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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHA DO SANGUE / Anne Bishop
FILHA DO SANGUE / Anne Bishop

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Sou Tersa, a Tecedeira, Tersa, a Mentirosa, Tersa, a Louca. Sempre que os Senhores e as Senhoras de Jóias dos Sangue dão um banquete, sou a diversão que se segue após os músicos terem tocado, os ágeis rapazes e raparigas terem dançado e os Senhores já tiverem bebido demasiado vinho e exigirem que lhes seja lida a sina — Conta-nos uma história, Tecedeira — gritam, ao mesmo tempo que as suas mãos tocam as coxas das raparigas que os servem e as Senhoras observam os Jovens, decidindo quais os que terão o doloroso prazer de as servir na cama, nessa mesma noite.

Em tempos, fui parte deles, Sangue, tal como eles são Sangue.

Não, não é verdade. Eu não era Sangue como eles são Sangue. Daí ter sido quebrada pela lança de um Senhor da Guerra, tornando-me vidro estilhaçado que reflecte apenas o que poderia ter sido.

É extremamente difícil quebrar um macho de Jóias dos Sangue, mas a vida de uma Feiticeira está suspensa pelo fio do Himeneu e o que suceder na Noite da Virgem é crucial para determinar se ficará intacta para exercer a Arte ou se se irá tornar um receptáculo partido, restando-lhe o sofrimento eterno pela parte de si própria que se esvaeceu. Ah, alguma magia permanece, o suficiente para a vida do dia-a-dia e truques de salão, mas não a Arte, o sangue da vida para a nossa espécie.

No entanto, a Arte pode ser recuperada - se se estiver disposto a pagar o preço.

Na minha juventude, lutei contra esse último declive que leva ao Reino Distorcido. É preferível ser quebrada e manter a sanidade mental do que ser quebrada e ficar louca. É preferível olhar para o mundo e reconhecer uma árvore como uma árvore, uma flor como uma flor, a olhar através de uma névoa para formas acinzentadas e fantasmagóricas, vislumbrando claramente apenas os fragmentos de si própria.

Assim pensava, na altura.

Arrastando-me para o pequeno banco, luto para me manter nos limites do Reino Distorcido e para ver, uma última vez, o mundo físico. Cuidadosamente, coloco a estrutura de madeira que segura a minha teia entrelaçada, a teia de sonhos e de visões, na pequena mesa junto ao banquinho.

Os Senhores e as Senhoras esperam que eu lhes leia a sina e eu sempre o fiz, não por magia mas mantendo os olhos abertos e os ouvidos atentos, transmitindo-lhes o que gostariam de ouvir.

Simples. Sem magia.

Mas hoje é diferente.

Há já alguns dias que tenho vindo a ouvir um tipo estranho de trovão, um chamamento distante. Ontem à noite, rendi-me à loucura para poder recuperar a minha Arte como Viúva Negra, uma feiticeira das Assembleias da Ampulheta. Ontem à noite, teci uma teia entrelaçada para ver os sonhos e as visões.

Hoje, as sinas não serão reveladas. As minhas forças permitem-me que o diga uma única vez. Antes de falar tenho de me certificar de que aqueles que têm de ouvir o que vou revelar se encontram na sala.

Aguardo. Não reparam. Os copos enchem-se e voltam a encher-se ao mesmo tempo que me debato para me manter nos limites do Reino Distorcido.

Ah, ali está ele. Daemon Sadi, do Território denominado Hayll. É lindo, frio, cruel. Tem um sorriso sedutor e um corpo que as mulheres desejam tocar e pelo qual desejam ser acariciadas, mas é dominado por uma raiva gélida e insaciável. Ao falarem sobre o seu desempenho no quarto, as palavras que as Senhoras murmuram são "prazer excruciante". Não duvido que seja suficientemente sádico para misturar dor e prazer em partes iguais, contudo, foi sempre gentil para mim e é um diminuto raio de esperança que lhe envio esta noite. Ainda assim, é mais do que alguém alguma vez lhe ofereceu.

Os Senhores e as Senhoras demonstram inquietação. Habitualmente não demoro tanto para iniciar as minhas declarações. A agitação e o aborrecimento estão instalados, mas eu aguardo. Depois desta noite, não fará qualquer diferença.

Ali está o outro, no canto oposto da sala. Lucivar Yaslana, o mestiço eyrieno do Território denominado Askavi.

Hayll não tem qualquer afecto por Askavi, nem Askavi por Hayll, mas Daemon e Lucivar são atraídos um pelo outro, sem compreenderem a razão para tal, tão enredados estão nas vidas um do outro que não se podem separar. Amigos inquietos, combateram batalhas legendárias, destruíram tantas Cortes que os Sangue receiam juntá-los seja por que período de tempo for.

Levanto as mãos e deixo-as cair no meu regaço. Daemon observa-me. Nada mudou nele, mas sei que aguarda e ouve. E uma vez que ele está a ouvir, Lucivar também ouve.

— Ela está a chegar.

De início, não se apercebem que falei. Quando entendem as palavras, começam os murmúrios irritados.

— Cabra estúpida — alguém grita. — Diz-me quem irei amar esta noite.

— O que importa? — respondo. — Ela está a chegar. O Reino de Terreille será dilacerado pela sua própria e estúpida ganância. Aqueles que sobreviverem irão tornar-se servos, mas serão poucos os que sobreviverão.

Estou a afastar-me dos limites. Pela minha face caem lágrimas de frustração. Ainda não. Doces Trevas, ainda não. Tenho de o dizer.

Daemon ajoelha-se a meu lado, as suas mão sobre as minhas. Dirijo-me a ele e só a ele e, através dele, a Lucivar.

— Os Sangue de Terreille devassam os hábitos ancestrais, zombando de tudo o que nós somos. — Com um aceno de mão, indico aqueles que reinam actualmente — Distorcem os factos como lhes convém. Vestem-se elegantemente e fingem. Ornamentam-se com Jóias de Sangue mas não compreendem o significado de ser Sangue. Dizem que honram as Trevas, mas não é verdade. Não honram o que quer que seja, a não ser as suas próprias ambições. Os Sangue foram criados para serem os Protectores dos Reinos. Por isso foi-nos concedido o nosso poder. Por isso descendemos, ainda que nos encontremos separados, dos povos de todos os Territórios. A corrupção da nossa essência não pode continuar. Está a chegar o dia em que a dívida irá ser cobrada e os Sangue terão de responder por aquilo em que se tornaram.

— São estes os Sangue que reinam, Tersa — diz Daemon, tristemente.

— Quem resta para cobrar esta dívida? Escravos bastardos como eu?

Estou a afastar-me rapidamente. As minhas unhas cravam-se nas suas mãos, até fazer sangue, mas não as retira. Baixo a voz. Esforça-se por me ouvir. — Durante muito, muito tempo as Trevas têm tido um Príncipe. Agora, a Rainha está a caminho. Pode levar décadas, até séculos, mas está a caminho. Com o queixo, indico os Senhores e as Senhoras sentados às mesas. — Nessa altura, serão pó, mas tu e o eyrieno estarão cá para a servir.

Os seus olhos dourados enchem-se de frustração. — Qual Rainha? Quem está a caminho?

— O mito vivo — murmuro. — Os sonhos tornados realidade. O choque é substituído por um desejo intenso. — Tens a certeza?

A sala é um turbilhão de névoa. Só Daemon se mantém definido com nitidez. Mas ele é a única coisa de que preciso. — Eu vi-a na teia entrelaçada, Daemon. Eu vi-a.

