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Series & Trilogias Literarias
Da bruma entre as trevas da noite e a luz da aurora, a irmã de Merlin emergiu de seu refúgio em Avalon para uma Bretanha devastada por batalhas e onde um corajoso guerreiro cativaria para sempre a sua alma e o seu coração!
Inglaterra, Século XI
Órfã da única mãe que conhecera, Rianne cresceu fora dos limites de Camelot, sem saber que era herdeira de um legado de magia forjado nas brumas de Avalon. Até que um jovem e belo cavaleiro chegou à sua procura, despertando nela anseios e desejos desconhecidos...
Tristão estava preparado para enfrentar em combate o guerreiro inimigo que ameaçava a paz de Camelot. Atendendo ao pedido da mulher que o criara, Tristão partiu em busca da menina que ela enviara para longe de Avalon anos atrás... e o que ele encontrou foi uma jovem linda e apaixonada, cujos poderes imortais determinariam o destino deCamelot e de seu próprio coração!
Camelot
A despeito da cegueira, a curandeira seguiu seu caminho sem hesitação pelos corredores do castelo do rei Arthur.
Não precisava da luz do sol que, durante o dia, se espalhava pelas paredes de pedras de arenito pálido, ou da iluminação brilhante das lamparinas de óleo,
à noite, para guiá-la. Em vez disso, era conduzida pela visão interior, que a servia bem melhor, uma percepção de tudo em torno de si que os mortais não conseguiam
enxergar.
Seus pensamentos estavam em outro lugar, pois se sentia preocupada com os sonhos perturbadores da noite. Não dormira bem.
Os sonhos assombravam suas noites insones desde que partira de Monmouth, sonhos de sangue e morte em nuvens de bruma, amortalhados em trevas e maldade.
- Se partirmos logo cedo, estaremos em Monmouth ao cair da noite - disse ela, mais para si mesma do que para Grendel.
E se sentiu reconfortada com o fato de que apenas em poucas horas estaria em casa, com Connor.
Grendel estremeceu. Detestava cavalos. Nunca se acostumaria a eles. Arrepiou-se como um galo de briga pronto para o combate.
- É uma viagem de meio dia pelas piores estradas de toda a Bretanha. Só estamos aqui faz quatro dias; meu traseiro ainda está preto e azulado. E já se esqueceu?
Temos uma celebração esta noite, em honra do noivado do rei com lady Guinevere. Não podemos partir, seria inconcebível.
Meg não o escutava. Só ouvia ou sentia o sussurro através de seu sangue e a mão gelada que se apertava em torno de seu coração - algo que não escutava ou pressentia
fazia tanto tempo que até quase se esquecera.
Parou e fez meia-volta. O olhar sem vida percorreu a parede de um lado do corredor. Seus sentidos imortais captavam algo - uma sombra de Maldade que tentava
obstruir a luz do sol, invisível à visão humana. Sentiam a presença do mal encarnado como naquele dia, longo tempo antes, em meio ao anel de pedras eretas.
Morgana.
Fora apenas uma ilusão? O que será que a fazia pensar em Morgana agora, quando não pensara nela em todos aqueles anos?
Morgana lhe roubara a vista. Mas Morgana estava morta, e seus poderes, emanados das Trevas, destruídos. Mesmo assim, a lembrança fez Meg sentir um presságio
maligno naqueles sonhos, e no frio que agora penetrava através de seu sangue, tal como acontecera naquele dia, longo tempo antes.
- Quero voltar para casa. O mais depressa possível. Encontre
Tristão. Mande que prepare tudo. Diga a ele que partiremos tão logo eu tenha terminado meu trabalho na enfermaria. Tenho um mau pressentimento...
Tristão e diversos cavaleiros da guarda de Monmouth tinham acompanhado Meg até Camelot. Ele era como um filho para Meg e Connor, um órfão cuja família fora
assassinada pelos guerreiros de Maelgwyn naqueles longos anos de terror. Depois disso, quando Arthur se tornara rei, Tristão fora viver com Meg e Connor em Monmouth.
Preenchera o vácuo doloroso quando ela perdera seus próprios bebês. E era um filho digno de orgulho.
Meg pouco o vira desde a chegada a Camelot, mas não tinha dúvida de onde poderia ser encontrado. A filha de um dos nobres era sua nova conquista. Ninguém era
capaz de resistir à combinação letal de beleza, intensidade de alma e humor adolescentes que poderiam fascinar qualquer moça e fazê-la tirar o vestido para ele.
Meg estava encantada com a garota. Era inteligente, rápida para aprender e não fraquejava diante de um ferimento feio ou carne putrefata.
- Este é o pior de todos - Cynwin a informou, ao tirar a atadura manchada do pé de um menino - O pai não achou que o ferimento fosse sério. A mãe o trouxe
esta manhã quando a carne começou a descolorir.
Meg reconheceu o rapazinho como um dos meninos dos estábulos. Postou-se ao lado de Cynwin com a facilidade de quem enxerga e examinou o pé inchado com um toque
suave. Sentiu os ossos quebrados, assim como os tendões e ligamentos rompidos.
Na simples conexão de seu toque com o pé esmagado, Meg
aliviou a dor e o medo do garoto. E usou o dom com que nascera para soldar os ossos fraturados. Depois, fechou o ferimento, e Cynwin o enfaixou.
- Os ossos precisam de tempo para se consolidar e ficar fortes; e a atadura deve ser trocada diariamente - disse à mãe do menino.
Por fim, os dois saíram e Meg enfiou ambas as mãos dentro da bacia. A água se revolveu sob a ponta de seus dedos como se agitada por mão invisível. Imagens
se remexeram no fundo, mudaram e depois, gradualmente, tomaram forma.
Meg as sentiu, percebeu-as, enxergou-as do jeito antigo - imagens de sangue e morte, de um escarlate brilhante a se revolver na água e a lhe cobrir as mãos,
e depois a deslizar por seus dedos como a areia numa ampulheta; como a vida, precisa e cara para ela, que Meg não poderia reter. Dentro daquela visão de sangue e
morte, uma única imagem tomou forma, tão clara como se ela a enxergasse - Connor.
Meg soltou um grito de dor quando uma pontada lancinante, semelhante à de uma faca retorcida dentro dela, a invadiu. E enquanto a visão se aguçava e se tornava
mais clara, parecia que era seu sangue que escorria e redemoinhava na bacia.
- O que foi, senhora? - Cynwin perguntou, alarmada. Então, viu o sangue que turvava a água. - A senhora se feriu!
Pegou um pano grosso e tentou enxugar o sangue das mãos de Meg. Mas o pano logo se encharcou. Cynwin ergueu os olhos e encarou Meg com um pavor crescente.
- Não consigo parar a hemorragia! A senhora precisa me dizer o que fazer.
Nem Meg poderia contê-la. Não havia nenhum ferimento e, contudo, o sangue fluía sem parar. Grendel estava a seu lado
no mesmo instante. O susto retorcia suas feições, fazendo-o parecer ainda mais um gnomo enrugado.
- Diga-me o que deve ser feito.
Meg acalmou os medos de Cynwin enquanto seus pensamentos alcançavam a mente de Grendel com apenas uma palavra: Monmouth. E naquela palavra concentrava-se todo
o seu medo não vocalizado: há perigo em Monmouth.
- Ache Tristão - ela murmurou. - Precisamos voltar sem demora.
A distância normalmente percorrida em meio dia foi feita em pouco mais de duas horas. Então, avistaram a espiral de fumaça dos incêndios antes que entrassem
no vale de Monmouth.
Mesmo assim, Meg rezou para que não tivesse acontecido o que vira na água revolta da bacia. E quando sentiu que as torres de vigia de Monmouth surgiam à vista,
amortalhadas na fumaça, ela ainda manteve a esperança e recusou-se a aceitar as imagens que atormentavam seus pensamentos.
Sabia, porém, que acontecera, com tanta certeza como se tivesse presenciado. Sentiu a violência da batalha que ainda perdurava no ar, junto com a fumaça dos
incêndios; tal como sentira o presságio de sangue e morte, na visão dentro da bacia.
Chegou aos portões apenas umas poucas passadas adiante de Tristão e seus homens. Saltou sozinha da sela. Nenhum guarda gritou no alto para anunciar seu retorno.
Não havia guarda algum, e os portões estavam abertos.
Meg tropeçou e abriu caminho entre os restos da destruição daquilo que fora seu lar. A despeito do grito de aviso de Tristão, ela seguiu pelo pátio em direção
ao átrio interno e aos jardins murados, como fizera milhares de vezes no passado.
Ao tropeçar em um corpo, encolheu-se instintivamente ao cair. Então, levantou-se e, com o dom da visão interior e um único pensamento, enxergou - não era Connor!
Viu tudo como tinha visto na primeira vez em que Connor a trouxera ali, havia tantos anos. Antes de seu encontro com Morgana.
Fora ali que se tornaram amantes. E fora para ali que haviam voltado quando ela deixara o mundo imortal pela última vez para ficar com Connor.
Em todos aqueles anos, Meg aprendera a conhecer cada pedra, cada degrau, cada lugar dentro do jardim que ela plantara, onde um beijo pudesse ser roubado e
o prazer, usufruído.
Era naquele lugar que Connor muitas vezes a encontrava a cuidar das flores e das ervas; um local especial, escondido entre as árvores e as sebes perfumadas
e floridas, onde se refugiavam nas noites quentes de verão e desfrutavam o prazer em lentos beijos e carícias igualmente demoradas. No mesmo lugar onde contara a
Connor que carregava o filho dele. Um filho que não era para ser.
Encontrou-o não muito longe dali, onde enfrentara os atacantes num sangrento confronto, dentro dos muros do jardim. Seus homens tinham lutado a seu lado. Meg
tropeçou em seus corpos para chegar a Connor. O sangue encheu-lhe as mãos e escorreu por seus dedos, quando ela o alcançou, como as visões de sangue e morte que
vira em seus sonhos.
- Você precisa fazer alguma coisa!
A voz de Meg elevou-se no ar gelado da madrugada que enchia o quarto em Monmouth. Do outro lado da cama, o olhar sombrio de Merlin encontrou o dela.
- Fiz tudo que podia.
Meg rodeou a cama e parou diante dele.
- Não é o bastante! Cure os ferimentos - ela exigiu, com a voz tremendo de desespero. - Use seu poder. - Agarrou-o pela frente da túnica. - Você pode fazê-lo.
- Suas mãos se fecharam em punhos de impotência e raiva. Incapaz de atacar um inimigo desconhecido, Meg o agrediu.
- Presenciei isso milhares de vezes! Faça, irmão! Cure-o, agora!
Os socos tinham pouco efeito e, no entanto, Merlin sentiu cada um no fundo da alma, pois o sofrimento de Meg era o seu sofrimento. Suas mãos se fecharam gentilmente
sobre as dela, e suas palavras foram igualmente gentis.
- Os ferimentos são profundos e houve muita perda de sangue.
O olhar sem vida de Meg procurou o dele. Captou-lhe os pensamentos e as palavras não pronunciadas.
- Não!
Merlin puxou-a para dentro dos braços e segurou-a com firmeza, enquanto ela se entregava à raiva e à impotência. Depois, continuou a abraçá-la quando a irmã
mergulhou num desespero devastador e, por fim, quando não conseguia mais chorar.
- Eu queria mais tempo - Meg murmurou contra o peito do irmão. - Deveríamos ter mais tempo.
- O tempo é nosso inimigo - Merlin a relembrou. - Para aqueles como nós, o tempo joga um jogo cruel. Você sabia que seria assim. Fique grata pelo tempo que
teve. - Merlin acariciou-lhe docemente os cabelos - É bem mais que muitos de nós conheceremos um dia.
Ela ouviu a tristeza e o sofrimento em sua voz, e algo mais impronunciado, uma preocupação bem mais profunda. E medo.
- O que é?
- Algo que eu não sentia fazia muito tempo.
Meg captou um pensamento logo escondido, entrelaçado ao medo. Uma lembrança partilhada da filha que ela dera à luz e as escolhas feitas para mantê-la a salvo.
Agora, Connor estava morrendo. E a filha que haviam gerado com tanto amor não mais estava em segurança.
Capítulo I
As sombras se alongaram conforme a noite chegou, a se mesclarem pela paisagem não familiar e a tornar difícil de distinguir o marco de pedra da antiga estrada
romana.
Fazia cinco dias que percorriam aquela estrada e atravessavam agora a região desolada e desconhecida além das fronteiras do reino de Arthur.
O vento uivou, a alertá-los para a tempestade que os acompanhara durante toda tarde. O gnomo estremeceu no lombo do cavalo, os olhos escuros mal visíveis acima
da borda do grosso manto de lã em que se enrolara.
- O que acha? - perguntou, mal-humorado.
Os olhos de Tristão se estreitaram num ar de desagrado.
- Está perguntando a mim? Você é que deveria conhecer o caminho.
- Conheço o caminho, ora - Grendel retrucou, num murmúrio abafado. - Mas faz um longo tempo e não sei ler latim. É uma língua difícil e complicada. Ler os
pensamentos de alguém é mais simples.
- Então, leia os meus. - Tristão bufou de desgosto. - E o que me diz desse cheiro?
O gnomo sorriu com satisfação irônica.
- É uma infusão protetora para afastar os outros, caso contrário ficariam muito curiosos a nosso respeito, ao nos encontrarem nestas longínquas paragens do
norte.
Tristão saltou do cavalo ao se aproximar do marco de pedra, para enxergá-lo mais claramente à luz que findava.
- É forte o bastante para afastar o próprio demo.
- Não é o demo que você deveria temer, menino - Gren-del retrucou. - Existem outras forças e poderes em ação aqui.
Seu olhar sombrio esquadrinhou o horizonte onde a última luz do dia se demorava, antes de se render às trevas, como se tivesse medo que aquelas forças desabassem
sobre eles apenas por serem mencionadas. Estremeceu.
- E então, menino? - perguntou. - Decifrou as letras? Ou descobriu que deveria ter passado mais tempo com suas lições e menos com essa espada?
Tristão saltou para a sela e encolheu-se com outra lufada cortante de vento.
- Neste momento, a espada me serve muito melhor. - Fez a montaria dar meia-volta. - Deixaremos a estrada a partir daqui e continuaremos rumo norte. E não me
chame de menino!
- A tempestade logo virá sobre nós. Estamos perto da floresta de Bedwyn. Vamos procurar abrigo para a noite? - o gnomo perguntou, esperançoso.
- Não - Tristão o informou com satisfação. - Quanto mais depressa encontrarmos o lugar, mais cedo voltaremos a Monmouth. Mantenha distância - retrucou, ao
se colocar contra
o vento. - Talvez seu cheiro horrível nos ofereça alguma proteção, afinal.
Seus pensamentos voltaram a Monmouth. Como os demais ataques à região, aquele fora bem calculado. E, diferentemente dos outros, não tinha sido contra uma vila
distante ou uma aldeia, mas se abatera sobre Monmouth, quando muitos de seus homens estavam longe. E ele também.
Normalmente Connor acompanhava lady Meg até Camelot. Porém Tristão o convencera a ficar e seguira com Meg, ansioso por rever a srta. Alyce, que possuía mais
encantos que juízo. E enquanto se deitava com ela, Monmouth fora atacada; e o homem a quem Tristão considerava como pai, gravemente ferido.
Naquele exato momento, cinco dias desde o ataque, Connor poderia estar morto e frio na sepultura, e ele fora mandado naquela missão idiota na companhia de
outro idiota! Mas quando lady Meg insistira que não poderia confiar em ninguém mais, Tristão não pudera se recusar.
A pressa o tornou incauto. Não viu a árvore que de repente assomou diante de si na escuridão. Não houve tempo para frear o passo do cavalo. Um galho baixo
o atingiu. O golpe arrancou o ar de seus pulmões, arrancou-o do lombo do cavalo e lançou-o ao chão.
Grendel sorriu, enquanto Tristão ofegava para recuperar a respiração e lutava contra a dor.
- Quem é o idiota agora? - perguntou, com ar satisfeito. Tristão o encarava com uma fúria muda, sabendo que o gnomo lera seus pensamentos. - Vamos acampar
para a noite agora? Ou gostaria de cavalgar um pouco mais?
Quando, finalmente, conseguiu encher de ar os pulmões,
Tristão murmurou um "sim" gutural. Foi tudo que pôde dizer no momento, e soou mais como uma ameaça.
- Bem, suponho que tudo ficará bem - retrucou Grendel ao passar por onde Tristão jazia. - A favor do vento, claro.
- E sem tentar esconder o sorriso de prazer ou procurar ajudar o rapaz.
- O que temos aí? - Grendel indagou, algum tempo depois, quando já tinham acampado e Tristão retornava com uma galinha-d'angola que caçara no mato e trouxera
para o jantar.
O guerreiro ainda estava dolorido do tombo e seu humor não era dos melhores.
- Tem penas - retrucou. - Voa e bota ovo. Pai do céu! - exclamou, com enorme ironia - Deve ser uma ave!
O gnomo soltou uma praga.
- Posso ver muito bem por mim mesmo. Apenas fico preocupado se era realmente uma ave ou um mutante.
- Um parente seu, talvez? - Tristão comentou com satisfação ao erguer a caça. Então, emendou, com um sorriso malicioso: - Tome cuidado para não acabar do mesmo
jeito. E faça algo de útil, homenzinho. Prepare a comida.
- Homenzinho? - Grendel resmungou para si mesmo ao se aproximar cautelosamente da ave morta. - Chegará o dia, menino, em que descobrirá que "tamanho não é
o que importa".
- Pergunte à bela Alyce - retrucou Tristão, com um sorriso de malícia.
A galinha-d'angola foi assada com perfeição. Tristão engoliu um bocado de comida, pensativo. Tentou entender a mudança daquilo em que sempre acreditara: que
a criança a que lady Meg dera à luz tantos anos antes morrera logo depois do
parto e estava enterrada no pátio da capela em Monmouth, diante do que soubera havia apenas poucos dias.
- Do que você se lembra quanto à criança? Grendel comia, agachado no chão diante do fogo, enrolado no grosso manto de lã.
- O que há para lembrar? Era um bebê naquele tempo. Pequeno, barulhento e fedorento.
Tristão arqueou uma sobrancelha.
- Ah, um espírito afim. Parece que vocês têm muito em comum.
- Sim, um espírito afim! - esbravejou o gnomo. - E muito mais. E é melhor que se lembre disso. - Então, reclamou: - Maldição, mas que frio!
- Por quê? - Tristão perguntou.
- É noite de inverno! - Grendel retrucou, como se não tivesse entendido. - É normal nesta época do ano.
- Por quê? - Tristão repetiu. - Lady Megwin mentiu sobre a morte da criança?
Tinham cruzado metade da Bretanha durante cinco dias porque Meg assim pedira. Por respeito e amor, ele não questionara. A devoção de Tristão para com os pais
adotivos era mais forte que os laços de sangue. Uma devoção de coração e alma.
Agora queria saber a razão e tinha intenção de descobrir. Mas Grendel deu de ombros.
- Ela não mente. Não pode mentir. E você sabe bem disso. Tristão percebeu que não seria fácil. Era óbvio que o gnomo optara por revelar tão pouco quanto possível
a respeito daquela missão que lhes fora confiada. Porém, assim como lady Meg era incapaz de mentir, também o gnomo não podia, e Tristão
aprendera, muito tempo antes, que a melhor maneira de arrancar algo do homenzinho era encurralá-lo com a verdade.
- Ela devia ser deformada de alguma maneira - concluiu, tomando um longo gole de vinho com água.
- Não era deformada coisa nenhuma! - Grendel berrou, indignado. - Era perfeita em todos os sentidos.
- Então, devia ter verrugas por todo o corpo e o nariz pendurado até o queixo. Sim, esta é a razão pela qual lady Meg a mandou embora.
- O nariz era muito bem-feito, e ela era linda como a mãe, sem nenhuma marca! - Os olhos do gnomo se estreitaram em fendas faiscantes de fúria. - Conheço seu
jogo, menino! E você não vai arrancar outra palavra de mim.
- Então, não seguiremos por mais outro quilômetro nesta jornada - Tristão o informou. - Ou me conta a verdade agora, tudo, tudo, ou não irei em frente.
- Tudo bem, não vá - Grendel o desafiou. - Não preciso de você para encontrar o lugar. Lembre-se, sou eu quem sabe onde fica.
- Sim, sabe tão bem que não consegue nem mesmo se recordar dos marcos da estrada - Tristão reclamou. Levantou-se e se encolheu com dor nas costelas.-Encontre
sozinho, se puder. Voltarei a Monmouth, onde precisam de mim.
- Esta noite?! - Grendel exclamou. - Mas, está escuro...
- Sim, muito escuro. E frio. - Tristão pegou a manta, a espada e o embornal e rumou para os cavalos.
- É tolice partir no escuro - Grendel ponderou, e o seguiu. - Lembre-se do que aconteceu quando agiu impulsivamente antes. Terá hematomas durante dias com
a experiência.
- É, terei - reconheceu Tristão, e depois emendou: -
Mas nada parecido com a irritação de ter de agüentar você! - Jogou a manta no lombo do cavalo preto e preparou-se para selá-lo.
Grendel torceu as mãos. Detestava o frio e detestava o escuro. Mais do que tudo, porém, detestava ser deixado sozinho num lugar estranho e distante.
- Ora, muito bem! - concordou, incerto se Tristão cumpriria ou não a ameaça. Mortais não eram práticos ou lógicos, e sim bastante imprevisíveis. - Mas não
há muito a contar.
Tristão encostou-se no cavalo, descansando o braço na sela, mas sem fazer menção de voltar ao acampamento.
- Conte-me o que sabe. Tudo, ou eu o abandonarei nesta floresta e deixarei que os trolls o peguem.
Sorriu ao ver o pequenino encolher-se diante da ameaça. Grendel tinha horror aos trolls, e embora Tristão jamais tivesse visto um, ou até duvidasse de sua
existência, não hesitava em ameaçar o gnomo para obter o que queria.
- Keflech! - Grendel praguejou, no dialeto antigo, uma palavra que não era usada no mundo mortal fazia mais de mil anos. Trolls eram criaturas vulgares, nojentas.
Soltou um suspiro de resignação. - Não há muita coisa a dizer - disse, hesitante.
Sem uma palavra, Tristão enfiou o pé no estribo e saltou para a sela.
Grendel olhou, assustado, para os lados, com a certeza de que era espionado por trás de cada árvore e arbusto que os rodeavam.
- Está bem! Está bem! Vou lhe contar o que eu sei! Tristão não desmontou.
- Lady Meg teve uma visão quando a filha tinha apenas semanas de vida. Uma visão das Trevas.
O interesse de Tristão aguçou-se, como sempre acontecia diante da menção dos poderes das Trevas. Crescera com as histórias das grandes batalhas entre o Bem
e o Mal, de dragões, trolls, gnomos e feiticeiros. E, quando criança, acreditava em todas elas, talvez porque precisasse de algo em que crer depois da morte de sua
família.
Mas isso fora um longo tempo atrás, e ele perdera a inocência de criança e, junto com ela, a vontade de acreditar ingenuamente em mitos e lendas.
- Depois de todos esses anos, você ainda não acredita - murmurou Grendel. - O que acha que roubou a visão de lady Meg? E quanto às pedras em pé? Julga que
apenas acontece de estarem ali, embora não existam outras daquele tamanho em toda a região?
- O que me importam as pedras? É só uma história.
- Só uma história! - exclamou Grendel, cheio de frustração. - Está esgotando minha paciência, menino. Esta é a verdade que você queria. É covarde para ouvi-la
agora?
- Não sou covarde - Tristão retrucou, num tom baixo mas firme, e, em seguida, avisou: - E não me chame de menino.
- Ora, não vejo nenhum homem aqui à minha frente, pois é preciso ser homem como lorde Connor para acreditar naquilo diante do que outros mortais mostram apenas
medo, agarran-do-se aos seus crucifixos e rezando a seu Deus por salvação.
Tristão saltou da sela. Amarrou o cavalo, porém não tirou os arreios.
- Conte-me.
Mais uma vez, sentaram-se diante da fogueira, um na frente do outro, e Grendel contou sua história, Do direito de nascimento de lady Meg como filha da Luz,
sua jornada através do portal que separava os mundos mortal e sobrenatural, a batalha de vida e morte que travara com os poderes das Trevas, e a troca que fizera
depois, para viver no mundo da matéria com lorde Connor.
- Você não passava de uma criança - Grendel o recordou. - Arthur ainda não era rei. Os poderes das Trevas eram fortes pela Terra. Muita coisa estava em risco.
Jogaram mais lenha na fogueira. Uma chuva de fagulhas voou, como um enxame de insetos brilhantes da cor das chamas.
- O círculo de pedras nem sempre esteve lá. Um dia, havia ali apenas uma planície. - Grendel pensou em Morgana, a meia-irmã de Arthur, disposta a vender a
própria alma para conquistar o que queria. Mesmo naquele momento, ele podia sentir aquele frio do mal nas profundezas de seu ser.
- Foi dentro do círculo de pedras que lady Meg se confrontou com os poderes das Trevas, e foi lá que os derrotou. Porém a vitória teve um preço. Ela ficou
cega no confronto.
Tristão crescera ouvindo as histórias do círculo de pedras e dos acontecimentos incomuns que supostamente ocorriam ali.
- Lembro-me de quando a criança nasceu - ele murmurou ao se recordar daquela noite distante.
- No Samhuin, all-hollow-eve, ou halloween, como dizem outros - Grendel disse, referindo-se à noite de 31 de outubro, quando os celtas e druidas acreditavam
que as forças das Trevas e da Luz estavam mais intimamente alinhadas dentro do antigo universo.
- A região se iluminou com o brilho das fogueiras. Lorde Connor ficou muito contente - recordou-se Tristão.
- Sim. - Grendel lembrava-se muito bem daquela noite. - Tão feliz como qualquer novo pai.
- Disseram que a criança tinha adoecido e morrido.
- Foi o que contaram a todo mundo.
- O que aconteceu? Grendel suspirou.
- Uma noite, a senhora levantou-se para dar de mamar à criança e encontrou suas mantas ensopadas de sangue. Não havia nenhum ferimento. Na verdade, lorde Connor
não viu nada quando acordou com os berros apavorados de lady Meg. Só uma outra pessoa viu o sangue que encharcava a criança, embora estivesse longe, em Camelot.
O olhar do gnomo encontrou o de Tristão através da fogueira, e o jovem guerreiro soube exatamente quem era que vira a terrível cena numa visão.
- Merlin.
- Sim - concordou Grendel. - Ele chegou a Monmouth dentro de um curto espaço de tempo.
Tristão ouvira muitas histórias sobre os poderes de Merlin. Em metade delas ele acreditava, mas em outras...
- Leva-se meio dia de viagem entre Monmouth e Camelot, no cavalo mais veloz...
- Sim, para um homem montado num daqueles animais horríveis. - Grendel deu de ombros e apontou para o cavalo amarrado. - Mas não para alguém como ele.
- Todos esses anos eu pensei que a criança tivesse morrido. Grendelconcordou.
- Era mais fácil deixar que todos pensassem assim. Desse
jeito, a criança poderia ficar escondida em segurança. Se a mandassem para longe e ninguém soubesse, nem mesmo eles, de seu paradeiro, os poderes das Trevas
não poderiam usar tal conhecimento para encontrar a menina. Lady Meg confiou o bebê a Dannelore, que havia sido sua criada, e ao marido dela, John. Os dois juraram
que criariam a criança como se fosse deles, sem que ela soubesse de seu direito de nascença.
Tristão franziu a testa ao se recordar daqueles anos, quando vira e entendera as coisas com os olhos de uma criança. E comparou com aquilo que agora sabia
ser a verdade.
- Pareceu estranho que tivessem partido tão de repente sem se despedirem. John tinha prometido me ajudar a domar um potro.
Grendel suspirou fundo.
- Não houve tempo para despedidas. Lady Meg teve medo de que qualquer atraso pusesse em perigo a criança. Tudo foi feito sob o manto da escuridão. Foi lorde
Connor que deixou que se espalhasse a notícia de que a filha tinha morrido.
Tristão pensou naquele dia triste e nos dias que se seguiram. Fora colocada uma lápide no chão da capela em Monmouth. O padre rezara. Lorde Connor pedira que
Tristão não falasse sobre a criança por causa da tristeza que isso provocava.
- A criança era apenas recém-nascida quando deixou Monmouth. Como você irá reconhecê-la? - perguntou a Grendel.
- Eu a reconhecerei. E ela tem nome. Chama-se Rianne.
- Uma pessoa muda com o passar dos anos - murmurou Tristão, ao pensar na própria infância que tivera um profundo efeito em sua vida. Mesmo agora, anos mais
tarde, ele ainda sonhava com a noite em que sua família fora assassinada e sua
casa queimada até o chão. Tanto tempo depois, ainda acordava ensopado de suor e gritando por seu pai e pelos irmãos.
- A menina tinha a beleza da mãe e os mesmos olhos azuis. Também descendia dos Anciãos - Grendel emendou, confiante. - Eu a reconhecerei.
- E se ela não quiser vir conosco? Pensou nisso, homenzi-nho? Ela tem uma vida com aqueles que acredita ser a sua família. Pode não entender isso facilmente
e não desejar deixá-los.
- Ela compreenderá - afirmou Grendel, convicto.
- Eu não entenderia se minha família tivesse me dado para outros, não importa a razão.
- Claro que não. Você é mortal e muito ilógico!
- Ela é metade mortal - Tristão o relembrou, satisfeito com o olhar furioso que recebeu em resposta.
