fora do seu controle, não é? – ela disse com a voz baixa.

– Você parece ter um talento para isso.

Bom, ela também surpreendera a si mesma. Mas acontece que simplesmente não conseguia pensar em uma razão para lutar contra o desejo que sentia por ele. A vida é curta... e, depois daqueles últimos dois anos, Mels tinha mais medo de não correr riscos do que de voar por um instante para depois cair em um desastre.

– Se importa se eu terminar o que você começou? – ele disse com um grunhido.

– Nem... um pouco.

Ouvindo a resposta que queria, Matthias deslizou a mão atrás do pescoço de Mels e a puxou para mais perto, possuindo-a, tomando o controle. E, no segundo antes das bocas se encontrarem, ela pensou que era incrível como os dois eram relativos estranhos e, no entanto, a essência dele era melhor do que qualquer contexto ou situação: ela se sentia segura com aquele homem misterioso, apesar de ele tentar convencê-la do contrário.

E, meu Deus, ela realmente o desejava.

E parecia que o sentimento era mútuo.

Matthias a beijou com força e a soltou; então voltou a beijá-la como se ainda não fosse suficiente. Enquanto travavam uma luta com as línguas, ele a segurava pela nuca, controlando o ritmo, ganhando e cedendo espaço. Com um ardor se concentrando onde há muito não sentia nada, Mels parecia decolar de maneira louca e selvagem – e pensou que aquilo era o que precisava. Exatamente aquilo, ali mesmo, com aquele homem.

Sexo naquele quarto, naquela cama. Com ele.

Abruptamente, Matthias se afastou, como se precisasse recuperar o fôlego.

– Por acaso você tem o hábito de beijar suas histórias? – ele perguntou com a voz rouca.

– Você não é uma história. Nada disso é oficial, lembra?

– Bem lembrado – os olhos dele percorreram o corpo de Mels. – Quero você nua.

Ela sorriu vagarosamente.

– Não é exatamente uma surpresa, considerando o jeito como me beijou.

Com um grunhido, ele avançou para cima dela novamente, deslocando-a pelo colchão, rolando sobre ela. Antes do “acidente”, ele provavelmente dominava fisicamente as mulheres – não de maneira violadora; não havia coerção ou o sentimento de estar presa por ele. A melhor descrição seria dizer que era uma dominação animal.

Principalmente quando sua perna se enfiou entre as dela, a coxa pressionando seu sexo.

Mels se arqueou contra o peso do peito dele e colocou os braços ao redor de seu corpo.

Com um movimento sutil, ele a segurou, e então parou totalmente. Quando se afastou, havia tensão em seu rosto – e não do tipo vou-agarrar-você-agora.

– O que foi? – ela sussurrou. – Qual é o problema?


Matthias se arrastou para o pé da cama. Seus pulmões estavam queimando e sua cabeça doía muito. Mas que droga de corpo! Lá estava ele com uma bela e saudável mulher que tinha todos os sinais de estar sexualmente atraída por ele, porém... o desejo existia, mas o corpo não ajudava.

Ele a queria. Mas não havia muito que pudesse fazer.

Pensando naquela enfermeira e na maneira como ela o havia tocado, parecia uma piada cruel que seu problema tivesse voltado justo agora: a distância entre ele e sua repórter era tal que nenhuma quantidade de beijos a resolveria. Nem carícias, toques ou mesmo nudez total. Mais uma vez, estavam em lados opostos de um túmulo – ela no mundo dos vivos, ele no cemitério.

Por alguma razão, aquilo o deixou ainda mais desesperado para possuí-la. E, com uma súbita clareza, ele lembrou que no passado tivera todas as mulheres que quis – e nunca sofrera por falta de voluntárias. Mas isso não significava que se importasse com elas.

No caso de Mels era diferente. Ela era diferente.

Mas Matthias nunca poderia tê-la totalmente, não com seu corpo naquele estado.

– Qual é o problema? – ela perguntou novamente.

Matthias não queria que ela soubesse. Mesmo que Mels fosse descobrir mais tarde, gostaria de preservar por um pouco mais de tempo a ilusão de que era um homem de verdade. Se é que iria vê-la novamente.

– Não acredito que estamos fazendo isto – ele se esquivou. Mas era verdade. Toda aquela história, desde acordar ao pé da sepultura de Jim Heron até o acidente com ela, não parecia estar certa. Era como se alguém estivesse manipulando tudo, como se a perda de memória tivesse um propósito.

– Nem eu – ela respondeu, olhando para sua boca como se quisesse mais.

Ela não parecia o tipo de mulher que gostava de encontros casuais. Não se vestia com roupas provocantes, não se insinuava em seus movimentos, não tentava seduzir a todo momento. E emanava uma vibração hesitante, mas positiva, como se fizesse algum tempo que as coisas não aconteciam com ela, e sentisse que estava na hora.

Diga para ela ir embora, pensou Matthias. Impotência à parte, havia muitas outras razões para não ficarem juntos naquela noite. Ou em qualquer noite.

Voltando a se aproximar, ele colocou as mãos ao redor de seu corpo e a puxou para perto – mas não perto demais. Os quadris não se encostaram.

Deus, ela cheirava muito bem.

As sensações estavam todas lá: o calor correndo em seu quadril, o coração batendo com urgência, os braços e pernas parecendo ainda mais fortes do que o normal. Mas seu pênis não participava desse conjunto.

Talvez fosse melhor assim, pois precisava dizer a ela que...

– Posso fazer algo por você? – ele soltou.

Certo, isso não era exatamente um “boa noite”.

– Você já fez.

– Tenho muita certeza de que posso fazer melhor.

– Bom, quem sou eu para impedir um especialista?

Quando ele se aproximou para beijá-la novamente, pensou em como ela ficaria com a blusa aberta e sem o sutiã, os seios prontos para receber seus lábios, a pele macia da barriga conduzindo-o para outros territórios.

Tudo aquilo era incrivelmente bom, e também parecia tão novo para ele – mas essa sensação não se devia ao fato de que nunca estivera com Mels antes. Ele sentia como se nunca tivesse se apaixonado de verdade por alguém. Por outro lado, considerando a falta de memória... realmente era como se ele nunca tivesse ficado com outra pessoa antes.

Do nada, uma imagem atingiu seus sentidos. Ele e uma mulher de pele escura e macia de pé contra uma parede. Ele a segurava pela garganta e ela o envolvia com as pernas, e Matthias a penetrava furiosamente...

Ele se afastou num sobressalto. De uma só vez, várias imagens inundaram sua mente, uma linha cronológica de todas as mulheres com quem já tinha transado – jovens, quando ele era jovem; mais velhas e variadas, quando já estava adulto; e então uma série de mulheres extremamente agressivas.

Ele viu a si mesmo com elas, quando seu corpo era forte e inteiro, suas emoções claras e organizadas, seu coração frio como gelo. Ele via as mulheres, nuas ou seminuas, armadas e desarmadas, tendo orgasmos com grandes movimentos exagerados.

– Do que está se lembrando? – Mels perguntou.

Ele abriu a boca para falar, mas a sucessão de nomes, lugares, rostos era um dilúvio do qual não conseguia se livrar, uma avalanche entupindo seus neurônios, deixando-o quase inconsciente. E, quando cedeu àquela força, sentiu seu corpo sendo conduzido de volta para os travesseiros, não mais no papel de dominador.

Levando as mãos à cabeça, ele praguejou.

– Vou chamar um médico...

Matthias esticou o braço e agarrou o pulso dela.

– Não, estou bem...

– Não, não está!

– Só me dê um minuto.

Ele respirou brevemente e decidiu parar de lutar contra aquela onda. Foi a decisão certa – em vez de se atropelar, as lembranças começaram a se revelar de modo mais ordenado. Ao menos... até chegar ao final. A última lembrança o mostravam junto com... algum tipo de monstro? Deve ter sido um pesadelo... mas, Deus, ela era horrível, e estava transando com ele como uma forma de tomar posse de seu corpo, em um calabouço no fundo de um poço escuro...

Pânico o atingiu como um relâmpago, fazendo Matthias se contorcer fortemente. Mas ele continuou segurando Mels pelo pulso, certificando-se de que ela não correria para o telefone.

– Por favor – ouviu-a dizer.

– Nada... de médico... já está passando...

Por fim, ele a soltou, tirou os óculos escuros e esfregou os olhos.

– Achei que lembraria das coisas devagar.

– Posso, por favor, chamar o atendimento médico? – ela pegou uma pasta e colocou em frente ao seu rosto. – Tá vendo? O hotel tem um médico de prontidão.

– Não, sério, estou bem. É que veio tudo de uma vez. A gente nunca pensa em quanta coisa fica guardada aqui em cima – ele apontou para a cabeça. – É muita informação.

– De que tipo de informação estamos falando?

Ele desviou o olhar.

– Bom, eu definitivamente não sou virgem. E não vamos nos aprofundar no assunto.

– Ah.

Houve um embaraçoso momento de silêncio. Então, Mels limpou a garganta.

– Sabe, acho melhor eu ir embora.

– Pois é.

Ela se levantou. Pegou o casaco. Vestiu-o.

– Antes de eu ir... – ela se aproximou da escrivaninha e escreveu algo no bloco de notas do hotel. – Aqui está o número do meu celular de novo...

O celular começou a tocar em seu bolso.

– Falando no diabo... – Matthias murmurou enquanto a observava terminar de escrever antes de atender a chamada.

– Alô – sua voz estava animada e profissional, e ele gostou de saber que ela podia se recuperar tão rápido.

Bom, na verdade isso era só mais uma coisa de que ele gostava naquela mulher.

Mels franziu a testa.

– Onde? Temos alguém ligado a ela? Como ela morreu? É mesmo? Certo, estou indo agora mesmo. Ainda estou com o carro do Tony – ela desligou o celular e pegou a bolsa. – Tenho que ir.

– Alguma coisa oficial?

– Meu chefe deve estar mudando de atitude. Ele me mandou para uma cena de crime.

– Ele não costuma reconhecer suas qualidades?

– Não aquelas que eu quero que reconheça – ela parou na porta. – Você tem certeza de que está bem?

– Você sempre foi uma santa assim? – ele murmurou.

– Não até te conhecer.

Quando ela já estava saindo pela porta, ele a chamou:

– Mels.

Ela virou a cabeça e a luz do corredor iluminou seu rosto. Quando seus olhos se encontraram, Matthias pensou que seria capaz de trocar todas aquelas mulheres que apareceram em sua memória por uma noite com Mels.

Não vou sair desta vivo, ele pensou.

Então, se algum dia tivesse mais uma chance de beijá-la, não iria parar. E quem sabe? Talvez tivesse mais sorte da segunda vez.

Contanto que não tivesse mais uma daquelas tempestades em sua memória.

– Use o cinto de segurança – ele ordenou, com a voz baixa.

– Chame um maldito médico – ela retrucou, com um pequeno sorriso.

Quando a porta se fechou, ele praguejou consigo mesmo. E então pensou em como se sentira quando a beijou.

Correndo o olhar por seu quadril, começou a pensar que gostaria de se tornar um homem saudável outra vez.


CAPÍTULO 18

O bar do saguão do Marriott fora nomeado em homenagem ao proprietário original do hotel, um tal de Não-Sei-Lá-Quem Sasseman. Pelo menos foi isso que a garçonete contou a Adrian com uma voz provocante enquanto anotava o pedido de cervejas dele e de Jim. Ela também fingiu deixar cair sua caneta e abaixou lentamente para pegar, depois foi embora rebolando como se sua pélvis tivesse recebido uma troca de óleo e ficado lubrificada demais.

Sua atitude até fazia sentido, já que os outros clientes dali eram homens de negócios com olhares esguios que provavelmente já estavam no time do Viagra, e ela era uma bela jovem com vinte e poucos anos.

Nos tempos de Eddie, Adrian teria ido atrás dela em um piscar de olhos.

Mas agora aquilo simplesmente não despertava sua atenção.

O banco no qual estavam sentados era revestido de couro sintético e fazia um barulho peculiar toda vez que um deles se ajeitava. Mas o lugar era perfeito para seus propósitos: ficava de frente para a grande porta que dava no saguão. Ninguém podia entrar ou sair sem que eles soubessem.

Se bem que, com o radar de Jim, eles conseguiriam rastrear Matthias e aquela mulher mesmo se estivessem parados no estacionamento de trás: o anjo certificara-se de tocar os dois, e mesmo Ad podia sentir a magia de rastreamento emanando pelos andares do hotel. O casal estava seis andares acima, muito próximos um do outro.

O que fazia ele se perguntar o que estavam fazendo.

Provavelmente jogando cartas.

É claro.

Enquanto os minutos passavam, transformando-se em uma hora inteira, as conversas dos outros clientes eram a única coisa que preenchia o silêncio. As cervejas transformaram-se em jantares. O tempo... parecia não passar.

Cara, ser imortal podia ser mesmo um saco quando a pessoa não se importava com nada. Tudo o que se tem é o tempo. Que ótimo, longas horas que perpetuamente o mastigavam com seus dentes, comendo-o vivo, mas mantendo-o inalterado.

Bom, com que ótimo humor ele estava naquela noite!

E esse humor não mudou nada enquanto observava as próprias mãos. A mancha negra que vira quando estava no chuveiro não reaparecera, mas ele não conseguia parar de checar a cada segundo para ver se ela tinha voltado. Até agora tudo bem, com exceção do sentimento de morte que o perseguia naquela noite.

Sentia literalmente como se seu corpo tivesse sido esvaziado por dentro, e não restasse nada além de um espaço dentro de seu peito...

– Ela está descendo – disse Jim, dando um último gole na cerveja quente que estava guardando. – A mulher saiu do quarto.

Ad não se importou em terminar seu copo. Na verdade, não tinha gostado nem de começá-lo.

Mas era melhor que Coors Light, de qualquer maneira.

– Você fica com ela – disse Jim enquanto entravam no saguão. – Não quero que ela fique sozinha.

– Mas a alma não é ele?

– Acho que sim. E se for, então ela é a chave para esta rodada.

– Tem certeza?

– Percebi o jeito como ele olha pra ela. Isso é tudo o que preciso saber – Jim acenou na direção da repórter que estava saindo do elevador. – Fique na cola dela. Vou esperar Devina aparecer por aqui.

Ad não estava interessado em ficar seguindo a namorada de Matthias. Ele queria esperar pelo demônio. Queria ficar cara a cara e rezar para que ela fizesse outra piada sobre Eddie – só para poder mostrar que não se abalava mais com qualquer coisa que ela dissesse. E depois, queria olhar em seus olhos enquanto a frustração explodia dentro dela até forçá-la a atacá-lo fisicamente.

E nesse momento ele poderia acabar com tudo. Lutar até morrer. Ter o fim de um verdadeiro guerreiro.

A vadia com certeza venceria, mas como seria bom arrancar umas camadas de carne dela. E depois, sentiria o alívio por tudo estar acabado.

– Adrian? Alô? Você está aí?

– Quero ficar aqui.

– Preciso de você junto daquela mulher. Ela precisa ficar viva tempo suficiente para influenciar Matthias. Se Devina conseguir farejar essa conexão entre eles, a mulher vai virar um defunto flutuando no rio Hudson. Ou pior...

Jim o encarou, deixando sua lógica subentendida – o anjo mais poderoso deveria enfrentar o demônio, e naquele momento não era Ad. E não por ele não possuir aqueles poderes legais de Jim.

– Você quer vencer – Jim disse com a voz calma –, ou quer nos ferrar de vez?

Ad praguejou, virou-se e concentrou-se na essência da mulher. Começou a andar normalmente, pois seria complicado demais desaparecer em meio àquela plateia.

Dirigindo-se para o elevador que levava ao estacionamento, a namorada de Matthias andava como se estivesse em uma missão, e Ad invejou aquele senso de propósito. Mas não invejou seu meio de locomoção. A lata velha tinha um motor e um teto – fora isso, mal se podia chamar aquilo de carro.

Só para deixar as coisas mais engraçadas, ele se transportou para o banco de trás – e apareceu em meio a um monte de jornais e revistas velhas, suficientes para encher a Biblioteca do Congresso. A boa notícia foi que ela escolheu justo aquele momento para ligar o motor – mas ainda ouviu o barulho de traseiro invisível amassando aquele monte de papel. Ela virou a cabeça e encarou o vazio onde ele estava. Só para ser legal, Ad deu um tchauzinho, mesmo que ela pensasse estar sozinha no carro.

– Estou perdendo a cabeça – ela murmurou enquanto engatava a primeira marcha e acelerava o carro.

Era uma boa motorista. Rápida nos pedais, eficiente no trânsito.

Acabaram na parte oeste do centro da cidade, em um motel que era apenas um pouco melhor do que um canil. Depois de saírem do carro – ele ainda invisível, ela ainda obstinada –, eles se juntaram a uma convenção de policiais e repórteres que se concentrava em um quarto à esquerda.

Adrian franziu a testa e abruptamente passou a se preocupar com aquela cena. Quando a mulher que estava protegendo se aproximou dos policiais que guardavam a fita amarela de isolamento, ele passou pela fraca proteção e se infiltrou na aglomeração de pessoas.

Que diabos?, pensou consigo mesmo.

Devina estivera ali; seu fedor residual pairava no ar como se um caminhão de lixo tivesse despejado um carregamento por toda parte.

Adrian se espremeu para dentro e precisou pressionar o nariz para não engasgar com o cheiro ruim que não afetava os humanos.

Olá, garota morta.

Do outro lado de quatro ou cinco policiais, um corpo estava visível através da porta aberta do banheiro: pernas brancas, tatuagem nas coxas, roupas que estavam amarrotadas como se ela tivesse resistido a um ataque. A garganta fora cortada e o sangue respingara na blusa cheia de lantejoulas e nos azulejos onde ela estava deitada.

Era loira, graças à L’Oréal: os restos do kit de tintura de cabelo estavam espalhados pela pia, e luvas de plástico manchadas, no lixo. E o cabelo fora alisado – graças ao secador Conair e a uma escova que tinha fios pretos grudados no meio e fios mais claros nas laterais.

– Maldita Devina – murmurou Ad.

– A fotógrafa já chegou? – gritou um homem de aparência cansada.

Os policiais olharam uns para os outros, como se não quisessem dar a má notícia.

– Ainda não, detetive De la Cruz – disse alguém.

– Aquela mulher me deixa louco – o cara falou, pegando o celular e andando para o outro lado.

Quando os policiais se aproximaram do detetive, como se quisessem assistir à fotógrafa levar uma bronca, Adrian aproveitou o espaço livre no banheiro e ajoelhou-se.

Rezando para não encontrar nada, levantou um pedaço da blusa ensopada.

– Ah, mas que droga...

Por baixo da blusa, a pele clara fora marcada com símbolos que não estavam endereçados àquela mulher, nem aos homens que a encontraram ou à família que lamentaria sua morte.

Era uma mensagem de Devina.

E Ad nunca, nunca permitiria que Jim visse aquilo.

Ad olhou o aglomerado de policiais ao redor do detetive, certificando-se novamente de que o telefonema estava lhe proporcionando um pouco de privacidade. Então passou a palma da mão várias vezes sobre a carne que fora marcada.

Felizmente, ainda restava um pouco vitalidade nas células da pele. Mas a remoção foi vagarosa.

– ... venha aqui agora – gritou o detetive – ou eu mesmo vou tirar as fotos! Você tem quinze minutos para chegar...

Ad franziu a testa, concentrando-se, esforçando-se o máximo que podia. Os símbolos foram esculpidos fundo na pele e pareciam irregulares, como se tivessem sido desenhados com uma faca dentada... ou, mais provável, com uma garra.

– Vamos lá... vamos lá... – ele olhou para trás. A reunião estava terminada, e o detetive estava voltando.

Retirou a mão e levantou-se rapidamente – então lembrou que ainda estava invisível.

– Quem mexeu no corpo? – exclamou o detetive. – Quem mexeu no maldito corpo?

Merda. A camisa ainda estava levantada um pouco acima dos seios. E não era assim que estava antes. E a pele estava avermelhada de um jeito não natural, considerando-se não apenas a etnia da vítima, mas também o seu estado de decomposição. Ainda assim, Ad atingira seu objetivo e isso era mais importante do que qualquer confusão que os humanos teriam para entender o que acontecera.

Que diabos Devina estava aprontando agora?

– Aquela vadia! – Adrian rosnou enquanto caminhava para fora. – Ela vai pagar por isso.

Jim já estava cansado de vigiar o saguão, mas ficou por lá mesmo com o cair da noite. Matthias ainda estava em seu quarto e isso significava que tudo o que Jim podia fazer era esperar.

Assim era a vida de um agente: grandes períodos de inatividade separados por grandes arroubos de uma dança que decidia entre a vida e a morte.

Droga, aquilo era igualzinho aos bons e velhos tempos – que não tiveram nada de “bons” e naquele momento nem pareciam tão velhos, pois a antiga identidade de Matthias não era a única coisa em que Jim estava pensando. Desde que seu novo emprego como anjo tomara conta de sua vida, era como se tudo o que acontecera antes tivesse sido apagado – mas nesta rodada isso não acontecera. Jim podia ter deixado sua outra vida de lado, mas isso não significava que ele não tinha muita história...

Olhando para o teto circular, ele franziu a testa. Matthias estava se movendo.

Um minuto e meio depois, as portas do elevador se abriram e o homem surgiu no saguão, apoiando-se em sua bengala, usando óculos escuros mesmo à noite. As pessoas ao redor notaram sua presença – mas sempre fora assim, como se o poder de Matthias criasse um farol que sinalizava até para os mais desatentos.

Tornando-se visível, Jim entrou no caminho do cara.

– Marcou algum encontro para tarde da noite?

O Ray-Ban virou em sua direção, mas a reação parou por aí.

– Você virou minha babá?

– Pois é, e estou sendo mal pago – Jim acenou para a porta giratória da entrada principal. – Está indo a algum lugar?

– Não, só quero tomar um pouco de ar. Sinto que... – Matthias passou a mão no cabelo. – Estou preso. Não aguento mais olhar para aquelas paredes... O que foi? Por que está me olhando desse jeito?

Antes que Jim pudesse pensar em uma mentira, disse:

– Você parece muito mais humano agora.

– Que merda isso quer dizer?

Jim deu de ombros.

– Não importa. Posso ir junto?

– Eu tenho escolha?

– Você pode tentar sair correndo.

– Não é legal tirar sarro de um inválido.

– Inválido? Onde?

Matthias soltou uma risada.

– Certo. Faça o que quiser.

Lá fora, a noite estava mais quente do que o normal para essa época do ano e um grosso nevoeiro deixava o ar pesado, com sua umidade pairando entre nuvens sobre o asfalto, como se não conseguisse decidir se despejava a água ou não.

Jim tirou seu maço de cigarros do bolso, acendeu um e exalou um fio de fumaça. Com o nevoeiro, os Marlboros e o ressoar de seus passos na calçada, aquela cena podia perfeitamente fazer parte de um film noir... principalmente quando perceberam que havia um grupo de homens seguindo seus passos – ou marchando, como parecia o caso.

Mas. Que. Diabos?

Todos os seis cretinos vestiam roupas de couro, o que poderia indicar que eram góticos... mas a maneira como andavam atrás de seu líder tinha um ar de militar profissional.

Quando o grupo passou por eles, Matthias e Jim se puseram de lado, e o líder lhes lançou um olhar.

Realmente era um filho da puta mal encarado, com os olhos cheios de agressividade.

Hum... em sua antiga vida, Jim poderia até considerá-los candidatos para recrutamento. Pareciam capazes de matar qualquer coisa ou qualquer pessoa em seu caminho, principalmente o cara da frente.

Mas Jim já não era o mesmo. E tinha esperança de que Matthias também não fosse.

– Lembrei de uma coisa – disse seu antigo chefe, quando ficaram novamente sozinhos na calçada.

– Lembrou?

– Apenas coisas pessoais. Nada em que eu estivesse interessado.

Quando o silêncio se tornou tão pronunciado quanto o nevoeiro, Jim deu outro trago no cigarro e falou, enquanto exalava a fumaça:

– Está esperando que eu preencha o silêncio?

– Você é quem quis vir junto. Podia pelo menos fazer alguma coisa útil.

– E eu pensando que estava aqui só pra deixar a paisagem mais bonita.

– Não pra mim, cara – quando Jim não respondeu, Matthias virou o olhar em sua direção. – Então, estive pensando sobre você.

– Não de um jeito romântico, espero.

– Não, eu costumava gostar de mulheres. Gostar muito.

– Costumava?

Matthias parou e o encarou.

– O que quero saber é...

Da outra ponta do quarteirão, uma figura surgiu na calçada com jeito de quem está acostumado a fazer emboscadas, e a arma que disparou na direção deles quase não fez barulho. Tudo o que Jim viu foi a breve explosão quando a bala saiu pelo cano do silenciador.

Praguejando, ele saltou sobre Matthias e o empurrou para um beco. Sua força de seus cem quilos levantou o homem no ar e os dois voaram juntos até atingirem o chão como se estivessem em câmera lenta. No meio da queda, e com perfeita sincronização, ambos sacaram suas armas, miraram no atirador e puxaram o gatilho – e então Jim girou o corpo para cair no pavimento por baixo de Matthias servindo como colchão para o outro.

Não havia tempo a perder, e ele não precisava dizer isso a seu ex-chefe – claramente, sua preferência por mulheres não era a única coisa que Matthias lembrava. Em um piscar de olhos ele já estava de pé e pronto para se proteger atrás de um carro que estava a uns três metros de distância.

Mais tiros foram disparados na direção deles, ricocheteando no pavimento, na porta e no pneu do carro. O atirador os seguiu e se manteve nas sombras enquanto se aproximava.

Esse tipo de movimentação esquiva também era um indicativo. O agressor chegou sem fazer barulho, e não só porque usava uma arma com silenciador igual à de Jim: não havia som dos passos nem respiração pesada; aquela pessoa era um assassino treinado, acostumado com aquele tipo de situação.

Um agente das Operações Extraoficiais, pensou Jim. Tinha que ser.

Praguejando novamente, olhou ao redor à procura de opções. O carro não era bom o suficiente para dar cobertura, pois tinha um tanque de gasolina – Jim sabia o quanto poderia aguentar, mas não sabia bem como Matthias se encaixava nessa coisa de voltar dos mortos, e uma explosão de um carro não seria a melhor maneira de testar.

Agarrando um dos braços de Matthias, ele ajudou o cara a correr para trás do carro – que, por pura sorte, estava estacionado em frente à entrada de serviço do hotel, com duas portas de metal no meio de um muro de tijolos. Jim foi direto para a maçaneta e tentou girar.

Obviamente estava trancada.

Mas que se dane. Ele sabia o que tinha de fazer.

Lançando uma rajada de energia no metal, ele explodiu o mecanismo da tranca e, usando o ombro, empurrou a porta. Quando ela cedeu com um rangido, Matthias congelou, como que condicionado pelo medo.

Ele arrastou o homem para dentro e voltou a fechar as portas. Ajudando-o a ficar de pé, lançou outra rajada de energia, desta vez mais longa e forte, e soldou rapidamente a porta, para que ganhassem um pouco de tempo para a fuga.

A boa notícia era que funcionou – e seu ex-chefe estava ocupado demais checando a munição para notar o truque mágico.

Com a bengala em uma das mãos e a arma na outra, Matthias recobrou a consciência.

– Por aqui – gritou, como se estivesse no controle. – Tem que ter uma saída.

Jim não contestou a liderança e voltou a apoiar o cara. Enquanto percorriam o caminho, manteve um olho na retaguarda.

Não era preciso ser um gênio para saber quem era o alvo. Matthias era o antigo chefe das Operações e havia “morrido”. O procedimento padrão era confirmar visualmente a morte, mas ninguém pudera fazer isso, já que Isaac Rothe se livrara dos restos mortais.

De algum jeito, eles descobriram que Matthias estava bem vivo e perambulando por Caldwell.

Talvez Devina tivesse um “contato” na organização.

– Você trancou a porta atrás de nós? – Matthias grunhiu.

– Sim – e provavelmente o assassino teria dificuldade em...

A explosão foi rápida e precisa, pouco mais do que um lampejo de luz. E então a porta rangeu mais uma vez e o agente surgiu no corredor.

À frente, Jim não encontrou nenhuma porta. Apenas o longo corredor que se estendia até onde podia enxergar.

Como se tivessem o mesmo cérebro, Matthias e ele se viraram e apertaram o gatilho, disparando tudo que tinham. Tiros, deles e do agente, ricochetearam por toda parte – e nem é preciso dizer que Jim se posicionou na frente de Matthias, usando o próprio corpo como escudo.

Alguns tiros o acertaram e a dor foi desagradável, mas nada que pudesse matá-lo ou desviar sua atenção. E então, a munição da dupla acabou.

O mesmo aconteceu com o agente.

Houve uma breve calmaria, que claramente estava sendo usada pelo agente para recarregar, e Jim não tinha escolha a não ser correr novamente. Feitiços de proteção eram ótimos contra os lacaios de Devina, mas não eram muito eficazes contra tiros reais. Então, usando o corpo como escudo, escolheu um lado do corredor e correu como um louco. E enquanto passavam por pilhas de cadeiras do restaurante, Matthias ajudou como pôde – mas, com sua deficiência nas pernas, era melhor que ficasse parado e se deixasse carregar pelo chão.

Afinal, não tinham tempo para discutir se aquilo feria a dignidade de Matthias ou não.

Percorreram três metros e então Jim percebeu que não havia mais tiros.

Nenhum profissional demoraria tanto para recarregar. O que diabos estava se passando?

Naquele instante, sentiu a presença de Devina, tão perceptível quanto uma sombra passando por sua própria tumba.

Que merda fantástica.


CAPÍTULO 19

– Vamos lá, Monty, você precisa me dar alguma coisa.

Diferente dos outros repórteres na cena do crime, Mels não ficou no meio da confusão em frente à fita amarela que isolava a porta entreaberta do quarto. Ela estava do outro lado, em meio ao nevoeiro que surgiu de repente junto com seu velho amigo Monty, o Boca. Monty era um bom policial, mas o que o tornava muito útil era seu ego. Ele adorava contar detalhes dos crimes só para mostrar que podia, e isso era muito conveniente.

Mas aquela noite era diferente, pois a história era sua – dessa vez Mels não estava juntando informações para outra pessoa.

Ela se aproximou.

– Eu sei que você sabe o que tá acontecendo.

Monty ajeitou o cinto e passou a mão no cabelo cheio de gel. Aquela figura parecia saída de outra época. Se raspasse a cabeça e tivesse um pirulito na mão, ficaria a cara do Kojak.

– Pois é, fui um dos primeiros a chegar. Você sabe, na cena do crime.

O problema com Monty era que ele fazia você se esforçar pelas informações.

– Quando você foi chamado?

– Duas horas atrás. O gerente ligou para a emergência e eu era o policial mais próximo do local. O cara que alugou o quarto pagou por apenas um período de uma a cinco horas, mas já tinham se passado nove horas e ninguém tinha feito o check-out na recepção. Eu bati na porta. Ninguém respondeu. O gerente usou sua chave e... bom, lá estava.

– O que você acha que aconteceu? – era importante usar o pronome você.

– Era sabido que ela era uma prostituta, então há três possibilidades.

Depois de uma pausa, ela completou o raciocínio, como já era o costume entre eles.

– Um cafetão, um desconhecido ou um namorado ciumento.

– Nada mal, nada mal – ele ajeitou novamente o cinto. – A porta não foi arrombada. Claramente houve resistência, já que as roupas dela estavam amarrotadas. Mas nem tudo parecia ser um caso do beco azul.

“Beco azul” era uma referência a um corredor pelo qual, por gerações, os policiais levavam suspeitos para dar entrada na delegacia. Com o tempo, o termo se tornou um código para casos criminosos sem nada de anormal ou de inesperado.

– E a surpresa foi...?

Monty aproximou o rosto, como se estivesse prestes a contar um segredo.

– Ela tinha acabado de pintar o cabelo. Por alguma razão, isso fez parte do programa. Deixou o cabelo loiro e liso. E então ele a matou.

– Como sabe que era um “ele”?

Monty lançou um olhar descrente.

– E, não, não posso dar o nome dela. Ainda não foi divulgado porque estamos procurando a família. Mas eu sei quem ela era, e ela tem sorte de ter sobrevivido os últimos dois anos. Sua ficha é longa e tem muita violência... e ela como agressora.

– Certo, bom, você me liga se puder contar mais alguma coisa? Eu não divulgo minhas fontes, você sabe disso.

– Sim, nisso você é boa, mas, sem ofensa, você não cobre muito esse tipo de crime. Escuta, você não pode me colocar em contato com seu amigo Tony? Geralmente é ele quem faz esse tipo de show.

Naquele momento, ela perdeu um pouco do respeito por Monty, e não por ele desdenhar da falta de credenciais dela com o Correio de Caldwell. Pelo amor de Deus, ele não era nenhum astro do rock, aquilo não era nenhum show e, caramba, será que dava para parar de mexer naquele coldre? Aquilo era uma cena de crime, e a filha, irmã ou namorada de alguém estava morta ali no banheiro.

Ele podia pelo menos ficar um pouco constrangido e se sentir culpado por vazar aquelas informações. Assim como ela estava.

– Dick me passou essa pauta – ela disse.

– É mesmo? Ei, parece que você está evoluindo. E, sim, eu te ligo, desde que não cite meu nome.

– Eu prometo.

– Nos falamos mais tarde – ele acenou para o lado, dispensando-a. – E atenda o telefone quando eu ligar, tenho um pressentimento sobre este caso.

Ela mostrou o celular.

– Eu sempre atendo.

Quando Mels se virou, ela passou a mão na nuca e sentiu os fios de cabelo arrepiados. Olhando ao redor, viu apenas pessoas trabalhando. Policiais. Detetives. Uma fotógrafa passando apressada pela fita. Havia também duas equipes de jornalismo no estacionamento, uma delas gravando e lançando luzes fortes sobre uma jornalista de cabelos morenos.

Mels virou-se completamente. Esfregou a nuca mais um pouco.

Cara, esse nevoeiro estava estranho.

Checando o relógio, pegou o celular e fez uma chamada. Quando alguém atendeu, colocou as mãos em forma de concha ao redor da boca.

– Mãe? Oi, sou eu. Escuta, eu sei que disse que ia chegar cedo, mas ainda estou trabalhando. O quê? Desculpe, não estou escutando... Certo, agora melhorou. Sim, eu... ah, não, não se preocupe. Estou com metade da força policial aqui... – provavelmente não foi a melhor coisa para dizer. – Não, estou bem, mãe. Sim, é um homicídio, mas é um caso grande, e estou contente porque o Dick me passou. Sim, eu prometo. Certo... sim, claro. Escuta, preciso ir... e eu bato na porta assim que chegar em casa.

Ela desligou, achando que não chegaria tão cedo em casa – e estava preparada para esperar o tempo que fosse necessário. O corpo precisaria ser fotografado, a equipe forense viria fazer exames e só então a vítima poderia ser removida.

Mels ficaria até que a polícia terminasse seu trabalho, os jornalistas da televisão fossem embora e qualquer outro repórter tivesse desistido.

Andando até o carro de Tony, enviou uma mensagem de texto ao colega, dizendo que ainda não dera perda total em seu veículo – e que o levaria para almoçar amanhã e o pegaria em casa às oito e meia em seu caminho para o trabalho.

Então ela dobrou o casaco sobre si mesma e sentou no capô do carro.

Imediatamente, Mels se levantou, tensa e olhou para trás. Mas não havia nada além de postes de luz no lado mais distante do longo estacionamento do motel. Ninguém espreitando atrás dela, ninguém mesmo.

Então por que tinha a sensação de estar sendo vigiada?

Massageando a cabeça, ela começou a imaginar se a paranoia de Matthias era contagiosa. Ou talvez aquilo que acontecera entre os dois na cama estivesse embaralhando seu cérebro.

Não importa o que digam sobre amnésia, aquele homem sabia muito bem como usar os lábios...

Por algum motivo, ela não podia acreditar que aquilo tinha acontecido. Mels nunca gostara de encontros casuais, mesmo nos tempos de faculdade – mas, se Matthias não tivesse parado, ela deixaria que as coisas chegassem à sua conclusão natural cheia de nudez.

Que surpresa. Principalmente porque sabia que seria capaz de fazer aquilo de novo.

Se é que teria uma nova chance.


Congelado no corredor do porão do Marriott, com Jim Heron o cobrindo como um cobertor, Matthias sentia-se como um boxeador. Mas não como Muhammad Ali ou George Foreman. Sentia como se fosse um sparring, aqueles caras que servem como parceiros de treino e que os verdadeiros lutadores esmurravam antes de encarar um oponente à altura: sua arma estava descarregada, seu peito arfava, a cabeça girava, estava exausto por toda aquela correria. Pelo menos parecia que não fora atingido pelos tiros.

Mas alguém fora. O cheiro de sangue fresco os perseguia e o som de alguma coisa pingando sugeria um vazamento – e provavelmente não era no encanamento do hotel.

– Fique aqui – ordenou Jim.

Como se fosse uma garotinha?

– Vai se foder.

Juntos, eles marcharam em direção ao atirador incapacitado, com Jim na frente porque ele conseguia andar um pouco mais rápido.

Pouco depois da porta que eles arrombaram, um homem vestindo roupas apertadas pretas estava de costas no chão, com os olhos fixos e dilatados, encarando o vazio. Sua garganta fora rasgada logo abaixo da linha do queixo – as veias e artérias não foram apenas cortadas, mas totalmente abertas, em um corte limpo.

– Que sujeira – murmurou Matthias, que olhava ao redor pensando em como limpar tudo aquilo... e se perguntando quem diabos os salvara.

Enquanto considerava os prós e contras de várias técnicas de descarte de cadáveres, estava ciente de que a morte, o corpo, a violência de ter sido perseguido a tiros, essas coisas pouco o afetaram emocionalmente: aquilo era o trabalho de sempre, nada além de ações práticas que visavam evitar o envolvimento da polícia.

Era assim que ele vivia, pensou. Aquela era a sua praia.

Apoiando-se na bengala, abaixou-se e um de seus joelhos estalou como um galho de árvore.

– Você tem um carro?

– Não aqui, agora, mas posso cuidar disso. Faça um favor e...

Matthias começou a revistar o cadáver, apalpando-o, retirando a munição extra, uma faca e outra arma.

– Certo, certo – Jim disse com a voz seca. – Vou dar uma olhada lá fora pra ver se não tem ninguém na rua.

– Então você também não sabe quem é o nosso bom samaritano?

– Nem ideia.

A porta de metal rangeu novamente quando Jim a abriu e, por uma fração de segundo, Matthias ficou paralisado de medo, o terror congelou seu corpo do coração até os pés. Seus olhos percorreram todas as direções buscando inimigos nas sombras, esperando que saltassem sobre ele a qualquer momento.

Não havia nada.

Resmungando consigo mesmo, voltou a se concentrar e abriu a camisa do homem. O colete à prova de balas tinha pelo menos uma marca de tiro – então ele e Jim não haviam desperdiçado toda a munição. Nada de celular. E, considerando que Jim acabara de sair mas não fora de encontro a uma saraivada de balas, não havia ninguém para dar cobertura àquele soldado.

Sentando-se, Matthias avaliou a porta de metal. No centro, ao redor do mecanismo da tranca, havia uma mancha queimada onde o agressor usara algum tipo de bomba portátil.

De repente, Matthias foi atingido por uma lembrança, na qual enxergou as próprias mãos segurando um detonador de uma bomba improvisada. Ele a preparara para atingir a si próprio: era uma combinação de circuitos eletrônicos e explosivos que serviriam como rota de fuga da sua vida...

Jim estava errado. Ele não odiava a si mesmo ou o que se tornara. Estava apenas exausto de ser quem era.

E ele era o...

A dor de cabeça surgiu com força, como se o cérebro tivesse uma cãibra: a dor limpou seus pensamentos e as memórias foram bloqueadas novamente pela agonia.

Merda, ele queria acesso ao que estava escondido, mas não podia arriscar ficar indefeso debruçado sobre um cadáver.

Baixando os olhos até o rosto do morto, se forçou a parar de pensar na amnésia e notou a mudança na cor da pele do cara: a vermelhidão causada pelo exercício era substituída por um cinza opaco. Acompanhando o processo da morte e concentrando-se apenas nisso, ele conseguiu voltar à realidade.

– Eu conheço você? – perguntou ao cadáver.

Parte de si estava convencida de que sim. O rosto pertencia a um jovem de pele clara, magro por falta de gordura no corpo, pálido por falta de sol, como se estivesse acostumado a trabalhar à noite. Por outro lado, quantos milhões de caucasianos na casa dos vinte anos existiam por aí?

Não, pensou, ele conhecia aquele garoto de algum lugar.

Na verdade, sentia que escolhera aquele filho da puta.

Será que ele participava de algum recrutamento? Para os militares?

Jim voltou ao corredor, fechou a porta e se recostou nela, cruzando os braços em cima do peito e parecendo querer socar uma parede.

– Estamos sozinhos? – perguntou Matthias.

– Eu diria que sim.

Abruptamente, notou os furos na camisa de Jim.

– Ainda bem que você também está usando colete à prova de balas.

– O quê?

Matthias franziu a testa.

– Você foi atingido...

De uma só vez, seu cérebro cuspiu outro pedaço do passado: viu os dois em uma sala forrada de aço inoxidável, um corpo gelado deitado em uma maca entre eles, uma arma levantada, um gatilho sendo acionado... na direção do maldito Heron. E foi Matthias quem atirou.

– Eu atirei em você em um necrotério – Matthias soltou. – Eu atirei em você... bem no meio do peito.


CAPÍTULO 20

Que sincronia perfeita, pensou Jim enquanto Matthias o encarava como se tivesse brotado um chifre no meio de sua testa.

Não era uma boa hora para a memória dele voltar a se conectar: claramente, alguém das Operações estava seguindo o rastro de Matthias. Essa era a única explicação lógica para o que acontecera – embora não fosse isso que estava embaralhando seu cérebro.

Evidentemente, Devina salvara seus traseiros.

Ela surgiu, esfaqueou e sumiu. E, como o demônio nunca fazia nada que não fosse para o próprio benefício, Jim ficou imaginando qual seria o motivo daquilo tudo. Talvez nenhum – afinal, se queria influenciar Matthias em sua nova encruzilhada, Devina precisava que ele continuasse vivo.

E Jim obviamente não fizera um trabalho muito bom protegendo o cara.

– Eu atirei em você... – Matthias repetiu.

Jim lançou um olhar do tipo supere-logo-isso.

– E daí? Você quer uma medalha? Vou comprar uma pra você na internet. Mas antes que fique aí todo existencialista, saiba que é pra isso que existe colete à prova de balas, certo?

– Você não estava usando um – Matthias retirou os óculos escuros e estreitou o olhar. – E não está usando agora.

– Certo, estamos num local público com um cadáver cheio de balas que saíram das nossas armas. Você realmente acha que é hora pra ficar de conversa?

– Eu conheço esse cara – Matthias apontou para o morto. – Mas não sei dizer de onde.

– Olha, vou levar o lixo para fora. Se não se importa, dá pra voltar para a droga do seu hotel agora?

– Fale comigo. Ou não vou a lugar nenhum.

Por uma fração de segundo, Jim lembrou-se claramente da razão de sempre chamar o cara de Matthias, o Cretino.

– Que seja. Você era o chefe dele.

– Que tipo de chefe eu era?

Eles não tinham tempo para aquilo.

– Bom, posso dizer que não era do tipo que eu gostava.

– Eu também era seu chefe... não é mesmo? – quando Jim não respondeu, o outro apertou os dentes. – Por que diabos você tá me deixando no escuro? De um jeito ou de outro vou acabar juntando todos os pedaços, e tudo o que você tá fazendo é me deixar cada vez mais nervoso.

Merda. Havia uma possibilidade muito real de o cara não se mover, e Devina poderia voltar – ou, quase tão ruim, a polícia ou os seguranças do hotel poderiam aparecer.

– Certo – Jim disse, frustrado. – Acontece que eu tenho medo que, se você souber, vai acabar no Inferno. Satisfeito?

Matthias recuou.

– Você não parece um religioso fanático.

– Porque eu não sou. Então, podemos parar com essa besteira e começar a nos mexer?

Matthias apoiou-se nos pés, colocou a bengala nos ombros e segurou os calcanhares do cadáver.

– Você não vai conseguir evitar essa pergunta pra sempre.

– Que diabos você está fazendo?

– Vamos lidar com isto juntos.

– Não, não vamos...

O som de sirenes interrompeu a discussão e os dois olharam para a porta ao mesmo tempo. Com sorte, os policiais passariam direto – o som aumentaria e depois diminuiria quando as viaturas começassem a se distanciar...

Não. Alguém devia ter visto ou ouvido alguma coisa e chamado a polícia.

Quando um carro freou no beco, Jim quis sair daquela situação da maneira mais fácil – colocar Matthias em transe, teletransportar o cadáver e jogar uma névoa na mente dos policiais que, naquele exato instante, saíam das viaturas com lanternas nas mãos. Mas o truque mental era difícil de fazer com mais de uma pessoa ao mesmo tempo. E botar fogo no corpo denunciaria sua posição aos policiais.

Com sorte, eles levariam um tempo vasculhando o beco primeiro.

– Fique calado – Jim grunhiu. Então agarrou Matthias pelo tronco, sustentando-o com o ombro, e começou a correr pelo corredor.

– Você... está... de... brincadeira... – Matthias disse, aos pulos, enquanto era carregado.

A sessão de reclamação parecia ter terminado, fosse porque Matthias engolira a língua na correria ou porque seu cérebro fritara de vez. Mas, caramba, pelo menos conseguiram chegar ao final do longo corredor, e dessa vez Jim não precisou esconder a rajada de energia que usou para abrir outra tranca. Irrompendo pela porta, ele...

Oh, merda.

... entrou direto nos fundos de um dos restaurantes do hotel.

A boa notícia era que parecia ser uma instalação usada apenas para o café da manhã e almoço; o lugar parecia uma cidade fantasma, os balcões de aço inoxidável da cozinha estavam limpos e prontos para o próximo turno. Infelizmente, o arrombamento disparou o alarme de segurança e luzes vermelhas começaram a piscar por toda parte.

– Por ali – Matthias disse, apontando para um conjunto de portas duplas com janelas redondas. – E me ponha no chão.

Jim soltou o cara e ambos voltaram a andar, passando por um fogão tão longo quanto um campo de futebol e por uma pia grande o suficiente para dar banho em um elefante. Enquanto seus passos ecoavam no chão de ladrilho vermelho, Jim olhou ao redor em busca do controle do alarme. Que, claro, não estaria bem visível no meio daquela cozinha enorme. Além disso, mesmo se ele pudesse desligar o alarme, o sinal já fora enviado para alguma central.

Passando pelas portas duplas, entraram em um salão cheio de mesas quadradas esperando por esfomeados que só apareceriam dali a sete horas.

No lado mais distante, as grandes janelas de vidro vermelho que separavam o restaurante do saguão principal mostravam um trio de pessoas correndo – provavelmente seguranças do hotel.

Ele e Matthias olharam para a esquerda, onde cortinas que iam do chão ao teto cobriam grandes janelas duplas de estilo antigo.

Sem discussão, partiram para a única saída disponível. E, para o crédito de Matthias, ele não tentou bancar o herói quando chegaram ali; parou pouco antes e deixou Jim cuidar da tranca usando a alça de bronze da janela.

Jim usou mais do que o peso de seu corpo para abrir a janela. Usou seu poder mental, e a janela abriu com um estalo, como se estivesse se soltando de uma tintura recém-seca.

Era uma queda de quatro metros até o chão.

– Merda – disse Matthias. – Você vai ter que me pegar.

– Sim, senhor.

Com um impulso coordenado, Jim jogou-se nas mãos frouxas da gravidade. Aterrissou com firmeza em suas botas de combate e deixou os braços levantados. O pulo de Matthias seria mais complicado, parecia que ele tinha dificuldade para dobrar as pernas, mas o cara era esperto. Ele agarrou a janela e a fechou pelo lado de fora, mesmo com seu traseiro quase não cabendo no parapeito.

Quando deixou o corpo cair em queda livre, sua jaqueta preta se agitou inutilmente, como se fosse um paraquedas que levara um tiro.

Jim agarrou seu ex-chefe com um grunhido, impedindo que ele atingisse o chão.

– Encontraram nosso amigo – Matthias disse enquanto se recompunha.

De fato, do outro lado do edifício, os policiais haviam aberto aquela porta dupla e entrado no corredor. Suas lanternas se refletiam pelo beco, como se estivessem vasculhando ao redor do cadáver.

Hora de virar fantasma.

Movendo-se o mais rápido e silenciosamente que podiam, os dois tomaram a direção oposta. Diferente das Operações Extraoficiais, cobertura era o procedimento padrão da polícia de Caldwell e, como já esperavam, mais sirenes ecoaram pela noite.

Pouco mais de cinquenta metros depois, eles pararam no outro canto do hotel, olharam ao redor e saíram do beco, com o máximo de calma que conseguiam fingir.

– Tire os óculos – Jim disse enquanto focava a calçada à frente.

– Já tirei.

Jim olhou para seu ex-chefe. O homem estava com o queixo erguido e olhava diretamente para a frente. Seus lábios estavam entreabertos e ele respirava como um trem de carga, mas ninguém perceberia, a menos que procurassem especificamente por sinais de falta de ar.

Até onde as pessoas podiam notar, os dois eram apenas amigos que haviam saído para um passeio, longe de estarem ligados a qualquer acontecimento estranho.

Jim ficou com muita vontade de dizer ao seu antigo chefe que o cretino fizera um bom trabalho. Mas aquilo seria ridículo. Os dois foram treinados pelo mesmo sargento, passaram anos exercitando técnicas de evasão lado a lado e estiveram em muitas variações desse mesmo cenário.

Quando entraram no saguão, Matthias já estava respirando normalmente.

Nem é preciso dizer que o cara continuaria hospedado no Marriott. Agora que a tentativa de fuga não só fora frustrada, mas também acabara envolvendo a polícia, uma nova tentativa seria mais arriscada e complicada, pelo menos nos próximos dias.

Além disso, depois de conhecerem aquela cozinha de primeira...

Seria uma pena não experimentar o almoço.


A persistência de Mels foi recompensada... de um jeito triste.

As equipes de reportagem foram embora depois da meia-noite, e então os policiais começaram a deixar o local. Até Monty foi embora antes dela. Finalmente, restaram apenas a equipe forense, dois detetives e Mels.

A fita de isolamento da polícia foi diminuindo cada vez mais à medida que as pessoas iam embora, e Mels também foi se aproximando cada vez mais da porta aberta do quarto do motel. Então, quando chegou a hora de remover a vítima, ela teve uma visão clara do procedimento. Dois homens entraram com um grande saco preto e, por causa do espaço pequeno no banheiro, tiveram que colocar o saco na sala e carregá-la para fora.

Pobre garota.

– É, foi terrível.

Mels virou-se, sem saber se tinha falado em voz alta. Um cara alto e de aparência assustadora estava atrás dela – era um típico mal-encarado com piercings no rosto e uma jaqueta de motoqueiro. Mas sua expressão parecia denunciar um coração partido, o que imediatamente fez Mels mudar de opinião quanto ao sujeito. Ele não estava prestando atenção nela; encarava a garota morta cujo corpo estava sendo arrumado para entrar naquele grande saco preto.

Mels voltou a olhar para a cena.

– Sinto pena do pai dela.

– Você o conhece?

– Não. Mas posso imaginar o sofrimento – por outro lado, talvez o cara não tivesse sido um bom pai e isso fosse um dos motivos para a garota ter entrado naquela vida. – É só que... ela um dia foi só um bebê. Deve ter havido alguma inocência em algum ponto.

– Espero que sim.

A curiosidade fez Mels avaliar novamente o cara.

– Você está hospedado aqui?

– Sou apenas um espectador – o homem suspirou com uma curiosa aparência de derrota. – Cara, eu odeio a morte.

Naquele momento, por alguma razão, Mels pensou em seu pai. Ele também fora removido daquele acidente em um saco plástico – depois de as ferramentas de corte hidráulico terem cortado caminho até o banco do motorista.

Será que agora ele estava no Céu? Olhando-a lá de cima? Ou seria a morte realmente o apagar definitivo das luzes, como um carro sendo desligado ou um aspirador fora da tomada?

Bom, não havia vida após a morte para eletrodomésticos. Então, por que os humanos achavam que seu destino seria diferente?

– Porque é, sim, diferente.

Ela olhou por cima do ombro e sorriu sem jeito.

– Desculpa, não percebi que falei em voz alta.

– Tudo bem – o cara sorriu um pouco. – E não há nada de errado em ter fé e esperança de que seus entes queridos estejam em paz em algum lugar. Na verdade, a fé é uma coisa boa.

Mels voltou a olhar o quarto do motel, pensando que era estranho ter esse tipo de conversa com um total estranho.

– Mas eu queria ter certeza.

– Ah, mas você é uma repórter, então vazaria a informação.

Ela riu.

– Então a existência do Céu e do Inferno é um segredo?

– Exatamente. Os humanos precisam de duas coisas para criar vínculos verdadeiros entre si: a escassez e o desconhecido. Se as pessoas que amamos vivessem para sempre, talvez não déssemos importância para sua presença, e se soubéssemos com certeza que iríamos nos reencontrar, nunca sentiríamos falta delas. É tudo parte do plano divino.

Então ele era um maluco religioso.

– Bom, isso faz sentido.

Eles se afastaram quando os policiais pegaram as alças do saco plástico e começaram a retirar a vítima. Enquanto a sombria procissão passava, Mels começou a entender a razão de Dick ter lhe passado aquela pauta. Uma garota morta, uma cena macabra, as ruas perigosas de Caldwell, blá, blá, blá. Ele era simplesmente o tipo de cretino que revidaria por Mels tê-lo esnobado tantas vezes.

E a verdade é que aquilo a deixou realmente abalada, como qualquer pessoa com uma consciência ficaria. Mas ela faria seu trabalho mesmo assim.

Inclinando-se para a porta, ela falou com o homem que estava no comando:

– Detetive De la Cruz? Você poderia dar uma declaração?

O detetive levantou os olhos de seu bloco de anotações antiquado.

– Você ainda está aqui, Carmichael?

– É claro.

– Seu pai ficaria orgulhoso, você sabe disso.

– Obrigada, detetive.

Quando se aproximou, o detetive nem sequer olhou para o grande homem que estava ao lado dela; mas De la Cruz era assim mesmo. Não se perturbava com quase nada.

– Não tenho nada para dizer ainda. Desculpe.

– Nenhum suspeito?

– Sem comentários – ele apertou o ombro dela. – Diga “oi” para sua mãe, certo?

– E quanto à cor do cabelo?

Ele apenas acenou e continuou andando, entrou no seu velho Ford cinza e dirigiu para fora do estacionamento.

Quando o último policial trancou a porta do quarto e colocou a fita de segurança, Mels virou-se para o homem atrás dela...

Sumiu. Como se nunca tivesse estado ali.

Estranho.

Andando até o carro de Tony, ela ainda podia jurar que estava sendo seguida, mas não havia ninguém por perto. A sensação persistiu enquanto dirigia para casa, ao ponto de ela se perguntar se paranoia poderia ser um vírus contagioso.

Matthias com certeza estava nervoso, mas ele tinha razão para estar. Ela com certeza não tinha.

Mels tomou o caminho mais curto para casa e, quando passou pelo cemitério novamente, decidiu fazer um pequeno desvio.

Parou em uma rua onde cada garagem possuía dois postes de luz brilhando em cada lado da porta. Com exceção desse rancho em particular, que tinha as luzes apagadas, tanto fora como dentro, como um buraco negro em meio a uma rua cheia de casas ocupadas e iluminadas.

Ela aproximou a mão da porta do carro, querendo dar uma olhada ao redor, espiar dentro das janelas, talvez encontrar uma porta aberta para entrar na garagem. Mas, assim que tocou a maçaneta, uma onda de pavor tomou seu corpo, como se aquela sensação de estar sendo vigiada tivesse se transformado em um bicho papão real prestes a pular nela com uma faca.

Mels deu um tempo para que o medo passasse, caso fosse apenas uma indigestão do hambúrguer com batata frita que comera no Marriott, mas quando a sensação não passou, ela engatou a primeira marcha e deu meia volta com o carro.

Provavelmente o culpado era o nevoeiro que ainda pairava no ar.

Sim, tinha de ser isso – um nevoeiro de cinema, que fazia a noite parecer ainda mais escura e perigosa do que realmente era.

Acelerando, ela trancou a porta e segurou firme o volante.

Não relaxou enquanto não entrou na garagem da casa de sua mãe, com os faróis do carro de Tony iluminando a casa em que crescera.

Por alguma razão, ela observou as janelas duplas no segundo andar. Aquelas que ficavam no parapeito de seu quarto.

Seu pai consertara aquelas janelas quando ela tinha dez anos: depois que um vendaval as arrancou completamente, ele usou uma brilhante escada de alumínio e carregou os pesados painéis de madeira para cima, equilibrando-os no beiral, apertando os parafusos, deixando tudo novo em folha.

Ela segurara a base da escada só porque queria fazer parte daquilo. Não estava preocupada que ele fosse cair. Ele parecia o Super-Homem naquele dia.

Na verdade, em todos os dias.

Mels pensou naquele estranho no motel, aquele maluco religioso cheio de piercings. Talvez aquela teoria da escassez e do mistério estivesse certa em se tratando de algumas pessoas. Mas se ela soubesse com certeza que seu pai estava bem, conseguiria encontrar um pouco de paz para si mesma.

Engraçado, até aquela noite não havia percebido que talvez precisasse disso.

Afinal, desde que ele se fora, ela vinha se esforçando para não pensar muito nas coisas.

Era doloroso demais.


CAPÍTULO 21

Por volta das cinco da manhã, Jim estava no quarto de Matthias no hotel Marriott, sentado em uma cadeira no canto, encarando a televisão sem som. Duas horas antes, ele recebera uma mensagem de texto de Ad informando que a repórter estava segura na casa de sua mãe e que o anjo checaria se estava tudo bem com Eddie e deixaria o Cachorro sair um pouco. A próxima mensagem chegou 45 minutos depois: Ad ia tirar um cochilo.

Ao lado, na cama de casal, Matthias dormia sobre as cobertas como uma pedra, deitado de costas, cabeça no travesseiro, mãos cruzadas sobre o peito. Só faltava uma rosa branca entre os dedos e o som de um órgão de igreja para que Jim começasse a prestar suas condolências.

Por que diabos Devina ajudara os dois?

Droga, a única coisa pior do que ela atacando era ela o salvando. E Jim não precisava daquele resgate. Ainda tinha truques na manga, caramba. Estava prestes a fazer um grande show de luzes.

Talvez ela estivesse tentando puxar o saco do Criador.

O que seria algo muito irritante...

A edição das cinco da manhã do programa Wake Up, Caldwell! começou com uma repórter cobrindo uma cena de crime no centro da cidade. A mulher, que estava em frente a um motel, virou e apontou para um quarto aberto onde policiais entravam e saíam. Então o vídeo cortou para uma caixa de tintura de cabelo e depois para a foto de uma mulher com cabelo tingido.

Havia tanto pecado no mundo, pensou Jim.

E, pensando nisso, lembrou que precisava de mais munição.

Quando um comercial de salsicha apareceu, seu estômago roncou e ele quase pegou o telefone para chamar o serviço de quarto.

– Você pode pelo menos dizer qual é o meu nome?

Jim olhou para a cama. Os olhos de Matthias estavam abertos, mas ele ficou estático, como uma cobra enrolada ao sol.

– Sempre conheci você como Matthias.

– Fomos treinados juntos, não é? Ontem nós usamos exatamente os mesmos movimentos, ao mesmo tempo.

– Pois é.

Sentindo aonde ele queria chegar, Jim pegou seu maço de cigarros, puxou um entre os dentes e então lembrou que estava em um local público. E não seria irônico se fossem expulsos do hotel por acender um cigarro, sendo que o invadiram pelos fundos, abriram fogo, deixaram um corpo e fugiram dali?

É, seria muito engraçado.

Jim voltou a olhar para a televisão, que agora passava um comercial de desodorante. Por uma fração de segundo, invejou os caras na propaganda: tudo o que tinham para se preocupar eram suas axilas, e, desde que usassem Speed Stick, não precisariam se preocupar com nada.

Se pelo menos a solução para Devina também viesse em spray ou em bastão...

– Conte como eu me matei – quando Jim não respondeu, o outro homem disse: – Por que você tá com medo de falar sobre isso? Você não parece ser um covarde.

Jim esfregou o rosto.

– Sabe de uma coisa? Você devia dormir menos, porque quando está descansado você é um saco.

– Então acho que você é um covarde, sim, afinal de contas.

Jim bufou e soltou ar, desejando que fosse fumaça.

– Certo, sabe o que me preocupa? Que quando você descobrir quem era, vai se tornar aquele homem novamente e eu vou te perder. Sem ofensa, mas essa sua mente vazia é uma benção.

– Você fala como se eu fosse uma pessoa do mal...

– Você era – Jim encarou seu ex-chefe. – Você estava completamente infectado, ao ponto de me fazer concluir que nasceu assim. Mas vendo você do jeito que está agora... – Fez um gesto com as mãos. – É uma surpresa descobrir que não é de nascença.

– Que diabos aconteceu comigo? – Matthias sussurrou.

– Não sei nada do seu passado antes das Operações Extraoficiais.

– Esse era o nome da organização?

– Esse é o nome. E, sim, nós dois treinamos juntos. Antes disso, não sei de nada. Havia rumores sobre você, mas provavelmente eram exageros por causa da sua reputação.

– Que reputação?

– Diziam que você era um sociopata – o homem praguejou baixinho e Jim deu de ombros. – Escuta, eu também não era nenhum santo. Não antes de entrar, e com certeza não enquanto eu estive lá. Mas você... estabeleceu um outro nível. Você era... algo mais.

Houve um período de silêncio. Então, Matthias disse:

– Você ainda não está falando nada específico.

Jim esfregou os cabelos e pensou. Bem, que inferno, havia tanta coisa para escolher.

– Certo, que tal isso: havia um homem, o coronel Alistair Childe. Esse nome traz alguma lembrança? – quando Matthias balançou a cabeça, Jim realmente desejou que estivessem lá fora, para poder acender um cigarro. – Ele era um cara legal, tinha uma filha que era advogada. O filho tinha problemas com drogas. A esposa morreu de câncer. Morava em Boston, mas trabalhava bastante em D.C. Ele chegou perto demais.

– Perto demais do quê?

– Da firma, digamos assim. Você mandou sequestrarem e levarem ele para a casa onde o filho se drogava. Seus agentes encheram o garoto até ele ter uma overdose de heroína e filmaram Alistair gritando enquanto o filho espumava pela boca até morrer. E você pensou que fez um favor para o cara, porque, nas suas próprias palavras, usou o filho que já estava perdido. A ameaça, é claro, era que, se Childe não se afastasse, você mandaria matar sua filha também.

Matthias não se moveu, mal respirava, apenas piscava. Mas sua voz foi o que o denunciou. Rouca e áspera, mal conseguiu pronunciar as palavras.

– Não me lembro disso.

– Você vai lembrar. Em algum momento. Vai se lembrar de muitas outras merdas como essa... e coisas que eu provavelmente nem faço ideia.

– E como você sabe tanto?

– Sobre o caso do Childe? Eu estava lá quando você foi atrás da filha.

Matthias fechou os olhos e seu peito subiu e desceu devagar, como se houvesse um grande peso em cima dele.

Isso deu um pouco de esperança para Jim. Talvez a revelação o afastasse um pouco mais do pecado.

– Se isso é verdade, posso entender por que está preocupado com minha bússola moral.

– É a mais pura verdade. E, como eu disse, tem muito mais.

Matthias limpou a garganta.

– Então, como exatamente isso aconteceu?

Matthias apontou para os olhos e Jim começou a relembrar o passado que compartilhavam.

– Eu quis sair, mas não existe aposentadoria das Operações, e você era o único que podia me exonerar. Nós discutimos sobre isso, e então você apareceu onde eu estava numa missão no deserto. Você disse pra eu te encontrar sozinho à noite num lugar muito longe do acampamento, e eu achei que era o fim, tudo estava acabado pra mim. Mas você estava sozinho. Olhou nos meus olhos quando levantou o pé e pisou na areia. A explosão... foi direcionada pra cima, não pra fora. Você não queria me acertar, e não foi um acidente – memórias daquela cabana, da areia áspera em seus olhos e da fumaça em seu nariz voltaram rápido e com força. – Depois de tudo, eu carreguei você pra fora e te levei pra onde teria ajuda.

– Por que não me deixou para morrer?

– Eu não aguentava mais jogar segundo suas regras. Era hora de o poderoso chefão não conseguir o que queria.

– Mas se você desejava sair e, se eu tivesse me matado... quem iria atrás de você? Se isso for mesmo verdade, você estaria livre.

Jim deu de ombros.

– Eu estava numa posição ideal. Você não queria que as pessoas soubessem que tentou suicídio, então eu tinha o melhor dos dois mundos. Eu estava livre e você passaria o resto da vida todo quebrado e morrendo de dor.

Matthias riu de repente.

– De um jeito estranho, eu até respeito isso. Mas não entendo por que está me ajudando agora.

– Mudei de emprego – Jim pegou o controle remoto. – Olha, nós saímos no jornal!

Quando colocou som na televisão, um apresentador diferente dava informações sobre um corpo que fora encontrado, veja só, bem onde eles estiveram naquele corredor de serviço. Não havia suspeitos. Não havia documento com a vítima – e boa sorte com isso. Mesmo que encontrassem algo, as identidades falsas das Operações Extraoficiais eram impenetráveis. Além disso, o legista não teria muito tempo: o corpo desapareceria do necrotério a qualquer instante – se é que já não fora removido.

Seria apenas mais um caso não resolvido que ficaria perdido num arquivo da polícia.

– Que tipo de trabalho você faz agora? – perguntou Matthias.

– Sou um trabalhador autônomo.

– Isso ainda não explica por que está ajudando um homem que odeia.

Jim o encarou e pensou em tudo o que Matthias representava na guerra contra Devina.

– Agora... eu preciso de você.


Arrumando-se para o trabalho, Mels quebrou uma unha enquanto se vestia e derramou café na blusa. E, como falta de sorte vem sempre em três, ela continuava com a sensação de estar na lista de algum assassino, mas pelo menos sua mãe estava na aula de ioga – e isso significava que podia sair sem ter de conversar muito.

À vezes, conversar com sua mãe sobre o trabalho era difícil. Ela não precisava ouvir os detalhes do que acontecera com aquela garota no motel.

Não era um assunto para o café da manhã.

Além disso, Mels não estava com vontade nenhuma de conversar. A noite fora longa, principalmente porque escrevera o artigo sobre o assassinato ainda na madrugada, para que o editorial pudesse postar a notícia primeiro na versão on-line. E hoje se concentraria em conseguir mais informações para escrever um artigo mais detalhado para a edição impressa de amanhã.

Com sorte, Monty não aguentaria e ligaria para ela, deixando aquela boca dele fazer sua parte.

No caminho para pegar Tony, ela ficou presa na fila do drive-thru no McDonald’s, pois não queria de jeito nenhum aparecer na casa dele sem um café da manhã. Finalmente, com dois pãezinhos de salsicha em uma sacola e um par de copos cheios de café, Mels voltou para as ruas no Toyota emprestado.

Quando estacionou o carro em frente ao prédio dele, o cara se levantou dos degraus da escada frontal e desceu correndo, seu grande corpo fazendo-o parecer mais alto do que era.

– Eu já disse ultimamente o quanto eu te amo? – ela perguntou enquanto Tony entrava no carro.

Tony abriu um grande sorriso.

– Se isso é café da manhã, então sim, você disse.

– Comprei dois pãezinhos e um café pra você – ela entregou a sacola. – O outro café é pra mim.

– Melhor do que um par de brincos – ele desembrulhou um dos pacotes. – Hum... comestível...

– Eu queria agradecer de verdade por você ter emprestado o carro.

– Ah, nem preciso tanto assim dele. Desde que consiga ir e voltar do trabalho, pra mim está bom – enquanto mastigava, ele franziu a testa e pegou um recibo no cinzeiro. – Você esteve no Marriott ontem?

Mels ligou a seta para a esquerda e entrou no trânsito, desejando que seu amigo não fosse um observador tão bom.


– Ah, sim, estive.

– Que horas?

Mels manteve os olhos na rua, reconhecendo a “voz de repórter” que seu amigo estava usando.

– Ontem à noite. Estava só visitando um amigo.

– Então você viu toda a movimentação?

– Movimentação?

– Você não sabe o que aconteceu?

– Fui chamada pra cobrir uma cena de crime do centro da cidade. Do que você tá falando?

– Espera um pouco, você pegou a história da prostituta de cabelo loiro?

– Sim. Então, o que aconteceu no Marriott?

Enquanto Tony levava um milhão de anos pra terminar de mastigar o Mc-Sei-Lá-O-Quê, o estômago de Mels começou a embrulhar. Cara, se ele começasse a comer o segundo pãozinho ela pularia em seu pescoço...

– Aconteceu um tiroteio no porão do hotel. O Eric vai cobrir a história. Teve troca de tiros no beco, e alguém invadiu o prédio pela entrada dos fundos de um dos restaurantes. Ligaram pra central da polícia e os policiais encontraram um homem morto sem identificação e desarmado, com a garganta cortada.

– Mas você não disse que houve tiros?

– Ah, ele foi atingido por tiros, sim. Mas não foi isso que matou ele – Tony fez um gesto como se cortasse a própria garganta. – Cortou de um lado a outro.

Mels sentiu um arrepio.

Porque você vai morrer se não se afastar de mim.

Mels disse a si mesma para se acalmar. Aquele era um hotel grande em uma parte da cidade que era perigosa à noite. Assassinatos acontecem, principalmente entre traficantes e seus clientes.

Tony revirou a sacola para pegar o segundo pãozinho de salsicha.

– Parece que o cara poderia ter morrido por causa dos tiros, mas ele usava um belo colete à prova de balas. Eric disse que os policiais ficaram babando quando viram o colete. Nunca tinham visto um daquele jeito – o gentil som da embalagem branca sendo dobrada foi seguido por um generoso suspiro de satisfação causado por aquela comida não saudável, mas deliciosa. – Então, o que você descobriu ontem à noite? – ele perguntou com a boca cheia.

Mels ignorou uma placa “Pare” e virou à esquerda na rua Trade. Sua mente estava muito longe: Matthias estava se preparando para dormir quando ela foi embora – embora isso não significasse que ele não poderia ter saído depois que ela...

– Olá? Mels?

– Desculpa, o que foi?

– Quando você estava no motel. O que descobriu?

– Ah... certo, desculpa. Não descobri muita coisa. A mulher foi morta depois de ter tingido o cabelo... a garganta dela estava cortada.

– Duas numa única noite. É uma epidemia.

Bom, podia até ser, ela pensou. Ninguém poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo, não é?

Certo, agora ela estava ficando maluca.

– Pois é. Que estranho.

Cinco quarteirões depois, eles chegaram ao prédio do Correio de Caldwell. Mels estacionou e devolveu as chaves para Tony enquanto andavam até a entrada dos fundos.

– Obrigada de novo.

– Como eu disse, pode pedir sempre que precisar. Principalmente se comprar café da manhã pra mim. E pare de colocar dinheiro na minha gaveta quando pegar um chocolate meu. Você tem permissão pra usar minha reserva de comida sempre que quiser.

Tony guardava um monte de comida em sua escrivaninha e ela já era conhecida por beliscar ali de vez em quando. Mas não pegava simplesmente de graça.

Mels segurou a porta aberta para ele entrar.

– Não vou roubar comida de você.

– Mas se eu der permissão, não é roubo. Além disso, você não pega mais do que uns dois bombons e um chocolate por mês.

– Furto é furto.

Eles alcançaram os degraus que levavam à redação, e desta vez foi ele quem segurou aberta a porta de vidro.

– Queria que todo mundo pensasse assim.

– É disso que eu estou falando. Você não tem a obrigação de alimentar todo mundo.

No instante em que entraram, Mels ouviu os telefones tocando, as vozes agitadas, os passos rápidos: tudo isso era uma sinfonia familiar que invadiu seu corpo, carregando-a até sua escrivaninha. Quando sentou, aquele burburinho acalmou a ansiedade que sentia por causa de Matthias, e ela ligou o computador sem sequer pensar no que estava fazendo.

Um envelope marrom foi jogado em sua mesa, assustando-a.

– Tenho algo bonito pra você ver – disse Dick com um sorriso maroto.

Ela pegou o pacote e abriu.

Ficou contente em ter dado os dois pãezinhos para Tony: dentro do envelope estavam as fotos do corpo da prostituta, fotos grandes e em cores mostrando tudo em detalhes.

Dick ficou ao lado, como se estivesse esperando que ela se abalasse, e Mels se recusou a satisfazer seu desejo, mesmo com o peito doendo por causa das imagens... principalmente a que mostrava em detalhes o ferimento na garganta, o corte profundo que atravessou a pele e penetrou os músculos rosa e vermelho, e a cartilagem pálida.

Mels colocou as fotos em cima mesa, fazendo questão de deixar a da garganta virada para cima, e notou que Dick, mesmo com todo aquele jeito machão, não quis olhar para a imagem.

– Obrigada – ela manteve os olhos colados nos dele. – Isso vai ajudar bastante.

Dick limpou a garganta como se tivesse percebido que fora longe demais, mesmo para seus padrões de cretinice.

– Quero ler o artigo detalhado assim que estiver pronto.

– Pode deixar.

Assim que ele sumiu, ela balançou a cabeça. Ele deveria saber que não podia mexer com Mels, sendo filha de quem era.

Na verdade, só o fato de querer dar em cima dela era nojento por si só.

Fez Mels pensar na maneira como Monty tirava proveito da tragédia dos outros.


Franzindo a testa, ela olhou as fotografias novamente, e então se concentrou na que fora tirada no necrotério. Havia uma mancha avermelhada estranha na barriga da vítima, como uma queimadura de sol...

O celular tocou e Mels atendeu sem olhar quem era.

– Carmichael.

– Olá.

A voz profunda despejou um calor que desceu por todo seu corpo. Matthias.

Por uma fração de segundo, ela imaginou como conseguira o número de seu celular. Mas então lembrou que escrevera o número em seu cartão de visitas.

– Ah, bom dia – ela disse.

– Como você está?

Em sua mente, começou uma partida de pingue-pongue entre o que Tony contara no carro e como se sentira ao beijar Matthias. Indo e vindo, indo e vindo...

– Mels, você está aí?

– Sim – ela esfregou os olhos, mas teve de parar, pois um deles ficou irritado. – Desculpa. Estou bem, e você? Lembrou de mais alguma coisa?

– Pra falar a verdade, lembrei sim.

Mels se ajeitou na cadeira e voltou a concentrar-se em uma coisa só.

– Como o quê?

– Será que você se importaria de investigar uma coisa para mim?

– Nem um pouco. Diga o que quer saber – enquanto ele falava, Mels tomava nota e escrevia nomes, aceitando a tarefa. – Certo. Sem problemas. Você quer que eu ligue de volta?

– Sim, por favor.

Houve uma pausa estranha.

– Certo – ela disse, constrangida. – Então, eu te ligo...

– Mels...

Fechando os olhos, ela sentiu aquele corpo pressionando contra o seu, aquela boca tomando a sua, a dominação intrínseca à personalidade dele começando a se manifestar.

– Você sabe o que aconteceu no seu hotel ontem à noite? – ela perguntou, abruptamente.

– Sim. Passei horas pensando em você.

Ela fechou novamente os olhos, tentando lutar contra a sedução.

– A polícia encontrou um cadáver. Que estava vestindo um colete à prova de balas muito moderno.

Outra pausa. Então, ele respondeu:

– Hum. Suspeitos?

– Ainda não.

– Eu não o matei, Mels, se é isso que está perguntando.

– Eu não disse que você matou.

– Mas é isso que está pensando.

– Quem são essas pessoas que você quer checar? – ela interrompeu, desenhando quadrados em volta dos nomes que ele havia passado.

– Apenas coisas que surgiram na minha mente – sua voz se tornou distante. – Olha, eu não deveria ter pedido isso. Vou conseguir as informações de outro jeito...

– Não – ela disse com firmeza. – Vou fazer isso e depois te ligo.

Mels desligou e ficou encarando o vazio. Então levantou e andou até chegar em outro cubículo. Inclinando-se por sobre a divisória, deu um sorriso forçado para um colega que não a conhecia bem o suficiente para perceber a falsidade.

– Oi, Eric, como é que vai?

Os olhos do cara se desviaram do computador.

– Oi, Carmichael. O que posso fazer por você?

– Queria saber sobre o assassinato do Marriott.

O repórter sorriu, como se estivesse orgulhoso de sua pauta.

– Algo específico?

– O colete.

– Ah, o colete – ele buscou em seus papéis em cima da mesa. – O colete, vejamos... – puxou uma folha e entregou para ela. – Encontrei isto na internet.

Mels franziu a testa enquanto lia as especificações.

– Cinco mil dólares?

– É o que custam sem ser personalizados. E o colete dele com certeza foi.

– Quem é que pode pagar tudo isso?

– É exatamente o que estou me perguntando – ele procurou outros papéis. – Grandes empresas de segurança é uma opção. O governo é outra, mas não pra um agente qualquer do FBI. Teria que ser um agente muito especial.

– Tinha algum VIP no hotel?

– Bom, foi isso que tentei descobrir na noite de ontem. Oficialmente, a equipe do hotel não pode divulgar nomes, mas ouvi o gerente da noite falando com um dos policiais. Não havia ninguém de especial sob o teto deles.

– E quanto aos arredores, no centro da cidade?

– Pois é, existem algumas grandes empresas na vizinhança, mas estavam todas fechadas, pois já tinha passado bastante da hora de expediente normal. E não faz sentido que alguém importante estivesse andando em Caldwell e algum de seus seguranças tivesse enlouquecido e entrado no caminho da faca de alguém.

– A que horas aconteceu?

– Perto das onze.

Depois que ela saiu em direção à cena do crime no motel.

– E ninguém tem pistas sobre a identidade?

– Nenhuma. O que nos leva a outra questão interessante – Eric mordeu a ponta de uma caneta Bic. – Não havia impressões digitais.

– Na cena?

– No cadáver. Ele não tinha impressões: foram totalmente removidas.

Os ouvidos de Mels começaram a zumbir.

– Algum outro tipo de identificador?

– Uma tatuagem, aparentemente. Estou tentando conseguir umas fotos dela e do corpo, mas minhas fontes estão meio devagar – ele estreitou os olhos. – Por que está tão interessada?

Colete à prova de balas moderno. Sem digitais.

– E armas?

– Nenhuma arma, alguém deve ter levado – Eric inclinou-se para frente em sua cadeira. – Então, você não está pensando em falar com Dick pra conseguir um lugarzinho nessa história, não é?

– Meu Deus, não. É só curiosidade – ela se virou. – Mas agradeço pelas informações.


CAPÍTULO 22

Quando o telefone toucou meia hora depois, Matthias ficou apenas olhando para a coisa. Provavelmente era Mels retornando a ligação.

Droga, que confusão...

Depois que Jim saiu para tomar café da manhã, ou cuidar de suas coisas, ou fazer seja lá o quê, a primeira coisa que Matthias fez ao ficar sozinho, naturalmente, foi ligar para Mels e tentar descobrir se era verdadeira aquela história sobre o pai e o filho em Boston. Mas ainda não estava raciocinando direito, e nem passou por sua cabeça que ela já tinha ouvido sobre o tiroteio da noite passada. Estava em todos os jornais. Não precisava ser um repórter para saber da merda que acontecera por lá.

O telefone parou de tocar. Mas ela iria tentar de novo.

Deus, a voz dela quando ele telefonou... Mels parecia desconfiada, e por muitos motivos isso era bom para ela. Mas também o deixava triste.

Quando o telefone voltou a tocar, ele não aguentou mais. Pegou sua bengala, saiu do quarto e andou cegamente até um elevador. Começou a descer, sem fazer ideia de onde estava indo. Talvez para o café da manhã.

Sim, café da manhã.

Era o que as pessoas faziam às nove da manhã no país inteiro.

E, é claro, o único restaurante aberto era aquele que ele conhecera intimamente na noite anterior – ao passar pelas paredes de vidro colorido, ele decidiu que sairia do Marriott para...

– Matthias?

Ao ouvir a voz feminina, ele se virou. Era a enfermeira do hospital, aquela que lhe dera uma mãozinha, por assim dizer. Fora do trabalho, ela tinha um frescor de verão, com o cabelo preto solto sobre os ombros e um vestido esverdeado que descia até os joelhos.

Até parecia uma noiva.

– O que você está fazendo aqui? – ela disse quando se aproximou. – Pensei que estaria em casa se recuperando.

Quando as pessoas passavam por ela, os olhares eram inevitáveis: homens com desejo nos olhos, mulheres com vários níveis de inveja e desdém. Afinal, ela era realmente linda.

– Estou bem – ele tentou não olhar demais, pois era como encarar o sol: doía nos olhos. – E você?

– Minha mãe está vindo me visitar. Ou melhor, já deveria estar aqui. O voo dela deveria ter chegado meia hora atrás, mas teve um atraso em Cincinnati por causa das tempestades. Estou decidindo se espero ou se vou pra casa: iríamos tomar café da manhã juntas no restaurante. É pra lá que você tá indo?

– Ah, sim.

– Bom, que tal se formos juntos? Estou com fome.

Seus olhos negros brilhavam com alegria, ao ponto de lembrá-lo de uma noite estrelada. Mas isso não era suficiente para fazê-lo aceitar o convite.

– Sim, vamos – ouviu sua própria voz, como se outra pessoa estivesse controlando sua boca.

Juntos, caminharam até a entrada do restaurante.

– Duas pessoas – Matthias disse, enquanto o recepcionista checava a enfermeira de cima a baixo para depois congelar como um animal na estrada olhando para os faróis de um carro, aparentemente impressionado com toda aquela beleza.

– Gostaria de um lugar perto da janela – ela disse, sorrindo vagarosamente para o cara. – Talvez perto...

Não a janela que ele usara para escapar, pensou Matthias.

– ... daquela ali.

Mas é claro que ela escolheu exatamente aquela.

– Ah, sim, claro, é para já – o recepcionista fez sua parte, conduzindo-os com alguns cardápios debaixo do braço. – Mas temos vistas melhores no salão, que dão pro jardim.

– Não queremos que bata muito sol – ela colocou a mão no braço de Matthias e apertou um pouco, como se quisesse demonstrar que estava preocupada com seu olho ruim.

Cara, ele realmente não gostava que ela o tocasse.

Enquanto andavam pelo salão, a enfermeira criou uma total comoção, com homens olhando por cima dos jornais, das canecas de café e até sobre a cabeça de suas esposas. Ela continuou andando a passos largos, como se aquilo fosse totalmente natural.

Depois de sentarem na frente da janela que ele e Jim haviam violado, o café chegou rápido e eles olharam o cardápio. Aquele ritual civilizado de escolher entre cinquenta tipos de pratos o deixava nervoso. E Matthias não queria comer junto com a enfermeira. Bom, não queria comer com ninguém.

A situação desconfortável com Mels era o problema. Sim, ele ligara pedindo as informações, mas a verdade era que queria apenas ouvir a voz dela.

Ele sentira saudade durante a noite...

– Em que está pensando? – disse a enfermeira suavemente.

Ele olhou através da janela para o prédio do outro lado da rua.

– Acabei de perceber... que ainda não sei o seu nome.

– Oh, desculpe. Achei que estava escrito na ficha do quarto do hospital.

– Provavelmente estava, mas mesmo que estivesse escrito em neon não sei se notaria.

Era mentira, claro. Na verdade, não havia nenhuma enfermeira registrada na ficha, apenas um médico, e cujo uniforme também não tinha um crachá com nome.

O que parecia um pouco estranho, pensando bem...

Ela pousou elegantemente a mão no meio do peito, como se fosse um convite para ele olhar seu decote.

– Você pode me chamar de Dê.

Olhou em seus olhos.

– De Deidre?

– De Devina – ela desviou os olhos, como se não quisesse falar muito sobre seu nome. – Minha mãe sempre foi uma pessoa religiosa.

– O que explica seu vestido.

Dê balançou a cabeça com pesar e ajeitou a saia.

– Como você sabia que eu não me visto assim normalmente?