Estou demasiado cansada para me manter no mundo real, mas, obstinadamente, continuo a agarrar as suas mãos para uma última revelação

— O eyrieno, Daemon.

Olha de relance para Lucivar. — O que é que tem?

— É teu irmão. Os dois são filhos do teu pai.

Não conseguindo aguentar mais, mergulho na loucura apelidada de Reino Distorcido. Vou caindo por entre os fragmentos de mim mesma. O mundo rodopia e desfaz-se em estilhaços. Nos seus fragmentos, vislumbro aquelas que foram minhas Irmãs precipitando-se das mesas, aterrorizadas e decididas, e a mão do Daemon estendida, fortuitamente, destruindo o frágil fio de seda de aranha da minha teia entrelaçada.

Não é possível reconstruir uma teia entrelaçada. As Viúvas Negras de Terreille podem passar ano atemorizado após ano atemorizado a tentar, mas será em vão. A teia não será a mesma e não conseguirão ver o que vi.

No mundo cinzento, lá em cima, posso ouvir-me a rir, como se uivasse. Lá muito abaixo, no abismo psíquico que faz parte das Trevas, oiço outro uivo, mas este é repleto de alegria e de dor, de raiva e de celebração.

Não é mais uma feiticeira que está a chegar, minhas tolas Irmãs, é a Feiticeira.

 

 

 

 

 

 

                           CAPÍTULO 1

Lucivar Yaslana, o mestiço eyrieno, observava os guardas que arrastavam o homem em soluços para o barco. Não sentia qualquer compaixão pelo homem condenado que comandou a revolta fracassada de escravos. No Território denominado Pruul, a compaixão era um luxo a que nenhum escravo podia aspirar.

Tinha-se recusado a participar na revolta. Os cabecilhas eram bons homens, mas não possuíam a força, os alicerces ou a coragem para fazer o que era necessário. Não gostavam de ver derramamento de sangue.

Não tinha participado. Apesar disso, Zuultah, a Rainha de Pruul, tinha-o castigado.

As pesadas grilhetas à volta do pescoço e dos pulsos já tinham roçado a pele de tal forma que se encontrava em carne viva e as costas latejavam com a dor causada pelo chicote. Abriu as asas negras e com membranas, numa tentativa de atenuar a dor que sentia nas costas.

De imediato, um guarda espicaçou-o com uma clava, recuando logo de seguida, amedrontado pelo débil silvo de raiva emitido por Lucivar.

Contrariamente aos outros escravos, incapazes de ocultar a aflição ou o medo, os olhos dourados de Lucivar não demonstravam qualquer expressão, nenhuma pista psíquica de emoções com as quais os guardas poderiam jogar ao mesmo tempo que forçavam o homem em soluços a entrar no velho barco, com espaço somente para um homem. Não estando já em condições de navegar, o barco apresentava grandes buracos na madeira apodrecida, acrescentando valor ao seu propósito actual.

O homem condenado era pequeno e meio-esfomeado. Contudo, foram necessários seis guardas para o meter no barco. Cinco deles agarraram-lhe a cabeça, os braços e as pernas. O sexto guarda untou os órgãos genitais do homem com gordura de toucinho fumado antes de colocar uma tampa em madeira que encaixou perfeitamente sobre o barco. Apresentava orifícios talhados para a cabeça e para as mãos. Logo que as mãos do homem foram agrilhoadas a argolas de ferro na parte exterior do barco, a tampa foi fechada de forma a que ninguém, a não ser os guardas, a pudesse remover.

Um dos guardas escrutinou o homem aprisionado e abanou a cabeça, com uma falsa consternação. Dirigiu-se aos outros, dizendo: - Deveria ser-lhe servida uma última refeição antes de ser largado ao mar. Os guardas riram. O homem gritou, suplicando por ajuda. Um a um, os guardas foram enfiando comida, zelosamente, na boca do homem, encaminhando depois os outros escravos, como um rebanho, para os estábulos onde estavam instalados.

— Hoje à noite irão ter diversão, rapazes — gritou um guarda, às gargalhadas. — Lembrem-se disso da próxima vez que decidirem deixar de servir a Senhora Zuultah.

Lucivar olhou por cima do ombro para, logo de seguida, desviar o olhar.

Atraídas pelo cheiro da comida, as ratazanas enfiaram-se pêlos buracos abertos no barco.

O homem no barco gritou.

As nuvens deslocavam-se rapidamente sobre a lua, mantos cinzentos que ocultavam o luar. O homem no barco não se moveu. Os seus joelhos eram feridas abertas, ensanguentados devido ao pontapear contínuo na cobertura do barco, num esforço para manter as ratazanas à distância. As suas cordas vocais ficaram destruídas de tanto gritar.

Lucivar ajoelhou-se atrás do barco, com movimentos cuidadosos para abafar o som das correntes.

— Não lhes revelei nada, Yasi - disse o homem, com a voz rouca. — Tentaram obrigar-me a falar, mas eu não o fiz. Restava-me essa honra.

Lucivar levou uma taça aos lábios do homem. — Bebe — disse, a sua voz não mais do que um murmúrio, misturando-se na noite.

— Não — gemeu o homem. — Não. Começou a chorar, um som seco e gutural arrancado à sua garanta arruinada.

— Não fales agora. Não fales. É para ajudar. — Apoiando a cabeça do homem, Lucivar levou a taça aos lábios inchados. Após o homem ter bebido dois goles, Lucivar pousou a taça e afagou-lhe a cabeça suavemente com as pontas dos dedos. — É para ajudar. — Trauteou.

— Sou um Senhor da Guerra dos Sangue — Lucivar ofereceu-lhe novamente a taça e o homem bebeu mais um gole. À medida que a sua voz se tornava mais forte, as palavras começaram a perder clareza. — Tu és um Príncipe dos Senhores da Guerra. Porque nos fazem isto, Yasi?

— Porque neles não existe qualquer honra. Porque neles não existe qualquer lembrança do que é ser Sangue. A influência da Sacerdotisa Suprema de Hayll é uma praga que se tem vindo a espalhar pelo Reino durante séculos, consumindo lentamente todos os Territórios que toca.

— Então, talvez os plebeus tenham razão. Talvez os Sangue representem o mal.

Lucivar continuou a afagar a testa e as têmporas do homem. — Não. Somos o que somos. Nem mais, nem menos. O bem e o mal existem em todos os povos. Actualmente, quem domina é o mal que existe entre nós.

— E onde estão os bons entre nós? — perguntou o homem, com sonolência.

Lucivar beijou o homem na cabeça. — Foram destruídos ou escravizados. Ofereceu a taça. — Bebe até ao fim, Irmãozinho e tudo terá terminado.

Logo que o homem bebeu o último gole, Lucivar usou a Arte para fazer desaparecer a taça.

O homem no barco riu-se. — Sinto-me bastante corajoso. Yasi.

— Tu és muito corajoso.

— As ratazanas... Já não tenho tomates.

— Eu sei.

— Chorei, Yasi. Perante todos eles, chorei.

— Não importa.

— Sou um Senhor da Guerra. Não deveria ter chorado.

— Não lhes revelaste nada. Encontraste coragem na altura em que foi necessária.

— De qualquer maneira, Zuultah matou os outros.

— Irá pagar por isso, Irmãozinho. Um dia, ela e os outros como ela, irão pagar por tudo. — Lucivar massajou suavemente o pescoço do homem.

— Yasi. Eu...

Foi um movimento repentino, acompanhado de um som agudo.