- Sim, a parte que tem do pai - Grendel retrucou, com claro desdém. - Mas lorde Connor é bastante lógico... para um mortal.
Tristão sorriu no íntimo.
- Ela é criança e mulher. Criaturas imprevisíveis. E você não conhece seu temperamento. Pode ter sido muito mimada e ser absolutamente desagradável.
- Impossível! Ela era um bebê de bom gênio! - esbravejou Grendel. - Sem dúvida cresceu e se transformou numa garotinha amável. E não quero mais discutir sobre
isso!
- Veremos - Tristão resmungou ao se levantar para tirar a sela do cavalo.
Quando voltou, encontrou Grendel enrolado e aninhado entre as mantas como uma pulga enfiada no pêlo de um cachorro. Dormira depressa e soltava roncos sonoros.
Se houvesse alguém por perto, saberia que estavam ali.
Tristão colocou a espada ao alcance da mão. Uma faca menor ficou escondida dentro do pelego. Encontravam-se nos extremos do reino de Arthur, e o poder de suas
leis se estendia apenas até ali. Ladrões perambulavam livremente por aquelas paragens e não pensavam duas vezes para cortar a garganta de um homem, fosse por uma
espada bem-feita que carregasse, ou pelos cavalos, que poderiam ser negociados por canecas de cerveja, comida e uma mulher na próxima hospedaria. Quanto mais se
soubessem que o viajante trazia moedas de ouro na bolsa de couro, no cinto.
O sono demorou a vir, apesar do cansaço do longo dia de cavalgada. Quando, porém, finalmente veio, foi invadido por sonhos que se transformaram em imagens
vívidas e familiares de sangue e morte.
Naqueles sonhos, Tristão era um garotinho outra vez, que acordava de outros devaneios de aventuras com seus irmãos com os sons de batalha e morte ao redor.
Um suor frio banhou-lhe o corpo diante daquelas imagens de repente arrancadas do passado, como se ele as revivesse de novo - os gritos apavorados de sua mãe
e irmãs, o brilho do machado de guerra, o brado de guerra de seu pai de súbito silenciado. E depois, em meio às chamas e à fumaça, o cheiro de morte, conforme ele
rastejava entre os corpos de sua família.
Estava banhado em sangue, e os olhos sem vida de seus entes queridos o encaravam. Tal como fizera naquele dia, longo tempo antes, ele cambaleou pelas ruínas
de seu lar enquanto ia de um corpo sem vida para outro, seu pai e seus irmãos, todos mortos, sua mãe e irmãs brutalmente estupradas e, em seguida, assassinadas.
No pátio, enfiou o rosto na água gelada da antiga fonte onde suas irmãs, um dia, haviam brincado.
A água lavou o sangue e as lágrimas, mas não as lembranças, que ficariam para sempre gravadas em sua mente. Então, a água ficara imóvel e calma mais uma vez.
Mas, no sonho, a imagem que o fitava da superfície da água não era a de seu rosto, e sim a imagem fugidia de uma jovem.
Era linda, com feições delicadas, exóticas, e olhos de um raro azul. Chamas a rodeavam, mas ela não parecia sentir seu calor intenso. E o encarava com uma
profunda tristeza que parecia um reflexo da própria tristeza que ele sentia.
Tristão pensou que, ao se virar, a encontraria de pé, a seu lado. Era outra pessoa que, como ele, conseguira sobreviver ao massacre. Mas ninguém se encontrava
ali. Estava sozinho.
Ao olhar de novo para a água na fonte, viu outra vez aquelas feições estranhamente belas, e aqueles olhos vívidos e brilhantes que o fitavam com uma tristeza
imensa. Então, a jovem se virou. E parecia que as chamas que a rodeavam a consumiam.
Quando Tristão acordou daqueles sonhos, ela se fora.
A hospedaria estava cheia de fumaça que vinha do fogão e impregnada do cheiro de comida azeda, cerveja derramada e um lodaçal da pior escória de humanidade
jamais reunida em um só lugar. Iam até ali para beber, fornicar e tentar a sorte no jogo.
Garidor dirigia o andar térreo da estalagem perto do rio Wye. Provia as necessidades de vida dos peregrinos que viajavam pela estrada da floresta, dos habitantes
locais, que levavam uma existência miserável, caçando na floresta e depois vendendo as peles dos sitiantes e de todo tipo de clientes perigosos e de reputação duvidosa
cujas atividades eram bem conhecidas.
Ocasionalmente um viajante com ouro nos bolsos se aventurava
a entrar na hospedaria para uma refeição quente, uma caneca de cerveja e um quarto. Nem o viajante nem seu ouro eram vistos de novo.
Mab estava a cargo da administração do andar superior da hospedaria, onde outro tipo de conforto poderia ser encontrado pelo preço de uma pele de raposa, uma
peça de prata ou trocado por mercadoria. Era uma mulher corpulenta e alta, tinha a disposição de um porco do mato e a aparência similar.
Alguns diziam que era casada com Garidor. Outros, que eles tinham apenas um arranjo de negócios. E o negócio era bom, fornecido pela jovem Kari, dona de feições
etéreas de um anjo, o corpo de uma garota e a alma ferida de alguém bem mais velho.
Ninguém sabia de onde Kari viera. Havia rumores de que era filha de Mab, embora nada indicasse isso na aparência. Outros boatos insinuavam que Garidor a recebera
em troca de uma dívida, da qual cobrava juros regularmente no andar de cima, em um dos quartos.
Depois, havia Touro, assim chamado porque era tão apaler-mado quanto um, e emitia sons muito semelhantes a esse animal também. Era alto como um carvalho e
mantinha a ordem na hospedaria quando os clientes se tornavam muito exaltados ou quando estouravam discussões a respeito de Kari ou dos jogos de azar dirigidos pelo
moleque. Ninguém discutia com Touro.
O moleque era o mais novo membro da pequena "família" de Garidor. Miúdo e magro, com a aparência de um mendigo, usava roupas rasgadas uma sobre as outras,
mesmo com o calor do verão; e as faces manchadas de sujeira sempre davam a impressão de que precisava urgentemente de um banho. E tal
observação era feita por Mab, para quem banho nada mais era que uma ocorrência sazonal, contanto que o clima estivesse agradável e temperado.
Mas aqueles trapos de mendigo e a aparência suja do moleque eram para despistar, pois, debaixo das camadas de imun-dície, havia o agudo instinto de um sobrevivente
de espantosos olhos azuis que enxergavam tudo que acontecia na taverna.
O menino parecia ter surgido do nada. Num minuto não havia ninguém ali, no próximo ele estava agachado no canto, com três copos de madeira de boca para baixo
e dispostos em fila, com igual número de fregueses de Garidor a apostar em qual estava escondido o pequeno cristal reluzente com aquelas marcas estranhas. Se um
deles acertasse três vezes seguidas, ganhava não apenas todas as apostas feitas, mas também o cristal faiscante.
Depois, fora o jogo de dados, ainda mais apreciado entre os freqüentadores. Os dados, na verdade, eram cubos entalhados nas presas de um porco selvagem. Cada
um tinha seis faces. Em cada face havia marcas diferentes.
Os três dados eram colocados num copo, sacudidos com grande entusiasmo e depois jogados sobre a mesa de madeira em torno da qual os participantes se reuniam.
Um par dava o direito de continuar com o dinheiro da aposta e fazer outro lançamento. Três faces diferentes, e o jogador era forçado a entregar os dados e a aposta
ao menino. Se alguém conseguisse três dados com a mesma marcação, ganhava três vezes o que apostara.
Até o momento, o cristal ainda pertencia ao garoto, e ele acumulara uma incrível quantidade de badulaques, peças de prata e bugigangas.
Em pouco tempo, Garidor percebera a vantagem de ter o moleque como parte de sua família. Quanto mais os clientes jogavam, mais cerveja consumiam; quanto mais
cerveja consumiam, mais jogavam. Fez uma barganha por uma participação nos lucros em troca da permissão de o menino ter acesso aos fregueses.
Era uma barganha justa, sobretudo quando se considerava quanto os fregueses perdiam - o bastante para encher a pequena bolsa que o garoto usava no cinto na
maioria das noites, porém não o suficiente para afugentar a clientela.
A parte de Garidor era satisfatória, mas ele sabia que a do garoto era ainda mais. Por diversas vezes, tentara descobrir onde o menino guardava seu pequeno
tesouro, porém cada vez que Touro o seguia quando ia embora, depois de um dia de jogatina, o menino dava um jeito de enganá-lo.
Na verdade, Garidor não saberia dizer com certeza onde o garoto vivia, pois ninguém o vira em outro lugar, a não ser na hospedaria. Era bem provável que morasse
na floresta.
Pensou em mandar a garota Kari descobrir o local da boca do moleque, pois parecia existir um relacionamento especial entre ambos. Desde o momento em que ele
chegara, Kari se mostrara particularmente atraída pelo menino. Sempre que não havia ninguém que desejasse sua companhia, ela poderia ser encontrada junto com o moleque,
a observar os jogos de copos ou de dados, ou a conversar.
Era a única que trocava mais de uma palavra de passagem com ele. Ou melhor, parecia que era a única que falava. Talvez o moleque fosse mudo, pensou Garidor,
numa inspiração repentina. Isso tornaria tudo muito mais fácil quando por fim descobrisse o local onde o moleque guardava os lucros do jogo.
Não haveria gritos para chamar atenção, embora, provavelmente, não fosse aparecer ninguém para ajudá-lo.
Garidor beneficiava-se muito com as habilidades daquele menino. Mas o inverno estava próximo e, quando a neve cobrisse a floresta, haveria poucos fregueses
para apostar moedas, bugigangas ou peles num jogo.
Os tempos eram difíceis. A cada inverno havia alguém que não sobrevivia para voltar à hospedaria na primavera. Mas Garidor era um sobrevivente e assim continuaria,
especialmente quando encontrasse o tesouro escondido do menino.
Compraria um novo cavalo de tração para transportar sua própria cerveja, e - seus olhos luziram - quem sabe um vestido novo para Kari. Considerava tanto o
cavalo como o vestido novo um investimento, pois tinha planos para expandir os negócios. Garidor era um homem muito empreendedor.
Garidor era um porco, o moleque pensou ao ver de relance o olhar lúbrico que o homem lançava sobre Kari. Não era a primeira vez que o menino imaginava Garidor
de outra maneira, atado e amarrado a um espeto, com as chamas de uma fogueira a lhe lamberem a carne. Será que esgoelaria como um porco também?
Ainda não. Espere o momento. Havia ainda muito a arrancar dos fregueses. E a menina, Kari. O moleque não poderia deixá-la ali quando chegasse a hora de partir.
Seu olhar percorreu a hospedaria cheia de fumaça. Acostumara-se ao odor horrível daquele lugar, da comida requentada que ficava no caldeirão por vários dias
flutuando numa massa nojenta, de tantos corpos sem lavar amontoados no pequeno recinto. E o cheiro acre das tochas encharcadas de banha, de
cerveja azeda e da fumaça do fogão que pairava no ar e ardia nos olhos e nos pulmões.
- Eu lhe trouxe algo de comer - Kari disse, naquela sua voz suave e doce, assustando o moleque.
Normalmente, ele não era tão descuidado a ponto de permitir que alguém, mesmo ela, se aproximasse sem aviso. Mas havia algo diferente naquela noite, algo que
parecia pairar no ar em meio à fumaça e ao cheiro de podridão humana que o distraíra.
- Você precisa comer - ela insistiu, com os olhos como os de um anjo ferido a espiar por entre a onda de pálidos cabelos loiros que quase lhe encobria as feições.
- Ele fica com parte de seus ganhos, quer você coma, quer não - ponderou e olhou para a tigela, ainda mais triste. - Não é grande coisa, mas você já se acostumou
com isso. Fácil de suportar quando não há mais nada para comer.
Kari queria tanto agradá-lo, seu único amigo, com aqueles olhos azuis incomuns, um jeito doce e um toque igualmente gentil, como o de uma menina.
Então, a expressão nos olhos de Kari de repente mudou para uma de terror. Antes que o menino pudesse reagir, a cabeça da garota foi jogada para trás com um
soco que a esparramou na sujeira do chão. Garidor postou-se sobre ela.
Ele deveria tê-lo pressentido chegar. Melhor que ninguém, conhecia o animal inferior que era Garidor. Nem por um momento se devia dar as costas a ele. Contudo,
fora o que fizera. E Kari pagara o preço.
- Para cima! - Garidor berrou, postado sobre ela. - Há fregueses pagantes à espera.
Kari se ergueu devagar do chão. Abaixou a cabeça para esconder a marca roxa que já se destacava na face inchada, deu
a volta cautelosamente em torno de Garidor e rumou para as escadas, obediente.
- E então, moleque? O que está olhando? Quem sabe esteja pensando que gostaria de ter um pequeno pedaço daquilo lá, hein? - debochou Garidor. - Acha que é
homem o bastante, hein? Ou prefere os rapazes?
Garidor aproximou-se e pousou a mão no ombro do garoto; seu hálito empesteava o ar.
- Vou lhe dizer uma coisa, rapaz. Eu a darei de graça. Sem custo, por conta de sermos sócios. Vai gostar quando a pegar gemendo debaixo de você. - Apertou
o ombro do garoto, sem se dar conta do punhal que escorregara para a mão do menino, escondido dentro da manga da túnica suja que ele usava. - O que acha? - perguntou
Garidor, como se falasse com uma criança. - É hora de ter sua primeira experiência. Isso fará de você um homem, e juro que não existe pedaço mais doce que aquela
uma.
Seu olhar vagou para as escadas onde Kari desaparecera, a expressão de luxúria a lhe toldar os olhos ao pensar no corpo esguio, nos quadris quase de criança
e nos pequenos seios duros.
- Isso fará de você um homem, Garidor? - Mab perguntou, com uma risada ainda mais maliciosa, atraindo a atenção do sujeito.
- Cale a boca, megera! - Garidor berrou, com ódio. Mas Touro apareceu e se postou atrás de Mab como uma sombra enorme e silenciosa, muito maior que Garidor
e vários anos mais novo.
- E agora?! - exclamou Mab, a se alargar de prazer; sorria, mostrando todas as falhas nos dentes.
Garidor se retirou para o canto da hospedaria, onde foi servir cerveja aos fregueses.
- Há clientes pagantes à espera para tentar a sorte nos dados, menino! - Mab berrou, agarrando o garoto pelo ombro. Touro assomou por trás da velha com uma
expressão ameaçadora. - Vá logo - ela resmungou, ao soltá-lo com um duro empurrão.
Com um olhar para as escadas, o menino voltou para seu canto. Tirou os dados da bolsa e jogou-os dentro do copo de madeira quando o próximo cliente colocou
a aposta sobre a mesa.
No decorrer da hora que se seguiu, os dados foram jogados muitas vezes. Alguns clientes ganharam, mas a maioria perdeu. E o moleque aguardou.
Quando Garidor, finalmente, desabou em sua costumeira embriaguez e Mab e Touro cochilavam num canto, a roncar, ele se esgueirou pela hospedaria e subiu as
escadas.
Encontrou Kari encolhida no canto do quarto. O teto vazava em dezenas de lugares e a água se empoçava pelo chão. O lugar estava gelado de doer os ossos. Ela
se curvara numa bola apertada, sofrida, os hematomas visíveis entre a massa emaranhada dos cabelos. Encolheu-se quando o menino pousou a mão gentilmente em seu ombro.
Seus olhos, que refletiam toda sua imensa infelicidade, gradualmente se iluminaram e o fitaram com uma tristeza de condoer a alma.
- Eu o matarei se ele a tocar outra vez - o menino murmurou, a lhe afagar os cabelos, afastando-os do rosto machucado.
- Não deve dizer uma coisa dessas. Garidor é meu dono. Pode fazer o que quiser comigo.
- Então, eu a comprarei dele.
- Me comprar? Como?
- Deixe que eu me preocupo com isso - retrucou o menino, ao acariciar o rosto inchado.
Kari pendeu a cabeça e pousou a testa no ombro do garoto.
- Não me deixe - implorou. - Por favor, não me deixe.
- Durma agora - o menino murmurou e enlaçou-a pelos ombros. - Não a deixarei e, prometo, ninguém nunca mais vai machucá-la outra vez.
A tensão esvaiu-se daquele corpo dolorosamente magro, e a cabeça de Kari pesou em seu ombro. Não havia nada no quarto desnudo que oferecesse algum calor contra
o frio. Nenhuma manta ou pelego e, no entanto, ele a aqueceu.
O moleque não dormiu, mas ficou acordado a noite toda, a proteger e vigiar a garota. Uma raiva silenciosa o requeimava dentro da alma, e seus dedos se fecharam
sobre o cabo do punhal. Caso Garidor acordasse e voltasse...
- Quanto falta? - Tristão indagou.
Chovia desde o amanhecer. Agora, horas mais tarde, ele estava cansado, com frio, ensopado, e tinha uma suspeita crescente de que estavam perdidos.
Grendel, enfiado dentro do casulo encharcado da manta, deu de ombros.
- Um pouco.
A túnica grudava-se no corpo de Tristão como a pele de um cão molhado. E fedia como um. Era impossível saber quem cheirava pior, ele ou o gnomo.
- Disse isso quatro horas atrás - Tristão resmungou. E, quando não houve resposta, voltou-se na sela e cravou os olhos
furiosos no homenzinho. - Estamos perdidos! - concluiu com desgosto.
- Não estamos, não - insistiu Grendel, indignado.
- Sabe onde estamos? - perguntou Tristão, nada satisfeito em passar a noite ao ar livre, perdido.
- Não exatamente - Grendel respondeu, com o olhar a esquadrinhar os arredores em busca de uma paisagem familiar.
- Um palpite, então. - E como o gnomo o ignorasse, disse:
- Tem alguma idéia de onde estamos?
- Na floresta - retrucou o gnomo, os pensamentos concentrados em algo distante e, ao mesmo tempo, muito próximo.
- Árvores, samambaias, musgo... - Tristão deu um tapa na testa como se tomado por uma súbita inspiração. - Por Deus! Estamos na floresta.
Grendel o encarou, furioso, mas não disse nada. Estava ocupado demais, concentrado naquela percepção fugidia.
Estavam muito próximo. O tempo e a distância percorridos eram exatamente os mesmos e na mesma direção que antes e, contudo, não havia nenhuma cabana.
- Não compreendo por que não consigo encontrar o local
- ele resmungou, frustrado.
- Foi há vários anos - Tristão ponderou. - As coisas mudam.
- Tem de ser aqui - o gnomo insistiu. - Não irei embora até que encontre.
Tristão saltou da sela. Os cavalos estavam cansados, e ele, exausto. Cumprira a promessa feita a lady Meg. Tinham se empenhado naquela busca tola porque ela
pedira, embora Tristão sentisse que deveriam permanecer em Monmouth.
- Aonde vai? - Grendel indagou, tomado de pânico. - Não podemos partir quando estamos tão perto.
Tristão amarrou o cavalo a uma árvore ali perto.
- Preciso urinar.
- Oh... - Grendel murmurou, com a surpresa de alguém que não é perturbado por tais necessidades. - Por favor. Não quero atrapalhar.
- Obrigado - retrucou Tristão.
O berro do homenzinho, momentos depois, interrompeu qualquer outra necessidade biológica. Empunhando a espada, Tristão voltou à pequena clareira onde deixara
o gnomo com os cavalos. As montarias encontravam-se ali, mas o homenzinho sumira. Então, um grito ecoou de novo, mais distinto dessa vez e apenas a uma curta distância.
Tristão seguiu o som e encontrou o gnomo ao lado de um muro de pedra quase completamente escondido por samam-baias e trepadeiras emaranhadas, que ele tentava
afastar de lado com gestos frenéticos.
- Eu sabia que era aqui! É este o lugar! Este muro corria ao lado da cabana para evitar que os bichos da floresta chegassem à horta que Dannelore pretendia
plantar. Encontramos! - anunciou, triunfante.
Mas o que haviam encontrado?, Tristão se perguntou, ao ajudar o companheiro a limpar o mato que crescera com o abandono.
Onde estavam Dannelore e John? E, mais importante, onde estava a filha de Meg?
Capítulo II
Tristão seguiu o muro até onde terminava, à beira de uma horta - horta que não mais existia porque a floresta a reclamara.
Pouco além, mal era visível a cabana de pedras com seu teto de palha. As trepadeiras tinham escalado as paredes e pendiam dos beirais, fazendo-a parecer parte
da floresta. Nunca a teriam encontrado se Grendel não tivesse tropeçado naquele muro.
Ouvia-se apenas o som da chuva em meio à quietude. Nenhuma voz nem ruído de atividade. Aberturas das janelas os fitavam como olhos cegos, e a porta empenada
pendia num ângulo precário por uma única dobradiça.
- Não há ninguém aqui faz tempo - observou Tristão. - Talvez haja outra cabana nas redondezas.
Grendel meneou a cabeça, a expressão mais enrugada do que seria possível.
- O lugar é aqui.
- Como pode ter certeza depois de todos esses anos?
O gnomo parou, mantendo a cabeça ligeiramente inclinada e o rosto erguido, como um cão a farejar um coelho. E a percepção
lhe chegou em murmúrios. Um som saído do passado que ainda pairava naquele local solitário e abandonado. Um som de angústia e perda, sofrimento e desespero,
tão breve e tão fugidio que ele poderia julgar que não o captara, afinal. Um calor repentino emanou da bolsa que pendia de seu cinto. A mão morena, semelhante a
uma garra, fechou-se em torno da bolsa.
- Sim, você esteve aqui - ele murmurou. - Faz tempo,
mas posso sentir.
Tristão sacou o punhal da bainha no cinto e aproximou-se lentamente da cabana. Espiou lá dentro.
Afastou a cortina de teias de aranha que fechava a porta. Estava escuro lá dentro, a não ser pela luz acinzentada que se filtrava por aquelas aberturas escancaradas
das janelas.
A cabana tinha o cheiro indisfarçável de negligência e decadência, e, por toda parte, a friagem vazia de lugares abandonados. No fogão, uma camada de cinza
tinha endurecido até parecer pedra. Fazia tempo que um fogo não queimava ali.
Sujeira e gordura cobriam tudo. Se já houvera alguma mobília, esta sumira; ou fora levada embora pelos antigos habitantes, ou roubada.
Um rato, sem dúvida um morador atual, o encarou com os olhos de conta. Tristão chutou-o com a ponta da bota e lançou-o para fora da cabana.
Alguma coisa se mexeu nas sombras, num canto ao fundo. Tristão fez meia-volta e ergueu a espada, concentrando cada sentido naquele movimento, ao perceber o
vulto muito maior que de um rato.
- Tenha piedade! - uma voz trêmula e fina implorou das sombras. - Não faria mal a uma velha, faria, milorde?
Milorde? Ele não era tratado assim havia muito tempo.
- Apareça! - Tristão exclamou, e quando a velha saiu das sombras, emendou: - Devagar.
- Não me faça mal - disse a mulher, numa voz débil e tremida. - Sou só e indefesa. - Abriu os braços magros e mostrou que não tinha arma.
Tristão olhou para o canto, atrás da velha. Não havia outra porta. Ela não poderia ter entrado depois dele. Como não a vira ali?
A mulher era frágil e curvada pela idade, os ombros derrubados e com uma corcunda nas costas. E horrivelmente magra. Parecia que seus ossos saltariam pela
lã rústica do vestido. Os cabelos eram entremeados de prata e branco, e pendiam num emaranhado de mechas. E a pele era como pergaminho, quase translúcida, coberta
de rugas. Mas, a despeito da idade, seus olhos escuros conservavam uma intensidade cortante e o encaravam com uma calma perturbadora. E Tristão não conseguiu se
livrar da sensação de que a vira em algum lugar, antes.
- Há quanto tempo está escondida aqui? - indagou, tomado por um arrepio de alerta. Contudo era evidente que nada tinha a temer de uma velha cujos ossos pareciam
poder quebrar a qualquer momento.
- Não estava escondida, milorde. Certamente não se pode negar a uma velha o conforto do lar num dia tão desagradável.
Tristão ficou aturdido. Lar? Mas não poderia ser. Grendel tinha certeza de que aquele era o lugar que procuravam. E mesmo que achasse difícil acreditar que
a filha de Connor pudesse viver num lugar assim, o homenzinho nunca se enganava.
Como se adivinhasse seus pensamentos, a velha emendou:
- E, como pode ver, milorde, estou absolutamente sozinha.
- Talvez conheça as pessoas que procuramos. John Moore e sua esposa, Dannelore, e uma criança.
A velha sacudiu um ombro ossudo ao passar por ele e ir até o fogão e colocar um caldeirão enferrujado sobre a grade fria. Tristão franziu a testa quando ela
remexeu as cinzas onde um fogo não queimava fazia muito tempo.
- Não conheço ninguém com esses nomes - ela murmurou, e depois indagou: - Poderia ajudar uma velha a fazer fogo?
Umas poucas e míseras achas de lenha, cobertas de teias de aranha, estavam empilhadas ao lado do fogão. Quando Tristão as colocou sobre a grade, a velha o
agarrou com a mão ossuda pelo pulso. O aperto era forte e incomum para alguém tão frágil, e a mão era fria ao toque, mais fria que a cabana, mais fria mesmo que
o ar lá fora. E, por um momento, Tristão julgou ter visto algo de relance naqueles sombrios olhos escuros. Alguma coisa igualmente fria que virá em algum lugar antes.
Novamente foi assaltado pelo pensamento de que conhecia aquela mulher.
- Já nos encontramos antes?
Aquele olhar afiado como navalha se cravou nele. Um ar divertido e uma outra emoção luziram nas profundezas dos olhos sombrios.
- Eu me lembraria se tivesse encontrado um guerreiro tão belo antes. - E então, apontando para a pilha de lenha, a velha murmurou: - Umas poucas achas mais,
milorde. Para manter o fogo aceso durante a noite.
Tristão colocou mais lenha no fogão. Mas continuava a sentir a friagem do toque, um frio semelhante à morte.
- Talvez você e seu companheiro queiram passar a noite
- ela sugeriu ao empilhar a lenha. - Vai fazer muito frio e resta pouca luz lá fora.
A idéia pareceu penetrar no cérebro de Tristão como se fosse sua própria. Ele relanceou os olhos para a porta aberta e para a escuridão crescente da noite.
- Sim, talvez. - Por alguma razão, hesitou em aceitar o oferecimento.
- Pergunte ao seu companheiro. Um fogo traz mais conforto que dormir num chão duro e frio.
A idéia continuou a martelar em sua cabeça quando Tristão saiu da cabana.
Encontrou Grendel num lugar afastado da cabana e da horta. O gnomo estava ajoelhado no chão, debaixo dos galhos nus de uma árvore. Tinha os braços esticados,
os dedos a alisar a terra lamacenta.
Não ergueu os olhos nem deu qualquer demonstração de que percebera que Tristão se aproximava.
- Eles estão aqui - disse o gnomo. Debruçou-se sobre a terra.
- Uma velha vive aqui. E não sabe nada sobre John e Dannelore.
Mas Grendel insistiu:
- Eles estão aqui.
Tristão sempre julgara o gnomo incapaz de sentir emoções. Mas, naquele momento, sua expressão era de tristeza e pesar.
- Estão mortos.
Foi quando Tristão viu a mão morena, apertada em punho, e o sangue que pingava dos dedos.
- Você se machucou! - exclamou, com mais preocupação
do que gostaria de admitir. Ao forçar os dedos a se abrirem para enrolar o ferimento, algo caiu da palma do gnomo.
O pequeno objeto brilhou com a luz que definhava. Ao cair do chão lamacento, o brilho tornou-se de repente mais intenso, e depois, lentamente, se extinguiu
como uma chama que morre.
Tristão pegou o objeto e virou-o entre os dedos. Sob a luz que se apagava, as marcas esculpidas no cristal polido emitiam um tênue brilho.
- Já vi isto aqui antes - disse, com certeza, a apertar a runa de cristal entre os dedos.
Embora a chama tivesse se apagado, o calor permanecia, como uma lembrança do fogo. Espalhou-se através de seu corpo, afastando o frio que se instalara dentro
dele com o toque da velha. Seus pensamentos se aclararam.
- Pertence a lady Meg.
- Sim, um dos vários que ela guardou durante todos estes anos - o gnomo concordou -, enviado para os guiar até este lugar.
- E o ferimento na sua mão?
- Como pode ver - Grendel murmurou, ao virar a mão para cima, sob a luz que findava -, não há ferimento algum. O sangue que viu era deles. - Novamente seu
olhar cravou-se na terra, e o gnomo repetiu: - Eles estão aqui. O que vi foi a essência da encantada, que se juntou ao poder da Luz dentro do cristal. Foi o sangue
da morte deles que apareceu na minha mão.
Certa vez lady Meg mostrara a Tristão os cristais reluzentes. A luz do fogo arrancava faíscas das pedras claras, e o padrão se refletia num desenho luminoso
que brincava pelo teto do quarto. E Tristão ficara fascinado.
- As runas contam uma história - ela lhe dissera então. Explicara as marcas de cada cristal, esculpidas pela mão dos antigos, longo tempo antes. O dom que
possuía lhe dava a capacidade de ler a mensagem que os cristais transmitiam. Estendera-lhe um dos cristais.
- O cristal o protegerá.
Tristão pegara o cristal. Confiante do poder da pedra em seu bolso e cheio de coragem, ele enfrentara um dos moleques que sempre o humilhavam.
