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CAPÍTULO 26
Jim não esperava visitar o necrotério do Hospital St. Francis tão cedo. Um passeio em meio às macas e cadáveres já fora suficiente para ele.
É claro, a boa notícia era que desta vez ele não precisou morrer. E a autópsia não seria realizada nele.
Que belo padrão para se medir uma boa notícia.
O problema era que as coisas estavam silenciosas demais. E isso significava que Jim precisava procurar por Devina – e pensou que um bom lugar para começar seria o corpo do agente no necrotério.
Ainda não acreditava, nem por um minuto, na ajuda dela na noite anterior, quando chegara com sua faca brilhante para “salvá-los”. Depois de passar o dia seguindo Matthias e esperando que Devina fizesse algo mais do que tomar café da manhã, Jim pediu que Ad ficasse de guarda enquanto ele fazia uma visita ao mundo do formol, dos azulejos verdes e das balanças que pesavam cérebros e fígados.
Ele queria dar uma boa olhada no corpo do “agente”.
Durante a luta da noite anterior, Jim não tivera tempo de prestar muita atenção no cadáver – e, embora não tivesse certeza do que estava procurando, aquilo era a única coisa que restara do duelo...
Isso se ele conseguisse encontrar o cadáver antes do pessoal das Operações.
A primeira pista de que nem tudo estava certo no mundo dos legistas foi a presença da polícia no corredor em frente ao necrotério: havia tiras por toda parte, perambulando e conversando uns com os outros. E então, quando Jim passou como um fantasma pelas portas duplas do local, havia mais um amontoado deles na recepção, desta vez misturados com o pessoal do hospital.
De alguma forma, o lugar havia se transformado em uma cena de crime.
Uau. Que surpresa.
– ... horas você chegou?
O funcionário que estava sendo interrogado na recepção cruzou os braços e passou a mão em seu cavanhaque cheio de falhas.
– Eu já disse. Meu turno começou às nove da manhã.
– E você chegou nessa hora?
– Foi nessa hora que eu bati o cartão. Eu já disse que...
Jim deixou o interrogatório, saiu da parte burocrática do necrotério e entrou na parte clínica. Depois da porta que dizia “Apenas funcionários”, a área iluminada por luzes fluorescentes, com suas cinco estações de trabalho, meia dúzia de pias grandes e todas aquelas balanças, tinha mais metal cromado do que uma metalúrgica.
Na parede mais distante, as fileiras de compartimentos refrigerados estavam todas fechadas, como se os funcionários do hospital acreditassem em zumbis – exceto por um único compartimento no canto. Estava totalmente aberto, e vários técnicos forenses buscando impressões digitais ao redor da abertura.
Quanto você quer apostar que o corpo do agente desapareceu, pensou Jim.
Que surpresa.
Ele praguejou quando se aproximou e não encontrou sinal algum de Devina – geralmente, depois de uma aparição, ela deixava para trás um fedor que persistia no ar. Mas ali? Havia um odor suave dentro do compartimento, mas nada que fosse recente.
Pelo jeito não fora o demônio, mas sim o pessoal das Operações Extraoficiais quem aparecera para bancar a faxineira.
– Droga.
Ele falou em voz alta, o que fez alguns policiais olharem na direção de Jim, como se esperassem encontrar um colega.
Quando franziram a testa e voltaram para o trabalho, Jim considerou fazer uma visita ao andar de cima – e não estava se referindo ao pronto-socorro ou à sala de espera do hospital. Mas o que o arcanjo Nigel faria por ele? Visitas ao Céu não o ajudaram no passado, e Jim já estava frustrado e mal-humorado o suficiente.
Estava quase indo embora quando pensou em uma coisa.
Aproximando-se dos compartimentos refrigerados, ele observou os nomes que apareciam nas etiquetas de cada unidade.
E lá estava, do outro lado, uma etiqueta que dizia “BARTEN, CECÍLIA”.
Por um lado, ficou surpreso que seus restos mortais ainda estivessem ali, mas então lembrou que apenas parecia uma eternidade desde que encontrara o corpo naquela pedreira. Na realidade, fazia apenas alguns dias e, afinal de contas, ela era parte de uma investigação criminal.
Não que qualquer membro da polícia fosse capaz de encontrar Devina e fazê-la pagar por seus crimes.
Esse era o trabalho dele.
Levantando a mão, Jim tocou o aço inoxidável. Mais cedo ou mais tarde, a mãe de Sissy teria a oportunidade de enterrar a filha, e esse tipo de despedida seria tão fria quanto o ar no qual seu corpo estava envolvido agora, não é mesmo?
Era como um cofre onde a dor e tristeza de uma pessoa ficavam trancadas para o resto de seus dias...
Jim franziu a testa e virou a cabeça, quando percebeu seus sentidos dispararem.
Praguejando, saiu da sala de exame, passou pela recepção e entrou no saguão principal.
Procure, ele pensou... e você encontrará.
Pena que todo mundo apareceu ao mesmo tempo.
– Sabe do que mais gosto em hospitais? – perguntou Tony.
Mels caminhou junto dele até um dos grandes prédios do Hospital St. Francis, onde esperaram as portas giratórias automáticas liberarem a passagem.
– Espero que não seja a comida.
– Ao contrário... as máquinas de salgadinhos – ao passarem juntos pela porta, ele colocou a mão no bolso da frente da calça e tirou um punhado de moedas. – Eles têm uma ótima variedade aqui.
– Bom, você pode guardar as moedas, pois eu vou pagar.
– Me diga uma coisa... por que nós não estamos namorando?
Forçando uma risada, ela pensou que... bom, ele não queria ouvir a resposta. E nem ela queria responder.
Havia um aglomerado de funcionários e visitantes tentando pegar o elevador, então eles se aproximaram e escolheram o mais próximo, pois parecia menos congestionado. Segundos depois, o elevador chegou e as portas se abriram.
– Escolhemos sabiamente – Tony disse, fazendo graça com a voz.
Mels riu enquanto aguardavam a saída de alguns seguranças uniformizados. Então os dois entraram, junto com um trabalhador de construção cheio de ferramentas.
Era um milagre que aquele homem conseguisse andar com tantos martelos e chaves de fenda pendurados na cintura.
Quando chegaram ao andar do porão, Tony virou à esquerda e Mels o seguiu. O cara dos martelos fez a mesma coisa, mas tomou a frente e andou em direção ao som de pregos sendo batidos e serras cortando madeira.
– Talvez precisemos esperar – Tony disse, enquanto seguiam as placas que indicavam o necrotério. – Suraj disse que nos encontraria quando chegássemos, mas...
Os dois viraram uma esquina e então pararam.
Havia policiais por toda parte, lotando a entrada do necrotério.
– Pelo jeito a investigação ainda anda a todo vapor – ela murmurou. – Tem certeza de que seu amigo pode sair daí?
– Bem, vamos ver como ele está – disse Tony enquanto digitava uma mensagem de texto no celular.
Mels pensou que aquilo era justamente a distração que precisava para se concentrar em algo que não fosse Matthias – e esperava que durasse um bom tempo. Deus sabe que a última coisa que ela precisaria era de um carro e tempo livre, pois correria o risco de voltar ao Marriott, onde Matthias e a enfermeira gostosona poderiam muito bem estar jantando juntos... ou pior.
Mas vamos lá, o fato de ele possuir uma arma calibre quarenta não significava que atirara em alguém. Ela mesma tinha uma nove milímetros na bolsa e isso não a tornava um suspeito para cada tiroteio que acontecia no centro da cidade.
– Droga.
Tony olhou para ela.
– O que foi?
– Nada. É só frustração.
– Talvez isso ainda dê certo... – seu celular soltou um bipe e ele checou a mensagem. – Ah, bom, o Suraj não vai nos deixar esperando. Vamos ficar aqui... ah, veja. Máquinas de salgadinhos. Que surpresa.
De fato, do outro lado do necrotério havia uma sala de descanso com vários tipos de máquinas.
– Ah, então você planejou isso.
– Não a parte dos policiais.
Quando entraram na sala, Tony começou a avaliar as opções enquanto Mels andava ao redor das mesas que eram pregadas ao chão e das cadeiras de plástico que não eram – provavelmente porque eram tão feias e desconfortáveis que ninguém iria querer roubá-las.
Lembrando de sua promessa, ela tirou a carteira da bolsa e contou as notas que tinha.
– Não precisa economizar, tenho bastante dinheiro.
– É só um lanchinho antes do jantar. E não gosto de comer sozinho – Tony olhou por cima do ombro. – Olá? Parceira?
Foi triste perceber que ela achava relaxante o processo de escolher entre as gororobas pouco saudáveis produzidas em massa.
Um sinal claro de que Mels precisava de férias. E de uma vida.
– Você já escolheu? – ela perguntou, enquanto a serra na construção ao lado começava a fazer ainda mais barulho.
– Com certeza.
Depois de sete notas inseridas nas máquinas, Tony tinha uma coleção de salgadinhos e chocolates nas mãos.
– Agora é a sua vez – ele disse.
– Eu não tenho esse metabolismo todo.
Tony esfregou a barriga.
– Nem eu.
Ela escolheu um pacote de M&M’s clássico, do tipo que adorava quando era criança, mas percebeu que não tinha mais notas. Procurando em todos os bolsos, encontrou um punhado de moedas e começou a selecionar as de vinte e cinco centavos...
E então Mels congelou.
– O que foi? – perguntou Tony.
A cápsula de uma bala.
Em seu bolso?
Então, ao separar a bala das moedas em sua mão, ela se lembrou... daquela garagem na zona rural. Onde encontrara uma Harley com um motor aquecido, Matthias com uma mentira em seu rosto e... mais uma coisa...
Mais alguém...
Uma dor repentina percorreu sua cabeça, interrompendo seus pensamentos e fazendo tudo parar... exceto a convicção de que vira algo importante lá. Mas o que era?
Esforçando-se, sua mente simplesmente não conseguia lembrar, e quanto mais tentava, mais doía.
– Mels?
– Estou bem. De verdade, eu apenas... provavelmente preciso de um pouco de açúcar.
Tony assentiu enquanto abria um pacote de Doritos.
– Buscar um pouco de energia nunca é ruim – ele disse.
Um cara baixinho vestindo um jaleco branco entrou.
– Oi, desculpem pela demora.
Tony se levantou para apertar a mão do homem.
– Ei, Suraj!
Voltando a se concentrar, Mels guardou a cápsula de bala na bolsa e esforçou-se para cumprimentar Suraj.
– Não queremos interromper seu trabalho – ela disse enquanto eles se agrupavam em uma das mesas.
– Bom, não trabalhamos muito hoje, de qualquer maneira – Suraj deu um sorriso, mostrando todos os dentes brancos. – A polícia está aqui desde hoje de manhã, nos importunando sobre o sumiço do corpo.
– O que você pode nos contar? – perguntou Tony enquanto mastigava os Doritos.
– Extraoficialmente, esse é o corpo que foi encontrado na entrada de serviço do Marriott na noite passada – Suraj deu de ombros e se ajeitou na cadeira, como se já estivesse acostumado àquele assento. – Eu não sei muita coisa. Cheguei ao meio-dia pra começar meu turno e a polícia já estava em toda parte. Rick é o cara que está cuidando de todas as perguntas. Foi ele quem descobriu que o corpo tinha sumido. Foi retirar para a autópsia e... nada. Não estava lá. É estranho demais. Quer dizer, não é como se o morto pudesse andar por aí ou algo assim. Mas nenhum alarme foi disparado, e não é fácil esconder um corpo. Não é como se alguém pudesse colocar um cadáver debaixo do braço e sair andando. Além disso, este lugar tem olhos em todos os cantos. Câmeras, seguranças...
– Isso já aconteceu antes? – perguntou Mels.
– Se aconteceu, foi antes de eu começar a trabalhar aqui. Por outro lado, faz só uns dois anos que eu vim pra cá. É um grande mistério.
– Você nos chama quando puder dar uma declaração? – pediu Tony.
– Quem vai poder fazer isso é o meu chefe, mas eu te mantenho informado por baixo do pano o máximo que puder. Agora, o que posso fazer por você?
Tony olhou para Mels e apontou com um pacote de Cheetos na direção de Suraj.
– Então, o Suraj não é bom apenas aqui no necrotério. Ele também é ótimo com análise de fotos nas horas extras. Por isso acho que ele pode te ajudar.
Suraj sorriu novamente.
– E tenho uma terceira habilidade também: sei preparar um ótimo frango tikka masala.
– E pão naan com alho – acrescentou Tony. – Simplesmente demais!
– Então, de que tipo de imagem estamos falando? – perguntou Suraj.
Mels pegou o envelope que Monty lhe dera.
– Antes de você olhar ... precisa saber que eu não posso contar quem me deu essas fotos e em que contexto elas acabaram nas mãos dele ou dela.
– O que você quer dizer é que, se perguntarem, eu nunca vi essas fotos na vida.
– Exatamente.
Quando o homem pegou o envelope e o abriu, Mels franziu a testa e olhou ao redor. A sensação de estar sendo observada voltou a incomodá-la, arrepiando sua nuca e fazendo-a apertar as mãos. Mas não havia ninguém na porta. Ninguém no corredor. Ninguém espreitando atrás das máquinas de comida ou debaixo daquelas cadeiras horríveis, ou das mesas pregadas ao chão...
– Conheço esse caso – Suraj disse enquanto olhava as fotos, e Tony se inclinou para também poder enxergar. – É a prostituta que foi encontrada no motel. Eu reconheço as roupas. Mas essas marcas não estavam no abdômen quando ela chegou.
– Essa é a questão – Mels disse, com sua paranoia. – As fotos oficiais do corpo não mostram nada, mas essas, que supostamente foram tiradas antes das oficiais, mostram. Então eu quero saber se essas imagens foram manipuladas ou não.
Suraj olhou para Mels do outro lado da mesa.
– Você tem os arquivos dessas imagens? O jpeg? Gif?
– Não, as impressões são tudo o que tenho.
– Posso levar essas cópias pro meu local de trabalho por um minuto? Tenho um microscópio lá.
Mels se aproximou. Com a voz baixa, ela disse:
– A polícia não sabe sobre essas fotos e eu não tenho certeza do que o dono vai fazer com elas.
– Então vou ser discreto.
– Mas saiba que eu não vou obstruir a justiça, se esse for o caso. Faz pouco tempo que estou com elas, e vou avisar rapidamente as autoridades se for preciso.
– Mas você provavelmente não quer que use meu escâner e faça uma cópia no meu computador para análise, não é?
– Prefiro não fazer cópias. Principalmente digitais.
– Certo, posso encontrar muita coisa no microscópio – o cara se levantou. – Espere uns dez minutos e vou ver o que posso fazer.
Quando Suraj saiu e Tony ficou brincando de acertar o cesto de lixo, Mels esfregou a nuca, pensando no que havia encontrado em seu bolso.
– Por acaso você não conhece alguém que goste de balística, não é? – ela disse.
– Pra falar a verdade, conheço sim. O que você tem?
Mels massageou as têmporas.
– Uma dor de cabeça.
– Você ainda não comprou sua comida. E nem comeu nada.
– Bem lembrado, meu amigo – ela se levantou e se aproximou das máquinas. – Muito bem lembrado.
CAPÍTULO 27
Jim estava de pé dentro da sala de descanso do necrotério. Ele já havia testemunhado que a invisibilidade tinha seus benefícios – e que também podia colocá-lo em apuros.
Ele sentira o momento em que Mels Carmichael entrou no complexo do St. Francis e, considerando o número de policiais no subsolo, não foi uma total surpresa que ela tivesse se encaminhado diretamente para lá. Infelizmente, Jim também sentira um reflexo de Devina em algum lugar – mas não conseguia definir precisamente onde.
E então ele viu aquelas fotos.
Diferente da repórter, de seu colega e daquele cara com o uniforme do hospital, Jim sabia exatamente o que eram aquelas marcas – e quem as fizera.
E também sabia quem as apagara.
Aquelas marcas na pele da mulher morta eram exatamente iguais aos símbolos no abdômen de Sissy. Eram provavelmente um tipo de mensagem, escrita com um alfabeto de runas. E se Devina conseguia marcar a pele, então aquilo provavelmente também poderia ser apagado – afinal, ela era capaz de criar, o tempo todo, uma imagem tridimensional de beleza sobre sua verdadeira aparência de carcaça ambulante.
Um feitiço para apagar algumas marcas não era algo fora da realidade.
Quando o cara do hospital levantou e foi embora, Jim o seguiu até o necrotério, mesmo que não pudesse fazer nada – e que sair de perto da repórter não fosse uma boa ideia.
Mas por que Devina se importaria em matar uma mulher qualquer? Ela provavelmente estava ocupada demais com a guerra – e aquela prostituta claramente não era uma virgem, então não poderia ser usada para proteger o espelho do demônio...
O cabelo. O cabelo loiro.
E alisado.
Igual a Sissy.
Quais eram as chances?
– Filha da puta...
O cara do hospital parou em meio ao aglomerado de policiais e olhou para trás – e Jim mandou um lembrete para si mesmo dizendo que ser invisível era uma coisa, silencioso era outra.
Quando o homem seguiu por um corredor e entrou em um escritório cheio de aparelhos, Jim ficou de lado, encostando-se em uma lousa branca cheia de nomes, datas e procedimentos. Alguns minutos depois, quando o telefone tocou e o cara se distraiu, Jim quis puxar o fio da tomada e obrigá-lo a se concentrar.
Mas vamos lá. Ele já sabia o que havia acontecido – a questão agora era com quem estava mais bravo. Com ele mesmo, com Devina, ou...
Jim franziu a testa quando pensou em uma coisa. Quando trocara informações com Adrian de manhã, o anjo mencionou que estivera com a repórter em uma cena de crime.
Mas que grande coincidência.
Depois de quase meia hora, o homem se levantou da posição onde usava o microscópio e voltou para a sala de descanso onde estavam a repórter e seu colega.
– Então, qual é o veredito? – ela perguntou quando ele sentou.
– Certo, primeiro as ressalvas. Sem o arquivo digital ou a possibilidade de usar um escâner, eu realmente não posso dar uma resposta cem por cento...
O som de um martelo veio do andar superior e os três olharam para cima e cobriram os olhos quando uma chuva de partículas se desprendeu do teto.
– Desde quando essa reforma está acontecendo? – perguntou Tony quando uma serra começou a fazer ainda mais barulho.
– Faz uma eternidade – o homem alinhou as fotos na mesa. – Enfim, feitas as ressalvas, eu penso o seguinte: pelo que posso ver no microscópio, parece que as imagens não foram manipuladas, mas isso não quer dizer muita coisa, já que tenho apenas as fotos impressas e hoje em dia é possível fazer coisas bem sutis e sofisticadas com imagens se você tiver o equipamento correto.
Mels respirou fundo.
– Obrigada...
Suraj levantou a mão.
– Espera, ainda não terminei. Eu vi o corpo. Tem uma vermelhidão no abdômen, mas obviamente não é o que mostram essas fotos. E eu lembro desse padrão. Também está presente na garota que foi encontrada na pedreira...
Outro som, mais alto, como um trovão, reverberou pelo teto. Como se algo tivesse caído no chão diretamente acima deles.
A última coisa que Jim viu antes de toda a confusão foi Mels olhando para cima. Um segundo depois, uma seção inteira do teto se soltou e ficou pendurada pelas vigas como um pêndulo...
E balançou em direção a Mels.
Ele entrou em ação, saltando para frente e jogando-a para fora da cadeira e para longe do perigo. As costas e os ombros de Jim receberam o impacto. As extremidades afiadas do pedaço de concreto cortaram sua pele, jorrando sangue enquanto todos na sala gritavam e se protegiam.
A dor fez Jim se revelar, mas esse não era o maior problema. Ao olhar em direção ao buraco que se abrira no teto, Jim colou os olhos em um trabalhador que estava iluminado pela luz que subia da sala de descanso.
De pé, com suas botas plantadas nas vigas e as mãos na cintura no vasto espaço acima, aquele homem não parecia normal.
Seus olhos eram negros como as profundezas do Inferno.
– Devina – sussurrou Jim.
De uma só vez, o trabalhador agarrou o próprio peito e começou uma queda livre. Seu corpo caía com uma curiosa graça: todas aquelas ferramentas em sua cintura balançaram como o cabelo de uma modelo em frente a um ventilador.
Jim tomou a responsabilidade para si novamente e agarrou o cara meio sem jeito, pois um corpo inconsciente é bem mais difícil de segurar com cuidado do que um grande pedaço de concreto.
Houve uma abrupta explosão de vozes, mas Jim não prestou atenção. Estava ocupado demais deitando o trabalhador inconsciente no chão – e sentindo Devina sumir repentinamente.
Droga...
– Oh, meu Deus! – disse Mels, se abaixando.
Um cotovelo empurrou Jim para o lado, o homem do hospital se abaixou e colocou dois dedos sobre o pescoço do trabalhador. Quando Jim se afastou...
– Jim Heron.
Jim olhou para a repórter, que se levantava do chão, encarando-o. Mas que inferno, ele pensou.
– E então? – ela exigiu saber, aparentemente inabalada pelo fato de quase ter morrido. – Não negue. Já vi sua foto em vários lugares.
– Sou o irmão gêmeo dele.
– Sei.
O cara do hospital olhou para cima.
– Disque nove, zero, zero, zero naquele telefone. Diga que estamos do lado do necrotério.
Mels entrou em ação e fez o pedido calma e rapidamente. Quando voltou, se aproximou de seu colega do jornal, que, apesar de todo o drama, tinha aberto a embalagem de um chocolate e estava agora mastigando.
– Você está bem? – ela perguntou.
– Foi por pouco – ele murmurou, olhando para o corpo inconsciente no chão.
Mels encarou Jim novamente, então fez uma careta e voltou a massagear as têmporas como se estivessem doendo.
Aquela reunião se tornou uma convenção quando outros trabalhadores da reforma chegaram, junto com uma equipe do hospital, seguranças e dois policiais que ouviram o barulho.
Quando o trabalhador caído foi finalmente colocado em uma maca, ele abriu os olhos. Estavam azuis como o céu. E não pretos.
Não foi uma surpresa.
Aquele demônio tinha audácia. Se a teoria convencional sobre uma força superior estiver correta, então o Cara-Lá-de-Cima sabe de tudo o que acontece, em todos os momentos, no planeta inteiro – desde cada botão que floresce, as penas de uma andorinha, até... trabalhadores que caíam em salas de descanso em grandes hospitais porque foram temporariamente possuídos.
Sem dúvida, Devina pretendia que aquele pedaço de concreto acertasse Mels. E isso seria um grande desestabilizador no jogo: Matthias finalmente encontra alguém e de repente ela morre?
Seria um belo contexto para ele fazer uma escolha idiota.
E Jim pensando que Devina estava quieta demais...
Mantendo-se longe da confusão, Jim voltou a ficar invisível, imaginando que Mels pensaria que ele fora embora. Em vez disso, ele ficou por perto, vigiando a repórter – e tinha de admitir que ficou impressionado. Ela era uma garota forte: respondia às perguntas do pessoal do hospital sem denunciar seu colega e o cara do microscópio, e ainda ajudava a organizar o aglomerado de gente enquanto o trabalhador era removido da cena.
Ela olhava ao redor de tempos em tempos, como se procurasse por alguém, mas no fim tudo o que pôde fazer foi descrever seu “salvador” para os seguranças do St. Francis. E não deu nomes. Afinal, Mels realmente não sabia quem ele era, não é mesmo?
Até onde a repórter de Matthias sabia, ele era apenas muito parecido com uma pessoa que morrera. Só isso.
Engraçado, por mais que Jim desaprovasse as coisas que seu ex-chefe fez durante a vida, não podia criticar o gosto dele sobre o sexo oposto.
E Jim precisava juntar os dois o mais rápido possível. Não só porque seria mais fácil defendê-los, mas quem sabe quando a encruzilhada surgiria e Matthias precisaria fazer sua escolha?
Quanto mais tempo seu ex-chefe passasse com aquela mulher, melhor seria para todos.
Onde diabos estava “Jim Heron”, Mels se perguntou quando ela e Tony finalmente foram liberados para ir embora.
– Ainda bem que pude comer alguma coisa – disse seu colega quando voltaram para o mesmo elevador que usaram ao chegar. – Já são oito horas da noite.
– Pois é... – ela apertou o botão para subir.
A mão de Tony pousou sobre o ombro dela.
– Você está bem?
Ela respirou fundo e eles começaram a subir.
– Não me pergunte isso até chegarmos lá em cima. Com o meu acidente de carro e o que acabou de acontecer, estou com medo de que mais uma grande colisão esteja prestes a acontecer. Essas coisas acontecem de três em três, sabe?
– Isso é só superstição.
– Espero que você esteja certo – e pensar que ela um dia se preocupara com manchas de café e unhas quebradas. A sequência de catástrofes pela qual estava passando era muito mais difícil de se prevenir do que simplesmente carregar uma camisa limpa e esmalte na bolsa. Depois de um momento, ela disse: – Ah, Tony, eu tenho mais um favor para pedir – Deus, ela realmente faria aquilo?
– É só falar.
– Lembra quando perguntei se você conhece alguém que trabalha com balística? Preciso analisar uma bala.
– Ah, sim, claro. Conheço umas pessoas com quem posso entrar em contato. Qual é o seu prazo?
– O mais rápido possível.
– Deixa eu fazer umas ligações e depois te mostro com quem você pode falar.
– Você é um salvador.
– Não. Aquele cara no porão sim, é um herói.
– Não subestime a si mesmo.
Quando chegaram ao saguão, ela saiu do elevador e... quem diria. Jim Heron, ou seu irmão gêmeo, estava esperando do outro lado, encostado em uma parede, tão discreto quanto alguém daquele tamanho poderia ser.
Colocando a mão no braço de Tony, ela o deteve e devolveu as chaves do carro.
– Escuta, vou tomar um táxi de volta pra casa, tudo bem?
Seu amigo franziu a testa.
– Posso levar você de volta. Não fica longe do meu caminho.
– Vou voltar pra redação.
– Já está tarde e nós tivemos uma noite muito puxada.
Era verdade – e Mels provavelmente ficaria apenas pensando no acidente. Mas não perderia a chance de conversar com o herói que surgiu no momento certo... e que agora parecia estar esperando por ela.
Mels se inclinou e beijou o rosto de seu amigo.
– Vejo você amanhã.
Tony deu boa noite e andou lentamente em direção à porta giratória. Quando ele pegou o celular, Mels podia apostar que ele estava ligando para algum restaurante entregar comida em sua casa, e isso a fazia gostar ainda mais dele.