– Bom, primeiro porque parece um vestido para uma mulher com mais de quarenta anos. A calça jeans e a blusa que usou naquele dia pareciam mais apropriadas pra sua idade.

– Quantos anos você acha que eu tenho?

– Uns vinte e cinco – e talvez fosse por isso que não gostava quando ela o tocava. Ela era muito jovem, jovem demais para um cara como ele.

– Na verdade, tenho vinte e quatro. É por isso que minha mãe vem me visitar – ela tocou o peito novamente. – Meu aniversário.

– Parabéns.

– Obrigada.

– Seu pai também vai vir?

– Ah... então. Não – agora ela se fechou completamente. – Não, ele não virá.

Droga, a última coisa que ele precisava era entrar em detalhes pessoais.

– Por que não?

Ela ficou mexendo na caneca de café em cima do pires, movendo de lá para cá.

– Você é tão estranho.

– Por quê?

– Eu não gosto de falar sobre mim mesma, mas aqui estou eu, falando sem parar.

– Não me contou muita coisa, se isso faz você se sentir melhor.

– Mas... eu quero falar – por um segundo, seus olhos focaram os lábios dele, como se estivesse pensando em fazer coisas de que Matthias realmente não precisava. – Eu quero.

Não. Nem pensar.

Principalmente não depois de Mels, ele pensou.

Dê se inclinou e seus peitos ameaçaram saltar para fora do vestido.

– Não consigo parar de pensar em você.

Ótimo. Que maravilha. Que merda perfeita.

No tenso silêncio que se seguiu, Matthias olhou brevemente para a janela. Já tinha escapado por ali uma vez.

Se as coisas continuassem constrangedoras, poderia tentar de novo.

Mels colocou o telefone na base e se esticou na cadeira do escritório. Quando ouviu o chiado de sempre, fez uma nova musiquinha com o couro, balançando para frente e para trás.

Por alguma razão, seus olhos ficaram encarando a caneca de café que pertencera àquela repórter que trabalhava em seu cubículo.

Quando o celular tocou, Mels pulou e o agarrou. Checou rapidamente quem estava ligando e praguejou – não por causa de quem era, mas por causa de quem não era.

Talvez Matthias estivesse tomando banho.

As pessoas tomam banho pela manhã, não é?

Mas, tipo, por meia hora? Ela estava ligando de cinco em cinco minutos!

– Alô?

– Oi, Carmichael – era Monty, o Boca. Ela sabia por causa do jeito como ele falava. – Sou eu.

Bom, pelo menos ela também queria que ele ligasse.

– Bom dia.

– Eu tenho algo pra contar – sua voz ficou mais baixa, como se fosse um agente secreto falando. – É uma coisa explosiva.

Mels ajeitou-se na cadeira, mas não ficou com muita expectativa. Com sua sorte, “explosivo” devia ser apenas um grande exagero da parte dele.

– É mesmo?

– Alguém adulterou o corpo.

– Como é?

– Como eu disse, fui o primeiro na cena do crime e tirei algumas fotos. Você sabe, como parte do trabalho – ela ouviu algo se mexendo, e então uma conversa aos fundos, como se ele estivesse falando com alguém enquanto cobria o fone. – Desculpa. Estou na delegacia. Vou sair daqui e depois ligo de novo.

Ele desligou antes que Mels pudesse dizer alguma coisa, e ela o visualizou evitando seus colegas e correndo para o estacionamento como se fosse um jogador de futebol.


De fato, quando ligou de volta, ele estava sem fôlego.

– Está me ouvindo?

– Sim, estou.

– Então, minhas fotos do corpo mostram algo que não aparece nas fotos oficiais.

Essa era a deixa para ela mostrar surpresa, e neste caso nem precisava fingir.

– Qual é a diferença?

– Venha me encontrar e eu te mostro.

– Quando e onde?

Depois de desligar, Mels checou seu relógio e ligou para Matthias novamente. Ninguém respondeu.

– Ei, Tony – ela disse, esticando-se no corredor entre os cubículos. – Posso emprestar seu...

O cara jogou a chave sem nem mesmo parar de falar ao telefone. Quando ela mandou um beijo, ele agarrou o ar e beijou de volta.

Saindo apressada da redação, Mels entrou no carro de Tony e dirigiu para o centro da cidade, usando um caminho que... olha só, passava pelo hotel Marriott.

E digamos que ela estava uma meia hora adiantada de seu encontro com o Boca.

Por pura sorte, encontrou uma vaga apertada bem em frente à entrada do saguão. Precisou de duas tentativas para colocar o carro no lugar – sua habilidade para fazer balizas já não era a mesma desde que se mudara para Caldwell.

Além disso, a culpa que sentia por perseguir Matthias também não estava ajudando.

Enquanto entrava no saguão, pensou que alguém da segurança iria barrá-la a qualquer momento, mas ninguém prestou muita atenção nela – o que a fez pensar quantas outras pessoas entravam e saíam despercebidas dali.

No elevador, subiu até o sexto andar junto com um homem de negócios cujo terno antiquado e olhos vermelhos sugeriam que acabara de chegar de um longo voo noturno. Talvez até tivesse vindo batendo as próprias asas.

Ao chegar no andar, virou à esquerda e andou pelo corredor acarpetado. Bandejas do serviço de quarto estavam ao lado das portas, como traiçoeiros tapetes de boas-vindas com seus pratos sujos, canecas vazias e guardanapos manchados. Ao final do corredor, um carrinho da camareira estava estacionado em frente a uma porta aberta, que vazava luz iluminando pacotes de papel higiênico, toalhas dobradas e várias latas de spray.

A porta de Matthias ainda tinha o sinal de “não perturbe” pendurado, e Mels entendeu que aquilo significava que ele ainda não fizera o check-out. Colando a orelha na porta, rezou para ele não escolher aquele momento para sair.

Não ouviu água correndo. Nem som de televisão. Nenhuma voz profunda ao telefone.

Ela bateu na porta. Depois bateu um pouco mais forte.

– Matthias – ela disse. – Sou eu. Abra a porta.

Enquanto esperava por uma resposta que não veio, Mels olhou para a camareira que saíra com um saco de lixo na mão. Por um instante, considerou mentir dizendo que tinha esquecido a chave do quarto, mas, em um mundo pós-onze de setembro, sentiu que isso não iria funcionar – e poderia acabar sendo expulsa do hotel.

Bom, isso dizia muito sobre sua bússola moral: o problema nem era a invasão de privacidade, mas sim o medo de ser descoberta.

Com desgosto de si mesma e brava com Matthias, Mels voltou para o elevador. Quando chegou no térreo, sua intenção era marchar até o carro de Tony, dirigir e chegar realmente cedo em seu encontro com Monty e sua boca grande.

Em vez disso, ficou perambulando casualmente no saguão do hotel, olhando as vitrines da loja de conveniência, passando pelo spa...

Porque, claro, ele estaria comprando toalhas e recebendo massagens com duas rodelas de chuchu nos olhos. Óbvio.

Quando chegou ao restaurante que estava aberto, Mels estava quase abandonando a busca, mas então deu uma última olhada lá dentro...

Do outro lado das mesas de jantar, sentado ao lado de uma janela, Matthias estava comendo junto com uma morena que usava um vestido verde-limão.


Quem era ela...?

Era aquela enfermeira? Do hospital?

– Gostaria de mesa pra um? – disse o recepcionista do restaurante.

Claro que não – a menos que a mesa tivesse um saco para vômito.

– Não, obrigada.

A morena começou a rir, jogando a cabeça para trás e deixando o cabelo voar para todo lado. Ela era tão perfeitamente bonita, como se fosse uma fotografia retocada em todos os lugares certos.

Era difícil dizer em que Matthias, sentado à sua frente, estava pensando, e em um momento absurdo de possessividade Mels ficou contente por ele estar usando os óculos escuros dela. Como se aquilo fosse um jeito de demarcar seu território.

– Então veio para se encontrar com alguém? – disse o recepcionista.

– Não – ela respondeu. – Acho que ele está ocupado.


CAPÍTULO 23

A risada de Dê era... bem, para falar a verdade, era divina. Ao ponto de até fritar um pouco o cérebro de Matthias: ele nem conseguia lembrar o que ela dissera de tão engraçado.

– Então, como está sua memória? – ela perguntou.

– Falhando.

– Ela vai voltar. Faz o quê, uns dois dias desde o acidente? – ela se ajeitou quando chegou seu prato com ovos mexidos, salsicha, torrada e batata assada. – É só dar um pouco de tempo.

O pão com manteiga que chegou para ele parecia anêmico em comparação com o prato dela.

– Tem certeza de que é só isso que você quer? – ela gesticulou com o garfo. – Você precisa ganhar peso. E eu acredito que um bom café da manhã é a melhor maneira de começar o dia.

– É bom estar com uma mulher que não é enjoada com comida.

– Pois é, eu sou assim, como de tudo – ela fez um sinal chamando o garçom novamente. – Ele vai querer um prato igual ao meu, obrigada.

Parecia falta de educação dizer que ele explodiria se comesse tudo aquilo, então apenas colocou de lado o pão com manteiga. Ela provavelmente estava certa. Matthias se sentia sem energia e desconectado: o sanduíche que comera com Mels já havia sido digerido faz tempo, graças àquele ninja cretino que apareceu do nada atirando.

– Não espere por mim – ele disse.

– Eu não ia esperar.

Matthias sorriu friamente e passou um tempo olhando ao redor no salão do restaurante. A maioria das pessoas era exatamente o que se esperava encontrar em um hotel daquele tipo... exceto por um sujeito no canto que parecia seriamente fora de lugar: estava usando um terno mais bem cortado do que qualquer outro ali, e parecia fora de moda até para quem não entende dessas coisas.

Caramba, aquela roupa parecia ser própria para uma festa dos anos 20 – talvez tivesse até sido criada nessa época...

Como se percebesse que estava sendo observado, o homem levantou os olhos, com uma aparência aristocrática.

Matthias voltou a se concentrar em sua companhia. Dê cortava a comida com movimentos precisos do garfo, cujas pontas penetravam com facilidade nos ovos mexidos e na batata.

– Às vezes, não lembrar pode ser uma coisa boa – ela disse.

Pois é, ele pensou, sentia que isso era particularmente verdade em se tratando de sua vida. Deus, se aquela história que Jim contou fosse verdade...

– E eu não tive intenção de ser evasiva quanto ao meu pai – ela continuou. – É só que... eu não gosto de pensar nele – baixou o garfo no prato e ficou observando a janela. – Eu faria qualquer coisa para esquecer meu pai. Ele era... um homem violento... malvado e violento.

Com um movimento rápido, o olhar dela voltou a se fixar nos olhos dele.

– Sabe do que estou falando? Matthias...

De repente, surgiu outra daquelas dores de cabeça, invadindo seus pensamentos e acumulando em suas têmporas, como duas pontadas de dor em cada lado da cabeça.

Ele viu, vagamente, que os perfeitos lábios vermelhos de Dê se moviam, mas não ouvia as palavras: era como se tivesse saído do corpo... e então, o próprio restaurante começou a recuar, como se as paredes estivessem sendo puxadas para trás e desaparecendo ao longe, até que repentinamente Matthias já não estava mais no Marriott, mas em algum outro lugar.

Estava no segundo andar de uma casa de fazenda forrada por tábuas de madeira no chão, paredes e teto. A escada à sua frente era íngreme, e o corrimão feito de pinho já estava escurecido pelas inúmeras mãos que o usaram como apoio.

O ar estava parado e abafado, embora não fizesse calor.

Matthias olhou para trás e encontrou um quarto que reconhecia como seu. As duas camas tinham cobertores diferentes e nenhum travesseiro... a escrivaninha tinha arranhões e os puxadores estavam caindo... não havia tapete. Mas, na pequena mesa perto de onde dormia, havia um rádio novo em folha que parecia completamente fora de lugar, com detalhes em imitação de madeira e um botão prateado.

Olhando para baixo, notou que vestia calças rasgadas com bainhas enroladas que deixavam os pés expostos; a mesma coisa acontecia com as mãos, que pareciam gigantes comparadas com os magros antebraços – suas extremidades estavam grandes demais em relação ao resto do corpo.

Lembrou-se desse estágio em sua vida e entendeu que era um jovem. Catorze ou quinze anos...

Um som o fez virar a cabeça.

Um homem estava subindo a escada. Seu sobretudo estava sujo; o cabelo estava liso de suor, como se um chapéu ou boné o tivesse coberto por muito tempo; as botas soavam alto.

Um homem grande. Um homem alto.

Um homem mau.

Seu pai.

De uma só vez, tudo mudou: sua consciência separou-se da carne de tal maneira que não era mais capaz de controlar o corpo, a direção de sua vida parecia ter sido tomada por outra pessoa.

Tudo o que podia fazer era olhar através dos próprios olhos quando seu pai subiu o último degrau e parou.

Aquele rosto tinha ficado exposto ao clima por tanto tempo que agora parecia revestido de couro bovino, e havia um dente faltando quando ele sorriu como um assassino em série.

Seu pai ia morrer, pensou Matthias. Aqui e agora.

Por mais improvável que fosse, dada a diferença de tamanho entre eles, o homem iria ao chão e estaria morto em questão de minutos...

De repente, Matthias sentiu a si mesmo começar a falar, seus lábios formando sons que ele não registrava, mas que tinham impacto em seu pai.

A expressão mudou, o sorriso sumiu, o dente faltando desapareceu quando a boca do pai se fechou. A raiva fez aqueles olhos azuis elétricos ficarem estreitos, mas isso não durou muito. Uma onda de choque se seguiu. Como se ele estivesse muito confiante sobre algo, mas agora não tivesse mais tanta certeza.

E, enquanto isso, Matthias continuava a falar devagar e com fimeza.

Foi ali que tudo começou, pensou consigo mesmo: aquele homem, aquele homem do mal com quem vivera sozinho por tempo demais, aquele cretino nojento que o “criou”. Mas agora era hora do acerto de contas, e sua versão mais jovem não sentia nada enquanto falava aquelas palavras, sabendo muito bem que estava finalmente enfrentando o monstro.

Seu pai agarrou a frente do próprio sobretudo, bem acima do coração, apertando o tecido com as unhas cheias de sujeira.

E Matthias continuou a falar.

Até o outro cair ao chão. Seu pai caiu de joelhos, a palma da mão livre escorregando do corrimão, a boca abrindo-se tanto que os outros dentes que faltavam no fundo também ficaram expostos.

Ele nunca achou que seria pego. Foi isso que o matou.

Bom... tecnicamente, a causa da morte foi um infarto no miocárdio. Mas a causa verdadeira foi o fato de que o segredo sujo que compartilhavam fora revelado.

A morte levou todo o tempo que precisava.

Enquanto seu pai agonizava deitado de costas, as mãos agora apertando a axila esquerda, que doía como o diabo, Matthias ficou parado onde estava e assistiu o processo se desenrolar. Aparentemente, respirar estava cada vez mais difícil, o peito subia e descia sem muito efeito; debaixo do bronzeado, a cor de seu pai estava sumindo.

Quando a vista voltou a mostrar o quarto, Matthias entendeu que ele se virara e estava andando em direção ao rádio, que ligou enquanto se sentava. Ainda podia enxergar seu pai lutando como uma mosca presa em um parapeito, os membros se contraindo de um lado para outro, a cabeça arqueando para trás como se pensasse que um ângulo diferente pudesse ajudar com a respiração.


Mas não ajudaria. Mesmo um garoto de quinze anos da fazenda sabia que, se o coração não estivesse bombeando, cérebro e órgãos vitais falhariam, não importava quanto ar ele tentasse puxar.

Lá no campo, o rádio pegava apenas cinco estações, e três eram religiosas. As outras duas tocavam música country e pop, então ficou virando o botão, indo e vindo entre elas. De tempos em tempos, apenas porque sabia que seu pai logo iria encontrar o Criador, ele deixava um sermão ecoar pela casa.

Matthias não sentiu nada além de frustração por não conseguir encontrar um rock pesado para tocar. Achava que um Van Halen combinava mais com a demorada morte de seu pai do que um cretino como Conway Twitty ou Phil Collins.

Fora isso, ele estava sereno como um lago, forte como concreto.

Caramba, ele nem se importava que aquilo significasse o fim dos abusos. Queria apenas saber se era capaz de se livrar do velho, como se a empreitada fosse um projeto da escola: ele planejou, colocou as peças no lugar e então acordou naquela manhã e decidiu empurrar a primeira peça do dominó.

E conseguiu, graças a sua professora muito religiosa, maleável e de bom coração.

No corredor da escola, ele chorou na frente dela enquanto contava sobre o inferno no qual vivia, mas aquele show de lágrimas era apenas para lhe dar uma motivação extra. Na verdade, a grande revelação não causou mais emoção nele do que uma troca de roupa: enquanto manipulava a professora com a verdade, em seu interior ele estava frio como gelo, sem sentir nem satisfação pela primeira parte do plano realizada, nem excitação por aquilo estar finalmente acontecendo.

O resto aconteceu rápido, e essa velocidade foi a única coisa que não esperava: ele foi mandado imediatamente para a enfermaria, depois a polícia chegou, papéis foram preenchidos e enviados, e lá se foi Matthias para as mãos do sistema.

As autoridades enviaram apenas mulheres para tratar dele, como se isso fosse deixar as coisas mais fáceis. Principalmente durante os exames físicos – que eles achavam que seriam realmente perturbadores para Matthias.

E quem era ele para não fazer o que eles queriam?

Entretanto, não esperava mesmo ser mandado para um lar adotivo em menos de duas horas.

Acontece que a única coisa que realmente queria era aquela parte, o acerto final com seu pai deitado ali no chão – e foi preciso escapar e roubar um carro para chegar antes que a polícia levasse seu pai para a prisão, quando o homem voltasse do trabalho nos campos de milho. Tudo teria sido em vão se ele estragasse essa parte.

Mas funcionou perfeitamente.

Nos últimos momentos da vida miserável de seu pai, Matthias virou o botão do rádio para uma das estações religiosas – e parou por um momento. O sermão era sobre o Inferno.

Parecia apropriado.

Ele assistiu quando o último suspiro surgiu e a calmaria prevaleceu. Era tão estranho, um ser humano repentinamente passando para o outro lado, um ser vivo tornando-se indistinguível de uma torradeira, um tapete, ou até mesmo um rádio relógio.

Matthias esperou mais um pouco até aquele rosto tornar-se completamente cinza. Então levantou, tirou o rádio da tomada e colocou-o debaixo do braço.

Os olhos de seu pai estavam abertos e encaravam o teto, da mesma maneira que ele próprio fizera por muitas noites durante o passar dos anos.

Matthias não mostrou o dedo do meio, não cuspiu nem chutou o corpo. Apenas passou por ele e desceu as escadas. Seu último pensamento enquanto deixava a casa era que aquilo tinha sido um interessante exercício mental...

E queria saber se conseguiria fazer de novo.

– Matthias?

Deixando escapar um grito, ele pulou em sua cadeira. O restaurante ressurgiu ao seu redor, as paredes se reergueram, o som ambiente de pessoas comendo e conversando voltou a ser registrado por seu cérebro.

Quando as pessoas olharam para ele, Dê se inclinou e disse:

– Você tá bem?

Seu belo rosto mostrava uma perfeita expressão de compaixão, os lábios entreabertos como se a aflição dele dificultasse sua respiração.

O afastamento que o seu eu jovem sentira voltou a ocupar um lugar em seu peito, como se a memória tivesse calibrado seu motor interno, reajustando-o, como um carro que precisa de alinhamento. Encarou a mulher com distanciamento, uma fria objetividade que os separava mesmo estando a poucos metros um do outro.

Emoções podiam ser facilmente fingidas. Ele sabia muito bem disso.

O sorriso que mostrou a ela parecia diferente em seu rosto – mas ao mesmo tempo era muito familiar.

– Estou muito bem.

O garçom se aproximou naquele momento trazendo o grande café da manhã e, quando o colocou na mesa, Matthias podia jurar que viu Dê recostar-se e sorrir de satisfação.


De pé ao lado do recepcionista do restaurante, Mels estava cansada de bancar a perseguidora. O fato de ela ter vindo até o hotel já era razão suficiente para se sentir mal, mas agora que o encontrara com aquela enfermeira... Tinha duas razões para se sentir mal: não respeitava a si mesma, e aquela outra mulher era tão bonita quanto a Sofia Vergara, só um tolo não veria isso.

Quando um prato do tamanho de um ônibus foi colocado na frente de Matthias, ele olhou para sua companheira com um sorriso maroto e...

A cabeça dele virou sem motivo, bem quando Mels estava prestes a dar meia-volta.

Seus olhos se encontraram e instantaneamente aquela expressão cínica dele se transformou em algo que Mels não conseguia interpretar – mas ela disse a si mesma que não se importava.

Tanto faz. Aquilo não era da sua conta.

E ela não faria nenhuma cena. Em vez disso, se dirigiu calmamente para a porta giratória do saguão...

– Mels! – ouviu um grito vindo de trás.

Não dava para fingir que ele não estava vindo atrás dela, e, além disso, ela não tinha razão para ignorá-lo.

– Eu não queria interromper seu café da manhã – ela disse quando parou e deixou ele se aproximar. – E estou a caminho de uma reunião. Quando você não atendeu o telefone, pensei em parar um pouco no hotel.

– Mels...

– Aquela história que você me pediu pra checar é verdadeira. A única diferença é que o nome é escrito com um “e”. O certo é Childe. O filho morreu de overdose, e o pai estava presente quando aconteceu. A filha ainda está viva... é uma advogada em Boston. O pai trabalha para o governo, em vários cargos. Pelo menos, é isso que consta nos jornais. Não sei de informações que não sejam públicas – enquanto ele apenas a encarou, Mels levantou o queixo. – Bom, o que esperava que eu encontrasse?

Ele esfregou o rosto como se estivesse com dor de cabeça.

– Não sei. Eu... quando o filho morreu?

– Não faz muito tempo. Dois anos e meio, acho...

– Seu café da manhã está esfriando.

Mels olhou para a enfermeira. A mulher olhava apenas para Matthias enquanto se aproximava, como se ele não estivesse falando com mais ninguém.

Certo, ela parecia fantástica com aquele vestido. Seu corpo transformava algo essencialmente recatado em um grande show sexy...

Repentinamente, Mels lembrou daquele episódio de Seinfeld com a Terri Hatcher... é, aqueles seios eram provavelmente reais e espetaculares. Já Mels tinha de usar sutiãs com armação para levantar um pouco os seus...

– Eu estava mesmo indo embora – Mels disse. – Ou vou me atrasar para minha reunião.

A enfermeira lançou um olhar dispensando-a, com aqueles olhos castanhos dizendo não apenas “vai logo embora”, mas também “dane-se você”.

– Vem, vamos voltar pra mesa.


Matthias apenas continuou encarando Mels, ao ponto de ela pensar que ele tentava dizer algo. Mas ele tinha ovos frios e pernas quentes para se preocupar, então seu prato já estava cheio sem Mels para atrapalhar.

Ela acenou para os dois e saiu pela porta em direção à rua.

O sol brilhava enquanto Mels andava até o carro de Tony. O interior do sedã estava quente. Ajeitando-se no banco do motorista, ela deu um sermão em si mesma antes de girar a chave – mas aquilo não ajudou em nada.

Nem mesmo a parte sobre como um homem misterioso e não disponível tinha muito mais chances de, segundo seu instinto de repórter, parecer muito mais atraente do que um cara normal qualquer – mas ser atraente não fazia dele uma boa opção.

Talvez fosse por isso que ela ainda estava solteira. Não era por falta de convites para sair. Provavelmente tinha mais a ver com o fato de que os homens que a convidavam para sair tinham empregos fixos, aparência boa o suficiente... e memórias.

Nada de mistério, nada de emoção.

Ela tinha de gostar de um cara com um passado nebuloso e uma companheira de café da manhã que tinha corpo de Barbie e cabelo de comercial de TV.

Saudável, muito saudável.

Mels deu a partida no carro e entrou no trânsito: seu encontro com Monty, o Boca, estava marcado em um parque a sete quarteirões dali.

Pelo menos a sincronia de tudo estava a seu favor: se tivesse de voltar à redação e encarar a tela do computador fingindo que trabalha, ela acabaria louca.

Malditos homens, pensou consigo mesma ao encontrar uma vaga, e desta vez fez uma baliza melhor.

Seguiu as instruções que recebeu – toda aquela história com Monty parecia saída de filmes de espionagem, com ela o encontrando em um banco debaixo de um bordo específico. Só precisava de um jornal para se esconder e uma senha secreta para entrar definitivamente no mundo de James Bond.

Monty chegou dez minutos depois, vestindo roupas civis que o faziam parecer um cafajeste qualquer. Ele estava de bom humor: essa coisa de espionagem claramente produzia o drama que ele necessitava.

– Ande atrás de mim – ele disse, com a voz baixa, ao passar por ela.

Ah, isso era ridículo!

Mels levantou quando ele estava a uns três metros. Ela caminhou mantendo o ritmo de Monty, se perguntando por que diabos estava se submetendo àquilo.

Depois de andarem um pouco, chegaram ao leito do rio, ao lado de um grande embarcadouro com estilo vitoriano onde as pessoas podiam ancorar suas canoas e barcos nos meses mais quentes.

Quando ela entrou, seus olhos levaram um segundo para se acostumar à escuridão: as janelas em forma de diamante não deixavam entrar muita luz do sol, as prateleiras cheias de remos, as pilhas de boias e as velas enroladas faziam o lugar parecer completamente lotado. E também era barulhento, em certo sentido: por toda parte, as ondas do rio batiam nas paredes do lugar e o som ecoava pelos espaços vazios debaixo do grande teto...

De repente, um bando de andorinhas voou de seu ninho, passando em rasante sobre eles antes de escapar pela janela, ganhando o céu.

Quando seu coração voltou a bater no ritmo normal, Mels disse:

– Então, o que você tem pra mim?

Monty lhe entregou um grande envelope.

– Imprimi isto em casa hoje de manhã.

Mels retirou o clipe de metal e abriu o envelope.

– Quem mais sabe sobre isto?

– No momento, apenas eu e você.

Uma a uma, ela retirou três fotos coloridas, todas da vítima: a primeira era de corpo inteiro com a camisa no lugar, a segunda mais aproximada e com a camisa levantada, a terceira em close mostrando o que parecia ser uma série de símbolos.

Cecília Barten.

Esse foi o nome que surgiu na mente de Mels enquanto examinava as imagens: Sissy fora outra garota, mais jovem e muito, muito longe de uma vida na qual ser assassinada fosse um dos ossos do ofício. Seu corpo fora encontrado recentemente em uma pedreira, com o mesmo tipo de símbolos gravados no abdômen. Sua garganta também fora cortada. E ela era loira.

– Você viu as fotos da cena do crime, não é? – perguntou Monty.

– Sim – Mels voltou a olhar a foto dos símbolos. – A pele estava vermelha, mas não havia nada disso. Então, me conte, de modo extraoficial se você preferir: como isso aconteceu? Você disse que foi um dos primeiros a chegar...

– Fui o primeiro a chegar. Fui com o gerente até o quarto e prontamente comecei os procedimentos de rotina. Isolei a porta e chamei reforços.

– Onde estava sua parceira?

– Ela estava doente, então eu saí sozinho. Corte de gastos, sabe como é. Nada de substitutos. Tanto faz, enquanto eu esperava, tirei essas fotos.

Ela odiava gente que falava tanto faz.

– Você mexeu na camisa.

– Eu estava examinando o corpo e a cena, seguindo os procedimentos normais.

Pervertido.

– Mas por que tirou as fotos se a fotógrafa oficial estava pra chegar?

– A verdadeira pergunta é: o que aconteceu com os símbolos?

Caramba, aquilo não estava cheirando bem, pensou Mels.

Olhando em seu rosto, ela perguntou:

– Então, o que posso fazer com isto?

– No momento, nada. Não quero ser acusado de adulterar o corpo.

Mas você fez exatamente isso, ela pensou consigo mesma.

– Então por que está me dando as fotos?

– Alguém tem que saber. Talvez eu fale com De la Cruz... ou talvez você possa publicar no jornal e dizer que as fotos são de uma fonte anônima. O negócio é que o horário da morte foi dado como perto das cinco ou seis horas, então o assassinato aconteceu logo depois que o sei-lá-quem pagou e entrou no quarto. Quando eu cheguei eram quase nove e quinze. Isso deixa quatro horas e meia para alguém ter entrado e saído de lá.

Mas o que ele não percebia, talvez de propósito, era o fato de que aqueles símbolos tinham desaparecido entre o momento em que ele chegara à cena do crime e o momento das fotos oficiais. O corpo não podia ter ficado muito tempo sozinho, e cicatrizes não desaparecem simplesmente.

Aquilo realmente não estava cheirando bem.

– Certo, só me diga o que posso publicar sem te trazer problemas – ela disse. – Quando você quiser.

Ele assentiu como se tivessem fechado um acordo e começou a andar.

– Espera um pouco, Monty, tenho uma pergunta rápida sobre outro assunto.

Ele parou na porta.

– O que foi?

– Sabe aquele homem que foi encontrado morto no Marriott?

– Ah, aquele cadáver na entrada de serviço? Que depois desapareceu do necrotério?

Mels parou de respirar.

– Como é?

– Você não ficou sabendo? – ele se aproximou novamente. – O corpo sumiu. Hoje de manhã.

Impossível.

– Foi roubado? Do necrotério do Hospital St. Francis?

– Aparentemente.

– Como uma coisa dessas pode acontecer? – quando Monty deu de ombros, ela balançou a cabeça, pois sabia que, seja lá o que acontecera com o corpo, boa coisa não era. – Bom, espero que encontrem. Escuta, você por acaso sabe que tipo de balas eles encontraram no colete que a vítima estava vestindo?

– Calibre quarenta.

– E ouvi falar que tinha uma tatuagem no corpo?

– Não sei. Mas posso descobrir.

– Eu agradeço.

Ele deu uma piscadela e um sorriso maroto.

– Sem problema, Carmichael.

Quando ficou sozinha, Mels observou as fotos novamente, uma a uma... e deduziu que Caldwell provavelmente tinha outro assassino serial em suas ruas.

Não era exatamente o tipo de segurança do trabalho que ela e os policiais esperavam.

E começou a suspeitar que talvez fosse alguém da própria força policial.


CAPÍTULO 24

Quando Devina dobrou seu guardanapo ao lado do prato vazio do café da manhã, ela sorriu para sua vítima, que estava sentada do outro lado da mesa. De uma forma geral, as coisas até que iam bem. A memória de Matthias estava voltando, e a lembrança que ela destravara sobre o pai dele trouxera de volta aos seus olhos o tipo de brilho que ela gostava de ver.

Seu velho pai fora essencial, é claro: fora o início da maldade, uma prova definitiva de que a infecção podia acontecer mesmo de humano para humano, e não apenas de demônio para humano.

Mas ela precisava ter cuidado ao mexer nesse vespeiro.

– Eu pago a conta – disse Matthias, levantando o braço para chamar o garçom.

– Você é um perfeito cavalheiro – ela colocou a mão dentro da bolsa e começou a contar seus batons da esquerda para a direita. – Estou feliz por termos encontrado um ao outro.

... três, quatro, cinco...

– Foi um golpe de sorte – ele olhou para a janela, como se estivesse fazendo planos. – Quais seriam as chances disso acontecer?

... seis, sete, oito...

– O que você vai fazer hoje? – ela perguntou, seu coração batendo mais forte enquanto o fim da contagem se aproximava.

... nove, dez, onze...

Ele respondeu, mas ela não prestou atenção, pois estava quase acabando de contar.

Doze.

Treze.

Deu um suspiro, pegou o último tubo e tirou a tampa. Encarando Matthias, ela o fez olhar para sua boca enquanto expunha a ponta vermelha do batom e passava lentamente pelos lábios.

Ele fez exatamente o que ela queria, mas a resposta não foi a que desejava: a reação dele foi mais clínica do que sexual. Como se ela fosse um instrumento que Matthias estava considerando brevemente se usaria ou não.

Devina franziu a testa. Quando ele disparou atrás daquela repórter, não havia nada dessa frieza distante. Mesmo vestido ele parecia nu, focado naquela mulher como se ela estivesse dentro dele, em vez de ser algo separado e distinto.

O demônio apertou e soltou os lábios, sentindo a boca voltar a mostrar a maciez de sempre – e, para ter certeza que ele entendera a intenção, ela inseriu em sua mente um pensamento sobre aquela boca envolvendo seu pau, chupando, sugando e engolindo.

Não funcionou.

Ele apenas olhou para o garçom, pegou a conta e escreveu o número de seu quarto.

Uma forte lufada de vento estremeceu as janelas e seu som fez todos no restaurante levantarem a cabeça, incluindo Matthias. Sentada em frente a ele, Devina fervilhava de raiva. Seu ódio se manifestou e tocou os elementos lá fora, atraindo uma ventania do Sul.

Tudo o que ela conseguia pensar era em como Jim a enganara – e agora esse cretino aleijado, que voltaria para o Inferno assim que a rodada terminasse, também a estava esnobando.

Cretinos. Os dois eram grandes cretinos.

Ela se levantou e pendurou a bolsa no ombro.

– Até quando você vai ficar hospedado aqui?

– Não por muito tempo.

Era verdade. As coisas estavam acontecendo com muita velocidade, mesmo que ele não estivesse ciente, e esta rodada terminaria rapidamente.

Talvez Devina devesse levá-lo para o quarto e lembrá-lo de que era um homem e não um robô – e aquela “dificuldade” não seria problema desde que estivesse com ela.

Boa sorte com aquela repórter nesse quesito, pensou ela.

– Vou sair agora – ele disse, como se a estivesse dispensando.

Devina estreitou os olhos e então lembrou que estava representando um papel.

– Bom, tenho certeza de que vou te encontrar por aí.

– Parece que sim. Boa sorte com sua mãe.

Quando ele se virou, ela quis transar com ele por outras razões além daquela rodada. Matthias tinha o mesmo tipo de força – e a mesma personalidade elusiva – de Jim.

Ela deveria ter prestado mais atenção nesse homem na época em que o possuía. Felizmente, ele logo voltaria para casa.

Nesse meio tempo, Devina precisava cuidar daquela repórter. Ela não precisava desse tipo de influência no jogo.

E acidentes acontecem a toda hora. O Criador não poderia culpá-la por isso.


Matthias tomou um táxi até a sede do Correio de Caldwell e esperou no estacionamento atrás do edifício. Ele deduziu que Mels tinha emprestado o Toyota para ir até o hotel e, de fato, aquela lata-velha não estava estacionada junto com os outros carros velhos cheios de lixo.

Parecia até que ter um carro caindo aos pedaços fazia parte da profissão de jornalista.

Ficou ao lado da porta dos fundos, encostado na parede e apoiando-se na bengala. No céu, nuvens cobriram o sol e sombras tomaram conta do lugar enquanto a noite se anunciava.

Ele estava sendo observado.

Não pelas pessoas que surgiam e sumiam pela saída... ou pelos fumantes que baforavam por alguns minutos e voltavam para dentro... ou pelas pessoas dirigindo pelo estacionamento lotado à procura de uma vaga.

Havia alguém observando-o constantemente, em posição fixa, à sua direita.

Poderia ser alguém em um daqueles carros alinhados na rua ao lado do estacionamento. A única outra opção era o telhado do edifício do outro lado da rua, já que as paredes não tinham janelas.

Ele precisava conseguir um pouco de munição. Sem balas, a arma calibre quarenta com silenciador que ele pegara “emprestado” de Jim servia apenas para golpear – o que não era exatamente inútil, mas não era a mesma coisa que um projétil mortal de longa distância.

O Toyota que ele esperava apareceu na curva e entrou. Quando o carro parou bruscamente, Matthias soube que Mels o avistara.

Ela estacionou na primeira vaga disponível, saiu do carro e se aproximou com a cabeça erguida e os cabelos balançando ao vento.

– Está queimando as calorias do seu café da manhã com uma boa caminhada? – ela perguntou.

Uma sutil pontada em seu peito surgiu quando ele a olhou nos olhos, e aumentou gradualmente, chegando até a dificultar sua respiração.

– Sinto muito – ele disse com a voz rouca.

– Pelo quê?

Tudo que ele conseguiu fazer foi balançar a cabeça, pois sua voz sumira. Aquela clareza fria e calculada que sentira após ser atingido pelas visões do passado havia sumido. Em seu lugar, havia uma sensação de impotência, como se ele fosse uma fortificação que perdeu a linha de defesa.

– Matthias, você está bem?

O que veio a seguir simplesmente aconteceu: ele se aproximou e colocou as mãos ao redor da cintura dela... e então a abraçou, mergulhando o rosto em seus cabelos soltos e perfumados.

– O que aconteceu? – ela disse suavemente enquanto acariciava as costas dele.

– Eu não... – que droga, ele estava fora de si. – Não posso...

– Está tudo bem...

Eles ficaram abraçados por um tempo enquanto trovões ecoaram, como se o céu não os aprovasse, e relâmpagos rasgaram o ar por baixo da camada de nuvens escuras.

Que diabos ele estava fazendo? A verdade era que Matthias queria ficar ali para sempre: quando abraçava o corpo quente daquela quase estranha, não havia passado nem futuro, apenas o presente, e aquela falta de um horizonte ou paisagem era o abrigo de que ele necessitava no momento.

A chuva começou a cair em grandes gotas, ao ponto de sentirem como se fossem atingidos por pedregulhos.

– Vem pra dentro – ela disse, tomando sua mão e usando um cartão de identificação para entrar no prédio.

Um estranho perfume químico invadiu o nariz dele. Mas não era nenhum produto de limpeza; Matthias estava sentindo o cheiro da tinta nas prensas.

– Aqui – ela disse, virando a maçaneta e empurrando a porta vermelha com o quadril.

A sala de reunião tinha cadeiras desiguais e uma longa mesa. Nada ali combinava, o lugar parecia um verdadeiro Frankenstein de móveis de escritório. Mas havia um bebedouro em um canto, e Mels trouxe um copo de água.

– Beba isto.

Matthias fez o que ela pediu e, enquanto bebia, fez o possível para se recompor.

Mels sentou em cima da mesa deixando as pernas balançarem de lá para cá vagarosamente.

– Converse comigo.

Mas que droga, como poderia contar o que aconteceu? O que é que ele estava fazendo ali, afinal?

Bom, pelo menos sabia a resposta para essa última pergunta. Ele queria ser honesto com uma pessoa. Finalmente. Precisava apenas fazer uma conexão com ela, como se Matthias estivesse em queda livre e Mels fosse uma corda para ser agarrada, e as palavras que ele precisava dizer fossem sua maneira de lutar pela vida.

– Eu matei meu pai.

Os pés dela pararam em meio ao balanço, os ombros ficaram tensos.

– Depois de muitos anos em que ele... – fale. Vamos, fale. Fale, seu idiota! – Ele era um homem violento, e bebia muito. Coisas... aconteceram. Coisas que não deveriam acontecer e eu...

O olhar no rosto dela gradualmente mudou, voltando a mostrar compaixão.

Mas, quando parecia que ela colocaria os pés no chão para abraçá-lo, Matthias levantou as duas mãos.

– Não, eu não posso... não vou conseguir terminar de falar se você me tocar.

– Certo – ela respondeu vagarosamente.

– Nem sei por que estou contando isso.

– Não precisa ter uma razão.

– Sinto que deveria ter.

– Você sabe que pode confiar em mim, não é? Posso ser repórter, mas eu estava falando a verdade quando disse que isso é apenas meu trabalho, e não quem eu sou.

– Sim – ele passou a mão nos cabelos e então tirou os óculos escuros. – Desculpa, mas preciso ter uma visão clara de você.

Ela franziu a testa.

– Não precisa pedir desculpa.

Ele mostrou o Ray-Ban e disse:

– Pensei que preferia que eu usasse os óculos. Você sabe, lá no restaurante... porque assim você não precisava olhar pro meu rosto.

– Não foi por isso que eu disse que você podia ficar com os óculos. Você não é feio pra mim, Matthias. Nem um pouco. E não precisa se esconder.

Por algum motivo, ele sabia que aquilo não iria durar. Sentia que quanto mais coisas ele lembrasse, pior seria a imagem de seu passado – como um quebra-cabeça que você achava que se tornaria uma linda paisagem, mas acaba sendo a horrível figura de Michael Myers, do filme Halloween.

– Eu denunciei ele – Matthias ouviu a si mesmo falar. – Falei com a minha professora, depois fui mandado para a enfermaria da escola, e eu contei tudo a eles, expliquei minhas faltas, os hematomas e... as outras coisas. Eu tinha quinze anos. Aguentei tudo calado até aquele ponto...

– Meu Deus, Matthias...

– ... mas então larguei mão de tudo, e o sistema entrou em ação. Ele teve um ataque do coração na minha frente quando eu contei que agora todo mundo sabia do segredo.

– E é por isso que você pensa que matou ele? Matthias, você não fez nada de errado.

– Sim, eu fiz. Assisti a morte dele. Não telefonei para a emergência, não corri para buscar ajuda, fiquei lá parado assistindo quando ele caiu na minha frente.

– Você era uma vítima de abuso e estava em estado de choque. Não é sua culpa...

– Eu fiz de propósito.

Agora ela franziu a testa novamente.

– Não estou entendendo.

– Eu não me importava com as coisas que ele fez comigo. Aquilo era mais uma chateação do que qualquer outra coisa – ele deu de ombros. – A coisa toda sobre a denúncia foi só um exercício mental pra mim. Entende? Eu conhecia ele muito bem – ele apertou as têmporas. – Eu conhecia a maneira como ele pensava, as coisas que o deixavam forte. Ele gostava de ser mal e ter poder sobre mim. Era um cara não muito esperto que trabalhava o dia todo com animais burros e espigas de milho. Quando ele precisava lidar com adultos do mesmo nível, seu complexo de inferioridade surgia. Ele ameaçava me matar se eu contasse pra alguém, e isso era seu inferno pessoal. Aquele segredo era muito importante pra ele, e não porque abusar de um filho é algo ilegal. Eu sabia que isso o afetaria além de parar com os abusos... e eu queria ver o que aconteceria.

– Espera, deixa eu perguntar uma coisa. Quanto tempo você passou vivendo com ele?

– Minha mãe morreu no parto.

– Então passou a vida inteira.

– Morei em outro lugar por um tempo, mas depois voltei a ficar com ele.

– Quando era pequeno.

– Sim.

– E não te ocorreu que naquela época você era apenas um garoto salvando a si próprio?

– Esse foi o resultado final, mas não era minha motivação. E é isso que me abala tanto.

Mels balançou a cabeça.

– Eu acho que você precisa aprender a se perdoar um pouco.

Ah, inferno, ela nunca entenderia. Matthias podia ver em seus olhos – ela já tinha cristalizado uma opinião sobre ele e nada mudaria aquilo.

– Matthias não é meu nome verdadeiro.

– Então como se chama?

Havia se lembrado. No café da manhã.

Ele a encarou por um longo tempo, observando o rosto, o pescoço, o corpo esguio... e então voltou aos olhos inteligentes.

Não compartilharia aquela informação. Não conseguiria.

E, no silêncio que se seguiu, ele sentiu uma necessidade esmagadora de ficar sozinho com ela novamente, e não em um lugar público. Em seu quarto. Naquela cama de hotel cujos lençóis cheiravam a limão. Ele queria mais um pouco dela antes de partir, como se ela fosse um remédio que o deixava vivo por mais um pouco de tempo.

Porque Matthias entendera que ia morrer logo.

Não era apenas paranoia. Era... inevitável, como se seu passado estivesse escrito em pedra.

– Meu tempo está acabando – ele disse suavemente. – E quero ficar com você antes de ir embora.

– Pra onde você vai?

– Pra longe – ele respondeu após um momento.


CAPÍTULO 25

Mels parou de respirar quando ficou convencida de que Matthias era uma das pessoas desaparecidas de Caldwell, mesmo ele possuindo carteira de motorista e, supostamente, uma casa. Ali na sua frente, olhando-a nos olhos, era como se ele nem estivesse na sala.

Esteve aqui por apenas uma fração de segundo e agora se fora para sempre.

– Por que está indo embora? – ele apenas balançou a cabeça, e ela perguntou: – É por causa disso que você não quer me dizer seu nome verdadeiro?

– Não, é porque não importa. São apenas sílabas. Não sou mais essa pessoa já faz muitos anos, é simplesmente irrelevante.

– Não tenho tanta certeza disso – ele deu de ombros, e ela teve de pressioná-lo. – E você não precisa ir pra lugar nenhum.

Ela não acreditava que as pessoas podiam saber do futuro. Se ele partisse, seria por vontade própria – e a decisão podia ser desfeita a qualquer momento. Por ele.

Exceto... o problema com aquele argumento era que Mels também sentia que os dois não teriam um final feliz. Eles haviam se encontrado por causa de um acidente. Suas vidas colidiram, e assim como o impacto, sua relação também não duraria muito.

Apenas os ferimentos seriam eternos.

Ela tinha uma terrível sensação de que nunca esqueceria os momentos que passara com aquele homem.

– Quanto tempo nós temos? – ela exigiu saber.

– Eu não sei.

Levantando da mesa, ela se aproximou, o envolveu com os braços e encostou o rosto no peito dele, ouvindo as batidas de seu coração. Quando Matthias a abraçou de volta, ela ficou imaginando por que sentia aquela conexão tão forte com ele. Todos os outros homens, os normais, nunca conseguiram realmente mexer com ela.

Mas este homem...

Matthias se inclinou para trás e tocou o rosto dela.

– Posso beijar aqui?

– Você quer dizer aqui no meu rosto ou aqui na sala de reunião?

– Bom, você trabalha aqui, então...

Ela pressionou os lábios contra os dele, silenciando-o. Quem se importava com o local onde estavam? Havia um monte de namoros entre funcionários, e pessoas traziam esposas, maridos e namorados pro trabalho a toda hora.

Além disso, se o chefe podia assediá-la sexualmente debaixo daquele teto, então Mels podia beijar ali o homem que realmente desejava.

Fechando os olhos, ela inclinou a cabeça e o beijou novamente, desta vez colando os lábios por mais tempo. E quando ele a beijou de volta, Mels desejou capturar aquele momento e torná-lo físico de alguma forma, para que pudesse segurá-lo com as mãos ou guardá-lo em um local seguro, como faria com um livro ou um vaso.

Mas a vida não é assim. As pessoas não podem guardar para sempre os momentos que as definem ou as emocionam – não é possível tocá-los com a palma da mão ou a ponta dos dedos. As maquinações do destino são tão elusivas quanto a ferramenta de um escultor, que surge de repente modelando contornos e depois parte para o próximo pedaço de argila.

Com um movimento decidido, Matthias subiu a palma da mão pelas costas dela até chegar em sua nuca, tomando controle. E quando sua língua lambeu entre os lábios de Mels, ela se abriu para ele, desejando que estivessem em um local privado quando o calor começou a se intensificar dentro dela, subindo por seu corpo cada vez mais rápido e quente...

Mels franziu a testa ao perceber que sua mão estava tocando algo duro nas costas de Matthias, na altura da cintura.

Não era parte de um suporte.

Não era nada médico.

Passando a mão por baixo da camisa ela encontrou... o cabo de uma pistola.

Mels puxou a arma para fora do coldre e se afastou.

Era uma pistola calibre quarenta, e ela rapidamente checou a câmara. Vazia. O mesmo com o carregador.

– Você não é a única que tem permissão de porte de armas – ele disse vagamente.

Ela entregou a automática de volta.

– Pelo visto não. Posso perguntar onde conseguiu isso?

– Eu comprei.

– E esqueceu a munição?

– Não veio junto no pacote.

– Sabe de uma coisa? A pessoa que morreu no seu hotel ontem à noite levou tiros de uma arma desse calibre.

– E você acha que fui eu porque estou sem munição.

Mels deu de ombros.

– Você me disse pra não me envolver porque eu poderia morrer. Você aparece com uma arma depois de alguém ser assassinado no Marriott. Não é preciso ser nenhum Einstein pra ver uma ligação aqui.

– Eu não matei aquele homem.

– Como sabe que era um homem?

– Apareceu em todos os jornais.

Mels cruzou os braços acima do peito e encarou o chão, pensando que nada de bom poderia sair daquela conversa, considerando a direção que estava tomando.

– Acho que é melhor eu ir embora.

– Pois é – ela disse.

Que grande decepção. De um beijo para uma discussão em menos de cinco segundos.

– Sinto muito – ele murmurou quando já estava na porta.

– Por que está pedindo desculpa?

– Não gosto de sair te deixando assim.

Bom, ela também não gostava nem um pouco.

Quando a porta se fechou, Mels se perguntou se o veria de novo – e deu mais um sermão em si mesma sobre manter a cabeça erguida e não deixar que sua libido a jogasse em situações perigosas.

Aquilo não era algo que seu pai aprovaria. Não era algo que mulheres inteligentes faziam.

Mas que droga...

Depois de chutar o próprio traseiro por quinze minutos, ela voltou para a redação, encheu uma xícara de café forte sem açúcar e retornou para sua mesa.

– Diga que você não bateu meu carro também.

Ela deu um sobressalto e olhou para Tony.

– O quê...? Ah, não. Aqui estão as chaves.

– Você parece ter saído de outro acidente.

Vai entender.

Ajeitando-se em sua cadeira, ela encarou a tela do computador.

– Você está bem? – perguntou Tony. – Precisa de um chocolate?

Mels riu.

– Acho que vou ficar no café mesmo, mas obrigada.

– Então, o que é que está te incomodando?

– Estou apenas pensando como é possível, fisiologicamente, que cicatrizes num cadáver possam sumir sozinhas.

Certo, não era a pergunta que realmente estava em sua mente, mas era uma boa substituta socialmente aceitável. Ela estava mesmo pensando naquilo em algum nível de sua consciência, e Tony era uma enciclopédia ambulante, portanto aquela era uma boa oportunidade para mencionar a questão.

Agora foi a vez dele se ajeitar e encarar o vazio enquanto pensava.

– Não é possível. Cicatrizes são cicatrizes.

– Então, como você explicaria dois conjuntos de fotografias, um que mostra marcas na pele e outro que mostra a pele sem as marcas?

– Fácil. Alguém usou Photoshop.

– É isso que estou pensando.

O que ela não entendia era o “porquê”. Embora suspeitasse do “quem”.

Mels deixou a cabeça pender para o lado. Qualquer alteração não poderia ter sido feita pela fotógrafa oficial – enquanto a mulher trabalhava, havia meia dúzia de homens no recinto. E, se ela mudasse alguma coisa nas imagens depois, eles teriam apontado para a discrepância no momento em que vissem as fotos.

Então restava Monty, um homem que masturbava seu ego falando com a imprensa quando não podia e tentando criar um drama onde não havia nenhum. Quais seriam as chances de ele adulterar as imagens apenas para se divertir?

Mels começou a agir, acessando os arquivos do Correio de Caldwell.

– Ou foi isso – Tony disse –, ou foi um caso de intervenção divina.

 

– Encontrei a tatuagem.

Às cinco da tarde, Mels tirou os olhos da versão final de seu artigo sobre a prostituta. Eric estava de pé à sua frente, com uma pasta na mão, um sorriso enorme no rosto.

– Da vítima do Marriott que desapareceu no necrotério?

– Exatamente.

– Deixa eu ver – ela disse, levantando a mão.

– É o desenho de... – ele entregou a foto. – Bom, não é meu estilo. Gosto mais das tribais.

Quando ela abriu a pasta, suas sobrancelhas se levantaram. A foto era colorida, mas nem precisava – pelo menos não considerando a tinta do desenho. A tatuagem mostrava o Ceifeiro da Morte em preto e branco, com detalhes assustadores... mesmo na foto, os olhos brilhantes sob o capuz rasgado e a mão esquelética apontando para quem olha pareciam se dirigir a ela especificamente.

– Bem macabro, né? – Eric comentou. – E o cemitério também ficou legal, você não acha?

Era verdade. A horrível figura estava de pé em um campo de lápides. As tumbas se estendiam até o horizonte e a túnica decrépita cobria e obscurecia o cenário, que parecia ser infinito.

– O que são esses traços marcados embaixo? – ela perguntou.

– Deve ser a contagem de alguma coisa... e com certeza não é a contagem de amores que ele teve, eu posso apostar.

– Pode ser relacionado a alguma gangue.

– É isso que eu estava pensando, principalmente porque, segundo a minha fonte, faz pouco tempo que outro corpo chegou no necrotério com algo parecido.

– O que a polícia pensa disso?

– Estou tentando descobrir agora mesmo.

Mels olhou para Eric.

– Você já procurou a imagem na internet?

– Existem milhares de representações do Ceifeiro da Morte na internet... algumas são tatuagens. Não encontrei nenhuma idêntica a essa, mas todas são meio parecidas, se é que isso faz sentido.

– Então, como sua fonte conseguiu isso? Ouvi dizer que o arquivo também tinha desaparecido.

O Hospital St. Francis estava uma loucura por causa do incidente; era como se o homem nunca tivesse entrado no sistema.

Alguém fizera um trabalho limpo. Muito limpo.

– Tenho um colega que gosta de tatuagens. Ele tirou as fotos no celular quando o corpo chegou.

– Que ótimo – ela murmurou enquanto voltava a olhar a pasta. – Então, se assumirmos que a tatuagem é de alguma gangue, o que diabos o cara estava fazendo vestindo um colete à prova de balas ultramoderno? E o desaparecimento? Gangues não são tão sofisticadas assim pra resgatar seus mortos invadindo um hospital dessa maneira, incluindo o sistema digital. Sem chance. A mesma coisa com a máfia.

Eric mastigou sua caneta Bic.

– Tem que ser algo do governo. Quer dizer, quem mais poderia fazer uma coisa dessas?

Ela pensou na pistola descarregada de Matthias.

– Ouvi dizer que as balas eram calibre quarenta.

– A arma que foi usada contra o cara? Sim. E a boa notícia é que a polícia guardou o colete, as roupas e as botas como evidências, então elas não sumiram, como o corpo – os olhos de Eric se estreitaram. – Então, agora você vai me dizer por que está tão interessada?


– A garota da minha história também morreu com a garganta cortada. – Embora, sendo realista, quais seriam as chances de as duas mortes estarem relacionadas?

– Ah, então você está colecionando ferimentos no pescoço?

– Estou apenas sendo detalhista.

– E como está saindo a história da prostituta? Alguma coisa nova?

– Estou trabalhando em algumas coisas.

– Me chame se precisar de ajuda.

– O mesmo para você.

Quando Eric foi embora, ela percebeu que a redação estava praticamente vazia. E seu prazo para entregar o artigo estava quase acabando.

Ela leu novamente a história, e ainda não estava satisfeita. Não havia nenhuma informação nova além da identidade da vítima e, quando Mels ligou para a família, recebeu uma resposta surpreendentemente desinteressada.

Como alguém poderia não ficar abalado com a morte de uma filha?

Mels não gostava de enviar seu material daquele jeito. Estava bem escrito, e a revisão automática fizera seu trabalho, mas a verdadeira história estava com Monty e suas fotos, e ela ainda não podia acrescentar nada daquilo.

Praguejando, clicou no botão enviar e jurou que chegaria até o fundo daquela história. Mesmo se não pudesse publicar nada.

Trocou de janela no computador e voltou a analisar uma montagem de duas imagens, que preparara uma hora antes: eram de marcas semelhantes gravadas na pele do abdômen. Uma era de Cecília Barten, encontrada morta na pedreira dos arredores da cidade há alguns dias... e a outra era a imagem do que Monty dizia ser a barriga da prostituta.

O padrão das marcas parecia algum tipo de linguagem: havia caracteres idênticos nas duas fotos, embora não estivessem na mesma sequência – o que em sua mente não descartava a teoria de que Monty alterara digitalmente as fotos. Afinal, aquilo seria perfeito, pois ligaria as duas mortes sem deixar a manipulação parecer óbvia demais.

Na verdade, quanto mais pensava naquilo, mais se convencia de que a manipulação se encaixava com a personalidade de Monty. O quanto ele se divertiria se pudesse ser a “fonte” de um novo assassino em série?

Mas ela então ficou pensando: quando ninguém mais aparecesse morto como aquelas garotas, o que ele iria fazer? E seu emprego estava em jogo. Entregar informações daquela maneira já era arriscado para ele. Aumentar os riscos mentindo sobre aquilo seria muita tolice.

Talvez ele simplesmente estivesse ficando desleixado.

Mas... e quanto à cor do cabelo? A prostituta usara tintura um pouco antes de ser assassinada, um tom de loiro igual ao de Cecília Barten. Isso não mudara entre as fotos: isso acontecera de verdade.

E se Monty fosse um imitador de assassinatos?

– Como está sua situação com o transporte? – quando Mels se sobressaltou, Tony parou de guardar suas coisas. – Tudo bem por aí?

– Sim. Desculpa. Estava só pensando.

O colega pendurou uma bolsa sobre os ombros.

– Precisa pegar emprestado meu velho carro de novo?

Mels hesitou.

– Ah, eu não poderia te incomodar de novo...

– Não se preocupe. Apenas me leve pra casa e o carro é todo seu, contanto que me traga café da manhã de novo amanhã cedo – ele segurou as chaves pelo chaveiro do Kiss e ficou balançando-as de um lado para o outro. – Eu realmente não preciso dele.

– Só mais uma noite – ela cedeu.

– Você quer dizer mais dois pãezinhos de salsicha com café.

Os dois riram enquanto Mels desligava o computador. Ela levantou, jogou dentro da bolsa as fotos que Monty lhe entregara e começou a andar de braços dados com Tony.

– Você é um príncipe entre os homens, sabia disso?

Ele sorriu.

– Sim, eu sei. Mas é legal ouvir isso de vez em quando.

– Escuta, você conhece alguém que seja bom com fotografias?

– Está querendo tirar um retrato de si mesma?

– Estou querendo uma análise.

– Ah – ele segurou a porta aberta para ela passar. – Pra falar a verdade, eu conheço uma pessoa com quem você pode conversar... e provavelmente podemos encontrar essa pessoa no caminho pra casa.

 

CONTINUA

CAPÍTULO 14

– Você quer que eu faça o quê?

Em resposta, uma caixa da L’Oreal foi jogada das sombras e quando a mulher a pegou, ela pensou: certo, a noite começou muito bem. Já estava cansada, dolorida e querendo que fosse uma da manhã, quando acabava seu turno – e esse “cliente” era um esquisitão com algum fetiche por tintura de cabelo?

Estava cansada dessa rotina de prostituta; estava mesmo. Já não aguentava mais aqueles motéis velhos e escuros, e homens feios com ideias malucas – isso sem contar aquele “gerente”.

– Você quer que eu pinte meu cabelo de loiro. Sem brincadeira.

Um maço de quinhentos dólares foi jogado do canto, e a luz do teto fez as notas brilharem no quarto pouco iluminado. Com certeza parecia um presente dos céus – principalmente considerando-se que o idiota já pagara para poder entrar naquela espelunca junto dela.

– Está bem, certo – ela se aproximou e pegou o dinheiro. – Mais alguma coisa?

A voz profunda soou em um tom baixo:

– Quero que o deixe bem liso.

– Só isso?

– Só isso.

– Nada de sexo?

– Não quero você pra isso.

Sentiu um calafrio começando a subir por suas costas até chegar à base do pescoço. Mas não havia motivo para se preocupar. Havia outras garotas nos quartos dos dois lados, e o patrão estava no estacionamento a menos de dez metros. Além disso, ela carregava um spray de pimenta.

O que ele poderia fazer com ela?

Resmungando para si mesma, entrou no banheiro e acendeu a luz. No espelho, ela parecia estar em seus quarenta anos, com bolsas sob os olhos e o cabelo com a consistência de um tufo de feno. A boa notícia era que ela precisava mesmo retocar as raízes – a lateral do cabelo já estava parecendo um mapa rodoviário, com a cor natural subindo pelo couro cabeludo. Mas não porque ela quisesse imitar Marilyn Monroe.

Acontece que gostava de ser ruiva. E, caramba, se o cabelo já estava crespo daquele jeito, não seria uma tintura que iria ajudar...

Ah, veja só, veio um condicionador junto. Legal.

Colocou em cima da pia o frasco cheio de creme, o tubo da tinta e o aplicador. Demorou um pouco para ler as instruções, afinal, ela nunca fora muito boa nessa coisa de ler e escrever, apesar de aquele texto não ser nenhum tratado científico.

Através da porta entreaberta, pôde ver que o cliente sentou-se no canto mais distante, com as botas bem separadas plantadas no chão, e as mãos descansando nos joelhos em vez de estarem no meio das pernas. A luz no teto iluminava apenas a parte inferior de seu corpo, portanto não dava para enxergar o rosto. Melhor assim – isso o deixava ainda mais anônimo.

Engraçado, ela não lembrava que esses quartos eram tão escuros.

Voltando ao trabalho, furou a ponta do tubo com a tampa de plástico, espremeu a gosma mal cheirosa dentro do aplicador e mexeu a mistura como se estivesse dando um trato em um cliente. Empurrou as mãos para dentro das luvas de plástico que estavam atrás das instruções. Ainda bem que eram grandes, pois assim havia espaço para suas unhas postiças.

Aplicou a tintura nas laterais sem problemas, mas as pontas estavam embaraçadas demais. Pegou uma escova em sua bolsa e forçou os cabelos da raiz às pontas duplas até que pudesse terminar o trabalho; depois se livrou como pôde de tudo o que saiu na escova.

A tintura cheirava a aromatizador misturado com cola química e tinha a consistência de sêmen.

Será que era isso que excitava aquele cara?

Homens são tão nojentos.

Durante a espera para a tinta secar, enquanto sua cabeça queimava e o nariz coçava, enviou mensagens de texto contando sobre o esquisitão que estava com ela. Não havia razão para conversar com o cliente – ele ainda estava apenas sentado lá, como uma estátua.

Trinta e cinco minutos depois ela entrou no banho com um frasco de xampu que fora deixado na pia. Fora usado até a metade por outra pessoa, mas tinha o suficiente para uma boa enxaguada. A água morna estava gostosa e o condicionador cheirava bem melhor que a tintura.

Quando saiu, seu cabelo tinha a mesma cor de pipoca de cinema, e todo aquele amarelo dourado fez sua bunda branca quase parecer esverdeada. Vestir suas roupas de puta não ajudou muito a melhorar a imagem.

Ligando o secador na tomada, virou-se, com os pés ainda descalços.

– Está pronto?

O homem levantou da cadeira e, ao se aproximar, a luz brilhou em seu rosto. Era bonito o suficiente, mas, por alguma razão, ela desejou devolver o dinheiro e sair dali. Rápido.

– Deixe o resto comigo – ele disse, tirando o secador e a escova das suas mãos.

O barulho do ar quente rugiu em seus ouvidos quando ele começou a escovar vagarosamente os cabelos dela. Com firmeza. Com decisão. Como se já tivesse feito aquilo antes.

Que cara maluco.

Quando tudo estava seco e macio, ele desligou o secador e o colocou na pia ao lado.

Encontrando os olhos dela através do espelho, o homem apenas a encarou.

Ela limpou a garganta.

– Eu preciso ir...

De repente, o rosto dele parecia diferente, as feições pareciam estar mudando...

Ela abriu a boca e tomou seu último fôlego para gritar quando uma lâmina surgiu atrás de sua cabeça.

Com um rápido corte na garganta, o monstro abriu um novo caminho para o ar entrar nos pulmões dela, e o que seria um grito agudo de terror transformou-se em um bizarro borbulhar de sangue.

A última coisa que ela viu foi um cadáver ambulante, com um sorriso em meio à carne podre.

– É hora da festa – disse uma voz feminina.


CAPÍTULO 15

Suicídio.

Enquanto Matthias digeria a palavra, um homem do tamanho de um ônibus entrou pela porta da frente: sua jaqueta preta, luvas e calça de couro o deixavam parecido com um membro da gangue dos Hells Angels. Sua expressão severa também se encaixava na descrição – e todos aqueles piercings confirmavam que Matthias não estava diante de nenhum cara frouxo.

Jim os apresentou, classificando Matthias como um “amigo” e o colega motoqueiro como “Adrian”.

Suicídio.

Experimentando o conceito em sua mente, Matthias descobriu que se encaixava e tentou se lembrar de mais coisas: um contexto, um lugar, uma razão. Mas nada surgiu, mesmo quando ele forçou seu cérebro até doer.

Com uma súbita clareza, olhou para Heron.

– O deserto.

O homem que tinha as respostas parou de conversar com seu colega e assentiu.

– Sim. Foi lá que aconteceu.

– E você estava junto – quando Heron assentiu novamente, a frustração de Matthias rugiu. – Como diabos nós nos conhecemos...?

A resposta foi interrompida pelo som de um carro parando na frente da garagem. Instantaneamente, armas foram sacadas, e Matthias também se juntou à festa, empunhando a pistola que estava na mesa.

Deus... ele sentia-se tão bem com ela na mão. Parecia tão natural!

Matthias se esquivou pela parede e olhou por entre as cortinas. Assim que viu o que estava lá fora, se acalmou, soltando um grunhido.

– Filha da puta.

– Você conhece ela? – perguntou Jim, que estava na janela perto da porta.

Voltando a olhar entre as cortinas, Matthias observou Mels sair do Toyota e concentrar-se na Harley. Não era uma surpresa que ela tivesse encontrado a droga do endereço; se ele conseguira, ela também conseguiria. Mas não podia acreditar que ela o seguira até ali. Antes de se separarem, Matthias falara a dura realidade, e a maioria das pessoas deixaria aquele drama para trás na mesma hora.

Sou faixa preta, tenho permissão para porte de armas e nunca vou a lugar algum sem uma boa faca.

– Deixa que eu cuido disso – ele falou, andando até a porta e tirando Jim do caminho, mesmo o cara sendo muito mais pesado e saudável. – E vou deixar bem claro: ninguém toca nela. Entenderam? Ninguém.

Ele podia estar comprometido fisicamente, mas não era preciso muita força para apertar um gatilho. E se alguém se aproximasse demais daquela mulher encantadora lá fora, ele os caçaria e mataria, mesmo que fosse a última coisa que fizesse em sua vida.

No silêncio pesado, dois pares de sobrancelhas foram erguidos, mas nenhum dos homens abriu a boca.

Acho bom mesmo, garotos.

No instante em que Matthias pisou na varanda superior, os olhos de Mels dispararam em sua direção.

Com as mãos na cintura, ela de alguma forma o confrontou olho no olho, mesmo estando no térreo.

– Surpresa!

Mantendo a arma fora da vista, ele disse:

– Você precisa ir embora.

Ela acenou para a moto.

– Pegou carona com um homem morto?

– É claro que não.

Franzindo a testa, ela subitamente atravessou o cascalho e pegou o que parecia ser uma das pedras. Mas a luz do sol refletida no objeto sugeria que era algo metálico.

Mels levou a cápsula vazia de uma bala de revólver até o nariz e cheirou.

– Andou praticando um pouco sua mira?

Enquanto ela segurava a bala vazia, Matthias quis praguejar. Principalmente quando ela sorriu friamente.

– Essa bala foi atirada recentemente, não mais do que vinte minutos atrás, talvez trinta.

Guardando a arma nas costas da cintura, ele desceu o mais rápido que pôde. Ficaram frente a frente, e Matthias nunca se sentira tão impotente em sua vida. Ele tentara intimidá-la para que nunca voltasse, mas isso claramente não funcionara. Talvez a honestidade funcionasse.

Ele percorreu seu rosto com os olhos, aquele lindo e teimoso rosto.

– Por favor – ele disse num tom baixo. – Estou implorando. Esqueça tudo isso.

– Você continua falando sobre perigo, mas tudo o que vejo é um homem sem memória que não sabe o que está procurando. Olha, apenas converse comigo...

– Jim Heron está morto. E eu não sei de quem é essa Harley, ou quem estava atirando...

– Então, com quem você estava falando lá em cima? E se disser que não tem ninguém, é mentira. Não tem como você ter trazido essa moto até aqui. Seria impossível. E o motor ainda está engatado. Aposto que se eu for até ela vou sentir o tanque ainda quente.

– Você realmente precisa esquecer isso tudo...

– Não vou colocar nada disso no papel, já combinamos assim. Tudo que me disser será extraoficial...

– Então por que você se importa?

– O trabalho não é tudo pra mim.

Matthias levantou as mãos.

– Por que diabos estou discutindo com você? Você nem usa cinto de segurança. Por que eu devo esperar que...

Nesse momento, a porta se abriu e Jim Heron saiu na luz do sol.

Mels olhou para o cara e balançou a cabeça.

– Bem, quem diria... sabe, você se parece muito com aquele trabalhador da construção que levou um tiro e morreu umas duas semanas atrás. Na verdade, eu mesma escrevi o artigo sobre você para o Correio de Caldwell.

Matthias apertou os olhos com as mãos.

– Filho da puta...


A primeira boa notícia, pensou Jim, era que a mulher tinha uma sombra. Ou seja, sem chance de ela ser uma criação de Devina.

A segunda boa notícia foi Matthias ter aquela atitude que dizia “ela é minha e de mais ninguém”. Aquele bastardo cruel nunca tinha mostrado preferência por nenhuma mulher, exceto se fosse um alvo marcado para morrer – e nunca bancara o protetor em relação a ninguém. Mas algo naquela jornalista de olhos faiscantes e personalidade forte o afetara. E isso era bom.

A mulher em questão pousou os olhos em Matthias. Na verdade, ela o encarava.

– Não vai nos apresentar?

– Deixa que eu faço isso – anunciou Jim enquanto descia as escadas.

– Como é bom ver que a boa educação ainda não morreu – ela murmurou. – Se bem que, com vocês, a morte é algo relativo, não é?

Matthias não estava contente por trás daquele Ray-Ban, mas teria de engolir sua insatisfação. Junto com outras coisas.

– Meu nome é Jim – ele estendeu a mão. – Prazer em conhecê-la.

Mels parecia desconfiada, mas também estendeu a mão.

– Talvez você queira me contar o que está acontecendo aqui...

No instante que suas mãos se tocaram, Jim a colocou em transe: ela apenas o encarou, relaxada, pronta para ser informada, com a memória de curto prazo totalmente apagada.

Legal. Jim não tinha certeza se conseguiria fazer aquilo.

Matthias apertou com força o braço dele.

– Que merda você fez com ela?

– Nada. Só um pouco de hipnose – olhou para seu ex-chefe. – Vou dizer o que vai acontecer. Ela não vai se lembrar de mim, vai ser mais fácil e limpo desse jeito. E você vai levar ela até o hotel que eu vou reservar pra vocês...

Matthias estava concentrado apenas em sua jornalista.

– Mels? Mels... você está bem?

Jim colocou o rosto bem em frente aos olhos do cara.

– Ela tá bem... nunca ouviu falar em Heron, o Mágico?

Eeeee... uma arma foi sacada. Matthias a encostou no pescoço de Jim, seu rosto subitamente mostrando os velhos traços tensos dos dias de glória no antigo emprego.

– Que merda você fez com ela? – não era exatamente uma pergunta, mas uma contagem regressiva antes de apertar o gatilho.

– Bom – disse Jim calmamente –, se você atirar no meu pescoço, nunca vai conseguir tirar ela do transe, não é mesmo?

Na verdade, se o cara atirasse, nada aconteceria. Mas já havia drama demais ali, e Jim não tinha certeza se conseguiria fazer aquele truque mental em mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Além disso, por causa do estado mental frágil de Matthias, Jim não queria arriscar explodir o cérebro do cara, revelando toda aquela história de anjos e demônios. Pelo menos, não agora.

A arma não saiu do lugar.

– Faça ela voltar. Agora.

– Você vai levá-la para um quarto de hotel.

– Sou eu quem tá segurando uma arma. Eu faço os planos.

– Pense bem. Se você estiver com ela, vai poder se certificar de que eu não vou mais importunar ela, certo?

A voz de Matthias ficou mais grave do que o normal.

– Você não sabe com quem está falando.

– E você também não – Jim inclinou-se na direção do cara. – Você precisa de mim. Sou o único que pode te contar o que você quer saber. Confie em mim. Estou mais ciente que você sobre o quanto seu passado está enterrado, e ninguém além de mim pode desenterrá-lo. Então entre na merda do carro, faça ela dirigir com você até o hotel Marriott no centro da cidade, e eu te encontro lá quando achar que estou pronto.

Matthias apenas ficou onde estava, impassível por um longo tempo.

– Eu poderia atirar agora mesmo.

– Então atire.

Matthias franziu a testa e levou a mão livre até a têmpora, como se estivesse com dor de cabeça.

– Eu... já atirei em você, não é...?

– Temos muita história juntos. E se quiser descobrir tudo, fique com ela. E não discuta. Agora eu tenho controle sobre você, e sou eu quem dita as regras. Uma ótima mudança de cenário, se me permite dizer.

Jim voltou para as escadas e subiu, deixando Matthias parado em frente a Mels. No andar de cima, ele estalou os dedos e entrou no apartamento. Depois assistiu por trás da cortina quando a mulher saiu do transe e os dois começaram a conversar.

– Então Matthias é a alma – disse Ad enquanto mordia um sanduíche.

– Parece que sim.

– Tem certeza de que quer colocar a mulher no meio disso?

– Você viu a maneira como ele olha para ela?

– Talvez ele só queira uma transa.

– Boa sorte pra ele – Jim murmurou. – E, sim, ela vai ser valiosa para nós.

A questão agora era descobrir qual seria a encruzilhada. Mais cedo ou mais tarde, Devina apresentaria uma escolha para Matthias, e Jim teria até então para mudar completamente aquele déspota sem consciência e faminto por poder, transformando-o no oposto disso.

Ótimo. Que maravilha.

Estava tão plenamente satisfeito com seu emprego que praticamente engasgava com essa merda toda.

– Vamos até o hotel – ele disse.

– Que hotel?

– O Marriott – Jim foi buscar sua carteira. Havia um cartão de crédito em seu nome que não estava exatamente atualizado, mas a Master-Card não descobriria que ele estava tecnicamente morto, simplesmente porque Jim não iria contar.

Adrian limpou a boca com um guardanapo.

– Tem certeza de que quer fazer isso num local tão público? O centro da cidade é cheio de gente e Devina adora ser o centro das atenções.

– Sim, mas a falta de privacidade vai deixá-la de mãos atadas. Primeiro, ela vai ter que limpar qualquer confusão. Segundo, ela vai precisar ter muito cuidado ao decidir como proceder nessa rodada; e não acho que matar civis inocentes seria visto com bons olhos pelo Criador.

Jim foi até o armário improvisado e tirou seus coldres. Vestindo-os, colocou sua adaga de um lado e uma arma do outro. Checou os bolsos, querendo saber quantos cigarros ainda tinha...

Um pedaço de papel dobrado no bolso de trás da calça o fez parar e fechar os olhos por um instante.

Não havia razão para pegar o artigo de jornal; ele já sabia o texto de cor. Cada palavra, cada parágrafo – e principalmente a foto.

Sua Sissy.

Que não era realmente dele.

Mas que estava sempre com ele. Nunca esquecida.

Certificando-se de que Adrian não podia vê-lo, tirou o papel, desdobrou a página e observou a foto. Ela tinha dezenove anos quando foi levada pelo demônio, eternamente presa naquele muro de almas.

Jim franziu a testa e olhou para a porta. Matthias estivera naquele Inferno maldito. As coisas que vira lá dentro...

Oh, merda, o que ele tinha feito lá?

A ideia de que a garota ainda estava lá sofrendo era suficiente para deixar Jim queimando de raiva.

– Se apresse, Ad – ele murmurou. – Temos que ir.


CAPÍTULO 16

Sentado no banco do passageiro do Toyota, Matthias sentia que estavam em um passeio. Mels não apenas obedecia a todos os sinais de trânsito, como também dirigia a dez quilômetros por hora em uma via em obras cheia de britadeiras e rolos compressores.

Ele a observou. Ela parecia estar bem, calma, normal, mesmo não se lembrando de Jim Heron.

Que diabos aquele cara tinha feito com ela?

Normalmente, Matthias não teria acreditado naquela coisa toda. Que merda é essa de hipnose? Mas... bem, ele estava mais ou menos na mesma situação, mas em vez de esquecer alguns minutos, ele não se lembrava da droga da sua vida inteira.

E, de qualquer maneira, o que “normalmente” significava nesses dias?

Quando pararam em um sinal vermelho ao final da via em obras, ele olhou através da janela.

– Não gosto de não estar no controle.

– Ninguém gosta – Mels respirou fundo. – Estou contente por você me deixar te levar de volta ao hotel.

Se você estiver com ela, vai poder se certificar de que eu não vou mais importunar ela, certo?

Matthias passou os dedos por baixo do Ray-Ban e esfregou os olhos.

– Estamos quase chegando – ela disse. Como se pensasse que ele iria desmaiar, ou algo assim.

Mas aquilo não tinha nada a ver com sua saúde física.

– Você me faz sentir... impotente.

– Não acho que seja eu. Acho que é por causa da situação em que você está.

– Não, é você – ele sentia que, se Mels não estivesse envolvida, as coisas seriam mais fáceis, mesmo se ele nunca se lembrasse de qualquer evento de sua vida: ele só precisaria se preocupar consigo mesmo, e ter um problema era definitivamente melhor do que ter dois.

– Eu tentei fazer a coisa certa – ele murmurou, e então se perguntou para quem realmente dissera aquilo.

– E você está fazendo a coisa certa ao se dirigir pra um lugar onde pode descansar. Suas últimas 24 horas foram caóticas. Você precisa dormir.

Deixando a cabeça cair no encosto do banco, Matthias fechou os olhos e pensou no confronto com Jim. Estivera plenamente preparado para apertar o gatilho e matar o cara.

Dormir não era exatamente o que ele precisava. Talvez algemas e uma avaliação psicológica: naquele momento em que seu dedo esteve no gatilho, não houve hesitação de sua parte – encostara o cano no pescoço do cara com rapidez, sem se importar com testemunhas e sem nenhum apelo moral de sua consciência quanto ao valor de uma vida humana.

Será que ele fora um soldado? Porque aquela atitude não tinha nada de civil, era totalmente militar.

Sim, pensou, era isso. E ele fora um dos tipos mais perigosos de soldados... aqueles que possuem um grande vazio no peito. O que significava que eram capazes de tudo.

Você odiava o homem que era.

Quando o semáforo ficou verde, Mels dirigiu por uma rua onde havia um pequeno centro comercial cheio de lojas grudadas umas nas outras. Eram coisas que ele nunca notava: os pequenos cafés aconchegantes, as lojas que vendiam presentes artesanais, as butiques de bijuterias e badulaques. Tudo tão banal. Tão cotidiano. Tão normal...

– Eu tentei cometer suicídio.

Mels pisou no freio por um instante, mesmo com o trânsito fluindo bem pela via de quatro pistas em que estava.

– Você tentou...? – limpou a garganta. – Sua memória está voltando?

– Algumas coisas.

– O que aconteceu? Quero dizer, se eu não estiver me intrometendo demais.

Pensando novamente em Jim Heron, ele respondeu com suas palavras:

– Eu não gostava de quem eu era.

– E quem você era?

Era sombrio como a noite, frio como o inverno, cruel como uma lâmina. Mas guardou isso para si.

– Você é persistente, sabia?

Ela tocou o próprio peito.

– Repórter. Faz parte do meu emprego.

– Estou descobrindo isso.

Matthias fechou novamente os olhos e escutou o motor do carro rugir e se acalmar. Quando algo morno e macio cobriu seu pulso, ele se exaltou. Era a mão de Mels, sua bondosa e elegante mão.

Por algum motivo, ele não podia acreditar que ela gostaria de tocá-lo.

Engolindo seco, ele apertou a mão dela e então desfez o contato.

Eles chegaram ao Marriott dez minutos depois. O lugar era um típico hotel de cidade grande, pairando sobre jardins bem cuidados no meio do centro comercial de Caldwell. Entraram pelo pórtico principal e acabaram em meio a uma confusão de carros, porteiros e pessoas carregando bagagens. Afinal, já passava das três da tarde, o que significava que era a hora da correria para os viajantes.

– Você vai subir comigo? – Matthias escutou a si mesmo dizer, enquanto imaginava quem poderia tê-los seguido; e que tipo de relacionamento ele realmente tinha com Jim Heron.

O cara tinha usado a palavra ajuda, mas sempre é preciso se perguntar que tipo de motivação está por trás de um gesto bem intencionado, e não é muito esperto simplesmente aceitá-lo cegamente.

– Vou te fazer companhia até você estar bem instalado, o que acha?

– Está... bem – ele ainda preferia uma separação direta, mas isso já não era possível.

Graças a Heron.

Se bem que... não era nada mal poder passar mais um pouco de tempo com ela.

Mels dirigiu lentamente entre funcionários que empurravam carrinhos de bagagem e seguiu para o estacionamento. O ar quente do motor invadia o interior do carro, então Matthias abriu uma fresta da janela – mas logo percebeu que aquilo não adiantaria. O ar que vinha do motor era a fonte do mal cheiro.

Mels entregou o carro de seu amigo para um manobrista – que não pareceu muito entusiasmado para estacionar aquela lata velha – e os dois entraram por uma porta giratória até o saguão subterrâneo, que estava decorado com carpetes vermelho-sangue e paredes douradas. Infelizmente, apesar daquela combinação – ou talvez por causa dela –, a decoração parecia mais a de um bordel do que um lugar para negócios: era uma tentativa mal sucedida de imitar o luxo de um Four Seasons.

– Sempre achei que este lugar se esforçava demais para parecer o Waldorf – Mels disse enquanto apertava o botão do elevador. – Mas estamos em Caldwell, não em Manhattan.

– Engraçado, eu estava pensando a mesma coisa.

– Aliás, não repara no meu mau humor – ela disse. – Sabe como é, eu não sou daqui.

– Você é de Nova York?

– Bom, eu nasci aqui, mas sou de lá. Estou só esperando pra voltar.

– O que te mantém em Caldwell?

– Tudo. Nada – Mels olhou ao redor. – De um jeito estranho, eu invejo a sua amnésia.

– Se eu fosse você, não invejaria.

Pois é, Matthias realmente não queria isso para ela, e não porque estava sendo um cavalheiro. De pé ao seu lado, ele até mataria para saber mais sobre Mels, sua família, onde ela crescera, tudo o que a trouxera para este momento de fragilidade.

– Mels...

Antes que ele pudesse perguntar, uma família se juntou a eles na espera pelo elevador, as filhas correndo de lá para cá, os pais parecendo viver presos em uma versão do Inferno que cheirava a chiclete e era povoada por diabinhos vestindo roupas de princesa que pediam sorvete a cada três minutos.

Ding!

Quando as portas do elevador de abriram, Matthias colocou as mãos nas costas de Mels e a conduziu para dentro. Ele não queria parar de tocá-la, mas baixou o braço e teve de aguentar o olhar vidrado das crianças em cima dele.

No saguão do andar térreo, a agitação do pórtico invadia a área da recepção, e havia uma fila de pessoas serpenteando por um labirinto de cordões de veludo.

– Isso é um pesadelo – Matthias murmurou secamente.

– Poderia ser pior. Nunca ouviu falar do Motel 6?2

– Bom argumento.

Quando finalmente chegou sua vez de serem atendidos na recepção, Matthias deu seu nome, mas não tinha certeza de como aquilo funcionaria. Normalmente, você precisa apresentar o cartão de crédito com o qual fez a reserva...

– Ah, sim, sr. Hault, o senhor já fez o check-in – a mulher disse, digitando com rapidez. – Só preciso da sua carteira de motorista.

Matthias olhou ao redor do saguão. Como diabos Heron conseguira chegar até ali e arranjar tudo? O trânsito estava pesado, mas não tão pesado na rota que ele e Mels fizeram. Podia ser, é claro, que o cara tivesse tirado um helicóptero do traseiro.

E quanto ao cartão de credito, será que Heron usara um próprio? O filho da puta supostamente estava morto, então era de se imaginar como a companhia poderia enviar a conta para o Cemitério Pine Grove. Por outro lado, números de cartão de crédito eram tão fáceis de arranjar como um livro em uma biblioteca, se você conhecesse as pessoas certas – e, considerando o olhar no rosto do colega de Heron, acesso ao mercado negro com certeza não seria difícil.

– Senhor? A carteira de motorista?

– Sim, desculpe.

Quando entregou a carteira, a recepcionista sorriu profissionalmente. Sua expressão era equivalente a um tapete de boas-vindas.

– Certo, aqui estão os cartões para o seu quarto. É só pegar o elevador até o sexto andar. O senhor vai ficar no quarto...

Não no 666, pensou ele, sem motivo aparente.

– ... 642. Gostaria de alguém pra ajudar com a bagagem?