Lucivar recostou cuidadosamente a cabeça desfalecida, pondo-se em pé lentamente. Poderia ter-lhes dito que o plano não iria resultar, que o Anel de Obediência poderia ser ajustado o suficiente para detectar um chamamento interior de força e resolução, alertando o seu possuidor. Poderia ter-lhes dito que as gavinhas perniciosas que os mantêm escravizados já se alastraram a territórios demasiado longínquos e que, para os libertar, seria necessária uma selvajaria mais apurada do que aquela de que o homem é capaz. Poderia ter-lhes dito que, para manter um homem obediente, existem armas mais cruéis do que o Anel, que a sua preocupação uns com os outros seria a sua destruição, que a única forma de escapar, mesmo que por pouco tempo, é não se preocupar com ninguém, é estar sozinho.

Poderia ter-lhes dito.

Todavia, quando se aproximaram, timidamente, cautelosamente, sôfregos por questionar um homem que se tinha libertado uma e outra vez ao longo dos séculos, mas que continuava escravizado, tudo o que disse foi:

— Sacrifiquem tudo. — Foram-se embora, desapontados, incapazes de compreender que o que disse foi sentido. Sacrifiquem tudo. Mas existia algo que não queria - não podia - sacrificar.

Quantas foram as vezes, após se ter rendido e ter sido novamente aprisionado por aquele implacável anel de ouro à volta do seu órgão, que Daemon o tinha encontrado e encostado a uma parede, irado, chamando-lhe louco e cobarde por se ter entregue?

Mentiroso. Mentiroso melífluo e experiente nos assuntos da corte.

Em tempos, Dorothea SaDiablo procurou Daemon Sadi desesperadamente após o seu desaparecimento de uma corte sem deixar rasto. Para o encontrar foram necessários cem anos, tendo perecido dois mil Senhores da Guerra ao tentar recapturá-lo. Poderia ter usado aquele pequeno e sel- vagem Território que tinha ocupado e conquistar metade do Reino de Terreille, poderia ter-se tornado uma ameaça tangível à usurpação e à absorção que Hayll provocava em todos os que tocava. Ao invés, leu uma carta enviada por Dorothea, que lhe chegou pelas mãos de um mensageiro. Leu-a e entregou-se.

A carta dizia apenas: "Entrega-te até à lua nova. Cada dia que passar para além disso, arrancarei um pedaço do corpo do teu irmão como pagamento pela tua arrogância."

Lucivar sacudiu-se, tentando expulsar os pensamentos indesejáveis. De certa forma, as memórias revelavam-se piores do que o chicote, visto conduzirem a pensamentos de Askavi, com as montanhas altaneiras a cortar o céu e os vales repletos de burgos, quintas e florestas. No entanto, Askavi já não era tão fértil como fora pois tinha sido devassado durante demasiados séculos por aqueles que tiraram mas que nunca retribuíram com o que quer que fosse. Ainda assim, era a sua terra, e os séculos de exílio em escravidão provocavam em si um desejo ardente pelo cheiro do ar puro da montanha, pelo sabor de um riacho fresco e doce, pelo silêncio dos bosques e, acima de tudo, peias montanáas soórevoacàs peà raça eyrièna.

No entanto, encontrava-se em Pruul, esta terra árida, quente, deserta e estéril, ao serviço dessa cabra Zuultah, por não conseguir ocultar a aversão que sentia por Prythian, a Sacerdotisa Suprema de Askavi, por não conseguir dominar o suficiente o seu temperamento para servir feiticeiras que desprezava.

Entre os Sangue, os machos deveriam servir e não dominar, "jamais tinha desafiado essa ordem, apesar de ter morto várias feiticeiras ao longo dos séculos. Tinha-o feito pois seria um insulto servi-las, ele era um Príncipe Eyrieno dos Senhores da Guerra que usava Jóias Ébano Acinzentadas e que se recusava a acreditar que servir e ser servil eram sinónimos. Sendo um bastardo mestiço, não acalentava qualquer esperança de atingir uma posição de autoridade numa corte, apesar da categoria das suas Jóias. Sendo um guerreiro eyrieno experiente e possuidor de um temperamento explosivo mesmo para um Príncipe dos Senhores da Guerra, tinha ainda menos esperanças de que lhe fosse permitido viver fora das correntes sociais de uma corte.

E fora capturado da mesma forma que todos os machos dos Sangue são capturados. Havia algo no seu interior que os fazia ansiar ardentemente por servir, que os impelia a interligarem-se, de alguma forma, a uma fêmea de Jóias dos Sangue.

Lucivar contraiu o ombro e inspirou através dos dentes no preciso momento em que uma ferida infligida pelo chicote voltou a abrir-se. Ao tocar cautelosamente na ferida, a sua mão ficou encharcada em sangue fresco.

Sorriu amargamente, revelando os dentes. Como é aquele velho ditado? Um desejo oferecido com sangue, é uma prece às Trevas.

Fechou os olhos, ergueu a mão em direcção ao negro do céu e iniciou a interiorização, descendo ao abismo psíquico na profundidade das suas Jóias Ébano Acinzentadas para que o desejo se mantivesse secreto, para que ninguém na corte de Zuultah pudesse ouvir a transmissão do seu pensamento.

Por uma vez que fosse, gostaria de servir uma Rainha que pudesse respeitar, alguém em quem realmente pudesse acreditar. Uma rainha poderosa que não temesse a minha força. Uma Rainha a quem pudesse também chamar amiga.

Friamente divertido pela sua própria tolice, Lucivar limpou a mão às calças folgadas de algodão e suspirou. Infelizmente a declaração de Tersa, enunciada há setecentos anos atrás, não tinha passado de uma mera e louca ilusão. Por algum tempo, foi a sua fonte de esperança. Demorou muito até perceber que a esperança é amarga.

“0lá! “

Lucivar olhou em direcção aos estábulos onde os escravos estavam alojados. Em breve, os guardas efectuariam a ronda nocturna. Desfrutaria da aragem nocturna durante mais um minuto, mesmo que pairasse no ar um cheiro quente e poeirento, antes de regressar à cela imunda com a cama feita de palha, suja e infestada de bichos, antes de regressar ao fedor a medo, a corpos sujos e a dejectos humanos.

“0lá! “

Lucivar voltou-se lentamente, desenhando um círculo, os sentidos físicos vigilantes, a mente a investigar a origem daquele pensamento. A comunicação psíquica podia ser difundida a todos numa determinada área — como gritar num quarto cheio de gente — ou restringida a uma única categoria de Jóias ou restringida, ainda mais, a uma única mente. Aquele pensamento parecia dirigido directamente a si.

Não existia nada ali para além do que seria de esperar. O que quer que fosse, tinha desaparecido.

Lucivar abanou a cabeça. Estava a tornar-se tão assustadiço como os plebeus, aqueles que não pertencem aos Sangue de cada raça, com as suas superstições sobre o mal que surge furtivamente na noite.

— Olá!

Lucivar rodou sobre si próprio, as asas negras abertas para manter o equilíbrio, colocando os pés numa posição de combate.

Sentiu-se ridículo ao ver a menina que o olhava espantada, com os olhos esbugalhados.

Não passava de uma magricela, com cerca de sete anos. Descrevê-la como comum seria considerado amabilidade. Contudo, mesmo ao luar, possuía uns olhos extraordinários. Traziam-lhe à memória o céu ao crepúsculo ou um lago profundo da montanha. As roupas eram de boa qualidade, certamente melhores do que as usadas por uma criança pedinte. O cabelo louro estava penteado em canudos indicativos de carinho e cuidado, mesmo que parecessem ridículos a ladear a sua pequena face pontiaguda.

— O que estás aqui a fazer? — perguntou abruptamente. Entrelaçou os dedos e encolheu os ombros. — Eu... Eu ouvi-te. P... Pediste um amigo.