Ela virou para trás e seus olhos encontraram os de Heron – ou seja lá quem fosse. Ela percebeu que a pose casual daquele homem não a enganava. Seu tamanho era suficiente para amedrontar, e aquele sorriso vago no rosto também não a fazia pensar em gentilezas e educação.
Mas mesmo assim ela não estava com medo quando se aproximou.
E nem por um segundo acreditava naquela história de irmão gêmeo...
Por outro lado, por que se expor em um local público onde alguém poderia reconhecê-lo?
– Pensei que você tinha ido embora – ela disse.
– Não, fiquei aqui o tempo todo.
– Está visitando alguém no hospital?
– Pode-se dizer que sim.
– Os seguranças querem falar com você.
– Tenho certeza de que sim.
Mels ficou esperando que Jim dissesse mais alguma coisa, qualquer coisa, mas ele ficou em silêncio, encarando-a de volta como se estivesse preparado para fazer isso pelos próximos cem anos.
– Acho que devo te agradecer por salvar minha vida – ela murmurou.
– Não precisa. Não sou do tipo sentimental.
– Bom, você parece querer me dizer alguma coisa...
– Matthias precisa de você.
As sobrancelhas dela se levantaram, e então Mels desviou o olhar. Mesmo tendo ouvido perfeitamente, ela sussurrou:
– O que disse?
– Você pode vir comigo? Ele está no hotel.
Mels olhou novamente para o homem.
– Sem ofensa, mas não vou a lugar nenhum com ninguém. E, se não se importa que eu pergunte – não que ela se importava se o ofendesse até as pontas de seus coturnos –, qual é a sua ligação com ele?
– É um velho amigo que estou tentando ajudar. Ele esteve na pior por um longo tempo, e o jeito como fala sobre você me dá esperança.
Mels apenas piscou, descrente.
– Ele não me conhece mais do que eu conheço ele.
– Isso realmente importa?
Ela soltou uma risada repentina.
– Ah... sim. Importa sim.
O “irmão gêmeo” de Jim Heron balançou a cabeça.
– Veja, faz anos que eu me preocupo com ele, entende? Ele está indo direto para um poço sem fundo agora mesmo, vagando sem destino, procurando por um propósito, e eu sou exatamente o tipo de cretino que vai fazer tudo o que puder e, se necessário, envolver outras pessoas que possam ajudar ele a encontrar seu caminho.
– E você acha que eu posso ajudar?
– Não. Eu tenho certeza.
Mels deu outra risada.
– Bom, você deveria ter visto com quem ele estava tomando café da manhã hoje cedo.
O homem praguejou.
– Deixa eu adivinhar. Uma morena com pernas que não acabam mais?
– Pra falar a verdade... sim. Quem é ela?
– Ela é um mau agouro – o cara passou a mão nos cabelos loiros. – Por favor... veja bem, eu... realmente preciso da sua ajuda. Não posso dar mais detalhes, mas Matthias e eu trabalhamos juntos no exército por vinte anos, e nem preciso dizer o que a guerra faz com as pessoas. Você é uma jornalista. E um ser humano. Pode imaginar como é. Ele precisa... de uma razão pra viver.
Ela pensou na arma que estava na cintura de Matthias. Então lembrou de como ele a abraçou no estacionamento do jornal.
Estou indo embora.
– Se você acha que ele é um perigo pra si mesmo – ela disse secamente –, deveria chamar as autoridades. Mais do que isso... eu sinto muito, mas não posso fazer...
– Por favor – os olhos do homem pareciam brilhar, não por causa de lágrimas, mas com uma luz que lembrava o nascer do sol no oceano. – Ele aguentou firme por muito tempo pra perder tudo agora.
Aquelas pupilas eram hipnóticas. E ela sentia que já havia encarado aqueles olhos antes... encarado profundamente e...
Quando aquela dor de cabeça voltou, Mels fechou os olhos e se perguntou se tinha algum analgésico na bolsa.
– Por que você pensa que eu posso dar qualquer resposta para aquele cara? – mas, mesmo dizendo aquelas palavras, ela não parava de pensar na ligação que sentira com Matthias, e sabia exatamente de que Heron estava falando. – Eu não deveria importar tanto assim pra ele.
E ele não deveria importar tanto para ela.
Matthias andava armado, caramba. E estava em um hotel onde uma pessoa foi baleada...
– Mas você importa.
Mels abriu os olhos e franziu a testa.
– Seja honesto comigo. Você me seguiu até aqui hoje?
– Sim, eu segui. Queria uma chance pra falar com você, mas não tinha certeza de como me aproximar sem te assustar.
– Bom, você acertou em cheio – ela disse secamente. – Salvou minha vida, que belo plano.
– Então, nesse sentido, você me deve uma, não é?
Ela teve de rir.
– Não acredito que está usando isso.
– Como disse, farei tudo o que puder para salvá-lo.
– Salvá-lo? Escolha interessante de palavras, sr. Heron.
O homem não disse mais nada, e ela continuou encarando seu rosto por ainda mais tempo.
– Mas que droga.
– Isso é um sim?
Ela virou-se e dirigiu-se para a saída, esperando que Jim a seguisse até os táxis que estavam parados na entrada do hospital. E ele fez exatamente isso.
– Diga uma coisa, sr. Heron... e esse é o seu nome, certo? Jim Heron – ele não respondeu, mas nem precisava. – Você acredita que má sorte acontece de três em três?
Quando um táxi parou à frente deles, Heron abriu a porta para ela.
– Não tenho certeza sobre números. Mas ultimamente a má sorte tem vindo na forma de uma morena.
Soltando outro palavrão, Mels passou por ele e entrou no táxi.
CAPÍTULO 28
Matthias estava mergulhado na escuridão. E não era o tipo de escuridão produzida por um quarto com as luzes apagadas ou pela noite no campo. E nem aquela causada quando se fecha os olhos e se cobre a cabeça com o cobertor.
Era o tipo de escuridão que invade o corpo e preenche os espaços entre as moléculas, uma escuridão que polui a carne em um estado permanente de decomposição, que apaga todo o passado e o futuro, deixando a pessoa suspensa em um sufocante estado de tristeza e desespero.
E ele não estava sozinho nessa horrível prisão.
Enquanto se contorcia no imenso vazio, outros faziam o mesmo, suas vozes se misturavam em lamentos que escapavam de lábios rachados, e infinitos pedidos de misericórdia emergiam e ecoavam, como a respiração de uma grande fera. De tempos em tempos, ele era escolhido para receber atenção especial de monstros com garras afiadas e grandes presas que arrancavam, prendiam e puxavam. Os ferimentos sempre se curavam, oferecendo nova tela para aquela arte macabra.
O tempo não tinha nenhum significado. E ele sabia que nunca escaparia dali.
Aquele era seu destino.
Era seu eterno pagamento pelo modo como vivera a vida: merecia um lugar no Inferno por causa de seus pecados na Terra. Mesmo assim, argumentava contra a injustiça aos outros com quem estava preso. Era um debate difícil. Havia poucos argumentos mostrando o lado bom para dar suporte ao seu pedido de liberdade – e, mais importante, ninguém estava ouvindo.
Ele teve sua chance em vida. E escolheu seu caminho.
Mas, oh Deus, se soubesse, teria lutado contra a correnteza dentro de si, impedindo seus atos, que tiraram tantas vidas – incluindo a sua.
Preso na escuridão, torturado junto com outros pecadores, desolado e mais desesperado do que no pior dos pesadelos. Em um momento sem esperança, uma luz apareceu, suas emoções emergiram e...
– Matthias?
Acordou com um grito, levantando instantaneamente a cabeça e jogando os braços para frente, como se estivesse lutando contra algo.
Mas não havia nada na sua frente. Ninguém em posição de luta.
E havia luz.
No tênue brilho que vinha do banheiro, Mels... sua querida Mels... estava de pé à beira da cama em seu quarto de hotel. Ela trazia o casaco e a bolsa pendurados no ombro, como se tivesse acabado de chegar do trabalho. E sua expressão não era distante, mas sim bondosa.
Um sonho ruim, ele disse a si mesmo. Fora apenas um sonho...
Não, não fora apenas um sonho.
– Matthias – ela disse suavemente –, você está bem?
A princípio, não conseguia entender por que ela estava perguntando aquilo. Sim, ele tivera um pesadelo, mas...
Ah, merda, ele estava chorando?
Limpando o rosto com as mãos, Matthias se levantou da cama e pediu licença para usar o banheiro. Estava chorando na frente dela? Que droga estava acontecendo com ele?
– Apenas me dê um minuto.
Fechou a porta, apoiou as mãos no balcão e deixou a cabeça pender sobre a pia. Abriu a torneira para fingir que estava fazendo alguma coisa, e seus braços perderam força enquanto ele tentava se convencer de que aquele lugar horrível em seu sonho não era um lugar de verdade e que ele nunca estivera lá.
Mas não estava funcionando.
O Inferno que vira era uma memória, não um pesadelo. E aquilo era suficiente para fazer suas mãos tremerem.
Jogar água no rosto não ajudou em nada, e esfregar com a toalha também não. Depois de usar a privada, ele voltou para o quarto – tinha de voltar. Se ficasse mais tempo no banheiro, Mels pensaria que ele se enforcara por lá ou algo assim.
Quando ele surgiu no quarto novamente, encontrou-a sentada na cadeira ao lado da janela, com as mãos no colo e a cabeça baixa, como se estivesse analisando se precisava ou não aparar as unhas.
Ciente de que vestia apenas a camiseta e a cueca que comprara na loja do hotel – e que suas pernas arruinadas estavam totalmente à mostra –, Matthias voltou a deitar debaixo dos lençóis.
– Estou surpreso que esteja aqui – ele sussurrou enquanto colocava os óculos escuros.
– O suposto irmão do Jim Heron me trouxe aqui de táxi e me deixou entrar.
Que filho da puta, pensou Matthias.
Mels deu de ombros, como se soubesse que ele ficara bravo.
– E sabe o que mais?
– O quê?
– Eu não acredito nesse negócio de irmão gêmeo nem por um segundo. Eu acho que esse cara é o Jim Heron, e ele deve ter fingido a própria morte por alguma razão. E acho que você sabe a razão.
Na pausa que se seguiu, ficou óbvio que ela esperava que Matthias preenchesse os detalhes, mas o cérebro dele praticamente desligou. Ele não a queria perto daquele cara, muito menos sozinha com ele – pois não podia confiar em ninguém. Principalmente em se tratando dela.
– Você estava indo se encontrar com ele quando eu te achei naquela garagem. Não é?
– É complicado. E quanto ao nome dele, essa não é uma história que eu possa contar.
– Ele me disse que vocês serviram no exército juntos – Mels esperou novamente que ele acrescentasse algo. – Ficou claro que ele se sente responsável por você.
Enquanto o passado se revirava por trás do véu da amnésia, ele pelo menos não teria de mentir para ela.
– Muito dessa história... eu não consigo lembrar direito. Não posso dizer mais nada – ele observou o corpo todo dela. – Estou feliz que você veio.
Houve uma longa pausa.
– Você quer me contar por que estava tão agitado? – perguntou Mels.
– Acho que você não acreditaria em mim.
Ela riu um pouco.
– Depois dos últimos dois dias eu posso até acreditar, confie em mim.
– Por quê?
– Tudo parece... errado. Quer dizer, foram muitas coisas esquisitas de uma vez só, entende? – ela o encarou como se estivesse avaliando sua temperatura, sua pressão e seus batimentos cardíacos. – Converse comigo, Matthias. Você precisa se abrir. Se não puder me contar sobre suas lembranças, ao menos diga o que está sentindo.
Fechando os olhos, ele sentiu como se estivesse preso: sem poder responder, mas incapaz de ignorá-la.
Finalmente, murmurou:
– O que você diria se te contasse que acredito no Inferno? E não de um ponto de vista religioso, mas porque estive lá pessoalmente. E acho que fui enviado de volta pra fazer alguma coisa – ela ficou muito quieta de repente. – Não sei o que é, mas vou descobrir. Talvez seja uma segunda chance. Talvez seja... outra coisa.
Pausa para mais um pouco de silêncio.
Erguendo o olhar, Matthias tentou ler a reação dela.
– Sei que parece maluco, mas... acordei pelado na sepultura de Jim, e acho que fui colocado lá. Não me lembro de mais nada antes disso, mas tenho a sensação de que deveria fazer alguma coisa, que existe um propósito para eu estar aqui... e que não tenho muito tempo.
Mels colocou os cabelos para trás e limpou a garganta.
– Você não se lembra de nada porque está com amnésia.
– Ou talvez seja porque eu não devo me lembrar. Eu juro... estive no Inferno. Estava preso lá com incontáveis outras pessoas, numa prisão onde tudo o que havia era... sofrimento. Eterno – ele esfregou o peito e deixou a mão sobre o coração. – Sinto isso dentro do meu peito. Assim como sei que era o meu destino te encontrar naquela noite, e que devemos ficar juntos agora mesmo. E, sim, isso tudo é loucura, mas se a vida após a morte não existe, então por que tantas pessoas acreditam nisso?
Mels balançou a cabeça.
– Eu não tenho uma resposta pra essa pergunta.
– Estou feliz por você estar aqui – ele disse.
Quanto mais tempo ela demorava para responder, mais ele achava que fora longe demais... até que ela sorriu, um pouco triste.
– Meu pai acreditava no Céu e no Inferno. E não apenas na teoria. É um pouco irônico, considerando como ele vivia. Por outro lado, talvez ele se sentisse responsável pela “fúria de Deus” na Terra.
– Ele frequentava a igreja?
– Todo domingo. Como um relógio. Talvez pensasse que isso compensaria as coisas mais... digamos... pesadas que ele fez em nome da lei.
– Nada compensa.
Quando os olhos dela dispararam e encontraram os dele, Matthias quis soltar um palavrão. Muito bem, ele pensou, você a fez pensar que o pai está no Inferno. Parabéns.
– O que quero dizer é...
– Ele também fez muitas coisas boas. Salvou mulheres e crianças de situações terríveis, protegeu inocentes, se certificou de que bandidos tivessem o que mereciam.
– Então isso deve pesar a favor dele – que patético. – Veja, eu não quis sugerir que...
– Está tudo bem...
– Não, não está. Não sei o que estou falando – Matthias levantou as palmas das mãos. – Não ouça o que eu digo. Foi só... um pesadelo horrível. Sim, nada mais do que isso. Eu não sei... de coisa alguma.
Mentiroso. Que grande mentiroso. Mas os sinais sutis de alívio que vieram dela, desde o relaxamento dos ombros até a maneira como suspirou, disseram a ele que a mentira valia a pena. Com toda a certeza.
– O nome dele era Thomas – ela disse abruptamente. – Mas todos o chamavam de Carmichael. Ele era tudo pra mim. Ele representava tudo o que eu queria ser... Deus, não sei por que estou falando isso.
– Está tudo bem – ele disse, sussurrando, pois pensou que se não fizesse muito barulho, ela continuaria falando.
Mas não teve sorte. Mels parou, e Matthias se surpreendeu com o quanto queria continuar ouvindo. Caramba, queria ouvir ela falar de qualquer coisa: fosse sua lista de compras, seus pensamentos sobre a poluição nas cidades, suas convicções políticas... a teoria da relatividade.
Mas os detalhes de seu passado, seus pais? Aquilo era ouro puro.
– E quanto à sua mãe?
– Estou morando com ela, na verdade. Desde que ele morreu. É... um pouco tenso. Eu tinha muito mais em comum com meu pai. Mas com ela? Sinto como se eu fosse um elefante em uma loja de cristais. Ela não é nem um pouco como ele.
– Talvez fosse por isso que o casamento funcionava. Os opostos se atraem.
– Não sei.
– Como ele...
– Morreu? Num acidente de carro. Estava numa viatura em perseguição e um pneu do carro do infrator furou. Meu pai tentou desviar para evitar a batida, perdeu a direção e acabou acertando uma caminhonete estacionada. Tiveram de cortar as ferragens para tirar o corpo dele.
– Eu... sinto muito.
– Eu também. Sinto falta dele todos os dias e, mesmo ele não estando mais aqui, ainda tento impressioná-lo. É uma loucura.
– Acho que ele ficaria orgulhoso de você.
– É, não tenho tanta certeza. Caldwell é um palco pequeno.
– Mas é o palco em que ele atuava.
– Mas não como repórter de jornal pequeno.
– Bom, considerando a maneira como você me tratou, como alguém poderia não gostar de quem você se tornou? Você tem sido... muito boa com um estranho.
Mels o observou na cama.
– Posso ser honesta com você?
– Sempre.
Houve uma longa pausa.
– Não sinto que você é um estranho.
– Acontece o mesmo comigo – ele disse suavemente. – Sinto como se te conhecesse por toda a minha vida.
– Mas você não se lembra de nada.
– Não preciso de lembranças específicas nesse caso.
Ela olhou para as mãos novamente, observando as unhas curtas.
– Escuta, eu preciso que você fale comigo sobre aquela arma...
– Como eu disse, peguei a arma com Jim, quando fui até a garagem para encontrar ele. Peguei porque não me sentia seguro desarmado.
– Então, Heron está vivo, e estou certa quando digo que a história do gêmeo é uma mentira – seus olhos se encontraram novamente. – Preciso saber.
Ele esfregou o rosto.
– Sim, é isso mesmo. Mas deixe-me ser claro. As razões de ele bancar o morto são problema dele, e não meu. Não estou envolvido nisso, e vou continuar assim.
Depois de um momento, ela assentiu.
– Certo, obrigada por me contar. E acho que posso perdoar o cara, já que ele salvou minha vida hoje.
Matthias deu um pequeno sobressalto e sentiu as mãos querendo pegar a arma.
– Salvou você? Como?
Matthias sentou-se na cama, sua expressão mudando repentinamente. Agora parecia um cara perigoso, com o olhar cheio de uma raiva protetora que o faria capaz de qualquer coisa para defender Mels.
Ela se ajeitou na cadeira e sentiu aquele calor surgir novamente em seu corpo.
– Como foi que ele te salvou? – Matthias grunhiu.
– Bem... – enquanto buscava as palavras certas, ela afrouxou o casaco, deixando-o escorregar dos ombros e cair na cadeira. – Eu estava no Hospital St. Francis a trabalho, e tinha uma reforma acontecendo por lá. Alguém estava trabalhando no andar de cima e o teto não suportou o peso da obra. Um monte de vigas e azulejos caiu. E, tipo, do nada, esse tal de Jim Heron pulou para dentro da sala e me protegeu com seu corpo. Ele recebeu todo o impacto, e só Deus sabe quanto peso tinha naquilo. Então um trabalhador também caiu no buraco. Acho que ele teve um ataque cardíaco. Nós estávamos conversando com um dos caras que trabalha no necrotério e ele fez uma ressuscitação imediatamente. Foi bizarro.
Matthias respirou fundo, como se estivesse profundamente aliviado.
Eram reações como aquela que a faziam confiar nele. Apesar de todo o resto.
Mels balançou a cabeça.
– Foi só um acidente maluco, do qual escapei por pouco. Mas, caramba, tive sorte de ele estar por perto.
– Posso pedir um favor?
– É claro.
– Venha aqui – ele ofereceu a mão. – Quer dizer, eu não vou te agarrar. Só quero...
Mels levantou-se imediatamente e cruzou a distância que os separava. Sentou na ponta da cama ao lado dele e inclinou o corpo em sua direção. Quando Matthias tocou a mão dela, acariciou suavemente o punho.
A carícia, mais do que qualquer palavra que ele pudesse dizer, a fez sentir-se especial.
– Estou feliz de verdade por você ter vindo – ele disse novamente.
– Também estou.
Mels esticou o braço e tirou os óculos escuros do rosto de Matthias. Os olhos dele imediatamente se abaixaram, como se fosse difícil para ele que Mels o visse como é de verdade.
– Já disse que não precisa ter vergonha – ela disse em um tom baixo.
Ele forçou uma risada.
– Do quê?
– De sua aparência.
Os olhos dele subiram novamente.
– E se eu disser que o problema não é esse?
– Então qual é?
– Não sei se você quer mesmo ouvir a resposta.
Inclinando-se, ela passou os dedos pelas cicatrizes que ele tinha nas têmporas, e depois acariciou a sobrancelha acima do olho ruim.
– Eu gosto da verdade.
Ele praguejou baixinho para si mesmo.
– Droga, mulher, você está me matando...
– Não, não estou.
Matthias fechou os olhos por alguns segundos, como se estivesse tentando manter o controle.
– Sabe do que mais me arrependo nesse momento?
– Do quê?
– De nunca ter te conhecido antes. Se conhecesse, eu poderia...
– Poderia o quê?
Quando ele voltou a focar os lábios dela, Mels sentiu uma repentina necessidade de lambê-los – e, quando cedeu a essa vontade, ele se ajeitou debaixo das cobertas, como se seu corpo precisasse de algo que ela tinha.
Cara, de repente aquele quarto começou a esquentar.
– Quero fazer amor com você, Mels. Neste quarto, agora mesmo. Pra falar a verdade, eu desejei você desde o princípio. No instante em que te vi no hospital. Foi nessa hora que aconteceu.
Certo... uau!
Talvez outra mulher pudesse agir com recato – mas ela não estava interessada em jogos.
– Eu também – Deus, ela tinha mesmo dito isso em voz alta? – Quer dizer, veja bem, faz tempo que eu não faço isso, e tudo o que aconteceu foi uma surpresa... mas havia algo diferente em você no momento em que eu... – ela teve que rir um pouco. – No momento que eu te atropelei com meu carro.
Os dedos dele voltaram a acariciar a palma da mão dela.
– Obrigado – ele disse.
– Pelo quê?
– Não sei.
Ela não sabia se acreditava naquilo.
– Você realmente acha que não é atraente?
– Você acabou de me ver só de cueca.
Mels balançou a cabeça.
– Não sou uma dessas garotas superficiais que só querem alguém cheio de músculos. Existe muito mais além disso.
– Talvez, mas tenho certeza de que você quer um homem que consiga transar com você.
Mels abriu a boca. Então fechou. Depois abriu de novo.
– Exatamente – ele disse.
Merda. Ela deveria ter previsto isso, considerando as outras cicatrizes na parte de baixo de seu corpo...
– Francamente, Mels, a única razão de eu ainda não ter te agarrado é porque não consigo. Eu... não consigo – ele desfez o contato das mãos. – E sabe o que é o pior? Já estive com muitas mulheres.
É, aquilo fez o peito de Mels doer um pouco.
– Antes dos ferimentos...
Ele assentiu.
– Entre tantas coisas de que eu poderia me lembrar, tinha que ser justo isso...
Mels sentiu outra pontada no coração.
– Então você se lembra?
– Eu odiei lembrar... pois trocaria cada uma daquelas transas sem importância por apenas uma noite com você – ele passou os dedos pelo rosto de Mels e então deixou o polegar sobre a boca dela. Com a mesma pressão gentil que usara para acariciá-la, ele afagou seu lábio inferior. – Eu desistiria de cada uma delas. Na verdade, isso parece... uma maldição. Eu finalmente encontrei alguém como você, mas é tarde demais. De verdade. É tarde demais pra mim, Mels, e é por isso que você está me matando. Quando olho pra você, quando vejo você se mover, quando você sorri ou respira fundo, eu simplesmente... morro um pouco por dentro. Toda vez.
Mels sentiu lágrimas se acumulando no canto dos olhos: uma emoção que ela não conseguia descrever atingiu seu coração e o fez arder.
– Você gostou de me beijar – ela disse com rouquidão.
– Não. Eu adorei. Queria te beijar agora mesmo. Quero... fazer outras coisas com você para te satisfazer. Mas só posso ir até aí. E, mesmo isso sendo suficiente pra mim, eu sei que em algum ponto, seja mais tarde, amanhã, na próxima semana... não será mais suficiente para você.
Ela beijou a mão dele.
– Pensei que você estava indo embora.
– Eu estou. Isso foi apenas um exemplo retórico.
Talvez. Mas deu um pouco de esperança, e de repente Mels pensou que precisava de alguma esperança, assim como precisava de ar para respirar.
– Mels, eu...
Ela se aproximou e o impediu de terminar a frase dando um beijo em seus lábios. A princípio, quando fizeram contato, os lábios dele estavam tensos, mas essa tensão não durou muito. Logo, ele estava se movendo contra ela, desejando, tomando. Lambendo. Mordendo.
Quando ela finalmente recuou, estava sem fôlego.
– Não me deixe pensar em coisas que não deveria, certo?
Estava claro que ela não era a única a ficar abalada, pois o peito dele estava arfando com uma urgência que a excitou.
– Não preciso de sexo pra ser feliz com você – ela disse. – Honestamente, não é tão importante...
Com um impulso repentino, ele a agarrou e a jogou no colchão beijando-a com força. Quando seu grande corpo cobriu o dela, Matthias enfiou a língua naquele beijo, tomando-a para si de uma maneira tão completa que fez Mels perceber, naquele momento, o quanto os outros homens pareciam anêmicos em comparação.
Aquele calor acabou explodindo e o sangue em suas veias queimava entre as batidas do coração.
E isso foi antes de as mãos de Matthias começarem a tirar as roupas dela.
CAPÍTULO 29
Quando as coisas começaram a esquentar naquele quarto de hotel, Adrian saiu de lá rapidamente, atravessando a porta fechada e ganhando o corredor.
Jim empurrara para ele o trabalho de babá e fora embora assim que a repórter entrou no Marriott. Tudo estava indo bem – só que Ad não estava a fim de assistir a um show pornô ao vivo – a menos que estivesse envolvido, é claro. E achava uma ótima ideia dar um pouco de tempo a sós para aqueles dois. Fechando os olhos, pousou a mão na porta e usou um feitiço para selar o quarto, não apenas na entrada, mas em todo o interior.
Depois encostou na parede do corredor e colocou a mão no bolso.
Agora ele entendia por que Jim fumava. Isso ajudava a passar o tempo em meio a períodos sem muita ação.
Começou a pensar naquele pobre infeliz do Matthias. Por outro lado, até que existem coisas piores do que ter um membro impotente. Afinal, é isso que acontece quando você pisa de propósito em uma mina terrestre, bomba, ou seja lá o que era: você não pode explodir a si mesmo e depois querer foder sua mulher.