– Não, pode deixar. Obrigado.

– Espero que goste da estadia.

Enquanto ele e Mels se dirigiam para os elevadores, Matthias observou todo o saguão, sem mover a cabeça. As pessoas ao redor não eram nada especiais... apenas gente normal carregando malas, ou falando no celular, ou discutindo com a esposa/marido/namorado. Ninguém estava prestando atenção nele, e é por isso que às vezes locais públicos podem ser o lugar mais seguro para você se esconder.

Mesmo assim, ele estava contente por ainda possuir a arma que pegara de Jim.

A segunda espera por um elevador foi maior do que a primeira, e quando finalmente chegou, Mels deu um passo para a frente junto de outro casal.

Matthias tocou seu braço e a fez esperar.

– Vamos pegar o próximo.

As portas se fecharam enquanto ela o observava.

– Claustrofobia?

– É. É isso.

Desta vez, ele deixou a mão em Mels por um pouco mais de tempo. De pé atrás dela, era possível observar o quão mais alto ele era, mesmo Mels não sendo nenhuma baixinha – e Matthias imaginou como seria apertar o corpo dela contra o seu.

Um pensamento estranho, por muitas razões. Mas que inegavelmente lhe trouxe uma imagem mental...

– Chegou outro – ela disse, quebrando o contato entre eles. – E estamos sozinhos desta vez.

Cara, quando se tratava de Mels Carmichael, sozinhos parecia realmente um termo muito bom.

A viagem até o quarto foi tranquila – com exceção da direção que seus pensamentos estavam tomando. E a outra boa notícia era que o quarto não ficava longe da saída de emergência. Perfeito. Lá dentro, o espaço era preenchido de maneira padrão, com uma cama, escrivaninha, armário e cadeira, mas o que mais chamou sua atenção foi o colchão king-size.

Mas ela não estava procurando por um caso com um estranho, e ele nem conseguiria dar conta do serviço, de qualquer maneira.

Quando Matthias se aproximou da janela e fechou a cortina, Mels acendeu a luz do banheiro e olhou ao redor.

– Você vai ter uma bela banheira.

Sem querer, ele observou-a de cima a baixo e concluiu que sim realmente gostava de suas curvas naquela calça apertada.

Merda. Ele a desejava – e muito. Queria ela nua e debaixo de seu corpo, com as pernas bem abertas enquanto a penetrava fortemente.

Limpando a garganta, ele disse, com a voz rouca:

– Posso te pagar um jantar? Eu sei que é cedo, mas estou com fome.

Estava mesmo era faminto por ela. Dane-se a comida.

Endireitando-se, ela o observou, e Matthias ficou aliviado por ainda estar usando os óculos dela. Nada de bom poderia sair do olhar que ele estava escondendo por trás das lentes escuras. “Desejo” não era a palavra certa, não naquela circunstância.

Ei, veja só, quem diria. Ele podia ser um assassino casual, mas ao menos tinha um pouco de decência.

– Sim – ela sorriu um pouco. – Claro. Eu gostaria de comer algo.

Enquanto Matthias olhava o cardápio que pegou sobre a escrivaninha, disse a si mesmo que estava apenas fazendo o que Jim Heron sugerira: mantendo-se junto de Mels, pois assim saberia que ela estava bem.

Ele podia não conhecer seu passado, mas de uma coisa tinha certeza: estava disposto a morrer para proteger aquela mulher inteligente e bondosa... e seu traseiro perfeito.


N.T.: Motel 6 é uma rede de hotéis de baixo custo e qualidade.


CAPÍTULO 17

Mels finalmente conseguiu terminar uma porção de batatas fritas.

Elas vieram junto com um hambúrguer perfeitamente ao ponto, uma fatia de picles bem generosa e uma Coca saída de um comercial, com o copo transpirando e tudo mais.

Sobre o console de mogno, a televisão do quarto estava ligada no canal WCLD, uma afiliada local da NBC, e o jornal das cinco horas estava começando.

– Tenho que dizer – ela murmurou, pegando a última batata e passando no ketchup – que essas batatas são bem melhores que as do Riverside.

Matthias, sentado na cama, ainda estava comendo seu sanduíche, mas ela podia perceber que ele olhava em sua direção. Mesmo com os óculos escuros.

Ele fazia muito isso: seus olhos pousavam nela como se gostasse da maneira como ela se movia, mesmo quando estava sentada – e, por alguma razão, aquilo o deixava ainda mais sexy... ao ponto de fazer Mels se perguntar como seria ter aquilo sem nenhuma barreira.

Quer dizer, os olhares.

Você sabe, sem o Ray-Ban...

Droga, ela estava se fazendo corar.

– Sabe, você pode tirar se quiser – ela disse suavemente. – Os óculos.

Ele congelou. E então voltou a mastigar. Depois de engolir, disse:

– Me sinto melhor com eles.

– Certo, é você quem manda.

Matthias não disse nada sobre sua busca por Jim Heron, ou sobre como descobriu o endereço no qual se encontraram. Ele apenas entrara no carro do Tony e a deixara dirigir até ali.

Mas é claro que Mels não questionaria essa mudança de postura.

– Não tem alguém em casa te esperando? – ele perguntou casualmente.

– Ah, na verdade não. Acho que não tenho muita vida pessoal.

– Sei como é isso... – ele parou. – Caramba, na verdade eu sei mesmo como é isso.

Ela esperou que ele continuasse. Em vez disso, Matthias apenas ficou lá sentado encarando seu prato de comida, que ainda estava na metade, como se aquilo fosse uma televisão.

– Me conta – ela disse.

Ele deu de ombros.

– Não sou casado. Não tenho filhos. Não tenho ninguém permanente. O que explica por que ninguém está me procurando... bem, pelo menos não no sentido familiar.

– Sinto muito. E quanto a seus pais?

Matthias estremeceu, depois pareceu se recompor.

– E então...? – ela insistiu.

– Não lembro nada sobre eles.

No silêncio que se seguiu, ela apanhou sua bandeja e colocou no corredor. Quando voltou para dentro, sabia que era hora ir.

Provavelmente, também era hora de esquecer aquela história.

Jim Heron estava morto – ao menos de acordo com o arquivo não-tão-distante do Correio de Caldwell, e também com aquela lápide do túmulo. Ela encontrara seu endereço por meio de uma das fontes que dera declarações para o jornal – mas, claro, ele não estava lá.

Uma dor de cabeça surgiu em suas têmporas, mas passou quando ela mudou seu pensamento para Matthias Hault. Ele estava seguro ali, e se recuperando bem. E, quanto à sua memória, ele era o único que podia chegar ao fundo da questão. Mels fizera o que podia para ajudar com o básico; mais do que isso... ela poderia dar dinheiro se ele a processasse pelo atropelamento, mas ele não parecia ter essa intenção.

Claro, havia algo de estranho sobre aquela casa que supostamente era “dele”, e outras coisas que não faziam sentido, como quem realmente estivera naquela garagem. Mas, se ela não iria publicar nada daquilo, os detalhes realmente não eram da sua conta.

Mels se aproximou e sentou ao pé da cama. Quando Matthias colocou a bandeja de lado e a encarou, aquele calor percorreu novamente seu corpo.

Definitivamente, ela estava atraída.

Principalmente ali naquele quarto, onde estavam a sós. Mas ela realmente não estava procurando esse tipo de complicação.

– É melhor eu ir – Mels disse, tentando ler seu rosto.

– Então vá – ele sussurrou, olhando-a olhos nos olhos através das lentes escuras.

Nenhum dos dois se mexeu, o corpo grande e malhado dele ficou tão imóvel quanto o dela.

Deus... Mels queria que ele a beijasse. O que era loucura...

– Você me faz... – Matthias respirou fundo.

– O quê?

Inclinando-se para frente, ele esticou a mão e acariciou seu rosto.

– Você me faz desejar que eu fosse diferente.

O toque fez o coração dela parar – e então acelerar.

– Acho que você é um homem muito melhor do que pensa.

– E é exatamente isso que me assusta.

– A ideia de que você é um homem bom?

– Não, a ideia de que você pensa assim.

Mels desviou o olhar brevemente e se perguntou o que diabos estava fazendo naquele quarto de hotel... desejando que os dois arrancassem a roupa e suas inibições. Caramba, eram ambos adultos, e ela estava realmente cansada de viver uma vida pela metade, de querer coisas que não tinha, de adiar seus sonhos em troca de nada.

Ela queria viver plenamente de novo. Do jeito que era antes de as coisas mudarem, antes de se mudar para Caldwell e sabotar... a si mesma.

Franzindo a testa, ela começou a imaginar há quanto tempo não sentia-se dessa maneira.

E então...

Não tinha certeza do que a fez agir – a voz dele? Os olhos, que ela não podia ver, mas podia sentir? Seu orgulho inveterado misturado com uma ponta de insegurança?

A garota das cavernas que havia dentro dela?

Qualquer que fosse a motivação, Mels colou os lábios contra os dele. De um jeito breve, recatado. Mas poderoso.

Quando ela se afastou, Matthias parecia surpreso.

– Mais uma coisa fora do seu controle, não é? – ela disse com a voz baixa.

– Você parece ter um talento para isso.

Bom, ela também surpreendera a si mesma. Mas acontece que simplesmente não conseguia pensar em uma razão para lutar contra o desejo que sentia por ele. A vida é curta... e, depois daqueles últimos dois anos, Mels tinha mais medo de não correr riscos do que de voar por um instante para depois cair em um desastre.

– Se importa se eu terminar o que você começou? – ele disse com um grunhido.

– Nem... um pouco.

Ouvindo a resposta que queria, Matthias deslizou a mão atrás do pescoço de Mels e a puxou para mais perto, possuindo-a, tomando o controle. E, no segundo antes das bocas se encontrarem, ela pensou que era incrível como os dois eram relativos estranhos e, no entanto, a essência dele era melhor do que qualquer contexto ou situação: ela se sentia segura com aquele homem misterioso, apesar de ele tentar convencê-la do contrário.

E, meu Deus, ela realmente o desejava.

E parecia que o sentimento era mútuo.

Matthias a beijou com força e a soltou; então voltou a beijá-la como se ainda não fosse suficiente. Enquanto travavam uma luta com as línguas, ele a segurava pela nuca, controlando o ritmo, ganhando e cedendo espaço. Com um ardor se concentrando onde há muito não sentia nada, Mels parecia decolar de maneira louca e selvagem – e pensou que aquilo era o que precisava. Exatamente aquilo, ali mesmo, com aquele homem.

Sexo naquele quarto, naquela cama. Com ele.

Abruptamente, Matthias se afastou, como se precisasse recuperar o fôlego.

– Por acaso você tem o hábito de beijar suas histórias? – ele perguntou com a voz rouca.

– Você não é uma história. Nada disso é oficial, lembra?

– Bem lembrado – os olhos dele percorreram o corpo de Mels. – Quero você nua.

Ela sorriu vagarosamente.

– Não é exatamente uma surpresa, considerando o jeito como me beijou.

Com um grunhido, ele avançou para cima dela novamente, deslocando-a pelo colchão, rolando sobre ela. Antes do “acidente”, ele provavelmente dominava fisicamente as mulheres – não de maneira violadora; não havia coerção ou o sentimento de estar presa por ele. A melhor descrição seria dizer que era uma dominação animal.

Principalmente quando sua perna se enfiou entre as dela, a coxa pressionando seu sexo.

Mels se arqueou contra o peso do peito dele e colocou os braços ao redor de seu corpo.

Com um movimento sutil, ele a segurou, e então parou totalmente. Quando se afastou, havia tensão em seu rosto – e não do tipo vou-agarrar-você-agora.

– O que foi? – ela sussurrou. – Qual é o problema?


Matthias se arrastou para o pé da cama. Seus pulmões estavam queimando e sua cabeça doía muito. Mas que droga de corpo! Lá estava ele com uma bela e saudável mulher que tinha todos os sinais de estar sexualmente atraída por ele, porém... o desejo existia, mas o corpo não ajudava.

Ele a queria. Mas não havia muito que pudesse fazer.

Pensando naquela enfermeira e na maneira como ela o havia tocado, parecia uma piada cruel que seu problema tivesse voltado justo agora: a distância entre ele e sua repórter era tal que nenhuma quantidade de beijos a resolveria. Nem carícias, toques ou mesmo nudez total. Mais uma vez, estavam em lados opostos de um túmulo – ela no mundo dos vivos, ele no cemitério.

Por alguma razão, aquilo o deixou ainda mais desesperado para possuí-la. E, com uma súbita clareza, ele lembrou que no passado tivera todas as mulheres que quis – e nunca sofrera por falta de voluntárias. Mas isso não significava que se importasse com elas.

No caso de Mels era diferente. Ela era diferente.

Mas Matthias nunca poderia tê-la totalmente, não com seu corpo naquele estado.

– Qual é o problema? – ela perguntou novamente.

Matthias não queria que ela soubesse. Mesmo que Mels fosse descobrir mais tarde, gostaria de preservar por um pouco mais de tempo a ilusão de que era um homem de verdade. Se é que iria vê-la novamente.

– Não acredito que estamos fazendo isto – ele se esquivou. Mas era verdade. Toda aquela história, desde acordar ao pé da sepultura de Jim Heron até o acidente com ela, não parecia estar certa. Era como se alguém estivesse manipulando tudo, como se a perda de memória tivesse um propósito.

– Nem eu – ela respondeu, olhando para sua boca como se quisesse mais.

Ela não parecia o tipo de mulher que gostava de encontros casuais. Não se vestia com roupas provocantes, não se insinuava em seus movimentos, não tentava seduzir a todo momento. E emanava uma vibração hesitante, mas positiva, como se fizesse algum tempo que as coisas não aconteciam com ela, e sentisse que estava na hora.

Diga para ela ir embora, pensou Matthias. Impotência à parte, havia muitas outras razões para não ficarem juntos naquela noite. Ou em qualquer noite.

Voltando a se aproximar, ele colocou as mãos ao redor de seu corpo e a puxou para perto – mas não perto demais. Os quadris não se encostaram.

Deus, ela cheirava muito bem.

As sensações estavam todas lá: o calor correndo em seu quadril, o coração batendo com urgência, os braços e pernas parecendo ainda mais fortes do que o normal. Mas seu pênis não participava desse conjunto.

Talvez fosse melhor assim, pois precisava dizer a ela que...

– Posso fazer algo por você? – ele soltou.

Certo, isso não era exatamente um “boa noite”.

– Você já fez.

– Tenho muita certeza de que posso fazer melhor.

– Bom, quem sou eu para impedir um especialista?

Quando ele se aproximou para beijá-la novamente, pensou em como ela ficaria com a blusa aberta e sem o sutiã, os seios prontos para receber seus lábios, a pele macia da barriga conduzindo-o para outros territórios.

Tudo aquilo era incrivelmente bom, e também parecia tão novo para ele – mas essa sensação não se devia ao fato de que nunca estivera com Mels antes. Ele sentia como se nunca tivesse se apaixonado de verdade por alguém. Por outro lado, considerando a falta de memória... realmente era como se ele nunca tivesse ficado com outra pessoa antes.

Do nada, uma imagem atingiu seus sentidos. Ele e uma mulher de pele escura e macia de pé contra uma parede. Ele a segurava pela garganta e ela o envolvia com as pernas, e Matthias a penetrava furiosamente...

Ele se afastou num sobressalto. De uma só vez, várias imagens inundaram sua mente, uma linha cronológica de todas as mulheres com quem já tinha transado – jovens, quando ele era jovem; mais velhas e variadas, quando já estava adulto; e então uma série de mulheres extremamente agressivas.

Ele viu a si mesmo com elas, quando seu corpo era forte e inteiro, suas emoções claras e organizadas, seu coração frio como gelo. Ele via as mulheres, nuas ou seminuas, armadas e desarmadas, tendo orgasmos com grandes movimentos exagerados.

– Do que está se lembrando? – Mels perguntou.

Ele abriu a boca para falar, mas a sucessão de nomes, lugares, rostos era um dilúvio do qual não conseguia se livrar, uma avalanche entupindo seus neurônios, deixando-o quase inconsciente. E, quando cedeu àquela força, sentiu seu corpo sendo conduzido de volta para os travesseiros, não mais no papel de dominador.

Levando as mãos à cabeça, ele praguejou.

– Vou chamar um médico...

Matthias esticou o braço e agarrou o pulso dela.

– Não, estou bem...

– Não, não está!

– Só me dê um minuto.

Ele respirou brevemente e decidiu parar de lutar contra aquela onda. Foi a decisão certa – em vez de se atropelar, as lembranças começaram a se revelar de modo mais ordenado. Ao menos... até chegar ao final. A última lembrança o mostravam junto com... algum tipo de monstro? Deve ter sido um pesadelo... mas, Deus, ela era horrível, e estava transando com ele como uma forma de tomar posse de seu corpo, em um calabouço no fundo de um poço escuro...

Pânico o atingiu como um relâmpago, fazendo Matthias se contorcer fortemente. Mas ele continuou segurando Mels pelo pulso, certificando-se de que ela não correria para o telefone.

– Por favor – ouviu-a dizer.

– Nada... de médico... já está passando...

Por fim, ele a soltou, tirou os óculos escuros e esfregou os olhos.

– Achei que lembraria das coisas devagar.

– Posso, por favor, chamar o atendimento médico? – ela pegou uma pasta e colocou em frente ao seu rosto. – Tá vendo? O hotel tem um médico de prontidão.

– Não, sério, estou bem. É que veio tudo de uma vez. A gente nunca pensa em quanta coisa fica guardada aqui em cima – ele apontou para a cabeça. – É muita informação.

– De que tipo de informação estamos falando?

Ele desviou o olhar.

– Bom, eu definitivamente não sou virgem. E não vamos nos aprofundar no assunto.

– Ah.

Houve um embaraçoso momento de silêncio. Então, Mels limpou a garganta.

– Sabe, acho melhor eu ir embora.

– Pois é.

Ela se levantou. Pegou o casaco. Vestiu-o.

– Antes de eu ir... – ela se aproximou da escrivaninha e escreveu algo no bloco de notas do hotel. – Aqui está o número do meu celular de novo...

O celular começou a tocar em seu bolso.

– Falando no diabo... – Matthias murmurou enquanto a observava terminar de escrever antes de atender a chamada.

– Alô – sua voz estava animada e profissional, e ele gostou de saber que ela podia se recuperar tão rápido.

Bom, na verdade isso era só mais uma coisa de que ele gostava naquela mulher.

Mels franziu a testa.

– Onde? Temos alguém ligado a ela? Como ela morreu? É mesmo? Certo, estou indo agora mesmo. Ainda estou com o carro do Tony – ela desligou o celular e pegou a bolsa. – Tenho que ir.

– Alguma coisa oficial?

– Meu chefe deve estar mudando de atitude. Ele me mandou para uma cena de crime.

– Ele não costuma reconhecer suas qualidades?

– Não aquelas que eu quero que reconheça – ela parou na porta. – Você tem certeza de que está bem?

– Você sempre foi uma santa assim? – ele murmurou.

– Não até te conhecer.

Quando ela já estava saindo pela porta, ele a chamou:

– Mels.

Ela virou a cabeça e a luz do corredor iluminou seu rosto. Quando seus olhos se encontraram, Matthias pensou que seria capaz de trocar todas aquelas mulheres que apareceram em sua memória por uma noite com Mels.

Não vou sair desta vivo, ele pensou.

Então, se algum dia tivesse mais uma chance de beijá-la, não iria parar. E quem sabe? Talvez tivesse mais sorte da segunda vez.

Contanto que não tivesse mais uma daquelas tempestades em sua memória.

– Use o cinto de segurança – ele ordenou, com a voz baixa.

– Chame um maldito médico – ela retrucou, com um pequeno sorriso.

Quando a porta se fechou, ele praguejou consigo mesmo. E então pensou em como se sentira quando a beijou.

Correndo o olhar por seu quadril, começou a pensar que gostaria de se tornar um homem saudável outra vez.


CAPÍTULO 18

O bar do saguão do Marriott fora nomeado em homenagem ao proprietário original do hotel, um tal de Não-Sei-Lá-Quem Sasseman. Pelo menos foi isso que a garçonete contou a Adrian com uma voz provocante enquanto anotava o pedido de cervejas dele e de Jim. Ela também fingiu deixar cair sua caneta e abaixou lentamente para pegar, depois foi embora rebolando como se sua pélvis tivesse recebido uma troca de óleo e ficado lubrificada demais.

Sua atitude até fazia sentido, já que os outros clientes dali eram homens de negócios com olhares esguios que provavelmente já estavam no time do Viagra, e ela era uma bela jovem com vinte e poucos anos.

Nos tempos de Eddie, Adrian teria ido atrás dela em um piscar de olhos.

Mas agora aquilo simplesmente não despertava sua atenção.

O banco no qual estavam sentados era revestido de couro sintético e fazia um barulho peculiar toda vez que um deles se ajeitava. Mas o lugar era perfeito para seus propósitos: ficava de frente para a grande porta que dava no saguão. Ninguém podia entrar ou sair sem que eles soubessem.

Se bem que, com o radar de Jim, eles conseguiriam rastrear Matthias e aquela mulher mesmo se estivessem parados no estacionamento de trás: o anjo certificara-se de tocar os dois, e mesmo Ad podia sentir a magia de rastreamento emanando pelos andares do hotel. O casal estava seis andares acima, muito próximos um do outro.

O que fazia ele se perguntar o que estavam fazendo.

Provavelmente jogando cartas.

É claro.

Enquanto os minutos passavam, transformando-se em uma hora inteira, as conversas dos outros clientes eram a única coisa que preenchia o silêncio. As cervejas transformaram-se em jantares. O tempo... parecia não passar.

Cara, ser imortal podia ser mesmo um saco quando a pessoa não se importava com nada. Tudo o que se tem é o tempo. Que ótimo, longas horas que perpetuamente o mastigavam com seus dentes, comendo-o vivo, mas mantendo-o inalterado.

Bom, com que ótimo humor ele estava naquela noite!

E esse humor não mudou nada enquanto observava as próprias mãos. A mancha negra que vira quando estava no chuveiro não reaparecera, mas ele não conseguia parar de checar a cada segundo para ver se ela tinha voltado. Até agora tudo bem, com exceção do sentimento de morte que o perseguia naquela noite.

Sentia literalmente como se seu corpo tivesse sido esvaziado por dentro, e não restasse nada além de um espaço dentro de seu peito...

– Ela está descendo – disse Jim, dando um último gole na cerveja quente que estava guardando. – A mulher saiu do quarto.

Ad não se importou em terminar seu copo. Na verdade, não tinha gostado nem de começá-lo.

Mas era melhor que Coors Light, de qualquer maneira.

– Você fica com ela – disse Jim enquanto entravam no saguão. – Não quero que ela fique sozinha.

– Mas a alma não é ele?

– Acho que sim. E se for, então ela é a chave para esta rodada.

– Tem certeza?

– Percebi o jeito como ele olha pra ela. Isso é tudo o que preciso saber – Jim acenou na direção da repórter que estava saindo do elevador. – Fique na cola dela. Vou esperar Devina aparecer por aqui.

Ad não estava interessado em ficar seguindo a namorada de Matthias. Ele queria esperar pelo demônio. Queria ficar cara a cara e rezar para que ela fizesse outra piada sobre Eddie – só para poder mostrar que não se abalava mais com qualquer coisa que ela dissesse. E depois, queria olhar em seus olhos enquanto a frustração explodia dentro dela até forçá-la a atacá-lo fisicamente.

E nesse momento ele poderia acabar com tudo. Lutar até morrer. Ter o fim de um verdadeiro guerreiro.

A vadia com certeza venceria, mas como seria bom arrancar umas camadas de carne dela. E depois, sentiria o alívio por tudo estar acabado.

– Adrian? Alô? Você está aí?

– Quero ficar aqui.

– Preciso de você junto daquela mulher. Ela precisa ficar viva tempo suficiente para influenciar Matthias. Se Devina conseguir farejar essa conexão entre eles, a mulher vai virar um defunto flutuando no rio Hudson. Ou pior...

Jim o encarou, deixando sua lógica subentendida – o anjo mais poderoso deveria enfrentar o demônio, e naquele momento não era Ad. E não por ele não possuir aqueles poderes legais de Jim.

– Você quer vencer – Jim disse com a voz calma –, ou quer nos ferrar de vez?

Ad praguejou, virou-se e concentrou-se na essência da mulher. Começou a andar normalmente, pois seria complicado demais desaparecer em meio àquela plateia.

Dirigindo-se para o elevador que levava ao estacionamento, a namorada de Matthias andava como se estivesse em uma missão, e Ad invejou aquele senso de propósito. Mas não invejou seu meio de locomoção. A lata velha tinha um motor e um teto – fora isso, mal se podia chamar aquilo de carro.

Só para deixar as coisas mais engraçadas, ele se transportou para o banco de trás – e apareceu em meio a um monte de jornais e revistas velhas, suficientes para encher a Biblioteca do Congresso. A boa notícia foi que ela escolheu justo aquele momento para ligar o motor – mas ainda ouviu o barulho de traseiro invisível amassando aquele monte de papel. Ela virou a cabeça e encarou o vazio onde ele estava. Só para ser legal, Ad deu um tchauzinho, mesmo que ela pensasse estar sozinha no carro.

– Estou perdendo a cabeça – ela murmurou enquanto engatava a primeira marcha e acelerava o carro.

Era uma boa motorista. Rápida nos pedais, eficiente no trânsito.

Acabaram na parte oeste do centro da cidade, em um motel que era apenas um pouco melhor do que um canil. Depois de saírem do carro – ele ainda invisível, ela ainda obstinada –, eles se juntaram a uma convenção de policiais e repórteres que se concentrava em um quarto à esquerda.

Adrian franziu a testa e abruptamente passou a se preocupar com aquela cena. Quando a mulher que estava protegendo se aproximou dos policiais que guardavam a fita amarela de isolamento, ele passou pela fraca proteção e se infiltrou na aglomeração de pessoas.

Que diabos?, pensou consigo mesmo.

Devina estivera ali; seu fedor residual pairava no ar como se um caminhão de lixo tivesse despejado um carregamento por toda parte.

Adrian se espremeu para dentro e precisou pressionar o nariz para não engasgar com o cheiro ruim que não afetava os humanos.

Olá, garota morta.

Do outro lado de quatro ou cinco policiais, um corpo estava visível através da porta aberta do banheiro: pernas brancas, tatuagem nas coxas, roupas que estavam amarrotadas como se ela tivesse resistido a um ataque. A garganta fora cortada e o sangue respingara na blusa cheia de lantejoulas e nos azulejos onde ela estava deitada.

Era loira, graças à L’Oréal: os restos do kit de tintura de cabelo estavam espalhados pela pia, e luvas de plástico manchadas, no lixo. E o cabelo fora alisado – graças ao secador Conair e a uma escova que tinha fios pretos grudados no meio e fios mais claros nas laterais.

– Maldita Devina – murmurou Ad.

– A fotógrafa já chegou? – gritou um homem de aparência cansada.

Os policiais olharam uns para os outros, como se não quisessem dar a má notícia.

– Ainda não, detetive De la Cruz – disse alguém.

– Aquela mulher me deixa louco – o cara falou, pegando o celular e andando para o outro lado.

Quando os policiais se aproximaram do detetive, como se quisessem assistir à fotógrafa levar uma bronca, Adrian aproveitou o espaço livre no banheiro e ajoelhou-se.

Rezando para não encontrar nada, levantou um pedaço da blusa ensopada.

– Ah, mas que droga...

Por baixo da blusa, a pele clara fora marcada com símbolos que não estavam endereçados àquela mulher, nem aos homens que a encontraram ou à família que lamentaria sua morte.

Era uma mensagem de Devina.

E Ad nunca, nunca permitiria que Jim visse aquilo.

Ad olhou o aglomerado de policiais ao redor do detetive, certificando-se novamente de que o telefonema estava lhe proporcionando um pouco de privacidade. Então passou a palma da mão várias vezes sobre a carne que fora marcada.

Felizmente, ainda restava um pouco vitalidade nas células da pele. Mas a remoção foi vagarosa.

– ... venha aqui agora – gritou o detetive – ou eu mesmo vou tirar as fotos! Você tem quinze minutos para chegar...

Ad franziu a testa, concentrando-se, esforçando-se o máximo que podia. Os símbolos foram esculpidos fundo na pele e pareciam irregulares, como se tivessem sido desenhados com uma faca dentada... ou, mais provável, com uma garra.

– Vamos lá... vamos lá... – ele olhou para trás. A reunião estava terminada, e o detetive estava voltando.

Retirou a mão e levantou-se rapidamente – então lembrou que ainda estava invisível.

– Quem mexeu no corpo? – exclamou o detetive. – Quem mexeu no maldito corpo?

Merda. A camisa ainda estava levantada um pouco acima dos seios. E não era assim que estava antes. E a pele estava avermelhada de um jeito não natural, considerando-se não apenas a etnia da vítima, mas também o seu estado de decomposição. Ainda assim, Ad atingira seu objetivo e isso era mais importante do que qualquer confusão que os humanos teriam para entender o que acontecera.

Que diabos Devina estava aprontando agora?

– Aquela vadia! – Adrian rosnou enquanto caminhava para fora. – Ela vai pagar por isso.

Jim já estava cansado de vigiar o saguão, mas ficou por lá mesmo com o cair da noite. Matthias ainda estava em seu quarto e isso significava que tudo o que Jim podia fazer era esperar.

Assim era a vida de um agente: grandes períodos de inatividade separados por grandes arroubos de uma dança que decidia entre a vida e a morte.

Droga, aquilo era igualzinho aos bons e velhos tempos – que não tiveram nada de “bons” e naquele momento nem pareciam tão velhos, pois a antiga identidade de Matthias não era a única coisa em que Jim estava pensando. Desde que seu novo emprego como anjo tomara conta de sua vida, era como se tudo o que acontecera antes tivesse sido apagado – mas nesta rodada isso não acontecera. Jim podia ter deixado sua outra vida de lado, mas isso não significava que ele não tinha muita história...

Olhando para o teto circular, ele franziu a testa. Matthias estava se movendo.

Um minuto e meio depois, as portas do elevador se abriram e o homem surgiu no saguão, apoiando-se em sua bengala, usando óculos escuros mesmo à noite. As pessoas ao redor notaram sua presença – mas sempre fora assim, como se o poder de Matthias criasse um farol que sinalizava até para os mais desatentos.

Tornando-se visível, Jim entrou no caminho do cara.

– Marcou algum encontro para tarde da noite?

O Ray-Ban virou em sua direção, mas a reação parou por aí.

– Você virou minha babá?

– Pois é, e estou sendo mal pago – Jim acenou para a porta giratória da entrada principal. – Está indo a algum lugar?

– Não, só quero tomar um pouco de ar. Sinto que... – Matthias passou a mão no cabelo. – Estou preso. Não aguento mais olhar para aquelas paredes... O que foi? Por que está me olhando desse jeito?

Antes que Jim pudesse pensar em uma mentira, disse:

– Você parece muito mais humano agora.

– Que merda isso quer dizer?

Jim deu de ombros.

– Não importa. Posso ir junto?

– Eu tenho escolha?

– Você pode tentar sair correndo.

– Não é legal tirar sarro de um inválido.

– Inválido? Onde?

Matthias soltou uma risada.

– Certo. Faça o que quiser.

Lá fora, a noite estava mais quente do que o normal para essa época do ano e um grosso nevoeiro deixava o ar pesado, com sua umidade pairando entre nuvens sobre o asfalto, como se não conseguisse decidir se despejava a água ou não.

Jim tirou seu maço de cigarros do bolso, acendeu um e exalou um fio de fumaça. Com o nevoeiro, os Marlboros e o ressoar de seus passos na calçada, aquela cena podia perfeitamente fazer parte de um film noir... principalmente quando perceberam que havia um grupo de homens seguindo seus passos – ou marchando, como parecia o caso.

Mas. Que. Diabos?

Todos os seis cretinos vestiam roupas de couro, o que poderia indicar que eram góticos... mas a maneira como andavam atrás de seu líder tinha um ar de militar profissional.

Quando o grupo passou por eles, Matthias e Jim se puseram de lado, e o líder lhes lançou um olhar.

Realmente era um filho da puta mal encarado, com os olhos cheios de agressividade.

Hum... em sua antiga vida, Jim poderia até considerá-los candidatos para recrutamento. Pareciam capazes de matar qualquer coisa ou qualquer pessoa em seu caminho, principalmente o cara da frente.

Mas Jim já não era o mesmo. E tinha esperança de que Matthias também não fosse.

– Lembrei de uma coisa – disse seu antigo chefe, quando ficaram novamente sozinhos na calçada.

– Lembrou?

– Apenas coisas pessoais. Nada em que eu estivesse interessado.

Quando o silêncio se tornou tão pronunciado quanto o nevoeiro, Jim deu outro trago no cigarro e falou, enquanto exalava a fumaça:

– Está esperando que eu preencha o silêncio?

– Você é quem quis vir junto. Podia pelo menos fazer alguma coisa útil.

– E eu pensando que estava aqui só pra deixar a paisagem mais bonita.

– Não pra mim, cara – quando Jim não respondeu, Matthias virou o olhar em sua direção. – Então, estive pensando sobre você.

– Não de um jeito romântico, espero.

– Não, eu costumava gostar de mulheres. Gostar muito.

– Costumava?

Matthias parou e o encarou.

– O que quero saber é...

Da outra ponta do quarteirão, uma figura surgiu na calçada com jeito de quem está acostumado a fazer emboscadas, e a arma que disparou na direção deles quase não fez barulho. Tudo o que Jim viu foi a breve explosão quando a bala saiu pelo cano do silenciador.

Praguejando, ele saltou sobre Matthias e o empurrou para um beco. Sua força de seus cem quilos levantou o homem no ar e os dois voaram juntos até atingirem o chão como se estivessem em câmera lenta. No meio da queda, e com perfeita sincronização, ambos sacaram suas armas, miraram no atirador e puxaram o gatilho – e então Jim girou o corpo para cair no pavimento por baixo de Matthias servindo como colchão para o outro.

Não havia tempo a perder, e ele não precisava dizer isso a seu ex-chefe – claramente, sua preferência por mulheres não era a única coisa que Matthias lembrava. Em um piscar de olhos ele já estava de pé e pronto para se proteger atrás de um carro que estava a uns três metros de distância.

Mais tiros foram disparados na direção deles, ricocheteando no pavimento, na porta e no pneu do carro. O atirador os seguiu e se manteve nas sombras enquanto se aproximava.

Esse tipo de movimentação esquiva também era um indicativo. O agressor chegou sem fazer barulho, e não só porque usava uma arma com silenciador igual à de Jim: não havia som dos passos nem respiração pesada; aquela pessoa era um assassino treinado, acostumado com aquele tipo de situação.

Um agente das Operações Extraoficiais, pensou Jim. Tinha que ser.

Praguejando novamente, olhou ao redor à procura de opções. O carro não era bom o suficiente para dar cobertura, pois tinha um tanque de gasolina – Jim sabia o quanto poderia aguentar, mas não sabia bem como Matthias se encaixava nessa coisa de voltar dos mortos, e uma explosão de um carro não seria a melhor maneira de testar.

Agarrando um dos braços de Matthias, ele ajudou o cara a correr para trás do carro – que, por pura sorte, estava estacionado em frente à entrada de serviço do hotel, com duas portas de metal no meio de um muro de tijolos. Jim foi direto para a maçaneta e tentou girar.

Obviamente estava trancada.

Mas que se dane. Ele sabia o que tinha de fazer.

Lançando uma rajada de energia no metal, ele explodiu o mecanismo da tranca e, usando o ombro, empurrou a porta. Quando ela cedeu com um rangido, Matthias congelou, como que condicionado pelo medo.

Ele arrastou o homem para dentro e voltou a fechar as portas. Ajudando-o a ficar de pé, lançou outra rajada de energia, desta vez mais longa e forte, e soldou rapidamente a porta, para que ganhassem um pouco de tempo para a fuga.

A boa notícia era que funcionou – e seu ex-chefe estava ocupado demais checando a munição para notar o truque mágico.

Com a bengala em uma das mãos e a arma na outra, Matthias recobrou a consciência.

– Por aqui – gritou, como se estivesse no controle. – Tem que ter uma saída.

Jim não contestou a liderança e voltou a apoiar o cara. Enquanto percorriam o caminho, manteve um olho na retaguarda.

Não era preciso ser um gênio para saber quem era o alvo. Matthias era o antigo chefe das Operações e havia “morrido”. O procedimento padrão era confirmar visualmente a morte, mas ninguém pudera fazer isso, já que Isaac Rothe se livrara dos restos mortais.

De algum jeito, eles descobriram que Matthias estava bem vivo e perambulando por Caldwell.

Talvez Devina tivesse um “contato” na organização.

– Você trancou a porta atrás de nós? – Matthias grunhiu.

– Sim – e provavelmente o assassino teria dificuldade em...

A explosão foi rápida e precisa, pouco mais do que um lampejo de luz. E então a porta rangeu mais uma vez e o agente surgiu no corredor.

À frente, Jim não encontrou nenhuma porta. Apenas o longo corredor que se estendia até onde podia enxergar.

Como se tivessem o mesmo cérebro, Matthias e ele se viraram e apertaram o gatilho, disparando tudo que tinham. Tiros, deles e do agente, ricochetearam por toda parte – e nem é preciso dizer que Jim se posicionou na frente de Matthias, usando o próprio corpo como escudo.

Alguns tiros o acertaram e a dor foi desagradável, mas nada que pudesse matá-lo ou desviar sua atenção. E então, a munição da dupla acabou.

O mesmo aconteceu com o agente.

Houve uma breve calmaria, que claramente estava sendo usada pelo agente para recarregar, e Jim não tinha escolha a não ser correr novamente. Feitiços de proteção eram ótimos contra os lacaios de Devina, mas não eram muito eficazes contra tiros reais. Então, usando o corpo como escudo, escolheu um lado do corredor e correu como um louco. E enquanto passavam por pilhas de cadeiras do restaurante, Matthias ajudou como pôde – mas, com sua deficiência nas pernas, era melhor que ficasse parado e se deixasse carregar pelo chão.

Afinal, não tinham tempo para discutir se aquilo feria a dignidade de Matthias ou não.

Percorreram três metros e então Jim percebeu que não havia mais tiros.

Nenhum profissional demoraria tanto para recarregar. O que diabos estava se passando?

Naquele instante, sentiu a presença de Devina, tão perceptível quanto uma sombra passando por sua própria tumba.

Que merda fantástica.


CAPÍTULO 19

– Vamos lá, Monty, você precisa me dar alguma coisa.

Diferente dos outros repórteres na cena do crime, Mels não ficou no meio da confusão em frente à fita amarela que isolava a porta entreaberta do quarto. Ela estava do outro lado, em meio ao nevoeiro que surgiu de repente junto com seu velho amigo Monty, o Boca. Monty era um bom policial, mas o que o tornava muito útil era seu ego. Ele adorava contar detalhes dos crimes só para mostrar que podia, e isso era muito conveniente.

Mas aquela noite era diferente, pois a história era sua – dessa vez Mels não estava juntando informações para outra pessoa.

Ela se aproximou.

– Eu sei que você sabe o que tá acontecendo.

Monty ajeitou o cinto e passou a mão no cabelo cheio de gel. Aquela figura parecia saída de outra época. Se raspasse a cabeça e tivesse um pirulito na mão, ficaria a cara do Kojak.

– Pois é, fui um dos primeiros a chegar. Você sabe, na cena do crime.

O problema com Monty era que ele fazia você se esforçar pelas informações.

– Quando você foi chamado?

– Duas horas atrás. O gerente ligou para a emergência e eu era o policial mais próximo do local. O cara que alugou o quarto pagou por apenas um período de uma a cinco horas, mas já tinham se passado nove horas e ninguém tinha feito o check-out na recepção. Eu bati na porta. Ninguém respondeu. O gerente usou sua chave e... bom, lá estava.

– O que você acha que aconteceu? – era importante usar o pronome você.

– Era sabido que ela era uma prostituta, então há três possibilidades.

Depois de uma pausa, ela completou o raciocínio, como já era o costume entre eles.

– Um cafetão, um desconhecido ou um namorado ciumento.

– Nada mal, nada mal – ele ajeitou novamente o cinto. – A porta não foi arrombada. Claramente houve resistência, já que as roupas dela estavam amarrotadas. Mas nem tudo parecia ser um caso do beco azul.

“Beco azul” era uma referência a um corredor pelo qual, por gerações, os policiais levavam suspeitos para dar entrada na delegacia. Com o tempo, o termo se tornou um código para casos criminosos sem nada de anormal ou de inesperado.

– E a surpresa foi...?

Monty aproximou o rosto, como se estivesse prestes a contar um segredo.

– Ela tinha acabado de pintar o cabelo. Por alguma razão, isso fez parte do programa. Deixou o cabelo loiro e liso. E então ele a matou.

– Como sabe que era um “ele”?

Monty lançou um olhar descrente.

– E, não, não posso dar o nome dela. Ainda não foi divulgado porque estamos procurando a família. Mas eu sei quem ela era, e ela tem sorte de ter sobrevivido os últimos dois anos. Sua ficha é longa e tem muita violência... e ela como agressora.

– Certo, bom, você me liga se puder contar mais alguma coisa? Eu não divulgo minhas fontes, você sabe disso.

– Sim, nisso você é boa, mas, sem ofensa, você não cobre muito esse tipo de crime. Escuta, você não pode me colocar em contato com seu amigo Tony? Geralmente é ele quem faz esse tipo de show.

Naquele momento, ela perdeu um pouco do respeito por Monty, e não por ele desdenhar da falta de credenciais dela com o Correio de Caldwell. Pelo amor de Deus, ele não era nenhum astro do rock, aquilo não era nenhum show e, caramba, será que dava para parar de mexer naquele coldre? Aquilo era uma cena de crime, e a filha, irmã ou namorada de alguém estava morta ali no banheiro.

Ele podia pelo menos ficar um pouco constrangido e se sentir culpado por vazar aquelas informações. Assim como ela estava.

– Dick me passou essa pauta – ela disse.

– É mesmo? Ei, parece que você está evoluindo. E, sim, eu te ligo, desde que não cite meu nome.

– Eu prometo.

– Nos falamos mais tarde – ele acenou para o lado, dispensando-a. – E atenda o telefone quando eu ligar, tenho um pressentimento sobre este caso.

Ela mostrou o celular.

– Eu sempre atendo.

Quando Mels se virou, ela passou a mão na nuca e sentiu os fios de cabelo arrepiados. Olhando ao redor, viu apenas pessoas trabalhando. Policiais. Detetives. Uma fotógrafa passando apressada pela fita. Havia também duas equipes de jornalismo no estacionamento, uma delas gravando e lançando luzes fortes sobre uma jornalista de cabelos morenos.

Mels virou-se completamente. Esfregou a nuca mais um pouco.

Cara, esse nevoeiro estava estranho.

Checando o relógio, pegou o celular e fez uma chamada. Quando alguém atendeu, colocou as mãos em forma de concha ao redor da boca.

– Mãe? Oi, sou eu. Escuta, eu sei que disse que ia chegar cedo, mas ainda estou trabalhando. O quê? Desculpe, não estou escutando... Certo, agora melhorou. Sim, eu... ah, não, não se preocupe. Estou com metade da força policial aqui... – provavelmente não foi a melhor coisa para dizer. – Não, estou bem, mãe. Sim, é um homicídio, mas é um caso grande, e estou contente porque o Dick me passou. Sim, eu prometo. Certo... sim, claro. Escuta, preciso ir... e eu bato na porta assim que chegar em casa.

Ela desligou, achando que não chegaria tão cedo em casa – e estava preparada para esperar o tempo que fosse necessário. O corpo precisaria ser fotografado, a equipe forense viria fazer exames e só então a vítima poderia ser removida.

Mels ficaria até que a polícia terminasse seu trabalho, os jornalistas da televisão fossem embora e qualquer outro repórter tivesse desistido.

Andando até o carro de Tony, enviou uma mensagem de texto ao colega, dizendo que ainda não dera perda total em seu veículo – e que o levaria para almoçar amanhã e o pegaria em casa às oito e meia em seu caminho para o trabalho.

Então ela dobrou o casaco sobre si mesma e sentou no capô do carro.

Imediatamente, Mels se levantou, tensa e olhou para trás. Mas não havia nada além de postes de luz no lado mais distante do longo estacionamento do motel. Ninguém espreitando atrás dela, ninguém mesmo.

Então por que tinha a sensação de estar sendo vigiada?

Massageando a cabeça, ela começou a imaginar se a paranoia de Matthias era contagiosa. Ou talvez aquilo que acontecera entre os dois na cama estivesse embaralhando seu cérebro.

Não importa o que digam sobre amnésia, aquele homem sabia muito bem como usar os lábios...

Por algum motivo, ela não podia acreditar que aquilo tinha acontecido. Mels nunca gostara de encontros casuais, mesmo nos tempos de faculdade – mas, se Matthias não tivesse parado, ela deixaria que as coisas chegassem à sua conclusão natural cheia de nudez.

Que surpresa. Principalmente porque sabia que seria capaz de fazer aquilo de novo.

Se é que teria uma nova chance.


Congelado no corredor do porão do Marriott, com Jim Heron o cobrindo como um cobertor, Matthias sentia-se como um boxeador. Mas não como Muhammad Ali ou George Foreman. Sentia como se fosse um sparring, aqueles caras que servem como parceiros de treino e que os verdadeiros lutadores esmurravam antes de encarar um oponente à altura: sua arma estava descarregada, seu peito arfava, a cabeça girava, estava exausto por toda aquela correria. Pelo menos parecia que não fora atingido pelos tiros.

Mas alguém fora. O cheiro de sangue fresco os perseguia e o som de alguma coisa pingando sugeria um vazamento – e provavelmente não era no encanamento do hotel.

– Fique aqui – ordenou Jim.

Como se fosse uma garotinha?

– Vai se foder.

Juntos, eles marcharam em direção ao atirador incapacitado, com Jim na frente porque ele conseguia andar um pouco mais rápido.

Pouco depois da porta que eles arrombaram, um homem vestindo roupas apertadas pretas estava de costas no chão, com os olhos fixos e dilatados, encarando o vazio. Sua garganta fora rasgada logo abaixo da linha do queixo – as veias e artérias não foram apenas cortadas, mas totalmente abertas, em um corte limpo.

– Que sujeira – murmurou Matthias, que olhava ao redor pensando em como limpar tudo aquilo... e se perguntando quem diabos os salvara.

Enquanto considerava os prós e contras de várias técnicas de descarte de cadáveres, estava ciente de que a morte, o corpo, a violência de ter sido perseguido a tiros, essas coisas pouco o afetaram emocionalmente: aquilo era o trabalho de sempre, nada além de ações práticas que visavam evitar o envolvimento da polícia.

Era assim que ele vivia, pensou. Aquela era a sua praia.

Apoiando-se na bengala, abaixou-se e um de seus joelhos estalou como um galho de árvore.

– Você tem um carro?

– Não aqui, agora, mas posso cuidar disso. Faça um favor e...

Matthias começou a revistar o cadáver, apalpando-o, retirando a munição extra, uma faca e outra arma.

– Certo, certo – Jim disse com a voz seca. – Vou dar uma olhada lá fora pra ver se não tem ninguém na rua.

– Então você também não sabe quem é o nosso bom samaritano?

– Nem ideia.

A porta de metal rangeu novamente quando Jim a abriu e, por uma fração de segundo, Matthias ficou paralisado de medo, o terror congelou seu corpo do coração até os pés. Seus olhos percorreram todas as direções buscando inimigos nas sombras, esperando que saltassem sobre ele a qualquer momento.

Não havia nada.

Resmungando consigo mesmo, voltou a se concentrar e abriu a camisa do homem. O colete à prova de balas tinha pelo menos uma marca de tiro – então ele e Jim não haviam desperdiçado toda a munição. Nada de celular. E, considerando que Jim acabara de sair mas não fora de encontro a uma saraivada de balas, não havia ninguém para dar cobertura àquele soldado.

Sentando-se, Matthias avaliou a porta de metal. No centro, ao redor do mecanismo da tranca, havia uma mancha queimada onde o agressor usara algum tipo de bomba portátil.

De repente, Matthias foi atingido por uma lembrança, na qual enxergou as próprias mãos segurando um detonador de uma bomba improvisada. Ele a preparara para atingir a si próprio: era uma combinação de circuitos eletrônicos e explosivos que serviriam como rota de fuga da sua vida...

Jim estava errado. Ele não odiava a si mesmo ou o que se tornara. Estava apenas exausto de ser quem era.

E ele era o...

A dor de cabeça surgiu com força, como se o cérebro tivesse uma cãibra: a dor limpou seus pensamentos e as memórias foram bloqueadas novamente pela agonia.

Merda, ele queria acesso ao que estava escondido, mas não podia arriscar ficar indefeso debruçado sobre um cadáver.

Baixando os olhos até o rosto do morto, se forçou a parar de pensar na amnésia e notou a mudança na cor da pele do cara: a vermelhidão causada pelo exercício era substituída por um cinza opaco. Acompanhando o processo da morte e concentrando-se apenas nisso, ele conseguiu voltar à realidade.

– Eu conheço você? – perguntou ao cadáver.

Parte de si estava convencida de que sim. O rosto pertencia a um jovem de pele clara, magro por falta de gordura no corpo, pálido por falta de sol, como se estivesse acostumado a trabalhar à noite. Por outro lado, quantos milhões de caucasianos na casa dos vinte anos existiam por aí?

Não, pensou, ele conhecia aquele garoto de algum lugar.

Na verdade, sentia que escolhera aquele filho da puta.

Será que ele participava de algum recrutamento? Para os militares?

Jim voltou ao corredor, fechou a porta e se recostou nela, cruzando os braços em cima do peito e parecendo querer socar uma parede.

– Estamos sozinhos? – perguntou Matthias.

– Eu diria que sim.

Abruptamente, notou os furos na camisa de Jim.

– Ainda bem que você também está usando colete à prova de balas.

– O quê?

Matthias franziu a testa.

– Você foi atingido...

De uma só vez, seu cérebro cuspiu outro pedaço do passado: viu os dois em uma sala forrada de aço inoxidável, um corpo gelado deitado em uma maca entre eles, uma arma levantada, um gatilho sendo acionado... na direção do maldito Heron. E foi Matthias quem atirou.

– Eu atirei em você em um necrotério – Matthias soltou. – Eu atirei em você... bem no meio do peito.


CAPÍTULO 20

Que sincronia perfeita, pensou Jim enquanto Matthias o encarava como se tivesse brotado um chifre no meio de sua testa.

Não era uma boa hora para a memória dele voltar a se conectar: claramente, alguém das Operações estava seguindo o rastro de Matthias. Essa era a única explicação lógica para o que acontecera – embora não fosse isso que estava embaralhando seu cérebro.

Evidentemente, Devina salvara seus traseiros.

Ela surgiu, esfaqueou e sumiu. E, como o demônio nunca fazia nada que não fosse para o próprio benefício, Jim ficou imaginando qual seria o motivo daquilo tudo. Talvez nenhum – afinal, se queria influenciar Matthias em sua nova encruzilhada, Devina precisava que ele continuasse vivo.

E Jim obviamente não fizera um trabalho muito bom protegendo o cara.

– Eu atirei em você... – Matthias repetiu.

Jim lançou um olhar do tipo supere-logo-isso.

– E daí? Você quer uma medalha? Vou comprar uma pra você na internet. Mas antes que fique aí todo existencialista, saiba que é pra isso que existe colete à prova de balas, certo?

– Você não estava usando um – Matthias retirou os óculos escuros e estreitou o olhar. – E não está usando agora.

– Certo, estamos num local público com um cadáver cheio de balas que saíram das nossas armas. Você realmente acha que é hora pra ficar de conversa?

– Eu conheço esse cara – Matthias apontou para o morto. – Mas não sei dizer de onde.

– Olha, vou levar o lixo para fora. Se não se importa, dá pra voltar para a droga do seu hotel agora?

– Fale comigo. Ou não vou a lugar nenhum.

Por uma fração de segundo, Jim lembrou-se claramente da razão de sempre chamar o cara de Matthias, o Cretino.

– Que seja. Você era o chefe dele.

– Que tipo de chefe eu era?

Eles não tinham tempo para aquilo.

– Bom, posso dizer que não era do tipo que eu gostava.

– Eu também era seu chefe... não é mesmo? – quando Jim não respondeu, o outro apertou os dentes. – Por que diabos você tá me deixando no escuro? De um jeito ou de outro vou acabar juntando todos os pedaços, e tudo o que você tá fazendo é me deixar cada vez mais nervoso.

Merda. Havia uma possibilidade muito real de o cara não se mover, e Devina poderia voltar – ou, quase tão ruim, a polícia ou os seguranças do hotel poderiam aparecer.

– Certo – Jim disse, frustrado. – Acontece que eu tenho medo que, se você souber, vai acabar no Inferno. Satisfeito?

Matthias recuou.

– Você não parece um religioso fanático.

– Porque eu não sou. Então, podemos parar com essa besteira e começar a nos mexer?

Matthias apoiou-se nos pés, colocou a bengala nos ombros e segurou os calcanhares do cadáver.

– Você não vai conseguir evitar essa pergunta pra sempre.

– Que diabos você está fazendo?

– Vamos lidar com isto juntos.

– Não, não vamos...

O som de sirenes interrompeu a discussão e os dois olharam para a porta ao mesmo tempo. Com sorte, os policiais passariam direto – o som aumentaria e depois diminuiria quando as viaturas começassem a se distanciar...

Não. Alguém devia ter visto ou ouvido alguma coisa e chamado a polícia.

Quando um carro freou no beco, Jim quis sair daquela situação da maneira mais fácil – colocar Matthias em transe, teletransportar o cadáver e jogar uma névoa na mente dos policiais que, naquele exato instante, saíam das viaturas com lanternas nas mãos. Mas o truque mental era difícil de fazer com mais de uma pessoa ao mesmo tempo. E botar fogo no corpo denunciaria sua posição aos policiais.

Com sorte, eles levariam um tempo vasculhando o beco primeiro.

– Fique calado – Jim grunhiu. Então agarrou Matthias pelo tronco, sustentando-o com o ombro, e começou a correr pelo corredor.

– Você... está... de... brincadeira... – Matthias disse, aos pulos, enquanto era carregado.

A sessão de reclamação parecia ter terminado, fosse porque Matthias engolira a língua na correria ou porque seu cérebro fritara de vez. Mas, caramba, pelo menos conseguiram chegar ao final do longo corredor, e dessa vez Jim não precisou esconder a rajada de energia que usou para abrir outra tranca. Irrompendo pela porta, ele...

Oh, merda.

... entrou direto nos fundos de um dos restaurantes do hotel.

A boa notícia era que parecia ser uma instalação usada apenas para o café da manhã e almoço; o lugar parecia uma cidade fantasma, os balcões de aço inoxidável da cozinha estavam limpos e prontos para o próximo turno. Infelizmente, o arrombamento disparou o alarme de segurança e luzes vermelhas começaram a piscar por toda parte.

– Por ali – Matthias disse, apontando para um conjunto de portas duplas com janelas redondas. – E me ponha no chão.

Jim soltou o cara e ambos voltaram a andar, passando por um fogão tão longo quanto um campo de futebol e por uma pia grande o suficiente para dar banho em um elefante. Enquanto seus passos ecoavam no chão de ladrilho vermelho, Jim olhou ao redor em busca do controle do alarme. Que, claro, não estaria bem visível no meio daquela cozinha enorme. Além disso, mesmo se ele pudesse desligar o alarme, o sinal já fora enviado para alguma central.

Passando pelas portas duplas, entraram em um salão cheio de mesas quadradas esperando por esfomeados que só apareceriam dali a sete horas.

No lado mais distante, as grandes janelas de vidro vermelho que separavam o restaurante do saguão principal mostravam um trio de pessoas correndo – provavelmente seguranças do hotel.

Ele e Matthias olharam para a esquerda, onde cortinas que iam do chão ao teto cobriam grandes janelas duplas de estilo antigo.

Sem discussão, partiram para a única saída disponível. E, para o crédito de Matthias, ele não tentou bancar o herói quando chegaram ali; parou pouco antes e deixou Jim cuidar da tranca usando a alça de bronze da janela.

Jim usou mais do que o peso de seu corpo para abrir a janela. Usou seu poder mental, e a janela abriu com um estalo, como se estivesse se soltando de uma tintura recém-seca.

Era uma queda de quatro metros até o chão.

– Merda – disse Matthias. – Você vai ter que me pegar.

– Sim, senhor.

Com um impulso coordenado, Jim jogou-se nas mãos frouxas da gravidade. Aterrissou com firmeza em suas botas de combate e deixou os braços levantados. O pulo de Matthias seria mais complicado, parecia que ele tinha dificuldade para dobrar as pernas, mas o cara era esperto. Ele agarrou a janela e a fechou pelo lado de fora, mesmo com seu traseiro quase não cabendo no parapeito.

Quando deixou o corpo cair em queda livre, sua jaqueta preta se agitou inutilmente, como se fosse um paraquedas que levara um tiro.

Jim agarrou seu ex-chefe com um grunhido, impedindo que ele atingisse o chão.

– Encontraram nosso amigo – Matthias disse enquanto se recompunha.

De fato, do outro lado do edifício, os policiais haviam aberto aquela porta dupla e entrado no corredor. Suas lanternas se refletiam pelo beco, como se estivessem vasculhando ao redor do cadáver.

Hora de virar fantasma.

Movendo-se o mais rápido e silenciosamente que podiam, os dois tomaram a direção oposta. Diferente das Operações Extraoficiais, cobertura era o procedimento padrão da polícia de Caldwell e, como já esperavam, mais sirenes ecoaram pela noite.

Pouco mais de cinquenta metros depois, eles pararam no outro canto do hotel, olharam ao redor e saíram do beco, com o máximo de calma que conseguiam fingir.

– Tire os óculos – Jim disse enquanto focava a calçada à frente.

– Já tirei.

Jim olhou para seu ex-chefe. O homem estava com o queixo erguido e olhava diretamente para a frente. Seus lábios estavam entreabertos e ele respirava como um trem de carga, mas ninguém perceberia, a menos que procurassem especificamente por sinais de falta de ar.

Até onde as pessoas podiam notar, os dois eram apenas amigos que haviam saído para um passeio, longe de estarem ligados a qualquer acontecimento estranho.

Jim ficou com muita vontade de dizer ao seu antigo chefe que o cretino fizera um bom trabalho. Mas aquilo seria ridículo. Os dois foram treinados pelo mesmo sargento, passaram anos exercitando técnicas de evasão lado a lado e estiveram em muitas variações desse mesmo cenário.

Quando entraram no saguão, Matthias já estava respirando normalmente.

Nem é preciso dizer que o cara continuaria hospedado no Marriott. Agora que a tentativa de fuga não só fora frustrada, mas também acabara envolvendo a polícia, uma nova tentativa seria mais arriscada e complicada, pelo menos nos próximos dias.

Além disso, depois de conhecerem aquela cozinha de primeira...

Seria uma pena não experimentar o almoço.


A persistência de Mels foi recompensada... de um jeito triste.

As equipes de reportagem foram embora depois da meia-noite, e então os policiais começaram a deixar o local. Até Monty foi embora antes dela. Finalmente, restaram apenas a equipe forense, dois detetives e Mels.

A fita de isolamento da polícia foi diminuindo cada vez mais à medida que as pessoas iam embora, e Mels também foi se aproximando cada vez mais da porta aberta do quarto do motel. Então, quando chegou a hora de remover a vítima, ela teve uma visão clara do procedimento. Dois homens entraram com um grande saco preto e, por causa do espaço pequeno no banheiro, tiveram que colocar o saco na sala e carregá-la para fora.

Pobre garota.

– É, foi terrível.

Mels virou-se, sem saber se tinha falado em voz alta. Um cara alto e de aparência assustadora estava atrás dela – era um típico mal-encarado com piercings no rosto e uma jaqueta de motoqueiro. Mas sua expressão parecia denunciar um coração partido, o que imediatamente fez Mels mudar de opinião quanto ao sujeito. Ele não estava prestando atenção nela; encarava a garota morta cujo corpo estava sendo arrumado para entrar naquele grande saco preto.

Mels voltou a olhar para a cena.

– Sinto pena do pai dela.

– Você o conhece?

– Não. Mas posso imaginar o sofrimento – por outro lado, talvez o cara não tivesse sido um bom pai e isso fosse um dos motivos para a garota ter entrado naquela vida. – É só que... ela um dia foi só um bebê. Deve ter havido alguma inocência em algum ponto.

– Espero que sim.

A curiosidade fez Mels avaliar novamente o cara.

– Você está hospedado aqui?

– Sou apenas um espectador – o homem suspirou com uma curiosa aparência de derrota. – Cara, eu odeio a morte.

Naquele momento, por alguma razão, Mels pensou em seu pai. Ele também fora removido daquele acidente em um saco plástico – depois de as ferramentas de corte hidráulico terem cortado caminho até o banco do motorista.

Será que agora ele estava no Céu? Olhando-a lá de cima? Ou seria a morte realmente o apagar definitivo das luzes, como um carro sendo desligado ou um aspirador fora da tomada?

Bom, não havia vida após a morte para eletrodomésticos. Então, por que os humanos achavam que seu destino seria diferente?

– Porque é, sim, diferente.

Ela olhou por cima do ombro e sorriu sem jeito.

– Desculpa, não percebi que falei em voz alta.

– Tudo bem – o cara sorriu um pouco. – E não há nada de errado em ter fé e esperança de que seus entes queridos estejam em paz em algum lugar. Na verdade, a fé é uma coisa boa.

Mels voltou a olhar o quarto do motel, pensando que era estranho ter esse tipo de conversa com um total estranho.

– Mas eu queria ter certeza.

– Ah, mas você é uma repórter, então vazaria a informação.

Ela riu.

– Então a existência do Céu e do Inferno é um segredo?

– Exatamente. Os humanos precisam de duas coisas para criar vínculos verdadeiros entre si: a escassez e o desconhecido. Se as pessoas que amamos vivessem para sempre, talvez não déssemos importância para sua presença, e se soubéssemos com certeza que iríamos nos reencontrar, nunca sentiríamos falta delas. É tudo parte do plano divino.

Então ele era um maluco religioso.

– Bom, isso faz sentido.

Eles se afastaram quando os policiais pegaram as alças do saco plástico e começaram a retirar a vítima. Enquanto a sombria procissão passava, Mels começou a entender a razão de Dick ter lhe passado aquela pauta. Uma garota morta, uma cena macabra, as ruas perigosas de Caldwell, blá, blá, blá. Ele era simplesmente o tipo de cretino que revidaria por Mels tê-lo esnobado tantas vezes.

E a verdade é que aquilo a deixou realmente abalada, como qualquer pessoa com uma consciência ficaria. Mas ela faria seu trabalho mesmo assim.

Inclinando-se para a porta, ela falou com o homem que estava no comando:

– Detetive De la Cruz? Você poderia dar uma declaração?

O detetive levantou os olhos de seu bloco de anotações antiquado.

– Você ainda está aqui, Carmichael?

– É claro.

– Seu pai ficaria orgulhoso, você sabe disso.

– Obrigada, detetive.

Quando se aproximou, o detetive nem sequer olhou para o grande homem que estava ao lado dela; mas De la Cruz era assim mesmo. Não se perturbava com quase nada.

– Não tenho nada para dizer ainda. Desculpe.

– Nenhum suspeito?

– Sem comentários – ele apertou o ombro dela. – Diga “oi” para sua mãe, certo?

– E quanto à cor do cabelo?

Ele apenas acenou e continuou andando, entrou no seu velho Ford cinza e dirigiu para fora do estacionamento.

Quando o último policial trancou a porta do quarto e colocou a fita de segurança, Mels virou-se para o homem atrás dela...

Sumiu. Como se nunca tivesse estado ali.

Estranho.

Andando até o carro de Tony, ela ainda podia jurar que estava sendo seguida, mas não havia ninguém por perto. A sensação persistiu enquanto dirigia para casa, ao ponto de ela se perguntar se paranoia poderia ser um vírus contagioso.

Matthias com certeza estava nervoso, mas ele tinha razão para estar. Ela com certeza não tinha.

Mels tomou o caminho mais curto para casa e, quando passou pelo cemitério novamente, decidiu fazer um pequeno desvio.

Parou em uma rua onde cada garagem possuía dois postes de luz brilhando em cada lado da porta. Com exceção desse rancho em particular, que tinha as luzes apagadas, tanto fora como dentro, como um buraco negro em meio a uma rua cheia de casas ocupadas e iluminadas.

Ela aproximou a mão da porta do carro, querendo dar uma olhada ao redor, espiar dentro das janelas, talvez encontrar uma porta aberta para entrar na garagem. Mas, assim que tocou a maçaneta, uma onda de pavor tomou seu corpo, como se aquela sensação de estar sendo vigiada tivesse se transformado em um bicho papão real prestes a pular nela com uma faca.

Mels deu um tempo para que o medo passasse, caso fosse apenas uma indigestão do hambúrguer com batata frita que comera no Marriott, mas quando a sensação não passou, ela engatou a primeira marcha e deu meia volta com o carro.

Provavelmente o culpado era o nevoeiro que ainda pairava no ar.

Sim, tinha de ser isso – um nevoeiro de cinema, que fazia a noite parecer ainda mais escura e perigosa do que realmente era.

Acelerando, ela trancou a porta e segurou firme o volante.

Não relaxou enquanto não entrou na garagem da casa de sua mãe, com os faróis do carro de Tony iluminando a casa em que crescera.

Por alguma razão, ela observou as janelas duplas no segundo andar. Aquelas que ficavam no parapeito de seu quarto.

Seu pai consertara aquelas janelas quando ela tinha dez anos: depois que um vendaval as arrancou completamente, ele usou uma brilhante escada de alumínio e carregou os pesados painéis de madeira para cima, equilibrando-os no beiral, apertando os parafusos, deixando tudo novo em folha.

Ela segurara a base da escada só porque queria fazer parte daquilo. Não estava preocupada que ele fosse cair. Ele parecia o Super-Homem naquele dia.

Na verdade, em todos os dias.

Mels pensou naquele estranho no motel, aquele maluco religioso cheio de piercings. Talvez aquela teoria da escassez e do mistério estivesse certa em se tratando de algumas pessoas. Mas se ela soubesse com certeza que seu pai estava bem, conseguiria encontrar um pouco de paz para si mesma.

Engraçado, até aquela noite não havia percebido que talvez precisasse disso.

Afinal, desde que ele se fora, ela vinha se esforçando para não pensar muito nas coisas.

Era doloroso demais.


CAPÍTULO 21

Por volta das cinco da manhã, Jim estava no quarto de Matthias no hotel Marriott, sentado em uma cadeira no canto, encarando a televisão sem som. Duas horas antes, ele recebera uma mensagem de texto de Ad informando que a repórter estava segura na casa de sua mãe e que o anjo checaria se estava tudo bem com Eddie e deixaria o Cachorro sair um pouco. A próxima mensagem chegou 45 minutos depois: Ad ia tirar um cochilo.

Ao lado, na cama de casal, Matthias dormia sobre as cobertas como uma pedra, deitado de costas, cabeça no travesseiro, mãos cruzadas sobre o peito. Só faltava uma rosa branca entre os dedos e o som de um órgão de igreja para que Jim começasse a prestar suas condolências.

Por que diabos Devina ajudara os dois?

Droga, a única coisa pior do que ela atacando era ela o salvando. E Jim não precisava daquele resgate. Ainda tinha truques na manga, caramba. Estava prestes a fazer um grande show de luzes.

Talvez ela estivesse tentando puxar o saco do Criador.

O que seria algo muito irritante...

A edição das cinco da manhã do programa Wake Up, Caldwell! começou com uma repórter cobrindo uma cena de crime no centro da cidade. A mulher, que estava em frente a um motel, virou e apontou para um quarto aberto onde policiais entravam e saíam. Então o vídeo cortou para uma caixa de tintura de cabelo e depois para a foto de uma mulher com cabelo tingido.

Havia tanto pecado no mundo, pensou Jim.

E, pensando nisso, lembrou que precisava de mais munição.

Quando um comercial de salsicha apareceu, seu estômago roncou e ele quase pegou o telefone para chamar o serviço de quarto.

– Você pode pelo menos dizer qual é o meu nome?

Jim olhou para a cama. Os olhos de Matthias estavam abertos, mas ele ficou estático, como uma cobra enrolada ao sol.

– Sempre conheci você como Matthias.

– Fomos treinados juntos, não é? Ontem nós usamos exatamente os mesmos movimentos, ao mesmo tempo.

– Pois é.

Sentindo aonde ele queria chegar, Jim pegou seu maço de cigarros, puxou um entre os dentes e então lembrou que estava em um local público. E não seria irônico se fossem expulsos do hotel por acender um cigarro, sendo que o invadiram pelos fundos, abriram fogo, deixaram um corpo e fugiram dali?

É, seria muito engraçado.

Jim voltou a olhar para a televisão, que agora passava um comercial de desodorante. Por uma fração de segundo, invejou os caras na propaganda: tudo o que tinham para se preocupar eram suas axilas, e, desde que usassem Speed Stick, não precisariam se preocupar com nada.

Se pelo menos a solução para Devina também viesse em spray ou em bastão...

– Conte como eu me matei – quando Jim não respondeu, o outro homem disse: – Por que você tá com medo de falar sobre isso? Você não parece ser um covarde.

Jim esfregou o rosto.

– Sabe de uma coisa? Você devia dormir menos, porque quando está descansado você é um saco.

– Então acho que você é um covarde, sim, afinal de contas.

Jim bufou e soltou ar, desejando que fosse fumaça.

– Certo, sabe o que me preocupa? Que quando você descobrir quem era, vai se tornar aquele homem novamente e eu vou te perder. Sem ofensa, mas essa sua mente vazia é uma benção.

– Você fala como se eu fosse uma pessoa do mal...

– Você era – Jim encarou seu ex-chefe. – Você estava completamente infectado, ao ponto de me fazer concluir que nasceu assim. Mas vendo você do jeito que está agora... – Fez um gesto com as mãos. – É uma surpresa descobrir que não é de nascença.

– Que diabos aconteceu comigo? – Matthias sussurrou.

– Não sei nada do seu passado antes das Operações Extraoficiais.

– Esse era o nome da organização?

– Esse é o nome. E, sim, nós dois treinamos juntos. Antes disso, não sei de nada. Havia rumores sobre você, mas provavelmente eram exageros por causa da sua reputação.

– Que reputação?

– Diziam que você era um sociopata – o homem praguejou baixinho e Jim deu de ombros. – Escuta, eu também não era nenhum santo. Não antes de entrar, e com certeza não enquanto eu estive lá. Mas você... estabeleceu um outro nível. Você era... algo mais.

Houve um período de silêncio. Então, Matthias disse:

– Você ainda não está falando nada específico.

Jim esfregou os cabelos e pensou. Bem, que inferno, havia tanta coisa para escolher.

– Certo, que tal isso: havia um homem, o coronel Alistair Childe. Esse nome traz alguma lembrança? – quando Matthias balançou a cabeça, Jim realmente desejou que estivessem lá fora, para poder acender um cigarro. – Ele era um cara legal, tinha uma filha que era advogada. O filho tinha problemas com drogas. A esposa morreu de câncer. Morava em Boston, mas trabalhava bastante em D.C. Ele chegou perto demais.

– Perto demais do quê?

– Da firma, digamos assim. Você mandou sequestrarem e levarem ele para a casa onde o filho se drogava. Seus agentes encheram o garoto até ele ter uma overdose de heroína e filmaram Alistair gritando enquanto o filho espumava pela boca até morrer. E você pensou que fez um favor para o cara, porque, nas suas próprias palavras, usou o filho que já estava perdido. A ameaça, é claro, era que, se Childe não se afastasse, você mandaria matar sua filha também.

Matthias não se moveu, mal respirava, apenas piscava. Mas sua voz foi o que o denunciou. Rouca e áspera, mal conseguiu pronunciar as palavras.

– Não me lembro disso.

– Você vai lembrar. Em algum momento. Vai se lembrar de muitas outras merdas como essa... e coisas que eu provavelmente nem faço ideia.

– E como você sabe tanto?

– Sobre o caso do Childe? Eu estava lá quando você foi atrás da filha.

Matthias fechou os olhos e seu peito subiu e desceu devagar, como se houvesse um grande peso em cima dele.

Isso deu um pouco de esperança para Jim. Talvez a revelação o afastasse um pouco mais do pecado.

– Se isso é verdade, posso entender por que está preocupado com minha bússola moral.

– É a mais pura verdade. E, como eu disse, tem muito mais.

Matthias limpou a garganta.

– Então, como exatamente isso aconteceu?

Matthias apontou para os olhos e Jim começou a relembrar o passado que compartilhavam.

– Eu quis sair, mas não existe aposentadoria das Operações, e você era o único que podia me exonerar. Nós discutimos sobre isso, e então você apareceu onde eu estava numa missão no deserto. Você disse pra eu te encontrar sozinho à noite num lugar muito longe do acampamento, e eu achei que era o fim, tudo estava acabado pra mim. Mas você estava sozinho. Olhou nos meus olhos quando levantou o pé e pisou na areia. A explosão... foi direcionada pra cima, não pra fora. Você não queria me acertar, e não foi um acidente – memórias daquela cabana, da areia áspera em seus olhos e da fumaça em seu nariz voltaram rápido e com força. – Depois de tudo, eu carreguei você pra fora e te levei pra onde teria ajuda.

– Por que não me deixou para morrer?

– Eu não aguentava mais jogar segundo suas regras. Era hora de o poderoso chefão não conseguir o que queria.

– Mas se você desejava sair e, se eu tivesse me matado... quem iria atrás de você? Se isso for mesmo verdade, você estaria livre.

Jim deu de ombros.

– Eu estava numa posição ideal. Você não queria que as pessoas soubessem que tentou suicídio, então eu tinha o melhor dos dois mundos. Eu estava livre e você passaria o resto da vida todo quebrado e morrendo de dor.

Matthias riu de repente.

– De um jeito estranho, eu até respeito isso. Mas não entendo por que está me ajudando agora.

– Mudei de emprego – Jim pegou o controle remoto. – Olha, nós saímos no jornal!

Quando colocou som na televisão, um apresentador diferente dava informações sobre um corpo que fora encontrado, veja só, bem onde eles estiveram naquele corredor de serviço. Não havia suspeitos. Não havia documento com a vítima – e boa sorte com isso. Mesmo que encontrassem algo, as identidades falsas das Operações Extraoficiais eram impenetráveis. Além disso, o legista não teria muito tempo: o corpo desapareceria do necrotério a qualquer instante – se é que já não fora removido.

Seria apenas mais um caso não resolvido que ficaria perdido num arquivo da polícia.

– Que tipo de trabalho você faz agora? – perguntou Matthias.

– Sou um trabalhador autônomo.

– Isso ainda não explica por que está ajudando um homem que odeia.

Jim o encarou e pensou em tudo o que Matthias representava na guerra contra Devina.

– Agora... eu preciso de você.


Arrumando-se para o trabalho, Mels quebrou uma unha enquanto se vestia e derramou café na blusa. E, como falta de sorte vem sempre em três, ela continuava com a sensação de estar na lista de algum assassino, mas pelo menos sua mãe estava na aula de ioga – e isso significava que podia sair sem ter de conversar muito.

À vezes, conversar com sua mãe sobre o trabalho era difícil. Ela não precisava ouvir os detalhes do que acontecera com aquela garota no motel.

Não era um assunto para o café da manhã.

Além disso, Mels não estava com vontade nenhuma de conversar. A noite fora longa, principalmente porque escrevera o artigo sobre o assassinato ainda na madrugada, para que o editorial pudesse postar a notícia primeiro na versão on-line. E hoje se concentraria em conseguir mais informações para escrever um artigo mais detalhado para a edição impressa de amanhã.

Com sorte, Monty não aguentaria e ligaria para ela, deixando aquela boca dele fazer sua parte.

No caminho para pegar Tony, ela ficou presa na fila do drive-thru no McDonald’s, pois não queria de jeito nenhum aparecer na casa dele sem um café da manhã. Finalmente, com dois pãezinhos de salsicha em uma sacola e um par de copos cheios de café, Mels voltou para as ruas no Toyota emprestado.

Quando estacionou o carro em frente ao prédio dele, o cara se levantou dos degraus da escada frontal e desceu correndo, seu grande corpo fazendo-o parecer mais alto do que era.

– Eu já disse ultimamente o quanto eu te amo? – ela perguntou enquanto Tony entrava no carro.

Tony abriu um grande sorriso.

– Se isso é café da manhã, então sim, você disse.

– Comprei dois pãezinhos e um café pra você – ela entregou a sacola. – O outro café é pra mim.

– Melhor do que um par de brincos – ele desembrulhou um dos pacotes. – Hum... comestível...

– Eu queria agradecer de verdade por você ter emprestado o carro.

– Ah, nem preciso tanto assim dele. Desde que consiga ir e voltar do trabalho, pra mim está bom – enquanto mastigava, ele franziu a testa e pegou um recibo no cinzeiro. – Você esteve no Marriott ontem?

Mels ligou a seta para a esquerda e entrou no trânsito, desejando que seu amigo não fosse um observador tão bom.


– Ah, sim, estive.

– Que horas?

Mels manteve os olhos na rua, reconhecendo a “voz de repórter” que seu amigo estava usando.

– Ontem à noite. Estava só visitando um amigo.

– Então você viu toda a movimentação?

– Movimentação?

– Você não sabe o que aconteceu?

– Fui chamada pra cobrir uma cena de crime do centro da cidade. Do que você tá falando?

– Espera um pouco, você pegou a história da prostituta de cabelo loiro?

– Sim. Então, o que aconteceu no Marriott?

Enquanto Tony levava um milhão de anos pra terminar de mastigar o Mc-Sei-Lá-O-Quê, o estômago de Mels começou a embrulhar. Cara, se ele começasse a comer o segundo pãozinho ela pularia em seu pescoço...

– Aconteceu um tiroteio no porão do hotel. O Eric vai cobrir a história. Teve troca de tiros no beco, e alguém invadiu o prédio pela entrada dos fundos de um dos restaurantes. Ligaram pra central da polícia e os policiais encontraram um homem morto sem identificação e desarmado, com a garganta cortada.

– Mas você não disse que houve tiros?

– Ah, ele foi atingido por tiros, sim. Mas não foi isso que matou ele – Tony fez um gesto como se cortasse a própria garganta. – Cortou de um lado a outro.

Mels sentiu um arrepio.

Porque você vai morrer se não se afastar de mim.

Mels disse a si mesma para se acalmar. Aquele era um hotel grande em uma parte da cidade que era perigosa à noite. Assassinatos acontecem, principalmente entre traficantes e seus clientes.

Tony revirou a sacola para pegar o segundo pãozinho de salsicha.

– Parece que o cara poderia ter morrido por causa dos tiros, mas ele usava um belo colete à prova de balas. Eric disse que os policiais ficaram babando quando viram o colete. Nunca tinham visto um daquele jeito – o gentil som da embalagem branca sendo dobrada foi seguido por um generoso suspiro de satisfação causado por aquela comida não saudável, mas deliciosa. – Então, o que você descobriu ontem à noite? – ele perguntou com a boca cheia.

Mels ignorou uma placa “Pare” e virou à esquerda na rua Trade. Sua mente estava muito longe: Matthias estava se preparando para dormir quando ela foi embora – embora isso não significasse que ele não poderia ter saído depois que ela...

– Olá? Mels?

– Desculpa, o que foi?

– Quando você estava no motel. O que descobriu?

– Ah... certo, desculpa. Não descobri muita coisa. A mulher foi morta depois de ter tingido o cabelo... a garganta dela estava cortada.

– Duas numa única noite. É uma epidemia.

Bom, podia até ser, ela pensou. Ninguém poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo, não é?

Certo, agora ela estava ficando maluca.

– Pois é. Que estranho.

Cinco quarteirões depois, eles chegaram ao prédio do Correio de Caldwell. Mels estacionou e devolveu as chaves para Tony enquanto andavam até a entrada dos fundos.

– Obrigada de novo.

– Como eu disse, pode pedir sempre que precisar. Principalmente se comprar café da manhã pra mim. E pare de colocar dinheiro na minha gaveta quando pegar um chocolate meu. Você tem permissão pra usar minha reserva de comida sempre que quiser.

Tony guardava um monte de comida em sua escrivaninha e ela já era conhecida por beliscar ali de vez em quando. Mas não pegava simplesmente de graça.

Mels segurou a porta aberta para ele entrar.

– Não vou roubar comida de você.

– Mas se eu der permissão, não é roubo. Além disso, você não pega mais do que uns dois bombons e um chocolate por mês.

– Furto é furto.

Eles alcançaram os degraus que levavam à redação, e desta vez foi ele quem segurou aberta a porta de vidro.

– Queria que todo mundo pensasse assim.

– É disso que eu estou falando. Você não tem a obrigação de alimentar todo mundo.

No instante em que entraram, Mels ouviu os telefones tocando, as vozes agitadas, os passos rápidos: tudo isso era uma sinfonia familiar que invadiu seu corpo, carregando-a até sua escrivaninha. Quando sentou, aquele burburinho acalmou a ansiedade que sentia por causa de Matthias, e ela ligou o computador sem sequer pensar no que estava fazendo.

Um envelope marrom foi jogado em sua mesa, assustando-a.

– Tenho algo bonito pra você ver – disse Dick com um sorriso maroto.

Ela pegou o pacote e abriu.

Ficou contente em ter dado os dois pãezinhos para Tony: dentro do envelope estavam as fotos do corpo da prostituta, fotos grandes e em cores mostrando tudo em detalhes.

Dick ficou ao lado, como se estivesse esperando que ela se abalasse, e Mels se recusou a satisfazer seu desejo, mesmo com o peito doendo por causa das imagens... principalmente a que mostrava em detalhes o ferimento na garganta, o corte profundo que atravessou a pele e penetrou os músculos rosa e vermelho, e a cartilagem pálida.

Mels colocou as fotos em cima mesa, fazendo questão de deixar a da garganta virada para cima, e notou que Dick, mesmo com todo aquele jeito machão, não quis olhar para a imagem.

– Obrigada – ela manteve os olhos colados nos dele. – Isso vai ajudar bastante.

Dick limpou a garganta como se tivesse percebido que fora longe demais, mesmo para seus padrões de cretinice.

– Quero ler o artigo detalhado assim que estiver pronto.

– Pode deixar.

Assim que ele sumiu, ela balançou a cabeça. Ele deveria saber que não podia mexer com Mels, sendo filha de quem era.

Na verdade, só o fato de querer dar em cima dela era nojento por si só.

Fez Mels pensar na maneira como Monty tirava proveito da tragédia dos outros.


Franzindo a testa, ela olhou as fotografias novamente, e então se concentrou na que fora tirada no necrotério. Havia uma mancha avermelhada estranha na barriga da vítima, como uma queimadura de sol...

O celular tocou e Mels atendeu sem olhar quem era.

– Carmichael.

– Olá.

A voz profunda despejou um calor que desceu por todo seu corpo. Matthias.

Por uma fração de segundo, ela imaginou como conseguira o número de seu celular. Mas então lembrou que escrevera o número em seu cartão de visitas.

– Ah, bom dia – ela disse.

– Como você está?

Em sua mente, começou uma partida de pingue-pongue entre o que Tony contara no carro e como se sentira ao beijar Matthias. Indo e vindo, indo e vindo...

– Mels, você está aí?

– Sim – ela esfregou os olhos, mas teve de parar, pois um deles ficou irritado. – Desculpa. Estou bem, e você? Lembrou de mais alguma coisa?

– Pra falar a verdade, lembrei sim.

Mels se ajeitou na cadeira e voltou a concentrar-se em uma coisa só.

– Como o quê?

– Será que você se importaria de investigar uma coisa para mim?

– Nem um pouco. Diga o que quer saber – enquanto ele falava, Mels tomava nota e escrevia nomes, aceitando a tarefa. – Certo. Sem problemas. Você quer que eu ligue de volta?

– Sim, por favor.

Houve uma pausa estranha.

– Certo – ela disse, constrangida. – Então, eu te ligo...

– Mels...

Fechando os olhos, ela sentiu aquele corpo pressionando contra o seu, aquela boca tomando a sua, a dominação intrínseca à personalidade dele começando a se manifestar.

– Você sabe o que aconteceu no seu hotel ontem à noite? – ela perguntou, abruptamente.

– Sim. Passei horas pensando em você.

Ela fechou novamente os olhos, tentando lutar contra a sedução.