— Ouviste-me7. - Lucivar olhou-a fixamente. Como é que, pelo Inferno, ela o tinha ouvido? De facto, tinha enviado o desejo para o exterior, mas por um fio Ébano Acinzentado. Era o único Ébano-Acinzentado no Reino de Terreille. A única Jóia mais escura que a sua era a Negra e a única pessoa que usava essa Jóia era Daemon Sadi. A não ser...

Não. Aquela menina não podia ser.

Nesse preciso momento, os olhos da menina saltaram de Lucivar para o homem morto no barco e de volta para ele.

— Tenho de ir — murmurou, afastando-se.

— Não, não tens. — Dirigiu-se a ela, deslocando-se com destreza, como um caçador a perseguir a sua presa.

A menina esquivou-se.

Em segundos, tinha-a apanhado, indiferente ao barulho das correntes. Enrolando uma corrente à volta dela, envolveu-lhe a cintura com um braço e levantou-a do chão, soltando um gemido quando ela lhe bateu com o calcanhar no joelho. Ignorou as tentativas para o arranhar e os pontapés, embora o magoassem, não constituíam motivo para o deter como poderia acontecer com o tipo de pontapé dado no sítio certo. Quando começou a gritar, tapou-lhe a boca com uma mão.

De imediato, cravou os dentes no dedo de Lucivar.

Lucivar engoliu um grito e praguejou baixinho. Caiu de joelhos, levando a menina com ele. — Não faças barulho — murmurou furiosamente. — Queres que os guardas nos apanhem? — Provavelmente era o que ela queria e Lucivar esperava que a menina lutasse ainda com mais alento, sabendo que a ajuda estava por perto.

Ao invés, ficou petrificada.

Lucivar encostou a sua face à cabeça da menina e inspirou. — És uma gatinha assanhada — afirmou com serenidade, lutando para manter o riso afastado da sua voz.

— Por que é que o mataste?

Seria da sua imaginação ou a voz dela tinha-se alterado? Continuava a parecer a voz de uma rapariguinha, mas nessa voz estavam presentes trovões, cavernas e os céus da meia-noite.

— Estava em sofrimento.

— Não o podias ter levado a uma Curandeira?

— As Curandeiras não se interessam pêlos escravos — soltou com brusquidão. — Além do mais, as ratazanas pouco deixaram para curar. — Encostou-a com mais força ao seu peito, na esperança de que ao aquecê-la com o seu corpo, ela parasse de tremer. Parecia tão pálida em contraste com a pele castanho-clara de Lucivar e ele sabia que não era simplesmente por ela ter a pele clara. — Desculpa. Fui cruel.

Quando a menina começou a lutar contra o seu abraço, levantou os braços para que pudesse deslizar sob a corrente entre os seus pulsos. Correu atabalhoadamente para longe do alcance de Lucivar, girou sobre si própria e caiu de joelhos.

Analisaram-se mutuamente.

— Como te chamas? — perguntou finalmente.

— Chamo-me Yasi. — Riu-se ao vê-la torcer o nariz. — Não me atires as culpas. Não foi escolhido por mim.

— É uma palavra ridícula para alguém como tu. Qual é o teu nome verdadeiro?

Lucivar hesitou. Os eyrienos eram umas das raças de longevidade prolongada. Ao longo de 1.700 anos, tinha adquirido a reputação de ser inexorável e violento. Se ela tivesse ouvido alguma das histórias sobre ele...

Respirou fundo e deixou sair lentamente:

— Lucivar Yaslana.

Não houve qualquer reacção, exceptuando um sorriso tímido de aprovação.

— Como te chamas. Gata?

— Jaenelle.

Esboçou um largo sorriso. — É um nome bonito, mas acho que Gata também te fica bem.

Emitiu um som animalesco.

— Vês? — Hesitou, mas tinha de perguntar. A diferença entre Zuultah supor que Lucivar tinha morto aquele escravo e a certeza absoluta seria determinante quando estivesse esticado entre os postes onde seria vergastado.

— A tua família está de visita à Senhora Zuultah?

Jaenelle franziu as sobrancelhas. — Quem?

De facto, parecia uma gatinha a tentar calcular a forma de atacar um bicho grande e saltitante. — Zuultah. A Rainha de Pruul.

— O que é Pruul?

— Aqui é Pruul — Lucivar acenou com a mão, indicando a terra à volta deles, praguejando em eyrieno quando as correntes chocalharam. Engoliu a última obscenidade ao reparar no olhar intenso e interessado de Jaenelle.

— Visto que não és de Pruul e que a tua família não está de visita, donde és?

— Ao vê-la hesitar, inclinou a cabeça em direcção ao barco. — Sei guardar um segredo.

— Sou de Chaillot

— Chai... — Lucivar engoliu outra obscenidade. — Compreendes eyrieno?

— Não — Jaenelle sorriu ironicamente. — Mas agora já sei algumas palavras em eyrieno.

Deveria rir ou estrangulá-la? — Como chegaste aqui? Afofou o cabelo e franziu os olhos ao contemplar o chão rochoso entre eles. Por fim, encolheu os ombros. — Da mesma forma que me desloco para outros lugares.

— Viajas pêlos Ventos? — guinchou. Jaenelle ergueu um dedo para testar o ar.

— Não me refiro a brisas ou a lufadas de ar. — Lucivar rangeu os dentes.

— Os Ventos. As Teias. Os caminhos psíquicos das Trevas. Jaenelle animou-se. — Então é isso que se chamam? Conseguiu deter-se a meio de uma obscenidade. Jaenelle inclinou-se para a frente. — És sempre assim tão cretino?

— A maior parte das pessoas considera-me cretino, é verdade.

— O que é que isso quer dizer?

— Não importa. — Escolheu uma pedra afiada e desenhou um círculo no chão entre eles. — Este é o Reino de Terreille — Colocou uma pedra redonda no círculo. — Esta é a Montanha Negra, Ebon Askavi, onde os Ventos se juntam. — Desenhou linhas rectas da pedra redonda até à circunferência do círculo. — Estas são as linhas de orientação. — Desenhou círculos mais pequenos dentro do círculo. — Estas são as radiais. Os Ventos são como uma teia de aranha. É possível viajar nas linhas de orientação ou nas radiais, mudando de direcção onde as mesmas se cruzam. Existe uma Teia para cada categoria das Jóias de Sangue. Quanto mais escura for a Teia, maior a quantidade de linhas de orientação e radiais e mais rápido é o Vento. Podes viajar numa Teia que seja da tua categoria ou numa mais clara. Não podes viajar numa Teia mais escura do que a tua categoria de Jóia, a menos que estejas a viajar numa Carruagem conduzida por alguém suficientemente forte para se deslocar nessa Teia ou que estejas a ser protegida por alguém que possa deslocar-se nessa Teia. Caso tentes fazê-lo, podes não sobreviver. Percebido?

Jaenelle mordiscou o lábio inferior e apontou para um espaço entre os filamentos. — E se quiseres ir ali?

Lucivar abanou a cabeça. — No ponto que se encontrasse mais próximo, terias de abandonar a Teia de volta ao Reino e viajar de qualquer outra forma.

— Não foi assim que aqui cheguei — protestou.

Lucivar estremeceu. Não existia um único filamento fosse de que Teia fosse ao redor do complexo de Zuultah. A sua corte estava instalada deliberadamente num desses espaços em branco. Para aqui chegar directamente pêlos Ventos, a única forma é abandonar a Teia e deslizar às cegas pelas Trevas, o que, até para os melhores e mais fortes, era algo muito arriscado. A não ser...