No final do corredor, as portas do elevador se abriram e uma mulher saiu junto com a filha, que tinha uns cinco ou seis anos. A mulher parecia ter passado por uma guerra – ou escapado de um parquinho infantil: seu cabelo estava desarrumado, os ombros estavam inclinados cheios de sacolas, e ela arrastava uma única mala com rodinhas como se fosse um cachorro em uma coleira. A criança, por outro lado, estava elétrica, pulando e correndo de lá para cá, gritando com uma voz tão aguda que poderia estilhaçar vidraças – ou fazer você querer quebrar as vidraças com as próprias mãos.
Adrian se ajeitou e manteve-se invisível enquanto o desfile passava. Mas não durou muito – a garotinha percebeu sua presença e diminuiu o ritmo até parar e ficar encarando o lugar onde ele estava.
– Vamos, Lisa – disse a mãe. – Nosso quarto fica por aqui.
– Mamãe, tem um anjo aqui...
– Não, não tem.
– Mas, mamãe, tem sim! Tem um anjo aqui!
– Não tem ninguém aí. Vem pra cá, Lisa.
Enquanto a garota o encarava com grandes olhos castanhos, a mãe, exausta, se aproximou e começou a puxar a filha.
Mas a menina tinha toda a razão, ele pensou.
Ad não estava se sentindo um anjo. Nunca se sentira como um, na verdade – e a morte de Eddie tirou qualquer noção de responsabilidade que esse epíteto lhe dava. O anjo morto era o padrão que ele usava para si. Era um modelo do que era bondoso e correto. Era sua bússola.
Sem conseguir ficar parado, Ad deu um impulso e se dirigiu para o elevador. Apertou com força o botão para descer e as portas abriram-se imediatamente: o elevador usado pela mãe e filha ainda estava lá parado. Enquanto descia, voltou a ficar visível, penteou o cabelo em frente às paredes espelhadas e arrumou a jaqueta de couro.
Aquela arrumação não ajudou em nada para melhorar sua imagem. O problema era sua expressão. Ele parecia pronto para arrancar a cabeça de alguém.
Ding!
Quando as portas se abriram, Ad saiu e começou a andar até o bar. Infelizmente, o lugar não era sombrio o suficiente para atrair o tipo de mulher que ele queria: não havia garotas góticas com pouca roupa, sorrisos cheios de Prozac e propensão a cair de joelhos. Mas isso não significava que ele não podia tentar encontrar uma candidata.
Adrian encontrou uma mesa para si em um canto escuro e deixou que sua necessidade de sexo exalasse pelo bar.
E, veja só, cada mulher que entrava no recinto, passava ao lado ou registrava um quarto no saguão, olhou em sua direção.
A garçonete que servira ele e Jim na noite anterior apareceu imediatamente.
– Olá.
Ela deu um sorriso maroto que não parecia nada profissional. Principalmente quando seus olhos percorreram cada pedaço do corpo de Ad.
O que incluía uma ereção totalmente sem vergonha.
– O que vai querer hoje? – ela perguntou, demorando-se nas palavras.
Ela era bonita de um jeito que estava ligado à sua juventude. A pele brilhava, o cabelo era exuberante e saudável, o corpo tinha tudo no lugar. Porém, um olhar mais calculado diria que uns vinte anos e vinte quilos a mais a transformariam em uma anônima de meia-idade. Bom, acontece que Ad sempre foi do tipo que aproveita o hoje e o agora.
– Você tem algum intervalo do trabalho? – ele disse com a voz baixa.
– Sim – o sorriso dela ficou ainda maior. – Eu tenho um intervalo.
– Quando?
– Em dez minutos.
– Me diga um lugar. Pra transar com você.
Seus lábios se separaram, como se ela precisasse de mais oxigênio.
– Onde... você quer...
– Aqui. Agora – ele olhou ao redor. – Mas isso seria um show e tanto para os outros fregueses.
Quando os olhos de Ad voltaram, ele a observou de cima a baixo e se imaginou transando com ela de frente, com as pernas abertas ao redor de seu quadril, seu pau entrando e saindo...
Certo, a teoria não o excitava tanto assim – mas essa era a diferença entre um filme pornô e sexo de verdade. Era da prática que ele precisava.
A conversa com a garçonete foi apressada e durou pouco, mas não era como se aquilo fosse uma transação financeira. Ela não era uma prostituta recebendo dinheiro: era apenas uma mulher de sangue quente que desejava uma boa transa, assim como ele.
Com tudo acertado, Adrian saiu do bar. Seu corpo tinia, mas o coração estava frio como um frigorífico. Seguindo as instruções, ele virou à esquerda e desceu as escadas que davam no spa. Durante a descida, o som de suas botas pesadas ecoou até o teto de mármore, e o cheiro de sais de banho e óleos perfumados o fez querer respirar pela boca e não pelo nariz.
Ele espirrou ao chegar lá embaixo, mas pelo menos não precisava passar pelas portas de vidro do spa. Se a coisa cheirava tão forte por fora, o interior provavelmente derreteria seu nariz.
Virando novamente à esquerda, ele passou por um corredor cheio de fotos em preto e branco de garotas seminuas em poses insinuantes. A porta no final estava marcada com uma discreta placa de “Apenas Funcionários”, e ele esperou ao lado com impaciência, respirando o ar pesado que entupia seus pulmões.
Merda. Praticamente não conseguia respirar...
A garçonete abriu a porta e o puxou pelo braço.
– É por aqui.
Do outro lado havia um mundo completamente diferente. Nada de fotos ou paredes lisas, apenas tijolos expostos e um chão de concreto. Mas Ad não fora até ali para apreciar a vista – ao menos, não a vista do ambiente.
Olhando por cima do ombro, a garota mostrava um sorriso maníaco, como se aquilo fosse a maior diversão que já tivera no trabalho.
– Se alguém nos descobrir, você é meu primo que chegou do interior, certo?
– Claro, que seja – desde que ninguém os descobrisse no meio do ato. Pois beijos não eram nem metade do que ia rolar.
Ele a seguiu até uma sala dos funcionários que estava toda bagunçada, com várias sacolas e roupas espalhadas pelos móveis. Uma combinação de perfumes criava um cheiro úmido que deixava o lugar parecer mais quente do que era. No outro lado, havia mais uma porta que dava em um corredor ainda mais sujo, que claramente fazia parte da antiga estrutura do edifício.
E estava sendo usado atualmente, ao menos em parte, como área de armazenagem: alinhadas contra a parede, havia fileiras de cadeiras do chão ao teto. Os pés de bronze e os assentos de veludo vermelho davam um pouco de cobertura para os dois.
– Nós temos quinze minutos – ela disse, envolvendo seu pescoço com os braços.
Adrian tomou a boca da garota como tomaria também seu corpo: com força e intensidade, fazendo sua língua encontrar-se com a dela. Em resposta, ela cravou as unhas fundo na jaqueta de couro dele enquanto levantava uma das pernas e o envolvia pela cintura. Com as mãos rudes, Ad abriu a saia dela. A garçonete usava meias que no bar pareciam bastante profissionais, mas na realidade estavam presas em uma sensual cinta liga – e usava também uma bela calcinha de renda.
Seu traseiro era firme e levantado, e Ad a girou na sua frente, fazendo seus cabelos voarem, e a deixou com o rosto colado na parede de tijolos. Ajoelhando, ele mordeu um lado da bunda, mergulhando os dentes na carne enquanto colocava a calcinha de lado.
O desejo sexual que ele estava sentindo não tinha nada a ver com ela. A garota era apenas uma versão ambulante de uma esteira de exercícios, algo que ele podia usar para aliviar a vontade, um recipiente para derramar toda sua raiva, frustração e tristeza.
E, considerando a facilidade com que a garota permitiu que se encontrassem ali, e se beijassem, e transassem... Ad ficou com a impressão de que não era a primeira vez que ela se deixava usar daquela maneira.
Talvez ela o estivesse usando mesma razão.
Com a calcinha dela nos tornozelos e a saia levantada até a cintura, Ad começou a lambê-la por trás, tomando com a boca, penetrando com a língua. O sabor dela era delicioso, seu sexo estava macio e molhado contra os lábios dele, completamente cheirosa e limpinha, como se a garota mantivesse um alto padrão para si mesma.
Depois que ela gozou algumas vezes – ele nem tinha ideia de quantas, pois na verdade não se importava –, Adrian se levantou e trocou de lugar, ficando de costas para a parede. Quando a garota parecia querer retribuir o favor, ajoelhando e começando a abrir sua braguilha, Ad a impediu, segurou suas coxas e a suspendeu no ar, colocando as pernas dela ao redor de seus quadris.
Ele não queria a boca dela.
Seria pessoal demais, por mais estranho que pareça.
E, bem quando estava prestes e entrar nela, Adrian congelou.
Jim Heron estava de pé do outro lado da sala, com os braços cruzados sobre o peito, os olhos estreitos, parecendo muito bravo.
Que bela hora para aparecer.
Mas Ad não pararia agora. Suas bolas estavam tensas como punhos, e a ponta de seu pau estava quase explodindo.
Ele deu de ombros e penetrou a garota. Se Jim queria assistir, Ad não tinha problemas com isso. Caramba, se ele quisesse participar, também não se importaria.
Embora esta última ideia fosse pouco provável, considerando aquela expressão que dizia “vou matar você”.
Que seja.
Fechando os olhos, Ad se entregou àqueles movimentos cada vez mais fortes que tantas vezes usara para se consolar no passado.
Deus, ele sentia tanta falta de Eddie que até doía.
Seis andares acima, em seu quarto, Matthias estava descontrolado. Estava solto de suas amarras. Estava cego pelo desejo.
Enquanto beijava Mels, ele abriu os botões de sua blusa um a um, separando o fino tecido até revelar a pele macia... e um par de seios cobertos de algodão que o deixaram ainda mais louco. Deus, aquilo já era demais, os sons de seus lábios se beijando, a respiração entrecortada, as roupas se esfregando, a visão dela. E havia também a maneira como Mels se movia contra ele: o corpo dela ondulava em movimentos que traziam os seios até o peito dele e depois pressionavam a cintura contra seus quadris.
Ele queria passar a boca por todo aquele corpo, e isso aconteceria agora – começando pela garganta. Ele beijou o caminho macio que ia do queixo até o peito, trouxe a mão até a base dos seios e passou o polegar por baixo da armação do sutiã.
Matthias queria provocar – mas não durou muito.
– Oh, Deus, sim – ela disse enquanto ele tocava os seios.
Precisou parar e se recomprou ao ouvir o som dos gemidos dela, e mergulhou a cabeça nos cabelos de Mels enquanto tentava se controlar. A necessidade de possuí-la era tão grande que o deixou um pouco abalado, pois não sabia se conhecia a si próprio o suficiente para confiar que não a machucaria.
Mas já não havia volta.
O sutiã sumiu um segundo depois: ao abrir o fecho frontal, ele encarou os mamilos rosados e as curvas pálidas da pele.
Matthias grunhiu nesse momento. Ao menos pensava que fora ele quem produzira o som.
Era isso ou então um puma havia invadido o quarto.
Matthias abaixou a cabeça e tomou um dos mamilos com a boca, passando a língua, chupando, mordendo. Não deixou o outro lado de fora – apertou com os dedos e pressionou o pequeno bico endurecido, como se dissesse para esperar um pouco, pois sua vez estava chegando...
As unhas de Mels apertaram sua nuca, e repentinamente ela abriu as pernas como se seu sexo, e não sua mente, estivesse controlando os movimentos – e aquele núcleo vital que a definia como mulher desejava o que ele podia oferecer.
Ou melhor... desejava o que poderia oferecer, se fosse capaz.
Merda.
Mesmo que ela provocasse e se pressionasse contra a cintura de Matthias, e apesar do calor que fervilhava em seu sangue, o corpo dele não respondia da maneira como um homem deveria. Não havia um grande volume para pressionar de volta, nenhuma ereção que ela pudesse agarrar com as duas mãos, nada de um pau grosso que ela pudesse envolver com os lábios em retribuição para o que seria feito com ela nos próximos minutos.
Quando uma tristeza arrebatadora caiu sobre ele, ameaçando acabar com a festa, um único gemido de Mels foi suficiente para trazê-lo de volta ao jogo: afinal, nada daquilo importava. Tudo o que Matthias queria era fazê-la sentir-se bem, então, quando chegasse a hora H, ele precisaria ser criativo.
Ele ergueu a cabeça e encarou seu rosto corado e os olhos selvagens. Os cabelos dela estavam esparramados pelo travesseiro e suas bochechas estavam da cor do Natal.
Caramba, ela era incrível.
Mantendo os olhos nos olhos, ele se ergueu sobre ela e se ajoelhou em meio às pernas abertas de Mels. E nessa pausa, antes de as coisas ficarem realmente picantes, Matthias imaginou a si mesmo da maneira como era antes: forte, poderoso, seu corpo tão dominante quanto sua vontade.
Do jeito que estava agora, ficou feliz por estar usando uma camiseta. E pensou que era... realmente um sortudo.
Ela tinha tudo para oferecer – ele não tinha nada. E mesmo assim ela o queria.
Foi nesse momento que Matthias se apaixonou.
A mudança em seu coração e alma não fazia sentido, mas a lógica emocional era muito persuasiva. O centro de seu peito ressoava com um calor que ele nunca sentira antes: ele sabia, mesmo sem conhecer os detalhes, que passara uma vida inteira envolvido em complicada crueldade, mas agora, lá estava ele. Mesmo vestido, se sentia nu diante dela, aceito por aquilo que era em seu interior, não por sua aparência ou pelo que podia fazer.
A revelação o transformou por dentro, colocando-o em um ritmo mais cadenciado do que a loucura selvagem com a qual agarrara Mels.
Agora ele se movia deliberadamente. As mãos se aproximaram dos botões da calça e começaram a desabotoar sem pressa nenhuma. Abrindo a braguilha, ele se abaixou e beijou a barriga dela entre o umbigo e o começo da calcinha tipo biquíni, que era incrivelmente sensual.
Quem precisa de rendas e cetim? Algodão simples era suficiente para ele, desde que fosse ela quem estivesse vestindo.
Cara, ele queria chupá-la através do tecido.
– Vou te deixar nua – ele disse com a voz cheia de desejo.
Com mais um daqueles incríveis gemidos, Mels deixou a cabeça pender para o lado e assistiu Matthias puxar sua calça enquanto uma das mãos subia até a boca dela.
Então passou os dedos entre os lábios molhados de Mels.
– Chupa agora... oh, sim...
Ela obedeceu a ordem, sugando até as bochechas se contraírem, então passou a língua no meio dos dedos para depois tomá-los novamente até desaparecem de vista.
– Assim? – ela disse, depois de soltá-los.
Ele teve de fechar os olhos. Se não fizesse isso iria desmaiar... pois tudo o que podia imaginar era seu pau dentro daquela boca molhada e quente, com ela de joelhos na sua frente, a cabeça indo e vindo enquanto sugava tudo o que podia.
– Você é linda – ele grunhiu, jogando a calça por cima do ombro.
Era hora do show.
Os lábios dele se demoraram no topo da calcinha, traçando o caminho do quadril enquanto os dedos acariciavam levemente a boca de Mels. Quando chegou na lateral, ele retirou a peça de algodão, deslizando-a por suas longas pernas.
E então Matthias fez amor com Mels usando a boca.
Foi a melhor experiência sexual de toda a sua vida. Tudo era voltado para ela: a forma como ela sentia, como gostava, até onde ele podia ir antes que ela atingisse o clímax... e foi maravilhoso. Ele não tinha intenção de parar tão cedo. Segurando-a com as duas mãos, Matthias levantou os quadris dela e a inclinou enquanto ele deitava, pronto para permanecer naquela posição para sempre.
E quem disse que ele não conseguia penetrá-la?
Esticando a língua, enfiou seguindo um ritmo que a deixava louca, alternando estocadas com lambidas que faziam o sexo dela formigar. Cada vez mais rápido. Mais fundo. Mais forte. Ele queria que Mels se descontrolasse de novo e de novo, gozando em seus lábios, indo ao céu e voltando para a Terra pelo resto de suas vidas.
– Me dê o que eu quero – ele disse. – Me dê o que eu preciso...
Colocando os dedos na boca, ele os deixou bem molhados e enfiou fundo. E aquilo foi demais. Principalmente quando ela gozou novamente, contraindo-se em ondas que pareciam invadir o corpo de Matthias como se ele também estivesse chegando ao orgasmo.
Quando acabou, ele fez uma pausa para retomar o fôlego, enquanto Mels ficou deitada em um glorioso abandono, os peitos arfando, o corpo relaxado, a pele brilhando.
Levou um tempo para ela se recompor. Até tentou falar alguma coisa, mas não conseguia.
Era o tipo de coisa que faz um cara se sentir um homem.
– Isso foi... incrível.
O som de sua voz parecia mais um gemido do que palavras em si, e aquilo era demais.
Enquanto Matthias sorria, sentiu-se um pouco... maligno. Não de um jeito ruim, de um jeito masculino – quando você tem a garota que deseja deitada em sua cama, nua, solícita, e você tem toda a intenção de despejar ainda mais atenção sobre ela.
– Você quer que eu continue? – ele disse em um tom sombrio.
CAPÍTULO 30
Enquanto esperava naquele corredor, Jim estava pronto para socar seu parceiro.
É claro, para fazer isso teria de tirar aquela garçonete da frente – e, por mais que fosse do tipo que põe a mão na massa, ele não estava preparado para chegar perto demais daquela situação constrangedora.
Maldito.
E, sim, a situação o deixava com um humor ainda pior. Ele fora até o Marriott para socar Adrian por causa daquelas fotos da prostituta – e descobriu que, em vez de fazer seu trabalho de vigia no quarto de Matthias, aquele anjo filho da puta estava transando no mesmo corredor que aquele agente fora morto por Devina na noite anterior.
Como se Jim já não tivesse motivos suficientes para estar fora de si.
Aquelas fotos, aquelas malditas fotos...
Adrian dissera ter estado em uma cena de crime com Mels, e agora a repórter aparecia com fotos de uma vítima que tivera o cabelo pintado de loiro e a garganta cortada, e runas marcadas na barriga, mas que agora, que surpresa, tinham desaparecido.
Adrian tinha de ser a razão desse desaparecimento.
Então era hora de acertar as contas com o Sr. Apagador.
Olhando Adrian nos olhos, ele desafiou o cara a continuar transando. E, que surpresa, o cretino continuou.
A garçonete estava se divertindo bastante – ao menos, era o que podia perceber olhando-a por trás, com os cabelos voando e os braços agarrando o pescoço de Ad. Por um momento, Jim se lembrou de suas próprias aventuras sexuais – mas então seus pensamentos pararam em uma cena que não era nem um pouco relevante:
Ele e Devina. Usado e abusado por ela e seus lacaios no Poço das Almas.
Jim não sabia por que continuava a remoer essas lembranças. Aquilo não fora sexo – fora tortura, pura e simples, e Deus sabe que ele era treinado para aguentar isso.
Ainda assim, as imagens permaneciam em sua mente, pairando no subconsciente como um cheiro ruim que não vai embora.
Não sabia por que isso acontecia. Jim já tivera os ossos quebrados antes – de propósito, por um inimigo. Também já fora cortado no passado... e pendurado de ponta-cabeça enquanto era surrado como um saco de pancadas. Ah, e teve aquela vez em Budapeste, quando foi jogado em um carro e levado até uma floresta, onde bateram nele com um martelo e depois o deixaram para morrer no meio do nada.
De repente, a garçonete gemeu da maneira como as mulheres fazem quando não estão fingindo: aquilo não foi um som planejado e bonitinho criado exatamente para fazer um cara se sentir como um deus do sexo. Aquilo foi real, o som de quando uma garota goza tão forte que nem percebe os grunhidos animais que está deixando escapar.
Enquanto ela gemia, Adrian a segurava acima do chão quase sem esforço – afinal, a garota estava totalmente sincronizada com os movimentos dele, agarrada com força em seu corpo como se fosse uma peça de roupa apertada. E os movimentos não mentiam: ele estocando em um ritmo cada vez mais rápido, ela sendo jogada para cima em cada penetração, completamente absorvida e gostando muito. Assistindo aquilo tudo, Jim provavelmente deveria ficar excitado. Deveria querer participar.
Ou, no mínimo, deveria continuar bravo com Adrian.
Em vez disso, um pânico começou a crescer nos meandros de sua mente, memórias de seus braços imobilizados e de suas próprias pernas abertas fizeram-no começar a suar frio.
Ele se virou, não porque estava tão bravo que poderia matar Adrian, e não porque estava com vergonha do show que presenciava.
Seu estômago começara a se revirar.
As mãos tremiam levemente quando tirou um cigarro do bolso, e o som de Adrian atingindo o orgasmo o fez fechar os olhos por um segundo.
Naturalmente, o cretino excitado começou tudo de novo, sem nem descansar um pouco.
E Jim não podia começar a fumar até que a garota saísse dali.
Que ótimo.
Quando a diversão finalmente acabou, Jim olhou por cima do ombro. Adrian havia colocado a garota no chão, deixando que ela descansasse com a cabeça em seu peito. Enquanto acariciava os cabelos dela, Ad parecia não estar absorto naquilo – era como se estivesse longe, em outro lugar. Na verdade, exceto nos momentos em que gozou, ele parecia ter usado um piloto automático erótico o tempo inteiro.
Então por que diabos ele foi atrás de uma transa?
A garçonete checou o relógio, se arrumou e beijou Ad nos lábios. Um pouco antes de ir embora, ela pegou uma caneta e agarrou a mão do anjo. Com movimentos exagerados, escreveu o número do telefone na palma da mão e depois fechou os dedos dele, como se estivesse lhe entregando um grande presente. Então ela se virou e saiu, quase pulando de alegria pelo corredor na direção que a levaria para a cozinha do restaurante.
Adrian fechou o zíper da calça.
– Antes que você comece a reclamar, eu coloquei um feitiço de proteção no quarto. Eles estão bem.
Jim acendeu o cigarro e soltou a fumaça com força.
– O que você acha que Eddie pensaria sobre isso?
Aqueles olhos, que já pareciam perigosos, ficaram ainda mais estreitos.
– Como é?
– Você ouviu o que eu disse.
Adrian apontou com o dedo.
– Nunca diga isso. Nunca...
– O que você acha que ele iria pensar sobre você estar aqui em baixo, transando com uma garota no horário de trabalho dela? – Jim virou o cigarro e começou a observar a ponta acesa. – E você parecia nem estar gostando. Então o abandono do posto nem teve uma boa causa.
Ondas de raiva distorceram o ar ao redor deles, o ódio de Adrian era tão palpável que praticamente se tornou uma fonte de luz.
– Vou falar uma vez – Ad disse. – E apenas uma vez...
– Eddie não teria ficado impressionado com isso.
O ataque foi tão rápido, tão selvagem, que Jim nem teve tempo de jogar o cigarro fora. Quando Ad agarrou seu pescoço com as duas mãos, a ponta acesa do cigarro caiu... e entrou pela gola da camisa.
Mas a queimadura era o último de seus problemas.
Jogando as mãos entre os dois, ele separou os braços de Ad e desferiu um golpe com a cabeça, acertando o outro anjo diretamente no nariz. Mas acontece que Adrian não sentia nada ali também, e devolveu o golpe com um soco de direita que acertou o ouvido de Jim como um trem em alta velocidade.
Caindo para o lado, ele se apoiou em uma fileira de cadeiras e usou o impulso para estabelecer uma nova posição de luta – e encontrou seu oponente pronto para continuar o duelo, como se fosse um lutador profissional.
Grande parte de Jim também queria uma boa luta sangrenta mano a mano com Adrian. Mas, se ficassem lutando por uma semana inteira, ficaria difícil continuar o sermão sobre Eddie.
Um soco no estômago acabaria com aquilo.
Ele fingiu que daria um golpe alto, e o outro estava tão furioso que acreditou. Quando Ad deixou a barriga exposta, Jim lhe deu um golpe baixo e rápido – tão rápido que não havia como bloquear, e tão baixo que até acertou suas partes sensíveis.
O filho da puta ficaria com a voz fina por um bom tempo.
Adrian se encolheu com as mãos na virilha, formando uma barreira protetora que estava uns três segundos atrasada.
Jim chacoalhou a camisa para tirar a ponta do cigarro que ainda estava lá. Sua pele foi queimada no ombro, mas comparado com a dor no ouvido, aquilo não era nada.
Imaginou se sofrera uma concussão.
Mais demência não era o que ele precisava nesta rodada da guerra.
De pé à frente do cara, Jim disse com a voz gutural:
– Eu sei o que você fez.
Adrian deixou um joelho cair no concreto. Depois o outro.
– É claro que sabe. Você ficou assistindo.
– A prostituta. As runas na barriga dela. Você apagou a mensagem, não é?
Ad. começou a praguejar, mas os xingamentos não foram muito longe.
– Vou deixar bem claro – Jim se abaixou e ficou frente a frente com Ad. – Se esconder informações de mim novamente, vou te expulsar do time. E, se Nigel não concordar, vou fazer isso com minhas próprias mãos. Você está entendendo.
Aquilo não era uma pergunta.
Adrian levantou o rosto – seus olhos pareciam duas tochas ardendo de raiva, mas Jim não deu a mínima. O anjo podia soltar lava pela cabeça se quisesse: eles não iriam trabalhar juntos se não fosse sob as regras de Jim.
Quando Ad finalmente falou alguma coisa, sua voz saiu rouca: os pulmões do anjo ainda estavam ocupados em recuperar-se do soco de Jim.
– Você acha que Devina... fez aquilo para te ajudar?
– A questão não é essa – Jim balançou a cabeça. – Você não tem permissão para interferir no jogo.
– Ah, então eu sou um idiota por tentar ajudar você...?
– Eu preciso saber de tudo o que ela faz.
Ad sentou no chão e esfregou o rosto.
– Ora, Jim, ela está tentando foder sua cabeça porque você não quer deixar ela foder o seu rabo. Por acaso isso é um grande mistério? Você sabe que é isso mesmo. Então por que os detalhes daquela mensagem são tão importantes?
– Se eu não puder confiar em você, não sei em quem mais poderia.
– E se ela conseguir bagunçar sua cabeça, nós vamos perder não só Eddie, mas também você.
A guerra de argumentos drenou os últimos vestígios de emoção que pairavam no ar, deixando uma exaustão que claramente era mútua.
– Mas que grande merda – murmurou Jim enquanto sentava ao lado de Ad.
– É, isso descreve bem a situação.
Jim retirou os cigarros do bolso. O maço estava amassado, alguns cigarros partidos ao meio. Mas encontrou pelo menos um que ainda estava inteiro o suficiente para ser aceso.