– A polícia encontrou um cadáver. Que estava vestindo um colete à prova de balas muito moderno.

Outra pausa. Então, ele respondeu:

– Hum. Suspeitos?

– Ainda não.

– Eu não o matei, Mels, se é isso que está perguntando.

– Eu não disse que você matou.

– Mas é isso que está pensando.

– Quem são essas pessoas que você quer checar? – ela interrompeu, desenhando quadrados em volta dos nomes que ele havia passado.

– Apenas coisas que surgiram na minha mente – sua voz se tornou distante. – Olha, eu não deveria ter pedido isso. Vou conseguir as informações de outro jeito...

– Não – ela disse com firmeza. – Vou fazer isso e depois te ligo.

Mels desligou e ficou encarando o vazio. Então levantou e andou até chegar em outro cubículo. Inclinando-se por sobre a divisória, deu um sorriso forçado para um colega que não a conhecia bem o suficiente para perceber a falsidade.

– Oi, Eric, como é que vai?

Os olhos do cara se desviaram do computador.

– Oi, Carmichael. O que posso fazer por você?

– Queria saber sobre o assassinato do Marriott.

O repórter sorriu, como se estivesse orgulhoso de sua pauta.

– Algo específico?

– O colete.

– Ah, o colete – ele buscou em seus papéis em cima da mesa. – O colete, vejamos... – puxou uma folha e entregou para ela. – Encontrei isto na internet.

Mels franziu a testa enquanto lia as especificações.

– Cinco mil dólares?

– É o que custam sem ser personalizados. E o colete dele com certeza foi.

– Quem é que pode pagar tudo isso?

– É exatamente o que estou me perguntando – ele procurou outros papéis. – Grandes empresas de segurança é uma opção. O governo é outra, mas não pra um agente qualquer do FBI. Teria que ser um agente muito especial.

– Tinha algum VIP no hotel?

– Bom, foi isso que tentei descobrir na noite de ontem. Oficialmente, a equipe do hotel não pode divulgar nomes, mas ouvi o gerente da noite falando com um dos policiais. Não havia ninguém de especial sob o teto deles.

– E quanto aos arredores, no centro da cidade?

– Pois é, existem algumas grandes empresas na vizinhança, mas estavam todas fechadas, pois já tinha passado bastante da hora de expediente normal. E não faz sentido que alguém importante estivesse andando em Caldwell e algum de seus seguranças tivesse enlouquecido e entrado no caminho da faca de alguém.

– A que horas aconteceu?

– Perto das onze.

Depois que ela saiu em direção à cena do crime no motel.

– E ninguém tem pistas sobre a identidade?

– Nenhuma. O que nos leva a outra questão interessante – Eric mordeu a ponta de uma caneta Bic. – Não havia impressões digitais.

– Na cena?

– No cadáver. Ele não tinha impressões: foram totalmente removidas.

Os ouvidos de Mels começaram a zumbir.

– Algum outro tipo de identificador?

– Uma tatuagem, aparentemente. Estou tentando conseguir umas fotos dela e do corpo, mas minhas fontes estão meio devagar – ele estreitou os olhos. – Por que está tão interessada?

Colete à prova de balas moderno. Sem digitais.

– E armas?

– Nenhuma arma, alguém deve ter levado – Eric inclinou-se para frente em sua cadeira. – Então, você não está pensando em falar com Dick pra conseguir um lugarzinho nessa história, não é?

– Meu Deus, não. É só curiosidade – ela se virou. – Mas agradeço pelas informações.


CAPÍTULO 22

Quando o telefone toucou meia hora depois, Matthias ficou apenas olhando para a coisa. Provavelmente era Mels retornando a ligação.

Droga, que confusão...

Depois que Jim saiu para tomar café da manhã, ou cuidar de suas coisas, ou fazer seja lá o quê, a primeira coisa que Matthias fez ao ficar sozinho, naturalmente, foi ligar para Mels e tentar descobrir se era verdadeira aquela história sobre o pai e o filho em Boston. Mas ainda não estava raciocinando direito, e nem passou por sua cabeça que ela já tinha ouvido sobre o tiroteio da noite passada. Estava em todos os jornais. Não precisava ser um repórter para saber da merda que acontecera por lá.

O telefone parou de tocar. Mas ela iria tentar de novo.

Deus, a voz dela quando ele telefonou... Mels parecia desconfiada, e por muitos motivos isso era bom para ela. Mas também o deixava triste.

Quando o telefone voltou a tocar, ele não aguentou mais. Pegou sua bengala, saiu do quarto e andou cegamente até um elevador. Começou a descer, sem fazer ideia de onde estava indo. Talvez para o café da manhã.

Sim, café da manhã.

Era o que as pessoas faziam às nove da manhã no país inteiro.

E, é claro, o único restaurante aberto era aquele que ele conhecera intimamente na noite anterior – ao passar pelas paredes de vidro colorido, ele decidiu que sairia do Marriott para...

– Matthias?

Ao ouvir a voz feminina, ele se virou. Era a enfermeira do hospital, aquela que lhe dera uma mãozinha, por assim dizer. Fora do trabalho, ela tinha um frescor de verão, com o cabelo preto solto sobre os ombros e um vestido esverdeado que descia até os joelhos.

Até parecia uma noiva.

– O que você está fazendo aqui? – ela disse quando se aproximou. – Pensei que estaria em casa se recuperando.

Quando as pessoas passavam por ela, os olhares eram inevitáveis: homens com desejo nos olhos, mulheres com vários níveis de inveja e desdém. Afinal, ela era realmente linda.

– Estou bem – ele tentou não olhar demais, pois era como encarar o sol: doía nos olhos. – E você?

– Minha mãe está vindo me visitar. Ou melhor, já deveria estar aqui. O voo dela deveria ter chegado meia hora atrás, mas teve um atraso em Cincinnati por causa das tempestades. Estou decidindo se espero ou se vou pra casa: iríamos tomar café da manhã juntas no restaurante. É pra lá que você tá indo?

– Ah, sim.

– Bom, que tal se formos juntos? Estou com fome.

Seus olhos negros brilhavam com alegria, ao ponto de lembrá-lo de uma noite estrelada. Mas isso não era suficiente para fazê-lo aceitar o convite.

– Sim, vamos – ouviu sua própria voz, como se outra pessoa estivesse controlando sua boca.

Juntos, caminharam até a entrada do restaurante.

– Duas pessoas – Matthias disse, enquanto o recepcionista checava a enfermeira de cima a baixo para depois congelar como um animal na estrada olhando para os faróis de um carro, aparentemente impressionado com toda aquela beleza.

– Gostaria de um lugar perto da janela – ela disse, sorrindo vagarosamente para o cara. – Talvez perto...

Não a janela que ele usara para escapar, pensou Matthias.

– ... daquela ali.

Mas é claro que ela escolheu exatamente aquela.

– Ah, sim, claro, é para já – o recepcionista fez sua parte, conduzindo-os com alguns cardápios debaixo do braço. – Mas temos vistas melhores no salão, que dão pro jardim.

– Não queremos que bata muito sol – ela colocou a mão no braço de Matthias e apertou um pouco, como se quisesse demonstrar que estava preocupada com seu olho ruim.

Cara, ele realmente não gostava que ela o tocasse.

Enquanto andavam pelo salão, a enfermeira criou uma total comoção, com homens olhando por cima dos jornais, das canecas de café e até sobre a cabeça de suas esposas. Ela continuou andando a passos largos, como se aquilo fosse totalmente natural.

Depois de sentarem na frente da janela que ele e Jim haviam violado, o café chegou rápido e eles olharam o cardápio. Aquele ritual civilizado de escolher entre cinquenta tipos de pratos o deixava nervoso. E Matthias não queria comer junto com a enfermeira. Bom, não queria comer com ninguém.

A situação desconfortável com Mels era o problema. Sim, ele ligara pedindo as informações, mas a verdade era que queria apenas ouvir a voz dela.

Ele sentira saudade durante a noite...

– Em que está pensando? – disse a enfermeira suavemente.

Ele olhou através da janela para o prédio do outro lado da rua.

– Acabei de perceber... que ainda não sei o seu nome.

– Oh, desculpe. Achei que estava escrito na ficha do quarto do hospital.

– Provavelmente estava, mas mesmo que estivesse escrito em neon não sei se notaria.

Era mentira, claro. Na verdade, não havia nenhuma enfermeira registrada na ficha, apenas um médico, e cujo uniforme também não tinha um crachá com nome.

O que parecia um pouco estranho, pensando bem...

Ela pousou elegantemente a mão no meio do peito, como se fosse um convite para ele olhar seu decote.

– Você pode me chamar de Dê.

Olhou em seus olhos.

– De Deidre?

– De Devina – ela desviou os olhos, como se não quisesse falar muito sobre seu nome. – Minha mãe sempre foi uma pessoa religiosa.

– O que explica seu vestido.

Dê balançou a cabeça com pesar e ajeitou a saia.

– Como você sabia que eu não me visto assim normalmente?

– Bom, primeiro porque parece um vestido para uma mulher com mais de quarenta anos. A calça jeans e a blusa que usou naquele dia pareciam mais apropriadas pra sua idade.

– Quantos anos você acha que eu tenho?

– Uns vinte e cinco – e talvez fosse por isso que não gostava quando ela o tocava. Ela era muito jovem, jovem demais para um cara como ele.

– Na verdade, tenho vinte e quatro. É por isso que minha mãe vem me visitar – ela tocou o peito novamente. – Meu aniversário.

– Parabéns.

– Obrigada.

– Seu pai também vai vir?

– Ah... então. Não – agora ela se fechou completamente. – Não, ele não virá.

Droga, a última coisa que ele precisava era entrar em detalhes pessoais.

– Por que não?

Ela ficou mexendo na caneca de café em cima do pires, movendo de lá para cá.

– Você é tão estranho.

– Por quê?

– Eu não gosto de falar sobre mim mesma, mas aqui estou eu, falando sem parar.

– Não me contou muita coisa, se isso faz você se sentir melhor.

– Mas... eu quero falar – por um segundo, seus olhos focaram os lábios dele, como se estivesse pensando em fazer coisas de que Matthias realmente não precisava. – Eu quero.

Não. Nem pensar.

Principalmente não depois de Mels, ele pensou.

Dê se inclinou e seus peitos ameaçaram saltar para fora do vestido.

– Não consigo parar de pensar em você.

Ótimo. Que maravilha. Que merda perfeita.

No tenso silêncio que se seguiu, Matthias olhou brevemente para a janela. Já tinha escapado por ali uma vez.

Se as coisas continuassem constrangedoras, poderia tentar de novo.

Mels colocou o telefone na base e se esticou na cadeira do escritório. Quando ouviu o chiado de sempre, fez uma nova musiquinha com o couro, balançando para frente e para trás.

Por alguma razão, seus olhos ficaram encarando a caneca de café que pertencera àquela repórter que trabalhava em seu cubículo.

Quando o celular tocou, Mels pulou e o agarrou. Checou rapidamente quem estava ligando e praguejou – não por causa de quem era, mas por causa de quem não era.

Talvez Matthias estivesse tomando banho.

As pessoas tomam banho pela manhã, não é?

Mas, tipo, por meia hora? Ela estava ligando de cinco em cinco minutos!

– Alô?

– Oi, Carmichael – era Monty, o Boca. Ela sabia por causa do jeito como ele falava. – Sou eu.

Bom, pelo menos ela também queria que ele ligasse.

– Bom dia.

– Eu tenho algo pra contar – sua voz ficou mais baixa, como se fosse um agente secreto falando. – É uma coisa explosiva.

Mels ajeitou-se na cadeira, mas não ficou com muita expectativa. Com sua sorte, “explosivo” devia ser apenas um grande exagero da parte dele.

– É mesmo?

– Alguém adulterou o corpo.

– Como é?

– Como eu disse, fui o primeiro na cena do crime e tirei algumas fotos. Você sabe, como parte do trabalho – ela ouviu algo se mexendo, e então uma conversa aos fundos, como se ele estivesse falando com alguém enquanto cobria o fone. – Desculpa. Estou na delegacia. Vou sair daqui e depois ligo de novo.

Ele desligou antes que Mels pudesse dizer alguma coisa, e ela o visualizou evitando seus colegas e correndo para o estacionamento como se fosse um jogador de futebol.


De fato, quando ligou de volta, ele estava sem fôlego.

– Está me ouvindo?

– Sim, estou.

– Então, minhas fotos do corpo mostram algo que não aparece nas fotos oficiais.

Essa era a deixa para ela mostrar surpresa, e neste caso nem precisava fingir.

– Qual é a diferença?

– Venha me encontrar e eu te mostro.

– Quando e onde?

Depois de desligar, Mels checou seu relógio e ligou para Matthias novamente. Ninguém respondeu.

– Ei, Tony – ela disse, esticando-se no corredor entre os cubículos. – Posso emprestar seu...

O cara jogou a chave sem nem mesmo parar de falar ao telefone. Quando ela mandou um beijo, ele agarrou o ar e beijou de volta.

Saindo apressada da redação, Mels entrou no carro de Tony e dirigiu para o centro da cidade, usando um caminho que... olha só, passava pelo hotel Marriott.

E digamos que ela estava uma meia hora adiantada de seu encontro com o Boca.

Por pura sorte, encontrou uma vaga apertada bem em frente à entrada do saguão. Precisou de duas tentativas para colocar o carro no lugar – sua habilidade para fazer balizas já não era a mesma desde que se mudara para Caldwell.

Além disso, a culpa que sentia por perseguir Matthias também não estava ajudando.

Enquanto entrava no saguão, pensou que alguém da segurança iria barrá-la a qualquer momento, mas ninguém prestou muita atenção nela – o que a fez pensar quantas outras pessoas entravam e saíam despercebidas dali.

No elevador, subiu até o sexto andar junto com um homem de negócios cujo terno antiquado e olhos vermelhos sugeriam que acabara de chegar de um longo voo noturno. Talvez até tivesse vindo batendo as próprias asas.

Ao chegar no andar, virou à esquerda e andou pelo corredor acarpetado. Bandejas do serviço de quarto estavam ao lado das portas, como traiçoeiros tapetes de boas-vindas com seus pratos sujos, canecas vazias e guardanapos manchados. Ao final do corredor, um carrinho da camareira estava estacionado em frente a uma porta aberta, que vazava luz iluminando pacotes de papel higiênico, toalhas dobradas e várias latas de spray.

A porta de Matthias ainda tinha o sinal de “não perturbe” pendurado, e Mels entendeu que aquilo significava que ele ainda não fizera o check-out. Colando a orelha na porta, rezou para ele não escolher aquele momento para sair.

Não ouviu água correndo. Nem som de televisão. Nenhuma voz profunda ao telefone.

Ela bateu na porta. Depois bateu um pouco mais forte.

– Matthias – ela disse. – Sou eu. Abra a porta.

Enquanto esperava por uma resposta que não veio, Mels olhou para a camareira que saíra com um saco de lixo na mão. Por um instante, considerou mentir dizendo que tinha esquecido a chave do quarto, mas, em um mundo pós-onze de setembro, sentiu que isso não iria funcionar – e poderia acabar sendo expulsa do hotel.

Bom, isso dizia muito sobre sua bússola moral: o problema nem era a invasão de privacidade, mas sim o medo de ser descoberta.

Com desgosto de si mesma e brava com Matthias, Mels voltou para o elevador. Quando chegou no térreo, sua intenção era marchar até o carro de Tony, dirigir e chegar realmente cedo em seu encontro com Monty e sua boca grande.

Em vez disso, ficou perambulando casualmente no saguão do hotel, olhando as vitrines da loja de conveniência, passando pelo spa...

Porque, claro, ele estaria comprando toalhas e recebendo massagens com duas rodelas de chuchu nos olhos. Óbvio.

Quando chegou ao restaurante que estava aberto, Mels estava quase abandonando a busca, mas então deu uma última olhada lá dentro...

Do outro lado das mesas de jantar, sentado ao lado de uma janela, Matthias estava comendo junto com uma morena que usava um vestido verde-limão.


Quem era ela...?

Era aquela enfermeira? Do hospital?

– Gostaria de mesa pra um? – disse o recepcionista do restaurante.

Claro que não – a menos que a mesa tivesse um saco para vômito.

– Não, obrigada.

A morena começou a rir, jogando a cabeça para trás e deixando o cabelo voar para todo lado. Ela era tão perfeitamente bonita, como se fosse uma fotografia retocada em todos os lugares certos.

Era difícil dizer em que Matthias, sentado à sua frente, estava pensando, e em um momento absurdo de possessividade Mels ficou contente por ele estar usando os óculos escuros dela. Como se aquilo fosse um jeito de demarcar seu território.

– Então veio para se encontrar com alguém? – disse o recepcionista.

– Não – ela respondeu. – Acho que ele está ocupado.


CAPÍTULO 23

A risada de Dê era... bem, para falar a verdade, era divina. Ao ponto de até fritar um pouco o cérebro de Matthias: ele nem conseguia lembrar o que ela dissera de tão engraçado.

– Então, como está sua memória? – ela perguntou.

– Falhando.

– Ela vai voltar. Faz o quê, uns dois dias desde o acidente? – ela se ajeitou quando chegou seu prato com ovos mexidos, salsicha, torrada e batata assada. – É só dar um pouco de tempo.

O pão com manteiga que chegou para ele parecia anêmico em comparação com o prato dela.

– Tem certeza de que é só isso que você quer? – ela gesticulou com o garfo. – Você precisa ganhar peso. E eu acredito que um bom café da manhã é a melhor maneira de começar o dia.

– É bom estar com uma mulher que não é enjoada com comida.

– Pois é, eu sou assim, como de tudo – ela fez um sinal chamando o garçom novamente. – Ele vai querer um prato igual ao meu, obrigada.

Parecia falta de educação dizer que ele explodiria se comesse tudo aquilo, então apenas colocou de lado o pão com manteiga. Ela provavelmente estava certa. Matthias se sentia sem energia e desconectado: o sanduíche que comera com Mels já havia sido digerido faz tempo, graças àquele ninja cretino que apareceu do nada atirando.

– Não espere por mim – ele disse.

– Eu não ia esperar.

Matthias sorriu friamente e passou um tempo olhando ao redor no salão do restaurante. A maioria das pessoas era exatamente o que se esperava encontrar em um hotel daquele tipo... exceto por um sujeito no canto que parecia seriamente fora de lugar: estava usando um terno mais bem cortado do que qualquer outro ali, e parecia fora de moda até para quem não entende dessas coisas.

Caramba, aquela roupa parecia ser própria para uma festa dos anos 20 – talvez tivesse até sido criada nessa época...

Como se percebesse que estava sendo observado, o homem levantou os olhos, com uma aparência aristocrática.

Matthias voltou a se concentrar em sua companhia. Dê cortava a comida com movimentos precisos do garfo, cujas pontas penetravam com facilidade nos ovos mexidos e na batata.

– Às vezes, não lembrar pode ser uma coisa boa – ela disse.

Pois é, ele pensou, sentia que isso era particularmente verdade em se tratando de sua vida. Deus, se aquela história que Jim contou fosse verdade...

– E eu não tive intenção de ser evasiva quanto ao meu pai – ela continuou. – É só que... eu não gosto de pensar nele – baixou o garfo no prato e ficou observando a janela. – Eu faria qualquer coisa para esquecer meu pai. Ele era... um homem violento... malvado e violento.

Com um movimento rápido, o olhar dela voltou a se fixar nos olhos dele.

– Sabe do que estou falando? Matthias...

De repente, surgiu outra daquelas dores de cabeça, invadindo seus pensamentos e acumulando em suas têmporas, como duas pontadas de dor em cada lado da cabeça.

Ele viu, vagamente, que os perfeitos lábios vermelhos de Dê se moviam, mas não ouvia as palavras: era como se tivesse saído do corpo... e então, o próprio restaurante começou a recuar, como se as paredes estivessem sendo puxadas para trás e desaparecendo ao longe, até que repentinamente Matthias já não estava mais no Marriott, mas em algum outro lugar.

Estava no segundo andar de uma casa de fazenda forrada por tábuas de madeira no chão, paredes e teto. A escada à sua frente era íngreme, e o corrimão feito de pinho já estava escurecido pelas inúmeras mãos que o usaram como apoio.

O ar estava parado e abafado, embora não fizesse calor.

Matthias olhou para trás e encontrou um quarto que reconhecia como seu. As duas camas tinham cobertores diferentes e nenhum travesseiro... a escrivaninha tinha arranhões e os puxadores estavam caindo... não havia tapete. Mas, na pequena mesa perto de onde dormia, havia um rádio novo em folha que parecia completamente fora de lugar, com detalhes em imitação de madeira e um botão prateado.

Olhando para baixo, notou que vestia calças rasgadas com bainhas enroladas que deixavam os pés expostos; a mesma coisa acontecia com as mãos, que pareciam gigantes comparadas com os magros antebraços – suas extremidades estavam grandes demais em relação ao resto do corpo.

Lembrou-se desse estágio em sua vida e entendeu que era um jovem. Catorze ou quinze anos...

Um som o fez virar a cabeça.

Um homem estava subindo a escada. Seu sobretudo estava sujo; o cabelo estava liso de suor, como se um chapéu ou boné o tivesse coberto por muito tempo; as botas soavam alto.

Um homem grande. Um homem alto.

Um homem mau.

Seu pai.

De uma só vez, tudo mudou: sua consciência separou-se da carne de tal maneira que não era mais capaz de controlar o corpo, a direção de sua vida parecia ter sido tomada por outra pessoa.

Tudo o que podia fazer era olhar através dos próprios olhos quando seu pai subiu o último degrau e parou.

Aquele rosto tinha ficado exposto ao clima por tanto tempo que agora parecia revestido de couro bovino, e havia um dente faltando quando ele sorriu como um assassino em série.

Seu pai ia morrer, pensou Matthias. Aqui e agora.

Por mais improvável que fosse, dada a diferença de tamanho entre eles, o homem iria ao chão e estaria morto em questão de minutos...

De repente, Matthias sentiu a si mesmo começar a falar, seus lábios formando sons que ele não registrava, mas que tinham impacto em seu pai.

A expressão mudou, o sorriso sumiu, o dente faltando desapareceu quando a boca do pai se fechou. A raiva fez aqueles olhos azuis elétricos ficarem estreitos, mas isso não durou muito. Uma onda de choque se seguiu. Como se ele estivesse muito confiante sobre algo, mas agora não tivesse mais tanta certeza.

E, enquanto isso, Matthias continuava a falar devagar e com fimeza.

Foi ali que tudo começou, pensou consigo mesmo: aquele homem, aquele homem do mal com quem vivera sozinho por tempo demais, aquele cretino nojento que o “criou”. Mas agora era hora do acerto de contas, e sua versão mais jovem não sentia nada enquanto falava aquelas palavras, sabendo muito bem que estava finalmente enfrentando o monstro.

Seu pai agarrou a frente do próprio sobretudo, bem acima do coração, apertando o tecido com as unhas cheias de sujeira.

E Matthias continuou a falar.

Até o outro cair ao chão. Seu pai caiu de joelhos, a palma da mão livre escorregando do corrimão, a boca abrindo-se tanto que os outros dentes que faltavam no fundo também ficaram expostos.

Ele nunca achou que seria pego. Foi isso que o matou.

Bom... tecnicamente, a causa da morte foi um infarto no miocárdio. Mas a causa verdadeira foi o fato de que o segredo sujo que compartilhavam fora revelado.

A morte levou todo o tempo que precisava.

Enquanto seu pai agonizava deitado de costas, as mãos agora apertando a axila esquerda, que doía como o diabo, Matthias ficou parado onde estava e assistiu o processo se desenrolar. Aparentemente, respirar estava cada vez mais difícil, o peito subia e descia sem muito efeito; debaixo do bronzeado, a cor de seu pai estava sumindo.

Quando a vista voltou a mostrar o quarto, Matthias entendeu que ele se virara e estava andando em direção ao rádio, que ligou enquanto se sentava. Ainda podia enxergar seu pai lutando como uma mosca presa em um parapeito, os membros se contraindo de um lado para outro, a cabeça arqueando para trás como se pensasse que um ângulo diferente pudesse ajudar com a respiração.


Mas não ajudaria. Mesmo um garoto de quinze anos da fazenda sabia que, se o coração não estivesse bombeando, cérebro e órgãos vitais falhariam, não importava quanto ar ele tentasse puxar.

Lá no campo, o rádio pegava apenas cinco estações, e três eram religiosas. As outras duas tocavam música country e pop, então ficou virando o botão, indo e vindo entre elas. De tempos em tempos, apenas porque sabia que seu pai logo iria encontrar o Criador, ele deixava um sermão ecoar pela casa.

Matthias não sentiu nada além de frustração por não conseguir encontrar um rock pesado para tocar. Achava que um Van Halen combinava mais com a demorada morte de seu pai do que um cretino como Conway Twitty ou Phil Collins.

Fora isso, ele estava sereno como um lago, forte como concreto.

Caramba, ele nem se importava que aquilo significasse o fim dos abusos. Queria apenas saber se era capaz de se livrar do velho, como se a empreitada fosse um projeto da escola: ele planejou, colocou as peças no lugar e então acordou naquela manhã e decidiu empurrar a primeira peça do dominó.

E conseguiu, graças a sua professora muito religiosa, maleável e de bom coração.

No corredor da escola, ele chorou na frente dela enquanto contava sobre o inferno no qual vivia, mas aquele show de lágrimas era apenas para lhe dar uma motivação extra. Na verdade, a grande revelação não causou mais emoção nele do que uma troca de roupa: enquanto manipulava a professora com a verdade, em seu interior ele estava frio como gelo, sem sentir nem satisfação pela primeira parte do plano realizada, nem excitação por aquilo estar finalmente acontecendo.

O resto aconteceu rápido, e essa velocidade foi a única coisa que não esperava: ele foi mandado imediatamente para a enfermaria, depois a polícia chegou, papéis foram preenchidos e enviados, e lá se foi Matthias para as mãos do sistema.

As autoridades enviaram apenas mulheres para tratar dele, como se isso fosse deixar as coisas mais fáceis. Principalmente durante os exames físicos – que eles achavam que seriam realmente perturbadores para Matthias.

E quem era ele para não fazer o que eles queriam?

Entretanto, não esperava mesmo ser mandado para um lar adotivo em menos de duas horas.

Acontece que a única coisa que realmente queria era aquela parte, o acerto final com seu pai deitado ali no chão – e foi preciso escapar e roubar um carro para chegar antes que a polícia levasse seu pai para a prisão, quando o homem voltasse do trabalho nos campos de milho. Tudo teria sido em vão se ele estragasse essa parte.

Mas funcionou perfeitamente.

Nos últimos momentos da vida miserável de seu pai, Matthias virou o botão do rádio para uma das estações religiosas – e parou por um momento. O sermão era sobre o Inferno.

Parecia apropriado.

Ele assistiu quando o último suspiro surgiu e a calmaria prevaleceu. Era tão estranho, um ser humano repentinamente passando para o outro lado, um ser vivo tornando-se indistinguível de uma torradeira, um tapete, ou até mesmo um rádio relógio.

Matthias esperou mais um pouco até aquele rosto tornar-se completamente cinza. Então levantou, tirou o rádio da tomada e colocou-o debaixo do braço.

Os olhos de seu pai estavam abertos e encaravam o teto, da mesma maneira que ele próprio fizera por muitas noites durante o passar dos anos.

Matthias não mostrou o dedo do meio, não cuspiu nem chutou o corpo. Apenas passou por ele e desceu as escadas. Seu último pensamento enquanto deixava a casa era que aquilo tinha sido um interessante exercício mental...

E queria saber se conseguiria fazer de novo.

– Matthias?

Deixando escapar um grito, ele pulou em sua cadeira. O restaurante ressurgiu ao seu redor, as paredes se reergueram, o som ambiente de pessoas comendo e conversando voltou a ser registrado por seu cérebro.

Quando as pessoas olharam para ele, Dê se inclinou e disse:

– Você tá bem?

Seu belo rosto mostrava uma perfeita expressão de compaixão, os lábios entreabertos como se a aflição dele dificultasse sua respiração.

O afastamento que o seu eu jovem sentira voltou a ocupar um lugar em seu peito, como se a memória tivesse calibrado seu motor interno, reajustando-o, como um carro que precisa de alinhamento. Encarou a mulher com distanciamento, uma fria objetividade que os separava mesmo estando a poucos metros um do outro.

Emoções podiam ser facilmente fingidas. Ele sabia muito bem disso.

O sorriso que mostrou a ela parecia diferente em seu rosto – mas ao mesmo tempo era muito familiar.

– Estou muito bem.

O garçom se aproximou naquele momento trazendo o grande café da manhã e, quando o colocou na mesa, Matthias podia jurar que viu Dê recostar-se e sorrir de satisfação.


De pé ao lado do recepcionista do restaurante, Mels estava cansada de bancar a perseguidora. O fato de ela ter vindo até o hotel já era razão suficiente para se sentir mal, mas agora que o encontrara com aquela enfermeira... Tinha duas razões para se sentir mal: não respeitava a si mesma, e aquela outra mulher era tão bonita quanto a Sofia Vergara, só um tolo não veria isso.

Quando um prato do tamanho de um ônibus foi colocado na frente de Matthias, ele olhou para sua companheira com um sorriso maroto e...

A cabeça dele virou sem motivo, bem quando Mels estava prestes a dar meia-volta.

Seus olhos se encontraram e instantaneamente aquela expressão cínica dele se transformou em algo que Mels não conseguia interpretar – mas ela disse a si mesma que não se importava.

Tanto faz. Aquilo não era da sua conta.

E ela não faria nenhuma cena. Em vez disso, se dirigiu calmamente para a porta giratória do saguão...

– Mels! – ouviu um grito vindo de trás.

Não dava para fingir que ele não estava vindo atrás dela, e, além disso, ela não tinha razão para ignorá-lo.

– Eu não queria interromper seu café da manhã – ela disse quando parou e deixou ele se aproximar. – E estou a caminho de uma reunião. Quando você não atendeu o telefone, pensei em parar um pouco no hotel.

– Mels...

– Aquela história que você me pediu pra checar é verdadeira. A única diferença é que o nome é escrito com um “e”. O certo é Childe. O filho morreu de overdose, e o pai estava presente quando aconteceu. A filha ainda está viva... é uma advogada em Boston. O pai trabalha para o governo, em vários cargos. Pelo menos, é isso que consta nos jornais. Não sei de informações que não sejam públicas – enquanto ele apenas a encarou, Mels levantou o queixo. – Bom, o que esperava que eu encontrasse?

Ele esfregou o rosto como se estivesse com dor de cabeça.

– Não sei. Eu... quando o filho morreu?

– Não faz muito tempo. Dois anos e meio, acho...

– Seu café da manhã está esfriando.

Mels olhou para a enfermeira. A mulher olhava apenas para Matthias enquanto se aproximava, como se ele não estivesse falando com mais ninguém.

Certo, ela parecia fantástica com aquele vestido. Seu corpo transformava algo essencialmente recatado em um grande show sexy...

Repentinamente, Mels lembrou daquele episódio de Seinfeld com a Terri Hatcher... é, aqueles seios eram provavelmente reais e espetaculares. Já Mels tinha de usar sutiãs com armação para levantar um pouco os seus...

– Eu estava mesmo indo embora – Mels disse. – Ou vou me atrasar para minha reunião.

A enfermeira lançou um olhar dispensando-a, com aqueles olhos castanhos dizendo não apenas “vai logo embora”, mas também “dane-se você”.

– Vem, vamos voltar pra mesa.


Matthias apenas continuou encarando Mels, ao ponto de ela pensar que ele tentava dizer algo. Mas ele tinha ovos frios e pernas quentes para se preocupar, então seu prato já estava cheio sem Mels para atrapalhar.

Ela acenou para os dois e saiu pela porta em direção à rua.

O sol brilhava enquanto Mels andava até o carro de Tony. O interior do sedã estava quente. Ajeitando-se no banco do motorista, ela deu um sermão em si mesma antes de girar a chave – mas aquilo não ajudou em nada.

Nem mesmo a parte sobre como um homem misterioso e não disponível tinha muito mais chances de, segundo seu instinto de repórter, parecer muito mais atraente do que um cara normal qualquer – mas ser atraente não fazia dele uma boa opção.

Talvez fosse por isso que ela ainda estava solteira. Não era por falta de convites para sair. Provavelmente tinha mais a ver com o fato de que os homens que a convidavam para sair tinham empregos fixos, aparência boa o suficiente... e memórias.

Nada de mistério, nada de emoção.

Ela tinha de gostar de um cara com um passado nebuloso e uma companheira de café da manhã que tinha corpo de Barbie e cabelo de comercial de TV.

Saudável, muito saudável.

Mels deu a partida no carro e entrou no trânsito: seu encontro com Monty, o Boca, estava marcado em um parque a sete quarteirões dali.

Pelo menos a sincronia de tudo estava a seu favor: se tivesse de voltar à redação e encarar a tela do computador fingindo que trabalha, ela acabaria louca.

Malditos homens, pensou consigo mesma ao encontrar uma vaga, e desta vez fez uma baliza melhor.

Seguiu as instruções que recebeu – toda aquela história com Monty parecia saída de filmes de espionagem, com ela o encontrando em um banco debaixo de um bordo específico. Só precisava de um jornal para se esconder e uma senha secreta para entrar definitivamente no mundo de James Bond.

Monty chegou dez minutos depois, vestindo roupas civis que o faziam parecer um cafajeste qualquer. Ele estava de bom humor: essa coisa de espionagem claramente produzia o drama que ele necessitava.

– Ande atrás de mim – ele disse, com a voz baixa, ao passar por ela.

Ah, isso era ridículo!

Mels levantou quando ele estava a uns três metros. Ela caminhou mantendo o ritmo de Monty, se perguntando por que diabos estava se submetendo àquilo.

Depois de andarem um pouco, chegaram ao leito do rio, ao lado de um grande embarcadouro com estilo vitoriano onde as pessoas podiam ancorar suas canoas e barcos nos meses mais quentes.

Quando ela entrou, seus olhos levaram um segundo para se acostumar à escuridão: as janelas em forma de diamante não deixavam entrar muita luz do sol, as prateleiras cheias de remos, as pilhas de boias e as velas enroladas faziam o lugar parecer completamente lotado. E também era barulhento, em certo sentido: por toda parte, as ondas do rio batiam nas paredes do lugar e o som ecoava pelos espaços vazios debaixo do grande teto...

De repente, um bando de andorinhas voou de seu ninho, passando em rasante sobre eles antes de escapar pela janela, ganhando o céu.

Quando seu coração voltou a bater no ritmo normal, Mels disse:

– Então, o que você tem pra mim?

Monty lhe entregou um grande envelope.

– Imprimi isto em casa hoje de manhã.

Mels retirou o clipe de metal e abriu o envelope.

– Quem mais sabe sobre isto?

– No momento, apenas eu e você.

Uma a uma, ela retirou três fotos coloridas, todas da vítima: a primeira era de corpo inteiro com a camisa no lugar, a segunda mais aproximada e com a camisa levantada, a terceira em close mostrando o que parecia ser uma série de símbolos.

Cecília Barten.

Esse foi o nome que surgiu na mente de Mels enquanto examinava as imagens: Sissy fora outra garota, mais jovem e muito, muito longe de uma vida na qual ser assassinada fosse um dos ossos do ofício. Seu corpo fora encontrado recentemente em uma pedreira, com o mesmo tipo de símbolos gravados no abdômen. Sua garganta também fora cortada. E ela era loira.

– Você viu as fotos da cena do crime, não é? – perguntou Monty.

– Sim – Mels voltou a olhar a foto dos símbolos. – A pele estava vermelha, mas não havia nada disso. Então, me conte, de modo extraoficial se você preferir: como isso aconteceu? Você disse que foi um dos primeiros a chegar...

– Fui o primeiro a chegar. Fui com o gerente até o quarto e prontamente comecei os procedimentos de rotina. Isolei a porta e chamei reforços.

– Onde estava sua parceira?

– Ela estava doente, então eu saí sozinho. Corte de gastos, sabe como é. Nada de substitutos. Tanto faz, enquanto eu esperava, tirei essas fotos.

Ela odiava gente que falava tanto faz.

– Você mexeu na camisa.

– Eu estava examinando o corpo e a cena, seguindo os procedimentos normais.

Pervertido.

– Mas por que tirou as fotos se a fotógrafa oficial estava pra chegar?

– A verdadeira pergunta é: o que aconteceu com os símbolos?

Caramba, aquilo não estava cheirando bem, pensou Mels.

Olhando em seu rosto, ela perguntou:

– Então, o que posso fazer com isto?

– No momento, nada. Não quero ser acusado de adulterar o corpo.

Mas você fez exatamente isso, ela pensou consigo mesma.

– Então por que está me dando as fotos?

– Alguém tem que saber. Talvez eu fale com De la Cruz... ou talvez você possa publicar no jornal e dizer que as fotos são de uma fonte anônima. O negócio é que o horário da morte foi dado como perto das cinco ou seis horas, então o assassinato aconteceu logo depois que o sei-lá-quem pagou e entrou no quarto. Quando eu cheguei eram quase nove e quinze. Isso deixa quatro horas e meia para alguém ter entrado e saído de lá.

Mas o que ele não percebia, talvez de propósito, era o fato de que aqueles símbolos tinham desaparecido entre o momento em que ele chegara à cena do crime e o momento das fotos oficiais. O corpo não podia ter ficado muito tempo sozinho, e cicatrizes não desaparecem simplesmente.

Aquilo realmente não estava cheirando bem.

– Certo, só me diga o que posso publicar sem te trazer problemas – ela disse. – Quando você quiser.

Ele assentiu como se tivessem fechado um acordo e começou a andar.

– Espera um pouco, Monty, tenho uma pergunta rápida sobre outro assunto.

Ele parou na porta.

– O que foi?

– Sabe aquele homem que foi encontrado morto no Marriott?

– Ah, aquele cadáver na entrada de serviço? Que depois desapareceu do necrotério?

Mels parou de respirar.

– Como é?

– Você não ficou sabendo? – ele se aproximou novamente. – O corpo sumiu. Hoje de manhã.

Impossível.

– Foi roubado? Do necrotério do Hospital St. Francis?

– Aparentemente.

– Como uma coisa dessas pode acontecer? – quando Monty deu de ombros, ela balançou a cabeça, pois sabia que, seja lá o que acontecera com o corpo, boa coisa não era. – Bom, espero que encontrem. Escuta, você por acaso sabe que tipo de balas eles encontraram no colete que a vítima estava vestindo?

– Calibre quarenta.

– E ouvi falar que tinha uma tatuagem no corpo?

– Não sei. Mas posso descobrir.

– Eu agradeço.

Ele deu uma piscadela e um sorriso maroto.

– Sem problema, Carmichael.

Quando ficou sozinha, Mels observou as fotos novamente, uma a uma... e deduziu que Caldwell provavelmente tinha outro assassino serial em suas ruas.

Não era exatamente o tipo de segurança do trabalho que ela e os policiais esperavam.

E começou a suspeitar que talvez fosse alguém da própria força policial.


CAPÍTULO 24

Quando Devina dobrou seu guardanapo ao lado do prato vazio do café da manhã, ela sorriu para sua vítima, que estava sentada do outro lado da mesa. De uma forma geral, as coisas até que iam bem. A memória de Matthias estava voltando, e a lembrança que ela destravara sobre o pai dele trouxera de volta aos seus olhos o tipo de brilho que ela gostava de ver.

Seu velho pai fora essencial, é claro: fora o início da maldade, uma prova definitiva de que a infecção podia acontecer mesmo de humano para humano, e não apenas de demônio para humano.

Mas ela precisava ter cuidado ao mexer nesse vespeiro.

– Eu pago a conta – disse Matthias, levantando o braço para chamar o garçom.

– Você é um perfeito cavalheiro – ela colocou a mão dentro da bolsa e começou a contar seus batons da esquerda para a direita. – Estou feliz por termos encontrado um ao outro.

... três, quatro, cinco...

– Foi um golpe de sorte – ele olhou para a janela, como se estivesse fazendo planos. – Quais seriam as chances disso acontecer?

... seis, sete, oito...

– O que você vai fazer hoje? – ela perguntou, seu coração batendo mais forte enquanto o fim da contagem se aproximava.

... nove, dez, onze...

Ele respondeu, mas ela não prestou atenção, pois estava quase acabando de contar.

Doze.

Treze.

Deu um suspiro, pegou o último tubo e tirou a tampa. Encarando Matthias, ela o fez olhar para sua boca enquanto expunha a ponta vermelha do batom e passava lentamente pelos lábios.

Ele fez exatamente o que ela queria, mas a resposta não foi a que desejava: a reação dele foi mais clínica do que sexual. Como se ela fosse um instrumento que Matthias estava considerando brevemente se usaria ou não.

Devina franziu a testa. Quando ele disparou atrás daquela repórter, não havia nada dessa frieza distante. Mesmo vestido ele parecia nu, focado naquela mulher como se ela estivesse dentro dele, em vez de ser algo separado e distinto.

O demônio apertou e soltou os lábios, sentindo a boca voltar a mostrar a maciez de sempre – e, para ter certeza que ele entendera a intenção, ela inseriu em sua mente um pensamento sobre aquela boca envolvendo seu pau, chupando, sugando e engolindo.

Não funcionou.

Ele apenas olhou para o garçom, pegou a conta e escreveu o número de seu quarto.

Uma forte lufada de vento estremeceu as janelas e seu som fez todos no restaurante levantarem a cabeça, incluindo Matthias. Sentada em frente a ele, Devina fervilhava de raiva. Seu ódio se manifestou e tocou os elementos lá fora, atraindo uma ventania do Sul.

Tudo o que ela conseguia pensar era em como Jim a enganara – e agora esse cretino aleijado, que voltaria para o Inferno assim que a rodada terminasse, também a estava esnobando.

Cretinos. Os dois eram grandes cretinos.

Ela se levantou e pendurou a bolsa no ombro.

– Até quando você vai ficar hospedado aqui?

– Não por muito tempo.

Era verdade. As coisas estavam acontecendo com muita velocidade, mesmo que ele não estivesse ciente, e esta rodada terminaria rapidamente.

Talvez Devina devesse levá-lo para o quarto e lembrá-lo de que era um homem e não um robô – e aquela “dificuldade” não seria problema desde que estivesse com ela.

Boa sorte com aquela repórter nesse quesito, pensou ela.

– Vou sair agora – ele disse, como se a estivesse dispensando.

Devina estreitou os olhos e então lembrou que estava representando um papel.

– Bom, tenho certeza de que vou te encontrar por aí.

– Parece que sim. Boa sorte com sua mãe.

Quando ele se virou, ela quis transar com ele por outras razões além daquela rodada. Matthias tinha o mesmo tipo de força – e a mesma personalidade elusiva – de Jim.

Ela deveria ter prestado mais atenção nesse homem na época em que o possuía. Felizmente, ele logo voltaria para casa.

Nesse meio tempo, Devina precisava cuidar daquela repórter. Ela não precisava desse tipo de influência no jogo.

E acidentes acontecem a toda hora. O Criador não poderia culpá-la por isso.


Matthias tomou um táxi até a sede do Correio de Caldwell e esperou no estacionamento atrás do edifício. Ele deduziu que Mels tinha emprestado o Toyota para ir até o hotel e, de fato, aquela lata-velha não estava estacionada junto com os outros carros velhos cheios de lixo.

Parecia até que ter um carro caindo aos pedaços fazia parte da profissão de jornalista.

Ficou ao lado da porta dos fundos, encostado na parede e apoiando-se na bengala. No céu, nuvens cobriram o sol e sombras tomaram conta do lugar enquanto a noite se anunciava.

Ele estava sendo observado.

Não pelas pessoas que surgiam e sumiam pela saída... ou pelos fumantes que baforavam por alguns minutos e voltavam para dentro... ou pelas pessoas dirigindo pelo estacionamento lotado à procura de uma vaga.

Havia alguém observando-o constantemente, em posição fixa, à sua direita.

Poderia ser alguém em um daqueles carros alinhados na rua ao lado do estacionamento. A única outra opção era o telhado do edifício do outro lado da rua, já que as paredes não tinham janelas.

Ele precisava conseguir um pouco de munição. Sem balas, a arma calibre quarenta com silenciador que ele pegara “emprestado” de Jim servia apenas para golpear – o que não era exatamente inútil, mas não era a mesma coisa que um projétil mortal de longa distância.

O Toyota que ele esperava apareceu na curva e entrou. Quando o carro parou bruscamente, Matthias soube que Mels o avistara.

Ela estacionou na primeira vaga disponível, saiu do carro e se aproximou com a cabeça erguida e os cabelos balançando ao vento.

– Está queimando as calorias do seu café da manhã com uma boa caminhada? – ela perguntou.

Uma sutil pontada em seu peito surgiu quando ele a olhou nos olhos, e aumentou gradualmente, chegando até a dificultar sua respiração.

– Sinto muito – ele disse com a voz rouca.

– Pelo quê?

Tudo que ele conseguiu fazer foi balançar a cabeça, pois sua voz sumira. Aquela clareza fria e calculada que sentira após ser atingido pelas visões do passado havia sumido. Em seu lugar, havia uma sensação de impotência, como se ele fosse uma fortificação que perdeu a linha de defesa.

– Matthias, você está bem?

O que veio a seguir simplesmente aconteceu: ele se aproximou e colocou as mãos ao redor da cintura dela... e então a abraçou, mergulhando o rosto em seus cabelos soltos e perfumados.

– O que aconteceu? – ela disse suavemente enquanto acariciava as costas dele.

– Eu não... – que droga, ele estava fora de si. – Não posso...

– Está tudo bem...

Eles ficaram abraçados por um tempo enquanto trovões ecoaram, como se o céu não os aprovasse, e relâmpagos rasgaram o ar por baixo da camada de nuvens escuras.

Que diabos ele estava fazendo? A verdade era que Matthias queria ficar ali para sempre: quando abraçava o corpo quente daquela quase estranha, não havia passado nem futuro, apenas o presente, e aquela falta de um horizonte ou paisagem era o abrigo de que ele necessitava no momento.

A chuva começou a cair em grandes gotas, ao ponto de sentirem como se fossem atingidos por pedregulhos.

– Vem pra dentro – ela disse, tomando sua mão e usando um cartão de identificação para entrar no prédio.

Um estranho perfume químico invadiu o nariz dele. Mas não era nenhum produto de limpeza; Matthias estava sentindo o cheiro da tinta nas prensas.

– Aqui – ela disse, virando a maçaneta e empurrando a porta vermelha com o quadril.

A sala de reunião tinha cadeiras desiguais e uma longa mesa. Nada ali combinava, o lugar parecia um verdadeiro Frankenstein de móveis de escritório. Mas havia um bebedouro em um canto, e Mels trouxe um copo de água.

– Beba isto.

Matthias fez o que ela pediu e, enquanto bebia, fez o possível para se recompor.

Mels sentou em cima da mesa deixando as pernas balançarem de lá para cá vagarosamente.

– Converse comigo.

Mas que droga, como poderia contar o que aconteceu? O que é que ele estava fazendo ali, afinal?

Bom, pelo menos sabia a resposta para essa última pergunta. Ele queria ser honesto com uma pessoa. Finalmente. Precisava apenas fazer uma conexão com ela, como se Matthias estivesse em queda livre e Mels fosse uma corda para ser agarrada, e as palavras que ele precisava dizer fossem sua maneira de lutar pela vida.

– Eu matei meu pai.

Os pés dela pararam em meio ao balanço, os ombros ficaram tensos.

– Depois de muitos anos em que ele... – fale. Vamos, fale. Fale, seu idiota! – Ele era um homem violento, e bebia muito. Coisas... aconteceram. Coisas que não deveriam acontecer e eu...

O olhar no rosto dela gradualmente mudou, voltando a mostrar compaixão.

Mas, quando parecia que ela colocaria os pés no chão para abraçá-lo, Matthias levantou as duas mãos.

– Não, eu não posso... não vou conseguir terminar de falar se você me tocar.

– Certo – ela respondeu vagarosamente.

– Nem sei por que estou contando isso.

– Não precisa ter uma razão.

– Sinto que deveria ter.

– Você sabe que pode confiar em mim, não é? Posso ser repórter, mas eu estava falando a verdade quando disse que isso é apenas meu trabalho, e não quem eu sou.

– Sim – ele passou a mão nos cabelos e então tirou os óculos escuros. – Desculpa, mas preciso ter uma visão clara de você.

Ela franziu a testa.

– Não precisa pedir desculpa.

Ele mostrou o Ray-Ban e disse:

– Pensei que preferia que eu usasse os óculos. Você sabe, lá no restaurante... porque assim você não precisava olhar pro meu rosto.

– Não foi por isso que eu disse que você podia ficar com os óculos. Você não é feio pra mim, Matthias. Nem um pouco. E não precisa se esconder.

Por algum motivo, ele sabia que aquilo não iria durar. Sentia que quanto mais coisas ele lembrasse, pior seria a imagem de seu passado – como um quebra-cabeça que você achava que se tornaria uma linda paisagem, mas acaba sendo a horrível figura de Michael Myers, do filme Halloween.

– Eu denunciei ele – Matthias ouviu a si mesmo falar. – Falei com a minha professora, depois fui mandado para a enfermaria da escola, e eu contei tudo a eles, expliquei minhas faltas, os hematomas e... as outras coisas. Eu tinha quinze anos. Aguentei tudo calado até aquele ponto...

– Meu Deus, Matthias...

– ... mas então larguei mão de tudo, e o sistema entrou em ação. Ele teve um ataque do coração na minha frente quando eu contei que agora todo mundo sabia do segredo.

– E é por isso que você pensa que matou ele? Matthias, você não fez nada de errado.

– Sim, eu fiz. Assisti a morte dele. Não telefonei para a emergência, não corri para buscar ajuda, fiquei lá parado assistindo quando ele caiu na minha frente.

– Você era uma vítima de abuso e estava em estado de choque. Não é sua culpa...

– Eu fiz de propósito.

Agora ela franziu a testa novamente.

– Não estou entendendo.

– Eu não me importava com as coisas que ele fez comigo. Aquilo era mais uma chateação do que qualquer outra coisa – ele deu de ombros. – A coisa toda sobre a denúncia foi só um exercício mental pra mim. Entende? Eu conhecia ele muito bem – ele apertou as têmporas. – Eu conhecia a maneira como ele pensava, as coisas que o deixavam forte. Ele gostava de ser mal e ter poder sobre mim. Era um cara não muito esperto que trabalhava o dia todo com animais burros e espigas de milho. Quando ele precisava lidar com adultos do mesmo nível, seu complexo de inferioridade surgia. Ele ameaçava me matar se eu contasse pra alguém, e isso era seu inferno pessoal. Aquele segredo era muito importante pra ele, e não porque abusar de um filho é algo ilegal. Eu sabia que isso o afetaria além de parar com os abusos... e eu queria ver o que aconteceria.

– Espera, deixa eu perguntar uma coisa. Quanto tempo você passou vivendo com ele?

– Minha mãe morreu no parto.

– Então passou a vida inteira.

– Morei em outro lugar por um tempo, mas depois voltei a ficar com ele.

– Quando era pequeno.

– Sim.

– E não te ocorreu que naquela época você era apenas um garoto salvando a si próprio?

– Esse foi o resultado final, mas não era minha motivação. E é isso que me abala tanto.

Mels balançou a cabeça.

– Eu acho que você precisa aprender a se perdoar um pouco.

Ah, inferno, ela nunca entenderia. Matthias podia ver em seus olhos – ela já tinha cristalizado uma opinião sobre ele e nada mudaria aquilo.

– Matthias não é meu nome verdadeiro.

– Então como se chama?

Havia se lembrado. No café da manhã.

Ele a encarou por um longo tempo, observando o rosto, o pescoço, o corpo esguio... e então voltou aos olhos inteligentes.

Não compartilharia aquela informação. Não conseguiria.

E, no silêncio que se seguiu, ele sentiu uma necessidade esmagadora de ficar sozinho com ela novamente, e não em um lugar público. Em seu quarto. Naquela cama de hotel cujos lençóis cheiravam a limão. Ele queria mais um pouco dela antes de partir, como se ela fosse um remédio que o deixava vivo por mais um pouco de tempo.

Porque Matthias entendera que ia morrer logo.

Não era apenas paranoia. Era... inevitável, como se seu passado estivesse escrito em pedra.

– Meu tempo está acabando – ele disse suavemente. – E quero ficar com você antes de ir embora.

– Pra onde você vai?

– Pra longe – ele respondeu após um momento.


CAPÍTULO 25

Mels parou de respirar quando ficou convencida de que Matthias era uma das pessoas desaparecidas de Caldwell, mesmo ele possuindo carteira de motorista e, supostamente, uma casa. Ali na sua frente, olhando-a nos olhos, era como se ele nem estivesse na sala.

Esteve aqui por apenas uma fração de segundo e agora se fora para sempre.

– Por que está indo embora? – ele apenas balançou a cabeça, e ela perguntou: – É por causa disso que você não quer me dizer seu nome verdadeiro?

– Não, é porque não importa. São apenas sílabas. Não sou mais essa pessoa já faz muitos anos, é simplesmente irrelevante.

– Não tenho tanta certeza disso – ele deu de ombros, e ela teve de pressioná-lo. – E você não precisa ir pra lugar nenhum.

Ela não acreditava que as pessoas podiam saber do futuro. Se ele partisse, seria por vontade própria – e a decisão podia ser desfeita a qualquer momento. Por ele.

Exceto... o problema com aquele argumento era que Mels também sentia que os dois não teriam um final feliz. Eles haviam se encontrado por causa de um acidente. Suas vidas colidiram, e assim como o impacto, sua relação também não duraria muito.

Apenas os ferimentos seriam eternos.

Ela tinha uma terrível sensação de que nunca esqueceria os momentos que passara com aquele homem.

– Quanto tempo nós temos? – ela exigiu saber.

– Eu não sei.

Levantando da mesa, ela se aproximou, o envolveu com os braços e encostou o rosto no peito dele, ouvindo as batidas de seu coração. Quando Matthias a abraçou de volta, ela ficou imaginando por que sentia aquela conexão tão forte com ele. Todos os outros homens, os normais, nunca conseguiram realmente mexer com ela.

Mas este homem...

Matthias se inclinou para trás e tocou o rosto dela.

– Posso beijar aqui?

– Você quer dizer aqui no meu rosto ou aqui na sala de reunião?

– Bom, você trabalha aqui, então...

Ela pressionou os lábios contra os dele, silenciando-o. Quem se importava com o local onde estavam? Havia um monte de namoros entre funcionários, e pessoas traziam esposas, maridos e namorados pro trabalho a toda hora.

Além disso, se o chefe podia assediá-la sexualmente debaixo daquele teto, então Mels podia beijar ali o homem que realmente desejava.

Fechando os olhos, ela inclinou a cabeça e o beijou novamente, desta vez colando os lábios por mais tempo. E quando ele a beijou de volta, Mels desejou capturar aquele momento e torná-lo físico de alguma forma, para que pudesse segurá-lo com as mãos ou guardá-lo em um local seguro, como faria com um livro ou um vaso.

Mas a vida não é assim. As pessoas não podem guardar para sempre os momentos que as definem ou as emocionam – não é possível tocá-los com a palma da mão ou a ponta dos dedos. As maquinações do destino são tão elusivas quanto a ferramenta de um escultor, que surge de repente modelando contornos e depois parte para o próximo pedaço de argila.

Com um movimento decidido, Matthias subiu a palma da mão pelas costas dela até chegar em sua nuca, tomando controle. E quando sua língua lambeu entre os lábios de Mels, ela se abriu para ele, desejando que estivessem em um local privado quando o calor começou a se intensificar dentro dela, subindo por seu corpo cada vez mais rápido e quente...

Mels franziu a testa ao perceber que sua mão estava tocando algo duro nas costas de Matthias, na altura da cintura.

Não era parte de um suporte.

Não era nada médico.

Passando a mão por baixo da camisa ela encontrou... o cabo de uma pistola.

Mels puxou a arma para fora do coldre e se afastou.

Era uma pistola calibre quarenta, e ela rapidamente checou a câmara. Vazia. O mesmo com o carregador.

– Você não é a única que tem permissão de porte de armas – ele disse vagamente.

Ela entregou a automática de volta.

– Pelo visto não. Posso perguntar onde conseguiu isso?

– Eu comprei.

– E esqueceu a munição?

– Não veio junto no pacote.

– Sabe de uma coisa? A pessoa que morreu no seu hotel ontem à noite levou tiros de uma arma desse calibre.

– E você acha que fui eu porque estou sem munição.

Mels deu de ombros.

– Você me disse pra não me envolver porque eu poderia morrer. Você aparece com uma arma depois de alguém ser assassinado no Marriott. Não é preciso ser nenhum Einstein pra ver uma ligação aqui.

– Eu não matei aquele homem.

– Como sabe que era um homem?

– Apareceu em todos os jornais.

Mels cruzou os braços acima do peito e encarou o chão, pensando que nada de bom poderia sair daquela conversa, considerando a direção que estava tomando.

– Acho que é melhor eu ir embora.

– Pois é – ela disse.

Que grande decepção. De um beijo para uma discussão em menos de cinco segundos.

– Sinto muito – ele murmurou quando já estava na porta.

– Por que está pedindo desculpa?

– Não gosto de sair te deixando assim.

Bom, ela também não gostava nem um pouco.

Quando a porta se fechou, Mels se perguntou se o veria de novo – e deu mais um sermão em si mesma sobre manter a cabeça erguida e não deixar que sua libido a jogasse em situações perigosas.

Aquilo não era algo que seu pai aprovaria. Não era algo que mulheres inteligentes faziam.

Mas que droga...

Depois de chutar o próprio traseiro por quinze minutos, ela voltou para a redação, encheu uma xícara de café forte sem açúcar e retornou para sua mesa.

– Diga que você não bateu meu carro também.

Ela deu um sobressalto e olhou para Tony.

– O quê...? Ah, não. Aqui estão as chaves.

– Você parece ter saído de outro acidente.

Vai entender.

Ajeitando-se em sua cadeira, ela encarou a tela do computador.

– Você está bem? – perguntou Tony. – Precisa de um chocolate?

Mels riu.

– Acho que vou ficar no café mesmo, mas obrigada.

– Então, o que é que está te incomodando?

– Estou apenas pensando como é possível, fisiologicamente, que cicatrizes num cadáver possam sumir sozinhas.

Certo, não era a pergunta que realmente estava em sua mente, mas era uma boa substituta socialmente aceitável. Ela estava mesmo pensando naquilo em algum nível de sua consciência, e Tony era uma enciclopédia ambulante, portanto aquela era uma boa oportunidade para mencionar a questão.

Agora foi a vez dele se ajeitar e encarar o vazio enquanto pensava.

– Não é possível. Cicatrizes são cicatrizes.

– Então, como você explicaria dois conjuntos de fotografias, um que mostra marcas na pele e outro que mostra a pele sem as marcas?

– Fácil. Alguém usou Photoshop.

– É isso que estou pensando.

O que ela não entendia era o “porquê”. Embora suspeitasse do “quem”.

Mels deixou a cabeça pender para o lado. Qualquer alteração não poderia ter sido feita pela fotógrafa oficial – enquanto a mulher trabalhava, havia meia dúzia de homens no recinto. E, se ela mudasse alguma coisa nas imagens depois, eles teriam apontado para a discrepância no momento em que vissem as fotos.

Então restava Monty, um homem que masturbava seu ego falando com a imprensa quando não podia e tentando criar um drama onde não havia nenhum. Quais seriam as chances de ele adulterar as imagens apenas para se divertir?

Mels começou a agir, acessando os arquivos do Correio de Caldwell.

– Ou foi isso – Tony disse –, ou foi um caso de intervenção divina.

 

– Encontrei a tatuagem.

Às cinco da tarde, Mels tirou os olhos da versão final de seu artigo sobre a prostituta. Eric estava de pé à sua frente, com uma pasta na mão, um sorriso enorme no rosto.

– Da vítima do Marriott que desapareceu no necrotério?

– Exatamente.

– Deixa eu ver – ela disse, levantando a mão.

– É o desenho de... – ele entregou a foto. – Bom, não é meu estilo. Gosto mais das tribais.

Quando ela abriu a pasta, suas sobrancelhas se levantaram. A foto era colorida, mas nem precisava – pelo menos não considerando a tinta do desenho. A tatuagem mostrava o Ceifeiro da Morte em preto e branco, com detalhes assustadores... mesmo na foto, os olhos brilhantes sob o capuz rasgado e a mão esquelética apontando para quem olha pareciam se dirigir a ela especificamente.

– Bem macabro, né? – Eric comentou. – E o cemitério também ficou legal, você não acha?

Era verdade. A horrível figura estava de pé em um campo de lápides. As tumbas se estendiam até o horizonte e a túnica decrépita cobria e obscurecia o cenário, que parecia ser infinito.

– O que são esses traços marcados embaixo? – ela perguntou.

– Deve ser a contagem de alguma coisa... e com certeza não é a contagem de amores que ele teve, eu posso apostar.

– Pode ser relacionado a alguma gangue.

– É isso que eu estava pensando, principalmente porque, segundo a minha fonte, faz pouco tempo que outro corpo chegou no necrotério com algo parecido.

– O que a polícia pensa disso?

– Estou tentando descobrir agora mesmo.

Mels olhou para Eric.

– Você já procurou a imagem na internet?

– Existem milhares de representações do Ceifeiro da Morte na internet... algumas são tatuagens. Não encontrei nenhuma idêntica a essa, mas todas são meio parecidas, se é que isso faz sentido.

– Então, como sua fonte conseguiu isso? Ouvi dizer que o arquivo também tinha desaparecido.

O Hospital St. Francis estava uma loucura por causa do incidente; era como se o homem nunca tivesse entrado no sistema.

Alguém fizera um trabalho limpo. Muito limpo.

– Tenho um colega que gosta de tatuagens. Ele tirou as fotos no celular quando o corpo chegou.

– Que ótimo – ela murmurou enquanto voltava a olhar a pasta. – Então, se assumirmos que a tatuagem é de alguma gangue, o que diabos o cara estava fazendo vestindo um colete à prova de balas ultramoderno? E o desaparecimento? Gangues não são tão sofisticadas assim pra resgatar seus mortos invadindo um hospital dessa maneira, incluindo o sistema digital. Sem chance. A mesma coisa com a máfia.

Eric mastigou sua caneta Bic.

– Tem que ser algo do governo. Quer dizer, quem mais poderia fazer uma coisa dessas?

Ela pensou na pistola descarregada de Matthias.

– Ouvi dizer que as balas eram calibre quarenta.

– A arma que foi usada contra o cara? Sim. E a boa notícia é que a polícia guardou o colete, as roupas e as botas como evidências, então elas não sumiram, como o corpo – os olhos de Eric se estreitaram. – Então, agora você vai me dizer por que está tão interessada?


– A garota da minha história também morreu com a garganta cortada. – Embora, sendo realista, quais seriam as chances de as duas mortes estarem relacionadas?

– Ah, então você está colecionando ferimentos no pescoço?

– Estou apenas sendo detalhista.

– E como está saindo a história da prostituta? Alguma coisa nova?

– Estou trabalhando em algumas coisas.

– Me chame se precisar de ajuda.

– O mesmo para você.

Quando Eric foi embora, ela percebeu que a redação estava praticamente vazia. E seu prazo para entregar o artigo estava quase acabando.

Ela leu novamente a história, e ainda não estava satisfeita. Não havia nenhuma informação nova além da identidade da vítima e, quando Mels ligou para a família, recebeu uma resposta surpreendentemente desinteressada.

Como alguém poderia não ficar abalado com a morte de uma filha?

Mels não gostava de enviar seu material daquele jeito. Estava bem escrito, e a revisão automática fizera seu trabalho, mas a verdadeira história estava com Monty e suas fotos, e ela ainda não podia acrescentar nada daquilo.

Praguejando, clicou no botão enviar e jurou que chegaria até o fundo daquela história. Mesmo se não pudesse publicar nada.

Trocou de janela no computador e voltou a analisar uma montagem de duas imagens, que preparara uma hora antes: eram de marcas semelhantes gravadas na pele do abdômen. Uma era de Cecília Barten, encontrada morta na pedreira dos arredores da cidade há alguns dias... e a outra era a imagem do que Monty dizia ser a barriga da prostituta.

O padrão das marcas parecia algum tipo de linguagem: havia caracteres idênticos nas duas fotos, embora não estivessem na mesma sequência – o que em sua mente não descartava a teoria de que Monty alterara digitalmente as fotos. Afinal, aquilo seria perfeito, pois ligaria as duas mortes sem deixar a manipulação parecer óbvia demais.

Na verdade, quanto mais pensava naquilo, mais se convencia de que a manipulação se encaixava com a personalidade de Monty. O quanto ele se divertiria se pudesse ser a “fonte” de um novo assassino em série?

Mas ela então ficou pensando: quando ninguém mais aparecesse morto como aquelas garotas, o que ele iria fazer? E seu emprego estava em jogo. Entregar informações daquela maneira já era arriscado para ele. Aumentar os riscos mentindo sobre aquilo seria muita tolice.

Talvez ele simplesmente estivesse ficando desleixado.

Mas... e quanto à cor do cabelo? A prostituta usara tintura um pouco antes de ser assassinada, um tom de loiro igual ao de Cecília Barten. Isso não mudara entre as fotos: isso acontecera de verdade.

E se Monty fosse um imitador de assassinatos?

– Como está sua situação com o transporte? – quando Mels se sobressaltou, Tony parou de guardar suas coisas. – Tudo bem por aí?

– Sim. Desculpa. Estava só pensando.

O colega pendurou uma bolsa sobre os ombros.

– Precisa pegar emprestado meu velho carro de novo?

Mels hesitou.

– Ah, eu não poderia te incomodar de novo...

– Não se preocupe. Apenas me leve pra casa e o carro é todo seu, contanto que me traga café da manhã de novo amanhã cedo – ele segurou as chaves pelo chaveiro do Kiss e ficou balançando-as de um lado para o outro. – Eu realmente não preciso dele.

– Só mais uma noite – ela cedeu.

– Você quer dizer mais dois pãezinhos de salsicha com café.

Os dois riram enquanto Mels desligava o computador. Ela levantou, jogou dentro da bolsa as fotos que Monty lhe entregara e começou a andar de braços dados com Tony.

– Você é um príncipe entre os homens, sabia disso?

Ele sorriu.

– Sim, eu sei. Mas é legal ouvir isso de vez em quando.

– Escuta, você conhece alguém que seja bom com fotografias?

– Está querendo tirar um retrato de si mesma?

– Estou querendo uma análise.

– Ah – ele segurou a porta aberta para ela passar. – Pra falar a verdade, eu conheço uma pessoa com quem você pode conversar... e provavelmente podemos encontrar essa pessoa no caminho pra casa.

 

CONTINUA

CAPÍTULO 14

– Você quer que eu faça o quê?

Em resposta, uma caixa da L’Oreal foi jogada das sombras e quando a mulher a pegou, ela pensou: certo, a noite começou muito bem. Já estava cansada, dolorida e querendo que fosse uma da manhã, quando acabava seu turno – e esse “cliente” era um esquisitão com algum fetiche por tintura de cabelo?

Estava cansada dessa rotina de prostituta; estava mesmo. Já não aguentava mais aqueles motéis velhos e escuros, e homens feios com ideias malucas – isso sem contar aquele “gerente”.

– Você quer que eu pinte meu cabelo de loiro. Sem brincadeira.

Um maço de quinhentos dólares foi jogado do canto, e a luz do teto fez as notas brilharem no quarto pouco iluminado. Com certeza parecia um presente dos céus – principalmente considerando-se que o idiota já pagara para poder entrar naquela espelunca junto dela.

– Está bem, certo – ela se aproximou e pegou o dinheiro. – Mais alguma coisa?

A voz profunda soou em um tom baixo:

– Quero que o deixe bem liso.

– Só isso?

– Só isso.

– Nada de sexo?

– Não quero você pra isso.

Sentiu um calafrio começando a subir por suas costas até chegar à base do pescoço. Mas não havia motivo para se preocupar. Havia outras garotas nos quartos dos dois lados, e o patrão estava no estacionamento a menos de dez metros. Além disso, ela carregava um spray de pimenta.

O que ele poderia fazer com ela?

Resmungando para si mesma, entrou no banheiro e acendeu a luz. No espelho, ela parecia estar em seus quarenta anos, com bolsas sob os olhos e o cabelo com a consistência de um tufo de feno. A boa notícia era que ela precisava mesmo retocar as raízes – a lateral do cabelo já estava parecendo um mapa rodoviário, com a cor natural subindo pelo couro cabeludo. Mas não porque ela quisesse imitar Marilyn Monroe.

Acontece que gostava de ser ruiva. E, caramba, se o cabelo já estava crespo daquele jeito, não seria uma tintura que iria ajudar...

Ah, veja só, veio um condicionador junto. Legal.

Colocou em cima da pia o frasco cheio de creme, o tubo da tinta e o aplicador. Demorou um pouco para ler as instruções, afinal, ela nunca fora muito boa nessa coisa de ler e escrever, apesar de aquele texto não ser nenhum tratado científico.

Através da porta entreaberta, pôde ver que o cliente sentou-se no canto mais distante, com as botas bem separadas plantadas no chão, e as mãos descansando nos joelhos em vez de estarem no meio das pernas. A luz no teto iluminava apenas a parte inferior de seu corpo, portanto não dava para enxergar o rosto. Melhor assim – isso o deixava ainda mais anônimo.

Engraçado, ela não lembrava que esses quartos eram tão escuros.

Voltando ao trabalho, furou a ponta do tubo com a tampa de plástico, espremeu a gosma mal cheirosa dentro do aplicador e mexeu a mistura como se estivesse dando um trato em um cliente. Empurrou as mãos para dentro das luvas de plástico que estavam atrás das instruções. Ainda bem que eram grandes, pois assim havia espaço para suas unhas postiças.

Aplicou a tintura nas laterais sem problemas, mas as pontas estavam embaraçadas demais. Pegou uma escova em sua bolsa e forçou os cabelos da raiz às pontas duplas até que pudesse terminar o trabalho; depois se livrou como pôde de tudo o que saiu na escova.

A tintura cheirava a aromatizador misturado com cola química e tinha a consistência de sêmen.

Será que era isso que excitava aquele cara?

Homens são tão nojentos.

Durante a espera para a tinta secar, enquanto sua cabeça queimava e o nariz coçava, enviou mensagens de texto contando sobre o esquisitão que estava com ela. Não havia razão para conversar com o cliente – ele ainda estava apenas sentado lá, como uma estátua.

Trinta e cinco minutos depois ela entrou no banho com um frasco de xampu que fora deixado na pia. Fora usado até a metade por outra pessoa, mas tinha o suficiente para uma boa enxaguada. A água morna estava gostosa e o condicionador cheirava bem melhor que a tintura.

Quando saiu, seu cabelo tinha a mesma cor de pipoca de cinema, e todo aquele amarelo dourado fez sua bunda branca quase parecer esverdeada. Vestir suas roupas de puta não ajudou muito a melhorar a imagem.

Ligando o secador na tomada, virou-se, com os pés ainda descalços.

– Está pronto?

O homem levantou da cadeira e, ao se aproximar, a luz brilhou em seu rosto. Era bonito o suficiente, mas, por alguma razão, ela desejou devolver o dinheiro e sair dali. Rápido.

– Deixe o resto comigo – ele disse, tirando o secador e a escova das suas mãos.

O barulho do ar quente rugiu em seus ouvidos quando ele começou a escovar vagarosamente os cabelos dela. Com firmeza. Com decisão. Como se já tivesse feito aquilo antes.

Que cara maluco.

Quando tudo estava seco e macio, ele desligou o secador e o colocou na pia ao lado.

Encontrando os olhos dela através do espelho, o homem apenas a encarou.

Ela limpou a garganta.

– Eu preciso ir...

De repente, o rosto dele parecia diferente, as feições pareciam estar mudando...

Ela abriu a boca e tomou seu último fôlego para gritar quando uma lâmina surgiu atrás de sua cabeça.

Com um rápido corte na garganta, o monstro abriu um novo caminho para o ar entrar nos pulmões dela, e o que seria um grito agudo de terror transformou-se em um bizarro borbulhar de sangue.

A última coisa que ela viu foi um cadáver ambulante, com um sorriso em meio à carne podre.

– É hora da festa – disse uma voz feminina.


CAPÍTULO 15

Suicídio.

Enquanto Matthias digeria a palavra, um homem do tamanho de um ônibus entrou pela porta da frente: sua jaqueta preta, luvas e calça de couro o deixavam parecido com um membro da gangue dos Hells Angels. Sua expressão severa também se encaixava na descrição – e todos aqueles piercings confirmavam que Matthias não estava diante de nenhum cara frouxo.

Jim os apresentou, classificando Matthias como um “amigo” e o colega motoqueiro como “Adrian”.

Suicídio.

Experimentando o conceito em sua mente, Matthias descobriu que se encaixava e tentou se lembrar de mais coisas: um contexto, um lugar, uma razão. Mas nada surgiu, mesmo quando ele forçou seu cérebro até doer.

Com uma súbita clareza, olhou para Heron.

– O deserto.

O homem que tinha as respostas parou de conversar com seu colega e assentiu.

– Sim. Foi lá que aconteceu.

– E você estava junto – quando Heron assentiu novamente, a frustração de Matthias rugiu. – Como diabos nós nos conhecemos...?

A resposta foi interrompida pelo som de um carro parando na frente da garagem. Instantaneamente, armas foram sacadas, e Matthias também se juntou à festa, empunhando a pistola que estava na mesa.

Deus... ele sentia-se tão bem com ela na mão. Parecia tão natural!

Matthias se esquivou pela parede e olhou por entre as cortinas. Assim que viu o que estava lá fora, se acalmou, soltando um grunhido.

– Filha da puta.

– Você conhece ela? – perguntou Jim, que estava na janela perto da porta.

Voltando a olhar entre as cortinas, Matthias observou Mels sair do Toyota e concentrar-se na Harley. Não era uma surpresa que ela tivesse encontrado a droga do endereço; se ele conseguira, ela também conseguiria. Mas não podia acreditar que ela o seguira até ali. Antes de se separarem, Matthias falara a dura realidade, e a maioria das pessoas deixaria aquele drama para trás na mesma hora.

Sou faixa preta, tenho permissão para porte de armas e nunca vou a lugar algum sem uma boa faca.

– Deixa que eu cuido disso – ele falou, andando até a porta e tirando Jim do caminho, mesmo o cara sendo muito mais pesado e saudável. – E vou deixar bem claro: ninguém toca nela. Entenderam? Ninguém.

Ele podia estar comprometido fisicamente, mas não era preciso muita força para apertar um gatilho. E se alguém se aproximasse demais daquela mulher encantadora lá fora, ele os caçaria e mataria, mesmo que fosse a última coisa que fizesse em sua vida.

No silêncio pesado, dois pares de sobrancelhas foram erguidos, mas nenhum dos homens abriu a boca.

Acho bom mesmo, garotos.

No instante em que Matthias pisou na varanda superior, os olhos de Mels dispararam em sua direção.

Com as mãos na cintura, ela de alguma forma o confrontou olho no olho, mesmo estando no térreo.

– Surpresa!

Mantendo a arma fora da vista, ele disse:

– Você precisa ir embora.

Ela acenou para a moto.

– Pegou carona com um homem morto?

– É claro que não.

Franzindo a testa, ela subitamente atravessou o cascalho e pegou o que parecia ser uma das pedras. Mas a luz do sol refletida no objeto sugeria que era algo metálico.

Mels levou a cápsula vazia de uma bala de revólver até o nariz e cheirou.

– Andou praticando um pouco sua mira?

Enquanto ela segurava a bala vazia, Matthias quis praguejar. Principalmente quando ela sorriu friamente.

– Essa bala foi atirada recentemente, não mais do que vinte minutos atrás, talvez trinta.

Guardando a arma nas costas da cintura, ele desceu o mais rápido que pôde. Ficaram frente a frente, e Matthias nunca se sentira tão impotente em sua vida. Ele tentara intimidá-la para que nunca voltasse, mas isso claramente não funcionara. Talvez a honestidade funcionasse.

Ele percorreu seu rosto com os olhos, aquele lindo e teimoso rosto.

– Por favor – ele disse num tom baixo. – Estou implorando. Esqueça tudo isso.

– Você continua falando sobre perigo, mas tudo o que vejo é um homem sem memória que não sabe o que está procurando. Olha, apenas converse comigo...

– Jim Heron está morto. E eu não sei de quem é essa Harley, ou quem estava atirando...

– Então, com quem você estava falando lá em cima? E se disser que não tem ninguém, é mentira. Não tem como você ter trazido essa moto até aqui. Seria impossível. E o motor ainda está engatado. Aposto que se eu for até ela vou sentir o tanque ainda quente.

– Você realmente precisa esquecer isso tudo...

– Não vou colocar nada disso no papel, já combinamos assim. Tudo que me disser será extraoficial...

– Então por que você se importa?

– O trabalho não é tudo pra mim.

Matthias levantou as mãos.

– Por que diabos estou discutindo com você? Você nem usa cinto de segurança. Por que eu devo esperar que...

Nesse momento, a porta se abriu e Jim Heron saiu na luz do sol.

Mels olhou para o cara e balançou a cabeça.

– Bem, quem diria... sabe, você se parece muito com aquele trabalhador da construção que levou um tiro e morreu umas duas semanas atrás. Na verdade, eu mesma escrevi o artigo sobre você para o Correio de Caldwell.

Matthias apertou os olhos com as mãos.

– Filho da puta...


A primeira boa notícia, pensou Jim, era que a mulher tinha uma sombra. Ou seja, sem chance de ela ser uma criação de Devina.

A segunda boa notícia foi Matthias ter aquela atitude que dizia “ela é minha e de mais ninguém”. Aquele bastardo cruel nunca tinha mostrado preferência por nenhuma mulher, exceto se fosse um alvo marcado para morrer – e nunca bancara o protetor em relação a ninguém. Mas algo naquela jornalista de olhos faiscantes e personalidade forte o afetara. E isso era bom.

A mulher em questão pousou os olhos em Matthias. Na verdade, ela o encarava.

– Não vai nos apresentar?

– Deixa que eu faço isso – anunciou Jim enquanto descia as escadas.

– Como é bom ver que a boa educação ainda não morreu – ela murmurou. – Se bem que, com vocês, a morte é algo relativo, não é?

Matthias não estava contente por trás daquele Ray-Ban, mas teria de engolir sua insatisfação. Junto com outras coisas.

– Meu nome é Jim – ele estendeu a mão. – Prazer em conhecê-la.

Mels parecia desconfiada, mas também estendeu a mão.

– Talvez você queira me contar o que está acontecendo aqui...

No instante que suas mãos se tocaram, Jim a colocou em transe: ela apenas o encarou, relaxada, pronta para ser informada, com a memória de curto prazo totalmente apagada.

Legal. Jim não tinha certeza se conseguiria fazer aquilo.

Matthias apertou com força o braço dele.

– Que merda você fez com ela?

– Nada. Só um pouco de hipnose – olhou para seu ex-chefe. – Vou dizer o que vai acontecer. Ela não vai se lembrar de mim, vai ser mais fácil e limpo desse jeito. E você vai levar ela até o hotel que eu vou reservar pra vocês...

Matthias estava concentrado apenas em sua jornalista.

– Mels? Mels... você está bem?

Jim colocou o rosto bem em frente aos olhos do cara.

– Ela tá bem... nunca ouviu falar em Heron, o Mágico?

Eeeee... uma arma foi sacada. Matthias a encostou no pescoço de Jim, seu rosto subitamente mostrando os velhos traços tensos dos dias de glória no antigo emprego.

– Que merda você fez com ela? – não era exatamente uma pergunta, mas uma contagem regressiva antes de apertar o gatilho.

– Bom – disse Jim calmamente –, se você atirar no meu pescoço, nunca vai conseguir tirar ela do transe, não é mesmo?

Na verdade, se o cara atirasse, nada aconteceria. Mas já havia drama demais ali, e Jim não tinha certeza se conseguiria fazer aquele truque mental em mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Além disso, por causa do estado mental frágil de Matthias, Jim não queria arriscar explodir o cérebro do cara, revelando toda aquela história de anjos e demônios. Pelo menos, não agora.

A arma não saiu do lugar.

– Faça ela voltar. Agora.

– Você vai levá-la para um quarto de hotel.

– Sou eu quem tá segurando uma arma. Eu faço os planos.

– Pense bem. Se você estiver com ela, vai poder se certificar de que eu não vou mais importunar ela, certo?

A voz de Matthias ficou mais grave do que o normal.

– Você não sabe com quem está falando.

– E você também não – Jim inclinou-se na direção do cara. – Você precisa de mim. Sou o único que pode te contar o que você quer saber. Confie em mim. Estou mais ciente que você sobre o quanto seu passado está enterrado, e ninguém além de mim pode desenterrá-lo. Então entre na merda do carro, faça ela dirigir com você até o hotel Marriott no centro da cidade, e eu te encontro lá quando achar que estou pronto.

Matthias apenas ficou onde estava, impassível por um longo tempo.

– Eu poderia atirar agora mesmo.

– Então atire.

Matthias franziu a testa e levou a mão livre até a têmpora, como se estivesse com dor de cabeça.

– Eu... já atirei em você, não é...?

– Temos muita história juntos. E se quiser descobrir tudo, fique com ela. E não discuta. Agora eu tenho controle sobre você, e sou eu quem dita as regras. Uma ótima mudança de cenário, se me permite dizer.

Jim voltou para as escadas e subiu, deixando Matthias parado em frente a Mels. No andar de cima, ele estalou os dedos e entrou no apartamento. Depois assistiu por trás da cortina quando a mulher saiu do transe e os dois começaram a conversar.

– Então Matthias é a alma – disse Ad enquanto mordia um sanduíche.

– Parece que sim.

– Tem certeza de que quer colocar a mulher no meio disso?

– Você viu a maneira como ele olha para ela?

– Talvez ele só queira uma transa.

– Boa sorte pra ele – Jim murmurou. – E, sim, ela vai ser valiosa para nós.

A questão agora era descobrir qual seria a encruzilhada. Mais cedo ou mais tarde, Devina apresentaria uma escolha para Matthias, e Jim teria até então para mudar completamente aquele déspota sem consciência e faminto por poder, transformando-o no oposto disso.

Ótimo. Que maravilha.

Estava tão plenamente satisfeito com seu emprego que praticamente engasgava com essa merda toda.

– Vamos até o hotel – ele disse.

– Que hotel?

– O Marriott – Jim foi buscar sua carteira. Havia um cartão de crédito em seu nome que não estava exatamente atualizado, mas a Master-Card não descobriria que ele estava tecnicamente morto, simplesmente porque Jim não iria contar.

Adrian limpou a boca com um guardanapo.

– Tem certeza de que quer fazer isso num local tão público? O centro da cidade é cheio de gente e Devina adora ser o centro das atenções.

– Sim, mas a falta de privacidade vai deixá-la de mãos atadas. Primeiro, ela vai ter que limpar qualquer confusão. Segundo, ela vai precisar ter muito cuidado ao decidir como proceder nessa rodada; e não acho que matar civis inocentes seria visto com bons olhos pelo Criador.

Jim foi até o armário improvisado e tirou seus coldres. Vestindo-os, colocou sua adaga de um lado e uma arma do outro. Checou os bolsos, querendo saber quantos cigarros ainda tinha...

Um pedaço de papel dobrado no bolso de trás da calça o fez parar e fechar os olhos por um instante.

Não havia razão para pegar o artigo de jornal; ele já sabia o texto de cor. Cada palavra, cada parágrafo – e principalmente a foto.

Sua Sissy.

Que não era realmente dele.

Mas que estava sempre com ele. Nunca esquecida.

Certificando-se de que Adrian não podia vê-lo, tirou o papel, desdobrou a página e observou a foto. Ela tinha dezenove anos quando foi levada pelo demônio, eternamente presa naquele muro de almas.

Jim franziu a testa e olhou para a porta. Matthias estivera naquele Inferno maldito. As coisas que vira lá dentro...

Oh, merda, o que ele tinha feito lá?

A ideia de que a garota ainda estava lá sofrendo era suficiente para deixar Jim queimando de raiva.

– Se apresse, Ad – ele murmurou. – Temos que ir.


CAPÍTULO 16

Sentado no banco do passageiro do Toyota, Matthias sentia que estavam em um passeio. Mels não apenas obedecia a todos os sinais de trânsito, como também dirigia a dez quilômetros por hora em uma via em obras cheia de britadeiras e rolos compressores.