— Chega aqui, Gata — disse delicadamente. Quando ela se deixou cair à sua frente, colocou-lhe as mãos nos finos ombros. — Costumas vaguear com frequência?

Jaenelle assentiu, baixando e levantando a cabeça lentamente. — As pessoas chamam-me. Tal como o fizeste.

Tal como ele o fez. Mãe Noite! — Gata, ouve. As crianças são vulneráveis a muitos perigos.

Havia uma expressão estranha nos seus olhos. — Sim, eu sei.

— Por vezes, um inimigo pode usar a máscara de um amigo até ser demasiado tarde para escapar.

— Sim — sussurrou.

Lucivar abanou-a gentilmente, forçando-a a olhar para ele. — Terreille é um local perigoso para gatinhas. Por favor, volta para casa e não voltes a vaguear. Não... não respondas àqueles que te chamam.

— Mas, assim sendo, não te voltarei a ver.

Lucivar fechou os olhos dourados. Uma faca cravada no coração não seria tão dolorosa. — Eu sei. Mas seremos sempre amigos. E não será para sempre. Quando cresceres, irei procurar-te ou tu irás procurar-me.

Jaenelle mordiscou o lábio. — Com que idade é que se é crescido?

Ontem. Amanhã. — Digamos, dezassete. Parece uma eternidade, bem sei, mas não é assim tanto tempo. — Nem Sadi inventaria uma mentira melhor do que esta. — Prometes não vaguear?

Jaenelle suspirou. — Prometo não vaguear em Terreille.

Lucivar ajudou-a a levantar-se e virou-a. — Há algo que te quero ensinar antes de partires. Dará um bom resultado se um homem tentar alguma vez agarrar-te por trás.

Após terem repetido a demonstração as vezes que Lucivar entendeu como suficientes para que Jaenelle soubesse o que fazer, beijou-a na testa e afastou-se. — Vai-te embora daqui. A qualquer momento, os guardas devem passar ronda. E lembra-te - uma Rainha nunca quebra a promessa que fez a um Príncipe dos Senhores da Guerra.

— Lembrar-me-ei. — Hesitou. — Lucivar? Estarei diferente quando crescer. Como me reconhecerás?

Lucivar sorriu. Dez anos ou até cem, não faria qualquer diferença. Iria sempre reconhecer aqueles extraordinários olhos cor de safira — Eu saberei. Adeus, Gata. Que as Trevas te envolvam.

Jaenelle sorriu e desapareceu.

Lucivar fitou o espaço vazio. Teria sido uma tolice o que lhe havia dito? Provavelmente.

O barulho de um portão despertou-lhe a atenção. Rapidamente apagou o desenho dos Ventos e deslizou de sombra em sombra até alcançar os estábulos. Atravessou a parede exterior e instalou-se na sua cela no momento em que o guarda abriu o postigo com barras da porta.

Zuultah era suficientemente arrogante para acreditar que os seus feitiços dominadores impediam os escravos de fazer uso da Arte para atravessar as paredes das celas. Era desconfortável atravessar uma parede enfeitiçada mas, para Lucivar, não era impossível.

Deixai a cabra ficar perplexa. Quando os guardas encontrassem o escravo no barco, haveria de suspeitar que Lucivar lhe tinha partido o pescoço. Desconfiava dele sempre que algo de errado acontecia na sua corte – e tinha boas razões para tal.

Talvez oferecesse alguma resistência quando os guardas o tentassem amarrar aos postes. Uma zaragata mantê-la-ia distraída e as emoções violentas cobririam o rasto psíquico que ainda perdurasse da menina.

Ah, sim, conseguiria manter a Senhora Zuultah tão entretida que nunca se iria aperceber de que a Feiticeira já caminhava no Reino.

 

A Senhora Maris voltou a cabeça na direcção do grande espelho de pé.

— Podes ir.

Daemon Sadi deslizou da cama e começou a vestir-se lentamente, de forma escarnecedora, consciente de que a Senhora Maris o observava no espelho. Contemplava sempre o espelho quando ele a servia. Talvez um certo voyeurismo relativamente a si mesma? Fingiria que o homem reflectido no espelho sentia realmente algo por ela, que o seu clímax o excitava?

Cabra estúpida.

Maris espreguiçou-se e suspirou de prazer. — Lembras-me um gato selvagem, a pele sedosa e os músculos ondulantes.

Daemon vestiu a camisa branca de seda. Um predador selvagem? Era uma descrição bastante justa. Se alguma vez o irritasse para além da sua limitada tolerância pelo género feminino, teria muito gosto em lhe mostrar as garras. Em particular, uma minúscula.

Maris suspirou uma vez mais. — És tão bonito.

Sim, era lindo. O seu rosto era uma dádiva da sua misteriosa herança, aristocrático e moldado de forma tão harmoniosa que não poderia ser simplesmente caracterizado como belo.

Era alto e tinha os ombros largos. Mantinha o corpo tonificado e musculado o suficiente para agradar. A sua voz era profunda e culta, com uma ponta sedutora de rouquidão que provocava nas mulheres uma neblina nos olhos. Os olhos dourados e o espesso cabelo negro eram típicos das três raças de longevidade prolongada de Terreille, embora a sua pele castanho dourada, de tons quentes, fosse mais clara do que a dos aristocratas hayilianos — mais parecida à da raça Dhemian.

O seu corpo era uma arma e ele mantinha as suas armas bem afiadas.

Enfiou o casaco preto. De igual modo, as roupas representavam armas, desde a roupa interior diminuta aos fatos perfeitamente talhados. Néctar que seduzia os incautos à perdição.

Abanando-se com a mão, Maris olhou directamente para Daemon.

— Mesmo com este calor, nem sequer transpiraste. Soou como uma queixa e era-o realmente. Daemon sorriu escarnecedoramente. — Por que razão o faria? Maris sentou-se, cobrindo-se com o lençol. — És um bastardo cruel e sem sentimentos.

Daemon ergueu uma sobrancelha perfeitamente esculpida. — Achais—me cruel? Tendes razão, claro. Sou especialista em crueldade.

— E tens orgulho nisso, não é verdade? — Maris retraiu as lágrimas. O seu rosto cerrou-se deixando transparecer todas as rugas petulantes provocadas pelo passar dos anos. — É verdade tudo o que dizem sobre ti. Até isso. — Acenou a mão em direcção à sua zona genital.

— Isso? — perguntou, sabendo exactamente ao que ela se referia. Ela, e todas as mulheres como ela, perdoariam qualquer maldade que fizesse se o conseguissem seduzir até à erecção.

Não és um homem autêntico. Nunca o foste.

— Também nisso tendes toda a razão. — Enfiou as mãos nos bolsos das calças. — Pessoalmente, julgo que é o desconforto causado pelo Anel de Obediência que causou o problema. — O sorriso frio e escarnecedor regressou. — Talvez se o retirásseis...

Maris ficou tão pálida que Daemon julgou que fosse desmaiar. Tinha dúvidas de que ela desejasse assim tão ardentemente testar a sua teoria que removesse realmente o círculo dourado que envolvia o seu órgão. Melhor assim. Maris não sobreviveria nem um minuto logo que se encontrasse livre.

Em todo o caso, a maioria das feiticeiras que havia servido não sobreviveram.

Daemon sorriu, o habitual sorriso frio e brutal, enfiando-se na cama a seu lado. — Julgais, pois, que sou cruel. — Os olhos de Maris já estavam vidrados devido às gavinhas de sedução psíquica que tecia à sua volta.