Uma bravata estúpida. Depois, com o lábio partido, o olho inchado e coberto de sangue, sentara-se quieto enquanto lady Meg lavava e cuidava dos ferimentos.
- Eu tinha a runa de cristal. A senhora disse que me protegeria.
- É esta a runa de que fala? - ela perguntara, tirando o cristal do próprio bolso.
Tristão quase engasgara e, em seguida, revirara o bolso fre-neticamente. Estava vazio. Lady Meg lhe pregara uma peça.
- Sim. - Meg parecia ter lido seus pensamentos. - Porque eu sabia que você só precisava lembrar-se do cristal e ter um pouco de coragem.
Desde então, ele sempre imaginava aquela runa de cristal enfiada em seu bolso quando se defrontava com uma tarefa particularmente difícil.
- E quanto à criança? Grendel meneou a cabeça.
- Não sinto nada. - Ao se virar, seu olhar cravou-se em Tristão. - Ela se foi.
- Faz quanto tempo?
- Muitas estações atrás - respondeu Grendel, enquanto segurava a runa entre as mãos e fechava os olhos.
- Como aconteceu?
- Só a criança pode nos contar.
- Onde ela está agora?
- Não tenho como lhe dizer isso.
Com uma expressão séria, Tristão pegou a espada e virou-se para a cabana.
- Talvez a velha possa nos informar.
- Não faça isso! - Grendel advertiu, seguindo-o com a rapidez que suas pernas curtas permitiam.
Tristão sentiu a friagem nos ossos antes mesmo de chegar à cabana. Estendia-se como uma mão invisível e o tocava tal como a velha o tocara. Mas quando entrou
na cabana, encontrou-a vazia. A velha sumira.
- Vamos embora - Grendel insistiu. - Precisamos ir agora.
- Ela estava aqui. Eu a vi. Falei com ela.
- Acredito em você, mas devemos ir embora agora. - Grendel puxou-o pela manga. - Temos de sair deste lugar.
O frio pareceu fechar-se em torno de Tristão, envolvê-lo, espremer-lhe o ar dos pulmões. Ele mal conseguia respirar. Recuou e saiu pela porta da cabana, com
a espada em riste.
- Sim.
A tempestade estava sobre eles quando chegaram aos cavalos, na beira da clareira. A neve que ameaçara cair durante todo o dia desabou em longas cortinas que
cobriam as árvores e abafavam os sons da floresta.
Tristão voltou-se na sela quando deixaram a clareira. Parecia
que a escuridão crescente e a neve se fechavam em torno da cabana, tornando tudo invisível. Era como se não estivesse ali. Não viu a figura solitária que se
postava à porta, com a neve a cair ao redor, mas sem tocá-la, nem os olhos negros que o espreitavam, frios como a morte.
- Alguma notícia? - Grendel perguntou, ansioso, quando Tristão voltou. Mas antes que ele respondesse, o gnomo pressentiu a resposta, a mesma para cada vila
e aldeia nas últimas semanas: ninguém vira a criança ou a conhecia.
Um ferreiro, num vilarejo pelo qual tinham passado dias antes, recordara-se de um homem dotado de um jeito especial com cavalos. Mas haviam se passado cinco
invernos desde que ele trouxera sua montaria para trocar a ferradura, e o ferreiro nada sabia de uma criança.
- E quanto a Dannelore? - indagou Grendel. - Alguém se lembrou de uma mulher com habilidades de cura que poderia ter aparecido na vila?
Tristão estava faminto, com frio, e não dormia em chão seco fazia uma quinzena. E detestava quando o homenzinho agia daquele jeito, lendo seus pensamentos
como se sua mente não tivesse dono.
- Ninguém sabia nada sobre John ou Dannelore.
- Perguntou à curandeira local? Dannelore pode ter procurado alguém para comprar medicamentos. E quanto ao padre? Eles costumam conhecer todos que passam por
suas vilas. E o mercador de que nos falaram? Você o encontrou?
Com a paciência esgotada, Tristão respondeu de lábios apertados:
- Se tem tão pouca confiança em mim, homenzinho, sinta-se à vontade para entrar na vila e perguntar por si mesmo.
Grendel empalideceu.
- Não! Não posso. Você sabe muito bem que as pessoas não gostam de gnomos.
- Então, se transforme em alguma outra coisa - sugeriu Tristão, e pensou: preferivelmente em alguém que não fale sem parar nem seja tão fedorento.
Os olhos de Grendel se arregalaram ao captar a próxima idéia do rapaz.
- Uma hospedaria perto do rio? Você sabe que não posso ir a um lugar assim.
- Que pena. Pode congelar o traseiro na neve, se quiser. Eu não tenho intenção alguma de fazer isso. Quero uma comida quente, um banho demorado e uma cama
seca. E uma mulher, se tiverem uma com todos os dentes e que cheire melhor que um gnomo.
- Bolas! - esbravejou Grendel. - Tudo em que você pensa é em comida e em fornicar. Não vamos ficar na hospedaria. É muito perigoso. Há toda sorte de tipos
maus por perto.
- Todos os dias viajantes chegam e partem de tais lugares - reclamou Tristão e, ao ver a reação do gnomo, emendou:
- Alguém lá pode saber alguma coisa sobre a criança.
- Você vai me deixar aqui? Sozinho? - O pânico era claro na voz de Grendel. - Existem lobos por aí. Posso ser devorado.
- De jeito nenhum - escarneceu Tristão. - Não, se o lobo tiver bom senso. - E, sem olhar para trás, instigou o garanhão negro para o declive rumo ao rio.
Grendel ficou parado no meio da estrada, com a respiração
a subir num penacho com o ar frio da tarde. A noite prometia ser ainda mais gelada.
- Keflech! - resmungou. - Por que sou obrigado a suportar o fardo de um mortal numa tal viagem? Por que a senhora não me acompanhou?
Sabia, porém, a resposta. Meg não deixaria lorde Connor tão gravemente ferido. E, assim, confiara nele, Grendel, com toda a esperança e fé, para cumprir a
jornada.
- Ah, senhora... Poderia ter escolhido um companheiro mais decente. Esse menino que me mandou pensa apenas em comida e mulheres.
Dentro de sua mão, a runa de cristal reluziu com um súbito calor, como se em resposta.
- Sim, sim, eu sei - resmungou Grendel. - Devo confiar nele. Mas ele não deveria também confiar em mim, e não agir tão impulsivamente ou de forma tão pouco
precavida? Pode me dizer?
Não houve resposta. O cristal esfriou mais uma vez em sua mão. Ou talvez a resposta fosse o silêncio. Grendel pegou as rédeas do cavalo e puxou o vagaroso
animal atrás de si.
- O mínimo que você pode fazer é cooperar - reclamou por sobre o ombro.
- Este é o lugar mais reles que já vi! - Grendel exclamou, com desgosto, ao se esgueirar pelas sombras ao lado de Tristão. Conseguira alcançá-lo com surpreendente
rapidez.
O cheiro de comida cozinhando se misturava ao de cerveja, ao calor do fogo e a um barulho desagradável. Por toda parte havia fumaça e sujeira. O lugar estava
cheio de fregueses rudes,
malcheirosos, servidos por uma mulher corpulenta, de sorriso desdentado, que era sem dúvida a esposa do estalajadeiro.
- Neste momento, eu aceito, contente, qualquer coisa reles em lugar de outra noite ao relento - Tristão anunciou e entrou na hospedaria.
Grendel não teve outra opção a não ser segui-lo. Foi empurrado para o lado por um homem grosseiro, com uma cicatriz feia do lado do rosto, que passou em busca
de uma caneca de cerveja em troca de várias peles lançadas sobre o balcão do bar. Grendel se encolheu como se os bichos sem vida o encarassem.
Tristão riu.
- Alguém que você conhece? Um primo ou um tio, quem sabe...
Grendel o encarou, furioso.
- Não! Graças aos Anciãos. Mas eu teria preferido partilhar a companhia das criaturas da floresta à desses mortais, num lugar como este. Não gosto daqui!
- Então, fique lá fora - sugeriu Tristão, e viu o gnomo engolir em seco.
- De jeito nenhum.
Passaram por cima de corpos de fregueses embriagados e esparramados no chão, de fardos com peles de animais e de todo tipo estranho de criaturas inferiores.
Grendel grudou-se em Tristão, mantendo-se fora do caminho dos clientes.
- Quer jogar? - um menino gritou do canto, quando passaram. - Qualquer aposta que quiser fazer, senhor. - Olhou para o punhal no cinto de Tristão. - O pote
está recheado esta noite. Tudo pode ser seu. Ou tem medo de tentar a sorte? - Jogou os dados de uma das mãos para a outra.
- É outra diversão que eu procuro esta noite, menino.
- Aonde vai?! - Grendel exclamou.
- Procurar uma comida quente.
Tristão seguiu para o bar, onde as canecas de cerveja eram enchidas pela enorme mulher desdentada.
- Ótimo! maravilhoso! Ele vai em busca de comida enquanto sou obrigado a me esconder. Como iremos descobrir alguma coisa sobre a criança? - resmungou Grendel
ao saltar por sobre outro corpo prostrado e seguir até o canto onde o menino jogava os dados.
Os fregueses mal notaram quando o gnomo se esgueirou entre eles e se aproximou do canto onde os dados estalavam num convite irresistível.
Ninguém o superava com os dados. Grendel nunca trapaceava; isso era para humanos. Porém sabia manipular o resultado de um jogo de vez em quando. Era divertido
ver a cara dos desafiantes, sempre tão fanfarrões, quando perdiam as últimas economias.
Tristão sorriu ao ver Grendel se aproximar do barril. Depois, bateu a caneca vazia sobre a mesa. A mulher se aproximou com incrível agilidade. Mab era seu
nome, de acordo com os berros que lhe dirigiam os fregueses rudes.
- Tem de pagar adiantado - disse ela, quando Tristão empurrou a caneca vazia em sua direção. - Não tem conversa, nem mesmo para um rapaz bonito como você.
- Com uma piscadela e um sorriso malicioso que revelava as gengivas sem dentes, ela estendeu a mão sebosa e lhe apertou o braço.
Tristão jogou uma moeda de ouro no balcão. E imediatamente tornou-se um alvo para todo ladrão de meia-tigela e bandido assassino. Mas também mandou o recado
de que poderia
haver mais de onde aquele dinheiro viera. Os olhos de Mab se iluminaram de cobiça.
- Pouca gente anda com moedas assim - ela comentou, correndo a língua pelos lábios. - Pode comprar um bocado de coisas.
- O que eu gostaria - retrucou Tristão - é de comida que não tenha ficado nesse caldeirão a semana inteira, esta caneca cheia de cerveja, um banho quente em
água em que ninguém tenha urinado, uma cama limpa para passar a noite e alguma jovem gentil para me aquecer.
Mab alargou o sorriso e deu-lhe um tapa no braço.
- O que haveria de querer com uma mocinha? Não sou boa para você?
Para provar sua teoria, empalmou o seio enorme e depen-durado na mão gorda e o sacudiu, para aprovação do rapaz. Não era uma visão agradável.
- Não vai achar melhor do que isto.
- Ah, Mab - Tristão deu uma piscadela para a mulher, dividido entre a incredulidade e o riso -, não creio que eu esteja ao nível de alguém como você. Preciso
de uma pessoa um pouco menos qualificada.
Ela bufou.
- Parece que tem queda por magricelas. - Debruçou-se sobre o balcão. - Pode ser um bocado difícil encontrar o que você quer. - Depois emendou, pensativa: -
Tem a garota, é claro.
Com um gesto de cabeça na direção da ponta da mesa sobre cavaletes, onde vários fregueses bebiam, indicou uma jovem que se esquivava da atenção indesejável
de um cliente.
- Ela tem pouca carne nos ossos - disse Mab, julgando
que o rapaz acharia os dotes da moça menos atraentes do que aqueles que ela lhe oferecera. - Mas, se gosta do tipo, posso mandá-la para o quarto no alto da
escada.
Tristão achou a garota dolorosamente magra, mas esse era o menor dos problemas. Os cabelos de um loiro pálido escondiam parcialmente suas feições. Aquilo que
ele conseguia ver mostrava um feio hematoma, sem dúvida provocado pelo último freguês que escolhera outra coisa, sem ser Mab. Havia também um machucado grande no
ombro, exposto onde a manga do vestido estava rasgada e pendia, aberta.
Ela parecia não ser mais que uma criança, e Tristão ficou a imaginar que má sorte a trouxera até aquele lugar. Era óbvio que ninguém na taverna poderia alegar
algum parentesco, mesmo que distante, com a garota.
- Qual é o nome dela? - ele perguntou, quando lhe veio um pensamento. A jovem tinha quase a mesma idade daquela que procuravam.
- Chama a si mesma de Kari.
- Como veio parar aqui? A mulher deu de ombros.
- Garidor a encontrou na vila. Não tinha ninguém nem lugar para ir nem comida e nenhuma roupa. Nós a recolhemos, lhe demos comida, teto e um trabalho - disse
Mab, como se fosse algo de que se orgulhasse.
- Muito generoso de sua parte.
- Gosta dela, não é? - a mulher perguntou, com um sorriso. - Vai custar uma moeda. Por uma hora. Acha que pode demorar isso tudo? - Lançou um olhar para um
homem marcado de bexigas, sentado ao lado do fogo.
Tristão conhecera homens como Garidor a vida toda. Eram
como fuinhas e o que não tinham em tamanho excediam em crueldade. O que explicava os hematomas no rosto da mocinha. Não desejava deitar-se com ela, mas queria
conversar. Se vivera nas ruas da vila, talvez soubesse alguma coisa sobre a garota que estavam procurando. Colocou outra moeda sobre a mesa.
- Mande-a levar a comida até o quarto.
Mab apanhou a moeda com a mão ensebada e sorriu de orelha a orelha.
- Por isto aqui, pode ficar com ela a noite toda.
A atenção de Grendel estava cravada no jogo de dados e no menino que jogava com tamanha perícia e esperteza que somente alguém de igual habilidade poderia
reconhecer ou apreciar.
Era difícil dizer a idade do garoto ou mesmo distinguir suas feições com a roupa folgada que usava. O capuz caía sobre sua face. Ocasionalmente, a luz de uma
tocha iluminava-lhe parte do rosto, revelando a pele cheia de sujeira que não precisava ainda de uma navalha.
Conforme a noite avançava e mais cerveja era consumida, mais os ganhos do menino aumentavam. Grendel começou a suspeitar de que aquilo nada tinha a ver com
sorte ou habilidade, mas com esperteza. Grendel era um jogador experiente. Conhecera todos os tipos de gente, inclusive aqueles trapaceiros que colocavam um pedaço
de metal no núcleo dos dados. O metal fazia os dados rolarem com a face oposta para cima. Quando a jogada podia ser controlada dessa forma, era difícil não ganhar.
A princípio, ele julgara que o menino jogava com dados
viciados, tão grande era sua habilidade e o número de vezes que ganhava. Mas, conforme observava, percebeu que não havia um padrão nas combinações vencedoras.
Não havia face que ficava constantemente para cima. Não conseguiu ver nenhuma razão lógica para tanta sorte.
Nem o adversário, que ostentava uma funda cicatriz na face.
Tome cuidado, Grendel avisou o menino em pensamento. O jogo prosseguiu e o arrogante Cicatriz foi perdendo. E ficando cada vez mais quieto. Entornava canecas
de cerveja uma atrás da outra, enquanto observava a pilha de suas moedas diminuir.
- Ninguém tem tanta sorte assim! - esbravejou. - Você está trapaceando!
- Pode lançar os dados - o moleque disse ao homem. - Assim, ninguém poderá dizer que eu trapaceei.
Cicatriz apanhou os dados e sacudiu-os na mão. Vários outros fregueses se aproximaram e apostaram contra o menino, certos de que Cicatriz não poderia perder.
Cheio de confiança, o homem lançou os dados pelo tampo do barril. Eles deslizaram e pararam contra a borda. Os espectadores esbugalharam os olhos de incredulidade.
Cicatriz jogara os dados e perdera.
Grendel não conseguia acreditar. Era como se os dados tivessem vontade própria. Um deles batera contra a borda e ficara equilibrada numa aresta. Então, como
se empurrado por uma mão invisível, rolara do outro lado, mudando completamente o resultado.
- Você trapaceou! - Cicatriz espumou de raiva. Bateu o punho fechado contra o tampo do barril, fazendo os dados saltarem, e atraiu a atenção de todos, inclusive
de Mab e Garidor.
- Isso é o rendimento do meu trabalho da estação inteira. Perdi tudo. Agora não sobrou nada para o inverno.
- Quer apostar de novo, então? - propôs o moleque. - O que acha de uma chance de recuperar o que perdeu?
Era uma proposta generosa, mas Cicatriz não era do tipo que quisesse parte de alguma coisa.
- Posso simplesmente tomar tudo de volta de você, moleque! - esbravejou. - Quem vai me impedir?
Garidor abriu caminho entre a multidão. Touro o seguia. Olhou para as moedas que o menino ganhara. Empurrou uma caneca de cerveja para Cicatriz. O sujeito
a pegou, enxugou o conteúdo de uma só vez e bateu a caneca vazia no tampo do barril.
- Parece uma oferta justa - disse Garidor. - A chance de recuperar metade do que você perdeu. - Um sorriso mortal se espalhou por seu rosto. - Assim, Touro
não vai precisar lhe arrebentar as fuças.
Como o animal, Touro parecia uma força irremovível ao lado de Garidor. E era evidente que possuía uma reputação que nem mesmo Cicatriz tinha coragem de desafiar.
O homem não ficou contente, porém não era nenhum tolo. Concordou. As moedas foram contadas, e as apostas, feitas. Garidor entregou os dados a Cicatriz, que
os pegou e os sacudiu na mão. Até mesmo Mab veio juntar-se aos espectadores, com a mão nos quadris. Cicatriz lançou os dados.
Todos pareceram conter o fôlego, com medo do resultado. Os dados bateram contra a borda do barril e depois tombaram para trás. Um se equilibrou precariamente
e, em seguida, caiu de lado. O silêncio dominava a hospedaria. Então, ouviu-se um suspiro de alívio. Cicatriz ganhara.
- Venha cá - disse Mab, com um tapa nas costas do homem. - Vou encher a sua caneca. E não vai custar nada.
Cicatriz ganhara de volta metade de seu dinheiro e uma caneca de cerveja. Com um grunhido, recolheu os ganhos, enfiou-os na bolsa que pendia do cinto e seguiu
Mab até o balcão. Touro foi atrás como uma sombra. Mas Garidor continuou ao lado do barril.
- Metade - exigiu.
Conforme a multidão se dispersava, Grendel viu quando o menino despejou o conteúdo da bolsa sobre o barril e separou metade para Garidor. Isso explicava o
interesse do homem no resultado do jogo.
Se houvesse uma briga, tudo poderia ter se perdido no meio da palha e da sujeira do chão, recolhido por quem quer que achasse as moedas. Mas se Cicatriz se
conformasse com uma parte, que homem não se conformaria, depois de perder tudo?, então a briga seria evitada. E Garidor recolhia seu quinhão conforme o acordo anterior
feito com o menino.
Não era nenhuma prática incomum. Com a partilha, o garoto tinha permissão para o jogo, sem medo de represália dos fregueses descontentes. Tanto o dono da hospedaria
como o moleque saíam ganhando com o acordo.
O que não tinha explicação era a quantia que o menino tirara da bolsa. A parte que dividira com Garidor era bem menor que metade dos ganhos da última hora,
portanto muito menor que os da noite toda. O respeito de Grendel pelo menino aumentou. E, contudo, era um jogo perigoso, esse com Garidor. E onde estava o resto
do dinheiro, se não se encontrava na bolsa?
Conforme a multidão diminuía, Grendel aproximou-se cautelosamente e colocou uma moeda de pouco valor sobre o barril.
A melhor maneira de descobrir como o menino agia era jogar.
- Aquilo foi muito corajoso - comentou, enquanto observava as mãos do garoto para ver se fizera alguma troca de dados.
- O sujeito foi muito estúpido. É fácil ganhar quando as pessoas se comportam como idiotas. Ele mereceu perder.
- Ah, mas você teria perdido muito mais caso ele não recuperasse uma parte do dinheiro na última jogada. O sujeito é muito perigoso.
- Não gosto de perder. E não perderia se Garidor não tivesse interferido.
- Confiança é uma qualidade admirável. É bom ter confiança. Torna todas as coisas possíveis. Com um pouco de sorte.
- Sorte? - A expressão da boca do menino era de ligeira zombaria.
Grendel deu de ombros.
- Muita gente acredita em sorte. Novamente surgiu aquele sorriso zombeteiro.
- Tudo bem, homenzinho. Se é nisso que quer acreditar...
Os olhos de Grendel se estreitaram de suspeita. Não conseguira descobrir nada que pudesse determinar o resultado. Então, pegou os dados.
O garoto não deu mostras de preocupação. Inclinou a cabeça com um gesto de concordância. Grendel rolou os dados e, quando um deles se inclinou contra a borda
do barril, o fez virar com um poderoso pensamento.
Não era pelo dinheiro. Tais coisas não tinham valor ou significado para Grendel. Estava curioso para ver qual seria a
reação do garoto. Jogou várias vezes mais, e perdeu os poucos ganhos conforme continuava. Por fim, todas as moedas tinham acabado.
- Sem moedas, sem jogo! - o garoto exclamou, e recolheu os dados.
- Não tenho nada de valor. - Grendel, então, pegou a runa de cristal da bolsa do cinto. - Apenas isto. Certamente vale pelo menos uma jogada - disse.
- E se você perder? - perguntou o menino.
- Se eu perder, o cristal será seu. Mas, e se eu vencer?
O menino jogou três moedas sobre o barril, daquelas que tomara de Cicatriz.
- O cristal vale mais que isso.
- Talvez para você. Mas não vale nada para mim.
- É um cristal mágico. Veja como brilha.
- É apenas um reflexo.
- Brilha no escuro, como uma lanterna, para mostrar o caminho.
O garoto examinou o cristal com um ar de ceticismo.
- Como vou saber que você diz a verdade?
Grendel pegou o cristal, cobriu-o com a outra mão e mostrou um vislumbre do brilho que ainda permanecia. O garoto acrescentou mais três moedas às outras.
- Dez - exigiu Grendel. - Nada feito por menos.
O garoto bufou de frustração ou de raiva ao jogar mais quatro moedas no topo do barril. Grendel esboçou um sorriso.
- Agora podemos jogar.
O jogo foi rápido e furioso. Grendel ganhou a primeira rodada apenas por sorte, poupando o cristal. O menino venceu
as duas seguintes. Na terceira, Grendel percebeu que estava com problemas.
Keflech! O garoto era bom. Melhor que bom. Grendel nunca vira ninguém, mortal ou não, que pudesse se comparar ao menino em perícia. Então, na rodada seguinte,
o garoto pareceu perder a concentração e perdeu.
Grendel seguiu-lhe o olhar até o pé das escadas, onde Mab conversava com a menina de cabelos claros. Era magra de uma forma quase dolorosa, com um feio hematoma
numa das faces. Ela sacudiu a cabeça com ar obediente, pegou a travessa de comida que Mab lhe entregou e, depois, lentamente, subiu as escadas. Não era preciso nenhum
dom especial para perceber a posição inferior da jovem. Por umas poucas moedas estava ali para agradar aos fregueses. Sem dúvida era essa a razão de ter sido mandada
escada acima.
O menino continuou a acompanhá-la com o olhar. E recolheu os dados.
- Não pode ir embora - Grendel protestou. - E o jogo? Vários fregueses tinham se reunido ao redor, ansiosos para jogar. O garoto entregou os dados para Grendel.
- Pode jogar. O que ganhar é seu - anunciou. - O acordo com Garidor continua de pé.
Então, virou-se para as pessoas à sua volta e anunciou que poderiam tentar a sorte com seu aprendiz. E, antes que Grendel pudesse reclamar, o garoto esgueirou-se
pelas sombras e desapareceu.
O menino rumou para a escada com os olhos cravados em Garidor. Se fosse visto, haveria problemas, pois Garidor dava valor, acima de tudo, à parte que conseguia
todas as noites nos
ganhos do jogo. E criaria confusão se descobrisse que outro jogava os dados no lugar do garoto.
Garidor se julgava um homem de negócios com vários empreendimentos. A hospedaria era um deles. Peles e bugigangas eram comercializadas ali. Kari, a garota,
também era um dos empreendimentos de Garidor. Ficara órfã, tal como o menino, e fora tirada das ruas com a promessa de comida, alojamento e uma moeda de vez em quando
em troca de seu trabalho. Mas era jovem, bonita e inocente; comparada a Mab, representava um atrativo bem maior para os negócios.
Garidor a tomara, a primeira vez, na despensa atrás das barricas de cerveja. A menina ficara apavorada, sem saber o que esperar. Fora algo brutal e degradante.
Como conseqüência, ela sangrara durante dias. Por fim, os machucados sumiram, apenas para serem substituídos por outros. Marcas físicas. Outras, piores, psicológicas,
nunca haveriam de desaparecer, visíveis em seu olhar e ouvidas nas lágrimas que derramava, tarde da noite.
Ela queria morrer, mas o menino a convencera de que não deveria desistir. Prometera que a levaria dali quando tivesse juntado dinheiro suficiente. E era uma
promessa que ele haveria de cumprir.
Depois daquela primeira vez, sempre que Garidor a queria, a menina era mandada para encontrá-lo no quarto no alto da escada. E tinha de fazer dinheiro com
aqueles que freqüentavam a hospedaria. Nunca recebia uma moeda por isso; Garidor ficava atento. E lhe dizia que tinha sorte por ter uma roupa no corpo e uma refeição
quente por dia.
A habilidade do garoto no jogo era outro dos empreendimentos de Garidor. Encontrara o menino na vila, depois de
notar que muitos de seus fregueses trocavam suas moedas ou mercadorias por uma chance de tentar a sorte. Quando chegavam à hospedaria, estavam como patos depenados.
Com Touro ao lado, Garidor propusera ao menino uma parceria, arranjaria um canto na hospedaria onde o garoto poderia jogar em segurança em troca de uma parte
dos ganhos de cada noite. O que não fora dito, mas estava implícito, era que se o garoto não concordasse, não viveria para ver outro dia.
O garoto conhecia aquele tipo de gente. Garidor era ganancioso, imundo e cruel. E quando chegasse a hora de encerrar a parceria, o moleque simplesmente sumiria.
E levaria Kari junto.
O menino chegou às escadas e, com a habilidade aprendida em sobreviver, esgueirou-se para cima sem ser notado.
Havia dois quartos no segundo andar da hospedaria. Garidor e Mab partilhavam o maior no final do pequeno corredor. Um segundo quarto, menor, ficava sob as
vigas da cumeeira do teto de palha.
Na maioria das vezes, o quarto era alugado para quem quisesse passar a noite. Kari dormia com freqüência no quartinho menor, onde fazia uma barricada na porta
para impedir a entrada do estalajadeiro em suas andanças noturnas. Nas noites em que ambos os quartos estavam ocupados, ela dormia na despensa com o menino. Era
nessas ocasiões que faziam os planos para fugir, quando o garoto tivesse conseguido dinheiro suficiente.
Naquela noite, o quarto menor fora ocupado pelo desconhecido alto e magro que portava aquele estranho punhal no cinto e a espada enrolada em couro, nas costas.
E Kari fora mandada até ele.
O desconhecido bebera muitas canecas de cerveja. Além disso, pedira um banho quente, o que ajudaria a aumentar sua letargia. Com um pouco de sorte, logo dormiria
de bêbado, e Kari poderia sair sem ser abusada. Senão...
A mão do menino fechou-se sobre o cabo do punhal que tirou do cano da bota. Se as coisas dessem errado, os dois seriam forçados a fugir da hospedaria naquela
noite.
A porta estava entreaberta. O garoto empurrou-a com a ponta do pé. O vapor subia da tina cheia de água quente. O menino ouviu o chapinhar da água e a voz do
estranho, que chamava por Kari.
- Venha cá, menina. E traga mais água. Vou precisar de uma porção de baldes para me livrar desta sujeira e do fedor.
O garoto viu que o homem estava mergulhado até o peito na tina. A mão descansava na borda e os cabelos pretos caíam molhados por sobre a beirada. Tinha os
olhos fechados. Os braços pendiam do lado da tina, o corpo submerso na água.
Com passos silenciosos, o garoto entrou. Kari ergueu os olhos, assustada. Mas não disse nada ao ver que o menino levava o dedo aos lábios, pedindo silêncio.
- E a água quente? - reclamou o estranho.
- Já vai, senhor - Kari respondeu depressa e despejou o balde d'água na tina.
O desconhecido suspirou, e sua boca se curvava num sorriso de prazer.
- Traga o esfregão. Tenho sujeira até em lugares que não sabia que existiam.
Kari começou a tremer violentamente. Ficava apavorada por estar tão perto de um homem, depois das coisas que Garidor
lhe fizera. Mas, se recusasse, o estranho poderia reclamar, e seria muito pior.
O garoto fez um gesto para que Kari se afastasse do sujeito. Depois, pegou o pano de ensaboar e se aproximou devagar da tina.
- E me dê aquele sabão de cinzas que sua patroa mandou -Tristão disse, de olhos ainda fechados. - Vale a pena perder um pouco de pele para me livrar desta
sujeira.
- Sim, senhor. - A voz de Kari tremeu enquanto ela trocava um olhar preocupado com o garoto.