Ele a observou. Ela parecia estar bem, calma, normal, mesmo não se lembrando de Jim Heron.

Que diabos aquele cara tinha feito com ela?

Normalmente, Matthias não teria acreditado naquela coisa toda. Que merda é essa de hipnose? Mas... bem, ele estava mais ou menos na mesma situação, mas em vez de esquecer alguns minutos, ele não se lembrava da droga da sua vida inteira.

E, de qualquer maneira, o que “normalmente” significava nesses dias?

Quando pararam em um sinal vermelho ao final da via em obras, ele olhou através da janela.

– Não gosto de não estar no controle.

– Ninguém gosta – Mels respirou fundo. – Estou contente por você me deixar te levar de volta ao hotel.

Se você estiver com ela, vai poder se certificar de que eu não vou mais importunar ela, certo?

Matthias passou os dedos por baixo do Ray-Ban e esfregou os olhos.

– Estamos quase chegando – ela disse. Como se pensasse que ele iria desmaiar, ou algo assim.

Mas aquilo não tinha nada a ver com sua saúde física.

– Você me faz sentir... impotente.

– Não acho que seja eu. Acho que é por causa da situação em que você está.

– Não, é você – ele sentia que, se Mels não estivesse envolvida, as coisas seriam mais fáceis, mesmo se ele nunca se lembrasse de qualquer evento de sua vida: ele só precisaria se preocupar consigo mesmo, e ter um problema era definitivamente melhor do que ter dois.

– Eu tentei fazer a coisa certa – ele murmurou, e então se perguntou para quem realmente dissera aquilo.

– E você está fazendo a coisa certa ao se dirigir pra um lugar onde pode descansar. Suas últimas 24 horas foram caóticas. Você precisa dormir.

Deixando a cabeça cair no encosto do banco, Matthias fechou os olhos e pensou no confronto com Jim. Estivera plenamente preparado para apertar o gatilho e matar o cara.

Dormir não era exatamente o que ele precisava. Talvez algemas e uma avaliação psicológica: naquele momento em que seu dedo esteve no gatilho, não houve hesitação de sua parte – encostara o cano no pescoço do cara com rapidez, sem se importar com testemunhas e sem nenhum apelo moral de sua consciência quanto ao valor de uma vida humana.

Será que ele fora um soldado? Porque aquela atitude não tinha nada de civil, era totalmente militar.

Sim, pensou, era isso. E ele fora um dos tipos mais perigosos de soldados... aqueles que possuem um grande vazio no peito. O que significava que eram capazes de tudo.

Você odiava o homem que era.

Quando o semáforo ficou verde, Mels dirigiu por uma rua onde havia um pequeno centro comercial cheio de lojas grudadas umas nas outras. Eram coisas que ele nunca notava: os pequenos cafés aconchegantes, as lojas que vendiam presentes artesanais, as butiques de bijuterias e badulaques. Tudo tão banal. Tão cotidiano. Tão normal...

– Eu tentei cometer suicídio.

Mels pisou no freio por um instante, mesmo com o trânsito fluindo bem pela via de quatro pistas em que estava.

– Você tentou...? – limpou a garganta. – Sua memória está voltando?

– Algumas coisas.

– O que aconteceu? Quero dizer, se eu não estiver me intrometendo demais.

Pensando novamente em Jim Heron, ele respondeu com suas palavras:

– Eu não gostava de quem eu era.

– E quem você era?

Era sombrio como a noite, frio como o inverno, cruel como uma lâmina. Mas guardou isso para si.

– Você é persistente, sabia?

Ela tocou o próprio peito.

– Repórter. Faz parte do meu emprego.

– Estou descobrindo isso.

Matthias fechou novamente os olhos e escutou o motor do carro rugir e se acalmar. Quando algo morno e macio cobriu seu pulso, ele se exaltou. Era a mão de Mels, sua bondosa e elegante mão.

Por algum motivo, ele não podia acreditar que ela gostaria de tocá-lo.

Engolindo seco, ele apertou a mão dela e então desfez o contato.

Eles chegaram ao Marriott dez minutos depois. O lugar era um típico hotel de cidade grande, pairando sobre jardins bem cuidados no meio do centro comercial de Caldwell. Entraram pelo pórtico principal e acabaram em meio a uma confusão de carros, porteiros e pessoas carregando bagagens. Afinal, já passava das três da tarde, o que significava que era a hora da correria para os viajantes.

– Você vai subir comigo? – Matthias escutou a si mesmo dizer, enquanto imaginava quem poderia tê-los seguido; e que tipo de relacionamento ele realmente tinha com Jim Heron.

O cara tinha usado a palavra ajuda, mas sempre é preciso se perguntar que tipo de motivação está por trás de um gesto bem intencionado, e não é muito esperto simplesmente aceitá-lo cegamente.

– Vou te fazer companhia até você estar bem instalado, o que acha?

– Está... bem – ele ainda preferia uma separação direta, mas isso já não era possível.

Graças a Heron.

Se bem que... não era nada mal poder passar mais um pouco de tempo com ela.

Mels dirigiu lentamente entre funcionários que empurravam carrinhos de bagagem e seguiu para o estacionamento. O ar quente do motor invadia o interior do carro, então Matthias abriu uma fresta da janela – mas logo percebeu que aquilo não adiantaria. O ar que vinha do motor era a fonte do mal cheiro.

Mels entregou o carro de seu amigo para um manobrista – que não pareceu muito entusiasmado para estacionar aquela lata velha – e os dois entraram por uma porta giratória até o saguão subterrâneo, que estava decorado com carpetes vermelho-sangue e paredes douradas. Infelizmente, apesar daquela combinação – ou talvez por causa dela –, a decoração parecia mais a de um bordel do que um lugar para negócios: era uma tentativa mal sucedida de imitar o luxo de um Four Seasons.

– Sempre achei que este lugar se esforçava demais para parecer o Waldorf – Mels disse enquanto apertava o botão do elevador. – Mas estamos em Caldwell, não em Manhattan.

– Engraçado, eu estava pensando a mesma coisa.

– Aliás, não repara no meu mau humor – ela disse. – Sabe como é, eu não sou daqui.

– Você é de Nova York?

– Bom, eu nasci aqui, mas sou de lá. Estou só esperando pra voltar.

– O que te mantém em Caldwell?

– Tudo. Nada – Mels olhou ao redor. – De um jeito estranho, eu invejo a sua amnésia.

– Se eu fosse você, não invejaria.

Pois é, Matthias realmente não queria isso para ela, e não porque estava sendo um cavalheiro. De pé ao seu lado, ele até mataria para saber mais sobre Mels, sua família, onde ela crescera, tudo o que a trouxera para este momento de fragilidade.

– Mels...

Antes que ele pudesse perguntar, uma família se juntou a eles na espera pelo elevador, as filhas correndo de lá para cá, os pais parecendo viver presos em uma versão do Inferno que cheirava a chiclete e era povoada por diabinhos vestindo roupas de princesa que pediam sorvete a cada três minutos.

Ding!

Quando as portas do elevador de abriram, Matthias colocou as mãos nas costas de Mels e a conduziu para dentro. Ele não queria parar de tocá-la, mas baixou o braço e teve de aguentar o olhar vidrado das crianças em cima dele.

No saguão do andar térreo, a agitação do pórtico invadia a área da recepção, e havia uma fila de pessoas serpenteando por um labirinto de cordões de veludo.

– Isso é um pesadelo – Matthias murmurou secamente.

– Poderia ser pior. Nunca ouviu falar do Motel 6?2

– Bom argumento.

Quando finalmente chegou sua vez de serem atendidos na recepção, Matthias deu seu nome, mas não tinha certeza de como aquilo funcionaria. Normalmente, você precisa apresentar o cartão de crédito com o qual fez a reserva...

– Ah, sim, sr. Hault, o senhor já fez o check-in – a mulher disse, digitando com rapidez. – Só preciso da sua carteira de motorista.

Matthias olhou ao redor do saguão. Como diabos Heron conseguira chegar até ali e arranjar tudo? O trânsito estava pesado, mas não tão pesado na rota que ele e Mels fizeram. Podia ser, é claro, que o cara tivesse tirado um helicóptero do traseiro.

E quanto ao cartão de credito, será que Heron usara um próprio? O filho da puta supostamente estava morto, então era de se imaginar como a companhia poderia enviar a conta para o Cemitério Pine Grove. Por outro lado, números de cartão de crédito eram tão fáceis de arranjar como um livro em uma biblioteca, se você conhecesse as pessoas certas – e, considerando o olhar no rosto do colega de Heron, acesso ao mercado negro com certeza não seria difícil.

– Senhor? A carteira de motorista?

– Sim, desculpe.

Quando entregou a carteira, a recepcionista sorriu profissionalmente. Sua expressão era equivalente a um tapete de boas-vindas.

– Certo, aqui estão os cartões para o seu quarto. É só pegar o elevador até o sexto andar. O senhor vai ficar no quarto...

Não no 666, pensou ele, sem motivo aparente.

– ... 642. Gostaria de alguém pra ajudar com a bagagem?

– Não, pode deixar. Obrigado.

– Espero que goste da estadia.

Enquanto ele e Mels se dirigiam para os elevadores, Matthias observou todo o saguão, sem mover a cabeça. As pessoas ao redor não eram nada especiais... apenas gente normal carregando malas, ou falando no celular, ou discutindo com a esposa/marido/namorado. Ninguém estava prestando atenção nele, e é por isso que às vezes locais públicos podem ser o lugar mais seguro para você se esconder.

Mesmo assim, ele estava contente por ainda possuir a arma que pegara de Jim.

A segunda espera por um elevador foi maior do que a primeira, e quando finalmente chegou, Mels deu um passo para a frente junto de outro casal.

Matthias tocou seu braço e a fez esperar.

– Vamos pegar o próximo.

As portas se fecharam enquanto ela o observava.

– Claustrofobia?

– É. É isso.

Desta vez, ele deixou a mão em Mels por um pouco mais de tempo. De pé atrás dela, era possível observar o quão mais alto ele era, mesmo Mels não sendo nenhuma baixinha – e Matthias imaginou como seria apertar o corpo dela contra o seu.

Um pensamento estranho, por muitas razões. Mas que inegavelmente lhe trouxe uma imagem mental...

– Chegou outro – ela disse, quebrando o contato entre eles. – E estamos sozinhos desta vez.

Cara, quando se tratava de Mels Carmichael, sozinhos parecia realmente um termo muito bom.

A viagem até o quarto foi tranquila – com exceção da direção que seus pensamentos estavam tomando. E a outra boa notícia era que o quarto não ficava longe da saída de emergência. Perfeito. Lá dentro, o espaço era preenchido de maneira padrão, com uma cama, escrivaninha, armário e cadeira, mas o que mais chamou sua atenção foi o colchão king-size.

Mas ela não estava procurando por um caso com um estranho, e ele nem conseguiria dar conta do serviço, de qualquer maneira.

Quando Matthias se aproximou da janela e fechou a cortina, Mels acendeu a luz do banheiro e olhou ao redor.

– Você vai ter uma bela banheira.

Sem querer, ele observou-a de cima a baixo e concluiu que sim realmente gostava de suas curvas naquela calça apertada.

Merda. Ele a desejava – e muito. Queria ela nua e debaixo de seu corpo, com as pernas bem abertas enquanto a penetrava fortemente.

Limpando a garganta, ele disse, com a voz rouca:

– Posso te pagar um jantar? Eu sei que é cedo, mas estou com fome.

Estava mesmo era faminto por ela. Dane-se a comida.

Endireitando-se, ela o observou, e Matthias ficou aliviado por ainda estar usando os óculos dela. Nada de bom poderia sair do olhar que ele estava escondendo por trás das lentes escuras. “Desejo” não era a palavra certa, não naquela circunstância.

Ei, veja só, quem diria. Ele podia ser um assassino casual, mas ao menos tinha um pouco de decência.

– Sim – ela sorriu um pouco. – Claro. Eu gostaria de comer algo.

Enquanto Matthias olhava o cardápio que pegou sobre a escrivaninha, disse a si mesmo que estava apenas fazendo o que Jim Heron sugerira: mantendo-se junto de Mels, pois assim saberia que ela estava bem.

Ele podia não conhecer seu passado, mas de uma coisa tinha certeza: estava disposto a morrer para proteger aquela mulher inteligente e bondosa... e seu traseiro perfeito.


N.T.: Motel 6 é uma rede de hotéis de baixo custo e qualidade.


CAPÍTULO 17

Mels finalmente conseguiu terminar uma porção de batatas fritas.

Elas vieram junto com um hambúrguer perfeitamente ao ponto, uma fatia de picles bem generosa e uma Coca saída de um comercial, com o copo transpirando e tudo mais.

Sobre o console de mogno, a televisão do quarto estava ligada no canal WCLD, uma afiliada local da NBC, e o jornal das cinco horas estava começando.

– Tenho que dizer – ela murmurou, pegando a última batata e passando no ketchup – que essas batatas são bem melhores que as do Riverside.

Matthias, sentado na cama, ainda estava comendo seu sanduíche, mas ela podia perceber que ele olhava em sua direção. Mesmo com os óculos escuros.

Ele fazia muito isso: seus olhos pousavam nela como se gostasse da maneira como ela se movia, mesmo quando estava sentada – e, por alguma razão, aquilo o deixava ainda mais sexy... ao ponto de fazer Mels se perguntar como seria ter aquilo sem nenhuma barreira.

Quer dizer, os olhares.

Você sabe, sem o Ray-Ban...

Droga, ela estava se fazendo corar.

– Sabe, você pode tirar se quiser – ela disse suavemente. – Os óculos.

Ele congelou. E então voltou a mastigar. Depois de engolir, disse:

– Me sinto melhor com eles.

– Certo, é você quem manda.

Matthias não disse nada sobre sua busca por Jim Heron, ou sobre como descobriu o endereço no qual se encontraram. Ele apenas entrara no carro do Tony e a deixara dirigir até ali.

Mas é claro que Mels não questionaria essa mudança de postura.

– Não tem alguém em casa te esperando? – ele perguntou casualmente.

– Ah, na verdade não. Acho que não tenho muita vida pessoal.

– Sei como é isso... – ele parou. – Caramba, na verdade eu sei mesmo como é isso.

Ela esperou que ele continuasse. Em vez disso, Matthias apenas ficou lá sentado encarando seu prato de comida, que ainda estava na metade, como se aquilo fosse uma televisão.

– Me conta – ela disse.

Ele deu de ombros.

– Não sou casado. Não tenho filhos. Não tenho ninguém permanente. O que explica por que ninguém está me procurando... bem, pelo menos não no sentido familiar.

– Sinto muito. E quanto a seus pais?

Matthias estremeceu, depois pareceu se recompor.

– E então...? – ela insistiu.

– Não lembro nada sobre eles.

No silêncio que se seguiu, ela apanhou sua bandeja e colocou no corredor. Quando voltou para dentro, sabia que era hora ir.

Provavelmente, também era hora de esquecer aquela história.

Jim Heron estava morto – ao menos de acordo com o arquivo não-tão-distante do Correio de Caldwell, e também com aquela lápide do túmulo. Ela encontrara seu endereço por meio de uma das fontes que dera declarações para o jornal – mas, claro, ele não estava lá.

Uma dor de cabeça surgiu em suas têmporas, mas passou quando ela mudou seu pensamento para Matthias Hault. Ele estava seguro ali, e se recuperando bem. E, quanto à sua memória, ele era o único que podia chegar ao fundo da questão. Mels fizera o que podia para ajudar com o básico; mais do que isso... ela poderia dar dinheiro se ele a processasse pelo atropelamento, mas ele não parecia ter essa intenção.

Claro, havia algo de estranho sobre aquela casa que supostamente era “dele”, e outras coisas que não faziam sentido, como quem realmente estivera naquela garagem. Mas, se ela não iria publicar nada daquilo, os detalhes realmente não eram da sua conta.

Mels se aproximou e sentou ao pé da cama. Quando Matthias colocou a bandeja de lado e a encarou, aquele calor percorreu novamente seu corpo.

Definitivamente, ela estava atraída.

Principalmente ali naquele quarto, onde estavam a sós. Mas ela realmente não estava procurando esse tipo de complicação.

– É melhor eu ir – Mels disse, tentando ler seu rosto.

– Então vá – ele sussurrou, olhando-a olhos nos olhos através das lentes escuras.

Nenhum dos dois se mexeu, o corpo grande e malhado dele ficou tão imóvel quanto o dela.

Deus... Mels queria que ele a beijasse. O que era loucura...

– Você me faz... – Matthias respirou fundo.

– O quê?

Inclinando-se para frente, ele esticou a mão e acariciou seu rosto.

– Você me faz desejar que eu fosse diferente.

O toque fez o coração dela parar – e então acelerar.

– Acho que você é um homem muito melhor do que pensa.

– E é exatamente isso que me assusta.

– A ideia de que você é um homem bom?

– Não, a ideia de que você pensa assim.

Mels desviou o olhar brevemente e se perguntou o que diabos estava fazendo naquele quarto de hotel... desejando que os dois arrancassem a roupa e suas inibições. Caramba, eram ambos adultos, e ela estava realmente cansada de viver uma vida pela metade, de querer coisas que não tinha, de adiar seus sonhos em troca de nada.

Ela queria viver plenamente de novo. Do jeito que era antes de as coisas mudarem, antes de se mudar para Caldwell e sabotar... a si mesma.

Franzindo a testa, ela começou a imaginar há quanto tempo não sentia-se dessa maneira.

E então...

Não tinha certeza do que a fez agir – a voz dele? Os olhos, que ela não podia ver, mas podia sentir? Seu orgulho inveterado misturado com uma ponta de insegurança?

A garota das cavernas que havia dentro dela?

Qualquer que fosse a motivação, Mels colou os lábios contra os dele. De um jeito breve, recatado. Mas poderoso.

Quando ela se afastou, Matthias parecia surpreso.

– Mais uma coisa fora do seu controle, não é? – ela disse com a voz baixa.

– Você parece ter um talento para isso.

Bom, ela também surpreendera a si mesma. Mas acontece que simplesmente não conseguia pensar em uma razão para lutar contra o desejo que sentia por ele. A vida é curta... e, depois daqueles últimos dois anos, Mels tinha mais medo de não correr riscos do que de voar por um instante para depois cair em um desastre.

– Se importa se eu terminar o que você começou? – ele disse com um grunhido.

– Nem... um pouco.

Ouvindo a resposta que queria, Matthias deslizou a mão atrás do pescoço de Mels e a puxou para mais perto, possuindo-a, tomando o controle. E, no segundo antes das bocas se encontrarem, ela pensou que era incrível como os dois eram relativos estranhos e, no entanto, a essência dele era melhor do que qualquer contexto ou situação: ela se sentia segura com aquele homem misterioso, apesar de ele tentar convencê-la do contrário.

E, meu Deus, ela realmente o desejava.

E parecia que o sentimento era mútuo.

Matthias a beijou com força e a soltou; então voltou a beijá-la como se ainda não fosse suficiente. Enquanto travavam uma luta com as línguas, ele a segurava pela nuca, controlando o ritmo, ganhando e cedendo espaço. Com um ardor se concentrando onde há muito não sentia nada, Mels parecia decolar de maneira louca e selvagem – e pensou que aquilo era o que precisava. Exatamente aquilo, ali mesmo, com aquele homem.

Sexo naquele quarto, naquela cama. Com ele.

Abruptamente, Matthias se afastou, como se precisasse recuperar o fôlego.

– Por acaso você tem o hábito de beijar suas histórias? – ele perguntou com a voz rouca.

– Você não é uma história. Nada disso é oficial, lembra?

– Bem lembrado – os olhos dele percorreram o corpo de Mels. – Quero você nua.

Ela sorriu vagarosamente.

– Não é exatamente uma surpresa, considerando o jeito como me beijou.

Com um grunhido, ele avançou para cima dela novamente, deslocando-a pelo colchão, rolando sobre ela. Antes do “acidente”, ele provavelmente dominava fisicamente as mulheres – não de maneira violadora; não havia coerção ou o sentimento de estar presa por ele. A melhor descrição seria dizer que era uma dominação animal.

Principalmente quando sua perna se enfiou entre as dela, a coxa pressionando seu sexo.

Mels se arqueou contra o peso do peito dele e colocou os braços ao redor de seu corpo.

Com um movimento sutil, ele a segurou, e então parou totalmente. Quando se afastou, havia tensão em seu rosto – e não do tipo vou-agarrar-você-agora.

– O que foi? – ela sussurrou. – Qual é o problema?


Matthias se arrastou para o pé da cama. Seus pulmões estavam queimando e sua cabeça doía muito. Mas que droga de corpo! Lá estava ele com uma bela e saudável mulher que tinha todos os sinais de estar sexualmente atraída por ele, porém... o desejo existia, mas o corpo não ajudava.

Ele a queria. Mas não havia muito que pudesse fazer.

Pensando naquela enfermeira e na maneira como ela o havia tocado, parecia uma piada cruel que seu problema tivesse voltado justo agora: a distância entre ele e sua repórter era tal que nenhuma quantidade de beijos a resolveria. Nem carícias, toques ou mesmo nudez total. Mais uma vez, estavam em lados opostos de um túmulo – ela no mundo dos vivos, ele no cemitério.

Por alguma razão, aquilo o deixou ainda mais desesperado para possuí-la. E, com uma súbita clareza, ele lembrou que no passado tivera todas as mulheres que quis – e nunca sofrera por falta de voluntárias. Mas isso não significava que se importasse com elas.

No caso de Mels era diferente. Ela era diferente.

Mas Matthias nunca poderia tê-la totalmente, não com seu corpo naquele estado.

– Qual é o problema? – ela perguntou novamente.

Matthias não queria que ela soubesse. Mesmo que Mels fosse descobrir mais tarde, gostaria de preservar por um pouco mais de tempo a ilusão de que era um homem de verdade. Se é que iria vê-la novamente.

– Não acredito que estamos fazendo isto – ele se esquivou. Mas era verdade. Toda aquela história, desde acordar ao pé da sepultura de Jim Heron até o acidente com ela, não parecia estar certa. Era como se alguém estivesse manipulando tudo, como se a perda de memória tivesse um propósito.

– Nem eu – ela respondeu, olhando para sua boca como se quisesse mais.

Ela não parecia o tipo de mulher que gostava de encontros casuais. Não se vestia com roupas provocantes, não se insinuava em seus movimentos, não tentava seduzir a todo momento. E emanava uma vibração hesitante, mas positiva, como se fizesse algum tempo que as coisas não aconteciam com ela, e sentisse que estava na hora.

Diga para ela ir embora, pensou Matthias. Impotência à parte, havia muitas outras razões para não ficarem juntos naquela noite. Ou em qualquer noite.

Voltando a se aproximar, ele colocou as mãos ao redor de seu corpo e a puxou para perto – mas não perto demais. Os quadris não se encostaram.

Deus, ela cheirava muito bem.

As sensações estavam todas lá: o calor correndo em seu quadril, o coração batendo com urgência, os braços e pernas parecendo ainda mais fortes do que o normal. Mas seu pênis não participava desse conjunto.

Talvez fosse melhor assim, pois precisava dizer a ela que...

– Posso fazer algo por você? – ele soltou.

Certo, isso não era exatamente um “boa noite”.

– Você já fez.

– Tenho muita certeza de que posso fazer melhor.

– Bom, quem sou eu para impedir um especialista?

Quando ele se aproximou para beijá-la novamente, pensou em como ela ficaria com a blusa aberta e sem o sutiã, os seios prontos para receber seus lábios, a pele macia da barriga conduzindo-o para outros territórios.

Tudo aquilo era incrivelmente bom, e também parecia tão novo para ele – mas essa sensação não se devia ao fato de que nunca estivera com Mels antes. Ele sentia como se nunca tivesse se apaixonado de verdade por alguém. Por outro lado, considerando a falta de memória... realmente era como se ele nunca tivesse ficado com outra pessoa antes.

Do nada, uma imagem atingiu seus sentidos. Ele e uma mulher de pele escura e macia de pé contra uma parede. Ele a segurava pela garganta e ela o envolvia com as pernas, e Matthias a penetrava furiosamente...

Ele se afastou num sobressalto. De uma só vez, várias imagens inundaram sua mente, uma linha cronológica de todas as mulheres com quem já tinha transado – jovens, quando ele era jovem; mais velhas e variadas, quando já estava adulto; e então uma série de mulheres extremamente agressivas.

Ele viu a si mesmo com elas, quando seu corpo era forte e inteiro, suas emoções claras e organizadas, seu coração frio como gelo. Ele via as mulheres, nuas ou seminuas, armadas e desarmadas, tendo orgasmos com grandes movimentos exagerados.

– Do que está se lembrando? – Mels perguntou.

Ele abriu a boca para falar, mas a sucessão de nomes, lugares, rostos era um dilúvio do qual não conseguia se livrar, uma avalanche entupindo seus neurônios, deixando-o quase inconsciente. E, quando cedeu àquela força, sentiu seu corpo sendo conduzido de volta para os travesseiros, não mais no papel de dominador.

Levando as mãos à cabeça, ele praguejou.

– Vou chamar um médico...

Matthias esticou o braço e agarrou o pulso dela.

– Não, estou bem...

– Não, não está!

– Só me dê um minuto.

Ele respirou brevemente e decidiu parar de lutar contra aquela onda. Foi a decisão certa – em vez de se atropelar, as lembranças começaram a se revelar de modo mais ordenado. Ao menos... até chegar ao final. A última lembrança o mostravam junto com... algum tipo de monstro? Deve ter sido um pesadelo... mas, Deus, ela era horrível, e estava transando com ele como uma forma de tomar posse de seu corpo, em um calabouço no fundo de um poço escuro...

Pânico o atingiu como um relâmpago, fazendo Matthias se contorcer fortemente. Mas ele continuou segurando Mels pelo pulso, certificando-se de que ela não correria para o telefone.

– Por favor – ouviu-a dizer.

– Nada... de médico... já está passando...

Por fim, ele a soltou, tirou os óculos escuros e esfregou os olhos.

– Achei que lembraria das coisas devagar.

– Posso, por favor, chamar o atendimento médico? – ela pegou uma pasta e colocou em frente ao seu rosto. – Tá vendo? O hotel tem um médico de prontidão.

– Não, sério, estou bem. É que veio tudo de uma vez. A gente nunca pensa em quanta coisa fica guardada aqui em cima – ele apontou para a cabeça. – É muita informação.

– De que tipo de informação estamos falando?

Ele desviou o olhar.

– Bom, eu definitivamente não sou virgem. E não vamos nos aprofundar no assunto.

– Ah.

Houve um embaraçoso momento de silêncio. Então, Mels limpou a garganta.

– Sabe, acho melhor eu ir embora.

– Pois é.

Ela se levantou. Pegou o casaco. Vestiu-o.

– Antes de eu ir... – ela se aproximou da escrivaninha e escreveu algo no bloco de notas do hotel. – Aqui está o número do meu celular de novo...

O celular começou a tocar em seu bolso.

– Falando no diabo... – Matthias murmurou enquanto a observava terminar de escrever antes de atender a chamada.

– Alô – sua voz estava animada e profissional, e ele gostou de saber que ela podia se recuperar tão rápido.

Bom, na verdade isso era só mais uma coisa de que ele gostava naquela mulher.

Mels franziu a testa.

– Onde? Temos alguém ligado a ela? Como ela morreu? É mesmo? Certo, estou indo agora mesmo. Ainda estou com o carro do Tony – ela desligou o celular e pegou a bolsa. – Tenho que ir.

– Alguma coisa oficial?

– Meu chefe deve estar mudando de atitude. Ele me mandou para uma cena de crime.

– Ele não costuma reconhecer suas qualidades?

– Não aquelas que eu quero que reconheça – ela parou na porta. – Você tem certeza de que está bem?

– Você sempre foi uma santa assim? – ele murmurou.

– Não até te conhecer.

Quando ela já estava saindo pela porta, ele a chamou:

– Mels.

Ela virou a cabeça e a luz do corredor iluminou seu rosto. Quando seus olhos se encontraram, Matthias pensou que seria capaz de trocar todas aquelas mulheres que apareceram em sua memória por uma noite com Mels.

Não vou sair desta vivo, ele pensou.

Então, se algum dia tivesse mais uma chance de beijá-la, não iria parar. E quem sabe? Talvez tivesse mais sorte da segunda vez.

Contanto que não tivesse mais uma daquelas tempestades em sua memória.

– Use o cinto de segurança – ele ordenou, com a voz baixa.

– Chame um maldito médico – ela retrucou, com um pequeno sorriso.

Quando a porta se fechou, ele praguejou consigo mesmo. E então pensou em como se sentira quando a beijou.

Correndo o olhar por seu quadril, começou a pensar que gostaria de se tornar um homem saudável outra vez.


CAPÍTULO 18

O bar do saguão do Marriott fora nomeado em homenagem ao proprietário original do hotel, um tal de Não-Sei-Lá-Quem Sasseman. Pelo menos foi isso que a garçonete contou a Adrian com uma voz provocante enquanto anotava o pedido de cervejas dele e de Jim. Ela também fingiu deixar cair sua caneta e abaixou lentamente para pegar, depois foi embora rebolando como se sua pélvis tivesse recebido uma troca de óleo e ficado lubrificada demais.

Sua atitude até fazia sentido, já que os outros clientes dali eram homens de negócios com olhares esguios que provavelmente já estavam no time do Viagra, e ela era uma bela jovem com vinte e poucos anos.

Nos tempos de Eddie, Adrian teria ido atrás dela em um piscar de olhos.

Mas agora aquilo simplesmente não despertava sua atenção.

O banco no qual estavam sentados era revestido de couro sintético e fazia um barulho peculiar toda vez que um deles se ajeitava. Mas o lugar era perfeito para seus propósitos: ficava de frente para a grande porta que dava no saguão. Ninguém podia entrar ou sair sem que eles soubessem.

Se bem que, com o radar de Jim, eles conseguiriam rastrear Matthias e aquela mulher mesmo se estivessem parados no estacionamento de trás: o anjo certificara-se de tocar os dois, e mesmo Ad podia sentir a magia de rastreamento emanando pelos andares do hotel. O casal estava seis andares acima, muito próximos um do outro.

O que fazia ele se perguntar o que estavam fazendo.

Provavelmente jogando cartas.

É claro.

Enquanto os minutos passavam, transformando-se em uma hora inteira, as conversas dos outros clientes eram a única coisa que preenchia o silêncio. As cervejas transformaram-se em jantares. O tempo... parecia não passar.

Cara, ser imortal podia ser mesmo um saco quando a pessoa não se importava com nada. Tudo o que se tem é o tempo. Que ótimo, longas horas que perpetuamente o mastigavam com seus dentes, comendo-o vivo, mas mantendo-o inalterado.

Bom, com que ótimo humor ele estava naquela noite!

E esse humor não mudou nada enquanto observava as próprias mãos. A mancha negra que vira quando estava no chuveiro não reaparecera, mas ele não conseguia parar de checar a cada segundo para ver se ela tinha voltado. Até agora tudo bem, com exceção do sentimento de morte que o perseguia naquela noite.

Sentia literalmente como se seu corpo tivesse sido esvaziado por dentro, e não restasse nada além de um espaço dentro de seu peito...

– Ela está descendo – disse Jim, dando um último gole na cerveja quente que estava guardando. – A mulher saiu do quarto.

Ad não se importou em terminar seu copo. Na verdade, não tinha gostado nem de começá-lo.

Mas era melhor que Coors Light, de qualquer maneira.

– Você fica com ela – disse Jim enquanto entravam no saguão. – Não quero que ela fique sozinha.

– Mas a alma não é ele?

– Acho que sim. E se for, então ela é a chave para esta rodada.

– Tem certeza?

– Percebi o jeito como ele olha pra ela. Isso é tudo o que preciso saber – Jim acenou na direção da repórter que estava saindo do elevador. – Fique na cola dela. Vou esperar Devina aparecer por aqui.

Ad não estava interessado em ficar seguindo a namorada de Matthias. Ele queria esperar pelo demônio. Queria ficar cara a cara e rezar para que ela fizesse outra piada sobre Eddie – só para poder mostrar que não se abalava mais com qualquer coisa que ela dissesse. E depois, queria olhar em seus olhos enquanto a frustração explodia dentro dela até forçá-la a atacá-lo fisicamente.

E nesse momento ele poderia acabar com tudo. Lutar até morrer. Ter o fim de um verdadeiro guerreiro.

A vadia com certeza venceria, mas como seria bom arrancar umas camadas de carne dela. E depois, sentiria o alívio por tudo estar acabado.

– Adrian? Alô? Você está aí?

– Quero ficar aqui.

– Preciso de você junto daquela mulher. Ela precisa ficar viva tempo suficiente para influenciar Matthias. Se Devina conseguir farejar essa conexão entre eles, a mulher vai virar um defunto flutuando no rio Hudson. Ou pior...

Jim o encarou, deixando sua lógica subentendida – o anjo mais poderoso deveria enfrentar o demônio, e naquele momento não era Ad. E não por ele não possuir aqueles poderes legais de Jim.

– Você quer vencer – Jim disse com a voz calma –, ou quer nos ferrar de vez?

Ad praguejou, virou-se e concentrou-se na essência da mulher. Começou a andar normalmente, pois seria complicado demais desaparecer em meio àquela plateia.

Dirigindo-se para o elevador que levava ao estacionamento, a namorada de Matthias andava como se estivesse em uma missão, e Ad invejou aquele senso de propósito. Mas não invejou seu meio de locomoção. A lata velha tinha um motor e um teto – fora isso, mal se podia chamar aquilo de carro.

Só para deixar as coisas mais engraçadas, ele se transportou para o banco de trás – e apareceu em meio a um monte de jornais e revistas velhas, suficientes para encher a Biblioteca do Congresso. A boa notícia foi que ela escolheu justo aquele momento para ligar o motor – mas ainda ouviu o barulho de traseiro invisível amassando aquele monte de papel. Ela virou a cabeça e encarou o vazio onde ele estava. Só para ser legal, Ad deu um tchauzinho, mesmo que ela pensasse estar sozinha no carro.

– Estou perdendo a cabeça – ela murmurou enquanto engatava a primeira marcha e acelerava o carro.

Era uma boa motorista. Rápida nos pedais, eficiente no trânsito.

Acabaram na parte oeste do centro da cidade, em um motel que era apenas um pouco melhor do que um canil. Depois de saírem do carro – ele ainda invisível, ela ainda obstinada –, eles se juntaram a uma convenção de policiais e repórteres que se concentrava em um quarto à esquerda.

Adrian franziu a testa e abruptamente passou a se preocupar com aquela cena. Quando a mulher que estava protegendo se aproximou dos policiais que guardavam a fita amarela de isolamento, ele passou pela fraca proteção e se infiltrou na aglomeração de pessoas.

Que diabos?, pensou consigo mesmo.

Devina estivera ali; seu fedor residual pairava no ar como se um caminhão de lixo tivesse despejado um carregamento por toda parte.

Adrian se espremeu para dentro e precisou pressionar o nariz para não engasgar com o cheiro ruim que não afetava os humanos.

Olá, garota morta.

Do outro lado de quatro ou cinco policiais, um corpo estava visível através da porta aberta do banheiro: pernas brancas, tatuagem nas coxas, roupas que estavam amarrotadas como se ela tivesse resistido a um ataque. A garganta fora cortada e o sangue respingara na blusa cheia de lantejoulas e nos azulejos onde ela estava deitada.

Era loira, graças à L’Oréal: os restos do kit de tintura de cabelo estavam espalhados pela pia, e luvas de plástico manchadas, no lixo. E o cabelo fora alisado – graças ao secador Conair e a uma escova que tinha fios pretos grudados no meio e fios mais claros nas laterais.

– Maldita Devina – murmurou Ad.

– A fotógrafa já chegou? – gritou um homem de aparência cansada.

Os policiais olharam uns para os outros, como se não quisessem dar a má notícia.

– Ainda não, detetive De la Cruz – disse alguém.

– Aquela mulher me deixa louco – o cara falou, pegando o celular e andando para o outro lado.

Quando os policiais se aproximaram do detetive, como se quisessem assistir à fotógrafa levar uma bronca, Adrian aproveitou o espaço livre no banheiro e ajoelhou-se.

Rezando para não encontrar nada, levantou um pedaço da blusa ensopada.

– Ah, mas que droga...

Por baixo da blusa, a pele clara fora marcada com símbolos que não estavam endereçados àquela mulher, nem aos homens que a encontraram ou à família que lamentaria sua morte.

Era uma mensagem de Devina.

E Ad nunca, nunca permitiria que Jim visse aquilo.

Ad olhou o aglomerado de policiais ao redor do detetive, certificando-se novamente de que o telefonema estava lhe proporcionando um pouco de privacidade. Então passou a palma da mão várias vezes sobre a carne que fora marcada.

Felizmente, ainda restava um pouco vitalidade nas células da pele. Mas a remoção foi vagarosa.

– ... venha aqui agora – gritou o detetive – ou eu mesmo vou tirar as fotos! Você tem quinze minutos para chegar...

Ad franziu a testa, concentrando-se, esforçando-se o máximo que podia. Os símbolos foram esculpidos fundo na pele e pareciam irregulares, como se tivessem sido desenhados com uma faca dentada... ou, mais provável, com uma garra.

– Vamos lá... vamos lá... – ele olhou para trás. A reunião estava terminada, e o detetive estava voltando.

Retirou a mão e levantou-se rapidamente – então lembrou que ainda estava invisível.

– Quem mexeu no corpo? – exclamou o detetive. – Quem mexeu no maldito corpo?

Merda. A camisa ainda estava levantada um pouco acima dos seios. E não era assim que estava antes. E a pele estava avermelhada de um jeito não natural, considerando-se não apenas a etnia da vítima, mas também o seu estado de decomposição. Ainda assim, Ad atingira seu objetivo e isso era mais importante do que qualquer confusão que os humanos teriam para entender o que acontecera.

Que diabos Devina estava aprontando agora?

– Aquela vadia! – Adrian rosnou enquanto caminhava para fora. – Ela vai pagar por isso.

Jim já estava cansado de vigiar o saguão, mas ficou por lá mesmo com o cair da noite. Matthias ainda estava em seu quarto e isso significava que tudo o que Jim podia fazer era esperar.

Assim era a vida de um agente: grandes períodos de inatividade separados por grandes arroubos de uma dança que decidia entre a vida e a morte.

Droga, aquilo era igualzinho aos bons e velhos tempos – que não tiveram nada de “bons” e naquele momento nem pareciam tão velhos, pois a antiga identidade de Matthias não era a única coisa em que Jim estava pensando. Desde que seu novo emprego como anjo tomara conta de sua vida, era como se tudo o que acontecera antes tivesse sido apagado – mas nesta rodada isso não acontecera. Jim podia ter deixado sua outra vida de lado, mas isso não significava que ele não tinha muita história...

Olhando para o teto circular, ele franziu a testa. Matthias estava se movendo.

Um minuto e meio depois, as portas do elevador se abriram e o homem surgiu no saguão, apoiando-se em sua bengala, usando óculos escuros mesmo à noite. As pessoas ao redor notaram sua presença – mas sempre fora assim, como se o poder de Matthias criasse um farol que sinalizava até para os mais desatentos.

Tornando-se visível, Jim entrou no caminho do cara.

– Marcou algum encontro para tarde da noite?

O Ray-Ban virou em sua direção, mas a reação parou por aí.

– Você virou minha babá?

– Pois é, e estou sendo mal pago – Jim acenou para a porta giratória da entrada principal. – Está indo a algum lugar?

– Não, só quero tomar um pouco de ar. Sinto que... – Matthias passou a mão no cabelo. – Estou preso. Não aguento mais olhar para aquelas paredes... O que foi? Por que está me olhando desse jeito?

Antes que Jim pudesse pensar em uma mentira, disse:

– Você parece muito mais humano agora.

– Que merda isso quer dizer?

Jim deu de ombros.

– Não importa. Posso ir junto?

– Eu tenho escolha?

– Você pode tentar sair correndo.

– Não é legal tirar sarro de um inválido.

– Inválido? Onde?

Matthias soltou uma risada.

– Certo. Faça o que quiser.

Lá fora, a noite estava mais quente do que o normal para essa época do ano e um grosso nevoeiro deixava o ar pesado, com sua umidade pairando entre nuvens sobre o asfalto, como se não conseguisse decidir se despejava a água ou não.

Jim tirou seu maço de cigarros do bolso, acendeu um e exalou um fio de fumaça. Com o nevoeiro, os Marlboros e o ressoar de seus passos na calçada, aquela cena podia perfeitamente fazer parte de um film noir... principalmente quando perceberam que havia um grupo de homens seguindo seus passos – ou marchando, como parecia o caso.

Mas. Que. Diabos?

Todos os seis cretinos vestiam roupas de couro, o que poderia indicar que eram góticos... mas a maneira como andavam atrás de seu líder tinha um ar de militar profissional.

Quando o grupo passou por eles, Matthias e Jim se puseram de lado, e o líder lhes lançou um olhar.

Realmente era um filho da puta mal encarado, com os olhos cheios de agressividade.

Hum... em sua antiga vida, Jim poderia até considerá-los candidatos para recrutamento. Pareciam capazes de matar qualquer coisa ou qualquer pessoa em seu caminho, principalmente o cara da frente.

Mas Jim já não era o mesmo. E tinha esperança de que Matthias também não fosse.

– Lembrei de uma coisa – disse seu antigo chefe, quando ficaram novamente sozinhos na calçada.

– Lembrou?

– Apenas coisas pessoais. Nada em que eu estivesse interessado.

Quando o silêncio se tornou tão pronunciado quanto o nevoeiro, Jim deu outro trago no cigarro e falou, enquanto exalava a fumaça:

– Está esperando que eu preencha o silêncio?

– Você é quem quis vir junto. Podia pelo menos fazer alguma coisa útil.

– E eu pensando que estava aqui só pra deixar a paisagem mais bonita.

– Não pra mim, cara – quando Jim não respondeu, Matthias virou o olhar em sua direção. – Então, estive pensando sobre você.

– Não de um jeito romântico, espero.

– Não, eu costumava gostar de mulheres. Gostar muito.

– Costumava?

Matthias parou e o encarou.

– O que quero saber é...

Da outra ponta do quarteirão, uma figura surgiu na calçada com jeito de quem está acostumado a fazer emboscadas, e a arma que disparou na direção deles quase não fez barulho. Tudo o que Jim viu foi a breve explosão quando a bala saiu pelo cano do silenciador.

Praguejando, ele saltou sobre Matthias e o empurrou para um beco. Sua força de seus cem quilos levantou o homem no ar e os dois voaram juntos até atingirem o chão como se estivessem em câmera lenta. No meio da queda, e com perfeita sincronização, ambos sacaram suas armas, miraram no atirador e puxaram o gatilho – e então Jim girou o corpo para cair no pavimento por baixo de Matthias servindo como colchão para o outro.

Não havia tempo a perder, e ele não precisava dizer isso a seu ex-chefe – claramente, sua preferência por mulheres não era a única coisa que Matthias lembrava. Em um piscar de olhos ele já estava de pé e pronto para se proteger atrás de um carro que estava a uns três metros de distância.

Mais tiros foram disparados na direção deles, ricocheteando no pavimento, na porta e no pneu do carro. O atirador os seguiu e se manteve nas sombras enquanto se aproximava.

Esse tipo de movimentação esquiva também era um indicativo. O agressor chegou sem fazer barulho, e não só porque usava uma arma com silenciador igual à de Jim: não havia som dos passos nem respiração pesada; aquela pessoa era um assassino treinado, acostumado com aquele tipo de situação.

Um agente das Operações Extraoficiais, pensou Jim. Tinha que ser.

Praguejando novamente, olhou ao redor à procura de opções. O carro não era bom o suficiente para dar cobertura, pois tinha um tanque de gasolina – Jim sabia o quanto poderia aguentar, mas não sabia bem como Matthias se encaixava nessa coisa de voltar dos mortos, e uma explosão de um carro não seria a melhor maneira de testar.

Agarrando um dos braços de Matthias, ele ajudou o cara a correr para trás do carro – que, por pura sorte, estava estacionado em frente à entrada de serviço do hotel, com duas portas de metal no meio de um muro de tijolos. Jim foi direto para a maçaneta e tentou girar.

Obviamente estava trancada.

Mas que se dane. Ele sabia o que tinha de fazer.

Lançando uma rajada de energia no metal, ele explodiu o mecanismo da tranca e, usando o ombro, empurrou a porta. Quando ela cedeu com um rangido, Matthias congelou, como que condicionado pelo medo.

Ele arrastou o homem para dentro e voltou a fechar as portas. Ajudando-o a ficar de pé, lançou outra rajada de energia, desta vez mais longa e forte, e soldou rapidamente a porta, para que ganhassem um pouco de tempo para a fuga.

A boa notícia era que funcionou – e seu ex-chefe estava ocupado demais checando a munição para notar o truque mágico.

Com a bengala em uma das mãos e a arma na outra, Matthias recobrou a consciência.

– Por aqui – gritou, como se estivesse no controle. – Tem que ter uma saída.

Jim não contestou a liderança e voltou a apoiar o cara. Enquanto percorriam o caminho, manteve um olho na retaguarda.

Não era preciso ser um gênio para saber quem era o alvo. Matthias era o antigo chefe das Operações e havia “morrido”. O procedimento padrão era confirmar visualmente a morte, mas ninguém pudera fazer isso, já que Isaac Rothe se livrara dos restos mortais.

De algum jeito, eles descobriram que Matthias estava bem vivo e perambulando por Caldwell.

Talvez Devina tivesse um “contato” na organização.

– Você trancou a porta atrás de nós? – Matthias grunhiu.

– Sim – e provavelmente o assassino teria dificuldade em...

A explosão foi rápida e precisa, pouco mais do que um lampejo de luz. E então a porta rangeu mais uma vez e o agente surgiu no corredor.

À frente, Jim não encontrou nenhuma porta. Apenas o longo corredor que se estendia até onde podia enxergar.

Como se tivessem o mesmo cérebro, Matthias e ele se viraram e apertaram o gatilho, disparando tudo que tinham. Tiros, deles e do agente, ricochetearam por toda parte – e nem é preciso dizer que Jim se posicionou na frente de Matthias, usando o próprio corpo como escudo.

Alguns tiros o acertaram e a dor foi desagradável, mas nada que pudesse matá-lo ou desviar sua atenção. E então, a munição da dupla acabou.

O mesmo aconteceu com o agente.

Houve uma breve calmaria, que claramente estava sendo usada pelo agente para recarregar, e Jim não tinha escolha a não ser correr novamente. Feitiços de proteção eram ótimos contra os lacaios de Devina, mas não eram muito eficazes contra tiros reais. Então, usando o corpo como escudo, escolheu um lado do corredor e correu como um louco. E enquanto passavam por pilhas de cadeiras do restaurante, Matthias ajudou como pôde – mas, com sua deficiência nas pernas, era melhor que ficasse parado e se deixasse carregar pelo chão.

Afinal, não tinham tempo para discutir se aquilo feria a dignidade de Matthias ou não.

Percorreram três metros e então Jim percebeu que não havia mais tiros.

Nenhum profissional demoraria tanto para recarregar. O que diabos estava se passando?

Naquele instante, sentiu a presença de Devina, tão perceptível quanto uma sombra passando por sua própria tumba.

Que merda fantástica.


CAPÍTULO 19

– Vamos lá, Monty, você precisa me dar alguma coisa.

Diferente dos outros repórteres na cena do crime, Mels não ficou no meio da confusão em frente à fita amarela que isolava a porta entreaberta do quarto. Ela estava do outro lado, em meio ao nevoeiro que surgiu de repente junto com seu velho amigo Monty, o Boca. Monty era um bom policial, mas o que o tornava muito útil era seu ego. Ele adorava contar detalhes dos crimes só para mostrar que podia, e isso era muito conveniente.

Mas aquela noite era diferente, pois a história era sua – dessa vez Mels não estava juntando informações para outra pessoa.

Ela se aproximou.

– Eu sei que você sabe o que tá acontecendo.

Monty ajeitou o cinto e passou a mão no cabelo cheio de gel. Aquela figura parecia saída de outra época. Se raspasse a cabeça e tivesse um pirulito na mão, ficaria a cara do Kojak.

– Pois é, fui um dos primeiros a chegar. Você sabe, na cena do crime.

O problema com Monty era que ele fazia você se esforçar pelas informações.

– Quando você foi chamado?

– Duas horas atrás. O gerente ligou para a emergência e eu era o policial mais próximo do local. O cara que alugou o quarto pagou por apenas um período de uma a cinco horas, mas já tinham se passado nove horas e ninguém tinha feito o check-out na recepção. Eu bati na porta. Ninguém respondeu. O gerente usou sua chave e... bom, lá estava.

– O que você acha que aconteceu? – era importante usar o pronome você.

– Era sabido que ela era uma prostituta, então há três possibilidades.

Depois de uma pausa, ela completou o raciocínio, como já era o costume entre eles.

– Um cafetão, um desconhecido ou um namorado ciumento.

– Nada mal, nada mal – ele ajeitou novamente o cinto. – A porta não foi arrombada. Claramente houve resistência, já que as roupas dela estavam amarrotadas. Mas nem tudo parecia ser um caso do beco azul.

“Beco azul” era uma referência a um corredor pelo qual, por gerações, os policiais levavam suspeitos para dar entrada na delegacia. Com o tempo, o termo se tornou um código para casos criminosos sem nada de anormal ou de inesperado.

– E a surpresa foi...?

Monty aproximou o rosto, como se estivesse prestes a contar um segredo.

– Ela tinha acabado de pintar o cabelo. Por alguma razão, isso fez parte do programa. Deixou o cabelo loiro e liso. E então ele a matou.

– Como sabe que era um “ele”?

Monty lançou um olhar descrente.

– E, não, não posso dar o nome dela. Ainda não foi divulgado porque estamos procurando a família. Mas eu sei quem ela era, e ela tem sorte de ter sobrevivido os últimos dois anos. Sua ficha é longa e tem muita violência... e ela como agressora.

– Certo, bom, você me liga se puder contar mais alguma coisa? Eu não divulgo minhas fontes, você sabe disso.

– Sim, nisso você é boa, mas, sem ofensa, você não cobre muito esse tipo de crime. Escuta, você não pode me colocar em contato com seu amigo Tony? Geralmente é ele quem faz esse tipo de show.

Naquele momento, ela perdeu um pouco do respeito por Monty, e não por ele desdenhar da falta de credenciais dela com o Correio de Caldwell. Pelo amor de Deus, ele não era nenhum astro do rock, aquilo não era nenhum show e, caramba, será que dava para parar de mexer naquele coldre? Aquilo era uma cena de crime, e a filha, irmã ou namorada de alguém estava morta ali no banheiro.

Ele podia pelo menos ficar um pouco constrangido e se sentir culpado por vazar aquelas informações. Assim como ela estava.

– Dick me passou essa pauta – ela disse.

– É mesmo? Ei, parece que você está evoluindo. E, sim, eu te ligo, desde que não cite meu nome.

– Eu prometo.

– Nos falamos mais tarde – ele acenou para o lado, dispensando-a. – E atenda o telefone quando eu ligar, tenho um pressentimento sobre este caso.

Ela mostrou o celular.

– Eu sempre atendo.

Quando Mels se virou, ela passou a mão na nuca e sentiu os fios de cabelo arrepiados. Olhando ao redor, viu apenas pessoas trabalhando. Policiais. Detetives. Uma fotógrafa passando apressada pela fita. Havia também duas equipes de jornalismo no estacionamento, uma delas gravando e lançando luzes fortes sobre uma jornalista de cabelos morenos.

Mels virou-se completamente. Esfregou a nuca mais um pouco.

Cara, esse nevoeiro estava estranho.

Checando o relógio, pegou o celular e fez uma chamada. Quando alguém atendeu, colocou as mãos em forma de concha ao redor da boca.

– Mãe? Oi, sou eu. Escuta, eu sei que disse que ia chegar cedo, mas ainda estou trabalhando. O quê? Desculpe, não estou escutando... Certo, agora melhorou. Sim, eu... ah, não, não se preocupe. Estou com metade da força policial aqui... – provavelmente não foi a melhor coisa para dizer. – Não, estou bem, mãe. Sim, é um homicídio, mas é um caso grande, e estou contente porque o Dick me passou. Sim, eu prometo. Certo... sim, claro. Escuta, preciso ir... e eu bato na porta assim que chegar em casa.

Ela desligou, achando que não chegaria tão cedo em casa – e estava preparada para esperar o tempo que fosse necessário. O corpo precisaria ser fotografado, a equipe forense viria fazer exames e só então a vítima poderia ser removida.

Mels ficaria até que a polícia terminasse seu trabalho, os jornalistas da televisão fossem embora e qualquer outro repórter tivesse desistido.

Andando até o carro de Tony, enviou uma mensagem de texto ao colega, dizendo que ainda não dera perda total em seu veículo – e que o levaria para almoçar amanhã e o pegaria em casa às oito e meia em seu caminho para o trabalho.

Então ela dobrou o casaco sobre si mesma e sentou no capô do carro.

Imediatamente, Mels se levantou, tensa e olhou para trás. Mas não havia nada além de postes de luz no lado mais distante do longo estacionamento do motel. Ninguém espreitando atrás dela, ninguém mesmo.

Então por que tinha a sensação de estar sendo vigiada?

Massageando a cabeça, ela começou a imaginar se a paranoia de Matthias era contagiosa. Ou talvez aquilo que acontecera entre os dois na cama estivesse embaralhando seu cérebro.

Não importa o que digam sobre amnésia, aquele homem sabia muito bem como usar os lábios...

Por algum motivo, ela não podia acreditar que aquilo tinha acontecido. Mels nunca gostara de encontros casuais, mesmo nos tempos de faculdade – mas, se Matthias não tivesse parado, ela deixaria que as coisas chegassem à sua conclusão natural cheia de nudez.

Que surpresa. Principalmente porque sabia que seria capaz de fazer aquilo de novo.

Se é que teria uma nova chance.


Congelado no corredor do porão do Marriott, com Jim Heron o cobrindo como um cobertor, Matthias sentia-se como um boxeador. Mas não como Muhammad Ali ou George Foreman. Sentia como se fosse um sparring, aqueles caras que servem como parceiros de treino e que os verdadeiros lutadores esmurravam antes de encarar um oponente à altura: sua arma estava descarregada, seu peito arfava, a cabeça girava, estava exausto por toda aquela correria. Pelo menos parecia que não fora atingido pelos tiros.

Mas alguém fora. O cheiro de sangue fresco os perseguia e o som de alguma coisa pingando sugeria um vazamento – e provavelmente não era no encanamento do hotel.

– Fique aqui – ordenou Jim.

Como se fosse uma garotinha?

– Vai se foder.

Juntos, eles marcharam em direção ao atirador incapacitado, com Jim na frente porque ele conseguia andar um pouco mais rápido.

Pouco depois da porta que eles arrombaram, um homem vestindo roupas apertadas pretas estava de costas no chão, com os olhos fixos e dilatados, encarando o vazio. Sua garganta fora rasgada logo abaixo da linha do queixo – as veias e artérias não foram apenas cortadas, mas totalmente abertas, em um corte limpo.

– Que sujeira – murmurou Matthias, que olhava ao redor pensando em como limpar tudo aquilo... e se perguntando quem diabos os salvara.

Enquanto considerava os prós e contras de várias técnicas de descarte de cadáveres, estava ciente de que a morte, o corpo, a violência de ter sido perseguido a tiros, essas coisas pouco o afetaram emocionalmente: aquilo era o trabalho de sempre, nada além de ações práticas que visavam evitar o envolvimento da polícia.

Era assim que ele vivia, pensou. Aquela era a sua praia.

Apoiando-se na bengala, abaixou-se e um de seus joelhos estalou como um galho de árvore.

– Você tem um carro?

– Não aqui, agora, mas posso cuidar disso. Faça um favor e...

Matthias começou a revistar o cadáver, apalpando-o, retirando a munição extra, uma faca e outra arma.

– Certo, certo – Jim disse com a voz seca. – Vou dar uma olhada lá fora pra ver se não tem ninguém na rua.

– Então você também não sabe quem é o nosso bom samaritano?

– Nem ideia.

A porta de metal rangeu novamente quando Jim a abriu e, por uma fração de segundo, Matthias ficou paralisado de medo, o terror congelou seu corpo do coração até os pés. Seus olhos percorreram todas as direções buscando inimigos nas sombras, esperando que saltassem sobre ele a qualquer momento.

Não havia nada.

Resmungando consigo mesmo, voltou a se concentrar e abriu a camisa do homem. O colete à prova de balas tinha pelo menos uma marca de tiro – então ele e Jim não haviam desperdiçado toda a munição. Nada de celular. E, considerando que Jim acabara de sair mas não fora de encontro a uma saraivada de balas, não havia ninguém para dar cobertura àquele soldado.

Sentando-se, Matthias avaliou a porta de metal. No centro, ao redor do mecanismo da tranca, havia uma mancha queimada onde o agressor usara algum tipo de bomba portátil.

De repente, Matthias foi atingido por uma lembrança, na qual enxergou as próprias mãos segurando um detonador de uma bomba improvisada. Ele a preparara para atingir a si próprio: era uma combinação de circuitos eletrônicos e explosivos que serviriam como rota de fuga da sua vida...

Jim estava errado. Ele não odiava a si mesmo ou o que se tornara. Estava apenas exausto de ser quem era.

E ele era o...

A dor de cabeça surgiu com força, como se o cérebro tivesse uma cãibra: a dor limpou seus pensamentos e as memórias foram bloqueadas novamente pela agonia.

Merda, ele queria acesso ao que estava escondido, mas não podia arriscar ficar indefeso debruçado sobre um cadáver.

Baixando os olhos até o rosto do morto, se forçou a parar de pensar na amnésia e notou a mudança na cor da pele do cara: a vermelhidão causada pelo exercício era substituída por um cinza opaco. Acompanhando o processo da morte e concentrando-se apenas nisso, ele conseguiu voltar à realidade.

– Eu conheço você? – perguntou ao cadáver.

Parte de si estava convencida de que sim. O rosto pertencia a um jovem de pele clara, magro por falta de gordura no corpo, pálido por falta de sol, como se estivesse acostumado a trabalhar à noite. Por outro lado, quantos milhões de caucasianos na casa dos vinte anos existiam por aí?

Não, pensou, ele conhecia aquele garoto de algum lugar.

Na verdade, sentia que escolhera aquele filho da puta.

Será que ele participava de algum recrutamento? Para os militares?

Jim voltou ao corredor, fechou a porta e se recostou nela, cruzando os braços em cima do peito e parecendo querer socar uma parede.

– Estamos sozinhos? – perguntou Matthias.

– Eu diria que sim.

Abruptamente, notou os furos na camisa de Jim.

– Ainda bem que você também está usando colete à prova de balas.

– O quê?

Matthias franziu a testa.

– Você foi atingido...

De uma só vez, seu cérebro cuspiu outro pedaço do passado: viu os dois em uma sala forrada de aço inoxidável, um corpo gelado deitado em uma maca entre eles, uma arma levantada, um gatilho sendo acionado... na direção do maldito Heron. E foi Matthias quem atirou.

– Eu atirei em você em um necrotério – Matthias soltou. – Eu atirei em você... bem no meio do peito.


CAPÍTULO 20

Que sincronia perfeita, pensou Jim enquanto Matthias o encarava como se tivesse brotado um chifre no meio de sua testa.

Não era uma boa hora para a memória dele voltar a se conectar: claramente, alguém das Operações estava seguindo o rastro de Matthias. Essa era a única explicação lógica para o que acontecera – embora não fosse isso que estava embaralhando seu cérebro.

Evidentemente, Devina salvara seus traseiros.

Ela surgiu, esfaqueou e sumiu. E, como o demônio nunca fazia nada que não fosse para o próprio benefício, Jim ficou imaginando qual seria o motivo daquilo tudo. Talvez nenhum – afinal, se queria influenciar Matthias em sua nova encruzilhada, Devina precisava que ele continuasse vivo.

E Jim obviamente não fizera um trabalho muito bom protegendo o cara.

– Eu atirei em você... – Matthias repetiu.

Jim lançou um olhar do tipo supere-logo-isso.

– E daí? Você quer uma medalha? Vou comprar uma pra você na internet. Mas antes que fique aí todo existencialista, saiba que é pra isso que existe colete à prova de balas, certo?

– Você não estava usando um – Matthias retirou os óculos escuros e estreitou o olhar. – E não está usando agora.

– Certo, estamos num local público com um cadáver cheio de balas que saíram das nossas armas. Você realmente acha que é hora pra ficar de conversa?

– Eu conheço esse cara – Matthias apontou para o morto. – Mas não sei dizer de onde.

– Olha, vou levar o lixo para fora. Se não se importa, dá pra voltar para a droga do seu hotel agora?

– Fale comigo. Ou não vou a lugar nenhum.

Por uma fração de segundo, Jim lembrou-se claramente da razão de sempre chamar o cara de Matthias, o Cretino.

– Que seja. Você era o chefe dele.

– Que tipo de chefe eu era?

Eles não tinham tempo para aquilo.

– Bom, posso dizer que não era do tipo que eu gostava.

– Eu também era seu chefe... não é mesmo? – quando Jim não respondeu, o outro apertou os dentes. – Por que diabos você tá me deixando no escuro? De um jeito ou de outro vou acabar juntando todos os pedaços, e tudo o que você tá fazendo é me deixar cada vez mais nervoso.

Merda. Havia uma possibilidade muito real de o cara não se mover, e Devina poderia voltar – ou, quase tão ruim, a polícia ou os seguranças do hotel poderiam aparecer.

– Certo – Jim disse, frustrado. – Acontece que eu tenho medo que, se você souber, vai acabar no Inferno. Satisfeito?

Matthias recuou.

– Você não parece um religioso fanático.

– Porque eu não sou. Então, podemos parar com essa besteira e começar a nos mexer?

Matthias apoiou-se nos pés, colocou a bengala nos ombros e segurou os calcanhares do cadáver.

– Você não vai conseguir evitar essa pergunta pra sempre.

– Que diabos você está fazendo?

– Vamos lidar com isto juntos.

– Não, não vamos...

O som de sirenes interrompeu a discussão e os dois olharam para a porta ao mesmo tempo. Com sorte, os policiais passariam direto – o som aumentaria e depois diminuiria quando as viaturas começassem a se distanciar...

Não. Alguém devia ter visto ou ouvido alguma coisa e chamado a polícia.

Quando um carro freou no beco, Jim quis sair daquela situação da maneira mais fácil – colocar Matthias em transe, teletransportar o cadáver e jogar uma névoa na mente dos policiais que, naquele exato instante, saíam das viaturas com lanternas nas mãos. Mas o truque mental era difícil de fazer com mais de uma pessoa ao mesmo tempo. E botar fogo no corpo denunciaria sua posição aos policiais.

Com sorte, eles levariam um tempo vasculhando o beco primeiro.

– Fique calado – Jim grunhiu. Então agarrou Matthias pelo tronco, sustentando-o com o ombro, e começou a correr pelo corredor.

– Você... está... de... brincadeira... – Matthias disse, aos pulos, enquanto era carregado.

A sessão de reclamação parecia ter terminado, fosse porque Matthias engolira a língua na correria ou porque seu cérebro fritara de vez. Mas, caramba, pelo menos conseguiram chegar ao final do longo corredor, e dessa vez Jim não precisou esconder a rajada de energia que usou para abrir outra tranca. Irrompendo pela porta, ele...

Oh, merda.

... entrou direto nos fundos de um dos restaurantes do hotel.

A boa notícia era que parecia ser uma instalação usada apenas para o café da manhã e almoço; o lugar parecia uma cidade fantasma, os balcões de aço inoxidável da cozinha estavam limpos e prontos para o próximo turno. Infelizmente, o arrombamento disparou o alarme de segurança e luzes vermelhas começaram a piscar por toda parte.

– Por ali – Matthias disse, apontando para um conjunto de portas duplas com janelas redondas. – E me ponha no chão.

Jim soltou o cara e ambos voltaram a andar, passando por um fogão tão longo quanto um campo de futebol e por uma pia grande o suficiente para dar banho em um elefante. Enquanto seus passos ecoavam no chão de ladrilho vermelho, Jim olhou ao redor em busca do controle do alarme. Que, claro, não estaria bem visível no meio daquela cozinha enorme. Além disso, mesmo se ele pudesse desligar o alarme, o sinal já fora enviado para alguma central.

Passando pelas portas duplas, entraram em um salão cheio de mesas quadradas esperando por esfomeados que só apareceriam dali a sete horas.

No lado mais distante, as grandes janelas de vidro vermelho que separavam o restaurante do saguão principal mostravam um trio de pessoas correndo – provavelmente seguranças do hotel.

Ele e Matthias olharam para a esquerda, onde cortinas que iam do chão ao teto cobriam grandes janelas duplas de estilo antigo.

Sem discussão, partiram para a única saída disponível. E, para o crédito de Matthias, ele não tentou bancar o herói quando chegaram ali; parou pouco antes e deixou Jim cuidar da tranca usando a alça de bronze da janela.

Jim usou mais do que o peso de seu corpo para abrir a janela. Usou seu poder mental, e a janela abriu com um estalo, como se estivesse se soltando de uma tintura recém-seca.

Era uma queda de quatro metros até o chão.

– Merda – disse Matthias. – Você vai ter que me pegar.

– Sim, senhor.

Com um impulso coordenado, Jim jogou-se nas mãos frouxas da gravidade. Aterrissou com firmeza em suas botas de combate e deixou os braços levantados. O pulo de Matthias seria mais complicado, parecia que ele tinha dificuldade para dobrar as pernas, mas o cara era esperto. Ele agarrou a janela e a fechou pelo lado de fora, mesmo com seu traseiro quase não cabendo no parapeito.

Quando deixou o corpo cair em queda livre, sua jaqueta preta se agitou inutilmente, como se fosse um paraquedas que levara um tiro.

Jim agarrou seu ex-chefe com um grunhido, impedindo que ele atingisse o chão.

– Encontraram nosso amigo – Matthias disse enquanto se recompunha.

De fato, do outro lado do edifício, os policiais haviam aberto aquela porta dupla e entrado no corredor. Suas lanternas se refletiam pelo beco, como se estivessem vasculhando ao redor do cadáver.

Hora de virar fantasma.

Movendo-se o mais rápido e silenciosamente que podiam, os dois tomaram a direção oposta. Diferente das Operações Extraoficiais, cobertura era o procedimento padrão da polícia de Caldwell e, como já esperavam, mais sirenes ecoaram pela noite.

Pouco mais de cinquenta metros depois, eles pararam no outro canto do hotel, olharam ao redor e saíram do beco, com o máximo de calma que conseguiam fingir.

– Tire os óculos – Jim disse enquanto focava a calçada à frente.

– Já tirei.

Jim olhou para seu ex-chefe. O homem estava com o queixo erguido e olhava diretamente para a frente. Seus lábios estavam entreabertos e ele respirava como um trem de carga, mas ninguém perceberia, a menos que procurassem especificamente por sinais de falta de ar.

Até onde as pessoas podiam notar, os dois eram apenas amigos que haviam saído para um passeio, longe de estarem ligados a qualquer acontecimento estranho.

Jim ficou com muita vontade de dizer ao seu antigo chefe que o cretino fizera um bom trabalho. Mas aquilo seria ridículo. Os dois foram treinados pelo mesmo sargento, passaram anos exercitando técnicas de evasão lado a lado e estiveram em muitas variações desse mesmo cenário.

Quando entraram no saguão, Matthias já estava respirando normalmente.

Nem é preciso dizer que o cara continuaria hospedado no Marriott. Agora que a tentativa de fuga não só fora frustrada, mas também acabara envolvendo a polícia, uma nova tentativa seria mais arriscada e complicada, pelo menos nos próximos dias.

Além disso, depois de conhecerem aquela cozinha de primeira...

Seria uma pena não experimentar o almoço.


A persistência de Mels foi recompensada... de um jeito triste.

As equipes de reportagem foram embora depois da meia-noite, e então os policiais começaram a deixar o local. Até Monty foi embora antes dela. Finalmente, restaram apenas a equipe forense, dois detetives e Mels.

A fita de isolamento da polícia foi diminuindo cada vez mais à medida que as pessoas iam embora, e Mels também foi se aproximando cada vez mais da porta aberta do quarto do motel. Então, quando chegou a hora de remover a vítima, ela teve uma visão clara do procedimento. Dois homens entraram com um grande saco preto e, por causa do espaço pequeno no banheiro, tiveram que colocar o saco na sala e carregá-la para fora.

Pobre garota.

– É, foi terrível.

Mels virou-se, sem saber se tinha falado em voz alta. Um cara alto e de aparência assustadora estava atrás dela – era um típico mal-encarado com piercings no rosto e uma jaqueta de motoqueiro. Mas sua expressão parecia denunciar um coração partido, o que imediatamente fez Mels mudar de opinião quanto ao sujeito. Ele não estava prestando atenção nela; encarava a garota morta cujo corpo estava sendo arrumado para entrar naquele grande saco preto.

Mels voltou a olhar para a cena.

– Sinto pena do pai dela.

– Você o conhece?

– Não. Mas posso imaginar o sofrimento – por outro lado, talvez o cara não tivesse sido um bom pai e isso fosse um dos motivos para a garota ter entrado naquela vida. – É só que... ela um dia foi só um bebê. Deve ter havido alguma inocência em algum ponto.

– Espero que sim.

A curiosidade fez Mels avaliar novamente o cara.

– Você está hospedado aqui?

– Sou apenas um espectador – o homem suspirou com uma curiosa aparência de derrota. – Cara, eu odeio a morte.

Naquele momento, por alguma razão, Mels pensou em seu pai. Ele também fora removido daquele acidente em um saco plástico – depois de as ferramentas de corte hidráulico terem cortado caminho até o banco do motorista.

Será que agora ele estava no Céu? Olhando-a lá de cima? Ou seria a morte realmente o apagar definitivo das luzes, como um carro sendo desligado ou um aspirador fora da tomada?

Bom, não havia vida após a morte para eletrodomésticos. Então, por que os humanos achavam que seu destino seria diferente?

– Porque é, sim, diferente.

Ela olhou por cima do ombro e sorriu sem jeito.

– Desculpa, não percebi que falei em voz alta.

– Tudo bem – o cara sorriu um pouco. – E não há nada de errado em ter fé e esperança de que seus entes queridos estejam em paz em algum lugar. Na verdade, a fé é uma coisa boa.

Mels voltou a olhar o quarto do motel, pensando que era estranho ter esse tipo de conversa com um total estranho.

– Mas eu queria ter certeza.

– Ah, mas você é uma repórter, então vazaria a informação.

Ela riu.

– Então a existência do Céu e do Inferno é um segredo?

– Exatamente. Os humanos precisam de duas coisas para criar vínculos verdadeiros entre si: a escassez e o desconhecido. Se as pessoas que amamos vivessem para sempre, talvez não déssemos importância para sua presença, e se soubéssemos com certeza que iríamos nos reencontrar, nunca sentiríamos falta delas. É tudo parte do plano divino.

Então ele era um maluco religioso.

– Bom, isso faz sentido.

Eles se afastaram quando os policiais pegaram as alças do saco plástico e começaram a retirar a vítima. Enquanto a sombria procissão passava, Mels começou a entender a razão de Dick ter lhe passado aquela pauta. Uma garota morta, uma cena macabra, as ruas perigosas de Caldwell, blá, blá, blá. Ele era simplesmente o tipo de cretino que revidaria por Mels tê-lo esnobado tantas vezes.

E a verdade é que aquilo a deixou realmente abalada, como qualquer pessoa com uma consciência ficaria. Mas ela faria seu trabalho mesmo assim.

Inclinando-se para a porta, ela falou com o homem que estava no comando:

– Detetive De la Cruz? Você poderia dar uma declaração?

O detetive levantou os olhos de seu bloco de anotações antiquado.

– Você ainda está aqui, Carmichael?

– É claro.

– Seu pai ficaria orgulhoso, você sabe disso.

– Obrigada, detetive.

Quando se aproximou, o detetive nem sequer olhou para o grande homem que estava ao lado dela; mas De la Cruz era assim mesmo. Não se perturbava com quase nada.

– Não tenho nada para dizer ainda. Desculpe.

– Nenhum suspeito?

– Sem comentários – ele apertou o ombro dela. – Diga “oi” para sua mãe, certo?

– E quanto à cor do cabelo?

Ele apenas acenou e continuou andando, entrou no seu velho Ford cinza e dirigiu para fora do estacionamento.

Quando o último policial trancou a porta do quarto e colocou a fita de segurança, Mels virou-se para o homem atrás dela...

Sumiu. Como se nunca tivesse estado ali.

Estranho.

Andando até o carro de Tony, ela ainda podia jurar que estava sendo seguida, mas não havia ninguém por perto. A sensação persistiu enquanto dirigia para casa, ao ponto de ela se perguntar se paranoia poderia ser um vírus contagioso.

Matthias com certeza estava nervoso, mas ele tinha razão para estar. Ela com certeza não tinha.

Mels tomou o caminho mais curto para casa e, quando passou pelo cemitério novamente, decidiu fazer um pequeno desvio.

Parou em uma rua onde cada garagem possuía dois postes de luz brilhando em cada lado da porta. Com exceção desse rancho em particular, que tinha as luzes apagadas, tanto fora como dentro, como um buraco negro em meio a uma rua cheia de casas ocupadas e iluminadas.

Ela aproximou a mão da porta do carro, querendo dar uma olhada ao redor, espiar dentro das janelas, talvez encontrar uma porta aberta para entrar na garagem. Mas, assim que tocou a maçaneta, uma onda de pavor tomou seu corpo, como se aquela sensação de estar sendo vigiada tivesse se transformado em um bicho papão real prestes a pular nela com uma faca.

Mels deu um tempo para que o medo passasse, caso fosse apenas uma indigestão do hambúrguer com batata frita que comera no Marriott, mas quando a sensação não passou, ela engatou a primeira marcha e deu meia volta com o carro.

Provavelmente o culpado era o nevoeiro que ainda pairava no ar.

Sim, tinha de ser isso – um nevoeiro de cinema, que fazia a noite parecer ainda mais escura e perigosa do que realmente era.

Acelerando, ela trancou a porta e segurou firme o volante.

Não relaxou enquanto não entrou na garagem da casa de sua mãe, com os faróis do carro de Tony iluminando a casa em que crescera.

Por alguma razão, ela observou as janelas duplas no segundo andar. Aquelas que ficavam no parapeito de seu quarto.

Seu pai consertara aquelas janelas quando ela tinha dez anos: depois que um vendaval as arrancou completamente, ele usou uma brilhante escada de alumínio e carregou os pesados painéis de madeira para cima, equilibrando-os no beiral, apertando os parafusos, deixando tudo novo em folha.

Ela segurara a base da escada só porque queria fazer parte daquilo. Não estava preocupada que ele fosse cair. Ele parecia o Super-Homem naquele dia.

Na verdade, em todos os dias.

Mels pensou naquele estranho no motel, aquele maluco religioso cheio de piercings. Talvez aquela teoria da escassez e do mistério estivesse certa em se tratando de algumas pessoas. Mas se ela soubesse com certeza que seu pai estava bem, conseguiria encontrar um pouco de paz para si mesma.

Engraçado, até aquela noite não havia percebido que talvez precisasse disso.

Afinal, desde que ele se fora, ela vinha se esforçando para não pensar muito nas coisas.

Era doloroso demais.


CAPÍTULO 21

Por volta das cinco da manhã, Jim estava no quarto de Matthias no hotel Marriott, sentado em uma cadeira no canto, encarando a televisão sem som. Duas horas antes, ele recebera uma mensagem de texto de Ad informando que a repórter estava segura na casa de sua mãe e que o anjo checaria se estava tudo bem com Eddie e deixaria o Cachorro sair um pouco. A próxima mensagem chegou 45 minutos depois: Ad ia tirar um cochilo.

Ao lado, na cama de casal, Matthias dormia sobre as cobertas como uma pedra, deitado de costas, cabeça no travesseiro, mãos cruzadas sobre o peito. Só faltava uma rosa branca entre os dedos e o som de um órgão de igreja para que Jim começasse a prestar suas condolências.

Por que diabos Devina ajudara os dois?

Droga, a única coisa pior do que ela atacando era ela o salvando. E Jim não precisava daquele resgate. Ainda tinha truques na manga, caramba. Estava prestes a fazer um grande show de luzes.

Talvez ela estivesse tentando puxar o saco do Criador.

O que seria algo muito irritante...

A edição das cinco da manhã do programa Wake Up, Caldwell! começou com uma repórter cobrindo uma cena de crime no centro da cidade. A mulher, que estava em frente a um motel, virou e apontou para um quarto aberto onde policiais entravam e saíam. Então o vídeo cortou para uma caixa de tintura de cabelo e depois para a foto de uma mulher com cabelo tingido.

Havia tanto pecado no mundo, pensou Jim.

E, pensando nisso, lembrou que precisava de mais munição.

Quando um comercial de salsicha apareceu, seu estômago roncou e ele quase pegou o telefone para chamar o serviço de quarto.

– Você pode pelo menos dizer qual é o meu nome?

Jim olhou para a cama. Os olhos de Matthias estavam abertos, mas ele ficou estático, como uma cobra enrolada ao sol.

– Sempre conheci você como Matthias.

– Fomos treinados juntos, não é? Ontem nós usamos exatamente os mesmos movimentos, ao mesmo tempo.

– Pois é.

Sentindo aonde ele queria chegar, Jim pegou seu maço de cigarros, puxou um entre os dentes e então lembrou que estava em um local público. E não seria irônico se fossem expulsos do hotel por acender um cigarro, sendo que o invadiram pelos fundos, abriram fogo, deixaram um corpo e fugiram dali?

É, seria muito engraçado.

Jim voltou a olhar para a televisão, que agora passava um comercial de desodorante. Por uma fração de segundo, invejou os caras na propaganda: tudo o que tinham para se preocupar eram suas axilas, e, desde que usassem Speed Stick, não precisariam se preocupar com nada.

Se pelo menos a solução para Devina também viesse em spray ou em bastão...

– Conte como eu me matei – quando Jim não respondeu, o outro homem disse: – Por que você tá com medo de falar sobre isso? Você não parece ser um covarde.

Jim esfregou o rosto.

– Sabe de uma coisa? Você devia dormir menos, porque quando está descansado você é um saco.

– Então acho que você é um covarde, sim, afinal de contas.

Jim bufou e soltou ar, desejando que fosse fumaça.

– Certo, sabe o que me preocupa? Que quando você descobrir quem era, vai se tornar aquele homem novamente e eu vou te perder. Sem ofensa, mas essa sua mente vazia é uma benção.

– Você fala como se eu fosse uma pessoa do mal...

– Você era – Jim encarou seu ex-chefe. – Você estava completamente infectado, ao ponto de me fazer concluir que nasceu assim. Mas vendo você do jeito que está agora... – Fez um gesto com as mãos. – É uma surpresa descobrir que não é de nascença.

– Que diabos aconteceu comigo? – Matthias sussurrou.

– Não sei nada do seu passado antes das Operações Extraoficiais.

– Esse era o nome da organização?

– Esse é o nome. E, sim, nós dois treinamos juntos. Antes disso, não sei de nada. Havia rumores sobre você, mas provavelmente eram exageros por causa da sua reputação.

– Que reputação?

– Diziam que você era um sociopata – o homem praguejou baixinho e Jim deu de ombros. – Escuta, eu também não era nenhum santo. Não antes de entrar, e com certeza não enquanto eu estive lá. Mas você... estabeleceu um outro nível. Você era... algo mais.

Houve um período de silêncio. Então, Matthias disse:

– Você ainda não está falando nada específico.

Jim esfregou os cabelos e pensou. Bem, que inferno, havia tanta coisa para escolher.

– Certo, que tal isso: havia um homem, o coronel Alistair Childe. Esse nome traz alguma lembrança? – quando Matthias balançou a cabeça, Jim realmente desejou que estivessem lá fora, para poder acender um cigarro. – Ele era um cara legal, tinha uma filha que era advogada. O filho tinha problemas com drogas. A esposa morreu de câncer. Morava em Boston, mas trabalhava bastante em D.C. Ele chegou perto demais.

– Perto demais do quê?

– Da firma, digamos assim. Você mandou sequestrarem e levarem ele para a casa onde o filho se drogava. Seus agentes encheram o garoto até ele ter uma overdose de heroína e filmaram Alistair gritando enquanto o filho espumava pela boca até morrer. E você pensou que fez um favor para o cara, porque, nas suas próprias palavras, usou o filho que já estava perdido. A ameaça, é claro, era que, se Childe não se afastasse, você mandaria matar sua filha também.

Matthias não se moveu, mal respirava, apenas piscava. Mas sua voz foi o que o denunciou. Rouca e áspera, mal conseguiu pronunciar as palavras.

– Não me lembro disso.

– Você vai lembrar. Em algum momento. Vai se lembrar de muitas outras merdas como essa... e coisas que eu provavelmente nem faço ideia.

– E como você sabe tanto?

– Sobre o caso do Childe? Eu estava lá quando você foi atrás da filha.

Matthias fechou os olhos e seu peito subiu e desceu devagar, como se houvesse um grande peso em cima dele.

Isso deu um pouco de esperança para Jim. Talvez a revelação o afastasse um pouco mais do pecado.

– Se isso é verdade, posso entender por que está preocupado com minha bússola moral.

– É a mais pura verdade. E, como eu disse, tem muito mais.

Matthias limpou a garganta.

– Então, como exatamente isso aconteceu?

Matthias apontou para os olhos e Jim começou a relembrar o passado que compartilhavam.

– Eu quis sair, mas não existe aposentadoria das Operações, e você era o único que podia me exonerar. Nós discutimos sobre isso, e então você apareceu onde eu estava numa missão no deserto. Você disse pra eu te encontrar sozinho à noite num lugar muito longe do acampamento, e eu achei que era o fim, tudo estava acabado pra mim. Mas você estava sozinho. Olhou nos meus olhos quando levantou o pé e pisou na areia. A explosão... foi direcionada pra cima, não pra fora. Você não queria me acertar, e não foi um acidente – memórias daquela cabana, da areia áspera em seus olhos e da fumaça em seu nariz voltaram rápido e com força. – Depois de tudo, eu carreguei você pra fora e te levei pra onde teria ajuda.

– Por que não me deixou para morrer?

– Eu não aguentava mais jogar segundo suas regras. Era hora de o poderoso chefão não conseguir o que queria.

– Mas se você desejava sair e, se eu tivesse me matado... quem iria atrás de você? Se isso for mesmo verdade, você estaria livre.

Jim deu de ombros.

– Eu estava numa posição ideal. Você não queria que as pessoas soubessem que tentou suicídio, então eu tinha o melhor dos dois mundos. Eu estava livre e você passaria o resto da vida todo quebrado e morrendo de dor.

Matthias riu de repente.

– De um jeito estranho, eu até respeito isso. Mas não entendo por que está me ajudando agora.

– Mudei de emprego – Jim pegou o controle remoto. – Olha, nós saímos no jornal!

Quando colocou som na televisão, um apresentador diferente dava informações sobre um corpo que fora encontrado, veja só, bem onde eles estiveram naquele corredor de serviço. Não havia suspeitos. Não havia documento com a vítima – e boa sorte com isso. Mesmo que encontrassem algo, as identidades falsas das Operações Extraoficiais eram impenetráveis. Além disso, o legista não teria muito tempo: o corpo desapareceria do necrotério a qualquer instante – se é que já não fora removido.

Seria apenas mais um caso não resolvido que ficaria perdido num arquivo da polícia.

– Que tipo de trabalho você faz agora? – perguntou Matthias.

– Sou um trabalhador autônomo.

– Isso ainda não explica por que está ajudando um homem que odeia.

Jim o encarou e pensou em tudo o que Matthias representava na guerra contra Devina.

– Agora... eu preciso de você.


Arrumando-se para o trabalho, Mels quebrou uma unha enquanto se vestia e derramou café na blusa. E, como falta de sorte vem sempre em três, ela continuava com a sensação de estar na lista de algum assassino, mas pelo menos sua mãe estava na aula de ioga – e isso significava que podia sair sem ter de conversar muito.

À vezes, conversar com sua mãe sobre o trabalho era difícil. Ela não precisava ouvir os detalhes do que acontecera com aquela garota no motel.

Não era um assunto para o café da manhã.