Quando deu o primeiro trago, olhou ao redor e pensou no que acabara de acontecer. A fraqueza que sentia em momentos como aquele era apenas mais uma razão para odiar o inimigo.
Adrian também olhou ao redor.
– Eddie teria feito a mesma coisa com aquelas runas.
– Não, não teria.
Os olhos de Ad ficaram estreitos novamente.
– Você só conheceu ele por algumas semanas. Acredite em mim: ele fazia o que fosse necessário em todas as circunstâncias. E Sissy Barten é o seu calcanhar de Aquiles.
– Esconder informação...
– Podemos parar de falar nisso...?
– ... para caras como eu e você, é como cometer um crime.
– ... e voltar ao trabalho?
Quando a raiva voltou a borbulhar nos dois, como se o humor deles estivesse esquentando em um fogão, Jim praguejou. Esse era o problema com a ausência de Eddie. Não havia alguém equilibrado para separar os dois e colocá-los de volta no caminho certo.
Não havia a voz da razão.
E Ad até que estava certo. Jim estava meio obcecado com Sissy, e Devina era esperta o suficiente para perceber isso. Mas, após anos trabalhando nas Operações, uma coisa que Jim aprendeu a valorizar tanto quanto sua própria competência era informação – essa sempre foi a melhor arma e a mais forte proteção. Conhecendo as ações, o modo de pensar, a localização e os movimentos do inimigo, pode-se formular uma estratégia.
– Não existe um chão sólido nesta guerra – Jim disse depois de um tempo. – Estou lutando na areia e o inimigo está de salto alto no concreto. As chances já estão contra nós e, se você começar a filtrar informações, isso vai se tornar mais uma preocupação pra mim.
Adrian olhou para ele, com uma expressão muito séria.
– Eu não estava tentando atrapalhar. Honestamente.
Jim praguejou ao soltar a fumaça do cigarro.
– Eu acredito em você.
– Eu não vou fazer isso de novo.
– Bom.
Enfim, embora eles não tenham se abraçado ou algo assim, Jim concluiu que haviam feito a coisa certa: a discussão acabou muito melhor do que a primeira que tiveram. Naquela vez, Eddie precisara separar os dois. Pelo visto, estavam progredindo.
– Uma última pergunta.
Adrian levantou a cabeça.
– Manda.
– O que a mensagem dizia?
O silêncio se estendeu, e Jim sabia que isso não era um bom sinal. Se alguém como Ad estava escolhendo as palavras com cuidado, era um sinal realmente ruim.
– Você quer ganhar? – exigiu saber o outro anjo. – E não estou falando só sobre esta rodada. Estou falando da guerra.
Jim estreitou os olhos.
– Sim, eu quero.
Deus, pensou Jim, aquilo era verdade.
– Então não peça para eu traduzir. Nada de bom vai sair disso.
Houve um tenso silêncio enquanto Jim estudava seu parceiro: Adrian olhava diretamente em seus olhos, sem nenhum tipo de subterfúgio. Tudo naquele corpo estava tenso, como se o anjo estivesse rezando para ouvir a resposta certa.
Merda, a vontade de saber os detalhes era o pior tipo de indigestão possível... mas era difícil argumentar com a seriedade de seu parceiro.
– Certo – Jim disse com aspereza. – É justo.
No quarto de Matthias no sexto andar, Mels estava deitada na cama, os braços soltos, as pernas se contorcendo involuntariamente, corpo e mente completamente saciados.
Sentia como se tivesse passado por uma ótima sessão de exercícios na academia, seguida pela mais incrível aula de ioga, e terminado com uma visita a um spa especializado em massagens e relaxamento com óleos e cremes.
Ah, e como se depois tivesse passado em uma sorveteria que oferece sundae com calda de chocolate quente feita de trufas Lindt.
Êxtase. Puro êxtase. A melhor transa que já tivera, mesmo eles não tendo realmente transado...
Ao seu lado, Matthias estava encolhido na cama, a cabeça deitada no único travesseiro que sobrara, um braço dobrado debaixo do corpo e um pequeno sorriso de satisfação em seu rosto endurecido pela vida. Observando-o, Mels sentiu lágrimas inesperadas se acumulando no canto dos olhos. Ele foi tão generoso, sem pedir nada em troca, aparentemente satisfeito simplesmente por fazê-la sentir-se bem.
– O que foi? – ele sussurrou quando ela limpou uma lágrima. – Eu te machuquei?
– Não, Deus, não... eu só... – era difícil explicar sem correr o risco de ele se sentir inadequado, e isso era a última coisa que Mels queria, depois de tudo o que Matthias fizera por ela. – Acho que fiquei um pouco emocionada.
– Mentira. Você sabe o que é – a voz dele voltou ao normal e sua mão estava firme enquanto acariciava o cabelo dela. – E você pode me contar.
– Não quero estragar a noite – ela fungou um pouco. – Foi tão perfeito.
– Então por que isso? – Matthias pegou a mão dela e virou, mostrando-lhe o brilho da lágrima que havia limpado. – Conversa comigo, Mels.
– Eu realmente queria poder retribuir... você sabe, eu quero fazer essas coisas com você.
A expressão dele não mudou, mas ela sabia que o atingira onde doía. Ela podia perceber pelo modo como a respiração dele parou e depois voltou de repente – como se ele precisasse lembrar de respirar.
– Eu também gostaria disso – ele disse, com a voz um pouco triste. – Mas, mesmo se meu encanamento estivesse funcionando, o que tenho pra oferecer não é digno de se olhar, muito menos tocar.
– Eu já disse que você...
– Além disso, o que fizemos é mais do que suficiente para mim – agora ele sorria, embora seus olhos permanecessem sérios. – Sempre vou lembrar disso... e de você.
Uma fria onda de temor percorreu o corpo de Mels, substituindo o relaxamento.
– Você precisa mesmo ir embora? – ela perguntou após um momento.
– Sim, eu preciso.
Ela puxou as cobertas e cobriu o corpo.
– Quando?
– Logo.
– Pode me fazer um favor?
– Qualquer coisa.
– Diga quando chegar a hora. Não deixe que eu descubra por não conseguir te encontrar. Prometa isso.
– Se eu puder, vou avisar...
– Isso não é bom o bastante. Jure que você vai me contar. Pois eu não posso... não quero viver com essa incerteza. Isso seria o inferno para mim.
Ele fechou os olhos brevemente.
– Certo. Vou contar quando chegar a hora. Mas preciso de uma coisa em retribuição.
– O quê?
– Fique comigo esta noite. Quero acordar junto com você.
O corpo dela voltou a relaxar e seu coração parou de bater tão forte.
– Eu também.
Ele abriu os braços, convidativo, e ela se aninhou contra ele, deitando a cabeça em seu peito, ouvindo as batidas de seu coração enquanto as mãos dele circulavam as costas dela, alisando devagar e com carinho. Falar sobre sexo e despedidas a deixou ansiosa, mas o contato a acalmou até ela começar a cair no sono.
Infelizmente, Mels tinha a sensação de que ele não estava sentindo o mesmo e desejou uma maneira de fazê-lo relaxar. Mas parece que aquilo era outra via de mão única entre eles.
– Matthias?
– Sim?
Eu te amo, ela completou em sua mente. Eu te amo, mesmo isso não fazendo sentido.
– Depois que você for embora, algum dia vai poder voltar?
– Não quero mentir pra você – ele disse com rouquidão.
– Então acho que é melhor você não responder.
Matthias virou o rosto para encontrar o dela e a beijou.
– Não vou te deixar com esperanças.
Ah, mas iria. Mels tinha a sensação de que, depois que tudo terminasse, ela sempre procuraria o rosto dele, em cada multidão, em cada calçada, em cada esquina.
Para o resto de sua vida.
Ela odiava esse tipo de perda. Era de se imaginar que, à medida que uma pessoa fica mais velha, ela aprende a lidar melhor com essas situações.
Mas, em vez disso, parecia que a passagem do tempo apenas evidenciava todas as coisas que ela fora forçada a deixar para trás pelo destino: o fato de que ele simplesmente sumiria de sua vida a fez sentir como se seu pai tivesse morrido ontem.
Mels ajeitou os braços de modo que também pudesse abraçá-lo. E, é claro, no instante em que suas mãos fizeram contato com o corpo dele, Matthias ficou tenso – mas que se dane. Ele teria de sentir seu toque de alguma maneira.
Por mais abusos que ele tivesse sofrido na vida... por mais cicatrizes que tivesse... ela só enxergava beleza em Matthias.
– Você arruinou os outros homens pra mim, sabia? – ela disse.
Ele deu uma risada áspera.
– Só se você gostar de homens tipo Frankenstein...
Mels levantou a cabeça.
– Pare com isso. Simplesmente pare. Você não pode impedir que eu goste de você, e não há nada que possa fazer se eu quiser tocar seu corpo. Entendeu?
Sob a luz fraca que vinha do banheiro, ele começou a sorrir, mas então perdeu a expressão, e uma estranha emoção tomou conta de seu rosto.
Em voz baixa, ele disse:
– Você é um anjo, sabia?
Mels revirou os olhos e deitou a cabeça novamente em seu peito.
– Dificilmente. Você já percebeu o quanto eu falo palavrão?
– Quem disse que anjos não têm boca suja também?
– Sem chance.
– Por acaso você já conheceu algum para saber?
Por alguma razão, a imagem de Jim Heron pulando e protegendo-a com seu corpo surgiu na mente dela.
Se ele não tivesse aparecido naquele exato momento, ela teria morrido.
– Talvez você tenha razão – ela disse. – Eu até consigo visualizar eles por aí... realmente consigo.
CAPÍTULO 31
– Pablo, você está de brincadeira? – a mulher quase pulou da cadeira do salão de beleza. – Isto é... loiro.
A inflexão naquela voz estridente fazia parecer que alguém estragara completamente a “maravilhosa” cabeleira da mulher, em vez de transformar o horroroso cabelo ruivo em um lindo amarelo que combinava perfeitamente com sua pele cheia de Botox.
Francamente, Devina ficou um pouco ofendida. Aquela cor era muito sexy.
Olhando através dos olhos de Pablo, o demônio fez o homem colocar as mãos na cintura e decidiu que não tinha vocação para trabalhar em um salão. Que. Droga. Irritante. A mulher chegara trinta minutos atrasada, exigira um refrigerante enquanto esperava a tintura processar – como se aquilo fosse uma porcaria de um restaurante – e depois ficou reclamando da temperatura da água enquanto o cabelo era lavado.
E agora mais essa reclamação.
– Acho que você vai gostar mais depois que secar.
A voz que Devina usou era suave e tinha um leve sotaque difícil de definir, que parecia algo vindo da América do Sul. Mas Pablo era uma dessas pessoas que se reinventa, quase como a própria Devina. Ele se vestia de maneira que deixava sua imagem melhor do que realmente era – e também falava de um jeito diferente do seu natural.
Na verdade ele era de Nova Jersey.
Devina encontrara no Google enquanto criava seu plano, pois não tinha mais nada que pudesse fazer – e Deus sabia que conversar com a cliente fora suficiente para desejar que Pablo desse um tiro na própria cabeça.
Talvez ela devesse ter deixado alguns assistentes ficarem no salão. Hum, não, se fizesse isso, ela teria de lidar com eles também.
– Deixa eu tentar consertar – ela disse usando a boca de Pablo enquanto fazia suas mãos deslizarem pela longa cabeleira molhada. – Vou dar um jeito, você vai ver.
A cliente começou a reclamar sem parar, lembrando Devina de algumas daquelas malucas do programa Bridezillas que assistiu uma vez – e que também foi um bom lembrete do porquê ela nunca seria lésbica. O machismo calhorda e o jeitão de cachorro de Jim Heron era muito mais fácil de lidar do que aquele irritante melodrama passivo-agressivo:
– ... blablablablá! Blá blá. Blá blá, blablablablablá blá blá ...
A falação continuou por um tempo, mas, como todo dilúvio, eventualmente chegou ao fim.
– Certo – disse a megera. – Mas é melhor que eu goste!
Devina sorriu com a boca do estilista e pegou uma escova e um secador de cabelo. Passando a escova com movimentos longos e precisos, da mesma maneira que fazia com o próprio cabelo, ela começou a alisar as ondas da mulher. Enquanto escovava, lembrou-se do mês passado, quando chegara naquele salão na hora marcada com antecedência – afinal, Pablo era o melhor estilista da cidade –, mas encontrara a mesma megera reclamando do corte que ele havia feito. Pablo teve de aguentar a reclamação e não teve outra opção: começou a retrabalhar o corte da mulher, atrasando a vez de Devina.
Ela teve de esperar quase uma hora, e tudo por alguns centímetros a menos nas pontas daquele cabelo que já estava cortado.
Como se a megera usasse uma régua para pentear o cabelo de manhã.
Às vezes, o carma ruim pode voltar com tudo para você...
Demorou uma eternidade para secar a combinação de apliques e cabelo de verdade, mas Devina não estava preocupada com interrupções: ela trancara a porta da frente do salão e, olhando da rua, era impossível enxergar as duas lá dentro. Além disso, o lugar tranquilo era um elemento a seu favor. O salão de Pablo ficava na parte rica da cidade, em uma rua cheia de lojas que vendiam roupas de cama francesas, móveis ingleses e sapatos italianos.
Era a terra das esposas dos ricaços, onde tudo fechava depois das seis, menos o salão de beleza.
Afinal, as bonequinhas precisavam estar arrumadinhas quando seus maridinhos chegassem.
E, falando nisso, Devina achava que a mulher naquela cadeira era a segunda esposa de alguém. Entre os seios de plástico, o Botox e a magreza, ela era uma mulher irritadiça e nervosa: como alguém que não pode ter o que gosta, e que se vendeu para algum velho safado que pode pagar por seu estilo de vida.
Ou talvez ela estivesse transando escondida com seu “professor de pilates”.
Quando Devina finalmente fez Pablo guardar a escova e o secador, a megera se inclinou para frente na cadeira e passou a mão no cabelo, ajeitando as mechas aqui e ali.
Ela gostou do resultado.
– Bom, eu não vou pagar. Não foi isso que pedi e eu odiei – disse ela, embora estivesse fazendo beicinho ao se olhar no espelho, como se posasse para uma câmera. – Eu não vou pagar.
Na verdade, essa era uma boa notícia. Assim era menos provável que houvesse provas contra Pablo. Devina não queria perder seu estilista – que era apenas uma ferramenta nisso tudo e não iria se lembrar de nada.
A mulher pegou sua ridícula bolsa Takashi Murakami LV. Será que ela não sabia que só garotas de quinze anos podem usar uma dessas bolsas?
– Não sei até quando vou continuar vindo aqui.
Devina sabia a resposta.
Não, não seria muito tempo.
A boca de Pablo começou a jogar vários elogios para a mulher, tentando acalmá-la, enquanto ela andava até o vestiário e se fechava lá dentro.
Com um pouco de tempo nas mãos, Devina enviou Pablo até a recepção. Queria checar para quando estava marcada sua próxima visita ao salão, mas tudo era computadorizado e ela só sabia usar o Google, ali não saberia nem por onde começar a procurar a informação que queria.
Seria no fim dessa semana, não é?
Quando reapareceu, a mulher estava vestida com um estilo “moderno” que parecia ter sido escolhido por um estilista cego que a odiava. E já estava se acostumando com os cabelos loiros, que jogava de lá para cá.
Aquela megera merecia morrer por muitos motivos.
“Pablo” acompanhou sua cliente até a saída, o que significava que era hora de Devina se separar de seu hospedeiro. Quando deixou o corpo do garoto-de-Jersey-que-fingia-ser-do-Rio, ela apagou nele qualquer lembrança de sua última cliente. Até onde ele sabia, a mulher que agora estava loira nunca aparecera – e a polícia, quando encontrasse o corpo, não conseguiria relacionar a cor de cabelo àquele salão.
Devina não usou os produtos exclusivos de salão de beleza. Eram complicados demais.
Usou um L’Oréal mesmo.
E enquanto a tinta secava, ela saiu pelos fundos e colocou a embalagem usada em um carro qualquer que estava estacionado duas lojas à frente.
Ninguém associaria a tintura com Pablo – e, se fizessem isso, ele passaria por qualquer detector de mentira com louvor, pois, até onde ele sabia, nunca encontrara a mulher.
Lá fora, o ar estava fresco, e Devina assumiu a imagem de um homem qualquer enquanto andava atrás da recém-loira. A mulher imediatamente pegou o celular, como se estivesse muito excitada para contar sobre seus momentos de trauma no salão de beleza.
Desculpe, querida, mas não vai dar.
Com uma rápida rajada de energia, Devina desligou o celular da megera – o que provavelmente foi a salvação de alguém, que acabou poupado de ouvir a ladainha sobre a “tragédia” com o Pablo.
Quando a mulher parou e tentou consertar o celular batendo-o na palma da mão, Devina passou ao seu lado com a cabeça baixa e as mãos no bolso da calça.
Ela continuou pela fileira de lojas fechadas, checando os arredores. Não havia mais ninguém na calçada, ninguém na rua, tudo estava deserto.
Ela soube quando sua presa voltara a andar pelo som dos sapatos de salto batendo no concreto. E também por causa dos palavrões, é claro.
Quando os faróis de um Range Rover preto piscaram no quarteirão seguinte, Devina sorriu. A cerca de três metros, havia uma rua que cruzava a sequência de lojas, e aquilo era exatamente o que ela precisava.
Ela fez quatro postes de luz se apagarem, diminuiu o passo e esperou que a mulher se aproximasse.
Era a oportunidade para uma execução perfeita.
Literalmente.
Devina se virou rapidamente no momento preciso e agarrou um punhado daqueles cabelos loiros, segurando com força suficiente para tirar a mulher do chão. Então, com uma ligeira sucessão de movimentos, ela dominou a situação, tomando controle de braços e pernas que se debatiam e colocando a palma da mão sobre a boca da mulher.
Usou sua força superior para arrastar a vítima até o cruzamento, apagando mais postes enquanto passava.
Não havia tempo a perder. Sim, aquela parte de Caldwell era calma durante a noite, mas um carro poderia passar a qualquer momento e seria melhor curtir aquele assassinato em paz.
Densas sombras envolveram as duas. Devina não estava preocupada com a possibilidade de o Criador ficar bravo. Ela andava sobre a Terra desde o início dos tempos, e sua natureza era definida exatamente por aquele tipo de coisa.
E ninguém poderia dizer que essa chateação fazia parte do grande plano de conquista de Jim Heron. Aquilo era uma questão paralela.
Mas e se essa mulher fosse assassinada de maneira semelhante à de outra garota? E se fosse marcado na pele um padrão rúnico exatamente igual ao dessa outra garota? E se houvesse outras semelhanças, como grupo étnico e cor do cabelo?
E se essas besteiras perturbassem Jim Heron, causando distração, inquietação e disfunção?
Bom, como disse sua terapeuta, todo mundo é capaz de se controlar e de controlar suas ações.
Se Jim não conseguia lidar com isso, Devina não tinha culpa... e o problema também não era dela.
CAPÍTULO 32
Mels acordou sentindo mãos passeando por sua barriga e mergulhando entre suas pernas. Ainda meio sonolenta, ela se esticou de costas e virou, buscando o calor do corpo de Matthias e encontrando sua boca na escuridão. Instantaneamente, eles retornaram para a forma como passaram a maior parte da noite: pressionados um contra o outro, enquanto Mels sentia um calor se acumular em seu sexo.
Quando seu amante começou a descer, tirando os lençóis do caminho, ele encontrou os seios e passou a chupar os mamilos enquanto os dedos talentosos massageavam exatamente no ponto em que ela queria.
A ideia de que Mels o perderia em pouco tempo fez tudo parecer mais intenso, como se seu corpo entendesse exatamente o que a mente pensava: aproveite isso agora mesmo, pois as memórias terão de durar por muito, muito tempo.
Era difícil imaginar que encontraria algo igual com outro homem.
– Goze para mim – ele exigiu enquanto mordia o seio.
O orgasmo a fez apertar as coxas pressionando a mão dele, prendendo-o enquanto Matthias a penetrava profundamente – e os espasmos do quadril fizeram seu sexo roçar no punho dele exatamente no lugar certo.
Mels sussurrou o nome dele na escuridão e sentiu o corpo se enrijecer enquanto a doce pontada do orgasmo continuava além da primeira onda de prazer. Ela se concentrou no clímax, com esperança de que a sensação fugaz pudesse se estender até o infinito.
Mas, é claro, tudo chegou a um fim.
Na vida real nada dura para sempre.
Quando Matthias a aconchegou de volta contra seu peito, ela desejou que ele também estivesse nu, mas sempre que ela tentava puxar sua camisa ou mesmo colocar a mão por baixo, ele redirecionava seus movimentos.
Ela abriu um olho e soltou um grunhido quando viu o relógio. Eram seis e meia da manhã.
A noite chegara ao fim.
Droga, ela estava prestes a derramar lágrimas!
E acabara de lembrar que não avisara sua mãe de que não dormiria em casa. E estava sem carro. E não queria ir trabalhar.
Que bela maneira de começar o dia.
– É melhor eu ir – ela disse mal-humorada.
– É – ele afrouxou os braços em volta dela, beijou sua boca e então se separaram completamente.
Será que havia chegado o momento, ela pensou. Será que era hora de ele honrar sua promessa?
– O que você acha de jantarmos juntos? – ele disse.
O sorriso que surgiu no rosto dela era tão grande que poderia ter iluminado o quarto, como o flash de uma câmera.
– Acho ótimo.
O fato de que o encontraria em doze horas tornou muito mais fácil a tarefa de vestir-se. Então, como um verdadeiro cavalheiro, ele a acompanhou até a porta, ainda vestindo sua camiseta Hanes e a cueca boxer.
Ficaram um tempo parados na porta e Matthias parecia prestes a dizer alguma coisa... mas então deixou que as ações falassem por si: ele a beijou tão profunda e demoradamente que ela pensou que nunca mais tomariam ar.
Então Mels começou a andar e entrou no elevador antes que ficasse impossível ir embora. A descida demorou uma eternidade.
Lá fora, na rua, ela ficou contente por encontrar uma fila de táxis livres, mesmo ainda não sendo nem sete horas da manhã.
Ela entrou em um deles e encontrou os olhos do motorista através do retrovisor.
– Vamos até o número 242 da Pine Way.
– Nos subúrbios?
– Sim.
Ele assentiu, engatou a marcha e não disse mais nenhuma palavra. Ainda bem.
Quando entraram na rampa de acesso da Northway e se juntaram ao trânsito matinal que começava a se acumular, ela observou a cidade daquele ponto de vista elevado. Havia uma beleza tranquila na silhueta urbana: os prédios mais altos refletiam em suas fachadas espelhadas as cores rosa e laranja do nascer do sol, as ruas estavam tranquilas, o dia apenas começando e deixando o centro da cidade com um frescor matinal.
A natureza fez sua parte com a paisagem, mas após uma noite de sexo e a segurança de ter um jantar para mais tarde, Mels provavelmente estava cheia de endorfina em sua corrente sanguínea, o que a fazia ver o mundo como um grande e romântico cartão-postal.
Tudo isso durou até ela chegar aos portões do Cemitério Pine Grove, então sua sensação de êxtase começou a desvanecer.
O que você diria se eu te contasse que acredito no Inferno? E não de um ponto de vista religioso, mas porque estive lá pessoalmente.
Mels fechou os olhos, sentindo um estresse subir pela coluna e se estabelecer na base de seu pescoço.
E acho que fui enviado de volta pra fazer alguma coisa. Não sei o que é, mas vou descobrir. Talvez seja uma segunda chance.
Matthias estava muito sério quando disse essas palavras. Ele parecia acreditar com absoluta clareza no que estava dizendo e, enquanto ela encarava seus olhos, observando com atenção, Mels esteve muito próxima de acreditar também.
Mas talvez isso fosse natural com os loucos. Eles parecem normais exceto pelo fato indiscutível e catastrófico de que sua visão de realidade é muito diferente da visão de pessoas normais. Ou seja, para eles, o que pensam ter visto e o que acreditam ser verdade é a realidade.
Por isso eles conseguem olhar nos olhos das pessoas com total sinceridade e falar um monte de coisas malucas sem perceber.
Se ela desconsiderasse o exagero da história dele, poderia dizer que o seguinte aconteceu: ele acordou nu em cima de uma sepultura. Conseguiu se vestir de alguma maneira e pulou o portão de ferro do cemitério. Depois pulou na frente do carro dela.
E tudo isso o fez imaginar que fora rejeitado pelo Inferno.
Ah, e estava sendo perseguido...
Além de estar armado.
Pânico percorreu as terminações nervosas dela quando a lógica começou a substituir a emoção e a conclusão de que poderia estar em perigo começou a pairar sobre seus pensamentos.
Mas ele não a machucara. Nunca a ameaçara. Estiveram juntos em um local público – um quarto de hotel com paredes finas.
E o homem que salvara a vida dela no hospital assegurara que Matthias era uma boa pessoa.
Seria ele um louco varrido ou apenas uma alma perdida?
Ou, mais importante, qual era o papel dela no meio disso tudo?
Mels estava esfregando sua cabeça cansada e dolorida quando o táxi chegou à casa de sua mãe. Depois de pagar o motorista, ela andou pelo caminho da entrada e forçou-se a não olhar para a janela que seu pai havia consertado.
Ele não aprovaria que ela chegasse em casa de manhã vestindo as mesmas roupas da véspera, com o cabelo desarrumado mesmo tendo prendido para trás e com os lábios inchados.
Ao abrir a porta, Mels não precisava do cheiro de café e do som de uma colher contra o pires para saber que sua mãe estava acordada. Ela provavelmente ficara lhe esperando.
Passando pela sala de estar, Mels viu um caça-palavra feito pela metade ao lado da poltrona preferida de sua mãe, junto com uma xícara com restos do que parecia ser chocolate quente.
Ela pegou a xícara e a levou até a cozinha.
– Oi. Olha, desculpa não ter ligado. Foi uma grosseria da minha parte. Eu perdi a noção do tempo.
Sua mãe não levantou o olhar da tigela de cereal e, quando ficou em silêncio por um tempo, Mels sentiu dificuldade para respirar.
– Sabe qual é a parte mais estranha? – disse sua mãe finalmente.
– Não.