O menino pegou o pedaço de sabão de lixívia e o pano e ia jogá-los na água quando Tristão emendou:
- Me dê uma ajuda, garota. A água está ficando fria e não tenho vontade de congelar meu traseiro. Ou qualquer outra parte. - Sorriu, sentindo que ela estava
de pé, atrás dele. - Não quero privá-la desse prazer.
Kari deixou escapar um pequeno gemido estrangulado. O garoto relanceou os olhos para a túnica e as calças do homem, jogadas sobre a cadeira. Vira o brilho
da moeda de ouro que ele dera a Mab. Poderia haver mais. Permitiria que fugissem naquela própria noite. Fez um gesto na direção das roupas do estranho, e Kari moveu-se
para elas.
- Ensaboe esse pano, garota - disse o estranho. - E ande depressa com isso.
O menino percebeu que o homem queria que Kari o lavasse. Olhou para ela. Tinha de lhe dar tempo para procurar o ouro nas roupas. Cerrou os dentes e começou
a ensaboar o pano.
- Não seja tímida. - Tristão sentiu a hesitação da garota. Era muito recatada. Ele não tinha a intenção de deitar-se com ela, mas um banho não faria mal. Depois,
a mandaria embora
com algumas moedas a respeito das quais a velha megera não precisaria saber.
A garota começou a esfregar-lhe o ombro em movimentos hesitantes, circulares, mas sem se aventurar a ir mais além.
- Você pode fazer melhor do que isso! - Tristão exclamou. Pegou-a pelo pulso e puxou a mão para baixo, enquanto emendava, com um sorriso malicioso: - Prometo
não morder. Pelo menos, não muito forte. E você pode gostar.
Escorregadio como uma enguia, o menino escapou do aperto do estranho. Com a outra mão, empurrou-o com força, fazendo com que afundasse a cabeça na água.
Quando Tristão conseguiu emergir em meio a uma confusão de braços e pernas e palavrões cuspidos, confrontou-se não com a tímida garota, mas com o brilho ameaçador
de um punhal apontado para seu pescoço.
- Por nada deste mundo! - o rapazinho esbravejou.
Capítulo III
Tristão olhou para a extensão mortal daquela lâmina e depois para o feroz olhar azul que o encarava da proteção do capuz que o assaltante usava.
Seus olhos se estreitaram. Reconheceu a túnica grande demais, usada sobre camadas de roupas e presa na cintura com uma corda, as calças muito compridas enfiadas
nas botas pequenas, e as mãos que exibiam destreza e agilidade surpreendente na mesa de jogo.
Seu atacante era o menino que vira antes na taverna, que jogava com notável esperteza e perícia para alguém tão jovem, limpando os fregueses de suas moedas.
Agora, o impedia de desfrutar o prazer de um banho.
Pelo fogo do inferno, que danação!, pensou ao encostar a cabeça na borda da tina. O vapor que subia da água ainda cheirava vagamente ao ensopado que fora cozido
ali. Sem dúvida, teria o mesmo destino se ele continuasse na água.
- Faz semanas que só tomo banho frio em riachos - começou, quase num tom de conversa, a cabeça ainda encostada na borda da tina. Fechou os olhos e suspirou.
- A última
refeição quente que comi foi um mês atrás. - Abriu os olhos lentamente e encarou o garoto. - Não consigo me lembrar da última vez em que dormi em alguma coisa
diferente do chão duro e frio. Isso aí não é brincadeira para criança. - Apontou para o punhal. - Alguém pode se machucar. Volte para o colo de sua mãe. Sem dúvida
está procurando por você. O garoto bufou.
- Sim, alguém pode se ferir - disse com ar de riso. Então, sua voz endureceu. Os olhos azuis se estreitaram. - Mas não precisa se preocupar com minha mãe;
ela não se importou comigo desde o dia em que nasci.
As palavras soaram impregnadas de ódio e desprezo. Tristão tocara fundo numa velha ferida, uma ferida muito dolorosa e antiga para alguém tão jovem. E, em
algum lugar dentro do ódio e do desprezo, percebeu um anseio pela mãe e pela família que perdera, quaisquer que fossem as circunstâncias. Era algo que Tristão compreendia
bem.
Havia dezenas de crianças como aquele garoto, vitimadas pela guerra e a pobreza, mesmo naqueles tempos de paz e prosperidade, desde que Arthur se tornara rei.
Tinham visto conforme viajavam para o norte, morando às margens das cidades, vilas e aldeias. Sobreviviam como podiam, mendigando, revirando o lixo e furtando. Tal
como aquele garoto pretendia roubá-lo.
O olhar do moleque desviou-se para a bolsa que estava entre as roupas, numa silenciosa comunicação com a jovem criada. A menina pegou-a e enfiou-a no bolso
da frente da saia. O garoto, então, fez um gesto para que ela se afastasse até uma distância segura.
- Existem lugares - comentou Tristão - em que na primeira
vez que um ladrão é pego, ele perde uma das mãos. Se for pego roubando uma segunda vez, perde a outra.
- Só se for pego - o garoto retrucou com demasiada confiança.
- Sim - concordou Tristão, muito sério. - Só se for pego. - E, de repente, saltou fora d'água.
O garoto não esperava por aquilo. Tristão pôde ver pela expressão em seu rosto. Mas recuperou-se depressa e, com aqueles reflexos ágeis que Tristão vira na
mesa de jogo, desviou-se e investiu com o punhal, cortando o peito do guerreiro.
Tristão não tinha certeza de quem estava mais surpreso, se ele próprio, a garota, Kari, que começou a berrar diante da visão de um homem nu, ou o menino, cujos
olhos se arregalaram.
O ferimento não foi profundo; ele recebera piores nos pátios de treinamento em Camelot, durante simulações de batalha com outros cavaleiros de Arthur. Mais
grave que qualquer outra coisa era ter sido surpreendido por um mero garoto. Além disso, fazia frio no quarto e ele estava nu e pingando de molhado.
Os olhos redondos se estreitaram ao examinar a extensão do corpo do guerreiro com um interesse ávido que fez o estômago de Tristão se encolher.
- Faça outro movimento e eu arrancarei fora algo vital - ameaçou o moleque, olhando bem abaixo do ventre de Tristão.
- Por Deus, já chega! - praguejou o guerreiro e, num gesto que era bem mais experiente e mais rápido, arrancou o punhal dos dedos do moleque, fechou a mão
em torno do pulso esguio e depois dobrou o braço do menino para trás. Ergueu-o do chão, a outra mão a apertá-lo pelo pescoço.
O moleque jogou a cabeça para trás com tanta força que o
capuz escorregou para os ombros, revelando uma expressão assustada no rosto sujo e uma cascata de fartos cabelos dourados que desabou pelas costas.
Kari soltou um grito de susto.
- Você não é um menino! É uma moça!
Tristão olhou com incredulidade para as feições imundas emolduradas pela radiante massa de cabelos loiros.
Deu uma boa esquadrinhada no semblante do menino sob a luz das lamparinas. Tinha as feições muito delicadas: o ângulo das maçãs do rosto, o nariz bem-feito
acima da boca recurvada, o formato suave do queixo pequeno, agora erguido em desafio. E havia curvas debaixo de todas aquelas camadas de roupa que escondiam as formas
da estranha mocinha. A raiva luzia nos olhos azuis da cor do coração de uma labareda. Porém, junto com a raiva e o ar desafiador, havia uma porção igual de pasmo.
Pega de surpresa, amarrada e impotente. Não eram sensações de que gostasse. Isso a tornava vulnerável. E ela jurara nunca mais ficar vulnerável outra vez.
Somado a isso, havia a indignação por ser agarrada e depois prensada contra um homem nu.
Seus dedos formigavam de vontade de ter o punhal na mão. Mas o estranho o tirara dela. Estava no chão, a vários centímetros de distância e sem utilidade. Não
podia contar com Kari para ajudar. A pobre criatura estava abobada diante do que via. Tão perfeito fora seu disfarce que ninguém, nem mesmo a garota de quem se tornara
amiga, tinha qualquer idéia de que ela fosse outra pessoa além daquilo que queria que acreditassem.
Contudo, se sobreviver por conta própria durante todos aqueles anos lhe ensinara alguma coisa, fora a de ser cheia de recursos. E ela era uma sobrevivente.
Com as mãos prensadas contra as costas, pouco podia fazer. Quanto mais se debatia, mais forte o estranho a apertava. Assim, em vez de lutar para se libertar,
atacou, enterrando os dentes no ombro do estranho.
O gosto a surpreendeu, uma combinação do forte sabão de cinzas, o sabor metálico de sangue e algo mais que se demorou em sua boca.
Recobrou-se depressa enquanto ele gritava de dor e, surpresa, percebeu que o aperto momentaneamente tinha afrouxado. Então, ergueu um joelho com violência.
O golpe apanhou Tristão na virilha, não com muita força, mas o suficiente para fazê-lo soltar a moça completamente.
Escorregadia como uma enguia, ela caiu ao chão e rastejou até o punhal. Tristão soltou uma praga, a única palavra que conseguiu pronunciar entre os lábios
apertados de dor e fúria.
Aquela criaturinha poderia ter acabado com ele se tivesse mirado melhor. Contudo, como um animal ferido, ele ainda estava vivo e era ainda mais perigoso.
A garota sentiu a mão do estranho na nuca. Então, se viu girada e jogada contra a parede do quarto.
- Faça um movimento e vou separar sua cabeça dos ombros.
Sem fôlego, humilhada, a garota se encolheu contra a parede, furiosa. Mas não era tola. Tirou as mechas de cabelos dos olhos e ficou imóvel, de olhos cravados
na extensão da espada reluzente que o estranho empunhava.
O sangue minava do corte que ela abrira num dos ombros do guerreiro. Um círculo perfeito de marcas de dentes porejava sangue do outro ombro. Seu olhar desviou-se
para baixo para ver o próximo ferimento. Mas recuou depressa para o território mais seguro do rosto.
Sim, ela pensou com crescente certeza, ciente do calor que lhe queimava as bochechas. Uma bela marca na face iria mudar aquelas feições bonitas e fechadas.
Ou talvez um sorriso... cortado de orelha a orelha!
Teria de pensar como conseguir isso num momento mais oportuno, quando não houvesse a ponta daquela espada contra sua garganta.
- Keflech! - exclamou Grendel, do vão da porta, ao olhar para o quarto em desordem. - O que aconteceu?
A pequena mesa estava virada de pernas para o ar, a caneca e a travessa de comida, caídas no chão, e o conteúdo, espalhado. A cadeira se chocara contra o braseiro,
que virara, lançando as brasas pela madeira coberta de palha do assoalho. Só não acontecera um desastre porque a tina fora sacudida e a água transbordara e apagara
as chamas que haviam se iniciado entre a palha.
Aqui e ali, pequenos focos de incêndio fumegavam na palha molhada. O ar cheirava a sabão de lixívia, mato queimado, e havia um odor acre de lã chamuscada.
O menino que Grendel seguira pelas escadas não se encontrava em lugar algum à vista. Kari mantinha-se agachada a um canto. Impressionante mesmo era o guerreiro,
Tristão de Marc.
Estava nu como no dia em que nascera, um pé ainda plantado na água do banho, o outro no chão, por sobre a borda da tina. Sua altura era ainda mais notável
sem a pesada túnica almofa-dada, as vestes e as calças. E os músculos enxutos se flexionavam e encordoavam pelos ombros e braços conforme ele empunhava a espada
pronta para investir. Escorria sangue de um corte num dos ombros. Os cabelos molhados grudavam-se
à cabeça e às costas. Tinha o maxilar cerrado e a expressão de seus olhos era fria como a morte.
Mesmo nu, quando muitos mortais se sentiriam mais vulneráveis, ele era uma visão formidável. Parecia completamente esquecido da nudez, ali, de pé, com a espada
nivelada ao pescoço da jovem encolhida contra a parede, em meio à palha fumegante, à mobília revirada e à comida dispersa.
O peito da garota arfava a cada respiração que puxava para os pulmões. Os cabelos emaranhados emolduravam as feições ruborizadas, onde olhos azuis luziam,
desafiadores.
Mas, e o garoto?
Grendel o seguira pela escada. Aquele era o único lugar onde poderia estar. Seu olhar voltou à garota furiosa e desafiadora. Examinou-lhe as roupas, a inclinação
da cabeça, as mãos sujas que procuravam alcançar o punhal que jazia a vários centímetros de distância.
As roupas eram as mesmas. As mãos também. Vira aquelas mãos rápidas como um relâmpago na mesa de jogo. E tinha o mesmo jeito de inclinar a cabeça.
Impossível, os instintos mortais lhe disseram. Não poderia ser o menino. Mas a evidência estava lá, o resto facilmente escondido debaixo daquela camada de
roupas amarradas na cintura. Mas por que se disfarçar?
A resposta veio-lhe com o próximo pensamento. Não era seguro para uma moça permanecer sozinha num lugar como aquele. Mesmo Dannelore e John não tinham ficado
a salvo. Então, algo mais se infiltrou em seus sentidos à maneira antiga; quase irreconhecível, tantos anos fazia desde que o sentira. Como algo esquecido e longo
tempo depois relembrado. O reconhecimento de um espírito afim.
- Mantenha os olhos na outra - Tristão resmungou. - Ladras, as duas, e atuam juntas. Esta aqui tentou arrancar meu coração.
- Estava mirando sua garganta! - a garota sibilou.
- Então, tem que praticar mais.
- Com todo o prazer!
- Precisa de uma lição, eu creio! - Tristão exclamou e inclinou a espada sob o queixo da jovem.
Grendel sentiu a raiva da moça, e outras emoções que lhe assaltaram os sentidos: o profundo laço de amizade com a garota, Kari; o senso de proteção que sentia,
capaz de arriscar a própria vida pela outra. E outras emoções: a dor de uma grande perda, o ódio amargo, e um vislumbre da criança magoada no íntimo. Então, tudo
foi oculto sob o destemor que a ajudara a sobreviver.
- Pare! - Grendel gritou a Tristão. - Não pode fazer isso.
Com um único pensamento, Grendel concentrou toda sua energia e, ao estender a mão, deslocou a espada para o lado. Furioso, Tristão o confrontou:
- O que está fazendo? Ela tentou me matar.
A interrupção era tudo de que a jovem precisava. Lançou-se sobre o punhal e saltou de novo de pé. A lâmina luziu em sua mão.
Tristão levou a espada para cima, num gesto defensivo. Em vez de se enterrar no peito dele, como a garota pretendia, o punhal resvalou pelo antebraço do guerreiro.
Tristão agarrou a jovem pelo pulso e o torceu para trás.
- Talvez fosse bom que você perdesse um dedo ou dois
- ameaçou, mantendo o rosto apenas a poucos centímetros do dela.
Só uma vez antes, Grendel vira tamanha força e coragem em face de tão grande disparidade. Apenas uma vez, naqueles muitos anos em que vivia entre os mortais.
A verdade sussurrou em sua mente. Uma verdade vislumbrada naquela indisfarçável coragem... Algo visto de relance naqueles brilhantes olhos azuis.
- Pare! Não faça isso! Você não compreende!
Não o escutaram. Grendel viu o punho de Tristão erguer a espada. Então, com surpreendente agilidade, o gnomo jogou-se para a frente, chocou-se contra os joelhos
da garota e rolou com ela pelo chão e para longe do perigo.
- Maldição! Seu pequeno fuinha! - Tristão explodiu de raiva.
O punhal, caído no chão, estava ao alcance da garota que, num gesto rápido e ágil, estendeu a mão para recuperá-lo. Mas Grendel foi mais veloz. Não lutou para
disputar a arma. Em vez disso, agarrou a jovem pelo braço.
Uma sensação de formigamento se espalhou por todo o braço da jovem. Então, o homenzinho tocou-a no pescoço. Um calor estranho percorreu-a, a lhe aquecer a
pele e o sangue. A escuridão toldou-lhe a visão. Ela tentou lutar, focar a imagem do guerreiro, mas não conseguiu. Percebia-se caindo. Esforçou-se por dominar o
torpor. Então, sentiu apenas aquela escuridão envolvente.
Tombou no chão, aos pés de Grendel.
- Que diabo você está fazendo? - esbravejou Tristão.
- Impedindo você de sofrer um ferimento mais grave - Grendel retrucou.
- Eu tinha tudo sob controle. Ia fazer a ladrazinha perder um dedo ou dois por tentar cortar minha garganta. Sem dúvida ela trapaceia no jogo também.
- Sim, trapaceia - Grendel concordou, bastante admirado de não ter se dado conta disso antes. - Mas poderia não ser bom para você lhe cortar um dedo ou dois.
- Do que está falando?
Tristão estava furioso. Seu banho e o jantar estavam arruinados, suas roupas, molhadas. Pelo cheiro acre no quarto, o fogo queimara bem mais que um pouco de
palha. Os ferimentos em seu ombro e peito latejavam, para não mencionar uma parte mais sensível de sua anatomia que aquela ladra atingira com o joelho.
Pensou em lady Alyce e imaginou se poderia agradá-la novamente, pois a dor se espalhava por seu ventre, dando-lhe náuseas. Apontou a espada para Grendel.
- Do que está falando? - resmungou de novo por entre os dentes cerrados.
O gnomo lançou um olhar para a garota amontoada no chão.
- Estou falando da filha de lady Meg.
-Está maluco! - Tristão exclamou. - Esta...-enfatizou a palavra ao apontar a ponta da espada na direção na garota inconsciente - não é a filha de Meg.
- Não tenho tempo para discutir com você - retrucou Grendel. Ergueu a cabeça, como um cão a farejar o perigo, e franziu a testa. - Precisamos deixar este lugar.
Agora. - Encarou Tristão. - Sugiro que vista suas roupas.
- Minhas roupas estão molhadas - resmungou Tristão. - E, pelo cheiro neste quarto, é bem provável que estejam queimadas também.
Grendel deu de ombros e se inclinou para a garota imóvel.
- A escolha é sua, é claro.
- Você não pode ter certeza de que esta é a garota.
Um lampejo de dúvida perpassou pela expressão do gnomo. Deveria ter sentido mais cedo, no entanto não percebera nada. Só quando as emoções da jovem tinham
ficado expostas e vulneráveis é que ele captara a verdade. Será que ela possuía tão pouco dos poderes da mãe que ele não pudera detectá-los? Ou havia algo mais?
- Onde estão seus poderes, se ela é filha de Meg? - Tristão indagou, quase como se lesse os pensamentos do homenzinho.
- Por que ela não sabia quem éramos? Pode responder?
- Não posso. Mas tenho certeza de que é a filha de Meg.
- Era verdade. - Vamos levá-la conosco.
- Como propõe que façamos isso, pequenino? Vai enfiá-la no seu bolso?
- Você vai me ajudar.
- E se eu recusar?
- Eu poderia transformá-lo num sapo, ou numa lombriga no traseiro daquele sujeito enorme que chamam de Touro - ameaçou Grendel.
- Isso não funcionava quando eu tinha dez anos. Não é agora que vai funcionar.
- Não me tente a paciência, menino!
Um ruído que vinha das escadas atraiu-lhes a atenção.
- É Garidor! - Kari gritou. Até então, parecia paralisada, encolhida num canto. - Vai me matar com certeza.
Os olhos de Grendel se cravaram em Tristão.
- O que vai ser?
Tristão olhou para a apavorada garota. Ela era propriedade
de Garidor. Ele poderia culpá-la pelo que acontecera e certamente a puniria. Pela aparência do rosto machucado, talvez não sobrevivesse ao próximo castigo.
Tristão apanhou as roupas no chão e ordenou à garota:
- Passe a trava na porta.
Ela hesitou, como se incerta de onde haveria mais perigo, no quarto ou com Garidor.
- Barre a porta! - Tristão repetiu, num berro. A garota saltou de pé e passou a tramela na porta.
As calças e a túnica estavam molhadas, e a manta de pele, ligeiramente chamuscada, mas Tristão vestiu-as mesmo assim. Depois, calçou rapidamente as botas e
enfiou, na frente da túnica, a bolsa com as moedas que a garota tentara roubar. Em seguida, embainhou a espada e colocou-a nas costas. Pegou o punhal do chão e enfiou-o
no cinto, enquanto seguia para a janela. Abriu as venezianas.
Estava um frio de doer lá fora. A garoa se transformara em granizo. Nevaria pela manhã. Tristão bufou de desgosto ao pensar no braseiro quente, num bom jantar
e até mesmo numa cama vazia, que seria bem preferível ao que os aguardava fora da estalagem.
- Ajude-me a amarrar estes lençóis! - exclamou Grendel. - É uma longa queda até o chão.
Amarraram dois lençóis, mas não foi o suficiente. Kari aproximou-se, hesitante. Tirou o pesado xale de lã dos ombros e entregou-o a Tristão.
- Não terá nada para se aquecer - ele disse, gentilmente.
- Prefiro passar frio - ela murmurou, tímida. E deu um Pulo de susto quando a porta estremeceu com os murros do lado de fora.
Tristão amarrou o xale na ponta do lençol e jogou a outra ponta pela janela.
- Terá de dar certo - disse ao olhar para Grendel. - Você vai primeiro. Baixarei a garota depois.
Os olhos de Grendel se estreitaram.
- Tenha certeza do que vai fazer - ameaçou o gnomo, ao saltar o parapeito e agarrar-se nos panos pendurados.
Tristão praguejou baixinho, conforme descia o gnomo devagar até o chão.
Puxou os lençóis de volta e fez um arnês com o xale. Enfiou-o pelos ombros da garota desmaiada. Não era nenhuma criança, pensou, quando suas mãos roçaram a
suavidade de um seio sob as roupas com que ela se disfarçava. E a despeito da aparência suja, seus cabelos eram limpos e cheiravam a mato molhado.
Os cílios, de um dourado-escuro, ocultavam os olhos que o tinham encarado com tanto ódio. Os lábios estavam entreabertos, a respiração, curta.
Será que era a filha de Meg?
Achou difícil acreditar; no entanto, a prova poderia ser aquele loiro suave dos cabelos, o arrebitado do narizinho e os olhos notáveis que luziam com um fogo
azulado. Mas o queixo forte, o arco das sobrancelhas e aquela coragem inquieta o faziam lembrar-se de outra pessoa: do homem que via como pai, irmão, amigo e muito
mais. O homem a quem entregara sua vida.
Desceu a garota suavemente pela abertura da janela, enquanto as batidas na porta mudavam para o som característico de um machado contra a madeira. Logo, Garidor
abriria passagem.
Tristão apanhou o pedaço de pão do chão e passou as pernas pela beirada da janela. Com o pão preso entre os dentes, desceu pela corda de lençóis. Era toda
a comida que poderiam ter no futuro próximo.
- E quanto a Kari? - perguntou Grendel, quando o rapaz chegou ao chão e enfiou o pedaço de pão na frente da túnica. - Não pode pensar em deixá-la. Sabe o que
aquele homem fará com ela.
- Talvez quisesse levar a velha megera junto, para cozinhar para nós - Tristão sugeriu, com a boca apertada. - E quanto ao caçador de peles? Poderia nos ser
útil. Por que não anunciar a todos na hospedaria que podem vir conosco também?
Grendel suspirou. Nunca se acostumava com os mortais e seu senso de humor.
- Não podemos deixá-la! - exclamou, indignado.
- Temos dois cavalos - Tristão ponderou. - Como pretende viajar se somos quatro?
- Você tinha intenção de comprar outro cavalo quando encontrássemos a filha de Meg. Simplesmente terá de comprar dois.
Pelo barulho que vinha do quarto no alto, não havia mais tempo para discutir o assunto. Grendel soltou um assobio agudo.
Kari apareceu na abertura da janela. O gnomo fez um gesto a ela para que descesse. A garota hesitou. Mas então a porta cedeu, e ela tomou a decisão. Subiu
no parapeito. Era uma descida precária até o chão. A jovem escorregou pelos lençóis até a metade do caminho e depois se soltou e saltou para o solo.
Grendel desamarrou o xale e enrolou-o nos ombros da garota.
- Você precisa vir conosco - disse a ela. E quando a menina relanceou os olhos para o guerreiro, emendou: - Foi idéia dele. Está decidido a levá-la.
Tinham amarrado os cavalos no abrigo das árvores próximas. Montaram: a filha de Meg, ainda desacordada, na sela com Tristão, e a jovem Kari com Grendel. Cavalgaram
até que não puderam ir mais longe, tão exaustos estavam os animais. A tempestade se fechava no alto, e o granizo se transformou em nevasca que os cegava.
Buscaram abrigo numa choça de pastor que encontraram. Era pequena e o frio penetrava pelos vãos das paredes esburacadas. Mas tinha um teto que os protegia
da neve e do vento cortante.
- Que cheiro maravilhoso! - Tristão comentou, referindo-se ao o fedor das ovelhas que se abrigavam na cabana. Acalmou o cavalo inquieto. - E pensar que eu
poderia estar numa cama quente e com a barriga cheia de comida.
- Sim - concordou Grendel, que amarrava a montaria exausta. - E, sem dúvida, com uma faca nas costas também.
Estava escuro como uma tumba dentro da choça. Grendel remexeu na bolsa que carregava e encontrou o cristal. Comprimiu-o com força entre as palmas e fechou
os olhos, concentrando seus poderes.
O cristal começou a aquecer-se em suas mãos. Quando o gnomo as abriu, a pedra brilhava com uma luz que se espalhou pela cabana.
- Ohhh! - Kari exclamou, ao saltar do cavalo e se aproximar com cautela para ver. - Como fez isso?
Tristão bufou.
- Ele é um gnomo. Lança encantos com poções malcheirosas e palavras mágicas.
Grendel olhou, furioso, para o guerreiro, enquanto Kari recuava e não se atrevia a se aproximar mais.
- Ele é fraco da cabeça - o homenzinho explicou em voz baixa, e tocou a têmpora para indicar que Tristão era abobado. - Não ligue para ele.
- E você fala demais para quem é tão pequeno - resmungou Tristão, ao tirar a garota inconsciente do lombo do cavalo e colocá-la sem muita gentileza sobre a
palha que forrava o chão.
- Tome cuidado, seu estúpido! - advertiu Grendel. - Não a machuque.
- Ora essa. É uma criatura tão delicada, tão frágil, não é mesmo? Sua mãe e seu pai ficarão orgulhosos. Se realmente ela é quem você diz...
- Eu lhe digo, ela é Rianne - insistiu o gnomo. - Não cometo erros com coisas assim.
- Por que não percebeu mais cedo?
Aquela mesma pergunta incomodara Grendel durante as longas horas desde que haviam fugido da hospedaria. Não tinha resposta.
- É a filha de lady Meg. Você vai ver.
Tristão removeu a sela e os arreios do cavalo e colocou-os sobre a palha. Com um ligeiro sorriso, dirigiu-se a Kari.
- Não o deixe zangado. Esse aí tem um temperamento horrível. É conhecido por transformar as pessoas em sapos quando o aborrecem.
Sem saber se era verdade ou brincadeira, a moça deu um passo para trás. Grendel encarou Tristão, furioso.
- Eu deveria mesmo transformar você num sapo.
Então, voltou-se e prendeu o cristal num gancho que havia numa tábua ali perto. O brilho iluminava a choça e se refletia nos olhos sonolentos das ovelhas amontoadas
para se aquecer. O homenzinho se debruçou sobre a jovem inconsciente. As roupas a haviam protegido do frio, mas tinha as mãos geladas. O frio não deveria tê-la afetado.
Seria possível que estivesse enganado?
As feições eram as de Meg, mas nada mais havia que sugerisse a herança especial com que ela nascera. Pousou a mão com gentileza no rosto da garota. Nunca mais
a vira desde que era um bebê. Contou mentalmente os anos. Ela não era mais uma criança, e sim uma jovem mulher adulta.
O que acontecera a Dannelore e John? Havia quanto tempo a garota vivia por conta própria? O que acontecera a ela nesse intervalo de tempo? E o que sabia do
legado com que nascera? Sentiu o poder dentro da jovem, como uma chama em repouso, hesitante e incerto.
Kari aproximou-se, e olhou incerta para a garota inconsciente encolhida sobre a palha.
- Ela vai ficar bem? - perguntou com timidez.
Como o próprio gnomo, Kari ainda tentava se acostumar ao fato de que o menino que conhecera não era um menino, afinal.
- Sim, estará bem pela manhã. Mas é melhor deixá-la dormir por enquanto. - Olhou para Tristão, que se aproximava, e franziu a testa quando o guerreiro passou
por ele e se debruçou sobre a garota adormecida. - O que está fazendo?
Tristão pegou um pedaço de couro e amarrou os pulsos da jovem com firmeza.
- Tomando precauções - resmungou. Firmou o nó. A garota não se mexeu. - Contra um punhal nas minhas costas. Mesmo que seja a filha de Meg, você não sabe com
certeza o que ela pode fazer. Não sabe nada sobre ela. E, é evidente, ela também nada sabe de você.
O gnomo o encarou, indignado.
Tristão levantou-se. Estendeu a manta sobre a palha a alguma distância.
O gnomo ficou a resmungar consigo mesmo.
- Que praga, por que a senhora não mandou um verdadeiro cavaleiro para me acompanhar? Não, manda um idiota!
Inclinou-se sobre a garota inconsciente e colocou-lhe a manta em torno dos ombros. E então, numa atitude inusitada para uma criatura de seu mundo, fez uma
prece silenciosa por aquilo que estava por vir pela manhã.
Rianne sonhou velhos sonhos; de lugares que vira e outros que desconhecia; com rostos de pessoas das quais não conseguia se recordar; e com uma voz que a chamava,
vinda da bruma. Sonhou com fogo, sangue e morte. Viu-se dentro das chamas. Viu os mortos a jazer a seu redor por todos os lados. Sentiu um calor repentino nas mãos.