Além disso, Mels não estava com vontade nenhuma de conversar. A noite fora longa, principalmente porque escrevera o artigo sobre o assassinato ainda na madrugada, para que o editorial pudesse postar a notícia primeiro na versão on-line. E hoje se concentraria em conseguir mais informações para escrever um artigo mais detalhado para a edição impressa de amanhã.

Com sorte, Monty não aguentaria e ligaria para ela, deixando aquela boca dele fazer sua parte.

No caminho para pegar Tony, ela ficou presa na fila do drive-thru no McDonald’s, pois não queria de jeito nenhum aparecer na casa dele sem um café da manhã. Finalmente, com dois pãezinhos de salsicha em uma sacola e um par de copos cheios de café, Mels voltou para as ruas no Toyota emprestado.

Quando estacionou o carro em frente ao prédio dele, o cara se levantou dos degraus da escada frontal e desceu correndo, seu grande corpo fazendo-o parecer mais alto do que era.

– Eu já disse ultimamente o quanto eu te amo? – ela perguntou enquanto Tony entrava no carro.

Tony abriu um grande sorriso.

– Se isso é café da manhã, então sim, você disse.

– Comprei dois pãezinhos e um café pra você – ela entregou a sacola. – O outro café é pra mim.

– Melhor do que um par de brincos – ele desembrulhou um dos pacotes. – Hum... comestível...

– Eu queria agradecer de verdade por você ter emprestado o carro.

– Ah, nem preciso tanto assim dele. Desde que consiga ir e voltar do trabalho, pra mim está bom – enquanto mastigava, ele franziu a testa e pegou um recibo no cinzeiro. – Você esteve no Marriott ontem?

Mels ligou a seta para a esquerda e entrou no trânsito, desejando que seu amigo não fosse um observador tão bom.


– Ah, sim, estive.

– Que horas?

Mels manteve os olhos na rua, reconhecendo a “voz de repórter” que seu amigo estava usando.

– Ontem à noite. Estava só visitando um amigo.

– Então você viu toda a movimentação?

– Movimentação?

– Você não sabe o que aconteceu?

– Fui chamada pra cobrir uma cena de crime do centro da cidade. Do que você tá falando?

– Espera um pouco, você pegou a história da prostituta de cabelo loiro?

– Sim. Então, o que aconteceu no Marriott?

Enquanto Tony levava um milhão de anos pra terminar de mastigar o Mc-Sei-Lá-O-Quê, o estômago de Mels começou a embrulhar. Cara, se ele começasse a comer o segundo pãozinho ela pularia em seu pescoço...

– Aconteceu um tiroteio no porão do hotel. O Eric vai cobrir a história. Teve troca de tiros no beco, e alguém invadiu o prédio pela entrada dos fundos de um dos restaurantes. Ligaram pra central da polícia e os policiais encontraram um homem morto sem identificação e desarmado, com a garganta cortada.

– Mas você não disse que houve tiros?

– Ah, ele foi atingido por tiros, sim. Mas não foi isso que matou ele – Tony fez um gesto como se cortasse a própria garganta. – Cortou de um lado a outro.

Mels sentiu um arrepio.

Porque você vai morrer se não se afastar de mim.

Mels disse a si mesma para se acalmar. Aquele era um hotel grande em uma parte da cidade que era perigosa à noite. Assassinatos acontecem, principalmente entre traficantes e seus clientes.

Tony revirou a sacola para pegar o segundo pãozinho de salsicha.

– Parece que o cara poderia ter morrido por causa dos tiros, mas ele usava um belo colete à prova de balas. Eric disse que os policiais ficaram babando quando viram o colete. Nunca tinham visto um daquele jeito – o gentil som da embalagem branca sendo dobrada foi seguido por um generoso suspiro de satisfação causado por aquela comida não saudável, mas deliciosa. – Então, o que você descobriu ontem à noite? – ele perguntou com a boca cheia.

Mels ignorou uma placa “Pare” e virou à esquerda na rua Trade. Sua mente estava muito longe: Matthias estava se preparando para dormir quando ela foi embora – embora isso não significasse que ele não poderia ter saído depois que ela...

– Olá? Mels?

– Desculpa, o que foi?

– Quando você estava no motel. O que descobriu?

– Ah... certo, desculpa. Não descobri muita coisa. A mulher foi morta depois de ter tingido o cabelo... a garganta dela estava cortada.

– Duas numa única noite. É uma epidemia.

Bom, podia até ser, ela pensou. Ninguém poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo, não é?

Certo, agora ela estava ficando maluca.

– Pois é. Que estranho.

Cinco quarteirões depois, eles chegaram ao prédio do Correio de Caldwell. Mels estacionou e devolveu as chaves para Tony enquanto andavam até a entrada dos fundos.

– Obrigada de novo.

– Como eu disse, pode pedir sempre que precisar. Principalmente se comprar café da manhã pra mim. E pare de colocar dinheiro na minha gaveta quando pegar um chocolate meu. Você tem permissão pra usar minha reserva de comida sempre que quiser.

Tony guardava um monte de comida em sua escrivaninha e ela já era conhecida por beliscar ali de vez em quando. Mas não pegava simplesmente de graça.

Mels segurou a porta aberta para ele entrar.

– Não vou roubar comida de você.

– Mas se eu der permissão, não é roubo. Além disso, você não pega mais do que uns dois bombons e um chocolate por mês.

– Furto é furto.

Eles alcançaram os degraus que levavam à redação, e desta vez foi ele quem segurou aberta a porta de vidro.

– Queria que todo mundo pensasse assim.

– É disso que eu estou falando. Você não tem a obrigação de alimentar todo mundo.

No instante em que entraram, Mels ouviu os telefones tocando, as vozes agitadas, os passos rápidos: tudo isso era uma sinfonia familiar que invadiu seu corpo, carregando-a até sua escrivaninha. Quando sentou, aquele burburinho acalmou a ansiedade que sentia por causa de Matthias, e ela ligou o computador sem sequer pensar no que estava fazendo.

Um envelope marrom foi jogado em sua mesa, assustando-a.

– Tenho algo bonito pra você ver – disse Dick com um sorriso maroto.

Ela pegou o pacote e abriu.

Ficou contente em ter dado os dois pãezinhos para Tony: dentro do envelope estavam as fotos do corpo da prostituta, fotos grandes e em cores mostrando tudo em detalhes.

Dick ficou ao lado, como se estivesse esperando que ela se abalasse, e Mels se recusou a satisfazer seu desejo, mesmo com o peito doendo por causa das imagens... principalmente a que mostrava em detalhes o ferimento na garganta, o corte profundo que atravessou a pele e penetrou os músculos rosa e vermelho, e a cartilagem pálida.

Mels colocou as fotos em cima mesa, fazendo questão de deixar a da garganta virada para cima, e notou que Dick, mesmo com todo aquele jeito machão, não quis olhar para a imagem.

– Obrigada – ela manteve os olhos colados nos dele. – Isso vai ajudar bastante.

Dick limpou a garganta como se tivesse percebido que fora longe demais, mesmo para seus padrões de cretinice.

– Quero ler o artigo detalhado assim que estiver pronto.

– Pode deixar.

Assim que ele sumiu, ela balançou a cabeça. Ele deveria saber que não podia mexer com Mels, sendo filha de quem era.

Na verdade, só o fato de querer dar em cima dela era nojento por si só.

Fez Mels pensar na maneira como Monty tirava proveito da tragédia dos outros.


Franzindo a testa, ela olhou as fotografias novamente, e então se concentrou na que fora tirada no necrotério. Havia uma mancha avermelhada estranha na barriga da vítima, como uma queimadura de sol...

O celular tocou e Mels atendeu sem olhar quem era.

– Carmichael.

– Olá.

A voz profunda despejou um calor que desceu por todo seu corpo. Matthias.

Por uma fração de segundo, ela imaginou como conseguira o número de seu celular. Mas então lembrou que escrevera o número em seu cartão de visitas.

– Ah, bom dia – ela disse.

– Como você está?

Em sua mente, começou uma partida de pingue-pongue entre o que Tony contara no carro e como se sentira ao beijar Matthias. Indo e vindo, indo e vindo...

– Mels, você está aí?

– Sim – ela esfregou os olhos, mas teve de parar, pois um deles ficou irritado. – Desculpa. Estou bem, e você? Lembrou de mais alguma coisa?

– Pra falar a verdade, lembrei sim.

Mels se ajeitou na cadeira e voltou a concentrar-se em uma coisa só.

– Como o quê?

– Será que você se importaria de investigar uma coisa para mim?

– Nem um pouco. Diga o que quer saber – enquanto ele falava, Mels tomava nota e escrevia nomes, aceitando a tarefa. – Certo. Sem problemas. Você quer que eu ligue de volta?

– Sim, por favor.

Houve uma pausa estranha.

– Certo – ela disse, constrangida. – Então, eu te ligo...

– Mels...

Fechando os olhos, ela sentiu aquele corpo pressionando contra o seu, aquela boca tomando a sua, a dominação intrínseca à personalidade dele começando a se manifestar.

– Você sabe o que aconteceu no seu hotel ontem à noite? – ela perguntou, abruptamente.

– Sim. Passei horas pensando em você.

Ela fechou novamente os olhos, tentando lutar contra a sedução.

– A polícia encontrou um cadáver. Que estava vestindo um colete à prova de balas muito moderno.

Outra pausa. Então, ele respondeu:

– Hum. Suspeitos?

– Ainda não.

– Eu não o matei, Mels, se é isso que está perguntando.

– Eu não disse que você matou.

– Mas é isso que está pensando.

– Quem são essas pessoas que você quer checar? – ela interrompeu, desenhando quadrados em volta dos nomes que ele havia passado.

– Apenas coisas que surgiram na minha mente – sua voz se tornou distante. – Olha, eu não deveria ter pedido isso. Vou conseguir as informações de outro jeito...

– Não – ela disse com firmeza. – Vou fazer isso e depois te ligo.

Mels desligou e ficou encarando o vazio. Então levantou e andou até chegar em outro cubículo. Inclinando-se por sobre a divisória, deu um sorriso forçado para um colega que não a conhecia bem o suficiente para perceber a falsidade.

– Oi, Eric, como é que vai?

Os olhos do cara se desviaram do computador.

– Oi, Carmichael. O que posso fazer por você?

– Queria saber sobre o assassinato do Marriott.

O repórter sorriu, como se estivesse orgulhoso de sua pauta.

– Algo específico?

– O colete.

– Ah, o colete – ele buscou em seus papéis em cima da mesa. – O colete, vejamos... – puxou uma folha e entregou para ela. – Encontrei isto na internet.

Mels franziu a testa enquanto lia as especificações.

– Cinco mil dólares?

– É o que custam sem ser personalizados. E o colete dele com certeza foi.

– Quem é que pode pagar tudo isso?

– É exatamente o que estou me perguntando – ele procurou outros papéis. – Grandes empresas de segurança é uma opção. O governo é outra, mas não pra um agente qualquer do FBI. Teria que ser um agente muito especial.

– Tinha algum VIP no hotel?

– Bom, foi isso que tentei descobrir na noite de ontem. Oficialmente, a equipe do hotel não pode divulgar nomes, mas ouvi o gerente da noite falando com um dos policiais. Não havia ninguém de especial sob o teto deles.

– E quanto aos arredores, no centro da cidade?

– Pois é, existem algumas grandes empresas na vizinhança, mas estavam todas fechadas, pois já tinha passado bastante da hora de expediente normal. E não faz sentido que alguém importante estivesse andando em Caldwell e algum de seus seguranças tivesse enlouquecido e entrado no caminho da faca de alguém.

– A que horas aconteceu?

– Perto das onze.

Depois que ela saiu em direção à cena do crime no motel.

– E ninguém tem pistas sobre a identidade?

– Nenhuma. O que nos leva a outra questão interessante – Eric mordeu a ponta de uma caneta Bic. – Não havia impressões digitais.

– Na cena?

– No cadáver. Ele não tinha impressões: foram totalmente removidas.

Os ouvidos de Mels começaram a zumbir.

– Algum outro tipo de identificador?

– Uma tatuagem, aparentemente. Estou tentando conseguir umas fotos dela e do corpo, mas minhas fontes estão meio devagar – ele estreitou os olhos. – Por que está tão interessada?

Colete à prova de balas moderno. Sem digitais.

– E armas?

– Nenhuma arma, alguém deve ter levado – Eric inclinou-se para frente em sua cadeira. – Então, você não está pensando em falar com Dick pra conseguir um lugarzinho nessa história, não é?

– Meu Deus, não. É só curiosidade – ela se virou. – Mas agradeço pelas informações.


CAPÍTULO 22

Quando o telefone toucou meia hora depois, Matthias ficou apenas olhando para a coisa. Provavelmente era Mels retornando a ligação.

Droga, que confusão...

Depois que Jim saiu para tomar café da manhã, ou cuidar de suas coisas, ou fazer seja lá o quê, a primeira coisa que Matthias fez ao ficar sozinho, naturalmente, foi ligar para Mels e tentar descobrir se era verdadeira aquela história sobre o pai e o filho em Boston. Mas ainda não estava raciocinando direito, e nem passou por sua cabeça que ela já tinha ouvido sobre o tiroteio da noite passada. Estava em todos os jornais. Não precisava ser um repórter para saber da merda que acontecera por lá.

O telefone parou de tocar. Mas ela iria tentar de novo.

Deus, a voz dela quando ele telefonou... Mels parecia desconfiada, e por muitos motivos isso era bom para ela. Mas também o deixava triste.

Quando o telefone voltou a tocar, ele não aguentou mais. Pegou sua bengala, saiu do quarto e andou cegamente até um elevador. Começou a descer, sem fazer ideia de onde estava indo. Talvez para o café da manhã.

Sim, café da manhã.

Era o que as pessoas faziam às nove da manhã no país inteiro.

E, é claro, o único restaurante aberto era aquele que ele conhecera intimamente na noite anterior – ao passar pelas paredes de vidro colorido, ele decidiu que sairia do Marriott para...

– Matthias?

Ao ouvir a voz feminina, ele se virou. Era a enfermeira do hospital, aquela que lhe dera uma mãozinha, por assim dizer. Fora do trabalho, ela tinha um frescor de verão, com o cabelo preto solto sobre os ombros e um vestido esverdeado que descia até os joelhos.

Até parecia uma noiva.

– O que você está fazendo aqui? – ela disse quando se aproximou. – Pensei que estaria em casa se recuperando.

Quando as pessoas passavam por ela, os olhares eram inevitáveis: homens com desejo nos olhos, mulheres com vários níveis de inveja e desdém. Afinal, ela era realmente linda.

– Estou bem – ele tentou não olhar demais, pois era como encarar o sol: doía nos olhos. – E você?

– Minha mãe está vindo me visitar. Ou melhor, já deveria estar aqui. O voo dela deveria ter chegado meia hora atrás, mas teve um atraso em Cincinnati por causa das tempestades. Estou decidindo se espero ou se vou pra casa: iríamos tomar café da manhã juntas no restaurante. É pra lá que você tá indo?

– Ah, sim.

– Bom, que tal se formos juntos? Estou com fome.

Seus olhos negros brilhavam com alegria, ao ponto de lembrá-lo de uma noite estrelada. Mas isso não era suficiente para fazê-lo aceitar o convite.

– Sim, vamos – ouviu sua própria voz, como se outra pessoa estivesse controlando sua boca.

Juntos, caminharam até a entrada do restaurante.

– Duas pessoas – Matthias disse, enquanto o recepcionista checava a enfermeira de cima a baixo para depois congelar como um animal na estrada olhando para os faróis de um carro, aparentemente impressionado com toda aquela beleza.

– Gostaria de um lugar perto da janela – ela disse, sorrindo vagarosamente para o cara. – Talvez perto...

Não a janela que ele usara para escapar, pensou Matthias.

– ... daquela ali.

Mas é claro que ela escolheu exatamente aquela.

– Ah, sim, claro, é para já – o recepcionista fez sua parte, conduzindo-os com alguns cardápios debaixo do braço. – Mas temos vistas melhores no salão, que dão pro jardim.

– Não queremos que bata muito sol – ela colocou a mão no braço de Matthias e apertou um pouco, como se quisesse demonstrar que estava preocupada com seu olho ruim.

Cara, ele realmente não gostava que ela o tocasse.

Enquanto andavam pelo salão, a enfermeira criou uma total comoção, com homens olhando por cima dos jornais, das canecas de café e até sobre a cabeça de suas esposas. Ela continuou andando a passos largos, como se aquilo fosse totalmente natural.

Depois de sentarem na frente da janela que ele e Jim haviam violado, o café chegou rápido e eles olharam o cardápio. Aquele ritual civilizado de escolher entre cinquenta tipos de pratos o deixava nervoso. E Matthias não queria comer junto com a enfermeira. Bom, não queria comer com ninguém.

A situação desconfortável com Mels era o problema. Sim, ele ligara pedindo as informações, mas a verdade era que queria apenas ouvir a voz dela.

Ele sentira saudade durante a noite...

– Em que está pensando? – disse a enfermeira suavemente.

Ele olhou através da janela para o prédio do outro lado da rua.

– Acabei de perceber... que ainda não sei o seu nome.

– Oh, desculpe. Achei que estava escrito na ficha do quarto do hospital.

– Provavelmente estava, mas mesmo que estivesse escrito em neon não sei se notaria.

Era mentira, claro. Na verdade, não havia nenhuma enfermeira registrada na ficha, apenas um médico, e cujo uniforme também não tinha um crachá com nome.

O que parecia um pouco estranho, pensando bem...

Ela pousou elegantemente a mão no meio do peito, como se fosse um convite para ele olhar seu decote.

– Você pode me chamar de Dê.

Olhou em seus olhos.

– De Deidre?

– De Devina – ela desviou os olhos, como se não quisesse falar muito sobre seu nome. – Minha mãe sempre foi uma pessoa religiosa.

– O que explica seu vestido.

Dê balançou a cabeça com pesar e ajeitou a saia.

– Como você sabia que eu não me visto assim normalmente?

– Bom, primeiro porque parece um vestido para uma mulher com mais de quarenta anos. A calça jeans e a blusa que usou naquele dia pareciam mais apropriadas pra sua idade.

– Quantos anos você acha que eu tenho?

– Uns vinte e cinco – e talvez fosse por isso que não gostava quando ela o tocava. Ela era muito jovem, jovem demais para um cara como ele.

– Na verdade, tenho vinte e quatro. É por isso que minha mãe vem me visitar – ela tocou o peito novamente. – Meu aniversário.

– Parabéns.

– Obrigada.

– Seu pai também vai vir?

– Ah... então. Não – agora ela se fechou completamente. – Não, ele não virá.

Droga, a última coisa que ele precisava era entrar em detalhes pessoais.

– Por que não?

Ela ficou mexendo na caneca de café em cima do pires, movendo de lá para cá.

– Você é tão estranho.

– Por quê?

– Eu não gosto de falar sobre mim mesma, mas aqui estou eu, falando sem parar.

– Não me contou muita coisa, se isso faz você se sentir melhor.

– Mas... eu quero falar – por um segundo, seus olhos focaram os lábios dele, como se estivesse pensando em fazer coisas de que Matthias realmente não precisava. – Eu quero.

Não. Nem pensar.

Principalmente não depois de Mels, ele pensou.

Dê se inclinou e seus peitos ameaçaram saltar para fora do vestido.

– Não consigo parar de pensar em você.

Ótimo. Que maravilha. Que merda perfeita.

No tenso silêncio que se seguiu, Matthias olhou brevemente para a janela. Já tinha escapado por ali uma vez.

Se as coisas continuassem constrangedoras, poderia tentar de novo.

Mels colocou o telefone na base e se esticou na cadeira do escritório. Quando ouviu o chiado de sempre, fez uma nova musiquinha com o couro, balançando para frente e para trás.

Por alguma razão, seus olhos ficaram encarando a caneca de café que pertencera àquela repórter que trabalhava em seu cubículo.

Quando o celular tocou, Mels pulou e o agarrou. Checou rapidamente quem estava ligando e praguejou – não por causa de quem era, mas por causa de quem não era.

Talvez Matthias estivesse tomando banho.

As pessoas tomam banho pela manhã, não é?

Mas, tipo, por meia hora? Ela estava ligando de cinco em cinco minutos!

– Alô?

– Oi, Carmichael – era Monty, o Boca. Ela sabia por causa do jeito como ele falava. – Sou eu.

Bom, pelo menos ela também queria que ele ligasse.

– Bom dia.

– Eu tenho algo pra contar – sua voz ficou mais baixa, como se fosse um agente secreto falando. – É uma coisa explosiva.

Mels ajeitou-se na cadeira, mas não ficou com muita expectativa. Com sua sorte, “explosivo” devia ser apenas um grande exagero da parte dele.

– É mesmo?

– Alguém adulterou o corpo.

– Como é?

– Como eu disse, fui o primeiro na cena do crime e tirei algumas fotos. Você sabe, como parte do trabalho – ela ouviu algo se mexendo, e então uma conversa aos fundos, como se ele estivesse falando com alguém enquanto cobria o fone. – Desculpa. Estou na delegacia. Vou sair daqui e depois ligo de novo.

Ele desligou antes que Mels pudesse dizer alguma coisa, e ela o visualizou evitando seus colegas e correndo para o estacionamento como se fosse um jogador de futebol.


De fato, quando ligou de volta, ele estava sem fôlego.

– Está me ouvindo?

– Sim, estou.

– Então, minhas fotos do corpo mostram algo que não aparece nas fotos oficiais.

Essa era a deixa para ela mostrar surpresa, e neste caso nem precisava fingir.

– Qual é a diferença?

– Venha me encontrar e eu te mostro.

– Quando e onde?

Depois de desligar, Mels checou seu relógio e ligou para Matthias novamente. Ninguém respondeu.

– Ei, Tony – ela disse, esticando-se no corredor entre os cubículos. – Posso emprestar seu...

O cara jogou a chave sem nem mesmo parar de falar ao telefone. Quando ela mandou um beijo, ele agarrou o ar e beijou de volta.

Saindo apressada da redação, Mels entrou no carro de Tony e dirigiu para o centro da cidade, usando um caminho que... olha só, passava pelo hotel Marriott.

E digamos que ela estava uma meia hora adiantada de seu encontro com o Boca.

Por pura sorte, encontrou uma vaga apertada bem em frente à entrada do saguão. Precisou de duas tentativas para colocar o carro no lugar – sua habilidade para fazer balizas já não era a mesma desde que se mudara para Caldwell.

Além disso, a culpa que sentia por perseguir Matthias também não estava ajudando.

Enquanto entrava no saguão, pensou que alguém da segurança iria barrá-la a qualquer momento, mas ninguém prestou muita atenção nela – o que a fez pensar quantas outras pessoas entravam e saíam despercebidas dali.

No elevador, subiu até o sexto andar junto com um homem de negócios cujo terno antiquado e olhos vermelhos sugeriam que acabara de chegar de um longo voo noturno. Talvez até tivesse vindo batendo as próprias asas.

Ao chegar no andar, virou à esquerda e andou pelo corredor acarpetado. Bandejas do serviço de quarto estavam ao lado das portas, como traiçoeiros tapetes de boas-vindas com seus pratos sujos, canecas vazias e guardanapos manchados. Ao final do corredor, um carrinho da camareira estava estacionado em frente a uma porta aberta, que vazava luz iluminando pacotes de papel higiênico, toalhas dobradas e várias latas de spray.

A porta de Matthias ainda tinha o sinal de “não perturbe” pendurado, e Mels entendeu que aquilo significava que ele ainda não fizera o check-out. Colando a orelha na porta, rezou para ele não escolher aquele momento para sair.

Não ouviu água correndo. Nem som de televisão. Nenhuma voz profunda ao telefone.

Ela bateu na porta. Depois bateu um pouco mais forte.

– Matthias – ela disse. – Sou eu. Abra a porta.

Enquanto esperava por uma resposta que não veio, Mels olhou para a camareira que saíra com um saco de lixo na mão. Por um instante, considerou mentir dizendo que tinha esquecido a chave do quarto, mas, em um mundo pós-onze de setembro, sentiu que isso não iria funcionar – e poderia acabar sendo expulsa do hotel.

Bom, isso dizia muito sobre sua bússola moral: o problema nem era a invasão de privacidade, mas sim o medo de ser descoberta.

Com desgosto de si mesma e brava com Matthias, Mels voltou para o elevador. Quando chegou no térreo, sua intenção era marchar até o carro de Tony, dirigir e chegar realmente cedo em seu encontro com Monty e sua boca grande.

Em vez disso, ficou perambulando casualmente no saguão do hotel, olhando as vitrines da loja de conveniência, passando pelo spa...

Porque, claro, ele estaria comprando toalhas e recebendo massagens com duas rodelas de chuchu nos olhos. Óbvio.

Quando chegou ao restaurante que estava aberto, Mels estava quase abandonando a busca, mas então deu uma última olhada lá dentro...

Do outro lado das mesas de jantar, sentado ao lado de uma janela, Matthias estava comendo junto com uma morena que usava um vestido verde-limão.


Quem era ela...?

Era aquela enfermeira? Do hospital?

– Gostaria de mesa pra um? – disse o recepcionista do restaurante.

Claro que não – a menos que a mesa tivesse um saco para vômito.

– Não, obrigada.

A morena começou a rir, jogando a cabeça para trás e deixando o cabelo voar para todo lado. Ela era tão perfeitamente bonita, como se fosse uma fotografia retocada em todos os lugares certos.

Era difícil dizer em que Matthias, sentado à sua frente, estava pensando, e em um momento absurdo de possessividade Mels ficou contente por ele estar usando os óculos escuros dela. Como se aquilo fosse um jeito de demarcar seu território.

– Então veio para se encontrar com alguém? – disse o recepcionista.

– Não – ela respondeu. – Acho que ele está ocupado.


CAPÍTULO 23

A risada de Dê era... bem, para falar a verdade, era divina. Ao ponto de até fritar um pouco o cérebro de Matthias: ele nem conseguia lembrar o que ela dissera de tão engraçado.

– Então, como está sua memória? – ela perguntou.

– Falhando.

– Ela vai voltar. Faz o quê, uns dois dias desde o acidente? – ela se ajeitou quando chegou seu prato com ovos mexidos, salsicha, torrada e batata assada. – É só dar um pouco de tempo.

O pão com manteiga que chegou para ele parecia anêmico em comparação com o prato dela.

– Tem certeza de que é só isso que você quer? – ela gesticulou com o garfo. – Você precisa ganhar peso. E eu acredito que um bom café da manhã é a melhor maneira de começar o dia.

– É bom estar com uma mulher que não é enjoada com comida.

– Pois é, eu sou assim, como de tudo – ela fez um sinal chamando o garçom novamente. – Ele vai querer um prato igual ao meu, obrigada.

Parecia falta de educação dizer que ele explodiria se comesse tudo aquilo, então apenas colocou de lado o pão com manteiga. Ela provavelmente estava certa. Matthias se sentia sem energia e desconectado: o sanduíche que comera com Mels já havia sido digerido faz tempo, graças àquele ninja cretino que apareceu do nada atirando.

– Não espere por mim – ele disse.

– Eu não ia esperar.

Matthias sorriu friamente e passou um tempo olhando ao redor no salão do restaurante. A maioria das pessoas era exatamente o que se esperava encontrar em um hotel daquele tipo... exceto por um sujeito no canto que parecia seriamente fora de lugar: estava usando um terno mais bem cortado do que qualquer outro ali, e parecia fora de moda até para quem não entende dessas coisas.

Caramba, aquela roupa parecia ser própria para uma festa dos anos 20 – talvez tivesse até sido criada nessa época...

Como se percebesse que estava sendo observado, o homem levantou os olhos, com uma aparência aristocrática.

Matthias voltou a se concentrar em sua companhia. Dê cortava a comida com movimentos precisos do garfo, cujas pontas penetravam com facilidade nos ovos mexidos e na batata.

– Às vezes, não lembrar pode ser uma coisa boa – ela disse.

Pois é, ele pensou, sentia que isso era particularmente verdade em se tratando de sua vida. Deus, se aquela história que Jim contou fosse verdade...

– E eu não tive intenção de ser evasiva quanto ao meu pai – ela continuou. – É só que... eu não gosto de pensar nele – baixou o garfo no prato e ficou observando a janela. – Eu faria qualquer coisa para esquecer meu pai. Ele era... um homem violento... malvado e violento.

Com um movimento rápido, o olhar dela voltou a se fixar nos olhos dele.

– Sabe do que estou falando? Matthias...

De repente, surgiu outra daquelas dores de cabeça, invadindo seus pensamentos e acumulando em suas têmporas, como duas pontadas de dor em cada lado da cabeça.

Ele viu, vagamente, que os perfeitos lábios vermelhos de Dê se moviam, mas não ouvia as palavras: era como se tivesse saído do corpo... e então, o próprio restaurante começou a recuar, como se as paredes estivessem sendo puxadas para trás e desaparecendo ao longe, até que repentinamente Matthias já não estava mais no Marriott, mas em algum outro lugar.

Estava no segundo andar de uma casa de fazenda forrada por tábuas de madeira no chão, paredes e teto. A escada à sua frente era íngreme, e o corrimão feito de pinho já estava escurecido pelas inúmeras mãos que o usaram como apoio.

O ar estava parado e abafado, embora não fizesse calor.

Matthias olhou para trás e encontrou um quarto que reconhecia como seu. As duas camas tinham cobertores diferentes e nenhum travesseiro... a escrivaninha tinha arranhões e os puxadores estavam caindo... não havia tapete. Mas, na pequena mesa perto de onde dormia, havia um rádio novo em folha que parecia completamente fora de lugar, com detalhes em imitação de madeira e um botão prateado.

Olhando para baixo, notou que vestia calças rasgadas com bainhas enroladas que deixavam os pés expostos; a mesma coisa acontecia com as mãos, que pareciam gigantes comparadas com os magros antebraços – suas extremidades estavam grandes demais em relação ao resto do corpo.

Lembrou-se desse estágio em sua vida e entendeu que era um jovem. Catorze ou quinze anos...

Um som o fez virar a cabeça.

Um homem estava subindo a escada. Seu sobretudo estava sujo; o cabelo estava liso de suor, como se um chapéu ou boné o tivesse coberto por muito tempo; as botas soavam alto.

Um homem grande. Um homem alto.

Um homem mau.

Seu pai.

De uma só vez, tudo mudou: sua consciência separou-se da carne de tal maneira que não era mais capaz de controlar o corpo, a direção de sua vida parecia ter sido tomada por outra pessoa.

Tudo o que podia fazer era olhar através dos próprios olhos quando seu pai subiu o último degrau e parou.

Aquele rosto tinha ficado exposto ao clima por tanto tempo que agora parecia revestido de couro bovino, e havia um dente faltando quando ele sorriu como um assassino em série.

Seu pai ia morrer, pensou Matthias. Aqui e agora.

Por mais improvável que fosse, dada a diferença de tamanho entre eles, o homem iria ao chão e estaria morto em questão de minutos...

De repente, Matthias sentiu a si mesmo começar a falar, seus lábios formando sons que ele não registrava, mas que tinham impacto em seu pai.

A expressão mudou, o sorriso sumiu, o dente faltando desapareceu quando a boca do pai se fechou. A raiva fez aqueles olhos azuis elétricos ficarem estreitos, mas isso não durou muito. Uma onda de choque se seguiu. Como se ele estivesse muito confiante sobre algo, mas agora não tivesse mais tanta certeza.

E, enquanto isso, Matthias continuava a falar devagar e com fimeza.

Foi ali que tudo começou, pensou consigo mesmo: aquele homem, aquele homem do mal com quem vivera sozinho por tempo demais, aquele cretino nojento que o “criou”. Mas agora era hora do acerto de contas, e sua versão mais jovem não sentia nada enquanto falava aquelas palavras, sabendo muito bem que estava finalmente enfrentando o monstro.

Seu pai agarrou a frente do próprio sobretudo, bem acima do coração, apertando o tecido com as unhas cheias de sujeira.

E Matthias continuou a falar.

Até o outro cair ao chão. Seu pai caiu de joelhos, a palma da mão livre escorregando do corrimão, a boca abrindo-se tanto que os outros dentes que faltavam no fundo também ficaram expostos.

Ele nunca achou que seria pego. Foi isso que o matou.

Bom... tecnicamente, a causa da morte foi um infarto no miocárdio. Mas a causa verdadeira foi o fato de que o segredo sujo que compartilhavam fora revelado.

A morte levou todo o tempo que precisava.

Enquanto seu pai agonizava deitado de costas, as mãos agora apertando a axila esquerda, que doía como o diabo, Matthias ficou parado onde estava e assistiu o processo se desenrolar. Aparentemente, respirar estava cada vez mais difícil, o peito subia e descia sem muito efeito; debaixo do bronzeado, a cor de seu pai estava sumindo.

Quando a vista voltou a mostrar o quarto, Matthias entendeu que ele se virara e estava andando em direção ao rádio, que ligou enquanto se sentava. Ainda podia enxergar seu pai lutando como uma mosca presa em um parapeito, os membros se contraindo de um lado para outro, a cabeça arqueando para trás como se pensasse que um ângulo diferente pudesse ajudar com a respiração.


Mas não ajudaria. Mesmo um garoto de quinze anos da fazenda sabia que, se o coração não estivesse bombeando, cérebro e órgãos vitais falhariam, não importava quanto ar ele tentasse puxar.

Lá no campo, o rádio pegava apenas cinco estações, e três eram religiosas. As outras duas tocavam música country e pop, então ficou virando o botão, indo e vindo entre elas. De tempos em tempos, apenas porque sabia que seu pai logo iria encontrar o Criador, ele deixava um sermão ecoar pela casa.

Matthias não sentiu nada além de frustração por não conseguir encontrar um rock pesado para tocar. Achava que um Van Halen combinava mais com a demorada morte de seu pai do que um cretino como Conway Twitty ou Phil Collins.

Fora isso, ele estava sereno como um lago, forte como concreto.

Caramba, ele nem se importava que aquilo significasse o fim dos abusos. Queria apenas saber se era capaz de se livrar do velho, como se a empreitada fosse um projeto da escola: ele planejou, colocou as peças no lugar e então acordou naquela manhã e decidiu empurrar a primeira peça do dominó.

E conseguiu, graças a sua professora muito religiosa, maleável e de bom coração.

No corredor da escola, ele chorou na frente dela enquanto contava sobre o inferno no qual vivia, mas aquele show de lágrimas era apenas para lhe dar uma motivação extra. Na verdade, a grande revelação não causou mais emoção nele do que uma troca de roupa: enquanto manipulava a professora com a verdade, em seu interior ele estava frio como gelo, sem sentir nem satisfação pela primeira parte do plano realizada, nem excitação por aquilo estar finalmente acontecendo.

O resto aconteceu rápido, e essa velocidade foi a única coisa que não esperava: ele foi mandado imediatamente para a enfermaria, depois a polícia chegou, papéis foram preenchidos e enviados, e lá se foi Matthias para as mãos do sistema.

As autoridades enviaram apenas mulheres para tratar dele, como se isso fosse deixar as coisas mais fáceis. Principalmente durante os exames físicos – que eles achavam que seriam realmente perturbadores para Matthias.

E quem era ele para não fazer o que eles queriam?

Entretanto, não esperava mesmo ser mandado para um lar adotivo em menos de duas horas.

Acontece que a única coisa que realmente queria era aquela parte, o acerto final com seu pai deitado ali no chão – e foi preciso escapar e roubar um carro para chegar antes que a polícia levasse seu pai para a prisão, quando o homem voltasse do trabalho nos campos de milho. Tudo teria sido em vão se ele estragasse essa parte.

Mas funcionou perfeitamente.

Nos últimos momentos da vida miserável de seu pai, Matthias virou o botão do rádio para uma das estações religiosas – e parou por um momento. O sermão era sobre o Inferno.

Parecia apropriado.

Ele assistiu quando o último suspiro surgiu e a calmaria prevaleceu. Era tão estranho, um ser humano repentinamente passando para o outro lado, um ser vivo tornando-se indistinguível de uma torradeira, um tapete, ou até mesmo um rádio relógio.

Matthias esperou mais um pouco até aquele rosto tornar-se completamente cinza. Então levantou, tirou o rádio da tomada e colocou-o debaixo do braço.

Os olhos de seu pai estavam abertos e encaravam o teto, da mesma maneira que ele próprio fizera por muitas noites durante o passar dos anos.

Matthias não mostrou o dedo do meio, não cuspiu nem chutou o corpo. Apenas passou por ele e desceu as escadas. Seu último pensamento enquanto deixava a casa era que aquilo tinha sido um interessante exercício mental...

E queria saber se conseguiria fazer de novo.

– Matthias?

Deixando escapar um grito, ele pulou em sua cadeira. O restaurante ressurgiu ao seu redor, as paredes se reergueram, o som ambiente de pessoas comendo e conversando voltou a ser registrado por seu cérebro.

Quando as pessoas olharam para ele, Dê se inclinou e disse:

– Você tá bem?

Seu belo rosto mostrava uma perfeita expressão de compaixão, os lábios entreabertos como se a aflição dele dificultasse sua respiração.

O afastamento que o seu eu jovem sentira voltou a ocupar um lugar em seu peito, como se a memória tivesse calibrado seu motor interno, reajustando-o, como um carro que precisa de alinhamento. Encarou a mulher com distanciamento, uma fria objetividade que os separava mesmo estando a poucos metros um do outro.

Emoções podiam ser facilmente fingidas. Ele sabia muito bem disso.

O sorriso que mostrou a ela parecia diferente em seu rosto – mas ao mesmo tempo era muito familiar.

– Estou muito bem.

O garçom se aproximou naquele momento trazendo o grande café da manhã e, quando o colocou na mesa, Matthias podia jurar que viu Dê recostar-se e sorrir de satisfação.


De pé ao lado do recepcionista do restaurante, Mels estava cansada de bancar a perseguidora. O fato de ela ter vindo até o hotel já era razão suficiente para se sentir mal, mas agora que o encontrara com aquela enfermeira... Tinha duas razões para se sentir mal: não respeitava a si mesma, e aquela outra mulher era tão bonita quanto a Sofia Vergara, só um tolo não veria isso.

Quando um prato do tamanho de um ônibus foi colocado na frente de Matthias, ele olhou para sua companheira com um sorriso maroto e...

A cabeça dele virou sem motivo, bem quando Mels estava prestes a dar meia-volta.

Seus olhos se encontraram e instantaneamente aquela expressão cínica dele se transformou em algo que Mels não conseguia interpretar – mas ela disse a si mesma que não se importava.

Tanto faz. Aquilo não era da sua conta.

E ela não faria nenhuma cena. Em vez disso, se dirigiu calmamente para a porta giratória do saguão...

– Mels! – ouviu um grito vindo de trás.

Não dava para fingir que ele não estava vindo atrás dela, e, além disso, ela não tinha razão para ignorá-lo.

– Eu não queria interromper seu café da manhã – ela disse quando parou e deixou ele se aproximar. – E estou a caminho de uma reunião. Quando você não atendeu o telefone, pensei em parar um pouco no hotel.

– Mels...

– Aquela história que você me pediu pra checar é verdadeira. A única diferença é que o nome é escrito com um “e”. O certo é Childe. O filho morreu de overdose, e o pai estava presente quando aconteceu. A filha ainda está viva... é uma advogada em Boston. O pai trabalha para o governo, em vários cargos. Pelo menos, é isso que consta nos jornais. Não sei de informações que não sejam públicas – enquanto ele apenas a encarou, Mels levantou o queixo. – Bom, o que esperava que eu encontrasse?

Ele esfregou o rosto como se estivesse com dor de cabeça.

– Não sei. Eu... quando o filho morreu?

– Não faz muito tempo. Dois anos e meio, acho...

– Seu café da manhã está esfriando.

Mels olhou para a enfermeira. A mulher olhava apenas para Matthias enquanto se aproximava, como se ele não estivesse falando com mais ninguém.

Certo, ela parecia fantástica com aquele vestido. Seu corpo transformava algo essencialmente recatado em um grande show sexy...

Repentinamente, Mels lembrou daquele episódio de Seinfeld com a Terri Hatcher... é, aqueles seios eram provavelmente reais e espetaculares. Já Mels tinha de usar sutiãs com armação para levantar um pouco os seus...

– Eu estava mesmo indo embora – Mels disse. – Ou vou me atrasar para minha reunião.

A enfermeira lançou um olhar dispensando-a, com aqueles olhos castanhos dizendo não apenas “vai logo embora”, mas também “dane-se você”.

– Vem, vamos voltar pra mesa.


Matthias apenas continuou encarando Mels, ao ponto de ela pensar que ele tentava dizer algo. Mas ele tinha ovos frios e pernas quentes para se preocupar, então seu prato já estava cheio sem Mels para atrapalhar.

Ela acenou para os dois e saiu pela porta em direção à rua.

O sol brilhava enquanto Mels andava até o carro de Tony. O interior do sedã estava quente. Ajeitando-se no banco do motorista, ela deu um sermão em si mesma antes de girar a chave – mas aquilo não ajudou em nada.

Nem mesmo a parte sobre como um homem misterioso e não disponível tinha muito mais chances de, segundo seu instinto de repórter, parecer muito mais atraente do que um cara normal qualquer – mas ser atraente não fazia dele uma boa opção.

Talvez fosse por isso que ela ainda estava solteira. Não era por falta de convites para sair. Provavelmente tinha mais a ver com o fato de que os homens que a convidavam para sair tinham empregos fixos, aparência boa o suficiente... e memórias.

Nada de mistério, nada de emoção.

Ela tinha de gostar de um cara com um passado nebuloso e uma companheira de café da manhã que tinha corpo de Barbie e cabelo de comercial de TV.

Saudável, muito saudável.

Mels deu a partida no carro e entrou no trânsito: seu encontro com Monty, o Boca, estava marcado em um parque a sete quarteirões dali.

Pelo menos a sincronia de tudo estava a seu favor: se tivesse de voltar à redação e encarar a tela do computador fingindo que trabalha, ela acabaria louca.

Malditos homens, pensou consigo mesma ao encontrar uma vaga, e desta vez fez uma baliza melhor.

Seguiu as instruções que recebeu – toda aquela história com Monty parecia saída de filmes de espionagem, com ela o encontrando em um banco debaixo de um bordo específico. Só precisava de um jornal para se esconder e uma senha secreta para entrar definitivamente no mundo de James Bond.

Monty chegou dez minutos depois, vestindo roupas civis que o faziam parecer um cafajeste qualquer. Ele estava de bom humor: essa coisa de espionagem claramente produzia o drama que ele necessitava.

– Ande atrás de mim – ele disse, com a voz baixa, ao passar por ela.

Ah, isso era ridículo!

Mels levantou quando ele estava a uns três metros. Ela caminhou mantendo o ritmo de Monty, se perguntando por que diabos estava se submetendo àquilo.

Depois de andarem um pouco, chegaram ao leito do rio, ao lado de um grande embarcadouro com estilo vitoriano onde as pessoas podiam ancorar suas canoas e barcos nos meses mais quentes.

Quando ela entrou, seus olhos levaram um segundo para se acostumar à escuridão: as janelas em forma de diamante não deixavam entrar muita luz do sol, as prateleiras cheias de remos, as pilhas de boias e as velas enroladas faziam o lugar parecer completamente lotado. E também era barulhento, em certo sentido: por toda parte, as ondas do rio batiam nas paredes do lugar e o som ecoava pelos espaços vazios debaixo do grande teto...

De repente, um bando de andorinhas voou de seu ninho, passando em rasante sobre eles antes de escapar pela janela, ganhando o céu.

Quando seu coração voltou a bater no ritmo normal, Mels disse:

– Então, o que você tem pra mim?

Monty lhe entregou um grande envelope.

– Imprimi isto em casa hoje de manhã.

Mels retirou o clipe de metal e abriu o envelope.

– Quem mais sabe sobre isto?

– No momento, apenas eu e você.

Uma a uma, ela retirou três fotos coloridas, todas da vítima: a primeira era de corpo inteiro com a camisa no lugar, a segunda mais aproximada e com a camisa levantada, a terceira em close mostrando o que parecia ser uma série de símbolos.

Cecília Barten.

Esse foi o nome que surgiu na mente de Mels enquanto examinava as imagens: Sissy fora outra garota, mais jovem e muito, muito longe de uma vida na qual ser assassinada fosse um dos ossos do ofício. Seu corpo fora encontrado recentemente em uma pedreira, com o mesmo tipo de símbolos gravados no abdômen. Sua garganta também fora cortada. E ela era loira.

– Você viu as fotos da cena do crime, não é? – perguntou Monty.

– Sim – Mels voltou a olhar a foto dos símbolos. – A pele estava vermelha, mas não havia nada disso. Então, me conte, de modo extraoficial se você preferir: como isso aconteceu? Você disse que foi um dos primeiros a chegar...

– Fui o primeiro a chegar. Fui com o gerente até o quarto e prontamente comecei os procedimentos de rotina. Isolei a porta e chamei reforços.

– Onde estava sua parceira?

– Ela estava doente, então eu saí sozinho. Corte de gastos, sabe como é. Nada de substitutos. Tanto faz, enquanto eu esperava, tirei essas fotos.

Ela odiava gente que falava tanto faz.

– Você mexeu na camisa.

– Eu estava examinando o corpo e a cena, seguindo os procedimentos normais.

Pervertido.

– Mas por que tirou as fotos se a fotógrafa oficial estava pra chegar?

– A verdadeira pergunta é: o que aconteceu com os símbolos?

Caramba, aquilo não estava cheirando bem, pensou Mels.

Olhando em seu rosto, ela perguntou:

– Então, o que posso fazer com isto?

– No momento, nada. Não quero ser acusado de adulterar o corpo.

Mas você fez exatamente isso, ela pensou consigo mesma.

– Então por que está me dando as fotos?

– Alguém tem que saber. Talvez eu fale com De la Cruz... ou talvez você possa publicar no jornal e dizer que as fotos são de uma fonte anônima. O negócio é que o horário da morte foi dado como perto das cinco ou seis horas, então o assassinato aconteceu logo depois que o sei-lá-quem pagou e entrou no quarto. Quando eu cheguei eram quase nove e quinze. Isso deixa quatro horas e meia para alguém ter entrado e saído de lá.

Mas o que ele não percebia, talvez de propósito, era o fato de que aqueles símbolos tinham desaparecido entre o momento em que ele chegara à cena do crime e o momento das fotos oficiais. O corpo não podia ter ficado muito tempo sozinho, e cicatrizes não desaparecem simplesmente.

Aquilo realmente não estava cheirando bem.

– Certo, só me diga o que posso publicar sem te trazer problemas – ela disse. – Quando você quiser.

Ele assentiu como se tivessem fechado um acordo e começou a andar.

– Espera um pouco, Monty, tenho uma pergunta rápida sobre outro assunto.

Ele parou na porta.

– O que foi?

– Sabe aquele homem que foi encontrado morto no Marriott?

– Ah, aquele cadáver na entrada de serviço? Que depois desapareceu do necrotério?

Mels parou de respirar.

– Como é?

– Você não ficou sabendo? – ele se aproximou novamente. – O corpo sumiu. Hoje de manhã.

Impossível.

– Foi roubado? Do necrotério do Hospital St. Francis?

– Aparentemente.

– Como uma coisa dessas pode acontecer? – quando Monty deu de ombros, ela balançou a cabeça, pois sabia que, seja lá o que acontecera com o corpo, boa coisa não era. – Bom, espero que encontrem. Escuta, você por acaso sabe que tipo de balas eles encontraram no colete que a vítima estava vestindo?

– Calibre quarenta.

– E ouvi falar que tinha uma tatuagem no corpo?

– Não sei. Mas posso descobrir.

– Eu agradeço.

Ele deu uma piscadela e um sorriso maroto.

– Sem problema, Carmichael.

Quando ficou sozinha, Mels observou as fotos novamente, uma a uma... e deduziu que Caldwell provavelmente tinha outro assassino serial em suas ruas.

Não era exatamente o tipo de segurança do trabalho que ela e os policiais esperavam.

E começou a suspeitar que talvez fosse alguém da própria força policial.


CAPÍTULO 24

Quando Devina dobrou seu guardanapo ao lado do prato vazio do café da manhã, ela sorriu para sua vítima, que estava sentada do outro lado da mesa. De uma forma geral, as coisas até que iam bem. A memória de Matthias estava voltando, e a lembrança que ela destravara sobre o pai dele trouxera de volta aos seus olhos o tipo de brilho que ela gostava de ver.

Seu velho pai fora essencial, é claro: fora o início da maldade, uma prova definitiva de que a infecção podia acontecer mesmo de humano para humano, e não apenas de demônio para humano.

Mas ela precisava ter cuidado ao mexer nesse vespeiro.

– Eu pago a conta – disse Matthias, levantando o braço para chamar o garçom.

– Você é um perfeito cavalheiro – ela colocou a mão dentro da bolsa e começou a contar seus batons da esquerda para a direita. – Estou feliz por termos encontrado um ao outro.

... três, quatro, cinco...

– Foi um golpe de sorte – ele olhou para a janela, como se estivesse fazendo planos. – Quais seriam as chances disso acontecer?

... seis, sete, oito...

– O que você vai fazer hoje? – ela perguntou, seu coração batendo mais forte enquanto o fim da contagem se aproximava.

... nove, dez, onze...

Ele respondeu, mas ela não prestou atenção, pois estava quase acabando de contar.

Doze.

Treze.

Deu um suspiro, pegou o último tubo e tirou a tampa. Encarando Matthias, ela o fez olhar para sua boca enquanto expunha a ponta vermelha do batom e passava lentamente pelos lábios.

Ele fez exatamente o que ela queria, mas a resposta não foi a que desejava: a reação dele foi mais clínica do que sexual. Como se ela fosse um instrumento que Matthias estava considerando brevemente se usaria ou não.

Devina franziu a testa. Quando ele disparou atrás daquela repórter, não havia nada dessa frieza distante. Mesmo vestido ele parecia nu, focado naquela mulher como se ela estivesse dentro dele, em vez de ser algo separado e distinto.

O demônio apertou e soltou os lábios, sentindo a boca voltar a mostrar a maciez de sempre – e, para ter certeza que ele entendera a intenção, ela inseriu em sua mente um pensamento sobre aquela boca envolvendo seu pau, chupando, sugando e engolindo.

Não funcionou.

Ele apenas olhou para o garçom, pegou a conta e escreveu o número de seu quarto.

Uma forte lufada de vento estremeceu as janelas e seu som fez todos no restaurante levantarem a cabeça, incluindo Matthias. Sentada em frente a ele, Devina fervilhava de raiva. Seu ódio se manifestou e tocou os elementos lá fora, atraindo uma ventania do Sul.

Tudo o que ela conseguia pensar era em como Jim a enganara – e agora esse cretino aleijado, que voltaria para o Inferno assim que a rodada terminasse, também a estava esnobando.

Cretinos. Os dois eram grandes cretinos.

Ela se levantou e pendurou a bolsa no ombro.

– Até quando você vai ficar hospedado aqui?

– Não por muito tempo.

Era verdade. As coisas estavam acontecendo com muita velocidade, mesmo que ele não estivesse ciente, e esta rodada terminaria rapidamente.

Talvez Devina devesse levá-lo para o quarto e lembrá-lo de que era um homem e não um robô – e aquela “dificuldade” não seria problema desde que estivesse com ela.

Boa sorte com aquela repórter nesse quesito, pensou ela.

– Vou sair agora – ele disse, como se a estivesse dispensando.

Devina estreitou os olhos e então lembrou que estava representando um papel.

– Bom, tenho certeza de que vou te encontrar por aí.

– Parece que sim. Boa sorte com sua mãe.

Quando ele se virou, ela quis transar com ele por outras razões além daquela rodada. Matthias tinha o mesmo tipo de força – e a mesma personalidade elusiva – de Jim.

Ela deveria ter prestado mais atenção nesse homem na época em que o possuía. Felizmente, ele logo voltaria para casa.

Nesse meio tempo, Devina precisava cuidar daquela repórter. Ela não precisava desse tipo de influência no jogo.

E acidentes acontecem a toda hora. O Criador não poderia culpá-la por isso.


Matthias tomou um táxi até a sede do Correio de Caldwell e esperou no estacionamento atrás do edifício. Ele deduziu que Mels tinha emprestado o Toyota para ir até o hotel e, de fato, aquela lata-velha não estava estacionada junto com os outros carros velhos cheios de lixo.

Parecia até que ter um carro caindo aos pedaços fazia parte da profissão de jornalista.

Ficou ao lado da porta dos fundos, encostado na parede e apoiando-se na bengala. No céu, nuvens cobriram o sol e sombras tomaram conta do lugar enquanto a noite se anunciava.

Ele estava sendo observado.

Não pelas pessoas que surgiam e sumiam pela saída... ou pelos fumantes que baforavam por alguns minutos e voltavam para dentro... ou pelas pessoas dirigindo pelo estacionamento lotado à procura de uma vaga.

Havia alguém observando-o constantemente, em posição fixa, à sua direita.

Poderia ser alguém em um daqueles carros alinhados na rua ao lado do estacionamento. A única outra opção era o telhado do edifício do outro lado da rua, já que as paredes não tinham janelas.

Ele precisava conseguir um pouco de munição. Sem balas, a arma calibre quarenta com silenciador que ele pegara “emprestado” de Jim servia apenas para golpear – o que não era exatamente inútil, mas não era a mesma coisa que um projétil mortal de longa distância.

O Toyota que ele esperava apareceu na curva e entrou. Quando o carro parou bruscamente, Matthias soube que Mels o avistara.

Ela estacionou na primeira vaga disponível, saiu do carro e se aproximou com a cabeça erguida e os cabelos balançando ao vento.

– Está queimando as calorias do seu café da manhã com uma boa caminhada? – ela perguntou.

Uma sutil pontada em seu peito surgiu quando ele a olhou nos olhos, e aumentou gradualmente, chegando até a dificultar sua respiração.

– Sinto muito – ele disse com a voz rouca.

– Pelo quê?

Tudo que ele conseguiu fazer foi balançar a cabeça, pois sua voz sumira. Aquela clareza fria e calculada que sentira após ser atingido pelas visões do passado havia sumido. Em seu lugar, havia uma sensação de impotência, como se ele fosse uma fortificação que perdeu a linha de defesa.

– Matthias, você está bem?

O que veio a seguir simplesmente aconteceu: ele se aproximou e colocou as mãos ao redor da cintura dela... e então a abraçou, mergulhando o rosto em seus cabelos soltos e perfumados.

– O que aconteceu? – ela disse suavemente enquanto acariciava as costas dele.

– Eu não... – que droga, ele estava fora de si. – Não posso...

– Está tudo bem...

Eles ficaram abraçados por um tempo enquanto trovões ecoaram, como se o céu não os aprovasse, e relâmpagos rasgaram o ar por baixo da camada de nuvens escuras.

Que diabos ele estava fazendo? A verdade era que Matthias queria ficar ali para sempre: quando abraçava o corpo quente daquela quase estranha, não havia passado nem futuro, apenas o presente, e aquela falta de um horizonte ou paisagem era o abrigo de que ele necessitava no momento.

A chuva começou a cair em grandes gotas, ao ponto de sentirem como se fossem atingidos por pedregulhos.

– Vem pra dentro – ela disse, tomando sua mão e usando um cartão de identificação para entrar no prédio.

Um estranho perfume químico invadiu o nariz dele. Mas não era nenhum produto de limpeza; Matthias estava sentindo o cheiro da tinta nas prensas.

– Aqui – ela disse, virando a maçaneta e empurrando a porta vermelha com o quadril.

A sala de reunião tinha cadeiras desiguais e uma longa mesa. Nada ali combinava, o lugar parecia um verdadeiro Frankenstein de móveis de escritório. Mas havia um bebedouro em um canto, e Mels trouxe um copo de água.

– Beba isto.

Matthias fez o que ela pediu e, enquanto bebia, fez o possível para se recompor.

Mels sentou em cima da mesa deixando as pernas balançarem de lá para cá vagarosamente.

– Converse comigo.

Mas que droga, como poderia contar o que aconteceu? O que é que ele estava fazendo ali, afinal?

Bom, pelo menos sabia a resposta para essa última pergunta. Ele queria ser honesto com uma pessoa. Finalmente. Precisava apenas fazer uma conexão com ela, como se Matthias estivesse em queda livre e Mels fosse uma corda para ser agarrada, e as palavras que ele precisava dizer fossem sua maneira de lutar pela vida.

– Eu matei meu pai.

Os pés dela pararam em meio ao balanço, os ombros ficaram tensos.

– Depois de muitos anos em que ele... – fale. Vamos, fale. Fale, seu idiota! – Ele era um homem violento, e bebia muito. Coisas... aconteceram. Coisas que não deveriam acontecer e eu...

O olhar no rosto dela gradualmente mudou, voltando a mostrar compaixão.

Mas, quando parecia que ela colocaria os pés no chão para abraçá-lo, Matthias levantou as duas mãos.

– Não, eu não posso... não vou conseguir terminar de falar se você me tocar.

– Certo – ela respondeu vagarosamente.

– Nem sei por que estou contando isso.

– Não precisa ter uma razão.

– Sinto que deveria ter.

– Você sabe que pode confiar em mim, não é? Posso ser repórter, mas eu estava falando a verdade quando disse que isso é apenas meu trabalho, e não quem eu sou.

– Sim – ele passou a mão nos cabelos e então tirou os óculos escuros. – Desculpa, mas preciso ter uma visão clara de você.

Ela franziu a testa.

– Não precisa pedir desculpa.

Ele mostrou o Ray-Ban e disse:

– Pensei que preferia que eu usasse os óculos. Você sabe, lá no restaurante... porque assim você não precisava olhar pro meu rosto.

– Não foi por isso que eu disse que você podia ficar com os óculos. Você não é feio pra mim, Matthias. Nem um pouco. E não precisa se esconder.

Por algum motivo, ele sabia que aquilo não iria durar. Sentia que quanto mais coisas ele lembrasse, pior seria a imagem de seu passado – como um quebra-cabeça que você achava que se tornaria uma linda paisagem, mas acaba sendo a horrível figura de Michael Myers, do filme Halloween.

– Eu denunciei ele – Matthias ouviu a si mesmo falar. – Falei com a minha professora, depois fui mandado para a enfermaria da escola, e eu contei tudo a eles, expliquei minhas faltas, os hematomas e... as outras coisas. Eu tinha quinze anos. Aguentei tudo calado até aquele ponto...

– Meu Deus, Matthias...

– ... mas então larguei mão de tudo, e o sistema entrou em ação. Ele teve um ataque do coração na minha frente quando eu contei que agora todo mundo sabia do segredo.

– E é por isso que você pensa que matou ele? Matthias, você não fez nada de errado.

– Sim, eu fiz. Assisti a morte dele. Não telefonei para a emergência, não corri para buscar ajuda, fiquei lá parado assistindo quando ele caiu na minha frente.

– Você era uma vítima de abuso e estava em estado de choque. Não é sua culpa...

– Eu fiz de propósito.

Agora ela franziu a testa novamente.

– Não estou entendendo.

– Eu não me importava com as coisas que ele fez comigo. Aquilo era mais uma chateação do que qualquer outra coisa – ele deu de ombros. – A coisa toda sobre a denúncia foi só um exercício mental pra mim. Entende? Eu conhecia ele muito bem – ele apertou as têmporas. – Eu conhecia a maneira como ele pensava, as coisas que o deixavam forte. Ele gostava de ser mal e ter poder sobre mim. Era um cara não muito esperto que trabalhava o dia todo com animais burros e espigas de milho. Quando ele precisava lidar com adultos do mesmo nível, seu complexo de inferioridade surgia. Ele ameaçava me matar se eu contasse pra alguém, e isso era seu inferno pessoal. Aquele segredo era muito importante pra ele, e não porque abusar de um filho é algo ilegal. Eu sabia que isso o afetaria além de parar com os abusos... e eu queria ver o que aconteceria.

– Espera, deixa eu perguntar uma coisa. Quanto tempo você passou vivendo com ele?

– Minha mãe morreu no parto.

– Então passou a vida inteira.

– Morei em outro lugar por um tempo, mas depois voltei a ficar com ele.

– Quando era pequeno.

– Sim.

– E não te ocorreu que naquela época você era apenas um garoto salvando a si próprio?

– Esse foi o resultado final, mas não era minha motivação. E é isso que me abala tanto.

Mels balançou a cabeça.

– Eu acho que você precisa aprender a se perdoar um pouco.

Ah, inferno, ela nunca entenderia. Matthias podia ver em seus olhos – ela já tinha cristalizado uma opinião sobre ele e nada mudaria aquilo.

– Matthias não é meu nome verdadeiro.

– Então como se chama?

Havia se lembrado. No café da manhã.

Ele a encarou por um longo tempo, observando o rosto, o pescoço, o corpo esguio... e então voltou aos olhos inteligentes.

Não compartilharia aquela informação. Não conseguiria.

E, no silêncio que se seguiu, ele sentiu uma necessidade esmagadora de ficar sozinho com ela novamente, e não em um lugar público. Em seu quarto. Naquela cama de hotel cujos lençóis cheiravam a limão. Ele queria mais um pouco dela antes de partir, como se ela fosse um remédio que o deixava vivo por mais um pouco de tempo.

Porque Matthias entendera que ia morrer logo.

Não era apenas paranoia. Era... inevitável, como se seu passado estivesse escrito em pedra.

– Meu tempo está acabando – ele disse suavemente. – E quero ficar com você antes de ir embora.

– Pra onde você vai?

– Pra longe – ele respondeu após um momento.


CAPÍTULO 25

Mels parou de respirar quando ficou convencida de que Matthias era uma das pessoas desaparecidas de Caldwell, mesmo ele possuindo carteira de motorista e, supostamente, uma casa. Ali na sua frente, olhando-a nos olhos, era como se ele nem estivesse na sala.

Esteve aqui por apenas uma fração de segundo e agora se fora para sempre.

– Por que está indo embora? – ele apenas balançou a cabeça, e ela perguntou: – É por causa disso que você não quer me dizer seu nome verdadeiro?

– Não, é porque não importa. São apenas sílabas. Não sou mais essa pessoa já faz muitos anos, é simplesmente irrelevante.

– Não tenho tanta certeza disso – ele deu de ombros, e ela teve de pressioná-lo. – E você não precisa ir pra lugar nenhum.

Ela não acreditava que as pessoas podiam saber do futuro. Se ele partisse, seria por vontade própria – e a decisão podia ser desfeita a qualquer momento. Por ele.

Exceto... o problema com aquele argumento era que Mels também sentia que os dois não teriam um final feliz. Eles haviam se encontrado por causa de um acidente. Suas vidas colidiram, e assim como o impacto, sua relação também não duraria muito.

Apenas os ferimentos seriam eternos.

Ela tinha uma terrível sensação de que nunca esqueceria os momentos que passara com aquele homem.

– Quanto tempo nós temos? – ela exigiu saber.

– Eu não sei.

Levantando da mesa, ela se aproximou, o envolveu com os braços e encostou o rosto no peito dele, ouvindo as batidas de seu coração. Quando Matthias a abraçou de volta, ela ficou imaginando por que sentia aquela conexão tão forte com ele. Todos os outros homens, os normais, nunca conseguiram realmente mexer com ela.

Mas este homem...

Matthias se inclinou para trás e tocou o rosto dela.

– Posso beijar aqui?

– Você quer dizer aqui no meu rosto ou aqui na sala de reunião?

– Bom, você trabalha aqui, então...

Ela pressionou os lábios contra os dele, silenciando-o. Quem se importava com o local onde estavam? Havia um monte de namoros entre funcionários, e pessoas traziam esposas, maridos e namorados pro trabalho a toda hora.

Além disso, se o chefe podia assediá-la sexualmente debaixo daquele teto, então Mels podia beijar ali o homem que realmente desejava.

Fechando os olhos, ela inclinou a cabeça e o beijou novamente, desta vez colando os lábios por mais tempo. E quando ele a beijou de volta, Mels desejou capturar aquele momento e torná-lo físico de alguma forma, para que pudesse segurá-lo com as mãos ou guardá-lo em um local seguro, como faria com um livro ou um vaso.

Mas a vida não é assim. As pessoas não podem guardar para sempre os momentos que as definem ou as emocionam – não é possível tocá-los com a palma da mão ou a ponta dos dedos. As maquinações do destino são tão elusivas quanto a ferramenta de um escultor, que surge de repente modelando contornos e depois parte para o próximo pedaço de argila.

Com um movimento decidido, Matthias subiu a palma da mão pelas costas dela até chegar em sua nuca, tomando controle. E quando sua língua lambeu entre os lábios de Mels, ela se abriu para ele, desejando que estivessem em um local privado quando o calor começou a se intensificar dentro dela, subindo por seu corpo cada vez mais rápido e quente...

Mels franziu a testa ao perceber que sua mão estava tocando algo duro nas costas de Matthias, na altura da cintura.

Não era parte de um suporte.

Não era nada médico.

Passando a mão por baixo da camisa ela encontrou... o cabo de uma pistola.

Mels puxou a arma para fora do coldre e se afastou.

Era uma pistola calibre quarenta, e ela rapidamente checou a câmara. Vazia. O mesmo com o carregador.

– Você não é a única que tem permissão de porte de armas – ele disse vagamente.

Ela entregou a automática de volta.

– Pelo visto não. Posso perguntar onde conseguiu isso?

– Eu comprei.

– E esqueceu a munição?

– Não veio junto no pacote.

– Sabe de uma coisa? A pessoa que morreu no seu hotel ontem à noite levou tiros de uma arma desse calibre.

– E você acha que fui eu porque estou sem munição.

Mels deu de ombros.

– Você me disse pra não me envolver porque eu poderia morrer. Você aparece com uma arma depois de alguém ser assassinado no Marriott. Não é preciso ser nenhum Einstein pra ver uma ligação aqui.

– Eu não matei aquele homem.

– Como sabe que era um homem?

– Apareceu em todos os jornais.

Mels cruzou os braços acima do peito e encarou o chão, pensando que nada de bom poderia sair daquela conversa, considerando a direção que estava tomando.

– Acho que é melhor eu ir embora.

– Pois é – ela disse.

Que grande decepção. De um beijo para uma discussão em menos de cinco segundos.

– Sinto muito – ele murmurou quando já estava na porta.

– Por que está pedindo desculpa?

– Não gosto de sair te deixando assim.

Bom, ela também não gostava nem um pouco.

Quando a porta se fechou, Mels se perguntou se o veria de novo – e deu mais um sermão em si mesma sobre manter a cabeça erguida e não deixar que sua libido a jogasse em situações perigosas.

Aquilo não era algo que seu pai aprovaria. Não era algo que mulheres inteligentes faziam.

Mas que droga...

Depois de chutar o próprio traseiro por quinze minutos, ela voltou para a redação, encheu uma xícara de café forte sem açúcar e retornou para sua mesa.

– Diga que você não bateu meu carro também.

Ela deu um sobressalto e olhou para Tony.

– O quê...? Ah, não. Aqui estão as chaves.

– Você parece ter saído de outro acidente.

Vai entender.

Ajeitando-se em sua cadeira, ela encarou a tela do computador.

– Você está bem? – perguntou Tony. – Precisa de um chocolate?

Mels riu.

– Acho que vou ficar no café mesmo, mas obrigada.

– Então, o que é que está te incomodando?

– Estou apenas pensando como é possível, fisiologicamente, que cicatrizes num cadáver possam sumir sozinhas.

Certo, não era a pergunta que realmente estava em sua mente, mas era uma boa substituta socialmente aceitável. Ela estava mesmo pensando naquilo em algum nível de sua consciência, e Tony era uma enciclopédia ambulante, portanto aquela era uma boa oportunidade para mencionar a questão.

Agora foi a vez dele se ajeitar e encarar o vazio enquanto pensava.

– Não é possível. Cicatrizes são cicatrizes.

– Então, como você explicaria dois conjuntos de fotografias, um que mostra marcas na pele e outro que mostra a pele sem as marcas?

– Fácil. Alguém usou Photoshop.

– É isso que estou pensando.

O que ela não entendia era o “porquê”. Embora suspeitasse do “quem”.

Mels deixou a cabeça pender para o lado. Qualquer alteração não poderia ter sido feita pela fotógrafa oficial – enquanto a mulher trabalhava, havia meia dúzia de homens no recinto. E, se ela mudasse alguma coisa nas imagens depois, eles teriam apontado para a discrepância no momento em que vissem as fotos.

Então restava Monty, um homem que masturbava seu ego falando com a imprensa quando não podia e tentando criar um drama onde não havia nenhum. Quais seriam as chances de ele adulterar as imagens apenas para se divertir?

Mels começou a agir, acessando os arquivos do Correio de Caldwell.

– Ou foi isso – Tony disse –, ou foi um caso de intervenção divina.

 

– Encontrei a tatuagem.

Às cinco da tarde, Mels tirou os olhos da versão final de seu artigo sobre a prostituta. Eric estava de pé à sua frente, com uma pasta na mão, um sorriso enorme no rosto.

– Da vítima do Marriott que desapareceu no necrotério?

– Exatamente.

– Deixa eu ver – ela disse, levantando a mão.

– É o desenho de... – ele entregou a foto. – Bom, não é meu estilo. Gosto mais das tribais.

Quando ela abriu a pasta, suas sobrancelhas se levantaram. A foto era colorida, mas nem precisava – pelo menos não considerando a tinta do desenho. A tatuagem mostrava o Ceifeiro da Morte em preto e branco, com detalhes assustadores... mesmo na foto, os olhos brilhantes sob o capuz rasgado e a mão esquelética apontando para quem olha pareciam se dirigir a ela especificamente.

– Bem macabro, né? – Eric comentou. – E o cemitério também ficou legal, você não acha?

Era verdade. A horrível figura estava de pé em um campo de lápides. As tumbas se estendiam até o horizonte e a túnica decrépita cobria e obscurecia o cenário, que parecia ser infinito.

– O que são esses traços marcados embaixo? – ela perguntou.

– Deve ser a contagem de alguma coisa... e com certeza não é a contagem de amores que ele teve, eu posso apostar.

– Pode ser relacionado a alguma gangue.

– É isso que eu estava pensando, principalmente porque, segundo a minha fonte, faz pouco tempo que outro corpo chegou no necrotério com algo parecido.

– O que a polícia pensa disso?

– Estou tentando descobrir agora mesmo.

Mels olhou para Eric.

– Você já procurou a imagem na internet?

– Existem milhares de representações do Ceifeiro da Morte na internet... algumas são tatuagens. Não encontrei nenhuma idêntica a essa, mas todas são meio parecidas, se é que isso faz sentido.

– Então, como sua fonte conseguiu isso? Ouvi dizer que o arquivo também tinha desaparecido.

O Hospital St. Francis estava uma loucura por causa do incidente; era como se o homem nunca tivesse entrado no sistema.

Alguém fizera um trabalho limpo. Muito limpo.

– Tenho um colega que gosta de tatuagens. Ele tirou as fotos no celular quando o corpo chegou.

– Que ótimo – ela murmurou enquanto voltava a olhar a pasta. – Então, se assumirmos que a tatuagem é de alguma gangue, o que diabos o cara estava fazendo vestindo um colete à prova de balas ultramoderno? E o desaparecimento? Gangues não são tão sofisticadas assim pra resgatar seus mortos invadindo um hospital dessa maneira, incluindo o sistema digital. Sem chance. A mesma coisa com a máfia.

Eric mastigou sua caneta Bic.

– Tem que ser algo do governo. Quer dizer, quem mais poderia fazer uma coisa dessas?

Ela pensou na pistola descarregada de Matthias.

– Ouvi dizer que as balas eram calibre quarenta.

– A arma que foi usada contra o cara? Sim. E a boa notícia é que a polícia guardou o colete, as roupas e as botas como evidências, então elas não sumiram, como o corpo – os olhos de Eric se estreitaram. – Então, agora você vai me dizer por que está tão interessada?


– A garota da minha história também morreu com a garganta cortada. – Embora, sendo realista, quais seriam as chances de as duas mortes estarem relacionadas?

– Ah, então você está colecionando ferimentos no pescoço?

– Estou apenas sendo detalhista.

– E como está saindo a história da prostituta? Alguma coisa nova?

– Estou trabalhando em algumas coisas.

– Me chame se precisar de ajuda.

– O mesmo para você.

Quando Eric foi embora, ela percebeu que a redação estava praticamente vazia. E seu prazo para entregar o artigo estava quase acabando.

Ela leu novamente a história, e ainda não estava satisfeita. Não havia nenhuma informação nova além da identidade da vítima e, quando Mels ligou para a família, recebeu uma resposta surpreendentemente desinteressada.

Como alguém poderia não ficar abalado com a morte de uma filha?

Mels não gostava de enviar seu material daquele jeito. Estava bem escrito, e a revisão automática fizera seu trabalho, mas a verdadeira história estava com Monty e suas fotos, e ela ainda não podia acrescentar nada daquilo.

Praguejando, clicou no botão enviar e jurou que chegaria até o fundo daquela história. Mesmo se não pudesse publicar nada.

Trocou de janela no computador e voltou a analisar uma montagem de duas imagens, que preparara uma hora antes: eram de marcas semelhantes gravadas na pele do abdômen. Uma era de Cecília Barten, encontrada morta na pedreira dos arredores da cidade há alguns dias... e a outra era a imagem do que Monty dizia ser a barriga da prostituta.

O padrão das marcas parecia algum tipo de linguagem: havia caracteres idênticos nas duas fotos, embora não estivessem na mesma sequência – o que em sua mente não descartava a teoria de que Monty alterara digitalmente as fotos. Afinal, aquilo seria perfeito, pois ligaria as duas mortes sem deixar a manipulação parecer óbvia demais.

Na verdade, quanto mais pensava naquilo, mais se convencia de que a manipulação se encaixava com a personalidade de Monty. O quanto ele se divertiria se pudesse ser a “fonte” de um novo assassino em série?

Mas ela então ficou pensando: quando ninguém mais aparecesse morto como aquelas garotas, o que ele iria fazer? E seu emprego estava em jogo. Entregar informações daquela maneira já era arriscado para ele. Aumentar os riscos mentindo sobre aquilo seria muita tolice.

Talvez ele simplesmente estivesse ficando desleixado.

Mas... e quanto à cor do cabelo? A prostituta usara tintura um pouco antes de ser assassinada, um tom de loiro igual ao de Cecília Barten. Isso não mudara entre as fotos: isso acontecera de verdade.

E se Monty fosse um imitador de assassinatos?

– Como está sua situação com o transporte? – quando Mels se sobressaltou, Tony parou de guardar suas coisas. – Tudo bem por aí?

– Sim. Desculpa. Estava só pensando.

O colega pendurou uma bolsa sobre os ombros.

– Precisa pegar emprestado meu velho carro de novo?

Mels hesitou.

– Ah, eu não poderia te incomodar de novo...

– Não se preocupe. Apenas me leve pra casa e o carro é todo seu, contanto que me traga café da manhã de novo amanhã cedo – ele segurou as chaves pelo chaveiro do Kiss e ficou balançando-as de um lado para o outro. – Eu realmente não preciso dele.

– Só mais uma noite – ela cedeu.

– Você quer dizer mais dois pãezinhos de salsicha com café.

Os dois riram enquanto Mels desligava o computador. Ela levantou, jogou dentro da bolsa as fotos que Monty lhe entregara e começou a andar de braços dados com Tony.

– Você é um príncipe entre os homens, sabia disso?

Ele sorriu.

– Sim, eu sei. Mas é legal ouvir isso de vez em quando.

– Escuta, você conhece alguém que seja bom com fotografias?

– Está querendo tirar um retrato de si mesma?

– Estou querendo uma análise.

– Ah – ele segurou a porta aberta para ela passar. – Pra falar a verdade, eu conheço uma pessoa com quem você pode conversar... e provavelmente podemos encontrar essa pessoa no caminho pra casa.

 

CONTINUA

CAPÍTULO 14

– Você quer que eu faça o quê?

Em resposta, uma caixa da L’Oreal foi jogada das sombras e quando a mulher a pegou, ela pensou: certo, a noite começou muito bem. Já estava cansada, dolorida e querendo que fosse uma da manhã, quando acabava seu turno – e esse “cliente” era um esquisitão com algum fetiche por tintura de cabelo?

Estava cansada dessa rotina de prostituta; estava mesmo. Já não aguentava mais aqueles motéis velhos e escuros, e homens feios com ideias malucas – isso sem contar aquele “gerente”.

– Você quer que eu pinte meu cabelo de loiro. Sem brincadeira.

Um maço de quinhentos dólares foi jogado do canto, e a luz do teto fez as notas brilharem no quarto pouco iluminado. Com certeza parecia um presente dos céus – principalmente considerando-se que o idiota já pagara para poder entrar naquela espelunca junto dela.

– Está bem, certo – ela se aproximou e pegou o dinheiro. – Mais alguma coisa?

A voz profunda soou em um tom baixo:

– Quero que o deixe bem liso.

– Só isso?

– Só isso.

– Nada de sexo?

– Não quero você pra isso.

Sentiu um calafrio começando a subir por suas costas até chegar à base do pescoço. Mas não havia motivo para se preocupar. Havia outras garotas nos quartos dos dois lados, e o patrão estava no estacionamento a menos de dez metros. Além disso, ela carregava um spray de pimenta.

O que ele poderia fazer com ela?

Resmungando para si mesma, entrou no banheiro e acendeu a luz. No espelho, ela parecia estar em seus quarenta anos, com bolsas sob os olhos e o cabelo com a consistência de um tufo de feno. A boa notícia era que ela precisava mesmo retocar as raízes – a lateral do cabelo já estava parecendo um mapa rodoviário, com a cor natural subindo pelo couro cabeludo. Mas não porque ela quisesse imitar Marilyn Monroe.

Acontece que gostava de ser ruiva. E, caramba, se o cabelo já estava crespo daquele jeito, não seria uma tintura que iria ajudar...

Ah, veja só, veio um condicionador junto. Legal.

Colocou em cima da pia o frasco cheio de creme, o tubo da tinta e o aplicador. Demorou um pouco para ler as instruções, afinal, ela nunca fora muito boa nessa coisa de ler e escrever, apesar de aquele texto não ser nenhum tratado científico.

Através da porta entreaberta, pôde ver que o cliente sentou-se no canto mais distante, com as botas bem separadas plantadas no chão, e as mãos descansando nos joelhos em vez de estarem no meio das pernas. A luz no teto iluminava apenas a parte inferior de seu corpo, portanto não dava para enxergar o rosto. Melhor assim – isso o deixava ainda mais anônimo.

Engraçado, ela não lembrava que esses quartos eram tão escuros.

Voltando ao trabalho, furou a ponta do tubo com a tampa de plástico, espremeu a gosma mal cheirosa dentro do aplicador e mexeu a mistura como se estivesse dando um trato em um cliente. Empurrou as mãos para dentro das luvas de plástico que estavam atrás das instruções. Ainda bem que eram grandes, pois assim havia espaço para suas unhas postiças.

Aplicou a tintura nas laterais sem problemas, mas as pontas estavam embaraçadas demais. Pegou uma escova em sua bolsa e forçou os cabelos da raiz às pontas duplas até que pudesse terminar o trabalho; depois se livrou como pôde de tudo o que saiu na escova.

A tintura cheirava a aromatizador misturado com cola química e tinha a consistência de sêmen.

Será que era isso que excitava aquele cara?

Homens são tão nojentos.

Durante a espera para a tinta secar, enquanto sua cabeça queimava e o nariz coçava, enviou mensagens de texto contando sobre o esquisitão que estava com ela. Não havia razão para conversar com o cliente – ele ainda estava apenas sentado lá, como uma estátua.

Trinta e cinco minutos depois ela entrou no banho com um frasco de xampu que fora deixado na pia. Fora usado até a metade por outra pessoa, mas tinha o suficiente para uma boa enxaguada. A água morna estava gostosa e o condicionador cheirava bem melhor que a tintura.

Quando saiu, seu cabelo tinha a mesma cor de pipoca de cinema, e todo aquele amarelo dourado fez sua bunda branca quase parecer esverdeada. Vestir suas roupas de puta não ajudou muito a melhorar a imagem.

Ligando o secador na tomada, virou-se, com os pés ainda descalços.

– Está pronto?

O homem levantou da cadeira e, ao se aproximar, a luz brilhou em seu rosto. Era bonito o suficiente, mas, por alguma razão, ela desejou devolver o dinheiro e sair dali. Rápido.

– Deixe o resto comigo – ele disse, tirando o secador e a escova das suas mãos.

O barulho do ar quente rugiu em seus ouvidos quando ele começou a escovar vagarosamente os cabelos dela. Com firmeza. Com decisão. Como se já tivesse feito aquilo antes.

Que cara maluco.

Quando tudo estava seco e macio, ele desligou o secador e o colocou na pia ao lado.

Encontrando os olhos dela através do espelho, o homem apenas a encarou.

Ela limpou a garganta.

– Eu preciso ir...

De repente, o rosto dele parecia diferente, as feições pareciam estar mudando...

Ela abriu a boca e tomou seu último fôlego para gritar quando uma lâmina surgiu atrás de sua cabeça.

Com um rápido corte na garganta, o monstro abriu um novo caminho para o ar entrar nos pulmões dela, e o que seria um grito agudo de terror transformou-se em um bizarro borbulhar de sangue.

A última coisa que ela viu foi um cadáver ambulante, com um sorriso em meio à carne podre.

– É hora da festa – disse uma voz feminina.


CAPÍTULO 15

Suicídio.

Enquanto Matthias digeria a palavra, um homem do tamanho de um ônibus entrou pela porta da frente: sua jaqueta preta, luvas e calça de couro o deixavam parecido com um membro da gangue dos Hells Angels. Sua expressão severa também se encaixava na descrição – e todos aqueles piercings confirmavam que Matthias não estava diante de nenhum cara frouxo.

Jim os apresentou, classificando Matthias como um “amigo” e o colega motoqueiro como “Adrian”.

Suicídio.

Experimentando o conceito em sua mente, Matthias descobriu que se encaixava e tentou se lembrar de mais coisas: um contexto, um lugar, uma razão. Mas nada surgiu, mesmo quando ele forçou seu cérebro até doer.

Com uma súbita clareza, olhou para Heron.

– O deserto.

O homem que tinha as respostas parou de conversar com seu colega e assentiu.

– Sim. Foi lá que aconteceu.

– E você estava junto – quando Heron assentiu novamente, a frustração de Matthias rugiu. – Como diabos nós nos conhecemos...?

A resposta foi interrompida pelo som de um carro parando na frente da garagem. Instantaneamente, armas foram sacadas, e Matthias também se juntou à festa, empunhando a pistola que estava na mesa.

Deus... ele sentia-se tão bem com ela na mão. Parecia tão natural!

Matthias se esquivou pela parede e olhou por entre as cortinas. Assim que viu o que estava lá fora, se acalmou, soltando um grunhido.

– Filha da puta.

– Você conhece ela? – perguntou Jim, que estava na janela perto da porta.

Voltando a olhar entre as cortinas, Matthias observou Mels sair do Toyota e concentrar-se na Harley. Não era uma surpresa que ela tivesse encontrado a droga do endereço; se ele conseguira, ela também conseguiria. Mas não podia acreditar que ela o seguira até ali. Antes de se separarem, Matthias falara a dura realidade, e a maioria das pessoas deixaria aquele drama para trás na mesma hora.

Sou faixa preta, tenho permissão para porte de armas e nunca vou a lugar algum sem uma boa faca.

– Deixa que eu cuido disso – ele falou, andando até a porta e tirando Jim do caminho, mesmo o cara sendo muito mais pesado e saudável. – E vou deixar bem claro: ninguém toca nela. Entenderam? Ninguém.

Ele podia estar comprometido fisicamente, mas não era preciso muita força para apertar um gatilho. E se alguém se aproximasse demais daquela mulher encantadora lá fora, ele os caçaria e mataria, mesmo que fosse a última coisa que fizesse em sua vida.

No silêncio pesado, dois pares de sobrancelhas foram erguidos, mas nenhum dos homens abriu a boca.

Acho bom mesmo, garotos.

No instante em que Matthias pisou na varanda superior, os olhos de Mels dispararam em sua direção.

Com as mãos na cintura, ela de alguma forma o confrontou olho no olho, mesmo estando no térreo.

– Surpresa!

Mantendo a arma fora da vista, ele disse:

– Você precisa ir embora.

Ela acenou para a moto.

– Pegou carona com um homem morto?

– É claro que não.

Franzindo a testa, ela subitamente atravessou o cascalho e pegou o que parecia ser uma das pedras. Mas a luz do sol refletida no objeto sugeria que era algo metálico.

Mels levou a cápsula vazia de uma bala de revólver até o nariz e cheirou.

– Andou praticando um pouco sua mira?