– Se você não morasse aqui, eu não saberia que não veio para casa... e não teria me preocupado – sua mãe franziu a testa, ainda olhando para o café. – Você não acha isso estranho? Você é uma mulher adulta e, legalmente e na prática, não é nada mais do que uma inquilina aqui. Você não é mais uma garota menor de idade de quem eu preciso cuidar. Então você acha que não é importante me avisar das coisas.
Mels fechou os olhos. A distância entre ela e a mãe era tão vasta que se perguntou como poderiam sequer ouvir uma à outra.
E, claro, isso era culpa dela – e não só a parte sobre não ligar para avisar.
Soltando um palavrão baixinho, Mels foi até a pia e encheu uma xícara de café. Quando se virou, a maneira como a luz do sol refletia no rosto de sua mãe a atingiu como um soco: alguma coisa no ângulo da luz parecia revelar cada ruga, cada imperfeição, cada linha de expressão que evidenciava sua idade. Mels teve de olhar para o outro lado.
Em meio ao silêncio, pensou em seu pai. Em tudo o que ele perdeu desde sua morte – os dias, semanas, meses. Os anos.
Pensou em todo o tempo que sua mãe passara sentindo saudades dele. Na casa que ela teve de assumir sozinha. Nas noites – as noites que ficaram ainda mais longas graças à sua filha cabeça-dura.
Mels se aproximou e sentou-se. Não do outro lado da mesa, mas ao lado da mãe.
– Acho que estou me apaixonando por uma pessoa.
A mãe levantou rapidamente a cabeça, e Mels também ficou um pouco chocada com a própria revelação. Ela não compartilhava nada de sua vida desde... sim, desde quando voltou a morar naquela casa – e antes disso também não dizia muita coisa.
– É mesmo? – sua mãe sussurrou, com os olhos bem abertos.
– Pois é, ele... bom, ele é o homem que eu atropelei, na verdade.
Sua mãe respirou fundo.
– Eu não sabia que você tinha sofrido um acidente. Foi quando você me disse que... se machucou no chuveiro?
Mels baixou os olhos.
– Eu não queria preocupar você.
– Acho que isso explica por que seu carro sumiu.
– Não foi nada sério. De verdade, estou bem – exceto pelo fato de se sentir uma idiota por mentir para a mãe.
No silêncio que se seguiu, ela se preparou para algum tipo de sermão, fosse sobre Matthias ou sobre a Fifi.
Em vez disso, sua mãe apenas disse:
– E como ele é?
– Ah... – Mels preencheu a pausa com um gole do café. – Ele se parece bastante com o papai.
Sua mãe sorriu com a maneira gentil de sempre.
– Isso não me surpreende.
– Ele... pois é, eu não sei como explicar em detalhes. Ele apenas me lembra o papai.
– Ele é católico?
– Eu não sei – eles não conversaram sobre religião. Bom, exceto por aquela história sobre “eu estive no Inferno”. Mas, agora que sua mãe mencionou, Mels pensou que seria bom se ele fosse católico. – Vou perguntar.
– Qual é o emprego dele?
– É complicado... – Deus, será que ele trabalhava?
– Ele te trata bem?
– Ah, sim. Muito bem. Ele... é um bom homem – que talvez seja um completo maluco. – Ele toma conta de mim.
– Isso é importante, sabe? Seu pai... sempre tomou conta de mim e de você...
– Sinto muito mesmo por ontem à noite.
Sua mãe segurou a xícara e ficou olhando para o vazio.
– Acho maravilhoso que você tenha encontrado alguém. E que voltou em segurança pra casa hoje.
Merda... ela também não tinha pensado sobre aquela parte – sobre sua mãe ficar não apenas acordada esperando, mas revivendo aquela noite em que a polícia veio bater na sua porta no meio da madrugada.
– Posso perguntar uma coisa sobre o papai? – Mels disse de repente.
– É claro.
Ela não podia acreditar que iria mesmo perguntar aquilo.
– Ele te tratava bem? Quer dizer, ele passava muito tempo fora de casa, não é? Trabalhando.
Os olhos de sua mãe se viraram.
– Seu pai tinha um compromisso muito forte com esta cidade. O trabalho era tudo pra ele.
– E quanto a você? Onde você se encaixava?
– Ah, você me conhece, não gosto muito de ser o centro das atenções. Você quer mais café?
– Não, obrigada.
Sua mãe levantou-se com a tigela na mão, foi até a pia e enxaguou o cereal que restou.
– Então, conte mais sobre seu homem misterioso. Qual é o nome dele?
– Matthias.
– É um nome bonito.
– Ele tem amnésia. Não consegue me contar muito mais do que isso.
Ela levantou as sobrancelhas, mas não indicou censura, preocupação ou nervosismo. Apenas uma calma aceitação.
– Ele está sob os cuidados de um bom médico?
– Foi examinado no hospital. Ele está bem... está começando a se lembrar das coisas.
– Ele mora aqui em Caldwell?
– Agora está morando – Mels limpou a garganta. – Sabe, eu queria que você conhecesse ele.
Sua mãe congelou em frente à pia. Então piscou rápido, como se tivesse dificuldade para se recompor.
– Isso seria... ótimo...
Mels assentiu, mesmo sem saber se isso seria possível. Acontece que ela nunca compartilhava nada com a mãe, e naquele momento Matthias era – ou ao menos parecia ser – a coisa mais importante em sua vida.
Então parecia correto se abrir sobre ele.
Após todo esse tempo, essa coisa de compartilhar parecia estranha e constrangedora... era quase como quando ganhou o primeiro sutiã, ou precisou usar aparelho nos dentes, ou tirou sua carteira de motorista.
Mais importante, foi só naquele momento, naquela manhã, ali na cozinha, que Mels percebeu que, mesmo com o passar dos anos, ela ainda não tinha crescido. Não de verdade. Depois que seu pai morreu, ela se retirou da vida em muitos sentidos: seus sentimentos regrediram e ficaram enterrados debaixo de objetivos na carreira, que se transformaram em um descontentamento geral com tudo ao seu redor.
Então Matthias a abalou.
Fez Mels acordar de um longo sono.
E ela não gostou do que viu nas linhas envelhecidas do rosto da mãe.
– Então, quer ver ele? – disse Mels. – Não sei quanto tempo ele vai ficar na cidade, mas... eu realmente gostaria que você o conhecesse.
Sua mãe assentiu e pareceu passar um tempo muito longo esfregando aquela tigela.
– Quando você quiser. Estou sempre aqui.
Deus, isso era verdade, não é mesmo?
E por que Mels sentia que aquilo era um peso que ela precisava carregar?
Ela olhou para o relógio no micro-ondas e se levantou ainda segurando a xícara de café.
– Acho melhor começar a me arrumar.
– Você quer usar meu carro hoje?
– Sabe de uma coisa? Acho que sim, se você não se importar.
Agora sua mãe realmente sorriu, e a expressão desfez um pouco da eterna tristeza que ela carregava no rosto desde... bom, desde sempre.
– Isso é bom. Eu gosto de ajudar sempre que puder.
Mels parou no meio da sala de estar.
– Desculpa.
O sorriso que sua mãe usou como resposta não parecia mais sinal de fraqueza, mas de aceitação.
Hum. Só então ela percebeu o quanto as duas coisas eram diferentes – e se perguntou por que confundira uma com a outra por tanto tempo.
– Está tudo bem, Mellie.
– Não, não está – Mels disse enquanto se virava e subia as escadas. – Não está mesmo.
No geral, Matthias não estava em condições de fazer qualquer tipo de plano para o jantar.
Mas era simplesmente impossível não desejar mais um pouco de Mels nua em sua cama.
Ou no chão. Contra a parede. Em cima da pia do banheiro.
Em qualquer lugar.
Acontece que já estava na hora de ir embora. Ele já ficara tempo demais em Caldwell, exposto demais no hotel... e estava muito próximo de Mels.
Era hora de partir.
Com a alma pesada por deixar Caldwell para trás, Matthias saiu do Marriott, carregando a arma de Jim presa na cintura e usando um boné de beisebol que comprou na loja do hotel, com a aba abaixada até os óculos escuros.
O dia estava um pouco quente, e a cobertura irregular de nuvens que chegara durante a noite provavelmente não melhoraria muito a temperatura.
– Vai dar um passeio matinal até a loja de doces?
Matthias parou e se virou. Jim Heron aparecera magicamente atrás dele e, por alguma razão, aquilo não o surpreendeu.
Mas uma coisa foi chocante: a emoção que se abateu sobre ele quando seus olhos se encontraram.
Oferecendo a palma da mão, Matthias disse:
– Obrigado.
As sobrancelhas loiras de Jim se levantaram, e ele ficou parado de uma maneira quase sobrenatural enquanto as pessoas se desviavam do caminho. A multidão formou uma clareira que se abria e fechava ao redor deles, indiferente ao que acontecia entre os dois homens.
– O que foi? – disse Matthias, mantendo a mão onde estava. – Você é orgulhoso demais para aceitar um pouco de gratidão?
– Você nunca agradeceu a mim ou a qualquer outra pessoa. Por coisa alguma.
No silêncio, um momento de claro reconhecimento tomou conta do peito de Matthias, o tipo de coisa que indicava que a afirmação era verdadeira.
– Virei a página – ele murmurou.
Jim retribuiu o aperto de mão.
– Por que está me agradecendo?
– Por ter tomado conta da minha garota na noite passada. Fico te devendo uma.
Depois de uma pausa, Jim respondeu com a voz igualmente dura:
– De nada. E posso imaginar o que te fez levantar e sair do quarto. Volte comigo pra minha casa. Eu tenho muita munição por lá.
Considerando que aquilo pouparia muito dinheiro, Matthias aceitou imediatamente.
– Cadê o seu carro?
– Por aqui.
Atravessaram a rua e logo Matthias estava sentado ao lado de Jim em um Explorer preto.
Entraram na via expressa, e por alguma razão Matthias sentia necessidade de olhar constantemente para o banco de trás. Ele cedeu a essa paranoia de tempos em tempos, mas não havia nada ou ninguém.
Que diabos...?
– Então, como está sua memória?
– Do mesmo jeito – Matthias parou por aí, pois aquela teoria sobre “voltar do Inferno” parecia estranha demais para mencionar. Uma coisa era contar aquilo para Mels. Agora falar com Jim era como... como se tirasse a calça na frente do cara.
Ou seja, nem pensar.
Matthias ligou o rádio.
– ... o corpo de uma mulher foi encontrado na escadaria da Biblioteca de Caldwell. Trisha Golding, segunda esposa de Thomas Golding, CEO da CorTech, foi encontrada por um gari com a garganta cortada e seminua. A polícia de Caldwell veio imediatamente e continua na cena do crime. Oficialmente, o departamento de homicídios diz ser mínima a possibilidade de outro assassino em série estar à solta na cidade, mas uma fonte nos informou com exclusividade que esta vítima está sendo relacionada ao caso de outra jovem mulher encontrada...
Enquanto a reportagem continuava, Matthias notou que as mãos de Jim agarraram com força o volante, até os dedos começarem a ficar brancos.
– Qual é o problema? – ele perguntou.
– Nada.
Sei. Mas aquilo não era problema de Matthias e ele não devia meter o nariz onde não era chamado. Além disso, já tinha coisas demais em sua cabeça para se preocupar.
Apenas mais uma noite aqui, ele prometeu a si mesmo. Uma última noite com Mels, então pegaria seus últimos cem dólares, compraria uma passagem de ônibus e... viajaria até Manhattan.
Lá havia algo de que ele precisava. Podia sentir.
Mas, caramba, seria um trabalho enorme. Qual era o tamanho de Nova York? E quanto dinheiro ele ainda tinha? Mas ele sentia que, assim que chegasse à Big Apple, seria direcionado para... seja lá o que fosse.
E era por isso que precisava de muita munição – não correria riscos com o que quer que estivesse esperando por ele.
Ultimamente, as surpresas não estavam sendo muito agradáveis.
Com exceção de Mels Carmichael.
CAPÍTULO 33
Mels não chegou a ir até o Correio de Caldwell.
Seu celular tocou logo que ela saiu de casa e, quando o tirou da bolsa para atender, ela teve de soltar um grunhido. Havia três mensagens de voz que não foram atendidas durante a noite, e todas eram de seu chefe – Dick, o Cretino.
Alguma coisa acontecera enquanto ela estava... ocupada.
– Alô?
– Você não atende mais a droga do seu celular?
– Desculpa – e não, Mels não iria explicar que estivera “ocupada”, ou Dick poderia chegar a conclusões que... estariam corretas desta vez. – O que aconteceu?
– Carmichael, você sabe que uma repórter precisa trabalhar 24 horas, sete dias por semana.
Bom, fazia apenas dois dias que ele começara a realmente tratá-la como uma repórter.
– Aconteceu alguma coisa?
– Você não ouviu as notícias do rádio hoje de manhã? – ela não disse nada e ele praguejou. – Acharam outra loira morta. Na escadaria da Biblioteca Pública. Eu quero você lá ontem!
– Estou indo agora mesmo!
Isso proporcionou um instante de silêncio – como se ele estivesse preparado para insistir que ela se apressasse.
– Não estrague tudo.
– Não vou – Mels sorriu para si mesma. – A propósito, tenho uma fonte na polícia e estou trabalhando com um ângulo diferente sobre a morte da prostituta. Sei de uma coisa que ninguém mais sabe.
Agora ele parecia estar impressionado de verdade.
– É mesmo?
– Depois eu te conto mais.
Mels desligou sem terminar a frase com um “se der”, pois não queria ser ambígua com o chefe – além disso, não havia como Monty não deixar que ela divulgasse a informação. Ele gostava demais da sensação de ser a fonte secreta de uma reportagem bombástica.
Ao ligar o rádio, ouviu a notícia:
– ... o Departamento de Homicídios diz ser mínima a possibilidade de outro assassino em série estar à solta na cidade, mas uma fonte nos informou com exclusividade que esta vítima está sendo relacionada ao caso de outra jovem mulher encontrada...
Uau, quem seria essa “fonte”?
Monty certamente não via problemas em não ser exclusivo.
A biblioteca de Caldwell sempre a lembrou daquela que aparece no começo do filme dos Caça-Fantasmas – a famosa Biblioteca Pública de Nova York. Na verdade, ela se perguntava se o prédio de Manhattan servira de inspiração para o de Caldwell: por toda a fachada havia colunas coríntias, um frontão com deuses gregos e, sim, até mesmo dois grandes leões, que guardavam cada lado da imponente entrada neoclássica.
Estacionando o carro de sua mãe em frente a um parquímetro, ela colocou uma moeda na máquina e começou a andar pela Avenida Washington. O local onde o corpo fora encontrado estava óbvio e com certeza fora escolhido por causa da visibilidade: a área que isolava a vítima estava bem no centro da escadaria de pedra que subia para as três portas principais.
Com a fita de isolamento da polícia pendurada entre um leão e outro, todo o acesso estava restrito, então Mels começou a andar pelos arredores procurando Monty.
Por alguma razão, ele não estava por perto e, assim como os outros repórteres, ela não conseguiu muita informação com ninguém: a única coisa que os policiais diziam era “coletiva de imprensa às onze”.
Após algum tempo, Mels fez uma pausa e entrou na padaria Au Bon Pain do outro lado da rua, onde pediu um café sem açúcar e um bolinho de nozes. Quando voltou para a cena do crime, comeu aquela bomba de açúcar e percebeu que sua andança não estava servindo para nada. Cheia de estimulantes depois da pausa para o café, sua mente ficava repassando todos os segundos da noite anterior.
Embora seus pensamentos não estivessem travados apenas na parte excitante. Dúvidas pairavam entre os beijos – um estranho medo surgiu e a deixou com os nervos à flor da pele.
Mesmo que jantassem juntos aquela noite, Matthias ainda iria embora.
E outras questões permaneceriam...
Com uma resignação pesarosa, Mels pegou o celular e discou o número de Tony. Esperou chamar uma, duas, três vezes.
– Onde está meu café da manhã?
Mels riu.
– Ainda no McDonald’s.
– Sabe, eu devia obrigar você a pegar meu carro emprestado.
– Peguei o da minha mãe hoje. Quem sabe amanhã? Talvez possamos fazer negócios de novo. Escuta, você conseguiu falar com algum dos seus amigos na balística?
– Ah, droga. Sim, eu falei. Achei uma pessoa que concordou em se encontrar com você.
– Por acaso ele é da polícia?
– Você está lendo minha mente?
– Bom, eu preciso ir até a delegacia para uma coletiva daqui a uma hora, então vou estar lá de qualquer maneira.
– Certo, mas tem um porém. Ele está um pouco desconfortável. Não quer se meter em problemas e só vai fazer isso porque fui eu quem apresentei ele à esposa, alguns anos atrás. Seu nome é Jason Conneaut e ele faz parte da equipe de investigação forense. Estou esperando ele me ligar para dizer como prefere fazer o encontro. Acho que ele não quer te encontrar no prédio da polícia.
– Eu agradeço de verdade, Tony. Me liga ou manda uma mensagem de texto.
– Pode deixar.
Quando desligou, ela começou a pensar o quanto seria constrangedor se a cápsula que encontrara no bolso fosse compatível com uma outra em particular.
Parte dela não tinha certeza se queria saber – mas aquela ansiedade era exatamente a razão de ela precisar fazer isso. Uma coisa era ficar com a cabeça nas nuvens por causa de uma paixão – que poderia acabar em uma grande decepção. Outra coisa bem diferente era deixar que isso interferisse em seu trabalho, em sua segurança e no interesse público.
Enquanto observava os degraus da escadaria, Mels realmente não estava gostando do rumo que seus pensamentos tomavam.
E não era apenas por causa dos mistérios sobre Matthias.
Por muito tempo ela vivera uma vida chata, frustrada, mas relutante em fazer qualquer mudança, presa em ponto morto na cidade de Caldwell. Quase nem conseguira reconhecer o buraco que havia cavado para si mesma.
A grande questão agora era: o que iria fazer a respeito?
– Então, você vai se encontrar com a repórter de novo, não é?
Matthias estava sentado no sofá de Jim, recarregando a arma, e realmente não estava afim de falar sobre Mels.
– Obrigado pela munição. E pelo almoço.
O pão de centeio com pastrami que o colega de Jim trouxera parecia um pouco demais para as onze da manhã, mas seu estômago não reclamou, e tudo o que restou da refeição foi o papel que embrulhava os sanduíches e algumas embalagens de batata chips.
– Mas você vai? Não é?
Matthias passou o polegar sobre a sobrancelha.
– Sim. Mas depois eu vou embora.
– Para onde?
– Aqui e ali.
– Caldwell é um bom lugar pra ficar. Grande o bastante para uma pessoa se perder, pequeno o bastante para ela manter o controle.
A questão não é essa, pensou Matthias. E, por mais que confiasse em Jim para algumas coisas, não lhe diria nada sobre Manhattan.
Em um dos cantos da sala, uma velha televisão mostrava o logotipo da afiliada local do canal NBC e então cortou para as notícias do dia. No instante que a âncora apareceu, Jim virou-se e encarou a tela, concentrando-se tão intensamente que parecia que seus olhos poderiam explodir a coisa.
– Hoje, no jornal das seis da WCLD, as últimas notícias do mundo, dos esportes e a previsão do tempo – a âncora era uma pessoa que estava “quase lá”: o cabelo era um pouco loiro demais, a voz era um pouco aguda demais, as mãos eram inquietas, sua imagem em geral não chegava a um nível digno de Nova York, mas com certeza ficava acima da média para o interior. – A principal notícia de hoje foi a descoberta de uma vítima na escadaria da Biblioteca Pública de Caldwell. O chefe de polícia Funuccio deu uma entrevista coletiva hoje de manhã e nossa equipe esteve lá...
Matthias deixou a reportagem em segundo plano e se concentrou na mudança de Jim. E não foi o único: seu colega chegou com uma lata de lixo vazia, olhou para Jim e então deu meia-volta e saiu, praguejando.
O que diabos estava acontecendo?
– ... um estranho padrão de símbolos na parte inferior da barriga da vítima. As imagens que mostraremos agora são fortes, portanto aconselhamos critério do telespectador.
Na tela, foi mostrado um close de uma barriga com a pele cheia de marcas. Os riscos gravados pareciam ser algum tipo de linguagem.
Matthias piscou uma vez. Piscou de novo. Então uma parte de seu cérebro se libertou de modo tão violento que o fez soltar um grito e jogar as mãos na cabeça...
Uma prisão negra... corpos se contorcendo... um corpo que não pertencia...
Oh, Deus, havia um corpo que não pertencia àquele lugar...
A dor o atormentava, seu corpo estava se lembrando de coisas que foram feitas nele em nível visceral. O pesadelo da noite anterior agora revelava ser uma lembrança viva: algo que acontecera no passado recente estava agarrando-o com dentes que arrancavam e garras que cortavam através de seu corpo...
– Matthias? Matthias, que merda está acontecendo?
Jim estava à sua frente, mas Matthias não conseguia enxergá-lo, seus dois olhos estavam cegos e suas pálpebras tremiam rapidamente abrindo e fechando.
– Oh... Deus... – ouvia a si mesmo gemendo enquanto se inclinava para o lado.
Inferno... ele esteve no Inferno, foi torturado e reivindicado, tragado para a eterna prisão depois de levar um tiro...
– Isaac Rothe – ele murmurou. – Foi ele quem me matou, não foi? Ele atirou em mim porque...
Alistair Childe. O homem sobre quem Jim lhe contara, o homem cujo filho fora sequestrado e cuja filha fora ameaçada... Matthias fora atrás da garota, mas ela tinha um protetor, um protetor altamente treinado que, no fim, levou a melhor e atirou no peito de Matthias.
Ele morreu no chão, na casa da filha de Childe...
Mais lembranças surgiram, com impactos que pareciam físicos, a agonia arrancava gritos de seus membros e juntas.
– Matthias, vamos...
De repente, a visão de uma garota loira, uma jovem garota loira com runas esculpidas na barriga e roupas ensanguentadas, cobriu tudo em sua mente... e assim permaneceu.
– Ela estava lá embaixo comigo – sua voz surgiu abruptamente, forte e clara, inabalada pela tempestade que acontecia em sua cabeça. – A garota... estava presa comigo.
Houve uma pausa. Ou será que ele também perdera a audição?
– Quem? – perguntou Jim com uma voz congelante.
– A garota com o cabelo loiro...
Sentiu dois apertos em seus ombros e soube que Jim o agarrara.
– Diga o nome dela.
– A garota com o cabelo loiro...
– Qual era o nome dela? – a voz de Jim falhou nesse ponto. – Diga...
– Eu não sei... – Matthias sentiu seu corpo ser fortemente sacudido, como se Jim estivesse tentando arrancar o nome à força. – Eu não... eu só sei que ela era inocente... que não pertencia àquele lugar...
Uma grande sequência de palavrões chamou sua atenção.
– Quem é ela? – Matthias ouviu a si mesmo perguntar.
– Ela estava bem? – Jim exigiu saber.
– Não existe abrigo no Inferno – ele respondeu. – Lá, estávamos todos juntos, e eles eram implacáveis.
– Eles quem?
– Os demônios...
CAPÍTULO 34
– Bom, eu não estaria casado se não fosse pelo Tony.
Mels riu um pouco e não pôde deixar de notar que o homem que andava casualmente ao seu lado estava constantemente olhando por cima do ombro.
– Tony é um cara legal.
– É o mais legal!
Após a entrevista coletiva, ela se encontrou com Jason Conneaut, como combinado, em um shopping a céu aberto que ficava perto da delegacia. Era claramente uma tática para ficarem invisíveis na multidão, e Mels sentia que isso funcionaria: eles eram apenas mais duas pessoas em meio à enxurrada de consumidores entrando e saindo de lojas como Victoria’s Secret, Bath & Body Works e Barnes & Noble.
Não chamavam atenção.
– Então, aqui está a cápsula – ela disse, discretamente lhe entregando um envelope com um volume pronunciado. – Eu a envolvi num lenço de papel pra não perder.
– Você pode me dizer onde a conseguiu?
– Não, não posso. Mas posso dizer o que é que estou procurando – agora era Mels quem olhava ao redor. – Quero saber se foi disparada pela mesma arma usada no tiroteio do Marriott na outra noite.
O amigo de Tony grudou seu par de olhos claros no rosto de Mels.
– Se for da mesma arma, vou ser obrigado a revelar quem foi a pessoa que me deu a cápsula.
– Vou fazer melhor que isso. Vou dizer de quem é a cápsula e onde você pode encontrar o dono.
Oh, Deus... por favor, não deixe chegar a esse ponto.
Jason ficou visivelmente mais calmo.
– Bom, pois não quero problemas.
Mels parou e esticou a mão para ele.
– Você tem minha palavra.
Quando apertaram as mãos, ele disse:
– Vou precisar de um dia ou dois.
– Sem problema. Me ligue quando quiser. Não vou ficar te importunando.
Depois de se despedirem, Mels deu uma olhada nas vitrines, parando de tempos em tempos. A prefeitura fechara aqueles cinco quarteirões para formar o shopping a céu aberto já fazia algum tempo, mas esta era a primeira vez que ela passeava por ali – e sentiu-se bem em meio à multidão, fingindo ter uma vida normal e não estar envolvida com estranhos que andavam armados e que tinham amigos como aquele Jim Heron.
Ela estava observando mais uma vitrine quando franziu a testa e pegou o celular. Mas não era para atender a uma chamada.
Ela estava checando a data...
Bom, quem diria.
Era o aniversário da morte de seu pai.
A princípio, não entendeu o que a fez pensar naquilo, mas então percebeu que estava parada em frente a uma loja de sapatos na qual um cartaz de promoção estava pendurado em cima de uma fileira de botas de neve. Aquelas botas poderiam ser úteis na primavera do norte do estado de Nova York – o final de abril podia trazer todo tipo de clima, desde dias ensolarados até chuvas cinzentas e grandes nevascas... ou ainda um chuvisco gelado junto com neve... que fazia as estradas ficarem muito escorregadias e perigosas, onde frear se tornava quase impossível... e aumentava as chances de morte em acidente de carro. Principalmente durante perseguições policiais em alta velocidade.
Ela fechou os olhos por um momento. Então fez uma ligação no celular que nunca teria acontecido antes.
– Alô?
Ao ouvir o som da voz de sua mãe, Mels sentiu lágrimas surgindo em seus olhos.
– Você não disse nada hoje de manhã... e eu não lembrei.
Houve uma pausa.
– Eu sei. Eu não queria te lembrar, se houvesse alguma chance de você não estar pensando nisso.
Engraçado, era a primeira vez que ela se abria com relação a isso. Afinal, três anos depois, a saudade e a tristeza eram demais para que pudesse lidar sem ficar abalada.