Quando baixou o olhar, estavam cobertas de sangue.
- Você não pode escapar - a voz murmurava em seus sonhos. - O destino aguarda.
Era sempre o mesmo. Ela estendeu as mãos diante de si, conforme as palavras a alcançavam através da neblina. O sangue escorria por seus dedos. Julgou que pudesse
ter se ferido, não sentia dor. Havia apenas aquela voz e o sangue, que
lentamente desapareceu até que tudo que restava era uma única gota. Rianne a fitou e viu-a transformar-se aos poucos numa pedra suavemente polida e incrustada
num grosso anel em seu dedo. E, ao fitá-lo, tornou-se consciente da imagem de alguém que caminhava em sua direção através da bruma.
Era um homem, e no entanto não era. Era alto, com longos cabelos negros esvoaçantes. A bruma rodopiou em torno dele, e o homem pareceu desaparecer. Então,
a névoa se dispersou mais uma vez e ele estava muito mais próximo. Tão próximo que ela podia ver-lhe os olhos.
Eram de um azul brilhante como o coração de uma chama e pareciam enxergar o âmago de sua alma. Então, era a si própria que fitava, seus olhos que a encaravam
de volta, e era ela que se aproximava através da névoa...
Rianne acordou num sobressalto.
Lentamente, como a bruma que se dissipa sob o calor do sol da manhã, o sonho recuou, e as imagem se recolheram às sombras do sono.
Aos poucos, ela tomou consciência dos arredores: o cheiro de terra úmida, o estalar seco de palha debaixo de seu rosto, o cheiro pungente de animais, a textura
áspera da manta de lã, e a respiração profunda daqueles que dormiam perto.
Seus olhos se ajustaram gradualmente ao ambiente. Através da escuridão reinante, Rianne notou a claridade acinzentada que penetrava pelas paredes e por um
canto do teto, no alto.
Estava frio. Sua respiração fumegava em meio às sombras. E o cheiro de neve recém-caída era agudo no ar. Tinha as mãos geladas. Tentou esfregá-las e sentiu
de imediato a restrição dos laços de couro.
Onde estava? O que acontecera?
Lembranças da noite anterior na hospedaria vieram-lhe à mente; o estranho alto, o ouro que ele entregara a Mab. Ela lhe interrompera o banho. Pensara em feri-lo
e pegar o ouro. Fora rápida com o punhal. Mas ele fora ainda mais rápido.
Saltara da água como um demônio e pulara sobre ela. Mesmo agora, ainda conseguia enxergá-lo, completamente nu, reluzente de molhado, espantoso, apavorante,
fascinante.
Vira homens sem túnicas antes, mas nunca um com absolutamente nada. Ele parecia alheio ao fato, do jeito com que se postava, orgulhosamente nu.
Lembrou-se dos músculos rijos que corriam como cordas sob a pele dourada dos braços, conforme ele empunhava a espada com mortal facilidade; da extensão dura
e lisa do estômago como se fosse moldada em ferro, e da forma cheia da musculatura do peito.
Recordou-se de como ele não recuara quando o ferira, nem mesmo depois, quando o sangue pingara do corte. E se recordou do gosto dele, daquela estranha essência
máscula e perturbadora.
Expulsou as lembranças da mente e concentrou-se nos laços, nos pulsos. Livrou-se deles facilmente e continuou a ouvir os sons em torno de si enquanto esfregava
as mãos para aquecer os dedos entorpecidos.
Ficou deitada por algum tempo enquanto a sensação gradualmente lhe voltava às mãos. Duas outras pessoas dormiam ali perto. Ela ouvia o ressonar profundo e
ritmado. Tinha certeza de que um era o homenzinho que acompanhara o guerreiro até a hospedaria. Se ele estava ali, então o companheiro não poderia estar longe.
A pessoa que dormia mais perto dela era dolosamente magra,
enovelada debaixo de um grosso xale. Cabelos lisos e pálidos se espalhavam pelas beiradas do agasalho. Seu coração se apertou. Aqueles homens também tinham
prendido Kari. Pelo menos estavam juntas e longe de Garidor. Mas qual seria agora o destino de Kari?
Quem eram aqueles estranhos? E por que ela e Kari tinham sido feitas cativas? Seriam mercadores? Ou feitores de escravos, talvez? Mesmo no reino de Arthur,
tais coisas existiam. Especialmente ali, naquelas regiões frias do norte, onde cada homem fazia suas próprias leis.
Agachou-se nas sombras. Dentro da choça, Rianne divisou os contornos das ovelhas abrigadas ali. Um dos animais se remexeu e depois se acomodou com um profundo
suspiro. No canto ao fundo, ela distinguiu as formas mais altas de dois cavalos.
Só dois? Onde estava o estranho alto? Sem dúvida dormia com os cavalos. Deixara o homenzinho para tomar conta dela e de Kari.
Rianne não conseguia se lembrar de nada depois que aquele pequenino a tocara, na hospedaria. Será que a golpeara? Só se recordava da ligeira pressão da mão
dele em seu ombro e depois aquela escuridão envolvente que desabara sobre si.
Silenciosamente, aproximou-se de Kari e colocou a mão sobre a boca da garota adormecida.
Kari acordou de imediato, os olhos arregalados de medo. Então, arqueou as sobrancelhas num gesto de reconhecimento. Rianne viu a confusão e as perguntas que
surgiam no olhar da garota. Comprimiu um dedo contra os lábios, pedindo-lhe silêncio.
Fez um gesto para a abertura da choça. Kari meneou a cabeça
em sinal de entendimento. Assim que a garota se levantou, Rianne percebeu, surpresa, que Kari não estava amarrada como ela ficara. Pegou-a pelo pulso e puxou-a
para a abertura da cabana.
Lá fora, a neve cobria o chão como um tapete, sob o céu de um cinzento perolado. A respiração de Rianne subiu como uma pluma pelo ar frígido da manhã. Não
tinham provisões nem armas, só a bolsa de moedas e as bugigangas que ganhara no jogo, escondidas dentro da túnica. Franziu a testa, incapaz de compreender a atitude
dos captores, que não tinham lhe tirado a bolsa enquanto estava inconsciente.
A neve recente era macia sob os pés e abafava os passos. As duas se esgueiravam pelas sombras. Havia um curral atrás da choça, sem dúvida onde o pastor prendia
o rebanho durante a estação da tosa. Depois, uma suave sucessão de colinas ondulantes. O terreno declinava numa estreita faixa onde a vegetação nua era mesclada
com pinheiros até a beira da floresta.
Rianne muitas vezes buscara abrigo nas florestas em vez de em vilas ou aldeias. Seria quase impossível para alguém encontrá-las até que estivessem bem longe.
Fez um gesto a Kari para que mantivesse o silêncio.
Seguiram pela faixa coberta de neve rumo à linha das árvores. As roupas de Rianne eram bastante quentes, e as botas que usava mantinham seus pés secos. Mas
as vestes de Kari eram de um tecido ralo e ela calçava apenas chinelos. Bem depressa estaria ensopada, batendo os dentes entre os lábios arroxeados.
Tinham quase alcançado a cobertura da mata quando Kari ergueu os olhos, cravou-os adiante com um ar de espanto e arquejou.
- O que é?
A expressão do rosto de Kari estava congelada de terror. Rianne girou ao redor para ver o que a assustara tanto e deu de cara com seu captor.
Sob a luz fria da manhã, postado entre elas e a liberdade, o guerreiro parecia mais formidável, mais impressionante e até mesmo assustador, ali, recostado
contra o tronco de uma árvore, as botas cruzadas nos tornozelos, os braços cruzados no peito, os olhos acastanhados luzindo com divertida satisfação.
- Bom dia - disse. - O que estão fazendo aqui?
Rianne não viu razão para mentir. E certamente não pretendia deixar-se intimidar. Conhecera vários outros bem piores que aquele estranho.
- Estamos fugindo - anunciou calmamente. E então, perguntou com rispidez: - O que você faz aqui?
- Estava me aliviando - Tristão respondeu, num tom igualmente calmo.
Olhou para Kari, que tremia da cabeça aos pés, agachada atrás de Rianne. Seus lábios já estavam arroxeados. Magra como uma vara, tinha uma palidez pouco saudável
no rosto. Desprotegida, com apenas aquele vestido fino, não sobreviveria por muito tempo.
- Está frio aqui fora - comentou Tristão. - E há outra tempestade a caminho - emendou, num tom nada agressivo. - Voltem para a cabana e se aqueçam.
Kari hesitou e agarrou-se no braço de Rianne, incerta do que fazer.
- Vá - Rianne lhe disse, por fim, sabendo que não havia esperança de fuga. Pelo menos, por enquanto. - Tudo ficará bem - afirmou.
Observou quando Kari retornou à cabana, a relancear os olhos para trás, e depois entrou.
- Amarrei a corda com firmeza - comentou Tristão, quando ficaram sozinhos. - Nenhum homem poderia escapar. Você é muito habilidosa.
Não havia medo nos olhos da jovem, apenas desafio e coragem.
- É preciso ser habilidosa quando se trata de sobrevivência. - Seu olhar desceu para o punhal preso ao cinto do guerreiro; o mesmo punhal com que ela o cortara
na hospedaria.
- Gostaria de ter isto de volta, não? - Tristão perguntou, a mão pousada ligeiramente no cabo do punhal e observando a reação da garota.
Com aquela mesma ousadia e candor, ela retrucou:
- Gostaria de arrancar seu coração.
Capítulo IV
Tristão jogou a cabeça para trás e caiu na risada. Riu até as lágrimas encherem seus olhos e ameaçarem rolar por suas faces.
Na fria madrugada antes do alvorecer, com os longos cabelos loiros espalhados pelos ombros e uma expressão assassina no rosto adorável, a jovem o encarava
como alguma corajosa princesa guerreira das histórias que seu avô lhe contava, quando Tristão era criança. Céus, não pensava nelas fazia um longo tempo. A única
coisa que faltava era um escudo preso numa das mãos e uma espada na outra.
Não era essa exatamente a reação que Rianne esperava ou pretendia. No mínimo, julgara que seria surrada e depois arrastada de volta para a cabana, na ponta
da espada, e amarrada e amordaçada. Mas aquela risada a pegou desprevenida e a confundiu. Que tipo de captor era ele?
- Pare, milorde! Não se zangue! - berrou Grendel, alarmado, ao se lançar pela neve na direção dos dois. - Isso não passa de um simples engano. A garota não
pretendia lhe fazer mal algum.
O gnomo acordara um pouco antes, despertado por uma premonição, e se vira sozinho na choça, apenas com a companhia das ovelhas e dos dois cavalos.
Não ficara muito surpreso que Rianne tivesse fugido. Para alguém tão habilidosa com as mãos como ela e com poderes desconhecidos, escapar dos laços era brincadeira
de criança. O que o surpreendera fora não ter sentido sua partida.
Eram espíritos afins. Uma afinidade que permitia, às criaturas como eles, reconhecer o vínculo no outro. Não sentira tal vínculo quando a haviam encontrado
pela primeira vez na hospedaria. Não houvera essa sensação de conexão.
Agora, ela tentara fugir e fora capturada. Poderia ser quase divertido se não fosse a expressão perigosa no semblante de sir Tristão.
- Não há engano algum, homenzinho - Tristão retrucou calmamente. - Ela pretendia escapar e teria conseguido caso eu não a pegasse no ato.
- Que sorte que você as encontrou. - Grendel tentou minimizar a tentativa de fuga. - Como aconteceu de surpreendê-las?
- Ele estava se aliviando - Rianne informou, com rude franqueza.
- E isso não é tudo - Tristão a interrompeu. - Ela gostaria muito de arrancar meu coração. - Seus olhos se estreitaram. - A mãe ficaria muito orgulhosa. Isto
é, se ela for quem você diz que é.
Grendel empalideceu. As coisas não caminhavam como ele desejara. Primeiro, a descoberta de que John e Dannelore estavam mortos fazia muitos anos, e a filha
de Meg desaparecera. Depois, encontrá-la naquele lugar pavoroso, disfarçada de menino,
vivendo como uma mendiga. Ou talvez ladrão fosse o termo mais apropriado.
A jovem não era nada daquilo que ele esperava ou imaginava. Não era recatada ou bem-educada, nem aparentava ter consciência do legado com que nascera. Em vez
disso, sobrevivera num buraco infernal, convivendo com os piores elementos nos limites do reino de Arthur, tinha os modos e o temperamento de um porco-espinho, para
não mencionar a franqueza e a crueza de palavras que poderia se rivalizar com qualquer homem.
Se fosse a filha de Meg...
- Do que ele está falando? - Rianne indagou. - O que sabe sobre minha mãe?
Grendel sentiu-lhe a raiva crescente e tentou tranqüilizá-la.
- Tudo em seu devido tempo. Venha, vamos voltar para a cabana. Está muito mais quente lá.
Rianne não se moveu.
- Não estou com frio.
- Você pode querer ficar aqui e discutir, mas eu, não - Tristão declarou. - Está frio e você vai voltar para a cabana.
- E se eu não for?
Ele nivelou a espada à altura do pescoço da jovem.
- Então, serei forçado a cortar fora algo importante. Com a lembrança do confronto anterior e o resultado ainda vívido em sua mente, Rianne concluiu que, no
momento, a prudência era melhor que a raiva e a teimosia.
- Um dia eu creio que terminaremos essa pendência, mi-lorde - ela jurou, entre os dentes cerrados.
- Espero ansioso por essa hora, milady. Mas, por enquanto, você vai voltar para a cabana.
Rianne não teve outra escolha a não ser obedecer.
Kari estava sentada no canto dos fundos, com as pernas dobradas, os braços passados em volta do corpo, tentando se aquecer. Ergueu os olhos, e o alívio perpassou
por sua expressão ao ver Rianne.
O vento da tempestade que se avizinhava penetrava como faca pelos vãos das paredes. Rianne tirou a túnica e estendeu-a à garota. Era debruada de pele de carneiro
e, embora manchada de lama e gordura, tratava-se de um agasalho bastante quente.
- Tome. Não tem sentido você ficar enregelada até a morte, quando eu tenho mais que o suficiente para me manter aquecida.
Kari pegou a túnica e enfiou-a pela cabeça. Era enorme, caía pelos ombros e as pontas das mangas iam muito além dos dedos.
- Ninguém nunca se importou que eu passasse frio antes - disse a menina, hesitante. - Obrigada.
- Não precisa me agradecer. É minha culpa que você esteja nesta situação. Se não fosse por mim, você estaria...
- Com Garidor, na hospedaria - retrucou Kari. Sua voz falhou e ela não disse mais nada, como se pronunciar o nome daquele homem fosse mais doloroso do que
poderia suportar. Enrolou-se na túnica e baixou os olhos.
Rianne encontrou, entre a palha do chão, a tira de couro com a qual o guerreiro a prendera. Passou a tira pela cintura de Kari, prendendo as dobras da túnica
para que se ajustasse melhor. A garota a encarou com ar magoado.
- Você mentiu para mim - disse com voz sumida e desapontada, como se não acreditasse na transformação que vira.
- Não menti para ninguém. Você acreditou naquilo que quis, só isso.
Rianne suspirou, exasperada, tomada por um estranho sentimento de culpa. Por tanto tempo vivera por conta própria que não estava acostumada a se sentir obrigada
a dar satisfação de seus atos. Desde pequena, só contava consigo mesma. Sentimentos de amizade por alguém eram novos e difíceis de lidar. Mas não tão difíceis como
a confusão e a mágoa que via em Kari.
- Eu era muito pequena quando perdi minha família - explicou. - Estava sozinha e não tinha ninguém em quem me apoiar. Nas semanas e meses que se seguiram,
vi coisas que nunca esquecerei. A vida é dura para as crianças, mais dura ainda para uma criança sem alguém para protegê-la. - Viu o olhar de simpatia na expressão
magoada da garota. - É costume considerar uma menina sem valor algum até que chegue a uma certa idade - murmurou ao se recordar de outras coisas.
- E ser forçada a cumprir as ordens de quem quer que seja que pense que é dono dela - Kari emendou, dizendo palavras cheias de amargura.
Rianne concordou.
- Disfarçada de garoto, tornei-me invisível para os outros. Ninguém prestava atenção em mim. Eu era capaz de ir aonde me agradasse, sem medo de ser machucada
por alguém. Estava segura. - Como sempre, afastou as lembranças dolorosas.
- E sua habilidade com os jogos? - perguntou Kari. Rianne sorriu.
- Era muito mais seguro que roubar.
- Mas Garidor tomava metade de tudo.
- Isso é o que ele pensava. - Os olhos azuis reluziram com
malícia. - Não tinha como saber quanto eu ganhava nos jogos, e os fregueses não costumavam se vangloriar de suas perdas. Kari riu, deliciada.
- Você mentiu para ele!
- Nunca. Eu o enganei. Ele acreditou no que quis. A quantia que eu pagava a Garidor era uma ninharia perto do valor que escondia.
Kari ficou espantada.
- E se fosse pega?
- Não tinha intenção de me fazer apanhar por Garidor. Kari relanceou os olhos na direção do guerreiro, que fora cuidar dos cavalos.
- O que vai acontecer com a gente agora? Eles certamente irão nos matar.
Rianne meneou a cabeça.
- Se fosse esse o propósito, já o teriam feito.
Rianne começou a trançar os cabelos, enquanto olhava o guerreiro, que cuidava do cavalo inquieto amarrado a um canto da cabana. O estranho tinha a espada ao
alcance da mão e o punhal que tomara dela preso no cinto. Rianne precisava encontrar um jeito de recuperá-lo. Levantou-se e limpou a palha das calças. Jogou a trança
para trás.
- Não sei, mas vou descobrir.
Tristão viu-as conversando baixinho. As duas tinham se amontoado num canto, a trocar murmúrios. Suspeitava de que a principal preocupação era escapar, e não
ficou surpreso quando a jovem que Grendel insistia ser a filha de Meg se aproximou.
O que teria de agüentar?, pensou. Lágrimas ou ameaças?
Ah, as mulheres... Jovens damas, de alta ou baixa estirpe,
usavam as duas artimanhas com a esperança de obter o que queriam.
Nem uma coisa, nem outra. Rianne chegou perto do cavalo, sem medo, e estendeu a mão para a crina sedosa.
- O último que tentou perdeu três dedos - Tristão avisou, esperando que ela puxasse o braço.
O garanhão inclinou a cabeça, os olhos escuros fitaram-na com intenso interesse. Tristão ficou a observar, igualmente interessado. A jovem não se retraiu e
chegou mais perto. Pousou a mão no pescoço do animal e afagou-o gentilmente. Em vez de mostrar os dentes e reagir, agitado, Frisian esfregou o foci-nho no ombro
de Rianne.
O garanhão preto era um animal magnífico. Ela nunca vira uma criatura tão elegante como aquele corcel negro. Correu a mão pelo lombo acetinado e sentiu o calor
do sangue e os músculos que estremeciam sob seu toque. Havia pequenos arranhões e cortes na pele macia, mas, para sua surpresa, os pequenos ferimentos estavam limpos
e nenhum infeccionado, sem dúvida devido ao cuidado do homenzinho, que ainda não retornara. Era uma criatura estranha, aquele pequeno. Difícil determinar se se tratava
de um criado ou de um igual ao guerreiro.
- Óleo de milefólio vai curar as feridas mais depressa e sem deixar cicatriz - disse Rianne ao deslizar a mão pela perna dianteira do animal.
- Difícil de achar enterrado debaixo de montes de neve - Tristão retrucou.
- Não se souber onde procurar. Não pensei que alguém que empunhasse uma espada com tanta perícia tivesse conhecimento de ervas e remédios.
- Nem sempre fui perito com a espada - admitiu Tristão
- As as lições mais dolorosas são aquelas que nunca esquecemos. Aprendi cedo os benefícios do óleo de milefólio.
.- Realmente - Rianne murmurou, com a recordação dos velhos sonhos a emergirem -, as lições mais dolorosas a gente não esquece.
Algo de inexplicavelmente vulnerável e não-intencional deu a Tristão um vislumbre que ele não previra a respeito daquela jovem. Então, desapareceu por trás
da aparência fria daqueles olhos.
- Tenho algumas moedas de ouro e prata escondidas! - Rianne exclamou. - Qual é seu preço para soltar a mim e a outra garota?
Ora, ora, nem lágrimas nem ameaças nem chantagem emocional, mas uma transação de negócios. Dinheiro em troca de liberdade. Tristão espantou-se do mesmo jeito
de quando descobrira que ela não era um menino, mas uma mulher de tirar o fôlego de tão linda, mesmo suja e vestida de trapos.
- Não é uma questão de ouro, milady - ele respondeu. - É uma questão de honra e dever.
Ela o encarou com ar incrédulo.
- O que sabe você de dever e honra? Não passa de um ladrão, de uma pessoa sem princípios.
Tristão mordeu o lábio para impedir a gargalhada que lhe subiu à garganta.
- O que é isso? O roto falando do esfarrapado? Rianne foi pega de surpresa pelo insulto que ele lhe devolveu.
- Faça seu preço - ela repetiu, certa de que alguém como Tristão não saberia contar, muito menos pensar em nada, além
de umas poucas moedas para comprar cerveja e a próxima mulher.
- Gostaria que houvesse um preço - ele afirmou. - De bom grado eu diria e acabaria com isso. Mas não posso.
- Por que não? É um assunto simples.
- Porque o homenzinho ali resolveu de outro jeito. - Olhou para Grendel, que se aproximava.
- Ele?! - Rianne exclamou, incrédula. - Será que você é também um covarde?
- Não sou nenhum covarde, milady. Mas aprendi que existem coisas neste mundo que devem ser respeitadas e observadas com atenção, principalmente quando vêm
em pacotes pequenos.
- Podia ouvir os dois discutindo da beira da floresta - Grendel reclamou ao descarregar alguns odres de água que recolhera no riacho. Sua expressão era séria.
- Precisamos deixar este lugar. Não é prudente ficar tão perto da vila.
- Tem razão - concordou Tristão. - Quando a tempestade passar.
- Agora! - insistiu Grendel. - Tenho um mau pressentimento.
- O que é? - indagou Tristão, os sentidos em alerta. - Viu alguma coisa no riacho?
O gnomo sacudiu a cabeça com ar sombrio. Tirou uma pena da manga.
- Além do riacho.
A transformação exigira toda sua perícia e concentração. Tais coisas estavam quase fora do alcance de seus poderes limitados. Mas fora necessário, depois do
que sentira na cabana no coração da floresta. E ao voltar como um pássaro e ver as
ruínas fumegantes da hospedaria de Garidor. Apertou a mão no cristal, escondido na bolsa em seu cinto, e sentiu o calor reconfortante.
- Precisamos ir embora.
Parou de nevar logo depois do meio-dia. O grupo não interrompeu a viagem, mas apressou os cavalos. Rianne cavalgava com Tristão no corcel negro, enquanto Kari
seguia com o homenzinho na velha montaria. Grendel não entrara em detalhes sobre aquilo que vira quando se transformara em pássaro, mas Tristão sentira que, fosse
o que fosse, era muito sério.
- Podemos parar agora? - Rianne perguntou, por entre os dentes cerrados, na tentativa de manter o controle da bexiga, que ameaçava estourar.
- Ainda não - respondeu Tristão com secura. - Restam umas poucas horas de luz. Precisamos cobrir a maior distância possível.
- Temos de parar agora! - insistiu Rianne.
- Ainda não., Vamos parar quando houver abrigo suficiente para a noite.
A garota puxou as rédeas que Tristão segurava com as mãos enluvadas.
- Temos de parar agora ou eu vou urinar nas calças!
- Quer nos matar? - berrou Tristão.
Assustado, o cavalo refugou, mordendo a brida. Enquanto Tristão lutava para mantê-los nas sela, Rianne escapou de seu braço e saltou no chão. Caiu, mas logo
ficou de pé e correu Pela neve na direção da folhagem espessa dos pinheiros.
Tristão desmontou, prendeu o cavalo numa árvore próxima e lançou-se pelo pinheiral atrás de Rianne. Grendel também
saltou ao solo. Não estava preocupado que Kari tentasse fugir. Estava preocupado com Rianne.
Rianne poderia facilmente esquivar-se dos perseguidores. Porém não tinha comida nem cavalo e muito menos noção de onde se encontrava.
Não era a primeira vez que estava por conta própria. Sobreviveria, disso tinha certeza. Sobrevivera antes. Contudo pensou em Kari.
Prometera levar Kari para a abadia, em Glastonbury, onde, ouvira dizer, a garota poderia ficar bem distante de gente como Garidor. E pretendia cumprir a promessa.
Tristão irrompeu por entre as árvores, espada na mão, uma sucessão de palavrões a anunciar sua chegada.
- Que diabo você está fazendo? - berrou. Então, parou, quase caindo sobre a moita atrás da qual a jovem se agachara.
Ela o encarou com fria compostura e exclamou, sem um pingo de constrangimento:
- Aliviando minha bexiga!
Ele poderia facilmente estrangulá-la. Em vez disso virou-se, embaraçado, talvez pela primeira vez na vida.
-Você poderia ter matado a nós dois-Tristão a informou, por entre os dentes.
- Já disse isso - Rianne retrucou, ao se levantar e erguer as calças. Passou por ele ao sair do mato. - Sempre se repete? - indagou. E voltou na direção de
onde haviam deixado os cavalos.
Vigie as moças - Tristão resmungou, ao enfiar uma
perdiz que caçara num pedaço de galho verde e colocá-la para assar sobre o fogo. - Estão planejando como escapar.
- Estão conversando sobre a necessidade de roupas mais quentes e... - o gnomo declarou, com um olhar de soslaio para o guerreiro - a imensa aversão de Rianne
por você.
- Como pode essa moça ser filha de Meg e lorde Connor? É mal-educada, desavergonhada e completamente sem modos ou escrúpulos. E uma arrematada ladra!
- Está sozinha faz muito tempo - Grendel ponderou. - Não teve ninguém em quem confiar a não ser em si mesma. Parece que me lembro de outro que tinha o mesmo
jeito inculto e poderia ter terminado da mesma maneira se não fosse tomado como um filho por um senhor gentil e sua esposa. - Relanceou o olhar para o rapaz.
- Como é que ela não sabe nada sobre os pais? - indagou Tristão. - E os poderes? Deveria ter algo de lady Meg nela. E, no entanto, não vimos nada nessa moça
que indique ao menos um elo com lady Meg, além de uma remota semelhança de feições.
Grendel ficou pensativo. Quanto a jovem sabia de seu passado? Afinal, Dannelore tivera algum tempo para contar a ela a respeito das coisas que precisava saber?
Do legado dos poderes da Luz que a ligavam ao mundo além da morte? Daqueles que haviam ido antes? Dos Anciãos? Do conselho dos Instruídos? Ou de Merlin, que era
o filho do passado e o guardião do futuro?
A garota parecia nada saber dessas coisas. Tinha apenas aquela habilidade incomum nos jogos, o que poderia ser algo que simplesmente aprendera para sobreviver,
e a cor rara dos olhos.
E Grendel não poderia voltar a Monmouth, com lorde Connor à beira da morte, sem ter certeza de que a jovem era, de fato, a filha de Meg. Não poderia falhar
com sua senhora.
Rianne sentiu aquele olhar pensativo sobre si através do fogo e relanceou os olhos para o homenzinho. Várias vezes o pegara a observá-la assim e ficara a imaginar
o que ele pensava por trás da expressão meditativa.
Ele a chamara de Rianne. A palavra parecia ter saído dos murmúrios dos sonhos que assombravam o seu sono. Ninguém a chamava por algum nome fazia um longo tempo
e, no entanto, instintivamente, ela sabia que aquele era o seu nome. Era como abrir as portas do passado, ouvir o som de seu nome de repente gritado num tom de aviso,
e os guinchos de alguma criatura selvagem a se misturar aos berros dos agonizantes.
Grendel viu aquelas mesmas imagens na conexão telepática que de súbito se estabeleceu entre os dois. Havia apenas fragmentos, dolorosos e cruéis em sua crueza,
em fugidios relances que o aturdiam. E então, também de repente, sumiram, e tudo que restou foram lágrimas silenciosas, vertidas a sós na escuridão.
Grendel não era inclinado a emoções mortais, nem era afetado por elas. Era uma criatura de um outro mundo, e tais coisas não faziam parte dele. Contudo, naquele
momento, experimentou pela garota uma tristeza e um sofrimento de dilacerar o coração, tão intensos que lágrimas inundavam seus próprios olhos.
- Estou aqui, menina - seu pensamento murmurou a ela.
Rianne ergueu os olhos. Era como se alguém tivesse lhe dito alguma coisa. No entanto, a seu lado, Kari comia em silêncio uma das frutinhas que o homenzinho
encontrara. Do outro lado
do acampamento, o guerreiro estava acocorado diante do fogo e atiçava as brasas sob a perdiz no espeto, perdido nos próprios pensamentos. Apenas Grendel a
observava.
Ele meneou a cabeça em assentimento e pareceu que murmurara em sua mente: Você não está sozinha.
Com um gesto brusco, Rianne se levantou, inquieta e desassossegada. Tristão também se ergueu, com a mão no punhal. Grendel pousou a mão no braço do guerreiro.
- Deixe-a ir.
Tristão encarou-o, incrédulo.
- Está louco? Ela vai fugir!
- Deixe-a ir.
Rianne olhou de um para o outro. Nenhum deles fez qualquer tentativa de impedi-la de se afastar.
- Traga a manta e a comida - disse para Kari.