Enquanto ela segurava a bala vazia, Matthias quis praguejar. Principalmente quando ela sorriu friamente.

– Essa bala foi atirada recentemente, não mais do que vinte minutos atrás, talvez trinta.

Guardando a arma nas costas da cintura, ele desceu o mais rápido que pôde. Ficaram frente a frente, e Matthias nunca se sentira tão impotente em sua vida. Ele tentara intimidá-la para que nunca voltasse, mas isso claramente não funcionara. Talvez a honestidade funcionasse.

Ele percorreu seu rosto com os olhos, aquele lindo e teimoso rosto.

– Por favor – ele disse num tom baixo. – Estou implorando. Esqueça tudo isso.

– Você continua falando sobre perigo, mas tudo o que vejo é um homem sem memória que não sabe o que está procurando. Olha, apenas converse comigo...

– Jim Heron está morto. E eu não sei de quem é essa Harley, ou quem estava atirando...

– Então, com quem você estava falando lá em cima? E se disser que não tem ninguém, é mentira. Não tem como você ter trazido essa moto até aqui. Seria impossível. E o motor ainda está engatado. Aposto que se eu for até ela vou sentir o tanque ainda quente.

– Você realmente precisa esquecer isso tudo...

– Não vou colocar nada disso no papel, já combinamos assim. Tudo que me disser será extraoficial...

– Então por que você se importa?

– O trabalho não é tudo pra mim.

Matthias levantou as mãos.

– Por que diabos estou discutindo com você? Você nem usa cinto de segurança. Por que eu devo esperar que...

Nesse momento, a porta se abriu e Jim Heron saiu na luz do sol.

Mels olhou para o cara e balançou a cabeça.

– Bem, quem diria... sabe, você se parece muito com aquele trabalhador da construção que levou um tiro e morreu umas duas semanas atrás. Na verdade, eu mesma escrevi o artigo sobre você para o Correio de Caldwell.

Matthias apertou os olhos com as mãos.

– Filho da puta...


A primeira boa notícia, pensou Jim, era que a mulher tinha uma sombra. Ou seja, sem chance de ela ser uma criação de Devina.

A segunda boa notícia foi Matthias ter aquela atitude que dizia “ela é minha e de mais ninguém”. Aquele bastardo cruel nunca tinha mostrado preferência por nenhuma mulher, exceto se fosse um alvo marcado para morrer – e nunca bancara o protetor em relação a ninguém. Mas algo naquela jornalista de olhos faiscantes e personalidade forte o afetara. E isso era bom.

A mulher em questão pousou os olhos em Matthias. Na verdade, ela o encarava.

– Não vai nos apresentar?

– Deixa que eu faço isso – anunciou Jim enquanto descia as escadas.

– Como é bom ver que a boa educação ainda não morreu – ela murmurou. – Se bem que, com vocês, a morte é algo relativo, não é?

Matthias não estava contente por trás daquele Ray-Ban, mas teria de engolir sua insatisfação. Junto com outras coisas.

– Meu nome é Jim – ele estendeu a mão. – Prazer em conhecê-la.

Mels parecia desconfiada, mas também estendeu a mão.

– Talvez você queira me contar o que está acontecendo aqui...

No instante que suas mãos se tocaram, Jim a colocou em transe: ela apenas o encarou, relaxada, pronta para ser informada, com a memória de curto prazo totalmente apagada.

Legal. Jim não tinha certeza se conseguiria fazer aquilo.

Matthias apertou com força o braço dele.

– Que merda você fez com ela?

– Nada. Só um pouco de hipnose – olhou para seu ex-chefe. – Vou dizer o que vai acontecer. Ela não vai se lembrar de mim, vai ser mais fácil e limpo desse jeito. E você vai levar ela até o hotel que eu vou reservar pra vocês...

Matthias estava concentrado apenas em sua jornalista.

– Mels? Mels... você está bem?

Jim colocou o rosto bem em frente aos olhos do cara.

– Ela tá bem... nunca ouviu falar em Heron, o Mágico?

Eeeee... uma arma foi sacada. Matthias a encostou no pescoço de Jim, seu rosto subitamente mostrando os velhos traços tensos dos dias de glória no antigo emprego.

– Que merda você fez com ela? – não era exatamente uma pergunta, mas uma contagem regressiva antes de apertar o gatilho.

– Bom – disse Jim calmamente –, se você atirar no meu pescoço, nunca vai conseguir tirar ela do transe, não é mesmo?

Na verdade, se o cara atirasse, nada aconteceria. Mas já havia drama demais ali, e Jim não tinha certeza se conseguiria fazer aquele truque mental em mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Além disso, por causa do estado mental frágil de Matthias, Jim não queria arriscar explodir o cérebro do cara, revelando toda aquela história de anjos e demônios. Pelo menos, não agora.

A arma não saiu do lugar.

– Faça ela voltar. Agora.

– Você vai levá-la para um quarto de hotel.

– Sou eu quem tá segurando uma arma. Eu faço os planos.

– Pense bem. Se você estiver com ela, vai poder se certificar de que eu não vou mais importunar ela, certo?

A voz de Matthias ficou mais grave do que o normal.

– Você não sabe com quem está falando.

– E você também não – Jim inclinou-se na direção do cara. – Você precisa de mim. Sou o único que pode te contar o que você quer saber. Confie em mim. Estou mais ciente que você sobre o quanto seu passado está enterrado, e ninguém além de mim pode desenterrá-lo. Então entre na merda do carro, faça ela dirigir com você até o hotel Marriott no centro da cidade, e eu te encontro lá quando achar que estou pronto.

Matthias apenas ficou onde estava, impassível por um longo tempo.

– Eu poderia atirar agora mesmo.

– Então atire.

Matthias franziu a testa e levou a mão livre até a têmpora, como se estivesse com dor de cabeça.

– Eu... já atirei em você, não é...?

– Temos muita história juntos. E se quiser descobrir tudo, fique com ela. E não discuta. Agora eu tenho controle sobre você, e sou eu quem dita as regras. Uma ótima mudança de cenário, se me permite dizer.

Jim voltou para as escadas e subiu, deixando Matthias parado em frente a Mels. No andar de cima, ele estalou os dedos e entrou no apartamento. Depois assistiu por trás da cortina quando a mulher saiu do transe e os dois começaram a conversar.

– Então Matthias é a alma – disse Ad enquanto mordia um sanduíche.

– Parece que sim.

– Tem certeza de que quer colocar a mulher no meio disso?

– Você viu a maneira como ele olha para ela?

– Talvez ele só queira uma transa.

– Boa sorte pra ele – Jim murmurou. – E, sim, ela vai ser valiosa para nós.

A questão agora era descobrir qual seria a encruzilhada. Mais cedo ou mais tarde, Devina apresentaria uma escolha para Matthias, e Jim teria até então para mudar completamente aquele déspota sem consciência e faminto por poder, transformando-o no oposto disso.

Ótimo. Que maravilha.

Estava tão plenamente satisfeito com seu emprego que praticamente engasgava com essa merda toda.

– Vamos até o hotel – ele disse.

– Que hotel?

– O Marriott – Jim foi buscar sua carteira. Havia um cartão de crédito em seu nome que não estava exatamente atualizado, mas a Master-Card não descobriria que ele estava tecnicamente morto, simplesmente porque Jim não iria contar.

Adrian limpou a boca com um guardanapo.

– Tem certeza de que quer fazer isso num local tão público? O centro da cidade é cheio de gente e Devina adora ser o centro das atenções.

– Sim, mas a falta de privacidade vai deixá-la de mãos atadas. Primeiro, ela vai ter que limpar qualquer confusão. Segundo, ela vai precisar ter muito cuidado ao decidir como proceder nessa rodada; e não acho que matar civis inocentes seria visto com bons olhos pelo Criador.

Jim foi até o armário improvisado e tirou seus coldres. Vestindo-os, colocou sua adaga de um lado e uma arma do outro. Checou os bolsos, querendo saber quantos cigarros ainda tinha...

Um pedaço de papel dobrado no bolso de trás da calça o fez parar e fechar os olhos por um instante.

Não havia razão para pegar o artigo de jornal; ele já sabia o texto de cor. Cada palavra, cada parágrafo – e principalmente a foto.

Sua Sissy.

Que não era realmente dele.

Mas que estava sempre com ele. Nunca esquecida.

Certificando-se de que Adrian não podia vê-lo, tirou o papel, desdobrou a página e observou a foto. Ela tinha dezenove anos quando foi levada pelo demônio, eternamente presa naquele muro de almas.

Jim franziu a testa e olhou para a porta. Matthias estivera naquele Inferno maldito. As coisas que vira lá dentro...

Oh, merda, o que ele tinha feito lá?

A ideia de que a garota ainda estava lá sofrendo era suficiente para deixar Jim queimando de raiva.

– Se apresse, Ad – ele murmurou. – Temos que ir.


CAPÍTULO 16

Sentado no banco do passageiro do Toyota, Matthias sentia que estavam em um passeio. Mels não apenas obedecia a todos os sinais de trânsito, como também dirigia a dez quilômetros por hora em uma via em obras cheia de britadeiras e rolos compressores.

Ele a observou. Ela parecia estar bem, calma, normal, mesmo não se lembrando de Jim Heron.

Que diabos aquele cara tinha feito com ela?

Normalmente, Matthias não teria acreditado naquela coisa toda. Que merda é essa de hipnose? Mas... bem, ele estava mais ou menos na mesma situação, mas em vez de esquecer alguns minutos, ele não se lembrava da droga da sua vida inteira.

E, de qualquer maneira, o que “normalmente” significava nesses dias?

Quando pararam em um sinal vermelho ao final da via em obras, ele olhou através da janela.

– Não gosto de não estar no controle.

– Ninguém gosta – Mels respirou fundo. – Estou contente por você me deixar te levar de volta ao hotel.

Se você estiver com ela, vai poder se certificar de que eu não vou mais importunar ela, certo?

Matthias passou os dedos por baixo do Ray-Ban e esfregou os olhos.

– Estamos quase chegando – ela disse. Como se pensasse que ele iria desmaiar, ou algo assim.

Mas aquilo não tinha nada a ver com sua saúde física.

– Você me faz sentir... impotente.

– Não acho que seja eu. Acho que é por causa da situação em que você está.

– Não, é você – ele sentia que, se Mels não estivesse envolvida, as coisas seriam mais fáceis, mesmo se ele nunca se lembrasse de qualquer evento de sua vida: ele só precisaria se preocupar consigo mesmo, e ter um problema era definitivamente melhor do que ter dois.

– Eu tentei fazer a coisa certa – ele murmurou, e então se perguntou para quem realmente dissera aquilo.

– E você está fazendo a coisa certa ao se dirigir pra um lugar onde pode descansar. Suas últimas 24 horas foram caóticas. Você precisa dormir.

Deixando a cabeça cair no encosto do banco, Matthias fechou os olhos e pensou no confronto com Jim. Estivera plenamente preparado para apertar o gatilho e matar o cara.

Dormir não era exatamente o que ele precisava. Talvez algemas e uma avaliação psicológica: naquele momento em que seu dedo esteve no gatilho, não houve hesitação de sua parte – encostara o cano no pescoço do cara com rapidez, sem se importar com testemunhas e sem nenhum apelo moral de sua consciência quanto ao valor de uma vida humana.

Será que ele fora um soldado? Porque aquela atitude não tinha nada de civil, era totalmente militar.

Sim, pensou, era isso. E ele fora um dos tipos mais perigosos de soldados... aqueles que possuem um grande vazio no peito. O que significava que eram capazes de tudo.

Você odiava o homem que era.

Quando o semáforo ficou verde, Mels dirigiu por uma rua onde havia um pequeno centro comercial cheio de lojas grudadas umas nas outras. Eram coisas que ele nunca notava: os pequenos cafés aconchegantes, as lojas que vendiam presentes artesanais, as butiques de bijuterias e badulaques. Tudo tão banal. Tão cotidiano. Tão normal...

– Eu tentei cometer suicídio.

Mels pisou no freio por um instante, mesmo com o trânsito fluindo bem pela via de quatro pistas em que estava.

– Você tentou...? – limpou a garganta. – Sua memória está voltando?

– Algumas coisas.

– O que aconteceu? Quero dizer, se eu não estiver me intrometendo demais.

Pensando novamente em Jim Heron, ele respondeu com suas palavras:

– Eu não gostava de quem eu era.

– E quem você era?

Era sombrio como a noite, frio como o inverno, cruel como uma lâmina. Mas guardou isso para si.

– Você é persistente, sabia?

Ela tocou o próprio peito.

– Repórter. Faz parte do meu emprego.

– Estou descobrindo isso.

Matthias fechou novamente os olhos e escutou o motor do carro rugir e se acalmar. Quando algo morno e macio cobriu seu pulso, ele se exaltou. Era a mão de Mels, sua bondosa e elegante mão.

Por algum motivo, ele não podia acreditar que ela gostaria de tocá-lo.

Engolindo seco, ele apertou a mão dela e então desfez o contato.

Eles chegaram ao Marriott dez minutos depois. O lugar era um típico hotel de cidade grande, pairando sobre jardins bem cuidados no meio do centro comercial de Caldwell. Entraram pelo pórtico principal e acabaram em meio a uma confusão de carros, porteiros e pessoas carregando bagagens. Afinal, já passava das três da tarde, o que significava que era a hora da correria para os viajantes.

– Você vai subir comigo? – Matthias escutou a si mesmo dizer, enquanto imaginava quem poderia tê-los seguido; e que tipo de relacionamento ele realmente tinha com Jim Heron.

O cara tinha usado a palavra ajuda, mas sempre é preciso se perguntar que tipo de motivação está por trás de um gesto bem intencionado, e não é muito esperto simplesmente aceitá-lo cegamente.

– Vou te fazer companhia até você estar bem instalado, o que acha?

– Está... bem – ele ainda preferia uma separação direta, mas isso já não era possível.

Graças a Heron.

Se bem que... não era nada mal poder passar mais um pouco de tempo com ela.

Mels dirigiu lentamente entre funcionários que empurravam carrinhos de bagagem e seguiu para o estacionamento. O ar quente do motor invadia o interior do carro, então Matthias abriu uma fresta da janela – mas logo percebeu que aquilo não adiantaria. O ar que vinha do motor era a fonte do mal cheiro.

Mels entregou o carro de seu amigo para um manobrista – que não pareceu muito entusiasmado para estacionar aquela lata velha – e os dois entraram por uma porta giratória até o saguão subterrâneo, que estava decorado com carpetes vermelho-sangue e paredes douradas. Infelizmente, apesar daquela combinação – ou talvez por causa dela –, a decoração parecia mais a de um bordel do que um lugar para negócios: era uma tentativa mal sucedida de imitar o luxo de um Four Seasons.

– Sempre achei que este lugar se esforçava demais para parecer o Waldorf – Mels disse enquanto apertava o botão do elevador. – Mas estamos em Caldwell, não em Manhattan.

– Engraçado, eu estava pensando a mesma coisa.

– Aliás, não repara no meu mau humor – ela disse. – Sabe como é, eu não sou daqui.

– Você é de Nova York?

– Bom, eu nasci aqui, mas sou de lá. Estou só esperando pra voltar.

– O que te mantém em Caldwell?

– Tudo. Nada – Mels olhou ao redor. – De um jeito estranho, eu invejo a sua amnésia.

– Se eu fosse você, não invejaria.

Pois é, Matthias realmente não queria isso para ela, e não porque estava sendo um cavalheiro. De pé ao seu lado, ele até mataria para saber mais sobre Mels, sua família, onde ela crescera, tudo o que a trouxera para este momento de fragilidade.

– Mels...

Antes que ele pudesse perguntar, uma família se juntou a eles na espera pelo elevador, as filhas correndo de lá para cá, os pais parecendo viver presos em uma versão do Inferno que cheirava a chiclete e era povoada por diabinhos vestindo roupas de princesa que pediam sorvete a cada três minutos.

Ding!

Quando as portas do elevador de abriram, Matthias colocou as mãos nas costas de Mels e a conduziu para dentro. Ele não queria parar de tocá-la, mas baixou o braço e teve de aguentar o olhar vidrado das crianças em cima dele.

No saguão do andar térreo, a agitação do pórtico invadia a área da recepção, e havia uma fila de pessoas serpenteando por um labirinto de cordões de veludo.

– Isso é um pesadelo – Matthias murmurou secamente.

– Poderia ser pior. Nunca ouviu falar do Motel 6?2

– Bom argumento.

Quando finalmente chegou sua vez de serem atendidos na recepção, Matthias deu seu nome, mas não tinha certeza de como aquilo funcionaria. Normalmente, você precisa apresentar o cartão de crédito com o qual fez a reserva...

– Ah, sim, sr. Hault, o senhor já fez o check-in – a mulher disse, digitando com rapidez. – Só preciso da sua carteira de motorista.

Matthias olhou ao redor do saguão. Como diabos Heron conseguira chegar até ali e arranjar tudo? O trânsito estava pesado, mas não tão pesado na rota que ele e Mels fizeram. Podia ser, é claro, que o cara tivesse tirado um helicóptero do traseiro.

E quanto ao cartão de credito, será que Heron usara um próprio? O filho da puta supostamente estava morto, então era de se imaginar como a companhia poderia enviar a conta para o Cemitério Pine Grove. Por outro lado, números de cartão de crédito eram tão fáceis de arranjar como um livro em uma biblioteca, se você conhecesse as pessoas certas – e, considerando o olhar no rosto do colega de Heron, acesso ao mercado negro com certeza não seria difícil.

– Senhor? A carteira de motorista?

– Sim, desculpe.

Quando entregou a carteira, a recepcionista sorriu profissionalmente. Sua expressão era equivalente a um tapete de boas-vindas.

– Certo, aqui estão os cartões para o seu quarto. É só pegar o elevador até o sexto andar. O senhor vai ficar no quarto...

Não no 666, pensou ele, sem motivo aparente.

– ... 642. Gostaria de alguém pra ajudar com a bagagem?

– Não, pode deixar. Obrigado.

– Espero que goste da estadia.

Enquanto ele e Mels se dirigiam para os elevadores, Matthias observou todo o saguão, sem mover a cabeça. As pessoas ao redor não eram nada especiais... apenas gente normal carregando malas, ou falando no celular, ou discutindo com a esposa/marido/namorado. Ninguém estava prestando atenção nele, e é por isso que às vezes locais públicos podem ser o lugar mais seguro para você se esconder.

Mesmo assim, ele estava contente por ainda possuir a arma que pegara de Jim.

A segunda espera por um elevador foi maior do que a primeira, e quando finalmente chegou, Mels deu um passo para a frente junto de outro casal.

Matthias tocou seu braço e a fez esperar.

– Vamos pegar o próximo.

As portas se fecharam enquanto ela o observava.

– Claustrofobia?

– É. É isso.

Desta vez, ele deixou a mão em Mels por um pouco mais de tempo. De pé atrás dela, era possível observar o quão mais alto ele era, mesmo Mels não sendo nenhuma baixinha – e Matthias imaginou como seria apertar o corpo dela contra o seu.

Um pensamento estranho, por muitas razões. Mas que inegavelmente lhe trouxe uma imagem mental...

– Chegou outro – ela disse, quebrando o contato entre eles. – E estamos sozinhos desta vez.

Cara, quando se tratava de Mels Carmichael, sozinhos parecia realmente um termo muito bom.

A viagem até o quarto foi tranquila – com exceção da direção que seus pensamentos estavam tomando. E a outra boa notícia era que o quarto não ficava longe da saída de emergência. Perfeito. Lá dentro, o espaço era preenchido de maneira padrão, com uma cama, escrivaninha, armário e cadeira, mas o que mais chamou sua atenção foi o colchão king-size.

Mas ela não estava procurando por um caso com um estranho, e ele nem conseguiria dar conta do serviço, de qualquer maneira.

Quando Matthias se aproximou da janela e fechou a cortina, Mels acendeu a luz do banheiro e olhou ao redor.

– Você vai ter uma bela banheira.

Sem querer, ele observou-a de cima a baixo e concluiu que sim realmente gostava de suas curvas naquela calça apertada.

Merda. Ele a desejava – e muito. Queria ela nua e debaixo de seu corpo, com as pernas bem abertas enquanto a penetrava fortemente.

Limpando a garganta, ele disse, com a voz rouca:

– Posso te pagar um jantar? Eu sei que é cedo, mas estou com fome.

Estava mesmo era faminto por ela. Dane-se a comida.

Endireitando-se, ela o observou, e Matthias ficou aliviado por ainda estar usando os óculos dela. Nada de bom poderia sair do olhar que ele estava escondendo por trás das lentes escuras. “Desejo” não era a palavra certa, não naquela circunstância.

Ei, veja só, quem diria. Ele podia ser um assassino casual, mas ao menos tinha um pouco de decência.

– Sim – ela sorriu um pouco. – Claro. Eu gostaria de comer algo.

Enquanto Matthias olhava o cardápio que pegou sobre a escrivaninha, disse a si mesmo que estava apenas fazendo o que Jim Heron sugerira: mantendo-se junto de Mels, pois assim saberia que ela estava bem.

Ele podia não conhecer seu passado, mas de uma coisa tinha certeza: estava disposto a morrer para proteger aquela mulher inteligente e bondosa... e seu traseiro perfeito.


N.T.: Motel 6 é uma rede de hotéis de baixo custo e qualidade.


CAPÍTULO 17

Mels finalmente conseguiu terminar uma porção de batatas fritas.

Elas vieram junto com um hambúrguer perfeitamente ao ponto, uma fatia de picles bem generosa e uma Coca saída de um comercial, com o copo transpirando e tudo mais.

Sobre o console de mogno, a televisão do quarto estava ligada no canal WCLD, uma afiliada local da NBC, e o jornal das cinco horas estava começando.

– Tenho que dizer – ela murmurou, pegando a última batata e passando no ketchup – que essas batatas são bem melhores que as do Riverside.

Matthias, sentado na cama, ainda estava comendo seu sanduíche, mas ela podia perceber que ele olhava em sua direção. Mesmo com os óculos escuros.

Ele fazia muito isso: seus olhos pousavam nela como se gostasse da maneira como ela se movia, mesmo quando estava sentada – e, por alguma razão, aquilo o deixava ainda mais sexy... ao ponto de fazer Mels se perguntar como seria ter aquilo sem nenhuma barreira.

Quer dizer, os olhares.

Você sabe, sem o Ray-Ban...

Droga, ela estava se fazendo corar.

– Sabe, você pode tirar se quiser – ela disse suavemente. – Os óculos.

Ele congelou. E então voltou a mastigar. Depois de engolir, disse:

– Me sinto melhor com eles.

– Certo, é você quem manda.

Matthias não disse nada sobre sua busca por Jim Heron, ou sobre como descobriu o endereço no qual se encontraram. Ele apenas entrara no carro do Tony e a deixara dirigir até ali.

Mas é claro que Mels não questionaria essa mudança de postura.

– Não tem alguém em casa te esperando? – ele perguntou casualmente.

– Ah, na verdade não. Acho que não tenho muita vida pessoal.

– Sei como é isso... – ele parou. – Caramba, na verdade eu sei mesmo como é isso.

Ela esperou que ele continuasse. Em vez disso, Matthias apenas ficou lá sentado encarando seu prato de comida, que ainda estava na metade, como se aquilo fosse uma televisão.

– Me conta – ela disse.

Ele deu de ombros.

– Não sou casado. Não tenho filhos. Não tenho ninguém permanente. O que explica por que ninguém está me procurando... bem, pelo menos não no sentido familiar.

– Sinto muito. E quanto a seus pais?

Matthias estremeceu, depois pareceu se recompor.

– E então...? – ela insistiu.

– Não lembro nada sobre eles.

No silêncio que se seguiu, ela apanhou sua bandeja e colocou no corredor. Quando voltou para dentro, sabia que era hora ir.

Provavelmente, também era hora de esquecer aquela história.

Jim Heron estava morto – ao menos de acordo com o arquivo não-tão-distante do Correio de Caldwell, e também com aquela lápide do túmulo. Ela encontrara seu endereço por meio de uma das fontes que dera declarações para o jornal – mas, claro, ele não estava lá.

Uma dor de cabeça surgiu em suas têmporas, mas passou quando ela mudou seu pensamento para Matthias Hault. Ele estava seguro ali, e se recuperando bem. E, quanto à sua memória, ele era o único que podia chegar ao fundo da questão. Mels fizera o que podia para ajudar com o básico; mais do que isso... ela poderia dar dinheiro se ele a processasse pelo atropelamento, mas ele não parecia ter essa intenção.

Claro, havia algo de estranho sobre aquela casa que supostamente era “dele”, e outras coisas que não faziam sentido, como quem realmente estivera naquela garagem. Mas, se ela não iria publicar nada daquilo, os detalhes realmente não eram da sua conta.

Mels se aproximou e sentou ao pé da cama. Quando Matthias colocou a bandeja de lado e a encarou, aquele calor percorreu novamente seu corpo.

Definitivamente, ela estava atraída.

Principalmente ali naquele quarto, onde estavam a sós. Mas ela realmente não estava procurando esse tipo de complicação.

– É melhor eu ir – Mels disse, tentando ler seu rosto.

– Então vá – ele sussurrou, olhando-a olhos nos olhos através das lentes escuras.

Nenhum dos dois se mexeu, o corpo grande e malhado dele ficou tão imóvel quanto o dela.

Deus... Mels queria que ele a beijasse. O que era loucura...

– Você me faz... – Matthias respirou fundo.

– O quê?

Inclinando-se para frente, ele esticou a mão e acariciou seu rosto.

– Você me faz desejar que eu fosse diferente.

O toque fez o coração dela parar – e então acelerar.

– Acho que você é um homem muito melhor do que pensa.

– E é exatamente isso que me assusta.

– A ideia de que você é um homem bom?

– Não, a ideia de que você pensa assim.

Mels desviou o olhar brevemente e se perguntou o que diabos estava fazendo naquele quarto de hotel... desejando que os dois arrancassem a roupa e suas inibições. Caramba, eram ambos adultos, e ela estava realmente cansada de viver uma vida pela metade, de querer coisas que não tinha, de adiar seus sonhos em troca de nada.

Ela queria viver plenamente de novo. Do jeito que era antes de as coisas mudarem, antes de se mudar para Caldwell e sabotar... a si mesma.

Franzindo a testa, ela começou a imaginar há quanto tempo não sentia-se dessa maneira.

E então...

Não tinha certeza do que a fez agir – a voz dele? Os olhos, que ela não podia ver, mas podia sentir? Seu orgulho inveterado misturado com uma ponta de insegurança?

A garota das cavernas que havia dentro dela?

Qualquer que fosse a motivação, Mels colou os lábios contra os dele. De um jeito breve, recatado. Mas poderoso.

Quando ela se afastou, Matthias parecia surpreso.

– Mais uma coisa fora do seu controle, não é? – ela disse com a voz baixa.

– Você parece ter um talento para isso.

Bom, ela também surpreendera a si mesma. Mas acontece que simplesmente não conseguia pensar em uma razão para lutar contra o desejo que sentia por ele. A vida é curta... e, depois daqueles últimos dois anos, Mels tinha mais medo de não correr riscos do que de voar por um instante para depois cair em um desastre.

– Se importa se eu terminar o que você começou? – ele disse com um grunhido.

– Nem... um pouco.

Ouvindo a resposta que queria, Matthias deslizou a mão atrás do pescoço de Mels e a puxou para mais perto, possuindo-a, tomando o controle. E, no segundo antes das bocas se encontrarem, ela pensou que era incrível como os dois eram relativos estranhos e, no entanto, a essência dele era melhor do que qualquer contexto ou situação: ela se sentia segura com aquele homem misterioso, apesar de ele tentar convencê-la do contrário.

E, meu Deus, ela realmente o desejava.

E parecia que o sentimento era mútuo.

Matthias a beijou com força e a soltou; então voltou a beijá-la como se ainda não fosse suficiente. Enquanto travavam uma luta com as línguas, ele a segurava pela nuca, controlando o ritmo, ganhando e cedendo espaço. Com um ardor se concentrando onde há muito não sentia nada, Mels parecia decolar de maneira louca e selvagem – e pensou que aquilo era o que precisava. Exatamente aquilo, ali mesmo, com aquele homem.

Sexo naquele quarto, naquela cama. Com ele.

Abruptamente, Matthias se afastou, como se precisasse recuperar o fôlego.

– Por acaso você tem o hábito de beijar suas histórias? – ele perguntou com a voz rouca.

– Você não é uma história. Nada disso é oficial, lembra?

– Bem lembrado – os olhos dele percorreram o corpo de Mels. – Quero você nua.

Ela sorriu vagarosamente.

– Não é exatamente uma surpresa, considerando o jeito como me beijou.

Com um grunhido, ele avançou para cima dela novamente, deslocando-a pelo colchão, rolando sobre ela. Antes do “acidente”, ele provavelmente dominava fisicamente as mulheres – não de maneira violadora; não havia coerção ou o sentimento de estar presa por ele. A melhor descrição seria dizer que era uma dominação animal.

Principalmente quando sua perna se enfiou entre as dela, a coxa pressionando seu sexo.

Mels se arqueou contra o peso do peito dele e colocou os braços ao redor de seu corpo.

Com um movimento sutil, ele a segurou, e então parou totalmente. Quando se afastou, havia tensão em seu rosto – e não do tipo vou-agarrar-você-agora.

– O que foi? – ela sussurrou. – Qual é o problema?


Matthias se arrastou para o pé da cama. Seus pulmões estavam queimando e sua cabeça doía muito. Mas que droga de corpo! Lá estava ele com uma bela e saudável mulher que tinha todos os sinais de estar sexualmente atraída por ele, porém... o desejo existia, mas o corpo não ajudava.

Ele a queria. Mas não havia muito que pudesse fazer.

Pensando naquela enfermeira e na maneira como ela o havia tocado, parecia uma piada cruel que seu problema tivesse voltado justo agora: a distância entre ele e sua repórter era tal que nenhuma quantidade de beijos a resolveria. Nem carícias, toques ou mesmo nudez total. Mais uma vez, estavam em lados opostos de um túmulo – ela no mundo dos vivos, ele no cemitério.

Por alguma razão, aquilo o deixou ainda mais desesperado para possuí-la. E, com uma súbita clareza, ele lembrou que no passado tivera todas as mulheres que quis – e nunca sofrera por falta de voluntárias. Mas isso não significava que se importasse com elas.

No caso de Mels era diferente. Ela era diferente.

Mas Matthias nunca poderia tê-la totalmente, não com seu corpo naquele estado.

– Qual é o problema? – ela perguntou novamente.

Matthias não queria que ela soubesse. Mesmo que Mels fosse descobrir mais tarde, gostaria de preservar por um pouco mais de tempo a ilusão de que era um homem de verdade. Se é que iria vê-la novamente.

– Não acredito que estamos fazendo isto – ele se esquivou. Mas era verdade. Toda aquela história, desde acordar ao pé da sepultura de Jim Heron até o acidente com ela, não parecia estar certa. Era como se alguém estivesse manipulando tudo, como se a perda de memória tivesse um propósito.

– Nem eu – ela respondeu, olhando para sua boca como se quisesse mais.

Ela não parecia o tipo de mulher que gostava de encontros casuais. Não se vestia com roupas provocantes, não se insinuava em seus movimentos, não tentava seduzir a todo momento. E emanava uma vibração hesitante, mas positiva, como se fizesse algum tempo que as coisas não aconteciam com ela, e sentisse que estava na hora.

Diga para ela ir embora, pensou Matthias. Impotência à parte, havia muitas outras razões para não ficarem juntos naquela noite. Ou em qualquer noite.

Voltando a se aproximar, ele colocou as mãos ao redor de seu corpo e a puxou para perto – mas não perto demais. Os quadris não se encostaram.

Deus, ela cheirava muito bem.

As sensações estavam todas lá: o calor correndo em seu quadril, o coração batendo com urgência, os braços e pernas parecendo ainda mais fortes do que o normal. Mas seu pênis não participava desse conjunto.

Talvez fosse melhor assim, pois precisava dizer a ela que...

– Posso fazer algo por você? – ele soltou.

Certo, isso não era exatamente um “boa noite”.

– Você já fez.

– Tenho muita certeza de que posso fazer melhor.

– Bom, quem sou eu para impedir um especialista?

Quando ele se aproximou para beijá-la novamente, pensou em como ela ficaria com a blusa aberta e sem o sutiã, os seios prontos para receber seus lábios, a pele macia da barriga conduzindo-o para outros territórios.

Tudo aquilo era incrivelmente bom, e também parecia tão novo para ele – mas essa sensação não se devia ao fato de que nunca estivera com Mels antes. Ele sentia como se nunca tivesse se apaixonado de verdade por alguém. Por outro lado, considerando a falta de memória... realmente era como se ele nunca tivesse ficado com outra pessoa antes.

Do nada, uma imagem atingiu seus sentidos. Ele e uma mulher de pele escura e macia de pé contra uma parede. Ele a segurava pela garganta e ela o envolvia com as pernas, e Matthias a penetrava furiosamente...

Ele se afastou num sobressalto. De uma só vez, várias imagens inundaram sua mente, uma linha cronológica de todas as mulheres com quem já tinha transado – jovens, quando ele era jovem; mais velhas e variadas, quando já estava adulto; e então uma série de mulheres extremamente agressivas.

Ele viu a si mesmo com elas, quando seu corpo era forte e inteiro, suas emoções claras e organizadas, seu coração frio como gelo. Ele via as mulheres, nuas ou seminuas, armadas e desarmadas, tendo orgasmos com grandes movimentos exagerados.

– Do que está se lembrando? – Mels perguntou.

Ele abriu a boca para falar, mas a sucessão de nomes, lugares, rostos era um dilúvio do qual não conseguia se livrar, uma avalanche entupindo seus neurônios, deixando-o quase inconsciente. E, quando cedeu àquela força, sentiu seu corpo sendo conduzido de volta para os travesseiros, não mais no papel de dominador.

Levando as mãos à cabeça, ele praguejou.

– Vou chamar um médico...

Matthias esticou o braço e agarrou o pulso dela.

– Não, estou bem...

– Não, não está!

– Só me dê um minuto.

Ele respirou brevemente e decidiu parar de lutar contra aquela onda. Foi a decisão certa – em vez de se atropelar, as lembranças começaram a se revelar de modo mais ordenado. Ao menos... até chegar ao final. A última lembrança o mostravam junto com... algum tipo de monstro? Deve ter sido um pesadelo... mas, Deus, ela era horrível, e estava transando com ele como uma forma de tomar posse de seu corpo, em um calabouço no fundo de um poço escuro...

Pânico o atingiu como um relâmpago, fazendo Matthias se contorcer fortemente. Mas ele continuou segurando Mels pelo pulso, certificando-se de que ela não correria para o telefone.

– Por favor – ouviu-a dizer.

– Nada... de médico... já está passando...

Por fim, ele a soltou, tirou os óculos escuros e esfregou os olhos.

– Achei que lembraria das coisas devagar.

– Posso, por favor, chamar o atendimento médico? – ela pegou uma pasta e colocou em frente ao seu rosto. – Tá vendo? O hotel tem um médico de prontidão.

– Não, sério, estou bem. É que veio tudo de uma vez. A gente nunca pensa em quanta coisa fica guardada aqui em cima – ele apontou para a cabeça. – É muita informação.

– De que tipo de informação estamos falando?

Ele desviou o olhar.

– Bom, eu definitivamente não sou virgem. E não vamos nos aprofundar no assunto.

– Ah.

Houve um embaraçoso momento de silêncio. Então, Mels limpou a garganta.

– Sabe, acho melhor eu ir embora.

– Pois é.

Ela se levantou. Pegou o casaco. Vestiu-o.

– Antes de eu ir... – ela se aproximou da escrivaninha e escreveu algo no bloco de notas do hotel. – Aqui está o número do meu celular de novo...

O celular começou a tocar em seu bolso.

– Falando no diabo... – Matthias murmurou enquanto a observava terminar de escrever antes de atender a chamada.

– Alô – sua voz estava animada e profissional, e ele gostou de saber que ela podia se recuperar tão rápido.

Bom, na verdade isso era só mais uma coisa de que ele gostava naquela mulher.

Mels franziu a testa.

– Onde? Temos alguém ligado a ela? Como ela morreu? É mesmo? Certo, estou indo agora mesmo. Ainda estou com o carro do Tony – ela desligou o celular e pegou a bolsa. – Tenho que ir.

– Alguma coisa oficial?

– Meu chefe deve estar mudando de atitude. Ele me mandou para uma cena de crime.

– Ele não costuma reconhecer suas qualidades?

– Não aquelas que eu quero que reconheça – ela parou na porta. – Você tem certeza de que está bem?

– Você sempre foi uma santa assim? – ele murmurou.

– Não até te conhecer.

Quando ela já estava saindo pela porta, ele a chamou:

– Mels.

Ela virou a cabeça e a luz do corredor iluminou seu rosto. Quando seus olhos se encontraram, Matthias pensou que seria capaz de trocar todas aquelas mulheres que apareceram em sua memória por uma noite com Mels.

Não vou sair desta vivo, ele pensou.

Então, se algum dia tivesse mais uma chance de beijá-la, não iria parar. E quem sabe? Talvez tivesse mais sorte da segunda vez.

Contanto que não tivesse mais uma daquelas tempestades em sua memória.

– Use o cinto de segurança – ele ordenou, com a voz baixa.

– Chame um maldito médico – ela retrucou, com um pequeno sorriso.

Quando a porta se fechou, ele praguejou consigo mesmo. E então pensou em como se sentira quando a beijou.

Correndo o olhar por seu quadril, começou a pensar que gostaria de se tornar um homem saudável outra vez.


CAPÍTULO 18

O bar do saguão do Marriott fora nomeado em homenagem ao proprietário original do hotel, um tal de Não-Sei-Lá-Quem Sasseman. Pelo menos foi isso que a garçonete contou a Adrian com uma voz provocante enquanto anotava o pedido de cervejas dele e de Jim. Ela também fingiu deixar cair sua caneta e abaixou lentamente para pegar, depois foi embora rebolando como se sua pélvis tivesse recebido uma troca de óleo e ficado lubrificada demais.

Sua atitude até fazia sentido, já que os outros clientes dali eram homens de negócios com olhares esguios que provavelmente já estavam no time do Viagra, e ela era uma bela jovem com vinte e poucos anos.

Nos tempos de Eddie, Adrian teria ido atrás dela em um piscar de olhos.

Mas agora aquilo simplesmente não despertava sua atenção.

O banco no qual estavam sentados era revestido de couro sintético e fazia um barulho peculiar toda vez que um deles se ajeitava. Mas o lugar era perfeito para seus propósitos: ficava de frente para a grande porta que dava no saguão. Ninguém podia entrar ou sair sem que eles soubessem.

Se bem que, com o radar de Jim, eles conseguiriam rastrear Matthias e aquela mulher mesmo se estivessem parados no estacionamento de trás: o anjo certificara-se de tocar os dois, e mesmo Ad podia sentir a magia de rastreamento emanando pelos andares do hotel. O casal estava seis andares acima, muito próximos um do outro.

O que fazia ele se perguntar o que estavam fazendo.

Provavelmente jogando cartas.

É claro.

Enquanto os minutos passavam, transformando-se em uma hora inteira, as conversas dos outros clientes eram a única coisa que preenchia o silêncio. As cervejas transformaram-se em jantares. O tempo... parecia não passar.

Cara, ser imortal podia ser mesmo um saco quando a pessoa não se importava com nada. Tudo o que se tem é o tempo. Que ótimo, longas horas que perpetuamente o mastigavam com seus dentes, comendo-o vivo, mas mantendo-o inalterado.

Bom, com que ótimo humor ele estava naquela noite!

E esse humor não mudou nada enquanto observava as próprias mãos. A mancha negra que vira quando estava no chuveiro não reaparecera, mas ele não conseguia parar de checar a cada segundo para ver se ela tinha voltado. Até agora tudo bem, com exceção do sentimento de morte que o perseguia naquela noite.

Sentia literalmente como se seu corpo tivesse sido esvaziado por dentro, e não restasse nada além de um espaço dentro de seu peito...

– Ela está descendo – disse Jim, dando um último gole na cerveja quente que estava guardando. – A mulher saiu do quarto.

Ad não se importou em terminar seu copo. Na verdade, não tinha gostado nem de começá-lo.

Mas era melhor que Coors Light, de qualquer maneira.

– Você fica com ela – disse Jim enquanto entravam no saguão. – Não quero que ela fique sozinha.

– Mas a alma não é ele?

– Acho que sim. E se for, então ela é a chave para esta rodada.

– Tem certeza?

– Percebi o jeito como ele olha pra ela. Isso é tudo o que preciso saber – Jim acenou na direção da repórter que estava saindo do elevador. – Fique na cola dela. Vou esperar Devina aparecer por aqui.

Ad não estava interessado em ficar seguindo a namorada de Matthias. Ele queria esperar pelo demônio. Queria ficar cara a cara e rezar para que ela fizesse outra piada sobre Eddie – só para poder mostrar que não se abalava mais com qualquer coisa que ela dissesse. E depois, queria olhar em seus olhos enquanto a frustração explodia dentro dela até forçá-la a atacá-lo fisicamente.

E nesse momento ele poderia acabar com tudo. Lutar até morrer. Ter o fim de um verdadeiro guerreiro.

A vadia com certeza venceria, mas como seria bom arrancar umas camadas de carne dela. E depois, sentiria o alívio por tudo estar acabado.

– Adrian? Alô? Você está aí?

– Quero ficar aqui.

– Preciso de você junto daquela mulher. Ela precisa ficar viva tempo suficiente para influenciar Matthias. Se Devina conseguir farejar essa conexão entre eles, a mulher vai virar um defunto flutuando no rio Hudson. Ou pior...

Jim o encarou, deixando sua lógica subentendida – o anjo mais poderoso deveria enfrentar o demônio, e naquele momento não era Ad. E não por ele não possuir aqueles poderes legais de Jim.

– Você quer vencer – Jim disse com a voz calma –, ou quer nos ferrar de vez?

Ad praguejou, virou-se e concentrou-se na essência da mulher. Começou a andar normalmente, pois seria complicado demais desaparecer em meio àquela plateia.

Dirigindo-se para o elevador que levava ao estacionamento, a namorada de Matthias andava como se estivesse em uma missão, e Ad invejou aquele senso de propósito. Mas não invejou seu meio de locomoção. A lata velha tinha um motor e um teto – fora isso, mal se podia chamar aquilo de carro.

Só para deixar as coisas mais engraçadas, ele se transportou para o banco de trás – e apareceu em meio a um monte de jornais e revistas velhas, suficientes para encher a Biblioteca do Congresso. A boa notícia foi que ela escolheu justo aquele momento para ligar o motor – mas ainda ouviu o barulho de traseiro invisível amassando aquele monte de papel. Ela virou a cabeça e encarou o vazio onde ele estava. Só para ser legal, Ad deu um tchauzinho, mesmo que ela pensasse estar sozinha no carro.

– Estou perdendo a cabeça – ela murmurou enquanto engatava a primeira marcha e acelerava o carro.

Era uma boa motorista. Rápida nos pedais, eficiente no trânsito.

Acabaram na parte oeste do centro da cidade, em um motel que era apenas um pouco melhor do que um canil. Depois de saírem do carro – ele ainda invisível, ela ainda obstinada –, eles se juntaram a uma convenção de policiais e repórteres que se concentrava em um quarto à esquerda.

Adrian franziu a testa e abruptamente passou a se preocupar com aquela cena. Quando a mulher que estava protegendo se aproximou dos policiais que guardavam a fita amarela de isolamento, ele passou pela fraca proteção e se infiltrou na aglomeração de pessoas.

Que diabos?, pensou consigo mesmo.

Devina estivera ali; seu fedor residual pairava no ar como se um caminhão de lixo tivesse despejado um carregamento por toda parte.

Adrian se espremeu para dentro e precisou pressionar o nariz para não engasgar com o cheiro ruim que não afetava os humanos.

Olá, garota morta.

Do outro lado de quatro ou cinco policiais, um corpo estava visível através da porta aberta do banheiro: pernas brancas, tatuagem nas coxas, roupas que estavam amarrotadas como se ela tivesse resistido a um ataque. A garganta fora cortada e o sangue respingara na blusa cheia de lantejoulas e nos azulejos onde ela estava deitada.

Era loira, graças à L’Oréal: os restos do kit de tintura de cabelo estavam espalhados pela pia, e luvas de plástico manchadas, no lixo. E o cabelo fora alisado – graças ao secador Conair e a uma escova que tinha fios pretos grudados no meio e fios mais claros nas laterais.

– Maldita Devina – murmurou Ad.

– A fotógrafa já chegou? – gritou um homem de aparência cansada.

Os policiais olharam uns para os outros, como se não quisessem dar a má notícia.

– Ainda não, detetive De la Cruz – disse alguém.

– Aquela mulher me deixa louco – o cara falou, pegando o celular e andando para o outro lado.

Quando os policiais se aproximaram do detetive, como se quisessem assistir à fotógrafa levar uma bronca, Adrian aproveitou o espaço livre no banheiro e ajoelhou-se.

Rezando para não encontrar nada, levantou um pedaço da blusa ensopada.

– Ah, mas que droga...

Por baixo da blusa, a pele clara fora marcada com símbolos que não estavam endereçados àquela mulher, nem aos homens que a encontraram ou à família que lamentaria sua morte.

Era uma mensagem de Devina.

E Ad nunca, nunca permitiria que Jim visse aquilo.

Ad olhou o aglomerado de policiais ao redor do detetive, certificando-se novamente de que o telefonema estava lhe proporcionando um pouco de privacidade. Então passou a palma da mão várias vezes sobre a carne que fora marcada.

Felizmente, ainda restava um pouco vitalidade nas células da pele. Mas a remoção foi vagarosa.

– ... venha aqui agora – gritou o detetive – ou eu mesmo vou tirar as fotos! Você tem quinze minutos para chegar...

Ad franziu a testa, concentrando-se, esforçando-se o máximo que podia. Os símbolos foram esculpidos fundo na pele e pareciam irregulares, como se tivessem sido desenhados com uma faca dentada... ou, mais provável, com uma garra.

– Vamos lá... vamos lá... – ele olhou para trás. A reunião estava terminada, e o detetive estava voltando.

Retirou a mão e levantou-se rapidamente – então lembrou que ainda estava invisível.

– Quem mexeu no corpo? – exclamou o detetive. – Quem mexeu no maldito corpo?

Merda. A camisa ainda estava levantada um pouco acima dos seios. E não era assim que estava antes. E a pele estava avermelhada de um jeito não natural, considerando-se não apenas a etnia da vítima, mas também o seu estado de decomposição. Ainda assim, Ad atingira seu objetivo e isso era mais importante do que qualquer confusão que os humanos teriam para entender o que acontecera.

Que diabos Devina estava aprontando agora?

– Aquela vadia! – Adrian rosnou enquanto caminhava para fora. – Ela vai pagar por isso.

Jim já estava cansado de vigiar o saguão, mas ficou por lá mesmo com o cair da noite. Matthias ainda estava em seu quarto e isso significava que tudo o que Jim podia fazer era esperar.

Assim era a vida de um agente: grandes períodos de inatividade separados por grandes arroubos de uma dança que decidia entre a vida e a morte.

Droga, aquilo era igualzinho aos bons e velhos tempos – que não tiveram nada de “bons” e naquele momento nem pareciam tão velhos, pois a antiga identidade de Matthias não era a única coisa em que Jim estava pensando. Desde que seu novo emprego como anjo tomara conta de sua vida, era como se tudo o que acontecera antes tivesse sido apagado – mas nesta rodada isso não acontecera. Jim podia ter deixado sua outra vida de lado, mas isso não significava que ele não tinha muita história...

Olhando para o teto circular, ele franziu a testa. Matthias estava se movendo.

Um minuto e meio depois, as portas do elevador se abriram e o homem surgiu no saguão, apoiando-se em sua bengala, usando óculos escuros mesmo à noite. As pessoas ao redor notaram sua presença – mas sempre fora assim, como se o poder de Matthias criasse um farol que sinalizava até para os mais desatentos.

Tornando-se visível, Jim entrou no caminho do cara.

– Marcou algum encontro para tarde da noite?

O Ray-Ban virou em sua direção, mas a reação parou por aí.

– Você virou minha babá?

– Pois é, e estou sendo mal pago – Jim acenou para a porta giratória da entrada principal. – Está indo a algum lugar?

– Não, só quero tomar um pouco de ar. Sinto que... – Matthias passou a mão no cabelo. – Estou preso. Não aguento mais olhar para aquelas paredes... O que foi? Por que está me olhando desse jeito?

Antes que Jim pudesse pensar em uma mentira, disse:

– Você parece muito mais humano agora.

– Que merda isso quer dizer?

Jim deu de ombros.

– Não importa. Posso ir junto?

– Eu tenho escolha?

– Você pode tentar sair correndo.

– Não é legal tirar sarro de um inválido.

– Inválido? Onde?

Matthias soltou uma risada.

– Certo. Faça o que quiser.

Lá fora, a noite estava mais quente do que o normal para essa época do ano e um grosso nevoeiro deixava o ar pesado, com sua umidade pairando entre nuvens sobre o asfalto, como se não conseguisse decidir se despejava a água ou não.

Jim tirou seu maço de cigarros do bolso, acendeu um e exalou um fio de fumaça. Com o nevoeiro, os Marlboros e o ressoar de seus passos na calçada, aquela cena podia perfeitamente fazer parte de um film noir... principalmente quando perceberam que havia um grupo de homens seguindo seus passos – ou marchando, como parecia o caso.

Mas. Que. Diabos?

Todos os seis cretinos vestiam roupas de couro, o que poderia indicar que eram góticos... mas a maneira como andavam atrás de seu líder tinha um ar de militar profissional.

Quando o grupo passou por eles, Matthias e Jim se puseram de lado, e o líder lhes lançou um olhar.

Realmente era um filho da puta mal encarado, com os olhos cheios de agressividade.

Hum... em sua antiga vida, Jim poderia até considerá-los candidatos para recrutamento. Pareciam capazes de matar qualquer coisa ou qualquer pessoa em seu caminho, principalmente o cara da frente.

Mas Jim já não era o mesmo. E tinha esperança de que Matthias também não fosse.

– Lembrei de uma coisa – disse seu antigo chefe, quando ficaram novamente sozinhos na calçada.

– Lembrou?

– Apenas coisas pessoais. Nada em que eu estivesse interessado.

Quando o silêncio se tornou tão pronunciado quanto o nevoeiro, Jim deu outro trago no cigarro e falou, enquanto exalava a fumaça:

– Está esperando que eu preencha o silêncio?

– Você é quem quis vir junto. Podia pelo menos fazer alguma coisa útil.

– E eu pensando que estava aqui só pra deixar a paisagem mais bonita.

– Não pra mim, cara – quando Jim não respondeu, Matthias virou o olhar em sua direção. – Então, estive pensando sobre você.

– Não de um jeito romântico, espero.

– Não, eu costumava gostar de mulheres. Gostar muito.

– Costumava?

Matthias parou e o encarou.

– O que quero saber é...

Da outra ponta do quarteirão, uma figura surgiu na calçada com jeito de quem está acostumado a fazer emboscadas, e a arma que disparou na direção deles quase não fez barulho. Tudo o que Jim viu foi a breve explosão quando a bala saiu pelo cano do silenciador.

Praguejando, ele saltou sobre Matthias e o empurrou para um beco. Sua força de seus cem quilos levantou o homem no ar e os dois voaram juntos até atingirem o chão como se estivessem em câmera lenta. No meio da queda, e com perfeita sincronização, ambos sacaram suas armas, miraram no atirador e puxaram o gatilho – e então Jim girou o corpo para cair no pavimento por baixo de Matthias servindo como colchão para o outro.

Não havia tempo a perder, e ele não precisava dizer isso a seu ex-chefe – claramente, sua preferência por mulheres não era a única coisa que Matthias lembrava. Em um piscar de olhos ele já estava de pé e pronto para se proteger atrás de um carro que estava a uns três metros de distância.

Mais tiros foram disparados na direção deles, ricocheteando no pavimento, na porta e no pneu do carro. O atirador os seguiu e se manteve nas sombras enquanto se aproximava.

Esse tipo de movimentação esquiva também era um indicativo. O agressor chegou sem fazer barulho, e não só porque usava uma arma com silenciador igual à de Jim: não havia som dos passos nem respiração pesada; aquela pessoa era um assassino treinado, acostumado com aquele tipo de situação.

Um agente das Operações Extraoficiais, pensou Jim. Tinha que ser.

Praguejando novamente, olhou ao redor à procura de opções. O carro não era bom o suficiente para dar cobertura, pois tinha um tanque de gasolina – Jim sabia o quanto poderia aguentar, mas não sabia bem como Matthias se encaixava nessa coisa de voltar dos mortos, e uma explosão de um carro não seria a melhor maneira de testar.

Agarrando um dos braços de Matthias, ele ajudou o cara a correr para trás do carro – que, por pura sorte, estava estacionado em frente à entrada de serviço do hotel, com duas portas de metal no meio de um muro de tijolos. Jim foi direto para a maçaneta e tentou girar.

Obviamente estava trancada.

Mas que se dane. Ele sabia o que tinha de fazer.

Lançando uma rajada de energia no metal, ele explodiu o mecanismo da tranca e, usando o ombro, empurrou a porta. Quando ela cedeu com um rangido, Matthias congelou, como que condicionado pelo medo.

Ele arrastou o homem para dentro e voltou a fechar as portas. Ajudando-o a ficar de pé, lançou outra rajada de energia, desta vez mais longa e forte, e soldou rapidamente a porta, para que ganhassem um pouco de tempo para a fuga.

A boa notícia era que funcionou – e seu ex-chefe estava ocupado demais checando a munição para notar o truque mágico.

Com a bengala em uma das mãos e a arma na outra, Matthias recobrou a consciência.

– Por aqui – gritou, como se estivesse no controle. – Tem que ter uma saída.

Jim não contestou a liderança e voltou a apoiar o cara. Enquanto percorriam o caminho, manteve um olho na retaguarda.

Não era preciso ser um gênio para saber quem era o alvo. Matthias era o antigo chefe das Operações e havia “morrido”. O procedimento padrão era confirmar visualmente a morte, mas ninguém pudera fazer isso, já que Isaac Rothe se livrara dos restos mortais.

De algum jeito, eles descobriram que Matthias estava bem vivo e perambulando por Caldwell.

Talvez Devina tivesse um “contato” na organização.

– Você trancou a porta atrás de nós? – Matthias grunhiu.

– Sim – e provavelmente o assassino teria dificuldade em...

A explosão foi rápida e precisa, pouco mais do que um lampejo de luz. E então a porta rangeu mais uma vez e o agente surgiu no corredor.

À frente, Jim não encontrou nenhuma porta. Apenas o longo corredor que se estendia até onde podia enxergar.

Como se tivessem o mesmo cérebro, Matthias e ele se viraram e apertaram o gatilho, disparando tudo que tinham. Tiros, deles e do agente, ricochetearam por toda parte – e nem é preciso dizer que Jim se posicionou na frente de Matthias, usando o próprio corpo como escudo.

Alguns tiros o acertaram e a dor foi desagradável, mas nada que pudesse matá-lo ou desviar sua atenção. E então, a munição da dupla acabou.

O mesmo aconteceu com o agente.

Houve uma breve calmaria, que claramente estava sendo usada pelo agente para recarregar, e Jim não tinha escolha a não ser correr novamente. Feitiços de proteção eram ótimos contra os lacaios de Devina, mas não eram muito eficazes contra tiros reais. Então, usando o corpo como escudo, escolheu um lado do corredor e correu como um louco. E enquanto passavam por pilhas de cadeiras do restaurante, Matthias ajudou como pôde – mas, com sua deficiência nas pernas, era melhor que ficasse parado e se deixasse carregar pelo chão.

Afinal, não tinham tempo para discutir se aquilo feria a dignidade de Matthias ou não.

Percorreram três metros e então Jim percebeu que não havia mais tiros.

Nenhum profissional demoraria tanto para recarregar. O que diabos estava se passando?

Naquele instante, sentiu a presença de Devina, tão perceptível quanto uma sombra passando por sua própria tumba.

Que merda fantástica.


CAPÍTULO 19

– Vamos lá, Monty, você precisa me dar alguma coisa.

Diferente dos outros repórteres na cena do crime, Mels não ficou no meio da confusão em frente à fita amarela que isolava a porta entreaberta do quarto. Ela estava do outro lado, em meio ao nevoeiro que surgiu de repente junto com seu velho amigo Monty, o Boca. Monty era um bom policial, mas o que o tornava muito útil era seu ego. Ele adorava contar detalhes dos crimes só para mostrar que podia, e isso era muito conveniente.

Mas aquela noite era diferente, pois a história era sua – dessa vez Mels não estava juntando informações para outra pessoa.

Ela se aproximou.

– Eu sei que você sabe o que tá acontecendo.

Monty ajeitou o cinto e passou a mão no cabelo cheio de gel. Aquela figura parecia saída de outra época. Se raspasse a cabeça e tivesse um pirulito na mão, ficaria a cara do Kojak.

– Pois é, fui um dos primeiros a chegar. Você sabe, na cena do crime.

O problema com Monty era que ele fazia você se esforçar pelas informações.

– Quando você foi chamado?

– Duas horas atrás. O gerente ligou para a emergência e eu era o policial mais próximo do local. O cara que alugou o quarto pagou por apenas um período de uma a cinco horas, mas já tinham se passado nove horas e ninguém tinha feito o check-out na recepção. Eu bati na porta. Ninguém respondeu. O gerente usou sua chave e... bom, lá estava.

– O que você acha que aconteceu? – era importante usar o pronome você.

– Era sabido que ela era uma prostituta, então há três possibilidades.

Depois de uma pausa, ela completou o raciocínio, como já era o costume entre eles.

– Um cafetão, um desconhecido ou um namorado ciumento.

– Nada mal, nada mal – ele ajeitou novamente o cinto. – A porta não foi arrombada. Claramente houve resistência, já que as roupas dela estavam amarrotadas. Mas nem tudo parecia ser um caso do beco azul.

“Beco azul” era uma referência a um corredor pelo qual, por gerações, os policiais levavam suspeitos para dar entrada na delegacia. Com o tempo, o termo se tornou um código para casos criminosos sem nada de anormal ou de inesperado.

– E a surpresa foi...?

Monty aproximou o rosto, como se estivesse prestes a contar um segredo.

– Ela tinha acabado de pintar o cabelo. Por alguma razão, isso fez parte do programa. Deixou o cabelo loiro e liso. E então ele a matou.

– Como sabe que era um “ele”?

Monty lançou um olhar descrente.

– E, não, não posso dar o nome dela. Ainda não foi divulgado porque estamos procurando a família. Mas eu sei quem ela era, e ela tem sorte de ter sobrevivido os últimos dois anos. Sua ficha é longa e tem muita violência... e ela como agressora.

– Certo, bom, você me liga se puder contar mais alguma coisa? Eu não divulgo minhas fontes, você sabe disso.

– Sim, nisso você é boa, mas, sem ofensa, você não cobre muito esse tipo de crime. Escuta, você não pode me colocar em contato com seu amigo Tony? Geralmente é ele quem faz esse tipo de show.

Naquele momento, ela perdeu um pouco do respeito por Monty, e não por ele desdenhar da falta de credenciais dela com o Correio de Caldwell. Pelo amor de Deus, ele não era nenhum astro do rock, aquilo não era nenhum show e, caramba, será que dava para parar de mexer naquele coldre? Aquilo era uma cena de crime, e a filha, irmã ou namorada de alguém estava morta ali no banheiro.

Ele podia pelo menos ficar um pouco constrangido e se sentir culpado por vazar aquelas informações. Assim como ela estava.

– Dick me passou essa pauta – ela disse.

– É mesmo? Ei, parece que você está evoluindo. E, sim, eu te ligo, desde que não cite meu nome.

– Eu prometo.

– Nos falamos mais tarde – ele acenou para o lado, dispensando-a. – E atenda o telefone quando eu ligar, tenho um pressentimento sobre este caso.

Ela mostrou o celular.

– Eu sempre atendo.

Quando Mels se virou, ela passou a mão na nuca e sentiu os fios de cabelo arrepiados. Olhando ao redor, viu apenas pessoas trabalhando. Policiais. Detetives. Uma fotógrafa passando apressada pela fita. Havia também duas equipes de jornalismo no estacionamento, uma delas gravando e lançando luzes fortes sobre uma jornalista de cabelos morenos.

Mels virou-se completamente. Esfregou a nuca mais um pouco.

Cara, esse nevoeiro estava estranho.

Checando o relógio, pegou o celular e fez uma chamada. Quando alguém atendeu, colocou as mãos em forma de concha ao redor da boca.

– Mãe? Oi, sou eu. Escuta, eu sei que disse que ia chegar cedo, mas ainda estou trabalhando. O quê? Desculpe, não estou escutando... Certo, agora melhorou. Sim, eu... ah, não, não se preocupe. Estou com metade da força policial aqui... – provavelmente não foi a melhor coisa para dizer. – Não, estou bem, mãe. Sim, é um homicídio, mas é um caso grande, e estou contente porque o Dick me passou. Sim, eu prometo. Certo... sim, claro. Escuta, preciso ir... e eu bato na porta assim que chegar em casa.

Ela desligou, achando que não chegaria tão cedo em casa – e estava preparada para esperar o tempo que fosse necessário. O corpo precisaria ser fotografado, a equipe forense viria fazer exames e só então a vítima poderia ser removida.

Mels ficaria até que a polícia terminasse seu trabalho, os jornalistas da televisão fossem embora e qualquer outro repórter tivesse desistido.

Andando até o carro de Tony, enviou uma mensagem de texto ao colega, dizendo que ainda não dera perda total em seu veículo – e que o levaria para almoçar amanhã e o pegaria em casa às oito e meia em seu caminho para o trabalho.

Então ela dobrou o casaco sobre si mesma e sentou no capô do carro.

Imediatamente, Mels se levantou, tensa e olhou para trás. Mas não havia nada além de postes de luz no lado mais distante do longo estacionamento do motel. Ninguém espreitando atrás dela, ninguém mesmo.

Então por que tinha a sensação de estar sendo vigiada?

Massageando a cabeça, ela começou a imaginar se a paranoia de Matthias era contagiosa. Ou talvez aquilo que acontecera entre os dois na cama estivesse embaralhando seu cérebro.

Não importa o que digam sobre amnésia, aquele homem sabia muito bem como usar os lábios...

Por algum motivo, ela não podia acreditar que aquilo tinha acontecido. Mels nunca gostara de encontros casuais, mesmo nos tempos de faculdade – mas, se Matthias não tivesse parado, ela deixaria que as coisas chegassem à sua conclusão natural cheia de nudez.

Que surpresa. Principalmente porque sabia que seria capaz de fazer aquilo de novo.

Se é que teria uma nova chance.


Congelado no corredor do porão do Marriott, com Jim Heron o cobrindo como um cobertor, Matthias sentia-se como um boxeador. Mas não como Muhammad Ali ou George Foreman. Sentia como se fosse um sparring, aqueles caras que servem como parceiros de treino e que os verdadeiros lutadores esmurravam antes de encarar um oponente à altura: sua arma estava descarregada, seu peito arfava, a cabeça girava, estava exausto por toda aquela correria. Pelo menos parecia que não fora atingido pelos tiros.

Mas alguém fora. O cheiro de sangue fresco os perseguia e o som de alguma coisa pingando sugeria um vazamento – e provavelmente não era no encanamento do hotel.

– Fique aqui – ordenou Jim.

Como se fosse uma garotinha?

– Vai se foder.

Juntos, eles marcharam em direção ao atirador incapacitado, com Jim na frente porque ele conseguia andar um pouco mais rápido.

Pouco depois da porta que eles arrombaram, um homem vestindo roupas apertadas pretas estava de costas no chão, com os olhos fixos e dilatados, encarando o vazio. Sua garganta fora rasgada logo abaixo da linha do queixo – as veias e artérias não foram apenas cortadas, mas totalmente abertas, em um corte limpo.

– Que sujeira – murmurou Matthias, que olhava ao redor pensando em como limpar tudo aquilo... e se perguntando quem diabos os salvara.

Enquanto considerava os prós e contras de várias técnicas de descarte de cadáveres, estava ciente de que a morte, o corpo, a violência de ter sido perseguido a tiros, essas coisas pouco o afetaram emocionalmente: aquilo era o trabalho de sempre, nada além de ações práticas que visavam evitar o envolvimento da polícia.

Era assim que ele vivia, pensou. Aquela era a sua praia.

Apoiando-se na bengala, abaixou-se e um de seus joelhos estalou como um galho de árvore.

– Você tem um carro?

– Não aqui, agora, mas posso cuidar disso. Faça um favor e...

Matthias começou a revistar o cadáver, apalpando-o, retirando a munição extra, uma faca e outra arma.

– Certo, certo – Jim disse com a voz seca. – Vou dar uma olhada lá fora pra ver se não tem ninguém na rua.

– Então você também não sabe quem é o nosso bom samaritano?

– Nem ideia.

A porta de metal rangeu novamente quando Jim a abriu e, por uma fração de segundo, Matthias ficou paralisado de medo, o terror congelou seu corpo do coração até os pés. Seus olhos percorreram todas as direções buscando inimigos nas sombras, esperando que saltassem sobre ele a qualquer momento.

Não havia nada.

Resmungando consigo mesmo, voltou a se concentrar e abriu a camisa do homem. O colete à prova de balas tinha pelo menos uma marca de tiro – então ele e Jim não haviam desperdiçado toda a munição. Nada de celular. E, considerando que Jim acabara de sair mas não fora de encontro a uma saraivada de balas, não havia ninguém para dar cobertura àquele soldado.

Sentando-se, Matthias avaliou a porta de metal. No centro, ao redor do mecanismo da tranca, havia uma mancha queimada onde o agressor usara algum tipo de bomba portátil.

De repente, Matthias foi atingido por uma lembrança, na qual enxergou as próprias mãos segurando um detonador de uma bomba improvisada. Ele a preparara para atingir a si próprio: era uma combinação de circuitos eletrônicos e explosivos que serviriam como rota de fuga da sua vida...

Jim estava errado. Ele não odiava a si mesmo ou o que se tornara. Estava apenas exausto de ser quem era.

E ele era o...

A dor de cabeça surgiu com força, como se o cérebro tivesse uma cãibra: a dor limpou seus pensamentos e as memórias foram bloqueadas novamente pela agonia.

Merda, ele queria acesso ao que estava escondido, mas não podia arriscar ficar indefeso debruçado sobre um cadáver.

Baixando os olhos até o rosto do morto, se forçou a parar de pensar na amnésia e notou a mudança na cor da pele do cara: a vermelhidão causada pelo exercício era substituída por um cinza opaco. Acompanhando o processo da morte e concentrando-se apenas nisso, ele conseguiu voltar à realidade.

– Eu conheço você? – perguntou ao cadáver.

Parte de si estava convencida de que sim. O rosto pertencia a um jovem de pele clara, magro por falta de gordura no corpo, pálido por falta de sol, como se estivesse acostumado a trabalhar à noite. Por outro lado, quantos milhões de caucasianos na casa dos vinte anos existiam por aí?

Não, pensou, ele conhecia aquele garoto de algum lugar.

Na verdade, sentia que escolhera aquele filho da puta.

Será que ele participava de algum recrutamento? Para os militares?

Jim voltou ao corredor, fechou a porta e se recostou nela, cruzando os braços em cima do peito e parecendo querer socar uma parede.

– Estamos sozinhos? – perguntou Matthias.

– Eu diria que sim.

Abruptamente, notou os furos na camisa de Jim.

– Ainda bem que você também está usando colete à prova de balas.

– O quê?

Matthias franziu a testa.

– Você foi atingido...

De uma só vez, seu cérebro cuspiu outro pedaço do passado: viu os dois em uma sala forrada de aço inoxidável, um corpo gelado deitado em uma maca entre eles, uma arma levantada, um gatilho sendo acionado... na direção do maldito Heron. E foi Matthias quem atirou.

– Eu atirei em você em um necrotério – Matthias soltou. – Eu atirei em você... bem no meio do peito.


CAPÍTULO 20

Que sincronia perfeita, pensou Jim enquanto Matthias o encarava como se tivesse brotado um chifre no meio de sua testa.

Não era uma boa hora para a memória dele voltar a se conectar: claramente, alguém das Operações estava seguindo o rastro de Matthias. Essa era a única explicação lógica para o que acontecera – embora não fosse isso que estava embaralhando seu cérebro.

Evidentemente, Devina salvara seus traseiros.

Ela surgiu, esfaqueou e sumiu. E, como o demônio nunca fazia nada que não fosse para o próprio benefício, Jim ficou imaginando qual seria o motivo daquilo tudo. Talvez nenhum – afinal, se queria influenciar Matthias em sua nova encruzilhada, Devina precisava que ele continuasse vivo.

E Jim obviamente não fizera um trabalho muito bom protegendo o cara.

– Eu atirei em você... – Matthias repetiu.

Jim lançou um olhar do tipo supere-logo-isso.

– E daí? Você quer uma medalha? Vou comprar uma pra você na internet. Mas antes que fique aí todo existencialista, saiba que é pra isso que existe colete à prova de balas, certo?

– Você não estava usando um – Matthias retirou os óculos escuros e estreitou o olhar. – E não está usando agora.

– Certo, estamos num local público com um cadáver cheio de balas que saíram das nossas armas. Você realmente acha que é hora pra ficar de conversa?

– Eu conheço esse cara – Matthias apontou para o morto. – Mas não sei dizer de onde.

– Olha, vou levar o lixo para fora. Se não se importa, dá pra voltar para a droga do seu hotel agora?

– Fale comigo. Ou não vou a lugar nenhum.

Por uma fração de segundo, Jim lembrou-se claramente da razão de sempre chamar o cara de Matthias, o Cretino.

– Que seja. Você era o chefe dele.

– Que tipo de chefe eu era?

Eles não tinham tempo para aquilo.

– Bom, posso dizer que não era do tipo que eu gostava.

– Eu também era seu chefe... não é mesmo? – quando Jim não respondeu, o outro apertou os dentes. – Por que diabos você tá me deixando no escuro? De um jeito ou de outro vou acabar juntando todos os pedaços, e tudo o que você tá fazendo é me deixar cada vez mais nervoso.

Merda. Havia uma possibilidade muito real de o cara não se mover, e Devina poderia voltar – ou, quase tão ruim, a polícia ou os seguranças do hotel poderiam aparecer.

– Certo – Jim disse, frustrado. – Acontece que eu tenho medo que, se você souber, vai acabar no Inferno. Satisfeito?

Matthias recuou.

– Você não parece um religioso fanático.

– Porque eu não sou. Então, podemos parar com essa besteira e começar a nos mexer?

Matthias apoiou-se nos pés, colocou a bengala nos ombros e segurou os calcanhares do cadáver.

– Você não vai conseguir evitar essa pergunta pra sempre.

– Que diabos você está fazendo?

– Vamos lidar com isto juntos.

– Não, não vamos...

O som de sirenes interrompeu a discussão e os dois olharam para a porta ao mesmo tempo. Com sorte, os policiais passariam direto – o som aumentaria e depois diminuiria quando as viaturas começassem a se distanciar...

Não. Alguém devia ter visto ou ouvido alguma coisa e chamado a polícia.

Quando um carro freou no beco, Jim quis sair daquela situação da maneira mais fácil – colocar Matthias em transe, teletransportar o cadáver e jogar uma névoa na mente dos policiais que, naquele exato instante, saíam das viaturas com lanternas nas mãos. Mas o truque mental era difícil de fazer com mais de uma pessoa ao mesmo tempo. E botar fogo no corpo denunciaria sua posição aos policiais.

Com sorte, eles levariam um tempo vasculhando o beco primeiro.

– Fique calado – Jim grunhiu. Então agarrou Matthias pelo tronco, sustentando-o com o ombro, e começou a correr pelo corredor.

– Você... está... de... brincadeira... – Matthias disse, aos pulos, enquanto era carregado.

A sessão de reclamação parecia ter terminado, fosse porque Matthias engolira a língua na correria ou porque seu cérebro fritara de vez. Mas, caramba, pelo menos conseguiram chegar ao final do longo corredor, e dessa vez Jim não precisou esconder a rajada de energia que usou para abrir outra tranca. Irrompendo pela porta, ele...

Oh, merda.

... entrou direto nos fundos de um dos restaurantes do hotel.

A boa notícia era que parecia ser uma instalação usada apenas para o café da manhã e almoço; o lugar parecia uma cidade fantasma, os balcões de aço inoxidável da cozinha estavam limpos e prontos para o próximo turno. Infelizmente, o arrombamento disparou o alarme de segurança e luzes vermelhas começaram a piscar por toda parte.

– Por ali – Matthias disse, apontando para um conjunto de portas duplas com janelas redondas. – E me ponha no chão.

Jim soltou o cara e ambos voltaram a andar, passando por um fogão tão longo quanto um campo de futebol e por uma pia grande o suficiente para dar banho em um elefante. Enquanto seus passos ecoavam no chão de ladrilho vermelho, Jim olhou ao redor em busca do controle do alarme. Que, claro, não estaria bem visível no meio daquela cozinha enorme. Além disso, mesmo se ele pudesse desligar o alarme, o sinal já fora enviado para alguma central.

Passando pelas portas duplas, entraram em um salão cheio de mesas quadradas esperando por esfomeados que só apareceriam dali a sete horas.

No lado mais distante, as grandes janelas de vidro vermelho que separavam o restaurante do saguão principal mostravam um trio de pessoas correndo – provavelmente seguranças do hotel.

Ele e Matthias olharam para a esquerda, onde cortinas que iam do chão ao teto cobriam grandes janelas duplas de estilo antigo.

Sem discussão, partiram para a única saída disponível. E, para o crédito de Matthias, ele não tentou bancar o herói quando chegaram ali; parou pouco antes e deixou Jim cuidar da tranca usando a alça de bronze da janela.

Jim usou mais do que o peso de seu corpo para abrir a janela. Usou seu poder mental, e a janela abriu com um estalo, como se estivesse se soltando de uma tintura recém-seca.

Era uma queda de quatro metros até o chão.

– Merda – disse Matthias. – Você vai ter que me pegar.

– Sim, senhor.

Com um impulso coordenado, Jim jogou-se nas mãos frouxas da gravidade. Aterrissou com firmeza em suas botas de combate e deixou os braços levantados. O pulo de Matthias seria mais complicado, parecia que ele tinha dificuldade para dobrar as pernas, mas o cara era esperto. Ele agarrou a janela e a fechou pelo lado de fora, mesmo com seu traseiro quase não cabendo no parapeito.

Quando deixou o corpo cair em queda livre, sua jaqueta preta se agitou inutilmente, como se fosse um paraquedas que levara um tiro.

Jim agarrou seu ex-chefe com um grunhido, impedindo que ele atingisse o chão.

– Encontraram nosso amigo – Matthias disse enquanto se recompunha.

De fato, do outro lado do edifício, os policiais haviam aberto aquela porta dupla e entrado no corredor. Suas lanternas se refletiam pelo beco, como se estivessem vasculhando ao redor do cadáver.

Hora de virar fantasma.

Movendo-se o mais rápido e silenciosamente que podiam, os dois tomaram a direção oposta. Diferente das Operações Extraoficiais, cobertura era o procedimento padrão da polícia de Caldwell e, como já esperavam, mais sirenes ecoaram pela noite.

Pouco mais de cinquenta metros depois, eles pararam no outro canto do hotel, olharam ao redor e saíram do beco, com o máximo de calma que conseguiam fingir.

– Tire os óculos – Jim disse enquanto focava a calçada à frente.

– Já tirei.

Jim olhou para seu ex-chefe. O homem estava com o queixo erguido e olhava diretamente para a frente. Seus lábios estavam entreabertos e ele respirava como um trem de carga, mas ninguém perceberia, a menos que procurassem especificamente por sinais de falta de ar.

Até onde as pessoas podiam notar, os dois eram apenas amigos que haviam saído para um passeio, longe de estarem ligados a qualquer acontecimento estranho.

Jim ficou com muita vontade de dizer ao seu antigo chefe que o cretino fizera um bom trabalho. Mas aquilo seria ridículo. Os dois foram treinados pelo mesmo sargento, passaram anos exercitando técnicas de evasão lado a lado e estiveram em muitas variações desse mesmo cenário.

Quando entraram no saguão, Matthias já estava respirando normalmente.

Nem é preciso dizer que o cara continuaria hospedado no Marriott. Agora que a tentativa de fuga não só fora frustrada, mas também acabara envolvendo a polícia, uma nova tentativa seria mais arriscada e complicada, pelo menos nos próximos dias.

Além disso, depois de conhecerem aquela cozinha de primeira...

Seria uma pena não experimentar o almoço.


A persistência de Mels foi recompensada... de um jeito triste.

As equipes de reportagem foram embora depois da meia-noite, e então os policiais começaram a deixar o local. Até Monty foi embora antes dela. Finalmente, restaram apenas a equipe forense, dois detetives e Mels.

A fita de isolamento da polícia foi diminuindo cada vez mais à medida que as pessoas iam embora, e Mels também foi se aproximando cada vez mais da porta aberta do quarto do motel. Então, quando chegou a hora de remover a vítima, ela teve uma visão clara do procedimento. Dois homens entraram com um grande saco preto e, por causa do espaço pequeno no banheiro, tiveram que colocar o saco na sala e carregá-la para fora.

Pobre garota.

– É, foi terrível.

Mels virou-se, sem saber se tinha falado em voz alta. Um cara alto e de aparência assustadora estava atrás dela – era um típico mal-encarado com piercings no rosto e uma jaqueta de motoqueiro. Mas sua expressão parecia denunciar um coração partido, o que imediatamente fez Mels mudar de opinião quanto ao sujeito. Ele não estava prestando atenção nela; encarava a garota morta cujo corpo estava sendo arrumado para entrar naquele grande saco preto.

Mels voltou a olhar para a cena.

– Sinto pena do pai dela.

– Você o conhece?

– Não. Mas posso imaginar o sofrimento – por outro lado, talvez o cara não tivesse sido um bom pai e isso fosse um dos motivos para a garota ter entrado naquela vida. – É só que... ela um dia foi só um bebê. Deve ter havido alguma inocência em algum ponto.

– Espero que sim.

A curiosidade fez Mels avaliar novamente o cara.

– Você está hospedado aqui?

– Sou apenas um espectador – o homem suspirou com uma curiosa aparência de derrota. – Cara, eu odeio a morte.

Naquele momento, por alguma razão, Mels pensou em seu pai. Ele também fora removido daquele acidente em um saco plástico – depois de as ferramentas de corte hidráulico terem cortado caminho até o banco do motorista.

Será que agora ele estava no Céu? Olhando-a lá de cima? Ou seria a morte realmente o apagar definitivo das luzes, como um carro sendo desligado ou um aspirador fora da tomada?

Bom, não havia vida após a morte para eletrodomésticos. Então, por que os humanos achavam que seu destino seria diferente?

– Porque é, sim, diferente.

Ela olhou por cima do ombro e sorriu sem jeito.

– Desculpa, não percebi que falei em voz alta.

– Tudo bem – o cara sorriu um pouco. – E não há nada de errado em ter fé e esperança de que seus entes queridos estejam em paz em algum lugar. Na verdade, a fé é uma coisa boa.

Mels voltou a olhar o quarto do motel, pensando que era estranho ter esse tipo de conversa com um total estranho.

– Mas eu queria ter certeza.

– Ah, mas você é uma repórter, então vazaria a informação.

Ela riu.

– Então a existência do Céu e do Inferno é um segredo?

– Exatamente. Os humanos precisam de duas coisas para criar vínculos verdadeiros entre si: a escassez e o desconhecido. Se as pessoas que amamos vivessem para sempre, talvez não déssemos importância para sua presença, e se soubéssemos com certeza que iríamos nos reencontrar, nunca sentiríamos falta delas. É tudo parte do plano divino.

Então ele era um maluco religioso.

– Bom, isso faz sentido.

Eles se afastaram quando os policiais pegaram as alças do saco plástico e começaram a retirar a vítima. Enquanto a sombria procissão passava, Mels começou a entender a razão de Dick ter lhe passado aquela pauta. Uma garota morta, uma cena macabra, as ruas perigosas de Caldwell, blá, blá, blá. Ele era simplesmente o tipo de cretino que revidaria por Mels tê-lo esnobado tantas vezes.

E a verdade é que aquilo a deixou realmente abalada, como qualquer pessoa com uma consciência ficaria. Mas ela faria seu trabalho mesmo assim.

Inclinando-se para a porta, ela falou com o homem que estava no comando:

– Detetive De la Cruz? Você poderia dar uma declaração?

O detetive levantou os olhos de seu bloco de anotações antiquado.

– Você ainda está aqui, Carmichael?

– É claro.

– Seu pai ficaria orgulhoso, você sabe disso.

– Obrigada, detetive.

Quando se aproximou, o detetive nem sequer olhou para o grande homem que estava ao lado dela; mas De la Cruz era assim mesmo. Não se perturbava com quase nada.

– Não tenho nada para dizer ainda. Desculpe.

– Nenhum suspeito?

– Sem comentários – ele apertou o ombro dela. – Diga “oi” para sua mãe, certo?

– E quanto à cor do cabelo?

Ele apenas acenou e continuou andando, entrou no seu velho Ford cinza e dirigiu para fora do estacionamento.

Quando o último policial trancou a porta do quarto e colocou a fita de segurança, Mels virou-se para o homem atrás dela...

Sumiu. Como se nunca tivesse estado ali.

Estranho.

Andando até o carro de Tony, ela ainda podia jurar que estava sendo seguida, mas não havia ninguém por perto. A sensação persistiu enquanto dirigia para casa, ao ponto de ela se perguntar se paranoia poderia ser um vírus contagioso.

Matthias com certeza estava nervoso, mas ele tinha razão para estar. Ela com certeza não tinha.

Mels tomou o caminho mais curto para casa e, quando passou pelo cemitério novamente, decidiu fazer um pequeno desvio.

Parou em uma rua onde cada garagem possuía dois postes de luz brilhando em cada lado da porta. Com exceção desse rancho em particular, que tinha as luzes apagadas, tanto fora como dentro, como um buraco negro em meio a uma rua cheia de casas ocupadas e iluminadas.

Ela aproximou a mão da porta do carro, querendo dar uma olhada ao redor, espiar dentro das janelas, talvez encontrar uma porta aberta para entrar na garagem. Mas, assim que tocou a maçaneta, uma onda de pavor tomou seu corpo, como se aquela sensação de estar sendo vigiada tivesse se transformado em um bicho papão real prestes a pular nela com uma faca.

Mels deu um tempo para que o medo passasse, caso fosse apenas uma indigestão do hambúrguer com batata frita que comera no Marriott, mas quando a sensação não passou, ela engatou a primeira marcha e deu meia volta com o carro.

Provavelmente o culpado era o nevoeiro que ainda pairava no ar.

Sim, tinha de ser isso – um nevoeiro de cinema, que fazia a noite parecer ainda mais escura e perigosa do que realmente era.

Acelerando, ela trancou a porta e segurou firme o volante.

Não relaxou enquanto não entrou na garagem da casa de sua mãe, com os faróis do carro de Tony iluminando a casa em que crescera.

Por alguma razão, ela observou as janelas duplas no segundo andar. Aquelas que ficavam no parapeito de seu quarto.

Seu pai consertara aquelas janelas quando ela tinha dez anos: depois que um vendaval as arrancou completamente, ele usou uma brilhante escada de alumínio e carregou os pesados painéis de madeira para cima, equilibrando-os no beiral, apertando os parafusos, deixando tudo novo em folha.

Ela segurara a base da escada só porque queria fazer parte daquilo. Não estava preocupada que ele fosse cair. Ele parecia o Super-Homem naquele dia.

Na verdade, em todos os dias.

Mels pensou naquele estranho no motel, aquele maluco religioso cheio de piercings. Talvez aquela teoria da escassez e do mistério estivesse certa em se tratando de algumas pessoas. Mas se ela soubesse com certeza que seu pai estava bem, conseguiria encontrar um pouco de paz para si mesma.

Engraçado, até aquela noite não havia percebido que talvez precisasse disso.

Afinal, desde que ele se fora, ela vinha se esforçando para não pensar muito nas coisas.

Era doloroso demais.