– Como é que você tá? – ela perguntou.
A surpresa na voz de sua mãe fez Mels querer chutar o próprio traseiro.
– Eu... bom, agora que você ligou, estou melhor.
– Você deve sentir tanta falta dele quanto eu.
– Sim. Todos os dias – houve outra pausa. – Você está bem, Mels?
Seu tom parecia dizer “quem é você e o que fez com minha filha que sempre foi completamente fechada?”.
– Você tem planos pra hoje, mãe?
– Minhas amigas vão me levar pra jantar.
– Bom. Eu... talvez chegue tarde hoje de novo.
– Tudo bem... e obrigada por avisar. Obrigada... – aquela voz doce sumiu por um segundo. – Obrigada por ligar.
Mels focou os olhos no tecido grosso das botas que estavam praticamente de graça.
– Eu te amo, mãe.
Dessa vez, o silêncio foi longo. Muito longo.
– Mãe?
– Estou aqui – respondeu com a voz embargada. – Estou bem aqui.
– Estou feliz que você esteja. – Mels se afastou da vitrine, das lojas, das pessoas. – Eu aviso se for passar a noite com ele, certo?
– Por favor. E eu também te amo.
Depois de desligar, Mels andou atordoada de volta para a delegacia, passou pela porta principal e foi direto para o estacionamento dos fundos, onde seu carro estava estacionado.
Ela não foi para o prédio do Correio de Caldwell.
Dirigindo para fora da cidade, parou nos sinais fechados, acionou as setas propriamente, não fez ultrapassagens arriscadas... mas não tinha ideia de onde estava indo.
Até que os portões do Cemitério Pine Grove surgiram no horizonte.
Parte de si parecia reclamar. Ela não queria aquilo. Não com tudo mais que estava acontecendo em sua vida no momento. Por outro lado, sob a regra de que drama atrai drama, talvez a sincronia fosse ideal.
Ela não teve problemas para encontrar o túmulo de seu pai e, dirigindo até o local, não ficou surpresa ao ver que no espaço ao redor haviam sido plantadas várias flores da primavera, como narcisos, tulipas e flor de açafrão.
Era sua mãe sendo prestativa como sempre. E com certeza ela o visitava não só em dias especiais, mas sempre que podia.
Mels saiu do carro e cruzou o gramado verde-claro. A vegetação lentamente voltava ao lugar e ia cobrindo as marcas de seus passos.
Outras lápides pareciam abandonadas, cobertas de pequenos pedaços de galhos, líquen e musgo. Mas não a de seu pai. Sua lápide estava limpa e polida, sem evidência da passagem de três sequências de estações.
Quando Mels finalmente se ajoelhou, foi para passar os dedos pela cruz gravada fundo no granito cinza.
A voz profunda de Matthias surgiu em sua mente, falando sobre o Inferno com o tipo de convicção que ela poderia ter usado ao falar de jornalismo, ou da vida em Caldwell, ou da morte de seu pai.
Experiência pessoal parecia marcar as palavras que ele usara.
Mels passou os dedos sobre a cruz mais uma vez. Engraçado, ela nunca prestara muita atenção aos símbolos religiosos que as pessoas colocam nas lápides, fossem anjos com as asas erguidas, ou a Virgem Maria com o olhar redentor, ou as estrelas de Davi – seja lá qual fosse a religião, Mels sempre enxergara a simbologia como decoração, sem qualquer tipo de propósito divino.
Isso parecia diferente naquele momento.
Ficou feliz em ver que o espaço de terra de seu pai estava marcado com o símbolo da fé. Gostou também de lembrar que ele ia à igreja todo domingo – mesmo que ela, quando jovem, odiasse perder uma manhã de sono.
De repente, Mels rezou com um medo sem sentido de que ele não estivesse no Céu.
A ideia de uma pessoa amada ir para o Inferno seria... inimaginável.
Jim estava perdendo a cabeça.
Quando o corpo de Matthias desabou no sofá, sua boca tentava dizer algo... mas nenhum som saía. Como se houvesse um congestionamento em seu cérebro.
– Fale comigo – gritou Jim, tentando fazer o cara entender. – Você conhecia ela? Você a viu? Ela está bem?
A boca de Matthias abria e fechava, principalmente quando Jim o chacoalhou novamente.
– Matthias...
– A garota... ela está lá... – Matthias arrancou os óculos escuros e encarou Jim diretamente nos olhos. – No Inferno. A garota loira está lá. Eu estava com ela.
– Ela está bem? – que pergunta idiota. É claro que não estava. – O quê...
– Eu realmente estava lá – Matthias disse enquanto tentava se levantar, como se isso pudesse ajudar a clarear a mente. – E eu fui trazido de volta... por que fui trazido de volta? O que é que eu tenho que fazer?
Mesmo com uma grande parte de seus pensamentos presos em Sissy, Jim se forçou a voltar para o jogo: este era o momento que tanto esperava. Esta era sua abertura.
Mas, droga... Sissy...
Ele limpou a garganta. Duas vezes.
– Ah, você voltou porque precisamos que faça a escolha certa desta vez.
– Escolha?
– Na encruzilhada – Jim rezou para que aquilo fizesse algum sentido. – Você, ah, vai chegar um momento em que você vai ter que fazer uma escolha e, se não quiser voltar para onde estava, terá que escolher o caminho dos justos e não fazer... o que costumava fazer.
– Então é verdade? Sobre o Céu e o Inferno?
– E você conseguiu uma segunda chance.
– Por quê?
– O demônio trapaceou.
Matthias focou os olhos abruptamente em Jim.
– Você esteve lá. Lá embaixo... oh, meu Deus, você esteve lá... e aquela mulher, aquela coisa... merda, a enfermeira!
– Como é?
– A enfermeira que cuidou de mim no hospital depois que fui atropelado. Que me encontrou no hotel!
Por um momento, Jim quis socar a própria cabeça.
– Deixa eu adivinhar. Uma morena?
– Era ela lá embaixo. E você estava com ela... ela amarrou você... – o cara parou de repente. – Hum, sim... você esteve lá.
Ótimo. Que merda maravilhosa.
Matthias estava assistindo quando Devina torturou Jim.
Então o anjo pensou em uma coisa. Se Matthias assistira, então Sissy também devia ter... Deus, e ele pensara que ela ter visto o final já era ruim o bastante...
O desejo de matar fez seus punhos se fecharem.
– Exatamente como você está envolvido nisso tudo? – Matthias exigiu saber, seus olhos se apertando cada vez mais.
O som de um estouro ao longe cortou qualquer resposta que Jim pudesse dar: era um som muito familiar, que ele não podia confundir com outra coisa. Mas não podia ter ouvido certo, podia?
Não, pensou enquanto sacava sua arma, aquilo fora um tiro acertando madeira. A confirmação veio quando Adrian apareceu de repente no apartamento. O anjo segurava uma arma e parecia muito frustrado.
– Temos companhia – ele gritou.
– Não é Devina – Jim teria sentido sua presença e, por mais que quisesse ver a cadela e poder ter uma conversinha com ela, não sentia nenhuma vibração ao redor.
– Não, é outro tipo de visita.
Merda. Agentes das Operações Extraoficiais deviam ter vigiado o Marriott e visto quando eles saíram. Não era uma surpresa – era apenas uma péssima hora para acontecer, considerando que Matthias ainda estava com o interruptor desligado – ele estava melhor, mas não bem o bastante para aquele tipo de ação.
– Deixa que eu vou lá fora – Jim disse com uma voz monótona. – Eu sei como é o treinamento desses caras...
– O que está acontecendo? – perguntou Matthias, se levantando.
– Nada.
– Nada.
Matthias agarrou sua arma com uma energia surpreendente.
– Eu vou...
– Você vai ficar aqui com Adrian.
– Vá se foder.
– Para sua informação, você é o alvo desses caras.
– E você acha que isso vai me fazer atirar pior? – Matthias olhou para Adrian. – O que você viu lá fora?
– Não vi muito. Ouvi um galho quebrando e, quando virei, vi um vulto se mexendo. Um segundo depois fui atingido...
Houve um momento de silêncio quando Ad percebeu o que havia dito. E Matthias também.
– Você precisa de um médico? – Matthias perguntou.
– Não, estou bem.
Quando o anjo se virou, eles puderam ver um buraco do tamanho de uma ervilha em sua jaqueta – precisamente no centro de suas costas, ao estilo execução. Claramente, as Operações ainda ensinavam os recrutas a atirar para matar. Se Adrian estivesse vivo da maneira convencional, teria morrido em segundos, os músculos de seu coração teriam virado um hambúrguer dentro do peito.
Aquele agente deve ter se surpreendido quando seu alvo meramente olhou para trás, como se alguém tivesse jogado uma pipoca nas suas costas em uma sala de cinema... e depois desapareceu.
– Você deve estar usando um colete realmente bom – Matthias murmurou.
– Fica aqui – mandou Jim. – Ad, você...
E de repente começou uma ventania. O uivo do vento significava muito mais do que uma mudança da estação; a luz desapareceu no céu não por causa de uma grande tempestade, mas porque os lacaios do demônio haviam chegado.
Merda, só de olhar para Adrian, Jim soube que tinham problemas. O rosto do anjo tinha aquela expressão que dizia que não era hora para brincadeira. Pegando sua adaga de cristal, ele se desmaterializou na frente de Matthias, jogando-se na luta sozinho, obviamente preparado para morrer lá fora.
– Será que eu estou vendo coisas? – Matthias disse calmamente.
Jim olhou para seu rosto incrédulo e sacou a própria adaga.
– Você fica aqui. Nós cuidamos disso.
Matthias não parecia tão abalado pelo desaparecimento. Afinal, ele acabara de lembrar uma parte de sua história e aceitar que demônios existiam de verdade – e a realidade é bastante maleável se você a olhar de perto.
Mas ele começou a checar sua arma mesmo assim, pronto para usá-la.
– Nem pense nisso – Jim disparou. – Eu preciso que você fique seguro.
Correndo até a porta, ele olhou para trás para ver se o cara tinha prestado atenção, mas o que chamou sua atenção não foi Matthias. O Cachorro tinha se aproximado do lugar onde Eddie estava e sentou bem do lado da porta... como se estivesse protegendo os restos sagrados do anjo.
O que era bom.
A essa altura, ele aceitaria qualquer tipo de ajuda.
Quando Matthias abriu um pouco as cortinas para olhar lá fora, Jim desmaterializou-se e rezou para conseguir manter as coisas sob controle antes que seu ex-chefe tivesse alguma ideia brilhante.
A última coisa que precisava era de dois malucos lutando ao seu lado.
CAPÍTULO 35
Enquanto Matthias observava pela janela, ele sentiu um cheiro muito ruim – e não em um sentido convencional, como se alguém tivesse deixado um prato de comida estragada na cozinha. Esse fedor invadia não apenas seu nariz: penetrava até os poros de sua pele, fazendo seu estômago revirar... e ele sabia muito bem o que era.
Aquilo era a manifestação do Inferno no qual estivera preso. Era a horrível infecção que apodrecia em sua carne.
Aquilo estava de volta.
Estava de volta para pegá-lo.
Um medo paralisante tomou conta de seus membros, congelando-o no lugar, deixando-o incapaz de pensar ou agir. A tortura e o desamparo, a maldita eternidade... ele não poderia aguentar novamente a miséria que encontrara no Inferno.
Mas foda-se essa merda.
O guerreiro dentro de si surgiu para acabar com aquelas emoções, a lógica fria que por tanto tempo o definira voltou a controlar sua mente, fechando a porta para qualquer coisa além do fato de que eles não o pegariam de novo. Ele não voltaria para aquele lugar de jeito nenhum.
Matthias não se importava com o que precisaria sacrificar ou quem teria de matar – ele não seria vencido novamente.
A arma estava carregada. O corpo estava preparado. A mente estava alerta.
Era disso que tinha certeza. O resto ele descobriria na marra.
Uma rápida busca por saídas alternativas resultou em uma grande resposta negativa: parecia que a porta principal era a única entrada e saída – a menos, é claro, que se considerassem as janelas.
No banheiro, encontrou exatamente o que procurava: uma janela grande o suficiente que abria para a mata dos fundos. Uma rápida checagem e pensou, merda, o céu já estava escurecendo. O sol estava não apenas coberto, mas inteiramente consumido por uma grossa camada de nuvens que surgira sabe-se lá de onde. Mas uma súbita tempestade não era o que preocupava: na terra, em meio aos pinheiros, sombras se moviam, e não porque alguém estivesse andando com uma lanterna na floresta.
Uma fúria explodiu em seu peito. Encruzilhada? Foda-se... o que ele queria era vingança. Nesse momento, ele tinha uma chance de acertar as contas com aqueles cretinos e com certeza iria acabar com eles.
Ao abrir o fecho da janela, Matthias de repente começou a se sentir o cara mais popular do pedaço, e estava totalmente preparado para retribuir a atenção para quem quer que fosse – agentes das Operações, policiais, demônios, o que aparecesse pela frente.
A janela se abriu por completo como em sonho, suave e silenciosamente, mas deixou a ventania de fora entrar, o ar gelado acertando diretamente seu rosto. Impulsionando o corpo através da abertura relativamente pequena, ele estava agradecido por duas coisas: primeiro, por não possuir mais seu antigo corpo – pois seus ombros largos e peito inchado teriam dificuldade para passar por ali; e segundo, por estar escuro lá fora como se fosse noite, mesmo ainda sendo o meio da tarde.
Isso era bom: a camuflagem era sua melhor arma – no momento, ele era um alvo fácil.
A janela ficava a um metro e meio do chão, com um parapeito que dava a volta completa na garagem. Em uma série de movimentos, Matthias se virou, plantou a ponta dos pés no parapeito e fechou a janela. Se fosse para a direita, teria de passar pelo canto que dava na escadaria da frente. E para a esquerda? Havia um telhado inclinado que cortava a distância até o chão e aumentava as chances de conseguir aterrissar sem quebrar sua perna ruim como se ela fosse de vidro.
Obviamente, decidiu pelo lado esquerdo.
Arrastando-se pelo parapeito, ele segurou na armação da janela pelo tempo que pôde; depois teve de agarrar com as unhas a parede da maneira que fosse possível, tentando manter o centro de gravidade para impedir que seu traseiro o derrubasse.
O vento não estava ajudando.
Mas conseguiu chegar até o telhado inclinado.
Sem perder tempo, rastejou até a borda e pulou. No instante que atingiu o chão em meio a folhas mortas, Matthias se abaixou e sacou a arma. Por todos os lados, podia ouvir sons de movimentos, sugerindo que havia muitas pessoas, coisas, seja lá o que fosse, na floresta atrás da garagem.
Ele não mexeu nada além dos olhos.
A falta de percepção de profundidade dificultava atirar a longas distâncias, e por causa disso, e também por sua mobilidade comprometida, a melhor coisa a fazer era esperar.
Se Maomé não vai à montanha...
Alguém estava se aproximando rapidamente pela esquerda, pisando com força e fazendo o chão vibrar.
Matthias apontou sua arma calibre quarenta na direção do movimento.
Uma sombra tridimensional surgiu do abrigo da garagem: era uma criatura ambulante sem forma e sem rosto se movendo de uma forma sobrenatural. Mas algo não estava bem em seu mundo grotesco: a coisa parecia estar ferida e deixava um rastro de fumaça negra, como se estivesse fugindo para salvar a própria vida.
O que veio depois atrás daquilo obscurecia a distinção entre o bem e o mal – o colega de Jim parecia um anjo vingador ao perseguir aquilo que claramente era sua presa. Com uma adaga de cristal levantada acima do ombro e o rosto distorcido com a fúria de um guerreiro, Adrian estava obstinado a matar aquele demônio.
E foi exatamente o que ele fez, bem na frente de Matthias.
O homem pulou no ar e alcançou sua presa, mesmo que o demônio corresse o mais que podia. Aquilo não poderia terminar bem – a ponta daquela frágil adaga estava na direção certa, mas não adiantaria muito: a “arma” não parecia forte nem para cortar papel.
Errado.
Quando a ponta penetrou a nuca da criatura, a sombra soltou um urro que era como metal raspando metal – exatamente o som que Matthias ouvira durante os séculos que passou no Inferno. E então o demônio caiu com o impacto e Adrian jogou o peso do corpo em cima para prendê-lo onde estava.
O que aconteceu em seguida foi algo saído de um cinema IMAX-3D. O colega de Jim incapacitou a criatura cortando pedaços dela – um braço aqui, uma perna ali – e foi nesse momento que o sangue começou a jorrar. Na verdade, era um ácido. Uma gota caiu na mão de Matthias e ele praguejou ao sentir a queimadura, imediatamente esfregando a mão na terra...
Nesse momento, uma segunda sombra saltou de trás de uma árvore, como se a aparição tivesse sido desovada pelo próprio tronco. Mas Adrian estava pronto e se virou imediatamente, enquanto a primeira criatura se contorcia no chão da floresta.
Desta vez, ele não perdeu tempo. Acertou um golpe bem no meio da cabeça; esse parecia ser o ponto exato para matar os cretinos. Após outro grito ensurdecedor, a sombra se foi, evaporando em um piscar de olhos...
Assim que Adrian se virou de volta para o demônio no chão, mais dois saíram do tronco que havia libertado a outra sombra, como se a árvore estivesse cuspindo as criaturas para fora.
Matthias não hesitou. Um ódio acumulado fez sua força dobrar e ele pulou, descarregando sua arma nas duas criaturas e fazendo o sangue ácido voar por todos os lados enquanto os demônios corriam em sua direção.
– Venham me pegar! – ele gritou.
Adrian começou a praguejar, mas que se dane. Matthias libertou sua ira e encarou o combate mano a mano, puxando o gatilho de uma maneira controlada enquanto ia ao encontro do inimigo.
– Pegue uma adaga!
Em meio à fúria, ele ouviu o comando do outro homem e olhou por cima do ombro por uma fração de segundo. No instante em que fez isso, uma daquelas adagas de cristal surgiu em seu raio de visão, voando pelo ar em uma trajetória perfeita.
Matthias a agarrou no ar com sua mão livre, e entrou em ação imediatamente, seus instintos tomando conta da situação. Com movimentos coordenados, usou a pistola para segurar um demônio na esquerda enquanto cravava a adaga na têmpora da sombra que estava à direita.
Até mais, otário.
Sem hesitar nem por um segundo, ele se virou para o outro e fez igual, mesmo que o ácido estivesse jorrando para todo lado e sua pele estivesse exposta – e aquela coisa doía mesmo.
Mais sombras começaram a surgir.
Era um dilúvio de inimigos, e as balas de Matthias tinham acabado.
Ele jogou a pistola inútil para o lado e se preparou para o que estava por vir. Encruzilhada, não é? Pelo jeito a hora havia chegado – e se a decisão correta a que Jim Heron se referia fosse seu desejo de lutar?
Então, ele sabia o que tinha de fazer.
Quando o demônio mais próximo atacou, ele sentiu um instante de tristeza porque não iria mais encontrar Mels. Esse era o fim. Sabia que não sairia vivo daquela batalha.
Mas... se existia um tipo ruim de vida após a morte, então talvez também existisse um Céu. Talvez ele ascendesse desta vez ao invés de cair.
Talvez pudesse de alguma maneira reencontrar Mels para lhe contar que anjos existem.
Pois agora ele tinha certeza.
Ela era um deles.
Na frente da garagem, Jim estava invisível esperando o agente das Operações aparecer. No instante que isso acontecesse, ele entraria em ação e colocaria a arma para funcionar bem na cabeça do cretino – Jim não iria correr riscos com Matthias, e realmente não queria que Devina aparecesse do nada para “salvá-lo” de novo.
Já havia demônios o suficiente na floresta.
E estava torcendo para que Adrian conseguisse mantê-los sob controle.
Aliás, o fato de que os lacaios e o agente apareceram na mesma hora não cheirava bem – e fez Jim se preocupar com aquela repórter. Geralmente, a boa sincronia de Devina significava más notícias para Jim, e ele não achava que aquilo seria exceção.
Onde está você, pensou, enquanto observava a silhueta das árvores, esperando uma inevitável revelação. A bala não fora atirada por uma sombra, disso ele sabia – e ninguém além dela sabia onde eles estavam ou tinha motivo para aparecer com um presentinho de chumbo.
Um grito horrendo, vindo de trás da garagem, fez Jim estremecer. Seu corpo estava preparado e querendo se juntar à luta que acontecia na floresta. Mas Matthias estava lá em cima na sala e Jim não daria chance para o agente se infiltrar e matar seu ex-chefe.
No Inferno. A garota loira está lá. Eu estava com ela.
Jim estalou os dedos. Seu desejo de vingança estava cada vez mais difícil de controlar e aquela fúria quase transbordando ameaçava acabar com ele de uma maneira que as torturas físicas de Devina nem chegariam perto. Aquela cadela fora esperta... matando aquelas outras mulheres. Manteve Sissy em primeiro plano para ele, tão visível como um letreiro luminoso, alto como um alarme de incêndio.
Foi a coisa mais eficiente que o demônio fizera até agora para abalar a cabeça de Jim...
À direita, uma sombra se moveu – e não era do tipo de Devina. Era um homem vestido de preto da cabeça aos pés, o rosto coberto por uma máscara.
Jim observou, de sua posição invisível, enquanto o agente se movia de árvore em árvore. Seu foco era admirável. Apesar do clima horrível, da movimentação que acontecia nos fundos e da relativa falta de cobertura, o cara era um exemplo de cálculo frio, dava cada passo exatamente onde deveria. E estava bem equipado, com uma bela arma com silenciador e sem dúvida com um colete à prova de balas sob o casaco preto – afinal, agentes eram difíceis de achar por aí, difíceis de treinar e extremamente caros de manter.
Não era o tipo de recurso que se pode desperdiçar.
Não havia reforços, pelo menos não que Jim conseguisse ver ou sentir. Agentes até trabalhavam em pares de vez em quando, mas isso era raro e geralmente acontecia apenas quando havia alvos múltiplos.
E, claramente, aquele agente estava ali apenas para pegar Matthias.
O que não aconteceria. Não se dependesse de Jim.
Cruzando o caminho de cascalho, ele se aproximou e sem perder tempo com nenhum tipo de show ou grande revelação, aparecendo do nada só para surpreender o cara.
Em honra à tradição na qual fora treinado, Jim simplesmente deixou o outro homem passar e então o seguiu, sem ser notado mesmo quando voltou a ficar visível. Então, com rápida coordenação, ele agarrou os dois lados da cabeça do agente e quebrou seu pescoço com um único movimento. Quando o corpo relaxou, Jim o deixou cair onde estava e ficou alerta para defender seu terreno, apenas para o caso improvável de haver na floresta outro agente, pronto para pular em cima dele.
Ficou ouvindo as batidas do próprio coração.
Esperou mais um pouco até ter certeza de que fora um trabalho solo. Então passou por cima do recém-morto e começou a correr até os fundos...
Isso é o que eu chamo de luta, pensou.
Demônios estavam surgindo como enxames pelo terreno dos fundos, atacando Adrian e... merda, aquele era Matthias com uma adaga de cristal?
Com certeza parecia.
E estava conseguindo se defender.
O primeiro impulso de Jim foi de pular e entrar na luta, mas ele se segurou. Essa emboscada estava óbvia demais. E não achava que os lacaios matariam Matthias – não, não com Devina interferindo como fez no Marriott.
Observando a luta com os olhos estreitos, ele assoviou uma vez, o som alto e agudo cortando os grunhidos e palavrões. Quando Adrian olhou para ele, Jim levantou as palmas – um sinal universal que perguntava “você cuida disso?”.
Quando Adrian assentiu e voltou ao trabalho, Jim deu outra olhada em Matthias. O maldito estava muito bem, de alguma maneira aquele corpo quebrado funcionava com uma coordenação letal que derrubava várias criaturas em sequência – e não porque os lacaios estivessem facilitando as coisas.
Estavam, porém, focando em Adrian: nenhum deles se dirigia a Matthias até ser forçado.
Devina definitivamente dera a ordem para os demônios não matarem Matthias: Jim já lutara com eles o bastante para saber que eram capazes de uma estratégia ofensiva muito melhor do que aquela – e a luta de Adrian era prova disso.
Hora de ir.
Jim voltou para a frente da garagem e deu uma camuflada no cadáver para o caso improvável de alguém se perder, vir parar ali e encontrar um cara morto como tapete de boas-vindas.
Então voou dali, usando as Vias Aéreas dos Anjos até o centro de Caldwell.
A repórter era quem estava realmente exposta naquele momento, e era com ela que Jim deveria estar.
CAPÍTULO 36
Pelo que Adrian podia perceber, o último lacaio aparecera pouco depois de Jim desaparecer.
No instante em que o anjo se foi, a fonte de demônios de Devina secou – prova de que a razão do ataque era manter o cara ocupado naquele local.
Dez minutos depois, a última sombra foi eliminada pela adaga de cristal de Matthias.
Ao virar e olhar para seu parceiro, Adrian o encontrou com a respiração ofegante e os ombros fumegando por causa do sangue ácido que lhe atingira.
Aquele aleijado filho da puta com certeza conseguira se recompor bem na hora.
– Você está bem? – Ad perguntou, ofegante.
Os joelhos de Matthias fraquejaram e ele cedeu à gravidade, deixando seu corpo cair sentado no chão – ao menos até a poça de sangue negro começar a corroer sua calça de moletom.
Ele pulou e se levantou como se tivesse sentado em pregos.
– Merda! Essa coisa é...
– Não esfregue seu traseiro com a mão, idiota. Ela vai ficar coberta de ácido.
E foi assim que Matthias acabou baixando as calças na frente de Ad.
O cara praticamente rasgou a frente do moletom preto, e então sua bunda branca e pernas finas fizeram uma aparição não programada.
– Melhorou? – Ad disse secamente, enquanto olhava ao redor.
– Fora o vento na minha bunda, sim, melhorou.
Os olhos de Ad pousaram na parte inferior do corpo de Matthias... e, por alguma razão, ele pensou naquela repórter no quarto do hotel na noite anterior, os dois em um intenso clima erótico, mas sem chegar a lugar algum.
Deve ter sido difícil, pensou.
Limpando a garganta, ele acenou para a garagem.
– Eu tenho roupas lá dentro pra você.
– Eu gostaria disso.
Matthias se abaixou, usou a adaga de cristal para cortar o resto das calças e então se livrou delas, deixando os retalhos fumegantes no chão.