A garota olhou-a com ar confuso e depois obedeceu depressa, recolhendo as frutinhas e as nozes na dobra do xale.
Rianne pegou um odre de água. Sem dizer palavra, recuou até o limite do acampamento, levando Kari consigo. Ao ultrapassarem o alcance da luz da fogueira, ela
voltou-se e empurrou Kari para a frente, na direção da escuridão da floresta.
A garota estava apavorada. Rianne podia perceber pela respiração arquejante. E sentiu o medo como se fosse seu.
Nunca sentira medo. Não, desde aquela noite, longo tempo no passado. E, mesmo então, não fora medo o que sentira. Fora raiva e ódio ao ver aqueles que amava
mortos diante de seus olhos. Bloqueou as imagens que passavam de relance por sua mente mais uma vez, e concentrou-se unicamente na trilha que jazia adiante.
Parou de repente. Kari agarrou-se a ela, e seus soluços de
pavor misturavam-se aos arquejos em busca de ar. Rianne sentiu os pensamentos atraídos de volta para a clareira, tão claramente como se o gnomo a chamasse.
Pegou Kari pela mão e fez meia-volta.
Tristão ergueu os olhos. Não teriam apostado num retorno. Kari acomodou-se ao lado de fogo, tremendo, as mãos estendidas para se aquecer. Aceitou de bom grado
uma perna da perdiz assada e mastigou-a com avidez. Rianne acocorou-se a alguma distância. Seu olhar encontrou o de Grendel.
- Quem é você?
O fogo morria e o frio instalou-se ao redor. Tristão colocou mais lenha sobre as brasas. Kari caíra adormecida fazia algum tempo, encolhida sob o calor da
manta que Rianne lhe dera. Nem Grendel, nem Rianne pareciam notar o frio da noite.
O gnomo contou tudo àquela que julgava ser a filha de Meg. Falou de Merlin, de sua amizade com Arthur, e dos poderes das Trevas e da Luz. Contou do portal
que ligava o mundo a que pertenciam ao mundo mortal, a jornada que Meg fizera longo tempo no passado, e o preço que pagara por permanecer no mundo humano com o pai
de Rianne.
Explicou os poderes que Meg um dia possuíra; que ela não era uma criatura mortal, mas um ser imortal que se transformara para poder ingressar no habitat humano.
Falou das visões que abriam uma janela para o futuro, de seu poder de cura, e de sua capacidade de convocar as forças da natureza: terra, vento, água e fogo.
Então, falou sobre a criança que nascera do amor de Meg e lorde Connor. Uma menina de rara e incrível beleza que se
parecia com a mãe, mas que também possuía o espírito do pai. Uma criança de poderes e habilidades desconhecidos.
Falou também da visão terrificante que Meg tivera quando a filha estava apenas com algumas semanas de vida. Um horror de sangue e morte que alcançava a criança,
e a decisão difícil, que lhe partira o coração, de mandar a filha para longe, para um lugar seguro, aos cuidados de uma amiga confiável.
Finalmente, contou-lhe do ataque a Monmouth, semanas antes, dos ferimentos que lorde Connor recebera, e da resolução de Meg de que a filha deveria ser trazida
para casa antes que fosse tarde demais.
- Minha senhora mandou isto - disse, tirando a runa de cristal da bolsa no cinto.
A pedra captou a luz do fogo, e as chamas cintilavam nas facetas do cristal, como se queimassem lá dentro.
Grendel relanceou um olhar para a garota. Rianne fitava o cristal como se estivesse em transe; as chamas brilhantes refletiam-se no azul de suas pupilas. E,
por um momento, Grendel teve certeza de que sentia uma conexão abrindo-se - uma janela para o passado.
Algo no íntimo de Rianne queria acreditar naquilo que Grendel contara; a criança solitária que havia em seu âmago estava ansiosa por encontrar um elo com a
família e o lar. Mas havia outra parte que se recusava a aceitar, porque aquela alma machucada estivera sozinha por muito tempo e aprendera a confiar apenas em si
mesma.
A conexão se perdeu quando a janela foi fechada com firmeza. O único som era o uivar do vento nas árvores e o estalar do fogo a consumir a seiva da madeira.
- Essas coisas de que falou - disse ela, depois de algum
tempo -, os poderes das Trevas e da Luz... Transformação? Visões do futuro? - Meneou a cabeça. - São histórias para criança dormir. Não existem.
- A dúvida pertence ao ser mortal que há em você. Precisa entender com a parte que não é mortal.
A jovem sacudiu a cabeça; a expressão do rosto estava igualmente fechada.
- As coisas de que fala são impressionantes - murmurou. - Pense no que eu poderia fazer se possuísse tais poderes. - Sorriu. - Eu poderia conjurar um sortilégio
e ter tudo que quisesse. Precisa me mostrar como funciona. Existe uma poção mágica que eu possa usar contra meus inimigos? - Esfregou as mãos com um ar maroto. -
Talvez eu transforme a todos em sapos. Não! Já sei. Vou transformá-los em sapos de duas cabeças! Com verrugas!
Pegou uma vara da beira do fogo e levantou-se, fazendo pose.
- Acho que arranjarei uma aflição para Garidor. Algo bem pavoroso. Uma corcunda, talvez. Ou duas. Não! Já sei. Pústulas!
Os olhos de Kari se arregalaram. Grendel meneou a cabeça. Estaria equivocado?
- Pústulas enormes, doloridas, inflamadas - Rianne continuou, acalentando a idéia. - Por toda parte. E, para Mab... Acho que vou transformá-la numa porca,
assim ela pode fuçar na sujeira e na lama em busca de comida, e imaginar se será a próxima refeição na mesa de alguém.
Tristão ocultou um sorriso com a mão ao observar a cena, enquanto, ao lado, o gnomo olhava como se tivesse algo entalado da garganta.
- Basta! - explodiu Grendel. - Não quero ouvir mais
nada! Você tem razão - disse para Tristão. - Não pode ser aquela por quem procuro. É mal-educada, grosseira e completamente sem nenhuma qualidade superior.
Para não mencionar que parece uma mendiga e cheira igual a uma também. Eu não a levaria nem uma légua para perto do castelo de Monmouth! Keflech!
Aos resmungos, enrolou-se na manta ao pé do fogo. Deitou-se todo embolado, ainda praguejando baixinho.
Rianne fitou Tristão com os olhos arregalados e ar inocente.
- Foi alguma coisa que eu disse? Ele a olhou, pensativo.
- Possivelmente várias coisas que você disse - retrucou, ao desenrolar o pelego e estendê-lo perto da fogueira com um gesto de desgosto só de pensar em passar
outra noite no chão duro e frio. - Acho que Grendel acreditou em tudo que você disse.
- Então, não há razão para nos manter presas - ela ponderou, para surpresa de Tristão. Aproximou-se da outra garota e estendeu ao lado a manta que ele lhe
dera. - Eu e Kari partiremos pela manhã - anunciou, depois puxou a coberta até os ombros e virou-se para o calor do fogo.
Seu olhar encontrou o de Tristão através do reluzente brilho das brasas. E, por um instante, pareceu que as chamas queimavam nas profundezas azuis. Então,
os olhos se fecharam e Rianne mergulhou no sono.
Era alvorada quando Tristão acordou, com os primeiros raios prateados a se filtrarem pelas árvores. Não nevava mais. O sol aparecia no horizonte, aquecendo
a terra, fazendo a neblina subir das encostas com o ar frígido da manhã.
Ele jogou de lado o pesado pelego e levantou-se. Espregui-çou-se, esticando cada músculo dolorido. Agachou-se depois diante das brasas, que eram tudo que restava
da fogueira. Alimentou-a com mais gravetos, folhas e pinhas e atiçou as chamas até que cresceram mais fortes e a fumaça pungente se ergueu.
Do outro lado, o gnomo continuava a dormir, curvado numa bola dentro da manta grossa, como uma fuinha em sua toca. Então, o olhar de Tristão percorreu o acampamento.
Levantou-se de um salto. As moças tinham sumido.
Pegou a espada e atravessou a clareira. Ajoelhou-se na neve macia e encontrou rastros frescos. Não podiam ter ido longe. Seguiu as pegadas na neve rumo a um
lago que ele vira de relance no dia anterior, bem perto do acampamento.
Os rastros seguiam uma trilha pelas árvores até a beira do lago. Ali, desapareciam completamente na margem. Tristão olhou primeiro numa direção e depois na
outra. E seus olhos se arregalaram de incredulidade.
Rianne estava de pé na beira da água, onde uma ponta de terra se estendia para o lago e depois se curvava, criando uma pequena piscina de águas rasas. Tirara
a túnica de lã e as várias camadas de roupa, que pendurara num galho próximo. Vestia apenas as calças, as botas e uma camisa sem mangas de tecido fino. A ponta da
camisa estava enfiada nas calças. O tecido não oferecia nenhuma proteção contra o frio, mas ela não parecia se importar.
Então, ajoelhou-se na beira do lago e mergulhou um pano na água gelada. Esfregou os braços, o pescoço, as mãos e o rosto.
Tristão aproximou-se silenciosamente enquanto ela continuava
a banhar-se. A pele de Rianne parecia luzir em tons dourados com o sol nascente. Os raios a emolduravam e acariciavam a curva do queixo voluntarioso, o arco
da garganta, as maçãs altas do rosto, e depois explodiam em faíscas no cetim dos cabelos, soltos da trança.
Como uma criatura selvagem e livre, ela sacudiu a cabeça, a cascata reluzente de fios de ouro a escorrer por seus ombros, caindo até a cintura, parecia que
se integrava ao sol - uma figura dourada, de fogo sedoso.
Tristão percebeu o instante em que Rianne soube que ele se encontrava ali. Viu na rigidez repentina de sua postura, na mudança da respiração, no ligeiro inclinar
da cabeça. Então, naqueles olhos de um azul incomum quando ela se virou e o encarou.
A camisa era tão fina que ele podia ver o dourado da pele por baixo, o contorno dos seios e o tom mais escuro dos mamilos, que se comprimiam contra o tecido.
Quando Tristão se aproximou, não notou qualquer sinal de timidez ou vergonha nela, nem a modéstia estudada das mulheres que ele conhecera. Não se virou ou
fugiu. Em vez disso, encarou-o sem culpa, sem falsidade ou o menor constrangimento.
- Sempre se banha quando há neve no chão e gelo na beira da água?-Tristão perguntou ao afastar uma mecha de cabelos dos ombros de Rianne e sentir a textura
sedosa entre o indicador e o polegar.
Ela puxou os cabelos com um ligeiro sacudir da cabeça.
- Se me der vontade, e particularmente se sou acusada de cheirar como uma mendiga.
Ela não cheirava como uma mendiga. Tinha o aroma do
mato banhado pelo sol depois da chuva, o perfume do vento num dia de verão, que traz consigo o cheiro de terra e de flores. Do tempo em suspenso, como a carícia
terna da bruma quando se ergue, lânguida, ao surgir da aurora.
Nem parecia uma mendiga. Os dedos de Tristão deslizaram pela curva do ombro e escorregavam para a corrente de ouro, para pegar o pequeno cristal que pendia
do pescoço de Rianne.
- Isto se parece muito com a runa de cristal que Grendel carrega com ele - comentou.
A respiração da jovem tornou-se lenta e contida. Mas a pulsação em sua garganta se acelerara. Ela puxou o cristal, seus dedos a se fecharem em torno dele.
Seus olhos se desviaram de Tristão.
-Não passa de uma bugiganga que eu encontrei - a jovem respondeu.
- Onde?
- Não me lembro.
Um grito de pavor quebrou a calma da manhã.
- Kari - Rianne arquejou.
Ela saiu correndo na direção do som. A superfície macia do gelo se rompera, expondo o lago cinzento abaixo e a garota apavorada que se debatia na água gelada.
Kari se aventurara a caminhar sobre o gelo, e este cedera sob seus pés.
Grendel, que também percebera o sumiço das jovens e fora procurá-las, correu para à beira da água.
- Uma corda! - gritou para Tristão. Precisamos de uma corda!
- Não há tempo!
Tristão escorregou pela margem e se aproximou da superfície gelada, numa tentativa desesperada de alcançar Kari. Sabia
que a morte poderia acontecer em questão de minutos. Deitou-se pela extensão do gelo, que estalou devido ao seu peso, e enfiou a mão pela abertura. Roçou a
de Kari uma vez e, então, a jovem afundou. O gelo começou a se partir sob o corpo do guerreiro.
- Você precisa fazer alguma coisa! - Rianne gritou, agarrando o braço de Grendel. - Ela vai morrer!
O gnomo cravou os olhos nela. Sabia que estava assumindo um grande risco. Porém tinha de saber. Não podia crer que tivesse se enganado. E com a ajuda dos Anciãos,
Kari não morreria.
- Não posso - disse, abrindo os braços num gesto de impotência. - Não sei nadar. Mas você pode salvá-la. Tem o poder dentro de si.
- Está louco! Eu não posso! É impossível! -- Porém, enquanto discutia com ele, mais a vida de Kari se esvaía.
Tristão estava encharcado, a respiração ofegante. Enfiou a cabeça pela abertura, a procurar abaixo da superfície por algum sinal da garota. Mas ela sumira.
- Não posso - murmurou Rianne, a garganta fechando-se com as lágrimas não derramadas.
Capítulo V
Tristão arrancou a túnica e as botas e preparou-se para escorregar pelo buraco no gelo.
Rianne o encarou, incrédula. Entre aqueles que conhecia, a vida alheia valia muito pouco. Ninguém nunca se dispusera a pôr em risco a própria vida pelo outro.
Grendel soube o instante em que ela se decidiu. Foi como se finalmente os pensamentos da jovem se abrissem para ele e, naqueles pensamentos, o gnomo visse
de relance tudo que ela era e vivenciara: o sofrimento do passado, a perda, a solidão, a parte que era mortal, com emoções muito humanas, e a criança interior -
a parte que Rianne negava, mas que a tinha conduzido por todos os anos de solidão -, o legado com que nascera, o poder da Luz que lhe era inerente como o sangue
que corria por suas veias e o coração que batia em seu peito. Contudo ela continuou a negar, mesmo enquanto arrancava as botas.
- Se você estiver enganado, homenzinho, então terá a morte de nós duas em suas mãos. E juro que o assombrarei até que você se torne pó.
Antes que Tristão pudesse impedi-la, Rianne estava na água. Então, sumiu sob a superfície.
O frio a retalhou como uma faca que lhe arrancou o ar dos pulmões. Cada instinto a impedia a bater os pés e voltar à superfície.
Você pode fazê-lo. Está dentro de você. Eu vi.
As palavras surgiram em sua mente sem ser desejadas.
Abra seus pensamentos, abra seus sentidos. Livre-se daquilo em que acredita. Aceite o que está dentro de você.
Mesmo que ela quisesse afastá-las, as palavras a dominavam.
Busque a Luz em seu íntimo. Deixe-a guiá-la. É parte de você.
Você não sente o frio. Não precisa de ar dentro dos pulmões. Abra seus olhos. Tente alcançar. A força está aí. Use a força. Use o poder da Luz.
Rianne bateu os pés com força, nadando para o fundo da água escura.
- Seu idiota! - Tristão gritou para Grendel. - Tudo isso é sua culpa, seu arrematado tolo! Simplesmente não pôde aceitar que ela não seja a filha de Meg!
Estava furioso. De todas as coisas que o gnomo tinha feito, nada justificava aquilo: sacrificar a garota para provar algo que não existia.
Empurrou o gnomo de lado e correu para o acampamento. Puxou o corcel negro pela rédea e voltou com ele com toda a pressa até a beira da água. Em seguida, desenrolou
uma corda e amarrou-a com firmeza em torno de uma pedra. Se houvesse alguma chance de salvar as jovens, era aquela.
Prendeu a outra ponta da corda no pescoço do cavalo e preparou-se para jogar a pedra pela abertura no gelo. O peso da
rocha iria esticar a corda até o fundo do lago e oferecer uma linha de guia até a superfície. Segurou a corda numa das mãos e preparou-se para mergulhar na
água.
Bem abaixo da superfície do lago, Rianne concentrou-se no brilho que começara a se expandir de um pequeno ponto de luz. O calor espalhou-se como fogo líquido
através de seu sangue, expulsando o frio e aliviando a dor que lhe comprimia os pulmões.
Você tem o poder dentro de si. É parte de você. Aceite-o. Aposse-se dele. Torne-se una com a Luz.
As palavras a guiaram, levando-a de volta no tempo, para dentro de um mundo em seus primórdios, através de um portal para outra dimensão que existira havia
muitos anos, quando Rianne e aqueles como ela iniciaram a existência, primeiro ao sentir o fogo a queimar dentro de si, depois ao se apoderarem do poder da Luz e
tornarem-se unos com ele.
Era como caminhar através da bruma fria. Um passo, depois outro, a buscar além da escuridão e além da névoa. Então, viu Kari.
Estava apenas a alguns centímetros adiante, sem se mover, suspensa na água gelada, olhos fechados, braços abertos, como se nos últimos momentos tivesse lutado
para chegar à superfície e as forças lhe faltassem.
Rianne a alcançou. A mão, depois o braço. Prendeu Kari pelo torso e, em seguida, rumou para o alto com fortes golpes dos pés, a puxá-la consigo.
Encontrou a corda que cortava a água, agarrou-se nela e seguiu-a até a superfície. Então, mãos fortes a alcançaram, fechando-se em torno de Kari e puxando-a
para fora.
O gelo quebrou-se e desabou sob o peso dos dois quando
Tristão agarrou a garota inanimada. Com a outra mão, ele segurou-se na corda e gritou ordens ao garanhão negro, que recuou para longe da beira da água, com
Grendel a puxá-lo fre-neticamente pelos arreios. Tristão sentiu a superfície dura sob os ombros; então, em suas costas, e finalmente se viu arrastado para terreno
seguro.
Soltou Kari e olhou para trás, à procura de Rianne. Ela se agarrava com ambas as mãos na corda, ainda na água. Ao chegar à abertura no gelo, Tristão quase
caiu ao escorregar na superfície lisa.
- Pegue minha mão!
A mão que segurou a dele estava surpreendentemente quente.
- Não vou soltá-la - Tristão disse ao agarrá-la pelo pulso e puxá-la com toda a força.
Rianne uniu suas energias às dele. Lutou contra o peso da água gelada que a arrastava para baixo e conseguiu rastejar para fora da abertura. Em seguida, os
dois se arrastaram na direção da margem.
Grendel enrolara Kari na manta grossa de pele e lhe esfregava as mãos e os braços com gestos aflitos, tentando aquecer os membros congelados. Os lábios da
jovem estavam arroxeados, assim como as pálpebras. Não se percebia o bater do coração nas veias do pescoço.
- Maldito seja você! - Tristão praguejou. - Poderia ter matado as duas.
- Não há tempo para isso agora! - o homenzinho esbravejou, a olhar ansioso para Rianne. - Você ainda pode salvá-la. Tem o poder da Luz. Use-o.
- Não sei como! - exclamou Rianne. - Não tenho conhecimento ou capacidade!
- Está dentro de você. Faz parte da sua natureza, tal como respirar. Atraia o poder da Luz como fez quando foi resgatá-la - disse Grendel. - Deixe que o poder
a guie. Precisa apenas expulsar suas dúvidas. Está aqui! - Tomou-lhe a mão e vi-rou-a para cima, entre as suas. - Em seu toque. Precisa somente alcançar aquela fagulha
de vida dentro de Kari, conec-tar-se com ela, dar-lhe sua força, energizá-la com as batidas de seu coração. Imagine isso, menina, e acontecerá.
Preciosos segundos se escoavam. Se Rianne não fizesse nada, Kari morreria.
Imagine e acontecerá. Ela debruçou-se sobre Kari, dividida pela dúvida. Você precisa apenas expulsar suas dúvidas. Está em seu poder, em seu toque... Rianne
abriu a mão e pousou-a sobre o coração de Kari.
Dê-lhe sua força. Dê-lhe a batida de seu coração. Imagine, e acontecerá.
As palavras mesclavam-se a seus pensamentos conforme Rianne fechou os olhos e imaginou - o lago de luz que reluzia dentro de si, o brilho que se expandia através
da conexão de sua mão, o som débil e quase imperceptível que deu lugar a um pulsar e, em seguida, às batidas constantes de um coração, ao calor do sangue que fluía
pelas veias enregeladas e àquele primeiro arquejo trêmulo, seguido por uma golfada de água expulsa por entre os lábios de Kari.
Kari iria sobreviver. Diante da fogueira, enrolada no manto grosso de pele, recobrava as forças, com pouca lembrança de qualquer coisa depois que caíra pela
fenda no gelo. Se pelo menos Rianne não se recordasse... Porém, lembrava-se de tudo, em vívidos e terríveis detalhes.
Quem era? Uma bruxa? Feiticeira? Maga? Encantada? Eram palavras que não tinham sentido a não ser em histórias na hora de dormir para assustar criancinhas.
Seria verdade? Por muito tempo ela se fizera aquelas mesmas perguntas, mas não havia respostas. Estavam perdidas nas imagens de fogo, sangue e morte, quando
perdera seus guardiões - aqueles a quem chamava de John e Dannelore.
Rianne se fechara a essas lembranças junto com o sofrimento daquela perda, recusando-se a pensar nisso. Agora a porta para o passado se abrira ao ser forçada
a salvar Kari.
Era como abrir uma represa com as lembranças que ela bloqueara e se recusara a ver, exceto nos sonhos, quando surgiam sem ser convidadas.
E ela se recordou de tudo; da inquietação incomum dos cães naquela noite, do desassossego de Dannelore evidenciado em pequenos gestos - no jeito em que inclinava
a cabeça, como se procurasse escutar alguma coisa, os olhares apreensivos para a porta -, no vento repentino além das janelas fechadas e, então, finalmente, na decisão
de Dannelore de mandar Rianne para o local secreto onde colhiam ervas na floresta.
Ela não queria ir. Não tinha medo. Medo não era algo que compreendesse. Mas Dannelore insistira. E, assim, Rianne saíra, seguindo as instruções de Dannelore
de que não deveria olhar para trás, não importava o que acontecesse, não importava o que ouvisse; e não deveria tirar a runa de cristal do pescoço, de maneira alguma.
Sempre a usara. Dannelore lhe dissera que aquilo a protegia, e Rianne acreditava nisso com a inocência confiante de uma criança. Fora com aquela mesma inocência
confiante que ela deixara a cabana naquela noite, com a runa de cristal pendurada
no pescoço para mantê-la segura, e as estranhas palavras de partida de Dannelore nos pensamentos.
Sentira instintivamente que não deveria desobedecer. Mas, enquanto se agachava naquele lugar secreto, ouvira os sons que jamais haveria de esquecer, os gritos
de terror e de agonia. Depois, as chamas iluminaram o céu da noite, e ela sentira medo pela primeira vez na vida, medo por aqueles que amava.
A despeito do aviso de Dannelore, Rianne correra de volta à cabana, mas, ao chegar, era tarde demais. John e os cães estavam mortos na horta. Dannelore jazia
morta dentro da cabana. E não havia nada que ela pudesse fazer para ajudá-los.
O vento uivava em torno da cabana, chicoteando o telhado de palha. As chamas lambiam a casa e o manto escuro daquele que se postava à beira do fogo, a observar.
Rianne não conseguira ver sua face. Estava escondida pelo capuz que lhe cobria a cabeça. Mas, das profundezas das sombras dentro do capuz, enxergara aqueles
olhos mortiços, como restos de estrelas explodidas - desolados, vazios de qualquer luz, vazios de qualquer vida.
Ele não a vira. Por fim, se voltara, o manto negro a ondular sob a luz fantasmagórica lançada pelas chamas que consumiam tudo, e desaparecera como se nunca
houvesse estado ali.
Algum tempo depois, de pé, sozinha, cheia de dor com a perda, Rianne sentira algo quente na mão. Quando olhara para baixo, vira sangue.
Sua mão estava coberta de sangue. Pingava de seus dedos. Com gestos frenéticos, tentara retirá-lo, mas ele reaparecia. Então, de repente, o sangue recuara,
deslizando por entre seus dedos e pelo dorso da mão, coagulando-se num único ponto,
numa única gota que se transformara numa pedra de um brilhante escarlate a reluzir em seu dedo anular.
Traumatizada, Rianne julgara imaginar coisas. Aquilo era algo que aparecia apenas em seus sonhos, uma fantasia de criança tirada do pesadelo da morte.
- Você não imaginou - disse Grendel, ao se aproximar por detrás dela, os pensamentos conectados aos de Rianne. Sentiu-a se afastar do passado e retornar ao
presente. - Foi uma visão do futuro - explicou. - Sem dúvida, você teve outras e não as reconheceu, mas o fará com facilidade no futuro, tal como descobriu outras
habilidades esta tarde. Eu sabia que você tinha esse poder dentro de si. Sabia que não poderia ter me enganado. Mas você precisava se dar conta por si mesma.
Revirou os olhos para o alto. Sorriu com satisfação.
- O pessoal da sua família é de uma teimosia incomum que eu não consigo entender. Mas tudo transcorreu muito bem. Muito bem realmente.
Rianne virou-se para ele, furiosa. A ira era uma força invisível e poderosa. Com um soco, golpeou Grendel e o fez rolar de costas pelo acampamento, até que
se amontoou numa pilha de galhos de pinheiro.
- Seu miserável vermezinho! Você me enganou! Grendel apalpou a cabeça, que latejava. Havia um galo enorme no cocuruto. Levantou-se devagar.
Miserável vermezinho?
- Foi um pequeno logro. Mas necessário - explicou, bastante racionalmente, a tirar as agulhas das roupas e do cabelo. Fez uma careta ao descobrir que havia
várias em seu traseiro.
- Necessário? Você arriscou deliberadamente a vida de Kari!
Grendel sentiu a hostilidade, uma coisa perigosa em alguém que era detentora de poderes como os dela, absolutamente indisciplinados. Perigosíssima, na verdade,
pensou ao se recordar de outro espírito inquieto e insubordinado: a mãe de Rianne.
- Não havia nenhum perigo de verdade - apressou-se a explicar. Não gostava da expressão daquele olhar. Sentiu que seria mais prudente encontrar um lugar bem
mais seguro.
Rianne aproximou-se, percebendo a jogada.
- Nenhum perigo de verdade? Devo supor que não havia nenhum perigo real quando Kari caiu através do gelo e poderia ter se congelado até a morte?
- Quase nenhum - Grendel retrucou, nervoso.
Na pequena clareira, pouco mais longe, Tristão ouviu a discussão e aproximou-se, curioso. Ficou observando-os em silêncio. Dessa vez, Grendel encontrara quem
fosse páreo para ele. E, mais do que isso, parecia que a jovem era, realmente, filha de Meg. Mesmo furiosa, Rianne, sem dúvida, era a mais bela criatura que ele
já vira.
- E devo supor que não havia perigo quando ela afundou na água? - Rianne avançou sobre Grendel. - Seu miserável! Kari poderia ter morrido! Como ousa brincar
com a vida de alguém como se isso fosse um jogo?
- Eu não deixaria que acontecesse nenhum mal a ela! - ele exclamou, indignado. - Kari nunca esteve em real perigo.
- Você não fez nada para ajudá-la.
- Claro que fiz - Grendel retrucou depressa. Lançou um olhar para Tristão, com a esperança de que ele pudesse intervir. Esperança infundada, percebeu. O guerreiro
se divertia com sua desgraça.
- E se você estivesse errado? - indagou Rianne, e a força
da raiva empurrava o homenzinho para trás. - E se eu não tivesse a capacidade de salvá-la?
Grendel despertara um poder até pouco tempo desconhecido que agora se voltava contra ele. Tropeçou num galho e caiu.
- Mas eu não estava errado. Tudo transcorreu bem, como você pode ver.
- Você manipulou todos por causa de seus próprios objetivos.
- Era preciso. Não tive escolha.
- Assim como eu não tenho escolha agora - Rianne murmurou.
Lançou uma pinha na direção do gnomo. O fruto espinhoso circulou pela clareira no alto, como um míssil fatal a procurar o alvo. E o alvo era Grendel.
Se ele mudava de direção, a pinha também mudava. Quando ele se abaixou sob um galho baixo, ela o seguiu.
- Você tentou me acertar.
Outra pinha em vôo rasante jogou Grendel de barriga no chão. Ele cobriu a cabeça com os braços para se proteger.
- Um pouco mais alto e para a direita - disse Tristão ao se aproximar por trás de Rianne e indicar o ângulo da mira.
- De que lado você está? - Grendel exclamou, indignado.
- Um pouco mais à esquerda - indicou Tristão.
- Protesto! Isso é absolutamente injusto!
- Agora - Tristão disse para Rianne.
A pinha voou pela clareira e quase acertou o gnomo, que se encolheu para se proteger. Ao se levantar, tinha musgo preso nos cabelos e nas roupas.
Foi longe demais, senhora!, Grendel esbravejou em pensamento
e foi forçado a mergulhar no chão outra vez, quando outra pinha cortou o ar para acertá-lo.
- Pare com isso! - o gnomo berrou da pilha de galhos, folhas e lama onde aterrissara. - Está achando graça em me torturar. O que sua mãe haveria de pensar
disso?
Por experiência, sabia exatamente que Meg riria da semelhança incrível entre mãe e filha, pois era conhecida por tais molecagens quando pequena.
Rianne não pôde deixar de sorrir, a despeito de sua raiva. Não queria machucar o homenzinho; simplesmente dar-lhe uma lição. Alvo das manipulações de alguém,
não parecia gostar nada disso.