CAPÍTULO 21

Por volta das cinco da manhã, Jim estava no quarto de Matthias no hotel Marriott, sentado em uma cadeira no canto, encarando a televisão sem som. Duas horas antes, ele recebera uma mensagem de texto de Ad informando que a repórter estava segura na casa de sua mãe e que o anjo checaria se estava tudo bem com Eddie e deixaria o Cachorro sair um pouco. A próxima mensagem chegou 45 minutos depois: Ad ia tirar um cochilo.

Ao lado, na cama de casal, Matthias dormia sobre as cobertas como uma pedra, deitado de costas, cabeça no travesseiro, mãos cruzadas sobre o peito. Só faltava uma rosa branca entre os dedos e o som de um órgão de igreja para que Jim começasse a prestar suas condolências.

Por que diabos Devina ajudara os dois?

Droga, a única coisa pior do que ela atacando era ela o salvando. E Jim não precisava daquele resgate. Ainda tinha truques na manga, caramba. Estava prestes a fazer um grande show de luzes.

Talvez ela estivesse tentando puxar o saco do Criador.

O que seria algo muito irritante...

A edição das cinco da manhã do programa Wake Up, Caldwell! começou com uma repórter cobrindo uma cena de crime no centro da cidade. A mulher, que estava em frente a um motel, virou e apontou para um quarto aberto onde policiais entravam e saíam. Então o vídeo cortou para uma caixa de tintura de cabelo e depois para a foto de uma mulher com cabelo tingido.

Havia tanto pecado no mundo, pensou Jim.

E, pensando nisso, lembrou que precisava de mais munição.

Quando um comercial de salsicha apareceu, seu estômago roncou e ele quase pegou o telefone para chamar o serviço de quarto.

– Você pode pelo menos dizer qual é o meu nome?

Jim olhou para a cama. Os olhos de Matthias estavam abertos, mas ele ficou estático, como uma cobra enrolada ao sol.

– Sempre conheci você como Matthias.

– Fomos treinados juntos, não é? Ontem nós usamos exatamente os mesmos movimentos, ao mesmo tempo.

– Pois é.

Sentindo aonde ele queria chegar, Jim pegou seu maço de cigarros, puxou um entre os dentes e então lembrou que estava em um local público. E não seria irônico se fossem expulsos do hotel por acender um cigarro, sendo que o invadiram pelos fundos, abriram fogo, deixaram um corpo e fugiram dali?

É, seria muito engraçado.

Jim voltou a olhar para a televisão, que agora passava um comercial de desodorante. Por uma fração de segundo, invejou os caras na propaganda: tudo o que tinham para se preocupar eram suas axilas, e, desde que usassem Speed Stick, não precisariam se preocupar com nada.

Se pelo menos a solução para Devina também viesse em spray ou em bastão...

– Conte como eu me matei – quando Jim não respondeu, o outro homem disse: – Por que você tá com medo de falar sobre isso? Você não parece ser um covarde.

Jim esfregou o rosto.

– Sabe de uma coisa? Você devia dormir menos, porque quando está descansado você é um saco.

– Então acho que você é um covarde, sim, afinal de contas.

Jim bufou e soltou ar, desejando que fosse fumaça.

– Certo, sabe o que me preocupa? Que quando você descobrir quem era, vai se tornar aquele homem novamente e eu vou te perder. Sem ofensa, mas essa sua mente vazia é uma benção.

– Você fala como se eu fosse uma pessoa do mal...

– Você era – Jim encarou seu ex-chefe. – Você estava completamente infectado, ao ponto de me fazer concluir que nasceu assim. Mas vendo você do jeito que está agora... – Fez um gesto com as mãos. – É uma surpresa descobrir que não é de nascença.

– Que diabos aconteceu comigo? – Matthias sussurrou.

– Não sei nada do seu passado antes das Operações Extraoficiais.

– Esse era o nome da organização?

– Esse é o nome. E, sim, nós dois treinamos juntos. Antes disso, não sei de nada. Havia rumores sobre você, mas provavelmente eram exageros por causa da sua reputação.

– Que reputação?

– Diziam que você era um sociopata – o homem praguejou baixinho e Jim deu de ombros. – Escuta, eu também não era nenhum santo. Não antes de entrar, e com certeza não enquanto eu estive lá. Mas você... estabeleceu um outro nível. Você era... algo mais.

Houve um período de silêncio. Então, Matthias disse:

– Você ainda não está falando nada específico.

Jim esfregou os cabelos e pensou. Bem, que inferno, havia tanta coisa para escolher.

– Certo, que tal isso: havia um homem, o coronel Alistair Childe. Esse nome traz alguma lembrança? – quando Matthias balançou a cabeça, Jim realmente desejou que estivessem lá fora, para poder acender um cigarro. – Ele era um cara legal, tinha uma filha que era advogada. O filho tinha problemas com drogas. A esposa morreu de câncer. Morava em Boston, mas trabalhava bastante em D.C. Ele chegou perto demais.

– Perto demais do quê?

– Da firma, digamos assim. Você mandou sequestrarem e levarem ele para a casa onde o filho se drogava. Seus agentes encheram o garoto até ele ter uma overdose de heroína e filmaram Alistair gritando enquanto o filho espumava pela boca até morrer. E você pensou que fez um favor para o cara, porque, nas suas próprias palavras, usou o filho que já estava perdido. A ameaça, é claro, era que, se Childe não se afastasse, você mandaria matar sua filha também.

Matthias não se moveu, mal respirava, apenas piscava. Mas sua voz foi o que o denunciou. Rouca e áspera, mal conseguiu pronunciar as palavras.

– Não me lembro disso.

– Você vai lembrar. Em algum momento. Vai se lembrar de muitas outras merdas como essa... e coisas que eu provavelmente nem faço ideia.

– E como você sabe tanto?

– Sobre o caso do Childe? Eu estava lá quando você foi atrás da filha.

Matthias fechou os olhos e seu peito subiu e desceu devagar, como se houvesse um grande peso em cima dele.

Isso deu um pouco de esperança para Jim. Talvez a revelação o afastasse um pouco mais do pecado.

– Se isso é verdade, posso entender por que está preocupado com minha bússola moral.

– É a mais pura verdade. E, como eu disse, tem muito mais.

Matthias limpou a garganta.

– Então, como exatamente isso aconteceu?

Matthias apontou para os olhos e Jim começou a relembrar o passado que compartilhavam.

– Eu quis sair, mas não existe aposentadoria das Operações, e você era o único que podia me exonerar. Nós discutimos sobre isso, e então você apareceu onde eu estava numa missão no deserto. Você disse pra eu te encontrar sozinho à noite num lugar muito longe do acampamento, e eu achei que era o fim, tudo estava acabado pra mim. Mas você estava sozinho. Olhou nos meus olhos quando levantou o pé e pisou na areia. A explosão... foi direcionada pra cima, não pra fora. Você não queria me acertar, e não foi um acidente – memórias daquela cabana, da areia áspera em seus olhos e da fumaça em seu nariz voltaram rápido e com força. – Depois de tudo, eu carreguei você pra fora e te levei pra onde teria ajuda.

– Por que não me deixou para morrer?

– Eu não aguentava mais jogar segundo suas regras. Era hora de o poderoso chefão não conseguir o que queria.

– Mas se você desejava sair e, se eu tivesse me matado... quem iria atrás de você? Se isso for mesmo verdade, você estaria livre.

Jim deu de ombros.

– Eu estava numa posição ideal. Você não queria que as pessoas soubessem que tentou suicídio, então eu tinha o melhor dos dois mundos. Eu estava livre e você passaria o resto da vida todo quebrado e morrendo de dor.

Matthias riu de repente.

– De um jeito estranho, eu até respeito isso. Mas não entendo por que está me ajudando agora.

– Mudei de emprego – Jim pegou o controle remoto. – Olha, nós saímos no jornal!

Quando colocou som na televisão, um apresentador diferente dava informações sobre um corpo que fora encontrado, veja só, bem onde eles estiveram naquele corredor de serviço. Não havia suspeitos. Não havia documento com a vítima – e boa sorte com isso. Mesmo que encontrassem algo, as identidades falsas das Operações Extraoficiais eram impenetráveis. Além disso, o legista não teria muito tempo: o corpo desapareceria do necrotério a qualquer instante – se é que já não fora removido.

Seria apenas mais um caso não resolvido que ficaria perdido num arquivo da polícia.

– Que tipo de trabalho você faz agora? – perguntou Matthias.

– Sou um trabalhador autônomo.

– Isso ainda não explica por que está ajudando um homem que odeia.

Jim o encarou e pensou em tudo o que Matthias representava na guerra contra Devina.

– Agora... eu preciso de você.


Arrumando-se para o trabalho, Mels quebrou uma unha enquanto se vestia e derramou café na blusa. E, como falta de sorte vem sempre em três, ela continuava com a sensação de estar na lista de algum assassino, mas pelo menos sua mãe estava na aula de ioga – e isso significava que podia sair sem ter de conversar muito.

À vezes, conversar com sua mãe sobre o trabalho era difícil. Ela não precisava ouvir os detalhes do que acontecera com aquela garota no motel.

Não era um assunto para o café da manhã.

Além disso, Mels não estava com vontade nenhuma de conversar. A noite fora longa, principalmente porque escrevera o artigo sobre o assassinato ainda na madrugada, para que o editorial pudesse postar a notícia primeiro na versão on-line. E hoje se concentraria em conseguir mais informações para escrever um artigo mais detalhado para a edição impressa de amanhã.

Com sorte, Monty não aguentaria e ligaria para ela, deixando aquela boca dele fazer sua parte.

No caminho para pegar Tony, ela ficou presa na fila do drive-thru no McDonald’s, pois não queria de jeito nenhum aparecer na casa dele sem um café da manhã. Finalmente, com dois pãezinhos de salsicha em uma sacola e um par de copos cheios de café, Mels voltou para as ruas no Toyota emprestado.

Quando estacionou o carro em frente ao prédio dele, o cara se levantou dos degraus da escada frontal e desceu correndo, seu grande corpo fazendo-o parecer mais alto do que era.

– Eu já disse ultimamente o quanto eu te amo? – ela perguntou enquanto Tony entrava no carro.

Tony abriu um grande sorriso.

– Se isso é café da manhã, então sim, você disse.

– Comprei dois pãezinhos e um café pra você – ela entregou a sacola. – O outro café é pra mim.

– Melhor do que um par de brincos – ele desembrulhou um dos pacotes. – Hum... comestível...

– Eu queria agradecer de verdade por você ter emprestado o carro.

– Ah, nem preciso tanto assim dele. Desde que consiga ir e voltar do trabalho, pra mim está bom – enquanto mastigava, ele franziu a testa e pegou um recibo no cinzeiro. – Você esteve no Marriott ontem?

Mels ligou a seta para a esquerda e entrou no trânsito, desejando que seu amigo não fosse um observador tão bom.


– Ah, sim, estive.

– Que horas?

Mels manteve os olhos na rua, reconhecendo a “voz de repórter” que seu amigo estava usando.

– Ontem à noite. Estava só visitando um amigo.

– Então você viu toda a movimentação?

– Movimentação?

– Você não sabe o que aconteceu?

– Fui chamada pra cobrir uma cena de crime do centro da cidade. Do que você tá falando?

– Espera um pouco, você pegou a história da prostituta de cabelo loiro?

– Sim. Então, o que aconteceu no Marriott?

Enquanto Tony levava um milhão de anos pra terminar de mastigar o Mc-Sei-Lá-O-Quê, o estômago de Mels começou a embrulhar. Cara, se ele começasse a comer o segundo pãozinho ela pularia em seu pescoço...

– Aconteceu um tiroteio no porão do hotel. O Eric vai cobrir a história. Teve troca de tiros no beco, e alguém invadiu o prédio pela entrada dos fundos de um dos restaurantes. Ligaram pra central da polícia e os policiais encontraram um homem morto sem identificação e desarmado, com a garganta cortada.

– Mas você não disse que houve tiros?

– Ah, ele foi atingido por tiros, sim. Mas não foi isso que matou ele – Tony fez um gesto como se cortasse a própria garganta. – Cortou de um lado a outro.

Mels sentiu um arrepio.

Porque você vai morrer se não se afastar de mim.

Mels disse a si mesma para se acalmar. Aquele era um hotel grande em uma parte da cidade que era perigosa à noite. Assassinatos acontecem, principalmente entre traficantes e seus clientes.

Tony revirou a sacola para pegar o segundo pãozinho de salsicha.

– Parece que o cara poderia ter morrido por causa dos tiros, mas ele usava um belo colete à prova de balas. Eric disse que os policiais ficaram babando quando viram o colete. Nunca tinham visto um daquele jeito – o gentil som da embalagem branca sendo dobrada foi seguido por um generoso suspiro de satisfação causado por aquela comida não saudável, mas deliciosa. – Então, o que você descobriu ontem à noite? – ele perguntou com a boca cheia.

Mels ignorou uma placa “Pare” e virou à esquerda na rua Trade. Sua mente estava muito longe: Matthias estava se preparando para dormir quando ela foi embora – embora isso não significasse que ele não poderia ter saído depois que ela...

– Olá? Mels?

– Desculpa, o que foi?

– Quando você estava no motel. O que descobriu?

– Ah... certo, desculpa. Não descobri muita coisa. A mulher foi morta depois de ter tingido o cabelo... a garganta dela estava cortada.

– Duas numa única noite. É uma epidemia.

Bom, podia até ser, ela pensou. Ninguém poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo, não é?

Certo, agora ela estava ficando maluca.

– Pois é. Que estranho.

Cinco quarteirões depois, eles chegaram ao prédio do Correio de Caldwell. Mels estacionou e devolveu as chaves para Tony enquanto andavam até a entrada dos fundos.

– Obrigada de novo.

– Como eu disse, pode pedir sempre que precisar. Principalmente se comprar café da manhã pra mim. E pare de colocar dinheiro na minha gaveta quando pegar um chocolate meu. Você tem permissão pra usar minha reserva de comida sempre que quiser.

Tony guardava um monte de comida em sua escrivaninha e ela já era conhecida por beliscar ali de vez em quando. Mas não pegava simplesmente de graça.

Mels segurou a porta aberta para ele entrar.

– Não vou roubar comida de você.

– Mas se eu der permissão, não é roubo. Além disso, você não pega mais do que uns dois bombons e um chocolate por mês.

– Furto é furto.

Eles alcançaram os degraus que levavam à redação, e desta vez foi ele quem segurou aberta a porta de vidro.

– Queria que todo mundo pensasse assim.

– É disso que eu estou falando. Você não tem a obrigação de alimentar todo mundo.

No instante em que entraram, Mels ouviu os telefones tocando, as vozes agitadas, os passos rápidos: tudo isso era uma sinfonia familiar que invadiu seu corpo, carregando-a até sua escrivaninha. Quando sentou, aquele burburinho acalmou a ansiedade que sentia por causa de Matthias, e ela ligou o computador sem sequer pensar no que estava fazendo.

Um envelope marrom foi jogado em sua mesa, assustando-a.

– Tenho algo bonito pra você ver – disse Dick com um sorriso maroto.

Ela pegou o pacote e abriu.

Ficou contente em ter dado os dois pãezinhos para Tony: dentro do envelope estavam as fotos do corpo da prostituta, fotos grandes e em cores mostrando tudo em detalhes.

Dick ficou ao lado, como se estivesse esperando que ela se abalasse, e Mels se recusou a satisfazer seu desejo, mesmo com o peito doendo por causa das imagens... principalmente a que mostrava em detalhes o ferimento na garganta, o corte profundo que atravessou a pele e penetrou os músculos rosa e vermelho, e a cartilagem pálida.

Mels colocou as fotos em cima mesa, fazendo questão de deixar a da garganta virada para cima, e notou que Dick, mesmo com todo aquele jeito machão, não quis olhar para a imagem.

– Obrigada – ela manteve os olhos colados nos dele. – Isso vai ajudar bastante.

Dick limpou a garganta como se tivesse percebido que fora longe demais, mesmo para seus padrões de cretinice.

– Quero ler o artigo detalhado assim que estiver pronto.

– Pode deixar.

Assim que ele sumiu, ela balançou a cabeça. Ele deveria saber que não podia mexer com Mels, sendo filha de quem era.

Na verdade, só o fato de querer dar em cima dela era nojento por si só.

Fez Mels pensar na maneira como Monty tirava proveito da tragédia dos outros.


Franzindo a testa, ela olhou as fotografias novamente, e então se concentrou na que fora tirada no necrotério. Havia uma mancha avermelhada estranha na barriga da vítima, como uma queimadura de sol...

O celular tocou e Mels atendeu sem olhar quem era.

– Carmichael.

– Olá.

A voz profunda despejou um calor que desceu por todo seu corpo. Matthias.

Por uma fração de segundo, ela imaginou como conseguira o número de seu celular. Mas então lembrou que escrevera o número em seu cartão de visitas.

– Ah, bom dia – ela disse.

– Como você está?

Em sua mente, começou uma partida de pingue-pongue entre o que Tony contara no carro e como se sentira ao beijar Matthias. Indo e vindo, indo e vindo...

– Mels, você está aí?

– Sim – ela esfregou os olhos, mas teve de parar, pois um deles ficou irritado. – Desculpa. Estou bem, e você? Lembrou de mais alguma coisa?

– Pra falar a verdade, lembrei sim.

Mels se ajeitou na cadeira e voltou a concentrar-se em uma coisa só.

– Como o quê?

– Será que você se importaria de investigar uma coisa para mim?

– Nem um pouco. Diga o que quer saber – enquanto ele falava, Mels tomava nota e escrevia nomes, aceitando a tarefa. – Certo. Sem problemas. Você quer que eu ligue de volta?

– Sim, por favor.

Houve uma pausa estranha.

– Certo – ela disse, constrangida. – Então, eu te ligo...

– Mels...

Fechando os olhos, ela sentiu aquele corpo pressionando contra o seu, aquela boca tomando a sua, a dominação intrínseca à personalidade dele começando a se manifestar.

– Você sabe o que aconteceu no seu hotel ontem à noite? – ela perguntou, abruptamente.

– Sim. Passei horas pensando em você.

Ela fechou novamente os olhos, tentando lutar contra a sedução.

– A polícia encontrou um cadáver. Que estava vestindo um colete à prova de balas muito moderno.

Outra pausa. Então, ele respondeu:

– Hum. Suspeitos?

– Ainda não.

– Eu não o matei, Mels, se é isso que está perguntando.

– Eu não disse que você matou.

– Mas é isso que está pensando.

– Quem são essas pessoas que você quer checar? – ela interrompeu, desenhando quadrados em volta dos nomes que ele havia passado.

– Apenas coisas que surgiram na minha mente – sua voz se tornou distante. – Olha, eu não deveria ter pedido isso. Vou conseguir as informações de outro jeito...

– Não – ela disse com firmeza. – Vou fazer isso e depois te ligo.

Mels desligou e ficou encarando o vazio. Então levantou e andou até chegar em outro cubículo. Inclinando-se por sobre a divisória, deu um sorriso forçado para um colega que não a conhecia bem o suficiente para perceber a falsidade.

– Oi, Eric, como é que vai?

Os olhos do cara se desviaram do computador.

– Oi, Carmichael. O que posso fazer por você?

– Queria saber sobre o assassinato do Marriott.

O repórter sorriu, como se estivesse orgulhoso de sua pauta.

– Algo específico?

– O colete.

– Ah, o colete – ele buscou em seus papéis em cima da mesa. – O colete, vejamos... – puxou uma folha e entregou para ela. – Encontrei isto na internet.

Mels franziu a testa enquanto lia as especificações.

– Cinco mil dólares?

– É o que custam sem ser personalizados. E o colete dele com certeza foi.

– Quem é que pode pagar tudo isso?

– É exatamente o que estou me perguntando – ele procurou outros papéis. – Grandes empresas de segurança é uma opção. O governo é outra, mas não pra um agente qualquer do FBI. Teria que ser um agente muito especial.

– Tinha algum VIP no hotel?

– Bom, foi isso que tentei descobrir na noite de ontem. Oficialmente, a equipe do hotel não pode divulgar nomes, mas ouvi o gerente da noite falando com um dos policiais. Não havia ninguém de especial sob o teto deles.

– E quanto aos arredores, no centro da cidade?

– Pois é, existem algumas grandes empresas na vizinhança, mas estavam todas fechadas, pois já tinha passado bastante da hora de expediente normal. E não faz sentido que alguém importante estivesse andando em Caldwell e algum de seus seguranças tivesse enlouquecido e entrado no caminho da faca de alguém.

– A que horas aconteceu?

– Perto das onze.

Depois que ela saiu em direção à cena do crime no motel.

– E ninguém tem pistas sobre a identidade?

– Nenhuma. O que nos leva a outra questão interessante – Eric mordeu a ponta de uma caneta Bic. – Não havia impressões digitais.

– Na cena?

– No cadáver. Ele não tinha impressões: foram totalmente removidas.

Os ouvidos de Mels começaram a zumbir.

– Algum outro tipo de identificador?

– Uma tatuagem, aparentemente. Estou tentando conseguir umas fotos dela e do corpo, mas minhas fontes estão meio devagar – ele estreitou os olhos. – Por que está tão interessada?

Colete à prova de balas moderno. Sem digitais.

– E armas?

– Nenhuma arma, alguém deve ter levado – Eric inclinou-se para frente em sua cadeira. – Então, você não está pensando em falar com Dick pra conseguir um lugarzinho nessa história, não é?

– Meu Deus, não. É só curiosidade – ela se virou. – Mas agradeço pelas informações.


CAPÍTULO 22

Quando o telefone toucou meia hora depois, Matthias ficou apenas olhando para a coisa. Provavelmente era Mels retornando a ligação.

Droga, que confusão...

Depois que Jim saiu para tomar café da manhã, ou cuidar de suas coisas, ou fazer seja lá o quê, a primeira coisa que Matthias fez ao ficar sozinho, naturalmente, foi ligar para Mels e tentar descobrir se era verdadeira aquela história sobre o pai e o filho em Boston. Mas ainda não estava raciocinando direito, e nem passou por sua cabeça que ela já tinha ouvido sobre o tiroteio da noite passada. Estava em todos os jornais. Não precisava ser um repórter para saber da merda que acontecera por lá.

O telefone parou de tocar. Mas ela iria tentar de novo.

Deus, a voz dela quando ele telefonou... Mels parecia desconfiada, e por muitos motivos isso era bom para ela. Mas também o deixava triste.

Quando o telefone voltou a tocar, ele não aguentou mais. Pegou sua bengala, saiu do quarto e andou cegamente até um elevador. Começou a descer, sem fazer ideia de onde estava indo. Talvez para o café da manhã.

Sim, café da manhã.

Era o que as pessoas faziam às nove da manhã no país inteiro.

E, é claro, o único restaurante aberto era aquele que ele conhecera intimamente na noite anterior – ao passar pelas paredes de vidro colorido, ele decidiu que sairia do Marriott para...

– Matthias?

Ao ouvir a voz feminina, ele se virou. Era a enfermeira do hospital, aquela que lhe dera uma mãozinha, por assim dizer. Fora do trabalho, ela tinha um frescor de verão, com o cabelo preto solto sobre os ombros e um vestido esverdeado que descia até os joelhos.

Até parecia uma noiva.

– O que você está fazendo aqui? – ela disse quando se aproximou. – Pensei que estaria em casa se recuperando.

Quando as pessoas passavam por ela, os olhares eram inevitáveis: homens com desejo nos olhos, mulheres com vários níveis de inveja e desdém. Afinal, ela era realmente linda.

– Estou bem – ele tentou não olhar demais, pois era como encarar o sol: doía nos olhos. – E você?

– Minha mãe está vindo me visitar. Ou melhor, já deveria estar aqui. O voo dela deveria ter chegado meia hora atrás, mas teve um atraso em Cincinnati por causa das tempestades. Estou decidindo se espero ou se vou pra casa: iríamos tomar café da manhã juntas no restaurante. É pra lá que você tá indo?

– Ah, sim.

– Bom, que tal se formos juntos? Estou com fome.

Seus olhos negros brilhavam com alegria, ao ponto de lembrá-lo de uma noite estrelada. Mas isso não era suficiente para fazê-lo aceitar o convite.

– Sim, vamos – ouviu sua própria voz, como se outra pessoa estivesse controlando sua boca.

Juntos, caminharam até a entrada do restaurante.

– Duas pessoas – Matthias disse, enquanto o recepcionista checava a enfermeira de cima a baixo para depois congelar como um animal na estrada olhando para os faróis de um carro, aparentemente impressionado com toda aquela beleza.

– Gostaria de um lugar perto da janela – ela disse, sorrindo vagarosamente para o cara. – Talvez perto...

Não a janela que ele usara para escapar, pensou Matthias.

– ... daquela ali.

Mas é claro que ela escolheu exatamente aquela.

– Ah, sim, claro, é para já – o recepcionista fez sua parte, conduzindo-os com alguns cardápios debaixo do braço. – Mas temos vistas melhores no salão, que dão pro jardim.

– Não queremos que bata muito sol – ela colocou a mão no braço de Matthias e apertou um pouco, como se quisesse demonstrar que estava preocupada com seu olho ruim.

Cara, ele realmente não gostava que ela o tocasse.

Enquanto andavam pelo salão, a enfermeira criou uma total comoção, com homens olhando por cima dos jornais, das canecas de café e até sobre a cabeça de suas esposas. Ela continuou andando a passos largos, como se aquilo fosse totalmente natural.

Depois de sentarem na frente da janela que ele e Jim haviam violado, o café chegou rápido e eles olharam o cardápio. Aquele ritual civilizado de escolher entre cinquenta tipos de pratos o deixava nervoso. E Matthias não queria comer junto com a enfermeira. Bom, não queria comer com ninguém.

A situação desconfortável com Mels era o problema. Sim, ele ligara pedindo as informações, mas a verdade era que queria apenas ouvir a voz dela.

Ele sentira saudade durante a noite...

– Em que está pensando? – disse a enfermeira suavemente.

Ele olhou através da janela para o prédio do outro lado da rua.

– Acabei de perceber... que ainda não sei o seu nome.

– Oh, desculpe. Achei que estava escrito na ficha do quarto do hospital.

– Provavelmente estava, mas mesmo que estivesse escrito em neon não sei se notaria.

Era mentira, claro. Na verdade, não havia nenhuma enfermeira registrada na ficha, apenas um médico, e cujo uniforme também não tinha um crachá com nome.

O que parecia um pouco estranho, pensando bem...

Ela pousou elegantemente a mão no meio do peito, como se fosse um convite para ele olhar seu decote.

– Você pode me chamar de Dê.

Olhou em seus olhos.

– De Deidre?

– De Devina – ela desviou os olhos, como se não quisesse falar muito sobre seu nome. – Minha mãe sempre foi uma pessoa religiosa.

– O que explica seu vestido.

Dê balançou a cabeça com pesar e ajeitou a saia.

– Como você sabia que eu não me visto assim normalmente?

– Bom, primeiro porque parece um vestido para uma mulher com mais de quarenta anos. A calça jeans e a blusa que usou naquele dia pareciam mais apropriadas pra sua idade.

– Quantos anos você acha que eu tenho?

– Uns vinte e cinco – e talvez fosse por isso que não gostava quando ela o tocava. Ela era muito jovem, jovem demais para um cara como ele.

– Na verdade, tenho vinte e quatro. É por isso que minha mãe vem me visitar – ela tocou o peito novamente. – Meu aniversário.

– Parabéns.

– Obrigada.

– Seu pai também vai vir?

– Ah... então. Não – agora ela se fechou completamente. – Não, ele não virá.

Droga, a última coisa que ele precisava era entrar em detalhes pessoais.

– Por que não?

Ela ficou mexendo na caneca de café em cima do pires, movendo de lá para cá.

– Você é tão estranho.

– Por quê?

– Eu não gosto de falar sobre mim mesma, mas aqui estou eu, falando sem parar.

– Não me contou muita coisa, se isso faz você se sentir melhor.

– Mas... eu quero falar – por um segundo, seus olhos focaram os lábios dele, como se estivesse pensando em fazer coisas de que Matthias realmente não precisava. – Eu quero.

Não. Nem pensar.

Principalmente não depois de Mels, ele pensou.

Dê se inclinou e seus peitos ameaçaram saltar para fora do vestido.

– Não consigo parar de pensar em você.

Ótimo. Que maravilha. Que merda perfeita.

No tenso silêncio que se seguiu, Matthias olhou brevemente para a janela. Já tinha escapado por ali uma vez.

Se as coisas continuassem constrangedoras, poderia tentar de novo.

Mels colocou o telefone na base e se esticou na cadeira do escritório. Quando ouviu o chiado de sempre, fez uma nova musiquinha com o couro, balançando para frente e para trás.

Por alguma razão, seus olhos ficaram encarando a caneca de café que pertencera àquela repórter que trabalhava em seu cubículo.

Quando o celular tocou, Mels pulou e o agarrou. Checou rapidamente quem estava ligando e praguejou – não por causa de quem era, mas por causa de quem não era.

Talvez Matthias estivesse tomando banho.

As pessoas tomam banho pela manhã, não é?

Mas, tipo, por meia hora? Ela estava ligando de cinco em cinco minutos!

– Alô?

– Oi, Carmichael – era Monty, o Boca. Ela sabia por causa do jeito como ele falava. – Sou eu.

Bom, pelo menos ela também queria que ele ligasse.

– Bom dia.

– Eu tenho algo pra contar – sua voz ficou mais baixa, como se fosse um agente secreto falando. – É uma coisa explosiva.

Mels ajeitou-se na cadeira, mas não ficou com muita expectativa. Com sua sorte, “explosivo” devia ser apenas um grande exagero da parte dele.

– É mesmo?

– Alguém adulterou o corpo.

– Como é?

– Como eu disse, fui o primeiro na cena do crime e tirei algumas fotos. Você sabe, como parte do trabalho – ela ouviu algo se mexendo, e então uma conversa aos fundos, como se ele estivesse falando com alguém enquanto cobria o fone. – Desculpa. Estou na delegacia. Vou sair daqui e depois ligo de novo.

Ele desligou antes que Mels pudesse dizer alguma coisa, e ela o visualizou evitando seus colegas e correndo para o estacionamento como se fosse um jogador de futebol.


De fato, quando ligou de volta, ele estava sem fôlego.

– Está me ouvindo?

– Sim, estou.

– Então, minhas fotos do corpo mostram algo que não aparece nas fotos oficiais.

Essa era a deixa para ela mostrar surpresa, e neste caso nem precisava fingir.

– Qual é a diferença?

– Venha me encontrar e eu te mostro.

– Quando e onde?

Depois de desligar, Mels checou seu relógio e ligou para Matthias novamente. Ninguém respondeu.

– Ei, Tony – ela disse, esticando-se no corredor entre os cubículos. – Posso emprestar seu...

O cara jogou a chave sem nem mesmo parar de falar ao telefone. Quando ela mandou um beijo, ele agarrou o ar e beijou de volta.

Saindo apressada da redação, Mels entrou no carro de Tony e dirigiu para o centro da cidade, usando um caminho que... olha só, passava pelo hotel Marriott.

E digamos que ela estava uma meia hora adiantada de seu encontro com o Boca.

Por pura sorte, encontrou uma vaga apertada bem em frente à entrada do saguão. Precisou de duas tentativas para colocar o carro no lugar – sua habilidade para fazer balizas já não era a mesma desde que se mudara para Caldwell.

Além disso, a culpa que sentia por perseguir Matthias também não estava ajudando.

Enquanto entrava no saguão, pensou que alguém da segurança iria barrá-la a qualquer momento, mas ninguém prestou muita atenção nela – o que a fez pensar quantas outras pessoas entravam e saíam despercebidas dali.

No elevador, subiu até o sexto andar junto com um homem de negócios cujo terno antiquado e olhos vermelhos sugeriam que acabara de chegar de um longo voo noturno. Talvez até tivesse vindo batendo as próprias asas.

Ao chegar no andar, virou à esquerda e andou pelo corredor acarpetado. Bandejas do serviço de quarto estavam ao lado das portas, como traiçoeiros tapetes de boas-vindas com seus pratos sujos, canecas vazias e guardanapos manchados. Ao final do corredor, um carrinho da camareira estava estacionado em frente a uma porta aberta, que vazava luz iluminando pacotes de papel higiênico, toalhas dobradas e várias latas de spray.

A porta de Matthias ainda tinha o sinal de “não perturbe” pendurado, e Mels entendeu que aquilo significava que ele ainda não fizera o check-out. Colando a orelha na porta, rezou para ele não escolher aquele momento para sair.

Não ouviu água correndo. Nem som de televisão. Nenhuma voz profunda ao telefone.

Ela bateu na porta. Depois bateu um pouco mais forte.

– Matthias – ela disse. – Sou eu. Abra a porta.

Enquanto esperava por uma resposta que não veio, Mels olhou para a camareira que saíra com um saco de lixo na mão. Por um instante, considerou mentir dizendo que tinha esquecido a chave do quarto, mas, em um mundo pós-onze de setembro, sentiu que isso não iria funcionar – e poderia acabar sendo expulsa do hotel.

Bom, isso dizia muito sobre sua bússola moral: o problema nem era a invasão de privacidade, mas sim o medo de ser descoberta.

Com desgosto de si mesma e brava com Matthias, Mels voltou para o elevador. Quando chegou no térreo, sua intenção era marchar até o carro de Tony, dirigir e chegar realmente cedo em seu encontro com Monty e sua boca grande.

Em vez disso, ficou perambulando casualmente no saguão do hotel, olhando as vitrines da loja de conveniência, passando pelo spa...

Porque, claro, ele estaria comprando toalhas e recebendo massagens com duas rodelas de chuchu nos olhos. Óbvio.

Quando chegou ao restaurante que estava aberto, Mels estava quase abandonando a busca, mas então deu uma última olhada lá dentro...

Do outro lado das mesas de jantar, sentado ao lado de uma janela, Matthias estava comendo junto com uma morena que usava um vestido verde-limão.


Quem era ela...?

Era aquela enfermeira? Do hospital?

– Gostaria de mesa pra um? – disse o recepcionista do restaurante.

Claro que não – a menos que a mesa tivesse um saco para vômito.

– Não, obrigada.

A morena começou a rir, jogando a cabeça para trás e deixando o cabelo voar para todo lado. Ela era tão perfeitamente bonita, como se fosse uma fotografia retocada em todos os lugares certos.

Era difícil dizer em que Matthias, sentado à sua frente, estava pensando, e em um momento absurdo de possessividade Mels ficou contente por ele estar usando os óculos escuros dela. Como se aquilo fosse um jeito de demarcar seu território.

– Então veio para se encontrar com alguém? – disse o recepcionista.

– Não – ela respondeu. – Acho que ele está ocupado.


CAPÍTULO 23

A risada de Dê era... bem, para falar a verdade, era divina. Ao ponto de até fritar um pouco o cérebro de Matthias: ele nem conseguia lembrar o que ela dissera de tão engraçado.

– Então, como está sua memória? – ela perguntou.

– Falhando.

– Ela vai voltar. Faz o quê, uns dois dias desde o acidente? – ela se ajeitou quando chegou seu prato com ovos mexidos, salsicha, torrada e batata assada. – É só dar um pouco de tempo.

O pão com manteiga que chegou para ele parecia anêmico em comparação com o prato dela.

– Tem certeza de que é só isso que você quer? – ela gesticulou com o garfo. – Você precisa ganhar peso. E eu acredito que um bom café da manhã é a melhor maneira de começar o dia.

– É bom estar com uma mulher que não é enjoada com comida.

– Pois é, eu sou assim, como de tudo – ela fez um sinal chamando o garçom novamente. – Ele vai querer um prato igual ao meu, obrigada.

Parecia falta de educação dizer que ele explodiria se comesse tudo aquilo, então apenas colocou de lado o pão com manteiga. Ela provavelmente estava certa. Matthias se sentia sem energia e desconectado: o sanduíche que comera com Mels já havia sido digerido faz tempo, graças àquele ninja cretino que apareceu do nada atirando.

– Não espere por mim – ele disse.

– Eu não ia esperar.

Matthias sorriu friamente e passou um tempo olhando ao redor no salão do restaurante. A maioria das pessoas era exatamente o que se esperava encontrar em um hotel daquele tipo... exceto por um sujeito no canto que parecia seriamente fora de lugar: estava usando um terno mais bem cortado do que qualquer outro ali, e parecia fora de moda até para quem não entende dessas coisas.

Caramba, aquela roupa parecia ser própria para uma festa dos anos 20 – talvez tivesse até sido criada nessa época...

Como se percebesse que estava sendo observado, o homem levantou os olhos, com uma aparência aristocrática.

Matthias voltou a se concentrar em sua companhia. Dê cortava a comida com movimentos precisos do garfo, cujas pontas penetravam com facilidade nos ovos mexidos e na batata.

– Às vezes, não lembrar pode ser uma coisa boa – ela disse.

Pois é, ele pensou, sentia que isso era particularmente verdade em se tratando de sua vida. Deus, se aquela história que Jim contou fosse verdade...

– E eu não tive intenção de ser evasiva quanto ao meu pai – ela continuou. – É só que... eu não gosto de pensar nele – baixou o garfo no prato e ficou observando a janela. – Eu faria qualquer coisa para esquecer meu pai. Ele era... um homem violento... malvado e violento.

Com um movimento rápido, o olhar dela voltou a se fixar nos olhos dele.

– Sabe do que estou falando? Matthias...

De repente, surgiu outra daquelas dores de cabeça, invadindo seus pensamentos e acumulando em suas têmporas, como duas pontadas de dor em cada lado da cabeça.

Ele viu, vagamente, que os perfeitos lábios vermelhos de Dê se moviam, mas não ouvia as palavras: era como se tivesse saído do corpo... e então, o próprio restaurante começou a recuar, como se as paredes estivessem sendo puxadas para trás e desaparecendo ao longe, até que repentinamente Matthias já não estava mais no Marriott, mas em algum outro lugar.

Estava no segundo andar de uma casa de fazenda forrada por tábuas de madeira no chão, paredes e teto. A escada à sua frente era íngreme, e o corrimão feito de pinho já estava escurecido pelas inúmeras mãos que o usaram como apoio.

O ar estava parado e abafado, embora não fizesse calor.

Matthias olhou para trás e encontrou um quarto que reconhecia como seu. As duas camas tinham cobertores diferentes e nenhum travesseiro... a escrivaninha tinha arranhões e os puxadores estavam caindo... não havia tapete. Mas, na pequena mesa perto de onde dormia, havia um rádio novo em folha que parecia completamente fora de lugar, com detalhes em imitação de madeira e um botão prateado.

Olhando para baixo, notou que vestia calças rasgadas com bainhas enroladas que deixavam os pés expostos; a mesma coisa acontecia com as mãos, que pareciam gigantes comparadas com os magros antebraços – suas extremidades estavam grandes demais em relação ao resto do corpo.

Lembrou-se desse estágio em sua vida e entendeu que era um jovem. Catorze ou quinze anos...

Um som o fez virar a cabeça.

Um homem estava subindo a escada. Seu sobretudo estava sujo; o cabelo estava liso de suor, como se um chapéu ou boné o tivesse coberto por muito tempo; as botas soavam alto.

Um homem grande. Um homem alto.

Um homem mau.

Seu pai.

De uma só vez, tudo mudou: sua consciência separou-se da carne de tal maneira que não era mais capaz de controlar o corpo, a direção de sua vida parecia ter sido tomada por outra pessoa.

Tudo o que podia fazer era olhar através dos próprios olhos quando seu pai subiu o último degrau e parou.

Aquele rosto tinha ficado exposto ao clima por tanto tempo que agora parecia revestido de couro bovino, e havia um dente faltando quando ele sorriu como um assassino em série.

Seu pai ia morrer, pensou Matthias. Aqui e agora.

Por mais improvável que fosse, dada a diferença de tamanho entre eles, o homem iria ao chão e estaria morto em questão de minutos...

De repente, Matthias sentiu a si mesmo começar a falar, seus lábios formando sons que ele não registrava, mas que tinham impacto em seu pai.

A expressão mudou, o sorriso sumiu, o dente faltando desapareceu quando a boca do pai se fechou. A raiva fez aqueles olhos azuis elétricos ficarem estreitos, mas isso não durou muito. Uma onda de choque se seguiu. Como se ele estivesse muito confiante sobre algo, mas agora não tivesse mais tanta certeza.

E, enquanto isso, Matthias continuava a falar devagar e com fimeza.

Foi ali que tudo começou, pensou consigo mesmo: aquele homem, aquele homem do mal com quem vivera sozinho por tempo demais, aquele cretino nojento que o “criou”. Mas agora era hora do acerto de contas, e sua versão mais jovem não sentia nada enquanto falava aquelas palavras, sabendo muito bem que estava finalmente enfrentando o monstro.

Seu pai agarrou a frente do próprio sobretudo, bem acima do coração, apertando o tecido com as unhas cheias de sujeira.

E Matthias continuou a falar.

Até o outro cair ao chão. Seu pai caiu de joelhos, a palma da mão livre escorregando do corrimão, a boca abrindo-se tanto que os outros dentes que faltavam no fundo também ficaram expostos.

Ele nunca achou que seria pego. Foi isso que o matou.

Bom... tecnicamente, a causa da morte foi um infarto no miocárdio. Mas a causa verdadeira foi o fato de que o segredo sujo que compartilhavam fora revelado.

A morte levou todo o tempo que precisava.

Enquanto seu pai agonizava deitado de costas, as mãos agora apertando a axila esquerda, que doía como o diabo, Matthias ficou parado onde estava e assistiu o processo se desenrolar. Aparentemente, respirar estava cada vez mais difícil, o peito subia e descia sem muito efeito; debaixo do bronzeado, a cor de seu pai estava sumindo.

Quando a vista voltou a mostrar o quarto, Matthias entendeu que ele se virara e estava andando em direção ao rádio, que ligou enquanto se sentava. Ainda podia enxergar seu pai lutando como uma mosca presa em um parapeito, os membros se contraindo de um lado para outro, a cabeça arqueando para trás como se pensasse que um ângulo diferente pudesse ajudar com a respiração.


Mas não ajudaria. Mesmo um garoto de quinze anos da fazenda sabia que, se o coração não estivesse bombeando, cérebro e órgãos vitais falhariam, não importava quanto ar ele tentasse puxar.

Lá no campo, o rádio pegava apenas cinco estações, e três eram religiosas. As outras duas tocavam música country e pop, então ficou virando o botão, indo e vindo entre elas. De tempos em tempos, apenas porque sabia que seu pai logo iria encontrar o Criador, ele deixava um sermão ecoar pela casa.

Matthias não sentiu nada além de frustração por não conseguir encontrar um rock pesado para tocar. Achava que um Van Halen combinava mais com a demorada morte de seu pai do que um cretino como Conway Twitty ou Phil Collins.

Fora isso, ele estava sereno como um lago, forte como concreto.

Caramba, ele nem se importava que aquilo significasse o fim dos abusos. Queria apenas saber se era capaz de se livrar do velho, como se a empreitada fosse um projeto da escola: ele planejou, colocou as peças no lugar e então acordou naquela manhã e decidiu empurrar a primeira peça do dominó.

E conseguiu, graças a sua professora muito religiosa, maleável e de bom coração.

No corredor da escola, ele chorou na frente dela enquanto contava sobre o inferno no qual vivia, mas aquele show de lágrimas era apenas para lhe dar uma motivação extra. Na verdade, a grande revelação não causou mais emoção nele do que uma troca de roupa: enquanto manipulava a professora com a verdade, em seu interior ele estava frio como gelo, sem sentir nem satisfação pela primeira parte do plano realizada, nem excitação por aquilo estar finalmente acontecendo.

O resto aconteceu rápido, e essa velocidade foi a única coisa que não esperava: ele foi mandado imediatamente para a enfermaria, depois a polícia chegou, papéis foram preenchidos e enviados, e lá se foi Matthias para as mãos do sistema.

As autoridades enviaram apenas mulheres para tratar dele, como se isso fosse deixar as coisas mais fáceis. Principalmente durante os exames físicos – que eles achavam que seriam realmente perturbadores para Matthias.

E quem era ele para não fazer o que eles queriam?

Entretanto, não esperava mesmo ser mandado para um lar adotivo em menos de duas horas.

Acontece que a única coisa que realmente queria era aquela parte, o acerto final com seu pai deitado ali no chão – e foi preciso escapar e roubar um carro para chegar antes que a polícia levasse seu pai para a prisão, quando o homem voltasse do trabalho nos campos de milho. Tudo teria sido em vão se ele estragasse essa parte.

Mas funcionou perfeitamente.

Nos últimos momentos da vida miserável de seu pai, Matthias virou o botão do rádio para uma das estações religiosas – e parou por um momento. O sermão era sobre o Inferno.

Parecia apropriado.

Ele assistiu quando o último suspiro surgiu e a calmaria prevaleceu. Era tão estranho, um ser humano repentinamente passando para o outro lado, um ser vivo tornando-se indistinguível de uma torradeira, um tapete, ou até mesmo um rádio relógio.

Matthias esperou mais um pouco até aquele rosto tornar-se completamente cinza. Então levantou, tirou o rádio da tomada e colocou-o debaixo do braço.

Os olhos de seu pai estavam abertos e encaravam o teto, da mesma maneira que ele próprio fizera por muitas noites durante o passar dos anos.

Matthias não mostrou o dedo do meio, não cuspiu nem chutou o corpo. Apenas passou por ele e desceu as escadas. Seu último pensamento enquanto deixava a casa era que aquilo tinha sido um interessante exercício mental...

E queria saber se conseguiria fazer de novo.

– Matthias?

Deixando escapar um grito, ele pulou em sua cadeira. O restaurante ressurgiu ao seu redor, as paredes se reergueram, o som ambiente de pessoas comendo e conversando voltou a ser registrado por seu cérebro.

Quando as pessoas olharam para ele, Dê se inclinou e disse:

– Você tá bem?

Seu belo rosto mostrava uma perfeita expressão de compaixão, os lábios entreabertos como se a aflição dele dificultasse sua respiração.

O afastamento que o seu eu jovem sentira voltou a ocupar um lugar em seu peito, como se a memória tivesse calibrado seu motor interno, reajustando-o, como um carro que precisa de alinhamento. Encarou a mulher com distanciamento, uma fria objetividade que os separava mesmo estando a poucos metros um do outro.

Emoções podiam ser facilmente fingidas. Ele sabia muito bem disso.

O sorriso que mostrou a ela parecia diferente em seu rosto – mas ao mesmo tempo era muito familiar.

– Estou muito bem.

O garçom se aproximou naquele momento trazendo o grande café da manhã e, quando o colocou na mesa, Matthias podia jurar que viu Dê recostar-se e sorrir de satisfação.


De pé ao lado do recepcionista do restaurante, Mels estava cansada de bancar a perseguidora. O fato de ela ter vindo até o hotel já era razão suficiente para se sentir mal, mas agora que o encontrara com aquela enfermeira... Tinha duas razões para se sentir mal: não respeitava a si mesma, e aquela outra mulher era tão bonita quanto a Sofia Vergara, só um tolo não veria isso.

Quando um prato do tamanho de um ônibus foi colocado na frente de Matthias, ele olhou para sua companheira com um sorriso maroto e...

A cabeça dele virou sem motivo, bem quando Mels estava prestes a dar meia-volta.

Seus olhos se encontraram e instantaneamente aquela expressão cínica dele se transformou em algo que Mels não conseguia interpretar – mas ela disse a si mesma que não se importava.

Tanto faz. Aquilo não era da sua conta.

E ela não faria nenhuma cena. Em vez disso, se dirigiu calmamente para a porta giratória do saguão...

– Mels! – ouviu um grito vindo de trás.

Não dava para fingir que ele não estava vindo atrás dela, e, além disso, ela não tinha razão para ignorá-lo.

– Eu não queria interromper seu café da manhã – ela disse quando parou e deixou ele se aproximar. – E estou a caminho de uma reunião. Quando você não atendeu o telefone, pensei em parar um pouco no hotel.

– Mels...

– Aquela história que você me pediu pra checar é verdadeira. A única diferença é que o nome é escrito com um “e”. O certo é Childe. O filho morreu de overdose, e o pai estava presente quando aconteceu. A filha ainda está viva... é uma advogada em Boston. O pai trabalha para o governo, em vários cargos. Pelo menos, é isso que consta nos jornais. Não sei de informações que não sejam públicas – enquanto ele apenas a encarou, Mels levantou o queixo. – Bom, o que esperava que eu encontrasse?

Ele esfregou o rosto como se estivesse com dor de cabeça.

– Não sei. Eu... quando o filho morreu?

– Não faz muito tempo. Dois anos e meio, acho...

– Seu café da manhã está esfriando.

Mels olhou para a enfermeira. A mulher olhava apenas para Matthias enquanto se aproximava, como se ele não estivesse falando com mais ninguém.

Certo, ela parecia fantástica com aquele vestido. Seu corpo transformava algo essencialmente recatado em um grande show sexy...

Repentinamente, Mels lembrou daquele episódio de Seinfeld com a Terri Hatcher... é, aqueles seios eram provavelmente reais e espetaculares. Já Mels tinha de usar sutiãs com armação para levantar um pouco os seus...

– Eu estava mesmo indo embora – Mels disse. – Ou vou me atrasar para minha reunião.

A enfermeira lançou um olhar dispensando-a, com aqueles olhos castanhos dizendo não apenas “vai logo embora”, mas também “dane-se você”.

– Vem, vamos voltar pra mesa.


Matthias apenas continuou encarando Mels, ao ponto de ela pensar que ele tentava dizer algo. Mas ele tinha ovos frios e pernas quentes para se preocupar, então seu prato já estava cheio sem Mels para atrapalhar.

Ela acenou para os dois e saiu pela porta em direção à rua.

O sol brilhava enquanto Mels andava até o carro de Tony. O interior do sedã estava quente. Ajeitando-se no banco do motorista, ela deu um sermão em si mesma antes de girar a chave – mas aquilo não ajudou em nada.

Nem mesmo a parte sobre como um homem misterioso e não disponível tinha muito mais chances de, segundo seu instinto de repórter, parecer muito mais atraente do que um cara normal qualquer – mas ser atraente não fazia dele uma boa opção.

Talvez fosse por isso que ela ainda estava solteira. Não era por falta de convites para sair. Provavelmente tinha mais a ver com o fato de que os homens que a convidavam para sair tinham empregos fixos, aparência boa o suficiente... e memórias.

Nada de mistério, nada de emoção.

Ela tinha de gostar de um cara com um passado nebuloso e uma companheira de café da manhã que tinha corpo de Barbie e cabelo de comercial de TV.

Saudável, muito saudável.

Mels deu a partida no carro e entrou no trânsito: seu encontro com Monty, o Boca, estava marcado em um parque a sete quarteirões dali.

Pelo menos a sincronia de tudo estava a seu favor: se tivesse de voltar à redação e encarar a tela do computador fingindo que trabalha, ela acabaria louca.

Malditos homens, pensou consigo mesma ao encontrar uma vaga, e desta vez fez uma baliza melhor.

Seguiu as instruções que recebeu – toda aquela história com Monty parecia saída de filmes de espionagem, com ela o encontrando em um banco debaixo de um bordo específico. Só precisava de um jornal para se esconder e uma senha secreta para entrar definitivamente no mundo de James Bond.

Monty chegou dez minutos depois, vestindo roupas civis que o faziam parecer um cafajeste qualquer. Ele estava de bom humor: essa coisa de espionagem claramente produzia o drama que ele necessitava.

– Ande atrás de mim – ele disse, com a voz baixa, ao passar por ela.

Ah, isso era ridículo!

Mels levantou quando ele estava a uns três metros. Ela caminhou mantendo o ritmo de Monty, se perguntando por que diabos estava se submetendo àquilo.

Depois de andarem um pouco, chegaram ao leito do rio, ao lado de um grande embarcadouro com estilo vitoriano onde as pessoas podiam ancorar suas canoas e barcos nos meses mais quentes.

Quando ela entrou, seus olhos levaram um segundo para se acostumar à escuridão: as janelas em forma de diamante não deixavam entrar muita luz do sol, as prateleiras cheias de remos, as pilhas de boias e as velas enroladas faziam o lugar parecer completamente lotado. E também era barulhento, em certo sentido: por toda parte, as ondas do rio batiam nas paredes do lugar e o som ecoava pelos espaços vazios debaixo do grande teto...

De repente, um bando de andorinhas voou de seu ninho, passando em rasante sobre eles antes de escapar pela janela, ganhando o céu.

Quando seu coração voltou a bater no ritmo normal, Mels disse:

– Então, o que você tem pra mim?

Monty lhe entregou um grande envelope.

– Imprimi isto em casa hoje de manhã.

Mels retirou o clipe de metal e abriu o envelope.

– Quem mais sabe sobre isto?

– No momento, apenas eu e você.

Uma a uma, ela retirou três fotos coloridas, todas da vítima: a primeira era de corpo inteiro com a camisa no lugar, a segunda mais aproximada e com a camisa levantada, a terceira em close mostrando o que parecia ser uma série de símbolos.

Cecília Barten.

Esse foi o nome que surgiu na mente de Mels enquanto examinava as imagens: Sissy fora outra garota, mais jovem e muito, muito longe de uma vida na qual ser assassinada fosse um dos ossos do ofício. Seu corpo fora encontrado recentemente em uma pedreira, com o mesmo tipo de símbolos gravados no abdômen. Sua garganta também fora cortada. E ela era loira.

– Você viu as fotos da cena do crime, não é? – perguntou Monty.

– Sim – Mels voltou a olhar a foto dos símbolos. – A pele estava vermelha, mas não havia nada disso. Então, me conte, de modo extraoficial se você preferir: como isso aconteceu? Você disse que foi um dos primeiros a chegar...

– Fui o primeiro a chegar. Fui com o gerente até o quarto e prontamente comecei os procedimentos de rotina. Isolei a porta e chamei reforços.

– Onde estava sua parceira?

– Ela estava doente, então eu saí sozinho. Corte de gastos, sabe como é. Nada de substitutos. Tanto faz, enquanto eu esperava, tirei essas fotos.

Ela odiava gente que falava tanto faz.

– Você mexeu na camisa.

– Eu estava examinando o corpo e a cena, seguindo os procedimentos normais.

Pervertido.

– Mas por que tirou as fotos se a fotógrafa oficial estava pra chegar?

– A verdadeira pergunta é: o que aconteceu com os símbolos?

Caramba, aquilo não estava cheirando bem, pensou Mels.

Olhando em seu rosto, ela perguntou:

– Então, o que posso fazer com isto?

– No momento, nada. Não quero ser acusado de adulterar o corpo.

Mas você fez exatamente isso, ela pensou consigo mesma.

– Então por que está me dando as fotos?

– Alguém tem que saber. Talvez eu fale com De la Cruz... ou talvez você possa publicar no jornal e dizer que as fotos são de uma fonte anônima. O negócio é que o horário da morte foi dado como perto das cinco ou seis horas, então o assassinato aconteceu logo depois que o sei-lá-quem pagou e entrou no quarto. Quando eu cheguei eram quase nove e quinze. Isso deixa quatro horas e meia para alguém ter entrado e saído de lá.

Mas o que ele não percebia, talvez de propósito, era o fato de que aqueles símbolos tinham desaparecido entre o momento em que ele chegara à cena do crime e o momento das fotos oficiais. O corpo não podia ter ficado muito tempo sozinho, e cicatrizes não desaparecem simplesmente.

Aquilo realmente não estava cheirando bem.

– Certo, só me diga o que posso publicar sem te trazer problemas – ela disse. – Quando você quiser.

Ele assentiu como se tivessem fechado um acordo e começou a andar.

– Espera um pouco, Monty, tenho uma pergunta rápida sobre outro assunto.

Ele parou na porta.

– O que foi?

– Sabe aquele homem que foi encontrado morto no Marriott?

– Ah, aquele cadáver na entrada de serviço? Que depois desapareceu do necrotério?

Mels parou de respirar.

– Como é?

– Você não ficou sabendo? – ele se aproximou novamente. – O corpo sumiu. Hoje de manhã.

Impossível.

– Foi roubado? Do necrotério do Hospital St. Francis?

– Aparentemente.

– Como uma coisa dessas pode acontecer? – quando Monty deu de ombros, ela balançou a cabeça, pois sabia que, seja lá o que acontecera com o corpo, boa coisa não era. – Bom, espero que encontrem. Escuta, você por acaso sabe que tipo de balas eles encontraram no colete que a vítima estava vestindo?

– Calibre quarenta.

– E ouvi falar que tinha uma tatuagem no corpo?

– Não sei. Mas posso descobrir.

– Eu agradeço.

Ele deu uma piscadela e um sorriso maroto.

– Sem problema, Carmichael.

Quando ficou sozinha, Mels observou as fotos novamente, uma a uma... e deduziu que Caldwell provavelmente tinha outro assassino serial em suas ruas.

Não era exatamente o tipo de segurança do trabalho que ela e os policiais esperavam.

E começou a suspeitar que talvez fosse alguém da própria força policial.


CAPÍTULO 24

Quando Devina dobrou seu guardanapo ao lado do prato vazio do café da manhã, ela sorriu para sua vítima, que estava sentada do outro lado da mesa. De uma forma geral, as coisas até que iam bem. A memória de Matthias estava voltando, e a lembrança que ela destravara sobre o pai dele trouxera de volta aos seus olhos o tipo de brilho que ela gostava de ver.

Seu velho pai fora essencial, é claro: fora o início da maldade, uma prova definitiva de que a infecção podia acontecer mesmo de humano para humano, e não apenas de demônio para humano.

Mas ela precisava ter cuidado ao mexer nesse vespeiro.

– Eu pago a conta – disse Matthias, levantando o braço para chamar o garçom.

– Você é um perfeito cavalheiro – ela colocou a mão dentro da bolsa e começou a contar seus batons da esquerda para a direita. – Estou feliz por termos encontrado um ao outro.

... três, quatro, cinco...

– Foi um golpe de sorte – ele olhou para a janela, como se estivesse fazendo planos. – Quais seriam as chances disso acontecer?

... seis, sete, oito...

– O que você vai fazer hoje? – ela perguntou, seu coração batendo mais forte enquanto o fim da contagem se aproximava.

... nove, dez, onze...

Ele respondeu, mas ela não prestou atenção, pois estava quase acabando de contar.

Doze.

Treze.

Deu um suspiro, pegou o último tubo e tirou a tampa. Encarando Matthias, ela o fez olhar para sua boca enquanto expunha a ponta vermelha do batom e passava lentamente pelos lábios.

Ele fez exatamente o que ela queria, mas a resposta não foi a que desejava: a reação dele foi mais clínica do que sexual. Como se ela fosse um instrumento que Matthias estava considerando brevemente se usaria ou não.

Devina franziu a testa. Quando ele disparou atrás daquela repórter, não havia nada dessa frieza distante. Mesmo vestido ele parecia nu, focado naquela mulher como se ela estivesse dentro dele, em vez de ser algo separado e distinto.

O demônio apertou e soltou os lábios, sentindo a boca voltar a mostrar a maciez de sempre – e, para ter certeza que ele entendera a intenção, ela inseriu em sua mente um pensamento sobre aquela boca envolvendo seu pau, chupando, sugando e engolindo.

Não funcionou.

Ele apenas olhou para o garçom, pegou a conta e escreveu o número de seu quarto.

Uma forte lufada de vento estremeceu as janelas e seu som fez todos no restaurante levantarem a cabeça, incluindo Matthias. Sentada em frente a ele, Devina fervilhava de raiva. Seu ódio se manifestou e tocou os elementos lá fora, atraindo uma ventania do Sul.

Tudo o que ela conseguia pensar era em como Jim a enganara – e agora esse cretino aleijado, que voltaria para o Inferno assim que a rodada terminasse, também a estava esnobando.

Cretinos. Os dois eram grandes cretinos.

Ela se levantou e pendurou a bolsa no ombro.

– Até quando você vai ficar hospedado aqui?

– Não por muito tempo.

Era verdade. As coisas estavam acontecendo com muita velocidade, mesmo que ele não estivesse ciente, e esta rodada terminaria rapidamente.

Talvez Devina devesse levá-lo para o quarto e lembrá-lo de que era um homem e não um robô – e aquela “dificuldade” não seria problema desde que estivesse com ela.

Boa sorte com aquela repórter nesse quesito, pensou ela.

– Vou sair agora – ele disse, como se a estivesse dispensando.

Devina estreitou os olhos e então lembrou que estava representando um papel.

– Bom, tenho certeza de que vou te encontrar por aí.

– Parece que sim. Boa sorte com sua mãe.

Quando ele se virou, ela quis transar com ele por outras razões além daquela rodada. Matthias tinha o mesmo tipo de força – e a mesma personalidade elusiva – de Jim.

Ela deveria ter prestado mais atenção nesse homem na época em que o possuía. Felizmente, ele logo voltaria para casa.

Nesse meio tempo, Devina precisava cuidar daquela repórter. Ela não precisava desse tipo de influência no jogo.

E acidentes acontecem a toda hora. O Criador não poderia culpá-la por isso.


Matthias tomou um táxi até a sede do Correio de Caldwell e esperou no estacionamento atrás do edifício. Ele deduziu que Mels tinha emprestado o Toyota para ir até o hotel e, de fato, aquela lata-velha não estava estacionada junto com os outros carros velhos cheios de lixo.

Parecia até que ter um carro caindo aos pedaços fazia parte da profissão de jornalista.

Ficou ao lado da porta dos fundos, encostado na parede e apoiando-se na bengala. No céu, nuvens cobriram o sol e sombras tomaram conta do lugar enquanto a noite se anunciava.

Ele estava sendo observado.

Não pelas pessoas que surgiam e sumiam pela saída... ou pelos fumantes que baforavam por alguns minutos e voltavam para dentro... ou pelas pessoas dirigindo pelo estacionamento lotado à procura de uma vaga.

Havia alguém observando-o constantemente, em posição fixa, à sua direita.

Poderia ser alguém em um daqueles carros alinhados na rua ao lado do estacionamento. A única outra opção era o telhado do edifício do outro lado da rua, já que as paredes não tinham janelas.

Ele precisava conseguir um pouco de munição. Sem balas, a arma calibre quarenta com silenciador que ele pegara “emprestado” de Jim servia apenas para golpear – o que não era exatamente inútil, mas não era a mesma coisa que um projétil mortal de longa distância.

O Toyota que ele esperava apareceu na curva e entrou. Quando o carro parou bruscamente, Matthias soube que Mels o avistara.

Ela estacionou na primeira vaga disponível, saiu do carro e se aproximou com a cabeça erguida e os cabelos balançando ao vento.

– Está queimando as calorias do seu café da manhã com uma boa caminhada? – ela perguntou.

Uma sutil pontada em seu peito surgiu quando ele a olhou nos olhos, e aumentou gradualmente, chegando até a dificultar sua respiração.

– Sinto muito – ele disse com a voz rouca.

– Pelo quê?

Tudo que ele conseguiu fazer foi balançar a cabeça, pois sua voz sumira. Aquela clareza fria e calculada que sentira após ser atingido pelas visões do passado havia sumido. Em seu lugar, havia uma sensação de impotência, como se ele fosse uma fortificação que perdeu a linha de defesa.

– Matthias, você está bem?

O que veio a seguir simplesmente aconteceu: ele se aproximou e colocou as mãos ao redor da cintura dela... e então a abraçou, mergulhando o rosto em seus cabelos soltos e perfumados.

– O que aconteceu? – ela disse suavemente enquanto acariciava as costas dele.

– Eu não... – que droga, ele estava fora de si. – Não posso...

– Está tudo bem...

Eles ficaram abraçados por um tempo enquanto trovões ecoaram, como se o céu não os aprovasse, e relâmpagos rasgaram o ar por baixo da camada de nuvens escuras.

Que diabos ele estava fazendo? A verdade era que Matthias queria ficar ali para sempre: quando abraçava o corpo quente daquela quase estranha, não havia passado nem futuro, apenas o presente, e aquela falta de um horizonte ou paisagem era o abrigo de que ele necessitava no momento.

A chuva começou a cair em grandes gotas, ao ponto de sentirem como se fossem atingidos por pedregulhos.

– Vem pra dentro – ela disse, tomando sua mão e usando um cartão de identificação para entrar no prédio.

Um estranho perfume químico invadiu o nariz dele. Mas não era nenhum produto de limpeza; Matthias estava sentindo o cheiro da tinta nas prensas.

– Aqui – ela disse, virando a maçaneta e empurrando a porta vermelha com o quadril.

A sala de reunião tinha cadeiras desiguais e uma longa mesa. Nada ali combinava, o lugar parecia um verdadeiro Frankenstein de móveis de escritório. Mas havia um bebedouro em um canto, e Mels trouxe um copo de água.

– Beba isto.

Matthias fez o que ela pediu e, enquanto bebia, fez o possível para se recompor.

Mels sentou em cima da mesa deixando as pernas balançarem de lá para cá vagarosamente.

– Converse comigo.

Mas que droga, como poderia contar o que aconteceu? O que é que ele estava fazendo ali, afinal?

Bom, pelo menos sabia a resposta para essa última pergunta. Ele queria ser honesto com uma pessoa. Finalmente. Precisava apenas fazer uma conexão com ela, como se Matthias estivesse em queda livre e Mels fosse uma corda para ser agarrada, e as palavras que ele precisava dizer fossem sua maneira de lutar pela vida.

– Eu matei meu pai.

Os pés dela pararam em meio ao balanço, os ombros ficaram tensos.

– Depois de muitos anos em que ele... – fale. Vamos, fale. Fale, seu idiota! – Ele era um homem violento, e bebia muito. Coisas... aconteceram. Coisas que não deveriam acontecer e eu...

O olhar no rosto dela gradualmente mudou, voltando a mostrar compaixão.

Mas, quando parecia que ela colocaria os pés no chão para abraçá-lo, Matthias levantou as duas mãos.

– Não, eu não posso... não vou conseguir terminar de falar se você me tocar.

– Certo – ela respondeu vagarosamente.

– Nem sei por que estou contando isso.

– Não precisa ter uma razão.

– Sinto que deveria ter.

– Você sabe que pode confiar em mim, não é? Posso ser repórter, mas eu estava falando a verdade quando disse que isso é apenas meu trabalho, e não quem eu sou.

– Sim – ele passou a mão nos cabelos e então tirou os óculos escuros. – Desculpa, mas preciso ter uma visão clara de você.

Ela franziu a testa.

– Não precisa pedir desculpa.

Ele mostrou o Ray-Ban e disse:

– Pensei que preferia que eu usasse os óculos. Você sabe, lá no restaurante... porque assim você não precisava olhar pro meu rosto.

– Não foi por isso que eu disse que você podia ficar com os óculos. Você não é feio pra mim, Matthias. Nem um pouco. E não precisa se esconder.

Por algum motivo, ele sabia que aquilo não iria durar. Sentia que quanto mais coisas ele lembrasse, pior seria a imagem de seu passado – como um quebra-cabeça que você achava que se tornaria uma linda paisagem, mas acaba sendo a horrível figura de Michael Myers, do filme Halloween.

– Eu denunciei ele – Matthias ouviu a si mesmo falar. – Falei com a minha professora, depois fui mandado para a enfermaria da escola, e eu contei tudo a eles, expliquei minhas faltas, os hematomas e... as outras coisas. Eu tinha quinze anos. Aguentei tudo calado até aquele ponto...

– Meu Deus, Matthias...

– ... mas então larguei mão de tudo, e o sistema entrou em ação. Ele teve um ataque do coração na minha frente quando eu contei que agora todo mundo sabia do segredo.

– E é por isso que você pensa que matou ele? Matthias, você não fez nada de errado.

– Sim, eu fiz. Assisti a morte dele. Não telefonei para a emergência, não corri para buscar ajuda, fiquei lá parado assistindo quando ele caiu na minha frente.

– Você era uma vítima de abuso e estava em estado de choque. Não é sua culpa...

– Eu fiz de propósito.

Agora ela franziu a testa novamente.

– Não estou entendendo.

– Eu não me importava com as coisas que ele fez comigo. Aquilo era mais uma chateação do que qualquer outra coisa – ele deu de ombros. – A coisa toda sobre a denúncia foi só um exercício mental pra mim. Entende? Eu conhecia ele muito bem – ele apertou as têmporas. – Eu conhecia a maneira como ele pensava, as coisas que o deixavam forte. Ele gostava de ser mal e ter poder sobre mim. Era um cara não muito esperto que trabalhava o dia todo com animais burros e espigas de milho. Quando ele precisava lidar com adultos do mesmo nível, seu complexo de inferioridade surgia. Ele ameaçava me matar se eu contasse pra alguém, e isso era seu inferno pessoal. Aquele segredo era muito importante pra ele, e não porque abusar de um filho é algo ilegal. Eu sabia que isso o afetaria além de parar com os abusos... e eu queria ver o que aconteceria.

– Espera, deixa eu perguntar uma coisa. Quanto tempo você passou vivendo com ele?

– Minha mãe morreu no parto.

– Então passou a vida inteira.

– Morei em outro lugar por um tempo, mas depois voltei a ficar com ele.

– Quando era pequeno.

– Sim.

– E não te ocorreu que naquela época você era apenas um garoto salvando a si próprio?

– Esse foi o resultado final, mas não era minha motivação. E é isso que me abala tanto.

Mels balançou a cabeça.

– Eu acho que você precisa aprender a se perdoar um pouco.

Ah, inferno, ela nunca entenderia. Matthias podia ver em seus olhos – ela já tinha cristalizado uma opinião sobre ele e nada mudaria aquilo.

– Matthias não é meu nome verdadeiro.

– Então como se chama?

Havia se lembrado. No café da manhã.

Ele a encarou por um longo tempo, observando o rosto, o pescoço, o corpo esguio... e então voltou aos olhos inteligentes.

Não compartilharia aquela informação. Não conseguiria.

E, no silêncio que se seguiu, ele sentiu uma necessidade esmagadora de ficar sozinho com ela novamente, e não em um lugar público. Em seu quarto. Naquela cama de hotel cujos lençóis cheiravam a limão. Ele queria mais um pouco dela antes de partir, como se ela fosse um remédio que o deixava vivo por mais um pouco de tempo.

Porque Matthias entendera que ia morrer logo.

Não era apenas paranoia. Era... inevitável, como se seu passado estivesse escrito em pedra.

– Meu tempo está acabando – ele disse suavemente. – E quero ficar com você antes de ir embora.

– Pra onde você vai?

– Pra longe – ele respondeu após um momento.


CAPÍTULO 25

Mels parou de respirar quando ficou convencida de que Matthias era uma das pessoas desaparecidas de Caldwell, mesmo ele possuindo carteira de motorista e, supostamente, uma casa. Ali na sua frente, olhando-a nos olhos, era como se ele nem estivesse na sala.

Esteve aqui por apenas uma fração de segundo e agora se fora para sempre.

– Por que está indo embora? – ele apenas balançou a cabeça, e ela perguntou: – É por causa disso que você não quer me dizer seu nome verdadeiro?

– Não, é porque não importa. São apenas sílabas. Não sou mais essa pessoa já faz muitos anos, é simplesmente irrelevante.

– Não tenho tanta certeza disso – ele deu de ombros, e ela teve de pressioná-lo. – E você não precisa ir pra lugar nenhum.

Ela não acreditava que as pessoas podiam saber do futuro. Se ele partisse, seria por vontade própria – e a decisão podia ser desfeita a qualquer momento. Por ele.

Exceto... o problema com aquele argumento era que Mels também sentia que os dois não teriam um final feliz. Eles haviam se encontrado por causa de um acidente. Suas vidas colidiram, e assim como o impacto, sua relação também não duraria muito.

Apenas os ferimentos seriam eternos.

Ela tinha uma terrível sensação de que nunca esqueceria os momentos que passara com aquele homem.

– Quanto tempo nós temos? – ela exigiu saber.

– Eu não sei.

Levantando da mesa, ela se aproximou, o envolveu com os braços e encostou o rosto no peito dele, ouvindo as batidas de seu coração. Quando Matthias a abraçou de volta, ela ficou imaginando por que sentia aquela conexão tão forte com ele. Todos os outros homens, os normais, nunca conseguiram realmente mexer com ela.

Mas este homem...

Matthias se inclinou para trás e tocou o rosto dela.

– Posso beijar aqui?

– Você quer dizer aqui no meu rosto ou aqui na sala de reunião?

– Bom, você trabalha aqui, então...

Ela pressionou os lábios contra os dele, silenciando-o. Quem se importava com o local onde estavam? Havia um monte de namoros entre funcionários, e pessoas traziam esposas, maridos e namorados pro trabalho a toda hora.

Além disso, se o chefe podia assediá-la sexualmente debaixo daquele teto, então Mels podia beijar ali o homem que realmente desejava.

Fechando os olhos, ela inclinou a cabeça e o beijou novamente, desta vez colando os lábios por mais tempo. E quando ele a beijou de volta, Mels desejou capturar aquele momento e torná-lo físico de alguma forma, para que pudesse segurá-lo com as mãos ou guardá-lo em um local seguro, como faria com um livro ou um vaso.

Mas a vida não é assim. As pessoas não podem guardar para sempre os momentos que as definem ou as emocionam – não é possível tocá-los com a palma da mão ou a ponta dos dedos. As maquinações do destino são tão elusivas quanto a ferramenta de um escultor, que surge de repente modelando contornos e depois parte para o próximo pedaço de argila.

Com um movimento decidido, Matthias subiu a palma da mão pelas costas dela até chegar em sua nuca, tomando controle. E quando sua língua lambeu entre os lábios de Mels, ela se abriu para ele, desejando que estivessem em um local privado quando o calor começou a se intensificar dentro dela, subindo por seu corpo cada vez mais rápido e quente...

Mels franziu a testa ao perceber que sua mão estava tocando algo duro nas costas de Matthias, na altura da cintura.

Não era parte de um suporte.

Não era nada médico.

Passando a mão por baixo da camisa ela encontrou... o cabo de uma pistola.

Mels puxou a arma para fora do coldre e se afastou.

Era uma pistola calibre quarenta, e ela rapidamente checou a câmara. Vazia. O mesmo com o carregador.

– Você não é a única que tem permissão de porte de armas – ele disse vagamente.

Ela entregou a automática de volta.

– Pelo visto não. Posso perguntar onde conseguiu isso?

– Eu comprei.

– E esqueceu a munição?

– Não veio junto no pacote.

– Sabe de uma coisa? A pessoa que morreu no seu hotel ontem à noite levou tiros de uma arma desse calibre.

– E você acha que fui eu porque estou sem munição.

Mels deu de ombros.

– Você me disse pra não me envolver porque eu poderia morrer. Você aparece com uma arma depois de alguém ser assassinado no Marriott. Não é preciso ser nenhum Einstein pra ver uma ligação aqui.

– Eu não matei aquele homem.

– Como sabe que era um homem?

– Apareceu em todos os jornais.

Mels cruzou os braços acima do peito e encarou o chão, pensando que nada de bom poderia sair daquela conversa, considerando a direção que estava tomando.

– Acho que é melhor eu ir embora.

– Pois é – ela disse.

Que grande decepção. De um beijo para uma discussão em menos de cinco segundos.

– Sinto muito – ele murmurou quando já estava na porta.

– Por que está pedindo desculpa?

– Não gosto de sair te deixando assim.

Bom, ela também não gostava nem um pouco.

Quando a porta se fechou, Mels se perguntou se o veria de novo – e deu mais um sermão em si mesma sobre manter a cabeça erguida e não deixar que sua libido a jogasse em situações perigosas.

Aquilo não era algo que seu pai aprovaria. Não era algo que mulheres inteligentes faziam.

Mas que droga...

Depois de chutar o próprio traseiro por quinze minutos, ela voltou para a redação, encheu uma xícara de café forte sem açúcar e retornou para sua mesa.

– Diga que você não bateu meu carro também.

Ela deu um sobressalto e olhou para Tony.

– O quê...? Ah, não. Aqui estão as chaves.

– Você parece ter saído de outro acidente.

Vai entender.

Ajeitando-se em sua cadeira, ela encarou a tela do computador.

– Você está bem? – perguntou Tony. – Precisa de um chocolate?

Mels riu.

– Acho que vou ficar no café mesmo, mas obrigada.

– Então, o que é que está te incomodando?

– Estou apenas pensando como é possível, fisiologicamente, que cicatrizes num cadáver possam sumir sozinhas.

Certo, não era a pergunta que realmente estava em sua mente, mas era uma boa substituta socialmente aceitável. Ela estava mesmo pensando naquilo em algum nível de sua consciência, e Tony era uma enciclopédia ambulante, portanto aquela era uma boa oportunidade para mencionar a questão.

Agora foi a vez dele se ajeitar e encarar o vazio enquanto pensava.

– Não é possível. Cicatrizes são cicatrizes.

– Então, como você explicaria dois conjuntos de fotografias, um que mostra marcas na pele e outro que mostra a pele sem as marcas?

– Fácil. Alguém usou Photoshop.

– É isso que estou pensando.

O que ela não entendia era o “porquê”. Embora suspeitasse do “quem”.

Mels deixou a cabeça pender para o lado. Qualquer alteração não poderia ter sido feita pela fotógrafa oficial – enquanto a mulher trabalhava, havia meia dúzia de homens no recinto. E, se ela mudasse alguma coisa nas imagens depois, eles teriam apontado para a discrepância no momento em que vissem as fotos.

Então restava Monty, um homem que masturbava seu ego falando com a imprensa quando não podia e tentando criar um drama onde não havia nenhum. Quais seriam as chances de ele adulterar as imagens apenas para se divertir?

Mels começou a agir, acessando os arquivos do Correio de Caldwell.

– Ou foi isso – Tony disse –, ou foi um caso de intervenção divina.

 

– Encontrei a tatuagem.

Às cinco da tarde, Mels tirou os olhos da versão final de seu artigo sobre a prostituta. Eric estava de pé à sua frente, com uma pasta na mão, um sorriso enorme no rosto.

– Da vítima do Marriott que desapareceu no necrotério?

– Exatamente.

– Deixa eu ver – ela disse, levantando a mão.

– É o desenho de... – ele entregou a foto. – Bom, não é meu estilo. Gosto mais das tribais.

Quando ela abriu a pasta, suas sobrancelhas se levantaram. A foto era colorida, mas nem precisava – pelo menos não considerando a tinta do desenho. A tatuagem mostrava o Ceifeiro da Morte em preto e branco, com detalhes assustadores... mesmo na foto, os olhos brilhantes sob o capuz rasgado e a mão esquelética apontando para quem olha pareciam se dirigir a ela especificamente.

– Bem macabro, né? – Eric comentou. – E o cemitério também ficou legal, você não acha?

Era verdade. A horrível figura estava de pé em um campo de lápides. As tumbas se estendiam até o horizonte e a túnica decrépita cobria e obscurecia o cenário, que parecia ser infinito.

– O que são esses traços marcados embaixo? – ela perguntou.

– Deve ser a contagem de alguma coisa... e com certeza não é a contagem de amores que ele teve, eu posso apostar.

– Pode ser relacionado a alguma gangue.

– É isso que eu estava pensando, principalmente porque, segundo a minha fonte, faz pouco tempo que outro corpo chegou no necrotério com algo parecido.

– O que a polícia pensa disso?

– Estou tentando descobrir agora mesmo.

Mels olhou para Eric.

– Você já procurou a imagem na internet?

– Existem milhares de representações do Ceifeiro da Morte na internet... algumas são tatuagens. Não encontrei nenhuma idêntica a essa, mas todas são meio parecidas, se é que isso faz sentido.

– Então, como sua fonte conseguiu isso? Ouvi dizer que o arquivo também tinha desaparecido.

O Hospital St. Francis estava uma loucura por causa do incidente; era como se o homem nunca tivesse entrado no sistema.

Alguém fizera um trabalho limpo. Muito limpo.

– Tenho um colega que gosta de tatuagens. Ele tirou as fotos no celular quando o corpo chegou.

– Que ótimo – ela murmurou enquanto voltava a olhar a pasta. – Então, se assumirmos que a tatuagem é de alguma gangue, o que diabos o cara estava fazendo vestindo um colete à prova de balas ultramoderno? E o desaparecimento? Gangues não são tão sofisticadas assim pra resgatar seus mortos invadindo um hospital dessa maneira, incluindo o sistema digital. Sem chance. A mesma coisa com a máfia.

Eric mastigou sua caneta Bic.

– Tem que ser algo do governo. Quer dizer, quem mais poderia fazer uma coisa dessas?

Ela pensou na pistola descarregada de Matthias.

– Ouvi dizer que as balas eram calibre quarenta.

– A arma que foi usada contra o cara? Sim. E a boa notícia é que a polícia guardou o colete, as roupas e as botas como evidências, então elas não sumiram, como o corpo – os olhos de Eric se estreitaram. – Então, agora você vai me dizer por que está tão interessada?


– A garota da minha história também morreu com a garganta cortada. – Embora, sendo realista, quais seriam as chances de as duas mortes estarem relacionadas?

– Ah, então você está colecionando ferimentos no pescoço?

– Estou apenas sendo detalhista.

– E como está saindo a história da prostituta? Alguma coisa nova?

– Estou trabalhando em algumas coisas.

– Me chame se precisar de ajuda.

– O mesmo para você.

Quando Eric foi embora, ela percebeu que a redação estava praticamente vazia. E seu prazo para entregar o artigo estava quase acabando.

Ela leu novamente a história, e ainda não estava satisfeita. Não havia nenhuma informação nova além da identidade da vítima e, quando Mels ligou para a família, recebeu uma resposta surpreendentemente desinteressada.

Como alguém poderia não ficar abalado com a morte de uma filha?

Mels não gostava de enviar seu material daquele jeito. Estava bem escrito, e a revisão automática fizera seu trabalho, mas a verdadeira história estava com Monty e suas fotos, e ela ainda não podia acrescentar nada daquilo.

Praguejando, clicou no botão enviar e jurou que chegaria até o fundo daquela história. Mesmo se não pudesse publicar nada.

Trocou de janela no computador e voltou a analisar uma montagem de duas imagens, que preparara uma hora antes: eram de marcas semelhantes gravadas na pele do abdômen. Uma era de Cecília Barten, encontrada morta na pedreira dos arredores da cidade há alguns dias... e a outra era a imagem do que Monty dizia ser a barriga da prostituta.

O padrão das marcas parecia algum tipo de linguagem: havia caracteres idênticos nas duas fotos, embora não estivessem na mesma sequência – o que em sua mente não descartava a teoria de que Monty alterara digitalmente as fotos. Afinal, aquilo seria perfeito, pois ligaria as duas mortes sem deixar a manipulação parecer óbvia demais.

Na verdade, quanto mais pensava naquilo, mais se convencia de que a manipulação se encaixava com a personalidade de Monty. O quanto ele se divertiria se pudesse ser a “fonte” de um novo assassino em série?

Mas ela então ficou pensando: quando ninguém mais aparecesse morto como aquelas garotas, o que ele iria fazer? E seu emprego estava em jogo. Entregar informações daquela maneira já era arriscado para ele. Aumentar os riscos mentindo sobre aquilo seria muita tolice.

Talvez ele simplesmente estivesse ficando desleixado.

Mas... e quanto à cor do cabelo? A prostituta usara tintura um pouco antes de ser assassinada, um tom de loiro igual ao de Cecília Barten. Isso não mudara entre as fotos: isso acontecera de verdade.

E se Monty fosse um imitador de assassinatos?

– Como está sua situação com o transporte? – quando Mels se sobressaltou, Tony parou de guardar suas coisas. – Tudo bem por aí?

– Sim. Desculpa. Estava só pensando.

O colega pendurou uma bolsa sobre os ombros.

– Precisa pegar emprestado meu velho carro de novo?

Mels hesitou.

– Ah, eu não poderia te incomodar de novo...

– Não se preocupe. Apenas me leve pra casa e o carro é todo seu, contanto que me traga café da manhã de novo amanhã cedo – ele segurou as chaves pelo chaveiro do Kiss e ficou balançando-as de um lado para o outro. – Eu realmente não preciso dele.

– Só mais uma noite – ela cedeu.

– Você quer dizer mais dois pãezinhos de salsicha com café.

Os dois riram enquanto Mels desligava o computador. Ela levantou, jogou dentro da bolsa as fotos que Monty lhe entregara e começou a andar de braços dados com Tony.

– Você é um príncipe entre os homens, sabia disso?

Ele sorriu.

– Sim, eu sei. Mas é legal ouvir isso de vez em quando.

– Escuta, você conhece alguém que seja bom com fotografias?

– Está querendo tirar um retrato de si mesma?

– Estou querendo uma análise.

– Ah – ele segurou a porta aberta para ela passar. – Pra falar a verdade, eu conheço uma pessoa com quem você pode conversar... e provavelmente podemos encontrar essa pessoa no caminho pra casa.

 

 

CONTINUA