Então olhou para Adrian e jogou a adaga em uma trajetória perfeita até suas mãos.
– Obrigado pela arma. Foi divertido.
Ele se virou e começou a andar até a garagem.
Sem perguntas. Sem exigir explicação. Apenas um agradecimento por ter participado da festa.
Adrian o seguiu, pensando que Jim estava certo sobre seu ex-chefe. Mesmo seminu e com parte de suas roupas ainda fumegando, o cara estava completamente inabalado e soube se virar muito bem na batalha – era o tipo de pessoa que Ad gostava de ter como companheiro.
Matthias parou quando chegou na frente da garagem.
– Parece que tivemos outro tipo de companhia.
Realmente, pensou Ad.
O agente morto estava caído como um tapete de boas-vindas no limite da floresta, com metade do corpo sobre o caminho de cascalho. Sua aparência não era nada agradável: ele estava de barriga para baixo, mas a cabeça fora totalmente torcida para trás, deixando os olhos mortos vidrados no céu.
Deve ter doído.
Ad se aproximou e se abaixou.
– Vá buscar as roupas e deixa que eu cuido disso...
– Sem chance – quando Ad olhou para cima, Matthias plantou os pés no chão e começou a encará-lo. – Aquelas criaturas na floresta são do seu mundo. Mas este cara aí – apontou com o dedo para o defunto – é do meu mundo. Vá pegar umas calças pra mim enquanto eu revisto esse cara.
Bom, quem diria, só porque a ferramenta do cara não funcionava mais, não significava que ele era uma mocinha.
– E traga um cinto – murmurou Matthias enquanto ajoelhava no chão e começava a mexer no cadáver como se fosse um abutre. – Eu não uso mais o mesmo tamanho que você.
Adrian não era do tipo que recebe ordens, especialmente de um mero humano. Mas o ex-chefe de Jim conquistou seu respeito na floresta, e não tinha como discutir, não ao ver a maneira como Matthias lidava com o corpo de um homem enviado para matá-lo.
Após fazer uma rápida busca na propriedade para ter certeza de que não havia mais perigo, Ad se transportou para dentro do apartamento – não havia razão para esconder seus poderes, considerando o foco com que Matthias revistava o corpo do agente. Depois de uma rápida checagem com o Cachorro e Eddie – os dois estavam no lugar onde deveriam estar – ele pegou um par de calças (de couro, para o caso de uma nova luta) e procurou alguma coisa, qualquer coisa que pudesse servir como cinto.
Quando voltou, Ad jogou as calças ao lado do traseiro nu de Matthias.
– Toma.
O cara parou a revista e começou a se levantar. Quando suas pernas fraquejaram, Adrian ofereceu ajuda.
Matthias o olhou como se quisesse matar o anjo, mas quando sua segunda tentativa também falhou, ele agarrou a mão de Adrian, que não precisou de nenhuma força para fazer o cara levantar, bastou um puxão sutil.
Quando Matthias abaixou a cabeça para tirar os tênis Nike, Ad sentiu uma pontada no peito. Ter uma deficiência era praticamente um tipo de maldição. Mesmo assim, apenas com a força de vontade Matthias fizera o trabalho de um homem completo na floresta – chegara até a impedir que Ad se machucasse.
– Obrigado – disse Adrian.
As sobrancelhas de Matthias se levantaram – o que aparentemente era o máximo de surpresa que ele se permitia demonstrar.
– Pelo quê?
– Por me ajudar.
– Você poderia ter vencido sozinho – ele disse asperamente enquanto começava a se vestir.
As calças de couro ficaram muito largas, e quando Adrian ofereceu um fio elétrico, o olhar que recebeu de volta não foi dos mais amigáveis.
– É o melhor que pude fazer.
Matthias fez o que era preciso, passando o fio nas alças da cintura, apertando e dando um nó na frente. Então, estava pronto para voltar ao trabalho.
– Nada de celular, a identidade tem uma foto, nada mais que isso. Tem munição, corda de piano e uma faca boa... não tão boa quanto a que você carrega, é claro – Matthias olhou ao redor. – Precisamos encontrar o carro dele e tirar o cara daqui. Eles vão mandar outros, mas temos que limpar esta bagunça antes que as coisas se compliquem e o necrotério do St. Francis corra o risco de perder outro cadáver.
– Vou pegar as chaves da caminhonete. Enquanto isso, vamos deixar ele na garagem.
– Entendido.
Ad andou até a F-150 que Jim dirigia antes de ser convocado para a luta entre o bem e o mal. Quando ele deu a ré na caminhonete, Matthias já tinha amarrado as pernas e braços do agente e estava arrastando o corpo até a garagem.
O esforço o fazia mancar como se alguém tivesse acertado sua perna ruim com um taco de beisebol. E quebrado o taco ao meio.
Adrian se aproximou e levantou o torso do agente. Sem comentários. Sem conversa.
– Está com medo que ele acorde? – Adrian perguntou, acenando para o fio de cobre que Matthias usara para amarrar o corpo.
– Ultimamente, não duvido de nada.
A caminhonete que Adrian tirou da garagem não era nova, mas estava em boas condições. Infelizmente, o mesmo não podia ser dito sobre Matthias, que resmungava enquanto arrastava seu corpo cansado até o banco do passageiro com a ajuda da bengala.
Ele estava velho e em más condições.
A luta da qual gostara tanto de participar ainda não tinha acabado, até onde seu corpo sabia: cada facada, cada revide, cada soco ainda reverberava em suas juntas e músculos. Ele sentia como se tivesse saído de um acidente de carro.
De novo.
Mas gostou. De tudo... desde as mortes até a limpeza. Parecia um cenário familiar, um lar no qual vivera por muito tempo.
Adrian passou pela casa branca da fazenda, que parecia estar desocupada, e freou ao chegar na estrada principal.
– Alguma preferência? – ele perguntou.
Assim como na luta, a análise surgiu na mente de Matthias com perfeita clareza e confiança:
– O agente teria passado por ali primeiro, vindo do centro da cidade, pois teria dirigido desde Washington D.C. pela Northway até Caldwell. Então ele deve ter passado duas vezes aqui para checar.
– Então vamos para direita.
– Não, vamos para a esquerda. Ele deve ter checado uma terceira vez antes de identificar o melhor lugar pra deixar o carro. Então, depois de achar esse lugar, teria localizado outro, menos óbvio – Matthias acenou para essa direção. – Esquerda.
– Por acaso vocês todos usam o mesmo cérebro?
– Eu tinha uma estratégia para recrutamento e sempre procurava pelo tipo ideal de pessoa.
– E qual era esse tipo?
Matthias focou nos olhos do homem ao seu lado.
– Igual a você. Mas sem todos esses piercings no rosto.
– Acho que vou ficar encabulado.
Ao virar à esquerda, Matthias deixou um sorriso escapar e então começou a procurar pelo acostamento da estrada. Eles definitivamente estavam no meio do nada, com grama alta e arbustos crescendo sem controle dos dois lados do asfalto.
Andaram um quilômetro. Três quilômetros. Cinco quilômetros...
– Ali – ele disse, apontando para frente no para-brisa, mas nem precisava, pois Adrian não podia deixar de enxergar o Taurus parado no meio do mato.
Adrian diminuiu a velocidade e passou devagar ao lado do carro, para que eles pudessem checar os arredores. Parado como se estivesse quebrado, o carro não chamava nenhuma atenção, com exceção de um adesivo brilhante da polícia de Caldwell – como se algum policial já tivesse passado por ali e emitido uma notificação dizendo que o carro seria guinchado se o dono não o retirasse dali.
Adrian deu meia-volta e aproximou a caminhonete.
– Você tem certeza de que...
Matthias saiu da F-150 e retirou o adesivo com facilidade.
– Se isso aqui fosse de verdade, o adesivo não sairia tão fácil.
Jogando o “selo” na caminhonete, ele deu um passo para trás e olhou para os dois lados. Não havia ninguém por perto e nenhum carro na estrada, nas duas direções.
Matthias então levantou a bengala e... estilhaçou a janela do carro.
Colocando a mão lá dentro, ele destrancou e abriu a porta. Nenhum alarme tocou – mas agentes das Operações nunca colocam alarmes nos carros. A primeira diretriz, além de assassinar seu alvo, é não chamar atenção – nunca. Isso apenas causava estragos que precisavam ser limpos depois.
Naturalmente, o agente não carregava as chaves, mas isso também fazia parte do protocolo. Eles não deixavam nada para trás, nada de corpos, nada de armas – e nada de carros também. As chaves ficavam debaixo do porta-malas, para que a equipe de limpeza pudesse tirar o carro dali – mas Matthias não tinha tempo para entrar no meio do mato e ficar procurando-as.
Ele se virou.
– Posso pegar uma das suas adagas?
Quando Adrian lhe ofereceu uma adaga ainda dentro da bainha, Matthias se sentou atrás do volante e colocou a ponta em uma junção do painel que cobria a coluna de direção. Com a palma da mão, ele forçou a lâmina e chacoalhou até que a cobertura de plástico se soltou, expondo os mecanismos do painel.
Até onde se sabe, os carros hoje em dia já não funcionam como no passado, quando era possível invadi-los, fazer uma simples ligação direta e sair com eles por aí.
Uma ótima notícia para os motoristas em geral. Mas não ajudava muito quando seu objetivo é ter flexibilidade para cometer assassinatos. Por isso, todos os carros das Operações Extraoficiais eram modificados para esse tipo de infiltração. Se a pessoa não conseguisse achar as chaves, se não tivesse tempo para encontrá-las, se incontáveis inimigos estivessem à sua espreita, bastava entrar e sair dirigindo.
Cruze os fios. Pise no acelerador. Pé na estrada.
Quando eles voltaram para a garagem, Matthias estacionou na vaga da caminhonete e se arrastou para fora do carro. Apoiando-se no porta-malas do Taurus, ele se endireitou e procurou com as mãos até...
Lá estava. Encontrou uma caixa magnética pequena, fina como um dedo.
Mas ela tinha um teclado para digitar uma senha. Ele tinha esquecido dessa parte...
Em um canto de sua mente, uma série de quatro dígitos começou a surgir, prestes a entrar completamente no seu consciente.
Adrian entrou na garagem.
– O que você...
Matthias levantou a palma da mão.
– Espere um segundo.
Fechando os olhos, ele mudou de tática. Forçar e lutar contra sua memória não estava funcionando, então talvez uma tática passiva funcionasse.
E talvez ele não desmaiasse como da última vez, um pouco antes de serem atacados.
Respira. Respira. Respira...
A senha se livrou das amarras que a prendiam em seu subconsciente e surgiu – junto com outras coisas... muitas outras coisas.
De uma vez só, ele foi atingido por várias senhas, combinações alfanuméricas e até sequências de cores.
Sentiu seu braço ser agarrado. Era o colega de Jim.
Boa sincronia, pois naquele momento suas pernas começaram a fraquejar e uma tontura fez seu corpo se contorcer como uma bailarina, mesmo não se mexendo.
Sobrecarregado, ele pôde apenas assistir ao show que passava diante dos olhos, uma lista aparentemente infinita se revelando com toda a graça de um touro que investia contra uma multidão.
Mas ele absorveu toda a informação.
Principalmente quando outras coisas começaram a surgir. Coisas como contas de banco, páginas da internet e... arquivos pessoais.
CAPÍTULO 37
– Monty, onde você está...? Seu cretino de boca grande...
Olhando para o relógio, Mels voltou para o embarcadouro nas margens do rio para checar novamente se sua fonte não teria entrado pelo lado oposto. Nada. Estava sozinha em meio às prateleiras de remos e pilhas de boias, debaixo do grande teto e dos ninhos das andorinhas.
Quando Monty ligou de novo dizendo que queria encontrá-la, Mels se recusou a participar daquela brincadeira de siga-o-líder-através-do-parque, e o atraso a fez pensar que talvez ele tivesse ficado bravo por ela ter cortado seu barato.
– Merda!
Por todos os lados, andorinhas entraram voando pelas janelas. Mels precisou se abaixar e cobrir a cabeça enquanto as aves circularam por um minuto e então voltaram a sair.
– Monty, onde você está? – ela disse para o vazio ao seu redor.
Andando até um dos ancoradouros, ela observou a superfície da água. Não poder ver o fundo era um pouco perturbador. Fazia a pessoa se perguntar o que realmente havia lá embaixo...
Um ruído a fez levantar a cabeça.
– Monty?
Ao longe, uma criança gritava de felicidade. Mels ouviu também uma buzina.
– Tem alguém aí?
De repente, a luz do sol diminuiu, como se Deus tivesse decidido economizar energia ou talvez alguém tivesse jogado uma cobertura sobre Caldwell.
Na escuridão, o interior do embarcadouro parecia se fechar sobre ela.
Certo. Hora de ir.
Mels colocou a mão dentro da bolsa enquanto se dirigia para a saída – uma pontada de paranoia a fez segurar seu spray de pimenta.
Antes que ela pudesse sair, alguém passou pela porta.
– Monty?
– Desculpe pelo atraso.
Ela relaxou ao som da voz familiar.
– Eu estava quase desistindo de você.
– Eu nunca iria te decepcionar.
Mels franziu a testa quando o homem deu um passo à frente. Depois outro.
– Que perfume é esse que você está usando?
– Você gosta?
Deus, não. Parecia que ele precisava de um banho.
– Então... você disse que conseguiu algo para mim?
– Ah, sim, eu realmente consegui.
Ao se aproximar, ele se colocou entre ela e a saída. Então ficou bem à sua frente, as mãos no bolso, a cabeça baixa, como se olhasse para os próprios pés.
Aquela criança, que provavelmente estava brincando lá fora no balanço do parque, riu novamente. O som invadiu o espaço onde estavam e fez Mels se sentir ainda mais isolada.
Preciso dar o fora daqui, ela pensou.
– Olha, Monty, eu preciso ir...
E foi nesse momento que o homem olhou para cima, revelando olhos negros que brilhavam ameaçadores. Aquele não era Monty. Mels não sabia quem diabos era...
Ela atacou primeiro, fechando o punho e acertando um soco bem no queixo do cara. Sua cabeça foi jogada para trás e Mels desferiu outro golpe na barriga, que o fez dobrar-se para frente de novo, trazendo seu rosto de volta ao alcance das mãos. Prendendo os dois lados da cabeça dele, ela levantou a coxa e deu uma joelhada em seu nariz – depois o jogou para o lado.
Mels deu um impulso e correu para a porta...
Mas o homem estava lá. Bem na sua frente.
Virando rapidamente a cabeça, ela checou se não era um segundo agressor. Não era possível que ele tivesse se movido tão rápido.
Aqueles olhos. Aqueles olhos negros.
O que você diria se te contasse que acredito no Inferno? E não de um ponto de vista religioso, mas porque estive lá pessoalmente.
Ela começou a se afastar andando de costas, até que pisou em uma poça e escorregou. Ou talvez o homem com os olhos negros tivesse conseguido empurrá-la sem tocá-la e...
Ela estava em queda livre.
Mels jogou os braços para frente tentando agarrar alguma coisa que a ajudasse a restabelecer o equilíbrio...
Splash!
Atingir a água foi um choque. Frio e envolvente, o rio parecia agarrá-la, trazendo-a para o fundo e mantendo-a lá. Ela abriu a boca, que foi inundada por um gosto ruim enquanto Mels tentava desesperadamente subir para a superfície.
Não conseguiu ir longe. Sentia como se um redemoinho a puxasse para o fundo do rio Hudson.
Fechando os lábios para impedir que mais água entrasse pela boca, sentiu no peito uma queimação que rapidamente se transformou em um calor gritante, e o pânico lhe causou uma explosão de energia. Batendo os braços contra o turbilhão negro, ela lutou com a força recém-adquirida, usando toda a energia restante para salvar a própria vida.
Não conseguiu nada.
Braços e pernas diminuíram a velocidade.
O coração acelerou.
O fogo em seus pulmões se tornou vulcânico.
Após uma eternidade, o rugido abafado em seus ouvidos diminuiu, assim como o frio do Hudson e a dor em seu peito. Ou talvez essas coisas tivessem aumentado e ela estivesse apenas perdendo a consciência.
Como isso foi acontecer?
Como diabos isso foi acontecer?
Vagamente, ela se preparou para ver a vida passar diante dos olhos, pronta para encarar uma lista de arrependimentos e os rostos das pessoas de quem mais sentiria falta – o de Matthias com certeza estava nessa lista...
Em vez disso, ela apenas se sentiu mais sufocada e pensou, que droga, então seria assim que tudo terminaria?
Aquele seria um último pensamento muito sem graça.
Seguindo o feitiço de localização que lançara sobre Mels, Jim apareceu em uma instalação de um clube de barcos nas margens do rio Hudson. Acima, o céu estava fechado, com nuvens tão pretas que poderia muito bem ser meia-noite em vez de meio da tarde, mas não era isso que o preocupava.
No instante em que chegou ao local, a presença de Devina se revelou como um grito que percorreu sua coluna até arrepiar os cabelos na nuca.
E então, o sinal da repórter desapareceu.
Irrompendo pela porta aberta, ele parou de repente quando viu Devina sozinha lá dentro, com seus saltos agulha plantados em uma das baias de ancoragem.
– Surpresa! – ela disse, levantando o queixo e arrumando o cabelo por cima do ombro.
Por uma fração de segundo, Jim quase partiu para cima do demônio. Ele queria colocar as mãos ao redor do pescoço dela, apertar enquanto ela se debatia, apertar até quebrar a espinha e separar a cabeça do corpo.
Mas a repórter era a razão para ele estar ali.
Investigando ao redor, Jim... não encontrou nada. Ninguém. Apenas as ondas quebrando contra a parede, espirrando água por todos os lados.
– Onde ela está? – exigiu Jim.
– Onde quem está?
Na água, ele pensou.
Ele deu um impulso e jogou o demônio para o lado, esperando que ela caísse sentada em seu traseiro enquanto ele começava a olhar em todas as baias vazias. Droga, as águas estavam turvas e a falta de luz atrapalhava ainda mais.
– O que você está procurando? – ouviu Devina dizer.
Procurando ao redor, não encontrou nada além de águas revoltas – mas não se deixaria enganar. O demônio viera até ali por uma razão... e permanecia ali por outra.
– Quero que vá embora. Agora mesmo.
– Estamos em um mundo livre.
– Apenas se você perder.
Devina riu.
– Não é assim que vejo as coisas.
Jim se aproximou do inimigo e ficou cara a cara com ela.
– Vá embora. Ou vou te destruir aqui e agora.
Um brilho feroz surgiu no olhar dela.
– Você não pode falar assim comigo.
Antes que ele pudesse pensar, uma de suas mãos agarrou o pescoço de Devina: sua pequena fantasia se tornou realidade quando ele começou a concentrar energia em seu punho...
Do nada, uma fonte de luz invadiu o embarcadouro – não, espere, era ele. Jim estava brilhando.
Certo, que seja. Estava com tanta raiva que não se importava de parecer um abajur ligado no 220 – principalmente quando sua outra mão se juntou à festa. Por um momento, Devina apenas riu novamente, mas então alguma coisa mudou. Ela começou a engasgar e levantou as unhas para tentar soltar seu pescoço, primeiro com raiva, depois com algo mais parecido com medo.
Quando o brilho se espalhou por seu corpo, a luz ficou ainda mais forte, até que começou a produzir sombras – e Jim continuou apertando, empurrando Devina para trás até pressioná-la contra os remos que estavam pendurados nas prateleiras, onde usou o peso do próprio corpo para prender o demônio no lugar. Jim tremia com poder dos pés à cabeça, e de algum modo ele sabia que a estava excitando – mas não pelo mesmo motivo que ele estava ereto. Sim, teve uma ereção, mas qual parte de seu corpo não estava endurecida? Cada músculo estava flexionado, desde seu queixo até as coxas, ombros e traseiro.
Ele iria até o fim.
Aqui e agora. Foda-se Nigel e aqueles cretinos ingleses que eram responsáveis por ele. Foda-se o jogo, a guerra, o conflito – ou qualquer que fosse o nome. Foda-se tudo...
Algo explodiu atrás dele, fazendo água espirrar em suas pernas.
E então ouviu uma grande respiração que puxava todo o ar que pudesse, seguida de várias tosses compulsivas.
Jim quebrou sua concentração por uma fração de segundo para ver o que era – e isso era tudo o que Devina precisava. O demônio evaporou em suas mãos, transformando-se com um som agudo em uma nuvem negra de moléculas ... e então o atacou.
O impacto foi como dez mil picadas de abelha em cada centímetro da pele. Jim gritou, não por causa da dor, mas por causa da frustração, enquanto se contorcia no chão.
Devina não continuou o ataque. Em vez disso ela fugiu, sumindo no céu e juntando-se às nuvens enegrecidas acima.
Sumiu... por enquanto.
Com a cara no chão, Jim assistiu com um palavrão entalado na garganta enquanto o demônio desaparecia. E então ele viu a repórter salvando a própria vida.
Na baia mais próxima, um par de braços emergiu da água e mãos pálidas agarraram o muro com toda a força que tinham. Com um grande impulso, a mulher ergueu o corpo molhado e gelado para fora das profundezas do rio Hudson.
Ela acabou deitada ao lado dele, os dois parados enquanto se recuperavam.
– Nós... temos... – ela tossiu – que parar... de nos encontrar assim.
CAPÍTULO 38
Ao longe, alguém estava falando. Era o colega de Jim.
Matthias não conseguia se concentrar nos sons, seu cérebro estava congestionado com todos aqueles perfis, endereços de internet, códigos... lembrou-se até de seu primeiro endereço de e-mail e da sequência de números do cadeado de sua bicicleta na infância... além do arquivo de Jim Heron.
– Matthias, fala comigo! O que tá acontecendo? – mais do que uma pergunta, aquilo era uma exigência, e Matthias queria responder. Depois de enfrentar aqueles demônios e resolver a questão do cadáver, ele e Adrian tinham desenvolvido uma relação funcional. Então ele sentia que deveria responder.
Mas não conseguia falar.
Alguma coisa agarrou seu traseiro – não, espere, era o chão ou uma cadeira. Adrian o fez sentar. Piscando os olhos, tentou enxergar através do video game que passava em sua mente, mas não conseguiu.
– Matthias, cara, você precisa falar comigo.
Com as mãos tremendo, ele esfregou os olhos. Isso ajudou. Quando abriu de novo, conseguiu enxergar os piercings de Adrian bem de perto.
– Ei, você voltou? – disse Ad.
Depois de um instante, Matthias murmurou:
– Por que você fez isso?
– Eu não fiz merda nenhuma com você...
Ele balançou a mão em frente àquela cara zangada.
– Os piercings. Quer dizer, vamos lá. Você acha que precisa parecer ainda mais durão do que já é?
Depois de uma pausa, Adrian começou a rir.
– Ela era uma gostosa. Quanto mais piercings eu colocava, mais deixava eu passar um tempo com ela.
– Era uma garota que colocava os piercings?
– Sim.
– Então foi por causa de uma mulher?
Adrian deu de ombros.
– A dor fazia o sexo ainda melhor.
– Ah.
Matthias desviou o olhar. Estranho. Antes daquela péssima decisão de pisar em uma mina terrestre, ele encarava o sexo como apenas uma necessidade física, como comer e respirar. Mas agora... a perda dessa parte de si mesmo parecia tomar proporções épicas.
Porém, para ser honesto, isso tinha mais a ver com Mels. Se não a tivesse conhecido, ele provavelmente nem se importaria. Na verdade, não se importara durante os anos que viveu como um aleijado.
– Então, você acabou de ter um derrame ou algo assim? – perguntou Adrian.
– Só me lembrei de umas coisas – não fora divertido, mas, se continuasse assim, talvez ele lembrasse por que precisava ir até Manhattan.
– Mas agora você está bem.
O fato de Adrian não pedir detalhes – que Matthias não daria, de qualquer maneira – foi legal.
– Sim. Agora vamos voltar a tratar do nosso cadáver.
Quando tentou se levantar, sentiu como se suas pernas fossem feitas de papel, e percebeu que elas não iriam sustentá-lo sozinhas.
– Vou buscar sua bengala e óculos escuros – disse Ad, saindo da garagem.
Sozinho com seus próprios recursos, Matthias estava determinado a não ficar sentado ao lado da roda do carro como se fosse um pedaço de pano velho jogado fora. Esticou o braço, apoiou a mão no para-choque e, com um grunhido, deu um impulso e levantou-se.
Apalpando ao redor, ele se moveu apoiado no lado do motorista e abriu o porta-malas.
Matthias estava olhando para o espaço vazio quando Adrian voltou. Ele pegou a bengala, colocou o Ray-Ban e balançou a cabeça.
– Não vamos encontrar mais nada no carro. Os agentes nunca deixam nada pra trás – ele deu a volta e ficou em frente ao cadáver. – Eu digo que devemos jogar tudo no Hudson quando anoitecer.
Merda, ele tinha planos para o jantar.
– Pensando bem, vamos fazer isso à meia-noite – acrescentou enquanto fechava o porta-malas. – Ou melhor: às duas da madrugada.
– Você vai fazer alguma coisa de noite?
Quando Adrian o encarou, Matthias se fechou: ele não queria conversar sobre Mels. O problema era que não poderia pedir para mais ninguém fazer aquele trabalho, principalmente porque ele precisava ver com os próprios olhos o carro sumir nas águas. Até que sua memória voltasse por inteiro e estivesse seguindo seu caminho – seja lá qual fosse –, Matthias não podia arriscar qualquer envolvimento de terceiros.
Nada como um cadáver para fazer a polícia ficar no seu pé. E quanto às Operações Extraoficiais? Eles não deixavam barato se um agente sumisse.
Adrian passou a mão no queixo.
– E se eu disser que você pode fazer isso agora mesmo?
– Como?
– Confie em mim.
– Quem você pensa que é, o Houdini?
– Não. Não existe uma camisa de força grande o bastante para mim. Mas eu sei o que fazer.
Ele estava de pé e demonstrava calma. Seus olhos estavam compenetrados, sua respiração era pausada e emitia uma vibração de total confiança.
Matthias não dava a mínima para palavras. Mas estava disposto a apostar na emoção das pessoas.
A não ser, é claro, que o filho da puta estivesse delirando.
Matthias pensou na luta que travaram na floresta – para lutar como Adrian, eram precisos anos de treinamento e experiência no ramo de confrontos mortais.
– Então, qual é o seu plano? – perguntou Matthias.
– Descartamos o cara agora mesmo.
– No rio? Em plena luz do dia?
– Isso não vai fazer diferença no lugar em que estou pensando.