- Você poderia pensar em lhe poupar a vida - sugeriu Tristão.
Rianne o olhou de soslaio. Sua boca curvou-se num sorriso malicioso.
- Dê-me uma boa razão.
- Posso lhe dar duas boas razões.
- Qual é a primeira?
- Dizem que essas criaturas fazem uma bagunça horrível, como uma pilha de estrume de bode.
- E a segunda?
- Fedem como um monte de estérco de bode também. Ela ponderou sobre o assunto com um ar muito sério.
- Duas ótimas razões. Afinal, eu não haveria de querer ter a morte dele em minhas costas.
Viu quando o gnomo relaxou a guarda, confiante de que Rianne resolvera poupá-lo. O homenzinho se levantou, arrumou a túnica e depois se inclinou para tirar
a sujeira das calças.
- Contudo - ela emendou, com ar travesso - acho que
uma pinha a mais vale a pena. - E, com um simples pensamento, lançou a pinha pela clareira numa velocidade espantosa. O fruto espinhoso atingiu o gnomo de
lado e o derrubou no chão.
A raiva de Rianne evaporou-se ao ver Grendel rolar pelo chão e se levantar depressa, correndo para se esconder, a sacudir as mãos sobre a cabeça para impedir
algum novo ataque.
- Você é realmente muito parecida com sua mãe - disse Tristão, quando Rianne espalhou o resto das pinhas com o pé.
Ela o encarou com uma expressão sombria.
- Acredita nas coisas que Grendel diz? - perguntou. - Nos poderes da Luz e das Trevas? Transformação? Outro mundo que jaz além de um portal?
Rianne valorizava a opinião de Tristão. Afinal, era um guerreiro, um cavaleiro do rei Arthur. Sem dúvida se vira muitas vezes confrontado com questões de vida
e morte. Um homem assim não abrigaria noções fantasiosas em que o homenzinho acreditava.
- Quando eu tinha dez anos, tive um encontro com uma criatura que jamais esquecerei. - Ele voltou até aquele dia fatídico, na lembrança. - Uma criatura de
tamanha maldade que eu descobri que as Trevas existem. Era um demônio que procurou destruir tudo que é bom e verdadeiro neste mundo, deixando para trás apenas a
morte e a ruína em sua busca por poder. Também encontrei uma criatura de inacreditável bondade, honradez e amor. Alguém que estava disposto a dar sua vida para que
os outros pudessem viver num mundo livre desse mal. Ela trouxe imensa felicidade e alegria àqueles a seu redor. E possuía a capacidade de curar tanto o corpo como
o espírito com o toque de sua mão.
Correu o dedo, pensativo, pela cicatriz no queixo, um gesto que Rianne já observara antes.
- E ela teve realmente a paciência de uma santa com um garotinho que se metia em mais confusões que dez moleques juntos. Ajudou-o a curar as dolorosas feridas
da perda com seu espírito generoso e sua coragem. - Sua expressão suavizou-se. - Sim, eu creio em tais coisas, pois as vi. Não posso explicar o que vi, mas sei que
é real.
Rianne sabia que ele falava de Meg. Sua mãe. Uma criatura de magia e grande poder, muito semelhante a Merlin, conselheiro do rei. Se alguém acreditava em tais
coisas, como poderia ela não acreditar? Em toda sua vida tivera consciência de que era diferente.
Ouvia coisas que os outros não podiam ouvir; sentia coisas que os outros não percebiam. E havia os incidentes inexplicáveis durante sua infância - a primeira
vez que descobrira que conseguia mover objetos sem tocá-los, o fato de que não se importava nem com o calor nem com o frio. E muitos coisas mais que Dannelore prometera
lhe explicar quando chegasse a hora. Mas, infelizmente, ela morrera antes que pudesse lhe transmitir esse conhecimento.
- Seu pai está morrendo - Tristão disse, gentilmente, o peito a se constranger ao pensamento de perder o homem que tinha como um pai, irmão e amigo. - Certamente
você deseja vê-lo antes que seja tarde demais.
Não havia emoção no olhar que encontrou o dele.
- Os laços de que fala são feitos de lembranças. Eu não tenho nenhuma. O homem de quem lembro como pai morreu faz muito tempo. Não conheço o homem de quem
você fala, nem a mulher, Meg.
Passou por ele e ia voltar ao acampamento. Tristão a segurou pelo braço, com um gesto gentil, porém forte. Seu olhar procurou o dela. Havia uma ternura em
sua voz que a surpreendeu e se infiltrou pelas defesas de Rianne, tocando-lhe algo vulnerável no íntimo.
- Não compreendo completamente as escolhas que tiveram de ser feitas, muitos anos atrás. Mas entendo o que é perder uma família. Vi minha família massacrada
quando criança e sofri essa dor e essa perda todos os dias de minha vida, desde então. Mas a sua família está viva. Você tem a oportunidade de recuperar o que foi
perdido. Não há um dia que passe em que eu não queira uma tal oportunidade.
Rianne captou as emoções que Tristão sentia. E aquilo a pegou desprevenida e conectou-a aos próprios sentimentos profundos de pesar pela perda e solidão que
sofrera. Mas não conhecia as pessoas de quem ele falava. Não significavam nada para ela.
- Minha família me mandou embora-Rianne o recordou.
- Para protegê-la.
- Sim, para proteger-me.
A voz de Rianne era cheia de amargura. Aquela escolha parecia ridícula agora, à luz do resultado.
- Há algo que eu possa dizer para convencê-la a voltar para Monmouth?
- Não, milorde. Não há. Prometi levar Kari a Glastonbury. Pretendo cumprir minha promessa.
- Muito bem.
Tristão aceitou a decisão. Por enquanto.
- Mas nós a acompanharemos. Monmouth fica na mesma direção, e será mais seguro se vocês não viajarem sozinhas.
A fumaça espiralava pelo teto da hospedaria. Um freguês encontrava-se caído no chão, aparentemente bêbado. Seus olhos estavam esbugalhados, com uma expressão
horrorizada, a boca aberta num grito mudo que ninguém ouviria.
Dentro da hospedaria, Garidor jazia onde fora brutalmente assassinado. Touro estava amontoado contra a parede do fundo, o sangue do ferimento aberto em sua
garganta a lhe manchar a frente da túnica. Mab achava-se deitada sobre a mesa, os olhos arregalados de incredulidade naqueles últimos instantes antes da morte, certa
de que poderia ser poupada quando contasse ao estranho aquilo que ele queria saber. Então, percebera tarde demais que seu destino seria o mesmo dos outros. Os rolos
cinzentos de fumaça escapavam pela porta e se curvavam pela janela do segundo andar, conforme o fogo se espalhava e consumia tudo. O estranho observava tudo das
sombras das árvores próximas. Via o incêndio da hospedaria com olhos tão frios como a morte, das profundezas do capuz que sombreava suas feições.
Gritos de alarme se ouviram na vila próxima quando as pessoas se levantaram de suas camas e descobriram a hospedaria em chamas. O estranho ficou a observar
os esforços inúteis e desesperados daquela gente para combater o fogo. Então, conforme a alvorada se erguia sobre a vila, ele se voltou e desapareceu entre as nuvens
de bruma.
- Manco e estropiado - disse Tristão ao bater no pescoço do exausto cavalo.
- Keflech! - resmungou Grendel. - O que vamos fazer
agora?
- Caminhar - declarou Rianne ao escorregar do dorso do
garanhão negro. Parecia uma questão simples para ela, e uma a que estava acostumada.
- Detesto caminhar - reclamou o gnomo. - É vagaroso e problemático, e este não é um lugar para se demorar por aqui.
- Então não caminhe! - exclamou Rianne. - Fique aqui, se quiser. Embora haja boatos de que os trolls vivem nesta parte da floresta.
- Trolls? - Grendel estremeceu. Lançou olhares furtivos por sobre o ombro, ao puxar as rédeas do cavalo, incitando o animal machucado a apressar o passo.
- Trolls? - Tristão sorriu.
Rianne fez um gesto de descaso, sem encará-lo, mas sua boca se torceu num sorriso disfarçado.
- Pareceu o meio mais provável de evitar uma discussão. Grendel é muito birrento. E isso não é exatamente uma mentira. O povo acredita que todo tipo de criaturas
vive nestas matas.
Tinham estabelecido uma trégua nos últimos dias, desde a quase morte da garota no lago. Rianne estava determinada a seguir até Glastonbury. Tristão, resolvido
a levá-la a Monmouth.
- Tome cuidado para que ele não suspeite de que você o está enganando - ele avisou. - Grendel tem um modo inco-mum de conhecer os pensamentos de alguém. E
um temperamento horrível.
- Não é com os pensamentos dele que eu deveria tomar cuidado - Rianne retrucou ao encará-lo de uma forma tão direta que fez Tristão pensar que ela sabia exatamente
o que ele planejava.
- O que é que vamos fazer agora? - resmungou o gnomo. - Estamos ainda a quatro dias de viagem até Monmouth e, a Pé, será mais que o dobro.
- A cidade de Bath não está longe - disse Tristão ao se recordar da estrada que haviam percorrido semanas antes. - Encontraremos cavalos lá.
Grendel franziu a testa.
- Não gosto de lugares assim. Atraem todo tipo de estranhos, criaturas sem escrúpulos. É um local perigoso.
Bath era uma cidade bastante antiga. Suas origens remontavam aos celtas, bretões e romanos, com influência de todas as três culturas encontradas em edifícios
de pedras talhadas que decoravam as casas, salões públicos e prédios do centro da cidade, situados em várias ruas que convergiam como os eixos de uma roda.
Ali, podiam-se encontrar artesãos, mercadores e malfeitores a oferecer suas mercadorias ou artesanatos durante o dia. À noite, nas hospedarias, antigas casas
de prazeres, os rostos mudavam ao longo dos séculos, mas o comércio era o mesmo.
No mercado, vendia-se todo tipo de comidas, ferramentas ou utensílios, trazidos pelo rio Tamar do porto marítimo de Bristol. Havia especiarias exóticas, tecidos
e alimentos, porcos, galinhas e ovelhas para troca e venda.
Era um lugar fervühante de vida, com ursos dançantes e acrobatas, mímicos e artistas que faziam truques mágicos.
Tristão fez várias compras conforme caminhavam pelo mercado, e deu a cada uma das jovens uma túnica bastante larga com um capuz, que escondia perfeitamente
suas feições.
- Não tire o capuz - ordenou a Rianne. - Não queremos chamar a atenção. - É mais seguro que pensem que somos simples peregrinos a caminho do País do Oeste.
- Se estivermos em perigo, será importante que você me devolva o punhal - Rianne ponderou.
Em resposta, Tristão puxou a borda do capuz para baixo, sobre o rosto da jovem.
- E não diga nada. Só eu falarei.
Mantiveram-se pelas ruas laterais, passando por uma antiga construção de pedra com um largo pórtico, colunas, de edificação romana, de onde um leve cheiro
sulfúrico emanava e permeava o ar.
- Que cheiro é esse? - reclamou Grendel.
- Os banhos romanos - explicou Tristão, com saudades dos vários dias que passara ali com uma criatura particularmente atraente que fazia qualquer coisa por
um determinado preço.
Por fim, encontraram os estábulos perto dos limites do mercado. Entraram e prenderam as próprias montadas.
Um jovem raquítico, marcado de bexigas, veio atendê-los.
O rapaz os encarava com uma intensidade aguda que desmentia a expressão parva em seu rosto. Disse que o pai estava numa casa de jogos ali perto. Rianne encontrara
muitos como ele. Empurrou Kari para trás de si conforme a curiosidade do rapaz aumentava.
O guerreiro dirigiu-se ao jovem.
- Leve-me até seu pai. Se eu acertar negócio com ele, há uma moeda de ouro para você também. Vocês - Voltou-se para os companheiros -, esperem minha volta.
Os olhos do rapaz se iluminaram, e os traços de ignorância desapareceram, substituídos pela sagacidade da ganância.
- Fique aqui - Rianne murmurou a Kari, depois que os dois se afastaram. - Estará a salvo.
- Aonde vai? - protestou Grendel.
- Ver um homem a respeito de um cavalo - disse ela ao afagar o pescoço luzidio do corcel negro.
- Ah, não! - Grendel exclamou, dando a volta por trás do garanhão e apontando um dedo para ela como se fosse uma criança mal-comportada. - Eu a proíbo. Não
é seguro. Vamos ficar juntos até o retorno de lorde Tristão.
Conforme ele se aproximou com expressão determinada e passos firmes, Rianne empurrou o traseiro do animal com um toque de mão.
- Você não deve! - o gnomo gritou. Todos os demais protestos foram abafados quando o garanhão o comprimiu contra a parede do estábulo.
A rua lá fora fervilhava de gente, carroças e animais. Em meio ao ruído, Rianne finalmente percebeu o rumo que Tristão e o rapaz tinham tomado e seguiu atrás
deles.
A noite descia sobre a cidade. Em alguns estabelecimentos, lamparinas a óleo eram acesas nas fachadas. Pelas portas abertas, um ruído ensurdecedor se espalhava
para a rua: palavrões, conversas de bêbados, a risada aguda de uma mulher. E apostas em algum jogo.
A espada estava na bainha nas costas de Tristão, ao alcance da mão, e os dedos seguravam o cabo do punhal no cinto, enquanto ele observava os arredores, atento
a qualquer indicação de que o rapaz o conduzisse para alguma armadilha.
Então, o jovem rumou para um prédio e subiu as escadas do estabelecimento. O painel pintado do lado de fora era de uma raposa e uma lebre, indicando que lá
dentro havia tanto uma mesa de jogo como refeições.
Era um local não muito diferente de muitos em que Tristão estivera, inclusive a hospedaria onde encontrara a filha de Meg.
A não ser pelo tipo de clientes. A fumaça dos fogões permeava o ar, em meio ao cheiro acre das tochas, da cerveja e do vinho. Comentários rudes e explosões
de gargalhadas misturavam-se ao cocorocó de um galo conforme as apostas eram feitas para a próxima briga.
Tristão seguiu o rapaz até uma mesa comprida onde um novo jogo de dados começava e vários jogadores faziam apostas. O jovem esgueirou-se para trás de um homem
gordo, aco-corado, com a frente da túnica manchada de restos de comida.
- O que está fazendo aqui? Devia estar cuidando do estábulo - o sujeito resmungou. Então se virou e olhou para Tristão, conforme o rapaz se abaixava e lhe
murmurava algo no ouvido. - Vá embora. Não tenho tempo para negócios agora.
- Um jogo, então - sugeriu Tristão.
- O que vai apostar, estranho?
Tristão tirou a bolsa de moedas do cinto. Colocou-a sobre a mesa com um baque surdo. Os olhos se estreitaram no rosto gordo e um sorriso matreiro se espalhou
em meio às papadas.
Rianne abriu caminho por entre o povo até a mesa onde Tristão conversava com um freguês de olhos meio vesgos cravados na bolsa sobre a mesa.
- Sim, um jogo, por que não? Qual é sua aposta? Tristão sentou-se no banco vago. Abriu a bolsa e despejou o conteúdo sobre a mesa. Ouro e prata reluziam entre
moedas de metal inferior. Ele pegou uma das de prata, e o jogo começou.
- Regras da casa - berrou o dono do estábulo, e tirou uma faca do cinto e enterrou a ponta na superfície da mesa.
- Concordo - disse Tristão.
Rianne ficou a observar, fascinada, conforme descobria que
o guerreiro era bastante habilidoso no jogo e abençoado com uma certa porção de sorte. Ganhou as primeiras duas rodadas.
Uma multidão se reunira ao redor. Uma criada trouxe uma jarra e começou a encher as canecas de cerveja. Demorou ao se debruçar sobre a mesa para encher a caneca
de Tristão, e o tecido macio do corpete abriu-se para mostrar os seios fartos e roliços.
Sua boca se curvou num sorriso doce ao murmurar algo a ele, enquanto os cabelos soltos e o decote do vestido que escorregava pelos ombros eram um convite explícito
ao sexo. Rianne observou, com crescente curiosidade, quando a mulher encostou-se mais ainda, enfiou a mão por trás do pescoço do guerreiro e o beijou.
Aquele não era igual aos beijos roubados que ela testemunhara entre os garotos e meninas que conhecera. Nem aos beijos molhados e rudes que Kari fora forçada
a suportar de Garidor. Era diferente. Fora lento, profundo e saboreado tanto pela mulher como por Tristão.
Com algumas palavras que ela não conseguiu ouvir, Tristão mandou a mulher embora. A criada se afastou, mas sem deixar de enviar um claro recado ao esfregar
os seios fartos pelo braço dele.
Os homens eram todos iguais, Rianne pensou, com desgosto. E ela acreditara que Tristão fosse diferente, pois mostrara tanta gentileza e preocupação por Kari...
Que fossem para o inferno!
Pensou em voltar para os estábulos e ir embora sozinha com Kari. Não duvidava que pudessem seguir até Glastonbury. Porém, as poucas moedas que conseguira esconder
estavam também
naquela bolsa. Tristão fora esperto e as tomara. Como garantia, dissera, para que ela não fugisse no meio da noite.
Aquele pequeno pecúlio era tudo que Rianne possuía no mundo. Sem ele, seria impossível chegar a Glastonbury. E poderiam muito bem ir parar num lugar muito
parecido com aquele da outra vez. Aproximou-se.
Ao observar o prosseguimento do jogo, Rianne começou a perceber a fonte da boa fortuna do dono do estábulo, que parecia ter mudado drasticamente. Sentiu que
a única explicação, sem dúvida, era o uso de dados viciados, que garantiam um resultado previsível. O sujeito, provavelmente, os trocara depois de deixar Tristão
ganhar algumas rodadas. Os dados originais deviam estar escondidos em suas mangas, na túnica, ou num bolso das calças.
Tristão era um jogador habilidoso e também pareceu sentir que a sorte se voltara contra ele. Para evitar suspeitas, o dono do estábulo deveria perder algumas
jogadas de vez em quando. Mas a ganância se sobrepôs à prudência.
- Você só ficou com duas moedas! - exclamou ao indicar as duas moedas de ouro que luziam sobre a mesa na frente de Tristão, as últimas de sua fortuna.
- Uma última rodada - o guerreiro sugeriu.
Tristão não era nem impulsivo nem tolo. Mas Rianne surpreendeu-se quando ele tirou uma corrente de prata do pescoço. Um anel pendia da corrente. Era também
de prata, com uma pedra azul incrustada no meio.
- As moedas de ouro e isto contra tudo nessa bolsa e dois dos melhores cavalos em seu estábulo.
Ele devia estar maluco. Apostar tudo, quando tinha de saber
que o homem trapaceava, era mais que loucura. A menos que pretendesse expor o sujeito como trapaceiro.
Mesmo assim, uma atitude perigosa e imprudente. Num tal lugar, era difícil saber onde estavam as simpatias. Ninguém sabia disso melhor do que ela.
O sorriso desdentado se alargou conforme os olhos cobiçosos de porco se estreitaram.
- Claro - concordou o dono do estábulo, que entornou mais uma caneca de cerveja e depois enxugou a boca nas mangas. - Só espero que a sorte continue comigo.
Rianne percebeu, pelo canto dos olhos, uma sombra que se movia nos limites da multidão. Via a face marcada de pústulas colocar-se atrás de Tristão, uma garantia
a mais de que o dono do estábulo não perderia.
Os dados foram lançados. Sem nenhuma surpresa, o resultado foi o mesmo que antes. Mas, no instante em que o dono do estábulo estendeu o braço para recolher
seus ganhos, Tristão debruçou-se sobre a mesa.
- O que é isto? - perguntou.
Num gesto rápido, puxara o punhal do cinto e cortara a frente da túnica do adversário. Uma pequena bolsa caiu sobre a mesa, atraindo a atenção dos espectadores.
- Meus ganhos - explicou o homem, e levou a mão para apanhar a bolsa.
Rianne, contudo, foi mais rápida. Pegou a bolsa e virou-a sobre a mesa. Cinco dados feitos de presa de javali rolaram para fora.
Um dos assistentes pegou um dos dados do jogo da mesa e sacudiu-o nas mãos. Em seguida, pegou uma caneca de metal e bateu-a sobre o dado.
A pedra se partiu em vários pedaços, expondo a bola de metal que havia dentro.
Gritos de indignação ecoaram de todas as bocas, em meio a uma chuva de acusações. Então, o caos se instalou. O dono do estábulo agarrou Rianne pela túnica
e arrancou-lhe o capuz da cabeça. Por um momento, todos ficaram em silêncio, tomados de um espanto quase tão grande quanto o de Tristão, ao descobrir que ela o seguira.
Mas não teve tempo de dizer nada, pois o filho do trapaceiro o atacou.
- Cadela! - o dono do estábulo berrou, furioso com quem o desmascarara. Agarrou Rianne pela garganta.
A mão dela fechou-se em torno do cabo da faca que ele cravara no tampo da mesa. Arrancou-a da madeira e golpeou-o na outra mão. A faca transpassou a carne
e se enterrou na mesa. O homem soltou um grito de dor e soltou-a no mesmo instante.
As moedas que haviam se esparramado quando a luta começara reluziam no chão, debaixo da mesa. Rianne as recolheu depressa e as enfiou dentro da túnica. Seu
punhal também caíra no chão, quando Tristão fora atacado pelo filho do trapaceiro. Ela o pegou.
Tristão ainda tinha a espada na bainha, pendurada nas costas. O rapaz, um magricela, não constituía páreo para ele. Poderia derrotá-lo só com os punhos. Contudo
o oponente era perigoso. Sacou uma faca e investiu contra o guerreiro.
- Vou lhe arrancar o coração! - disse para Tristão. - E assá-lo num espeto.
Tristão esquadrinhava a hospedaria e os fregueses que brigavam pelas moedas espalhadas pelo chão, em meio à cerveja derramada. Onde estava Rianne?
A distração foi suficiente para dar ao rapaz uma vantagem
momentânea. Ele investiu com a faca e cortou o braço de Tristão. E conseguiu a plena atenção do guerreiro.
O dono do estábulo deixou escapar um urro de dor ao arrancar a faca da madeira. Com um berro de raiva, lançou-se atrás de Rianne.
Keflech, ela pensou, e correu na direção do rapaz que ferira Tristão. Com um golpe, cortou-lhe a corda da cintura. As calças enormes, que sem dúvida ele herdara
do pai, escorregaram por seus quadris magros, revelando a pele clara, um tufo de pêlos escuros, os joelhos nodosos, um traseiro nu e pouco mais. Bem pouco mais.
O rapaz soltou um grito de humilhação. Deixou cair a faca e puxou as calças para cima.
Tristão agarrou Rianne pelo braço e empurrou-a para a porta da hospedaria. Logo, estavam do lado de fora e correndo pela rua escura. Berros os seguiam, conforme
vários fregueses saíram atrás dos dois, inclusive o dono do estábulo e o filho, que segurava as calças para não caírem.
Tinham de voltar aos estábulos, mas Rianne não imaginava onde ficava. Tristão empurrou-a para outra rua, por um pátio e por uma passagem que levava a vários
degraus e para dentro de um grande aposento pouco iluminado. O cheiro de enxofre e o calor úmido do ar a envolveram. Então, Rianne ouviu o som de água corrente.
- Que lugar é este?
- Os antigos banhos romanos. Foram construídos séculos atrás.
Ela arquejou quando saíram da construção antiga e o ar frio da noite a envolveu. Depois do ar quente e sulfuroso dos banhos,
era como mergulhar no fundo gelado de um lago. Seus olhos lacrimejaram.
Tristão empurrou-a para uma passagem estreita. Ouviram vozes próximas. A luz de várias tochas infiltrou-se pela abertura, e os dois se comprimiram lá dentro.
Tristão ocultou-a com o próprio corpo, colocando a espada entre eles para que não refletisse a luz das tochas e denunciasse sua presença.
O hálito de Tristão roçava quente contra a têmpora de Rian-ne. O corpo também era quente contra o dela. E como naquele dia no lago, quando tinham lutado para
salvar Kari, Rianne teve a repentina consciência de que havia passado por uma transformação - não era mais a menina que se disfarçava em trajes de homem. Naquele
dia, recordara-se de que mesmo que usasse roupas de menino, não era um. E, na hospedaria, quando a mulher beijara o guerreiro, sua curiosidade não fora a curiosidade
de um garoto, mas a de uma mulher por algo que nunca experimentara.
- Ir até lá foi muito perigoso - disse Tristão, a respiração a provocar comichões no rosto de Rianne.
- Sim - ela concordou. - Você poderia ter ficado gravemente ferido.
Tristão não sabia se retrucava ou se lhe dava umas palmadas. Rianne resolveu o dilema. Beijou-o.
Capítulo VI
Rianne deslizou a mão por trás da nuca de Tristão, puxou-lhe a cabeça para baixo e comprimiu a boca contra a dele tal como vira ser feito.
Ficou surpresa. O guerreiro tinha gosto de cerveja, do ar frio da noite e de algo misterioso, fugidio e poderoso.
Instintivamente, recostou-se contra ele, a abraçá-lo, a procurar por alguma coisa mais. Seu corpo se ajustou a todos os ângulos duros e rijos e às formas de
Tristão; sua boca encaixou-se na inclinação brusca daqueles lábios firmes, suas mãos acariciavam de leve as bordas rijas das maçãs do rosto e a textura áspera da
barba sobre o contorno másculo do queixo. E ela fechou os olhos ao encontrar aquele algo mais.
A boca de Tristão deslizou contra a sua com um súbito calor, uma energia e uma necessidade misteriosa; feito mel quente, doce e fugidio por sua língua, como
mão forte a tocar fundo em seu âmago, a despertar anseios desconhecidos dentro dela. Então, ele a empurrou. Rianne sentiu a raiva e a viu nas feições de Tristão,
conforme a luz de tochas que passavam
incidiu pelos planos da expressão dura, como uma máscara de pedra.
Ele praguejou, num tom rude que pareceu um chicote a atingi-la. Mas era mais que raiva. Havia uma pontada de sofrimento, um amargo desapontamento e um ódio
que era pior do que se o guerreiro a agredisse.
- Vai continuar com seus joguinhos idiotas, milady?
A cor fugiu do rosto e depois retornou para queimar a pele de Rianne. Seus olhos faiscaram com um fogo azulado, de mágoa. E de orgulho.
- Estava simplesmente curiosa, pois nunca fui beijada antes. Mas, na verdade, acho exagerado o que dizem a respeito.
- Exagerado?
- Deve despertar interesse em certas mulheres - ela retrucou entre os dentes.
- Mas não em você?
- Nem um pouco.
Passou por ele na direção da abertura da passagem. Porém, Tristão a puxou de volta, conforme a luz de outra tocha brilhou pelas paredes do lado de fora.
Vários homens passaram. A busca continuava. Assim que a luz gradualmente desapareceu, Rianne se livrou com um safanão e esgueirou-se para a rua. Tristão a
seguiu, soltando uma Praga.
- Espero que não tenham se apressado por nossa causa - Grendel comentou com ironia, quando os dois voltaram ao es-tábulo e entraram às escondidas. Kari remexeu-se
e se sentou, os olhos enevoados de sono.
- Levaremos dois cavalos - Tristão murmurou, ignorando
a observação provocativa do homenzinho. - Vamos partir
agora mesmo.
- Vai roubá-los?-Grendel indagou, de olhos arregalados.
- Vamos dizer que negociei o preço com o dono do estábulo - respondeu Tristão, pegando a sela e jogando-a no lombo do garanhão preto.
Apertou a cilha no lugar com rudeza, o que fez o cavalo empinar e relinchar de desaprovação.
Grendel olhou do guerreiro para Rianne, que pegou uma sela com modos empertigados. Era óbvio que a raiva pairava entre os dois, porém ele não conseguira sentir
a causa.
- Você cavalgará comigo - Tristão a informou, como se desse ordens a seus homens.
Ela se recusou a responder, recolhida num silêncio teimoso e atenta à tarefa de selar outro cavalo. Tristão arrancou-lhe os arreios das mãos. Rianne ergueu
a cabeça, os olhos a faiscar de uma fúria azulada que fez Grendel recuar.
- Vai cavalgar comigo, ou eu a amarrei atravessada na sela!
- Vários homens se aproximam! - Grendel avisou. - Precisamos ir embora de uma vez! - Pendurou-se no estribo e esforçou-se para se acomodar no lombo da montaria.
Kari já estava na sela de um dos cavalos do dono do estábulo.
Rianne prometera ver Kari segura em Glastonbury. Não quebraria a promessa simplesmente porque no momento gostaria de ver Tristão de Monmouth sendo assado num
espeto. Pegou as rédeas do garanhão negro e, com uma eficiência que surpreendeu até a si mesma, saltou para a sela. Olhou para baixo de cara feia.
- Está perdendo tempo.
Tristão montou atrás dela. O garanhão relinchou com reprovação e virou a cabeça para o lado. Repuxou o beiço e mordeu a brida com os dentes fortes.
- Silêncio, sua besta irritadiça, ou vou oferecê-lo como comida aos corvos! - Tristão gritou. Puxou Rianne com força contra si e incitou o cavalo em disparada
para fora do estábulo.
Grendel apressou-se a acompanhá-los, puxando o cavalo reserva pela rédea. Tinha um pressentimento ruim quanto à jornada ainda pela frente.
Cavalgaram por várias horas, com a lua a guiá-los, enquanto nuvens de uma tempestade que se avizinhava corriam pelo céu. Pararam algum tempo depois da meia-noite.
Montaram acampamento sem fogo, numa área de vegetação densa onde a folhagem oferecia esconderijo e abrigo contra a tormenta que se aproximava.