— Sim — sussurrou Maris, fixando os lábios de Daemon. Inclinou-se, divertido pela rapidez com que Maris entreabriu a boca para receber o beijo. A língua dela brincou avidamente com a dele e quando finalmente Daemon levantou a cabeça, Maris tentou puxá-lo para cima dela. — Quereis mesmo saber qual a razão porque não transpiro? — perguntou, com uma gentileza exagerada.

Hesitou, desejo e curiosidade guerreando entre si. — Porquê? Daemon sorriu. — Porque, minha querida Senhora Maris, a vossa pretensa inteligência aborrece-me até às lágrimas e esse corpo que julgais tão elegante e pavoneais sempre que possível, seja onde for, nem aos abutres interessa. O lábio inferior de Maris estremeceu. — É.. .és um bruto sádico! Daemon deslizou da cama. — Como sabeis? — perguntou agradavelmente. — O jogo ainda nem começou.

— Sai. SAI!

Saiu rapidamente do quarto, ficando por um momento à porta. O lamento de dor de Maris era o contraponto perfeito ao seu riso zombador.

Uma leve brisa desalinhou o cabelo de Daemon ao seguir por um caminho de gravilha nos jardins traseiros. Desabotoando a camisa, sorriu prazenteiramente ao sentir a brisa acariciar-lhe a pele nua. Tirou um cigarro preto e fino do estojo dourado, acendeu-o e suspirou deixando o fumo sair lentamente pela boca e pelas narinas, anulando o fedor de Maris.

A luz do quarto de Maris apagou-se.

Cabra estúpida. Não compreendia o jogo que ela própria jogava. Não - não compreendia o Jogo que ele jogava. Com 1.700 anos estava agora a atingir o apogeu. Usava um Anel de Obediência controlado por Dorothea SaDiablo, a Sacerdotisa Suprema de Hayll, desde que se lembrava. Tinha sido criado na sua corte como o filho bastardo dos primos de Dorothea, tinha sido instruído e treinado para servir as Viúvas Negras de Hayll. Ou seja, fora-lhe ensinado o suficiente da Arte para poder servir aquelas cabras feiticeiras como elas pretendiam ser servidas. Tinha-se prostituído em cortes há muito transformadas em pó ainda o povo de Maris começava a construir cidades. Tinha destruído feiticeiras superiores a ela e também a poderia destruir. Tinha deitado abaixo cortes, devastado cidades, provocando pequenas guerras como vingança por jogos de alcova.

Dorothea castigava-o, feria-o, vendia-o para prestar serviços em corte após corte, mas, afinal, Maris e a sua espécie eram dispensáveis. Ele não o era. A sua criação tinha tido um preço bastante elevado para Dorothea e para as outras Viúvas Negras de Hayll e, seja o que for que tivessem feito, não tinham capacidade para o voltar a fazer.

Os Sangue de Hayll estavam enfraquecidos. Na sua geração, poucos eram os que usavam as Jóias mais escuras, o que não era surpreendente uma vez que Dorothea tinha sido bastante meticulosa na eliminação das feiticeiras mais fortes que poderiam ter desafiado o seu poder após se ter tornado Sacerdotisa Suprema, mantendo as suas seguidoras nas Cem Famílias de Hayll, feiticeiras de jóias mais claras, sem qualquer posição social, e nas fêmeas dos Sangue, que detinham um poder diminuto como as únicas capazes de acasalar com um macho dos Sangue e de gerar crianças dos Sangue saudáveis.

Agora, precisava de uma linhagem de sangue negro para o acasalamento com as suas Irmãs Viúvas Negras. De forma que, embora o humilhasse e torturasse com prazer, não o destruía visto que, se existisse uma possibilidade que fosse, queria a sua prestável semente nos corpos das suas Irmãs e utilizaria tolas como a Maris para o desgastar até estar pronto para se entregar.

Nunca se entregaria.

Há setecentos anos, Tersa tinha-lhe dito que o mito vivo estava a chegar. Setecentos anos de espera, observando e procurando, esperançado. Setecentos dilacerantes e extenuantes anos. Recusava-se a desistir, recusava-se a pensar sequer que ela se teria enganado, recusava-se pois o seu coração ansiava desmesuradamente por essa criatura estranha, maravilhosa e terrífica chamada Feiticeira.

No fundo da sua alma, conhecia-a. Em sonhos, via-a. Nunca materializou um rosto. Ficava turvo sempre que o tentava focar. Mas podia vê-la com um vestido negro e transparente, fabricado em seda de aranha, um vestido que lhe escorregava dos ombros ao movimentar-se, um vestido que abria e fechava ao andar, revelando a pele nua e fresca como a noite. E havia no ar um aroma que era o dela, um perfume com o qual acordaria, enterrando o rosto na almofada dela, que já estaria levantada e a tratar dos seus assuntos.

Não era luxúria - o fogo do corpo empalidecia em comparação ao abraço entre mentes - embora o prazer físico estivesse presente. Queria tocá--la, sentir a textura da sua pele, saborear o seu calor. Queria acariciá-la até ambos estarem em brasa. Queria entrelaçar a sua vida na dela até ser impossível perceber onde começava uma e terminava a outra. Queria colocar os braços à sua volta, fortes e protectores, e sentir-se, também ele, protegido; possuí-la e ser possuído; dominá-la e ser dominado. Queria a Outra, a sombra ao longo da sua vida, que o fazia sofrer a cada fôlego, enquanto ia tropeçando nestas débeis mulheres que nada significavam, nem nunca poderiam significar.

Simplesmente, acreditava ter nascido para ser seu amante.

Daemon acendeu outro cigarro e flectiu o dedo anelar da mão direita. O dente de serpente deslizou para fora do respectivo canal e deteve-se na parte inferior da sua unha longa e tingida a negro. Sorriu. Maris perguntava-se se ele tinha garras? Bem, esta queridinha impressioná-la-ia. Não por muito tempo uma vez que o veneno na bolsa por baixo da sua unha era extremamente potente.

Tinha sorte por ter atingido a maturidade sexual um pouco mais tarde do que a maior parte dos hayüianos. O dente de serpente tinha surgido com as restantes alterações físicas, uma surpresa chocante pois julgava impossível que um macho fosse uma Viúva Negra natural. Durante esse tempo, tinha estado a servir numa corte onde era moda os homens usarem as unhas compridas, bem como tingi-las, pelo que ninguém estranhou que adoptasse essa moda e nunca ninguém questionou a razão pela qual continuava a usar as unhas daquela forma.

Nem mesmo Dorothea. Dado que as feiticeiras das Assembleias da Ampulheta eram especialistas em venenos e nos aspectos mais obscuros da Arte, bem como em sonhos e visões, sempre achou estranho que Dorothea nunca tivesse adivinhado o que ele era. Se tal tivesse acontecido, sem dúvida que o teria tentado mutilar, deixando-o irreconhecível. Poderia ter sido bem sucedida se o fizesse antes de ter efectuado a Dádiva às Trevas, para determinar o poder que lhe seria atribuído como adulto, quando ainda usava a Jóia Vermelha que lhe tinha sido oferecida na Cerimónia de Direito de Progenitura. Se tentasse agora, mesmo com a assembleia a apoiá-la, sair-lhe-ia muito caro. Mesmo Anelado, um Príncipe dos Senhores da Guerra de Jóia Negra seria um inimigo assombroso para uma Sacerdotisa de Jóia Vermelha.