Matthias olhou para o cadáver e pensou com carinho na maneira como as coisas afundam na água.
– Vamos colocar ele no porta-malas.
Adrian se aproximou do corpo enquanto Matthias abria o porta-malas novamente. O cadáver já estava duro como pedra, o que facilitava para carregar, mas não para enfiar em um espaço relativamente pequeno: os dois tiveram de usar os músculos para dobrar aqueles joelhos e o torso. Dava mais trabalho que uma sacola de golfe – especialmente porque as sacolas possuem alças.
– Eu dirijo – disse Matthias.
– Você gosta de estar no controle, não é?
– Pode crer.
Os dois entraram no carro e Matthias fez outra ligação direta.
Deu ré. Fez uma manobra. Saiu pelo caminho de cascalho. Passou pela casa principal.
– Aonde é que nós vamos, afinal? – ele perguntou.
– Vire à esquerda. Vamos pro Norte.
Já haviam percorrido quase dez quilômetros quando Adrian olhou para Matthias e disse:
– Então, você gosta daquela repórter, hum?
– Não me lembro.
– Mentiroso.
– Eu tenho amnésia, você não percebeu ainda?
– Você gosta dela.
Matthias olhou de relance.
– Por acaso está virando fofoqueiro?
– Vamos ficar um bom tempo na estrada. Estou só puxando assunto.
– O silêncio é uma virtude – houve uma pausa. – Além disso, não sei por que você está interessado.
– Eu transei com uma garota na noite passada.
As sobrancelhas de Matthias se ergueram atrás do Ray-Ban de Mels.
– Bom, que ótimo pra você. Quer receber uma condecoração? Ou um selo comemorativo?
– Foi como se... sabe quando você espirra?
– Você está de brincadeira?
– Estou falando sério. Quando você espirra, tipo, você sente o alívio de uma irritação.
Matthias deu um olhar duro e longo para seu passageiro. E então pensou, sim, até que entendia o que aquele cretino estava falando.
– Mas isso acontece porque você sai por aí transando casualmente.
– Você e aquela repórter me fizeram pensar nisso.
Não pergunte. Não pergunte.
– Por quê?
– Vire à esquerda aqui. Vamos seguir para o leito do rio.
Matthias seguiu as instruções, pensando que provavelmente era melhor deixar o assunto morrer.
– Agora vire à direita.
Ele freou de repente e olhou para a clareira no meio das árvores.
– Isso é uma passagem para pedestres.
– A não ser que você passe de carro. Daí vira uma estrada.
Matthias dirigiu o Taurus com cuidado para fora do asfalto e entrou no caminho de terra. Ele acelerava o mínimo que podia na subida acentuada, desviando de buracos e galhos caídos do tamanho de uma pessoa: aquilo não era um caminho pouco usado, era um caminho nunca usado.
Ou pelo menos deveria ser.
Mas conseguiram chegar ao fim, onde encontraram um barranco. Uma queda de seis metros? Isso não era nada. O importante era a água lá embaixo, represada como um lago.
Quando Matthias parou o carro, olhou para seu companheiro.
– Aqui é perfeito.
– Eu sei.
Aquela era uma ramificação do rio que concentrava a chuva das montanhas e abastecia o Hudson quando o nível subia – que era o caso naquele momento, graças às chuvas da primavera. O lugar era também perfeitamente isolado – havia mato por todo lado, sem casas, estradas ou pessoas.
Havia apenas um problema.
– Não temos como voltar pra casa. E eu não consigo andar muito longe...
Adrian apontou para o outro lado.
No meio das árvores, escondida fora do alcance da vista, estava a Harley que Matthias o vira usar antes.
Matthias voltou a olhar para Adrian.
– Quando diabos você teve tempo pra trazer sua moto até aqui?
Ad se aproximou e disse:
– Considerando a luta que tivemos hoje à tarde, você realmente acha que vou ficar explicando alguma coisa?
Matthias piscou enquanto seu cérebro dava um nó – então parou de tentar entender.
– É justo.
Enquanto Adrian limpava o caminho até a ponta do barranco, jogando grandes galhos para o lado como se pesassem menos que um clipe de papel, Matthias deu ré no Taurus para poderem ter mais espaço. Então se ocupou em achar uma pedra grande e arrastá-la até a porta aberta do motorista. Tudo o que precisavam fazer era colocar a pedra no acelerador, engatar a marcha e sair rapidamente do caminho.
Adrian teria de fazer essa parte.
– Vocês humanos sempre tomam o caminho mais difícil – Adrian murmurou enquanto se aproximava para fazer o trabalho.
Matthias olhou por cima do ombro.
– Humanos?
– Deixa pra lá.
Três minutos depois, Adrian pulou do banco do motorista quando o carro acelerou em uma linha reta, voou pelo barranco e mergulhou com um grande impacto.
Matthias foi até a beira e observou a água borbulhar na superfície.
– É fundo o bastante.
O ronco de um motor fez sua cabeça girar instantaneamente. Adrian já estava montado e acelerando a grande moto para fora da cobertura das árvores.
Não era exatamente a maneira mais discreta de fugir da cena. Mas, com sua perna manca, ele não estava em posição de reclamar do barulho.
Na garupa atrás de seu companheiro, Matthias lembrou que havia um GPS no Taurus – então, em algum momento, os agentes das Operações o encontrariam. Mas ao menos eles teriam trabalho. E quanto à proximidade da casa de Jim? Bom, não era como se eles não soubessem onde ele vivia.
Além disso, o alvo não era Jim.
Deitada de costas e encarando o teto do embarcadouro, Mels tentava entender os arredores enquanto água pingava de seus cabelos e roupa.
Frio era o que mais sentia. Gratidão vinha em segundo. E, em terceiro, um grande ponto de interrogação...
Estivera presa debaixo da água. Sufocando. À beira da morte. E então, pouco antes de suas energias acabarem de vez, a força que a segurava lá embaixo a soltou – os braços dela repentinamente encontraram tração contra o rio e a puxaram para a superfície.
Quando emergiu, tossindo água para fora da garganta, sua visão clareou e ela pôde ver vagamente Jim Heron em um canto da baia, lutando com alguém...
As andorinhas voltaram, voaram ao redor e encontraram seus ninhos, o que sugeria que algum tempo havia passado.
– Você está bem? – Jim perguntou em um sussurro, como se também estivesse ferido.
Ela não chegou a responder, pois foi interrompida quando ele começou a ter espasmos, como se fosse vomitar. Jim virou de lado e se levantou, apoiando as mãos nos joelhos enquanto seu estômago parecia se preparar para uma evacuação total.
Certo, ela quase se afogara, mas era ele quem parecia precisar de atendimento médico. Procurando ao redor, rezou para que sua bolsa também não tivesse mergulhado no rio...
Graças a Deus. Estava perto de onde ela sentira o empurrão, escondida em meio a algumas boias.
Mels quis levantar e andar até lá – ela realmente quis. Mas tentar se levantar não foi uma boa ideia, e em vez disso ela se arrastou até a baia, ainda tossindo água de seus pulmões e sentindo tontura. Mas ela não iria ceder a tudo isso.
Eles precisavam de ajuda.
Quando alcançou a bolsa, abriu-a imediatamente. O celular estava no bolso de sempre. Assim como a carteira. E também sua capa de chuva dobrável – que seria útil em alguns minutos, quando ela tirasse as roupas molhadas.
Claramente, Mels não fora alvo de um assalto.
Arrastando-se de volta para Jim, ela disse:
– Existe algum jeito de você me deixar ligar para a emergência?
Ele balançou negativamente a cabeça até começar uma nova onda de vômito.
É claro que não deixaria.
– Então, quem devo chamar?
Ela precisou repetir a pergunta duas vezes antes que Jim conseguisse dizer o número, então discou imediatamente. Quando apertou o botão enviar, Mels ficou imaginando quem atenderia.
O celular chamou uma vez. Duas. Três vezes...
Quando o outro lado atendeu, Mels apenas ouviu um barulho alto. Como se a pessoa estivesse ao lado de uma turbina de avião. Então houve um ruído como se o celular estivesse trocando de mãos... e o barulho diminuiu um pouco.
– Alô.
Pausa. E então, sem nenhuma razão especial, os olhos de Mels lacrimejaram.
– Matthias? – não houve resposta, e ela falou mais alto: – Matthias? Matthias?
Ele precisou gritar a resposta.
– Mels? Mels! Você está...
– Estou com Jim. Jim Heron. Escuta, nós temos um problema aqui.
– O que aconteceu?
– Eu estou bem, mas Jim está com problemas...
– Atiraram nele?
– Eu não sei o que aconteceu.
– Onde você está?
Enquanto passava o endereço, ela se inclinou para o lado e observou a porta aberta do embarcadouro. Havia aquela criança brincando no parque e sua mãe sentada em um banco. E mais ninguém.
Difícil saber se isso era bom ou ruim.
– Mels, é seguro você ficar onde está?
Ela colocou a mão dentro da bolsa e pegou sua pistola nove milímetros. Tirou a arma do coldre e checou a munição. Estava completamente carregada.
– Eu mesma vou deixar o lugar seguro.
– Escuta, Adrian e eu precisamos pegar um carro. Estamos na moto dele. Mas estamos indo até você agora mesmo.
– Venha o mais rápido que puder. Vou cuidar de tudo até lá.
Após desligar, ela manteve o celular na mão esquerda, a arma na direita e se aproximou de Jim.
Havia um cheiro vindo dele e Mels reconheceu o perfume: era o mesmo que aquele homem usava quando ficou perto dela – e, a menos que estivesse entendendo errado, parecia que era aquilo que estava fazendo Jim vomitar.
Mels colocou as mãos no ombro dele.
– Não vou te deixar pra trás.
Sem chance. Jim a salvara duas vezes – o que fazia dele um anjo, até onde ela sabia.
E não importava o quão durão ele parecesse.
Jim olhou para ela, aparentemente lutando contra a ânsia.
– Sou eu quem tem que te proteger.
Ela franziu a testa.
– Por quê?
– Porque... você é a chave para ele.
– Ele quem? – ela sussurrou.
Mais vômito o interrompeu, mas ela sabia a resposta.
– Foi Matthias que enviou você até mim?
Quando o celular voltou a tocar, ela olhou para a tela. Número desconhecido.
Ela não iria atender de jeito nenhum.
Já tinha preocupações demais naquele momento.
CAPÍTULO 39
Trezentos e cinquenta anos. Talvez quatrocentos. Merda... uns mil anos.
Foi o tempo que eles levaram para sair da zona rural de Caldwell e chegar ao centro da cidade naquela caminhonete F-150.
Matthias estava quase arrancando os próprios cabelos de tanta ansiedade quando Adrian finalmente estacionou em uma vaga perto do parque. Os dois não demoraram nem um segundo para sair da caminhonete e deixá-la para trás como se fosse um pedaço de lixo inútil.
Não correram, apesar de Matthias estar em pânico, dava grandes passos usando a bengala, mas sem correr. Apenas ele e seu colega dando um passeio por aí – nada demais.
Atrás dos óculos escuros de Mels, ele observou toda a extensão do parque. Tudo limpo, exceto por uma mãe e sua filha no balanço.
Exatamente como Mels descreveu, havia um velho embarcadouro de estilo vitoriano na beira do rio: a construção em formato de losango ficava na margem como uma galinha de madeira pronta para botar um ovo.
Quanto mais perto chegavam, mais Adrian parecia querer matar alguém.
Matthias sentia o mesmo.
A porta do lugar era grande, mas o interior estava tão escuro quanto o céu havia ficado antes que aqueles demônios aparecessem na luta da garagem. Quando o olho bom de Matthias se acostumou, ele enxergou vários barcos azuis, vermelhos e amarelos, além de uma parede cheia de boias laranjas penduradas. Pássaros voavam pelos espaços vazios entre as vigas do teto.
Por alguma razão, ele não gostava do som das ondas batendo contra o muro das baias: aquele som de batida e sucção tinha algo de predatório.
– Mels? – ele disse suavemente. – Mels...?
Do outro lado, em meio a alguns veleiros e uma pilha de remos, Mels apareceu.
– Droga, Mels...
Batendo a bengala no chão, Matthias deu um impulso para frente e, quando se aproximou de Mels, estendeu os braços para agarrá-la...
Então, afastando-a repentinamente, ele gritou:
– Você está molhada!
– Eu sei. Jim está...
– Dane-se o Jim...
Ela olhou por cima do ombro dele para Adrian e congelou, como se talvez o tivesse reconhecido.
– Ah, ele está lá atrás. Não sei o que há de errado, mas ele não está muito bem.
Adrian imediatamente se dirigiu para o lugar que Mels apontara.
– Quem te machucou? – Matthias rosnou enquanto tirava o próprio casaco e envolvia Mels, tentando passar algum calor para ela. – Não foi o Jim, foi...?
– Deus, não – ela se afastou um pouco, mas apertou o casaco em volta de si. – Eu... eu, ah, escorreguei e caí na água, e ele veio e...
– Você estava sozinha?
– Eu ia me encontrar com a fonte de uma história. Algumas pessoas preferem não ser vistas em público falando com uma repórter – ela cruzou os braços por cima do peito e levantou o queixo. – E eu não estou gostando desse interrogatório.
– Problema seu.
– Como é?
– Você espera que eu acredite que simplesmente escorregou e caiu no rio? E como diabos Jim sabia onde você estava?
E aliás, como ele conseguira chegar até ali tão rápido?
– Acidentes acontecem, sabe? – Mels mudou a perna em que se apoiava. – E quanto a Jim, por que você não pergunta isso para ele?
Como que aproveitando a deixa, Adrian apareceu com o cara, carregando-o pelo ombro enquanto Jim arrastava as botas pelo chão.
Certo, não dava para perguntar nada: ele estava pálido como um fantasma e fraco como um pedaço de pano velho.
– Precisamos levar ele pra algum lugar quente e seguro – murmurou Adrian, como se falasse consigo mesmo.
Matthias assentiu.
– Meu quarto no hotel fica perto daqui. Vamos levar ele pra lá.
Mels interferiu:
– Não podemos passar pelo saguão sem chamar atenção...
– É verdade – Adrian ajeitou o peso de Jim sobre os ombros e disse: – Mas você pode fazer uma cena, não é, chefe?
Chefe?, pensou Matthias.
– E eu vou junto – Mels disse, enquanto desaparecia atrás de uma fileira de barcos. – Me dê um minuto.
Pouco mais de sessenta segundos depois, ela reapareceu como outra mulher. Mels tirara as calças e camisa molhadas e as substituíra por um vestido preto, penteara o cabelo para trás em um rabo de cavalo e colocara um par de sandálias.
Quem diria que um guarda-roupa inteiro caberia naquela bolsa?
Ela andou diretamente para Matthias.
– Faça um favor a si mesmo e nunca, nunca fale comigo naquele tom de voz de novo. Vou deixar passar uma vez. Na próxima, vou tirar essa atitude da sua boca com um soco... entendido?
Certo. Ele quase teve uma ereção naquele momento.
– Vamos – ela disse, apoiando o outro ombro de Jim e ajudando Adrian a carregá-lo. – Cara, você é pesado!
Enquanto os dois o levavam até a porta, a visão dela tocando Jim fez Matthias querer jogá-lo no rio com uma âncora amarrada no pescoço.
Mas ele seguiu as ordens de Mels, pois queria respostas – e queria ficar perto dela.
Nada era mais sexy do que uma mulher que podia tomar conta de si mesma. Mas, droga, dois acidentes quase fatais em 24 horas?
Ela definitivamente teria de contar o que realmente acontecera ali.
Quando a F-150 parou na garagem subterrânea do Marriott, nenhum dos manobristas esperava que uma procissão de palhaços saísse de dentro do carro. Mas foi exatamente o que viram.
Surpresa!, pensou Mels ao ser a primeira a sair.
À distância, ela achava que estava apresentável em seu vestido improvisado, mas de perto sabia que cheirava a peixe podre: a verdade era que estava usando uma capa de chuva dobrável e sandálias que essencialmente eram apenas meias com sola de borracha. Mas o gerente do hotel não a deteria só porque sua roupa era um desastre, certo?
Um desastre congelante, ainda por cima... o mergulho no rio e o susto que levara haviam congelado seus ossos.
O próximo a sair da caminhonete foi Matthias, e o manobrista deu um passo para trás quando o viu. Sábia decisão: seu humor estava péssimo, o rosto tão tenso que parecia que iria explodir – mas isso era problema dele, não dela. Se queria conversar, que fizesse isso de adulto para adulto, e não gritando.
Inclinando-se, ele ajudou Jim a sair com uma atitude totalmente casual, como se o cara estivesse apenas sofrendo de cansaço ou gripe. E Jim conseguiu manter as aparências. Se alguém olhasse com atenção, veria que ele estava tremendo, mas ele andou sozinho até as portas duplas do saguão inferior, cada passo medido e deliberadamente estável.
O terceiro sujeito, o tal de Adrian, ficou ao lado de Jim, ajudando, sempre que necessário, a mantê-lo equilibrado.
Por algum motivo, Mels não achava que era coincidência o fato de que o cara que ela encontrara naquela cena de crime no motel estava ligado a Jim. Mas agora não era o momento para fazer perguntas desse tipo.
Mas havia algo estranho ali. As pessoas entrando e saindo pelas portas duplas não notavam a presença de Jim – e não parecia que elas estavam só sendo discretas.
Como podiam não notar alguém que aparentava estar caindo de bêbado? Normalmente, aquilo era o tipo de coisa que atrairia olhares.
Era como se Jim nem estivesse ali.
Uma estranha sensação de perigo percorreu suas costas até chegar à nuca.
No mesmo instante, Adrian a olhou por cima do ombro. Seus olhos brilhavam de um jeito que não parecia humano – mas ao mesmo tempo não era ameaçador.
– Você vem, Mels?
Afastando aquele pensamento bobo, ela subiu os degraus da entrada e se juntou aos homens na frente dos elevadores.
– Sim, estou indo.
A falta de oxigênio obviamente afetara seu cérebro – ou talvez sua glândula suprarrenal estivesse em alerta nos últimos dias, e quem poderia culpá-la? Por outro lado, não havia razão para se perder em um mundo de fantasia. Jim Heron não era invisível. Os hóspedes não estavam agindo de modo bizarro. E não havia razão para transformar a vida em uma história em quadrinhos em que as pessoas tinham poderes mágicos.
Afinal, ela era uma repórter – gostava de realidade, e não de ficção.
Depois de tomar o elevador até o andar térreo, eles cruzaram o tapete do saguão principal até o outro grupo de elevadores. Felizmente, as pessoas que ali chegavam de viagem estavam tão exaustas que, se alguém tivesse aparecido patinando e vestido de Bozo, ninguém notaria.
É claro, essa devia ser a razão de ninguém prestar atenção neles.
Quando se está cansado de uma viagem e querendo uma cama, as outras pessoas simplesmente não são registradas no seu radar.
– Eu preciso de um banheiro – Jim sussurrou.
– Mais dois minutos – Ad respondeu.
O elevador chegou rápido, subiu rápido e, antes que pudessem perceber – e antes que Jim fizesse uma sujeira –, eles chegaram ao sexto andar, e seguiram apressados até o quarto de Matthias.
No segundo em que entraram no quarto, Jim e Adrian desapareceram no banheiro. O que deixou Mels cara a cara com...
– Sinto muito.
Quando Matthias começou a falar, ela levantou as sobrancelhas. Considerando seu rosto fechado, ele ainda estava bravo, então um pedido de desculpas era a última coisa que ela esperava.
– Você está certa, eu não deveria ter pulado no seu pescoço daquele jeito – ele passou a mão no cabelo e deixou os fios todos bagunçados. – Está cada vez mais difícil não pensar em você como sendo minha garota. Então, quando eu te encontro num lugar isolado, toda molhada, com frio e claramente abalada, eu sinto que falhei com você, pois não estava lá pra te proteger.
Certo, agora o queixo dela quase caiu.
– Você é uma mulher forte e pode cuidar de si mesma, mas isso não significa que eu não vou ter todas as reações típicas de um macho dominador quando minha fêmea se machuca ou fica em perigo. Eu sou impotente, mas ainda sou um homem – ele praguejou. – Não estou dizendo que isso é certo, só estou dizendo que as coisas são assim.
Seus olhos se encontraram.
E, no silêncio que se seguiu, tudo o que ela podia pensar como resposta era... eu também te amo.
Porque era isso que ele estava dizendo naquele momento – ela podia ver em seus olhos, em sua calma, nas palavras medidas, no queixo orgulhoso.
Deus, ele lembrava tanto seu pai: atire primeiro, pergunte depois, mas sempre fale as coisas como elas são.
– Está tudo bem – ela disse com a voz rouca. – Eu sei que as coisas estão malucas ultimamente. Todos estão com os nervos à flor da pele.
Pensando nisso, Mels ficou chocada ao perceber que queria dizer “eu te amo” para ele – mas controlou esse impulso. Era... muito cedo. Ela conhecia o cara fazia quanto tempo? Dois dias? Três?
Abruptamente, ele começou a andar de lá para cá, usando a bengala em um ângulo que sugeria que estava sentindo dor. Parando ao lado da janela, abriu uma fresta nas cortinas e olhou para fora. Mas não queria ver a paisagem, ela pensou. Era como se ele precisasse de uma desculpa para parar um pouco.
– Quero que você me prometa uma coisa – ele disse de repente.
– O quê?
– Depois que eu for embora, quero que você comece a usar cinto de segurança.
Por um momento, Mels não disse nada – a lembrança de que ele iria partir foi como um tapa em seu rosto.
– Ah...
Matthias olhou por cima do ombro.
– Estou falando sério, Mels. Você vai fazer isso por mim?
Mels se aproximou e sentou na cama enquanto vários pensamentos aleatórios surgiam em sua mente: ela realmente queria tomar um banho... Deus, esperava que ninguém encontrasse suas roupas antes que pudesse voltar lá para pegá-las... ela realmente entrara no Marriott vestida como uma prostituta, com uma capa de chuva e sem calcinha por baixo?
Porém, tudo aquilo era apenas distração cognitiva, uma estratégia para evitar pensar naquele pedido.
Decidindo encarar a situação, ela disse:
– Sabe por que eu não uso cinto de segurança?
– Você gosta de viver perigosamente?
– Meu pai estava usando o cinto, e foi por isso que ele morreu naquele acidente de carro – quando Matthias virou-se lentamente, ela assentiu. – O cinto o prendeu no lugar. Sem o cinto, ele teria sido jogado do banco e seu corpo não teria sido esmagado. Entende? O carro atingiu a carreta de uma caminhonete. E uma das partes de metal entrou pela porta. Quando os paramédicos chegaram, ele ainda estava vivo, porque a pressão estava desacelerando a perda de sangue. Inferno, ele ainda estava consciente. Ele... – Mels precisou limpar a garganta. – Ele sabia que ia morrer ali naquela droga de carro. No instante em que o libertassem, a hemorragia ia aumentar... e ele... sabia. Ele estava acordado e alerta. Deve ter sentido muita dor. Eu não... não sei como alguém pode lidar com uma situação dessas. Mas sabe o que ele fez?
– Me conte – disse Matthias com a voz baixa.
Por um segundo, Mels se perdeu na lembrança da discussão que tivera no escritório do sargento – seu chefe se recusava a dar detalhes sobre a morte.
Mas droga, ela era a filha de Carmichael e tinha o direito de saber.
– Primeiro, ele quis ter certeza de que o suspeito tinha sido preso. E ficou muito bravo quando soube que seus colegas tinham se focado nele em vez de ir atrás do criminoso – Mels teve de rir um pouco. – Então ele... fez eles prometerem que minha mãe nunca descobriria como foi a morte. Queria que ela pensasse que foi instantâneo. E é nisso que ela acredita. Sou a única na família que sabe... o quanto ele sofreu. Finalmente, pediu que eles tomassem conta da minha mãe. Ele estava realmente preocupado com ela. Mas não comigo. Ele falou que não estava preocupado comigo. Eu era forte igual a ele... eu era sua filha durona e independente...
A garganta de Mels se fechou e lágrimas começaram a brotar em seus olhos.
E então caíram silenciosamente.
Ela limpou o rosto.
– Saber que ele pensava isso de mim foi na verdade o momento mais orgulhoso da minha vida.
Houve um instante de silêncio. Que continuou. E continuou ainda mais.
Estranho, ela pensou. Aquele momento no escritório do sargento mudara sua vida, mas ela o havia guardado e congelado em seu passado, como se fosse algo para se esquecer.
Mas agora, naquele quarto de hotel, com Matthias focado nela e Jim Heron vomitando seu fígado no banheiro... as coisas começaram a se encaixar, o passado e o presente como um par de vagões de trem que finalmente se aproximavam o bastante para poder se conectar.
Mels voltou a se concentrar.
– Enfim, desde que descobri os detalhes, nunca mais consegui usar... – limpou a garganta novamente. – Não é uma questão de viver perigosamente. Chame isso de uma lógica sem pé nem cabeça, se preferir, mas não significa que eu quero morrer.
Deus sabia que ela realmente não queria morrer.
Quando Matthias se aproximou e sentou na cama, Mels se preparou para ouvir todo tipo de réplica, dizendo “mas você não conhece as estatísticas?”, “dois raios não caem no mesmo lugar”, blá, blá, blá.
Em vez disso, ele apenas a envolveu com os braços.
Aquilo foi curiosamente devastador – a bondade, a proteção, o silêncio e a compreensão.
Apoiando a cabeça em seu peito, ela disse:
– Eu nunca tinha contado isso pra ninguém.
Mels sentiu Matthias beijar o topo de sua cabeça e, com um arrepio, ela se entregou à força daquele homem – e foi sensacional.
Ela não tinha percebido o peso que carregava sozinha durante todos esses anos.
Engraçado, enquanto sentavam ali juntos, com o calor de seus corpos se misturando, ela percebeu que ele havia dito que a amava com um pedido de desculpas... e que ela dissera o mesmo com uma história de seu passado.
Prova de que coisas profundas podiam ser ditas de muitas maneiras diferentes.
– Jim precisa se deitar.
Quando Adrian falou da porta do banheiro, Matthias a abraçou ainda mais forte.
– Ele pode usar esta cama.
– Obrigado, cara.
Mels se levantou e ficou surpresa quando Matthias fez o mesmo. E então os dois sentaram na poltrona ao lado da janela, ela se aninhando sobre o corpo dele.
Era como se ele não pudesse mais aguentar não tê-la em seus braços.
E Mels sentia o mesmo.