Rianne amontoou-se com Kari debaixo de uma manta grossa de pele no abrigo de uma árvore caída, enquanto Grendel se curvava numa bola ali perto. Tristão ficou
com os cavalos.
Parecia que havia dormido fazia pouco quando o guerreiro os acordou. Quase não houve tempo nem para as necessidades e já estavam de novo no lombo dos cavalos.
- Tenho de parar - Rianne avisou, com os dentes cerrados, horas mais tarde. Tinha as costas rígidas para que seus corpos pouco se tocassem.
Era quase meio-dia. Haviam cavalgado sem parar desde antes da alvorada, e matado a sede com os odres de água que carregavam nas selas. Suas costas doíam, as
pernas pareciam entorpecidas, para não mencionar o fato de que cada passada ameaçava estourar sua bexiga, com conseqüências desastrosas.
- Mais tarde. - Com a mão firme nos quadris de Rianne, Tristão a puxou de volta contra o próprio corpo.
Ela rilhou os dentes de frustração. E tentou usar de diplomacia. Afinal, ele era um cavaleiro do rei.
- Por favor - murmurou, quase se engasgando com a palavra.
Aquilo sem dúvida custara muito a Rianne, Tristão pensou. Não tinha desejo de ser a causa de mais problemas para a garota.
- Vamos parar dentro de alguns minutos. Há um bosque pouco adiante, que oferece abrigo e caça. Faremos acampamento lá para a noite.
Quando Tristão puxou as rédeas e finalmente parou, Rianne escorregou da sela com cuidado, tendo os movimentos travados pelas muitas horas de cavalgada. Estavam
todos exaustos, especialmente os cavalos.
- Quanto falta para Glastonbury? - ela perguntou.
- Dois dias, talvez três.
Montaram acampamento nos limites da floresta de Bodmin. Kari era a que mais se ressentira com a viagem. E Rianne preocupava-se com ela. Fora por tanto tempo
maltratada por Garidor que estava magra demais, só pele e ossos. Além disso, quase morrera no lago.
- Você não tem de se culpar pelas circunstâncias da vida de Kari - disse Grendel, a fitá-la como se lesse os pensamentos de Rianne. -Existem outros que devem
suportar esse fardo.
- Talvez - Rianne ponderou, enquanto ela e o gnomo catavam lenha para a fogueira e Tristão procurava caça. - Mas Kari me deu sua amizade quando eu não tinha
ninguém.
O mínimo que posso fazer é manter minha promessa. Ela ficará segura em Glastonbury. E quem sabe eu deva ficar lá também. A vida pacata da abadia tem um certo
encanto...
Quando voltaram ao acampamento, Rianne observou, divertida, Grendel esforçar-se em volta da fogueira, a resmungar toda sorte de encantamentos incoerentes,
intercalados com uma praga ocasional. Bufava e assoprava na tentativa de acender a chama de um carvão que soltava um fino penacho de fumaça.
- A lenha está molhada. Isso acontece depois da chuva. O gnomo a olhou de cara feia.
- Obrigado, dona, por essa esclarecedora informação. Então seu olhar se aguçou. A única fraqueza de Rianne era a garota, Kari. Talvez pudesse ser convencida
a explorar os outros poderes se julgasse que a mocinha se beneficiaria com isso.
Meneou a cabeça como se lamentasse profundamente.
- Sem uma fogueira, não haverá comida para nós. Rianne percebeu o jogo. De soslaio, vira a expressão do rosto de Grendel. Agachou-se ao lado da fogueira e,
com um sorriso, bateu a pedra chata que carregava na bolsa contra outra pedra escura.
Uma faísca saltou e caiu entre as folhas mortas e os pedaços de casca de pinheiro. Logo, uma pequena chama surgiu. Espalhou-se pelos gravetos e pinhas, consumindo-os
depressa, e depois se estendeu em labaredas para o alto, para a lenha mais grossa.
- Não é tão difícil quando se sabe o jeito. Grendel franziu a testa.
- Qualquer um pode fazer isso.
- Aparentemente, não - Rianne retrucou, com um olhar enviesado para ele.
O gnomo resmungou baixinho e jogou mais lenha no fogo, frustrado.
A fogueira continuou a queimar firme enquanto a noite descia sobre o acampamento. Tudo que restara da perdiz caçada por Tristão eram alguns ossos espalhados.
Rianne preparou uma infusão de cerejas secas e ervas que carregava na bolsa do cinto e deu-a a Kari. Logo, a garota deixou a cabeça pender para frente, e a
caneca de madeira escapou-lhe dos dedos.
- Você tem um conhecimento surpreendente de remédios - Grendel comentou, pensando que o elogio poderia ter sucesso onde os outros planos tinham falhado.
- Não é grande coisa. Nada mais do que a necessidade de aprender tais coisas para sobreviver.
Grendel sorriu no íntimo. A dedicação de Rianne para com a garota era muito parecida com a de outra pessoa. Meg possuía aquela mesma qualidade, aquele mesmo
espírito protetor e terno.
- Não é pouca coisa nas mãos de uma curandeira tal como minha patroa. Ela também tem o toque curativo.
Tristão ergueu os olhos ao compreender o intuito da conversa do gnomo.
- Embora ela fosse capaz de fazer pouca coisa com respeito à triste disposição do nosso amiguinho - comentou ao se juntar à conversa.
- Não preciso ouvir uma coisa dessas - Grendel retrucou.
- Estava apenas tentando ser útil, e é isso que ganho por meu esforço: ter de conviver com uma imitação de cavaleiro que
só pensa com a cabeça que tem entre as pernas, e com uma criança ingrata com o temperamento de um porco-espinho. Bem, não terão Grendel para sempre para desrespeitarem.
Enquanto atiçava o fogo, alimentando-o com pedaços maiores de lenha, ficou soltando imprecações contra aqueles que faziam piadas à custa dos outros.
As chamas cresceram ao encontrar veios de seiva e resina de pinheiro, e depois explodiram numa chuva de fagulhas e carvões em brasa que envolveram Grendel,
pego de surpresa.
Tristão pegou uma manta para abafar as labaredas, mas Rianne alcançou o gnomo primeiro.
Agarrou-o pelo braço, abafou as chamas e curou a carne queimada.
Tristão arrancou a túnica chamuscada e olhou para o pequeno braço musculoso de Grendel. Não havia bolhas ou marcas. Na verdade, a pele só tinha os pêlos eriçados
pelo frio. Então, pegou a mão de Rianne e virou-a para cima.
- Você não se queimou.
- Sorte.
Tristão tomou-lhe a outra mão e também a virou. Não havia nenhuma marca na pele clara, embora ele tivesse visto Rianne tocar o fogo com as mãos nuas. A cicatriz
em seu queixo formigou diante da lembrança de outra pessoa que possuía a capacidade de curar com o toque gentil da mão.
- Muita sorte, realmente.
Ciente de que Grendel observava a cena com vívido interesse, Rianne libertou as mãos com um gesto brusco.
- Terei mais cuidado no futuro - retrucou e voltou para o leito de pelegos que arrumara ao lado de Kari.
Rianne saiu de mansinho de dentro dos pelegos quentes. O céu clareava as copas das árvores, conforme a alvorada irrompia sobre o acampamento. Kari remexeu-se
ao lado, esfregando os olhos.
- Alguma coisa errada?
- Não é nada. Volte a dormir.
Kari pegou-a pelo braço. Naquele aperto exageradamente forte, Rianne sentiu a preocupação da amiga.
- Não vou me demorar.
Mas a garota não a soltou. Rianne consentiu em esperá-la em vez de discutir e se arriscar a acordar os outros. Em silêncio, as duas se esgueiraram para fora
do acampamento.
Seu estoque de ervas medicinais escasseara drasticamente e ela esperava encontrar mais na floresta para reabastecê-lo. E precisava de tempo para pensar e tomar
uma decisão sobre o próprio futuro, conforme se aproximavam de Glastonbury.
Tristão acordou num sobressalto. O dia nascera. O fogo queimava baixo. Só as brasas restavam. A névoa cobria o acampamento.
Tudo estava quieto; nada se mexia. Apenas o gnomo jazia curvado no sono diante da fogueira, a ressonar. E imediatamente o guerreiro se pôs de pé. Rianne e
a garota haviam sumido.
Encontrou as pegadas leves no solo argiloso à beira do acampamento. Tirou a espada da bainha às suas costas. E enquanto o céu se tornava mais claro, ele seguiu
os rastros que adentravam a floresta.
Rianne achou centáurias perto da beira da água, crescidas
ao abrigo de algumas pedras. Quando fervidas, as folhas produziam um tônico contra a febre. Apanhou vários punhados e colocou-os dentro da bolsa no cinto.
A serpentária não era facilmente encontrada.
Era eficiente contra febre e ajudava a estimular o apetite. Quando tivessem oportunidade, ela faria um chá para Kari, pois a garota estava muito magra.
Kari seguia logo atrás, cantarolando, a recolher pinhas e nozes e colocá-las na barra do vestido. Apesar do rigor da viagem, parecia mais tranqüila a cada
quilômetro distante de Garidor.
Rianne sabia que estava certa na decisão de levar Kari para Glastonbury. Lá, ela encontraria um pouco da paz que sempre faltara em sua vida.
Achou um pequeno pé de serpentária perto dos limites da clareira. Kari parou atrás dela. E seus olhos se arregalaram ao ver a faca que a amiga tinha na mão.
- Onde arranjou isso?
- Com Grendel. Para alguém que supostamente é dotado de poderes incomuns, falta a ele o bom senso. Tirei-a do seu cinto.
- Tristão ficará aborrecido.
- Ele não precisa saber. Sinto-me mais segura com ela. Não diga nada - disse à garota. - Será nosso segredo.
- Você se arrisca muito - Kari choramingou. - Tristão tem um temperamento horrível.
- Ora! - bufou Rianne. - Cão que late não morde. Ele não me assusta.
Procurava por confrei, que normalmente crescia em abundância em tais lugares.
- Acredita naquilo que o homenzinho diz da sua família? - perguntou Kari.
-Eu não tenho família-retrucou Rianne.-Estão mortos para mim. - Seus olhos se iluminaram ao avistar as folhas acinzentadas. - Ali está! - exclamou.
Quando criança, ela e Dannelore colhiam ervas suficientes para atravessar o inverno. Hidratadas, as folhas secas, sementes e talos que colhiam durante a primavera
e o verão produziam uma variedade de elixires que curavam febres, machucados e outras queixas.
Mas isso fora muitos anos antes, na cabana da floresta, perfumada da fragrância pungente das ervas que pendiam em fardos amarrados das vigas do teto.
Alguma coisa do outro lado da clareira chamou-lhe a atenção. A princípio, Rianne pensou que fosse uma ilusão de ótica, ou sua imaginação, embora seus sentidos
se aguçassem e lhe dissessem que não era.
Então, a névoa rodopiou em torno de uma figura solitária. A criatura parecia não ter substância alguma. Logo depois, lentamente, tomou forma e pairou sobre
o solo conforme chegava mais perto. Rianne percebeu que as sombras ondulantes eram as dobras do manto que a criatura usava, as bordas a flutuar naquelas correntes
de ar, o capuz caído sobre a face, as feições escondidas.
Atrás, Kari parou de cantar e se aproximou de Rianne. Esta sentiu o medo da garota no mesmo instante, e ele se tornou seu próprio temor no gosto metálico que
subiu por sua garganta. Vozes murmuravam como se brotassem de antigos sonhos. As ervas que colhera caíram de seus dedos. Com a faca na mão, fez um gesto para Kari,
enquanto recuava devagar.
- Vá embora! - murmurou com veemência. - Volte! Rianne empurrou a garota para longe.
- Corra! Não olhe para trás, não importa o que ouça.
As palavras soaram tão enérgicas como tinham sido as de Dannelore, naquela noite, havia muito tempo, quando a mandara fugir da cabana.
Kari voltou-se e fugiu da clareira.
- A criança se tornou mulher - disse a criatura, a voz sem corpo, humana, e, no entanto, sobrenatural, no murmúrio baixo e rascante que chegou até Rianne como
um vento gelado.
- Quem é você? O que quer?
As feições se aclararam e a criatura tomou a forma de uma mulher. Seus cabelos eram longos e negros. E os olhos que fitavam Rianne eram os olhos da morte.
- Você sabe quem eu sou. Já nos encontramos antes.
- Não a conheço.
Olhos tão frios e sombrios reluziram ao se cravarem em Rianne.
- Ah, mas você me conhece, sim.
Rianne se viu menina, parada ao lado das ruínas de sua casa, as chamas a saltarem para o céu da noite, a fumaça a se misturar às nuvens de névoa ondulante.
O cheiro travou-lhe a garganta. E, novamente, ela sentiu o sangue nas mãos.
Kari, quase histérica, agarrou-se na frente da túnica de Tristão, que quase alcançara a clareira.
- Você precisa ajudá-la! Ela vai ser morta! Ele se desvencilhou das mãos da garota.
- Volte para o acampamento!
Tristão avistou Rianne nos limites da clareira.
- Precisa matá-la! - ela exclamou ao vê-lo. Ele esquadrinhou a clareira e não viu nada.
- Não há nada lá.
- Está lá! Eu vi! Precisamos matá-la!
Tristão não tinha idéia do que Rianne vira. Fosse o que fosse, sumira.
- Não há nada lá!
-Você tem de ter visto! - Rianne tremia, furiosa, os olhos a faiscar de raiva.
Tristão já presenciara as mudanças de humor de Rianne, e também seus disfarces. Não era nem uma coisa nem outra. O medo e a raiva eram reais. Ela vira... bem,
alguma coisa. Kari também vira. A garota ficara aterrorizada. Mas fosse o que fosse que tivessem visto, sumira.
- Não vi nada. Contudo tomaremos mais cuidado. Por essa razão eu não queria que você fosse embora por conta própria.
Ela resmungou, frustrada e impotente.
- Estava ali. Eu vi. Ainda está por aí.
- O que ainda está por aí? - Grendel indagou, quando finalmente chegou à clareira.
- Nada! - Rianne bufou. - Não há nada!
Passou por ele, seus pensamentos agora direcionados a Kari. A garota estava apavorada e voltara sozinha para o acampamento.
- Quer, por favor, me dizer o que se passa? - inquiriu Grendel.
- Nada! - Tristão esbravejou ao retornar ao acampamento.
Estavam prontos para partir e o sol já subia no horizonte. O garanhão negro parecia ter sentido o mau humor do dono. Sacudiu
a cabeça quando Rianne ia montá-lo, o focinho arrega-nhado sobre os dentes brancos. Jogou a cabeça para trás e retesou-se contra a brida, mas não tentou mordê-la.
Tristão saltou atrás de Rianne, e quase sorriu quando ela se encolheu para o mais longe possível. Seus longos braços a puxaram contra o próprio peito, tornando
impossível escapar. Para onde quer que ela se virasse, a cada movimento, ficava em contato íntimo com o guerreiro.
- O que viu na clareira? - ele perguntou.
- Pensei ter visto alguém. A princípio julguei que fosse um homem, mas depois... Havia muita sombra. Estava escuro. Não posso ter certeza.
- Se não era homem, então o que era?
- Uma mulher.
Tristão não disse nada por um longo tempo. Então indagou:
- Como ela era?
- Não era muito alta, embora o homem fosse alto.
- Era homem ou mulher?
- Não sei... Vi ambos.
- E ao mesmo tempo?
- Não. Primeiro, o homem. Então as feições mudaram e vi a velha.
- Você o conhecia?
- Eu o vejo nos meus sonhos... - ela murmurou, hesitante. - Está cercado de sangue e de morte... - Estremeceu conforme as imagens terríveis retornavam. - Ele
é o sangue e a morte.
- E a mulher? Está em seus sonhos também?
- Não, porém eu a conheço. Não sei como, mas conheço. Tem longos cabelos negros e olhos frios e mortiços.
Grendel a encarou quando sua montaria se aproximou do garanhão preto. Estremeceu ao penetrar os pensamentos de Rianne.
Uma mulher com longos cabelos negros e olhos frios e mor-tiços...
Dois dias depois chegaram a Glastonbury. A luz da torre do monastério os guiava pela chuva torrencial enquanto a noite caía. Estavam com frio, molhados, exaustos
e cobertos de lama.
Após desmontarem no pátio do convento, Rianne cambaleou, insegura, e teria caído se as mãos fortes do guerreiro não a amparassem. Molhada, com lama pela face
e os cabelos grudados na cabeça, ela parecia um gato afogado. E fez Tristão recordar-se de que os gatos tinham garras, ao fitar aqueles olhos azuis como duas chamas
em meio à sujeira.
- Precisamos repetir esse passeio mais vezes - ele brincou.
- Nem por nada na vida, Tristão de Monmouth. Chegue perto de mim com esse cavalo outra vez e juro que vou des-tripá-lo como um bacalhau.
- Ora, ora. - ele retrucou. Estava preocupado que Rianne tivesse ficado doente. - Não é de seu feitio dizer uma palavra decente, quando pode usar uma mais
agressiva.
Ela ia soltar uma fieira de palavrões quando um jovem monge se aproximou. Embora não tivesse sentimentos devotos, Rianne respeitava os dos outros.
- Estávamos esperando vocês. - Irmão Timothy os cumprimentou.
Tristão perguntou:
- Notícias de Monmouth?
Rianne não conseguiu ouvir a resposta, conforme ela e Kari
eram acompanhadas para outra parte da abadia. Mas não foi preciso. Viu as feições sombrias de Tristão.
- Venha, homenzinho - padre Dunstan insistiu com Grendel. - Não precisa espreitar pelos corredores. Todos são bem-vindos na casa de Deus.
Grendel finalmente entrou nos aposentos privativos do abade.
- E feche a porta atrás de si! - padre Dunstan exclamou. - As correntes de vento estão de enregelar os ossos nesta noite terrível.
Grendel empoleirou-se no canto, de onde poderia observar sem ser notado e ouvir as conversas e os pensamentos não verbalizados. E, além disso, era o mesmo
canto em que um fogo queimava agradavelmente num braseiro.
- Recebemos a notícia de que deveriam passar por aqui e os esperamos pelo dia todo - padre Dunstan disse a Tristão, enquanto servia uma dose reforçada de vinho
quente para ambos.
Não ofereceu nada ao companheiro, sabendo que o homenzinho não bebia. Depois, o abade acomodou-se em sua cadeira; o vinho brilhava no cálice preso nas mãos.
- Demorou em voltar.
- A viagem não correu como esperado - informou Tristão. Falou da descoberta da cabana abandonada e que Rianne ficara sozinha por longo tempo. Não disse nada
a respeito do encontro inusitado com a velha na cabana.
Padre Dunstan meneou a cabeça com tristeza quando Tristão terminou o relato.
- O que você acha? A garota é a filha de lorde Connor?
- Grendel acredita que seja. E há a semelhança das feições.
- Como ela se saiu nesses anos todos? É educada?
De uma certa forma, pensou Tristão, recordando-se da extraordinária perícia de Rianne no jogo. Remexeu-se ligeiramente ao dourar a verdade.
- É engenhosa e muito habilidosa com as mãos. E há a questão da outra garota que viajou conosco. Uma órfã infeliz que procura o abrigo da Igreja. Sofreu muito
e foi tristemente maltratada. Mas tem um coração generoso e uma boa cabeça. Rianne esperava que a garota pudesse ser acolhida no santuário.
- Ah... Então, nossa pequena Rianne tem um coração generoso e benevolente também. Agrada-me muito ouvir isso. A garota é bem-vinda - o abade assegurou. - Encontraremos
um lugar para ela. Será um conforto para Rianne ter a amiga tão perto.
Os pensamentos de Tristão se voltaram para seu lar.
- Que notícias tem de Monmouth?
O abade franziu a testa, a expressão muito séria.
- Muito graves, eu receio. A despeito dos melhores esforços de Meg e lorde Merlin, os ferimentos de lorde Connor não sararam e ele se mostra muito desgastado
pela febre. Estou profundamente preocupado que você possa não voltar a tempo. Meu coração está pesado por lorde Connor e a sra. Meg. A volta da filha será um conforto
para eles, com certeza.
Tristão desejou sinceramente compartilhar a fé do abade.
- A que distância acha que nos afastamos? - perguntou Kari, a voz a ecoar suavemente pelas paredes de pedra, no quarto mobiliado com simplicidade e que ficava
ao lado da
capela. A cada dia que se afastavam da hospedaria e de Garidor, Kari fazia a mesma pergunta.
- O bastante - Rianne lhe disse; e uma das mulheres que as levara até o quarto voltou com uma bandeja de comida, uma bacia de água e roupas limpas. - Você
está a salvo - garantiu. - Ninguém irá machucá-la outra vez.
Como não houve resposta, virou-se e descobriu que Kari caíra adormecida enquanto conversavam, ficando a comida à sua frente intocada e a cabeça aninhada no
braço dobrado.
- Você está segura - repetiu, baixinho, enquanto a garota dormia placidamente, talvez pela primeira vez na vida.
Rianne tirou as roupas molhadas e as botas de Kari, e carregou a menina para uma das camas. Cobriu-a com uma manta grossa. Depois, deitou-se ali perto. Mas
o sono demorou a vir.
Não podia ficar em Glastonbury. Tristão estava resolvido a levá-la a Monmouth, e ela igualmente determinada a não ir.
Não havia nada para ela lá. Aquela gente não significava nada em sua vida. O vínculo, se de fato alguma vez existira, fora cortado fazia longo tempo. Descobrira
a verdadeira amizade e uma lealdade mais profunda com Kari, muito mais do que com aqueles com quem supostamente compartilhava um laço de sangue.
Sua promessa à garota fora mantida e, por mais que lamentasse a perda daquela amizade, sentia consolo com o fato de que Kari se encontrava agora em segurança.
Garidor nunca a machucaria outra vez. E, quando a manhã chegasse, Rianne estaria bem longe de Glastonbury.
Levantou-se antes do alvorecer. Enviou à amiga adormecida um gesto de adeus e, em seguida, seguiu pelos corredores até o pátio. Passou por vários monges em
suas preces matinais,
porém eles não prestaram atenção a ela. Assim que estava do lado de fora, seguiu para os estábulos.
Imporia mais distância entre si e Tristão se estivesse a cavalo. Quando não precisasse mais do animal, poderia vendê-lo.
Os cavalos a farejaram assim que Rianne entrou no estábulo. Uma cabeça escura apareceu de repente na grade da baia, com os olhos negros e inquisidores cravados
nela. Rianne procurou pelo dócil ruão que Kari montara.
O garanhão negro relinchou da baia vizinha.
- Ninguém pediu sua opinião! - ela exclamou, como se conversassem em algum idioma antigo. - E não preciso da sua permissão.
O cavalo negro sacudiu a cabeça como se estivesse profundamente desgostoso.
- Nem ninguém pediu minha opinião ou minha permissão. Rianne fez meia-volta e deu de cara com Tristão. Braços cruzados no peito, ele cravou os olhos nela.
Qual seria a desculpa?, pensou. Uma mentira? Ou uma história triste? Não mentiria se fosse a filha de Meg.
- Não preciso da sua opinião ou permissão! - Rianne exclamou, e puxou o ruão para fora da baia.
- Ah, precisa, sim, Rianne - ele asseverou. - Foi confiada aos meus cuidados. Não pode partir sem a minha permissão.
- Por quem? - ela indagou, com as mãos plantadas nos quadris.
- Seu pai e sua mãe.
- Não tenho pai nem mãe. Estão mortos.
- Estão bem vivos - Tristão afirmou. - E não se engane quanto a isso, você vai para Monmouth.
- Não pode me obrigar a ir com você! - ela exclamou.
- E não mudarei de idéia. Esta é minha escolha. Não sua nem a de gente de quem não me recordo, que não precisa de mim a não ser para seus próprios propósitos.
Rianne recusava-se a se sentir intimidada. Ou que lhe dissessem o que poderia ou não fazer. Não obstante o jeito com que Tristão erguia o queixo, sugeria que
ela talvez tivesse exagerado. Um aviso instintivo perpassou-lhe os sentidos.
Tristão suspirou fundo. Aproximou-se devagar.
- Fique longe de mim - Rianne avisou, firmando os pés no chão com um ar de desafio.
Ele a encarou. Havia algo naquela raiva, teimosia e impe-tuosidade em face de uma disparidade absoluta que fazia Tristão recordar-se de lorde Connor. Mais
uma razão para que ele a levasse a Monmouth.
- Você tem duas escolhas, Rianne. Ou monta aquele cavalo, ou vai atravessada como um saco de grãos. Mas - assegurou -, vai para Monmouth.
Rianne teve vontade de rir. Tristão com certeza estava brincando. Ela aprendera muito desde que o guerreiro e o gnomo tinham entrado em sua vida.
Concentrou os pensamentos e, numa explosão de energia, dirigiu-a contra ele. Sua intenção era mandá-lo se esparramar na palha, como fizera com Grendel na clareira
da floresta. Mas aprendeu de imediato outra valiosa lição que dizia respeito a tamanho e peso.
Tristão era mais alto e bem mais pesado que o homenzinho. Em vez de mandá-lo ao chão de costas e conseguir uma oportunidade de escapar, o golpe atingiu-o no
queixo, pouco mais que um soco bem desferido.
- Você não me deixa escolha, milady. - Como uma raposa a perseguir uma lebre, ele se atirou sobre Rianne.
O impulso os jogou em uma baia aberta. Antes que Rianne pudesse reagir, Tristão estava sobre ela, que caíra de bruços, o rosto enterrado na palha. Então, sentiu
os joelhos do guerreiro em suas costas enquanto seus braços eram puxados para trás e amarrados.
Assim que Tristão se levantou, Rianne virou-se de costas. Cuspiu a palha da boca e outros palavrões medonhos, muitos que ele já ouvira e vários que nem conhecia.
- O que foi que disse, milady? - ele comentou, o sorriso a se transformar numa careta. - Não precisa me agradecer. Você é bem-vinda. Afinal, eu não gostaria
que você se machucasse na viagem para Monmouth.
- Seu desgraçado! - ela gritou, erguendo-se para poder encará-lo. - Seu porco! Miserável filho de uma...
Tristão entrou na baia ao lado, pegou a sela e jogou-a no dorso do garanhão negro.
Rianne cuspiu mais palha e berrou, o ar ondulando com o ardor de sua fúria.
- Recuso-me a ir a Monmouth!
- Isso dificilmente parece digno de discussão no presente momento - Tristão retrucou, ao amarrar a cilha no lugar e conduzir o garanhão para fora da baia.
- O que é isso? - Grendel indagou ao entrar no estábulo e olhar de Tristão para a baia onde Rianne encontrava-se sentada sobre um monte de palha. - Aconteceu
alguma coisa?
Rianne estava suja e com ar patético. Os olhos luziam como poças gêmeas de fogo azulado.
- Vou lhe arrancar o coração! - ela ameaçou Tristão. - Mas, primeiro, acho que começarei por cortar sua garganta.
- Já ouvi isso antes.
- Talvez seja melhor ser gentil, milorde - Grendel sugeriu. Embora os poderes da jovem fossem descontrolados, isso apenas a tornava ainda mais perigosa.
Ignorando o olhar fulminante que Rianne lhe endereçava, Tristão pegou-a pelos ombros e colocou-a de pé.
- Esquentar seu traseiro seria muito interessante no momento.
- Não se quiser manter seus colhões! - ela esbravejou.
- Jesus amado! - Tristão exclamou, assombrado. - Você tem uma boca que faria qualquer guerreiro do exército de Arthur passar vergonha.
- Solte-me e não terá de ouvir outra palavra - Rianne barganhou.
Era tentador. Uma boa surra também era. Em vez disso, ele a puxou pelos ombros e a beijou. Não por uma mera experiência, como ela o beijara, mas completa e
profundamente, sem nenhuma ternura.
O beijo a deixou aturdida. Queimou o corpo de Rianne como fogo sem controle, chamuscando cada terminação nervosa... incendiando-a. Seus dedos se curvaram em
punhos cerrados onde estavam amarrados às costas. E, de repente, ansiou por tocar Tristão, apoderar-se daquele calor até que a consumisse.
Ele a afastou. Levantou-a como um saco de farinha e jogou-a atravessada na frente da sela.
Aquele pouco ar que restara foi arrancado de seus pulmões quando Rianne pendeu de cabeça para baixo, deitada de bruços
sobre a sela. Então, o guerreiro montou atrás, o joelho a bater em suas costelas.
Ela arqueou as costas na tentativa de se jogar no chão, e recebeu um tapa ardido no traseiro. Gritou de dor, frustração e raiva. Virou a cabeça e o encarou
com um olhar assassino, quase se esquecendo do beijo.
- A escolha é sua, milady - Tristão avisou, numa voz sedosa, com a mão pousada na nádega redonda, e um sorriso maldoso nos lábios.
Rianne fechou a boca bem apertada, mas a expressão em seu olhar era mortífera.
- Escolha excelente, milady - ele a cumprimentou, conforme enterrava os calcanhares no lombo da montaria e incitava o garanhão negro a sair do estábulo num
trote de quebrar os ossos que impedia qualquer outra palavra.
Grendel ficou a observá-los, horrorizado. Então, um sorriso lento e malicioso espalhou-se por sua face.
Tirou o ruão do estábulo, subiu na cerca como se fosse uma escada e depois saltou para a sela. A simples idéia de cavalgar um cavalo novamente depois das últimas
semanas era suficiente para fazê-lo estremecer. Porém, não podia esperar para ver o próximo espetáculo!