Por essa razão, os seus caminhos raramente se cruzavam e ela mantinha-o afastado de Hayll e da sua corte. No entanto, dispunha de um trunfo que o mantinha submisso e ambos o sabiam. Se a vida de Lucivar não estivesse em perigo, nem mesmo a dor infligida pelo Anel de Obediência poderia retê-lo. Lucivar... e a carta mais valiosa que Tersa tinha juntado ao jogo de submissão e controlo. A carta cuja existência Dorothea desconhecia. A carta que poria um fim ao seu domínio sobre Terreille.

Outrora, os Sangue tinham dominado honradamente e de forma satisfatória. As povoações habitadas pêlos Sangue num Concelho protegiam e tratavam justamente as povoações dos plebeus que lhes estavam sujeitas. As Rainhas dos Concelhos serviam na corte da Rainha da Província. As Rainhas das Províncias, por sua vez, serviam a Rainha do Território, que era escolhida pela maioria dos Sangue que usavam as Jóias mais escuras, machos e fêmeas, uma vez que era a melhor e a mais forte.

Nesse tempo, não era necessário recorrer à escravatura para controlar os machos fortes. Os seus corações guiavam-nos na direcção da Rainha que julgavam adequada. Entregavam as suas vidas de boa vontade. Serviam em liberdade.

Nesse tempo, o complicado triângulo da condição dos Sangue não se apoiava tanto na categoria social. A categoria das jóias e a casta pesavam da mesma forma ou até mais. O que significava que o controlo dessa sociedade era uma dança fluida, cuja condução se alterava constantemente, dependendo dos bailarinos. Mas no centro dessa dança estava sempre uma Rainha.

Essa tinha sido a genialidade e a imperfeição das purgas de Dorothea. Sem Rainhas poderosas que desafiassem a sua ascensão ao poder, a sua expectativa fora a de que os machos se entregassem a ela, uma Sacerdotisa, da mesma forma que se entregariam a uma Rainha. Não o fizeram. Começou então um tipo diferente de purga e, no seu término, Dorothea possuía as armas mais afiadas de todas - machos apavorados que retiravam o poder a qualquer fêmea mais fraca para se sentirem poderosos e fêmeas apavoradas que colocavam Anéis em machos potencialmente fortes antes de se tornarem uma ameaça.

O resultado foi uma perversão em espiral da sociedade que se centrava em Dorothea não só como o instrumento da destruição mas também como o único refúgio seguro.

Foi então que se espalhou para o exterior, para os outros Territórios. Tinha testemunhado essas outras terras e pessoas a desfazerem-se lentamente, esmagados sob a perversão implacável e sussurrada de Hayll nos hábitos dos Sangue. Tinha visto as poderosas Rainhas, iniciadas demasiadamente jovens, a regressarem da Noite da Virgem quebradas e inábeis.

Tinha assistido e lamentado, furioso e frustrado por pouco poder fazer para deter tudo isto. Um bastardo não tem posição social. Um escravo ainda menos, não importa a casta a que pertence por nascimento ou as Jóias que usa. Por isso, enquanto Dorothea encenava o seu jogo de poder, Daemon encenava o seu próprio. Ela destruía os Sangue que se lhe opunham. Ele destruía os Sangue que a apoiavam.

No final, Dorothea iria vencer. Daemon sabia-o. Eram escassos os territórios que não viviam na sombra de Hayll. Havia séculos que Askavi tinha aberto as pernas a Hayll. Dhemian era o único território na parte oriental do Reino que ainda lutava com as suas últimas forças para se manter livre da influência de Dorothea. Existiam também alguns territórios distantes a oeste que ainda não se encontravam completamente subjugados.

Dentro de um século, dois no máximo, Dorothea atingiria a sua ambição. A sombra de Hayll cobriria todo o Reino e ela tornar-se-ia na Sacerdotisa Suprema, a soberana absoluta de Terreille, outrora conhecido como Reino da Luz.

Daemon fez desaparecer o cigarro e abotoou a camisa. Ainda tinha de servir Marissa, a filha de Maris, antes de poder dormir um pouco.

Não tinha dado mais do que alguns passos quando uma mente roçou a sua, solicitando-lhe a atenção. Afastou-se da casa e seguiu o puxão mental. Não havia que enganar: o odor psíquico, os pensamentos emaranhados e as imagens desordenadas.

O que é que ela estava aqui a fazer?

O puxão parou ao chegar ao pequeno bosque na extremidade dos jardins.

— Tersa? — chamou suavemente.

Os arbustos a seu lado agitaram-se e uma mão ossuda agarrou-o pelo pulso. — Por aqui — disse Tersa, puxando-o ao longo de um caminho. — A teia é frágil.

— Tersa... — Daemon tentou esquivar-se de um ramo baixo que o atingiu na cara, o que lhe valeu um puxão no braço. — Tersa...

— Silêncio, rapaz — disse furiosamente, arrastando-o. Concentrou a atenção em esquivar-se a ramos e evitar raízes que tentavam fazê-lo tropeçar. Rangendo os dentes, esforçou-se por ignorar o vestido andrajoso que vestia o corpo meio-esfomeado de Tersa. Sendo uma criança do Reino Distorcido, Tersa era meio selvagem, vislumbrando o mundo como figuras acinzentadas através dos fragmentos do que tinha sido. A experiência ensinara-o que, quando Tersa estava absorvida pelas suas visões, era inútil falar-lhe dos aspectos mundanos, como comida e roupa e camas quentes e seguras.

Alcançaram uma clareira no bosque onde se encontrava uma laje achatada em pedra sobre duas outras. Daemon perguntou-se se seria natural ou se Tersa a tinha construído para servir como um altar em miniatura.

A laje tinha apenas uma estrutura em madeira que segurava uma teia entrelaçada de uma Viúva Negra.

Apreensivo, Daemon esfregou o punho e aguardou.

— Vê — ordenou Tersa. Estalou a unha do polegar da mão esquerda na unha do dedo indicador que se transformou numa ponta aguçada. Picou o dedo médio da mão direita e deixou que uma gota de sangue caísse em cada uma das quatro linhas de ligação que seguravam a teia à estrutura. O sangue escorreu pelas linhas de cima, subindo pelas linhas de baixo. Ao unirem-se no meio, os fios de seda de aranha da teia iluminaram-se.

Surgiu uma névoa em turbilhão em frente da estrutura, transformando-se num cálice de cristal.

O cálice era simples. Muitos diriam até modesto. Daemon achou-o elegante e bonito. No entanto, aquilo que o atraiu para o altar improvisado era o que o cálice continha.

No cálice, a névoa negra raiada de relâmpagos continha poder que deslizava pêlos seus nervos, serpenteava à volta da sua coluna e buscava a libertação no fogo repentino do seu ventre. Era uma força em fusão, de uma intensidade catastrófica, selvagem, para além da compreensão humana... e Daemon queria-a com todo o seu ser.

— Olha — disse Tersa, apontando para a borda do cálice.

Abriu-se uma racha fina desde uma fenda na borda do cálice até à base. Sob o olhar atento de Daemon, surgiu uma racha mais profunda.

A névoa rodopiou dentro do cálice. Uma gavinha passou através do fundo do vidro até ao pé.

Demasiado frágil, pensou, à medida que surgiam mais e mais rachas. O cálice era demasiado frágil para conter aquele tipo de poder.

Aproximou-se do cálice.

As rachas começavam no exterior e dirigiam-se para o interior e não o contrário. Assim sendo, o próprio cálice estava ameaçado por algo que o ultrapassava.

Daemon estremeceu ao ver a névoa fluir para o pé. Era uma visão. Não podia fazer absolutamente nada para alterar uma visão. Mas todo o seu ser gritava para que fizesse algo, para que envolvesse o cálice com a sua força e o estimasse, o protegesse e o mantivesse a salvo.

Mesmo sabendo que não iria alterar nada do que aconteceu aqui e agora, ainda assim estendeu a mão para alcançar o cálice.

Estilhaçou-se antes que o pudesse tocar, espalhando fragmentos de cristal pelo altar improvisado.

Tersa ergueu o que sobrou do cálice estilhaçado. No fundo do copo de bordas irregulares, rodopiava ainda uma réstia de névoa, a maior parte aprisionada no pé.

Olhou-o tristemente. — A teia interior pode ser quebrada sem estilhaçar o cálice. O cálice pode ser estilhaçado sem quebrar a teia interior. Não podem alcançar a teia interior, já o cálice...

Daemon humedeceu os lábios. Não conseguia parar de tremer. — Eu sei que a teia interior é outra denominação para o nosso âmago, o Eu que pode extrair o poder que existe em nós próprios. Mas ignoro o significado do cálice.

A mão dela tremeu um pouco. — Tersa é um cálice estilhaçado.

Daemon fechou os olhos. Um cálice estilhaçado. Uma mente estilhaçada. Falava sobre loucura.

— Dá-me a tua mão — pediu Tersa.

Demasiado desencorajado para a questionar, Daemon estendeu-lhe a mão esquerda.

Tersa agarrou-a, puxou-a para a frente e cortou-lhe o pulso com o lado partido do cálice.

Daemon pressionou o pulso com a mão e fitou-a, atordoado.

— Para que nunca te esqueças desta noite — afirmou Tersa com a voz tremida. — Essa cicatriz nunca mais irá.desaparecer.

Daemon atou um lenço à volta do pulso. — E qual é a importância de uma cicatriz?

— Já te disse. Para que não te esqueças. — Tersa cortou os fios da teia entrelaçada com o cálice partido. Ao cortar o último fio, o cálice e a teia desapareceram. — Não sei se acontecerá ou se poderá acontecer. Não pude ver muitos dos fios na teia. Que as Trevas te concedam coragem, se dela precisares, quando dela precisares.

— Coragem para quê? Tersa afastou-se.

— Tersa!

Tersa voltou-se e olhou para ele, proferiu duas palavras e desapareceu.

As pernas de Daemon cederam. No chão, enrolou-se sobre si próprio, respirando com dificuldade, o seu corpo estremecendo devido ao medo que lhe despedaçava as entranhas.

O que é que uma coisa tinha a ver com a outra? Nada. Nada! Estaria lá como protector, como escudo. Estaria lá!

Mas onde?

Forçou-se a respirar calmamente. Era essa a questão. Onde.

Com certeza não seria na corte de Maris.

Já a manhã ia longa quando regressou à casa, dolorido e sujo. O pulso palpitava e a cabeça latejava impiedosamente. Mal chegou ao terraço, a filha de Maris, Marissa, saltou do quarto do jardim e pôs-se à sua frente, as mãos nas ancas, com uma expressão que misturava irritação e desejo.

— Devias ter vindo ao meu quarto ontem à noite e não apareceste. Onde estiveste? Estás imundo. — Encolheu o ombro, olhando-o através das pestanas. — Portaste-te mal. Tens de vir explicar-te ao meu quarto.

Daemon desviou-a para passar. — Estou cansado. Vou para a cama.

— Farás como te digo! — Marissa mergulhou a mão entre as pernas de Daemon.

A mão de Daemon cerrou-lhe o pulso de forma tão rápida e com tanta força que caiu de joelhos a chorar de dor antes de perceber o que tinha acontecido. Continuou a apertar-lhe o pulso até sentir que os ossos ameaçavam despedaçar-se. Daemon sorriu, por fim, o tal sorriso frio, familiar e brutal.

— Não me “portei mal”. Os rapazinhos é que se portam mal. — Empurrou-a, passando-lhe por cima, uma vez que se encontrava estendida nas lájeas.

— E se voltais a tocar-me desta forma, arranco-vos a mão.

Caminhou ao longo dos corredores para o seu quarto, consciente de que os criados se desviavam à sua passagem, de que um travo a violência pairava no ar ao seu redor.

Não se importava. Entrou no quarto, despiu-se, deitou-se e fixou o tecto, receoso de fechar os olhos pois sempre que o fazia via um cálice de cristal estilhaçado.

Duas palavras.

Ela chegou.

 

Em tempos, tinha sido o Sedutor, o Carrasco, o Sacerdote Supremo da Ampulheta, o Príncipe das Trevas, o Senhor Supremo do Inferno.

Em tempos, tinha sido Consorte de Cassandra, a grande Rainha Viúva Negra de Jóia Negra, a derradeira Feiticeira a caminhar pêlos Reinos.

Em tempos, tinha sido o único Príncipe dos Senhores da Guerra de Jóia Negra na história dos Sangue, temido pela sua índole e pelo poder que detinha.

Em tempos, tinha sido o único macho que era Viúva Negra.

Em tempos, tinha governado o Território Dhemian no Reino de Terreille e o Território irmão em Kaeleer, o Reino das Sombras. Tinha sido o único macho a governar sem ter de responder a uma Rainha e, à excepção da Feiticeira, o único membro dos Sangue a governar Territórios em dois Reinos.

Em tempos, tinha sido casado com Hekatah, uma Sacerdotisa Viúva Negra da aristocracia, originária de uma das Cem Famílias de Hayll.

Em tempos, tinha criado dois filhos, Mephis e Peyton. Tinha jogado com eles, tinha-lhes contado histórias, tinha lido para eles, tinha-lhes curado os joelhos esfolados e os corações partidos, tinha-lhes ensinado a Arte e a Lei dos Sangue, tinha-os inundado com o amor que tinha pela terra bem como pela música, pela arte e pela literatura, tinha-os encorajado a olhar com um desejo ardente para tudo o que os Reinos tivessem a oferecer - não para conquistar mas para aprender. Tinha-os ensinado a dançar em ocasiões sociais e a dançar pela glória da Feiticeira. Tinha-os ensinado a ser Sangue.

Mas tudo isso fora há muito, muito tempo.

Saetan, o Senhor Supremo do Inferno, estava calmamente sentado à lareira, um cobertor enrolado à volta das pernas, folheando um livro que não tinha interesse em ler. Bebeu um gole de yarbarah, o vinho de sangue, sem saborear o seu gosto ou sentir o seu calor.

Na última década, tinha sido um inválido tranquilo que não saía do seu gabinete privado, localizado bem abaixo do Paço. Durante mais de 50.000 anos antes deste período, tinha sido o soberano e o guardião do Reino das Trevas, o Senhor Supremo incontestado.

Já não se interessava pelo Inferno. Já não se interessava pela família e pêlos amigos demónios-mortos que permaneciam com ele, nem com os outros demónios-mortos e cidadãos espectrais deste Reino, os Sangue que ainda possuíam uma tal força que os impedia de regressar às Trevas, mesmo após a morte dos seus corpos.

Estava velho e cansado, a solidão que tinha carregado dentro de si durante toda a vida tornou-se demasiado pesada. Já não queria ser um Guardião, um dos mortos-vivos. Já não queria a meia-vida pela qual uma mão cheia de membros dos Sangue tinha optado com vista ao prolongamento da vida até anos para além da imaginação. Queria paz, queria esvaecer-se serenamente de volta às Trevas.

O que o impedia de procurar activamente essa libertação era a promessa que tinha feito a Cassandra.

Saetan juntou as unhas longas e tingidas a negro de ambas as mãos e poisou os olhos dourados no retraio pendurado na parede oposta, entre duas estantes.

Fê-lo prometer que se tornaria Guardião para que a sua meia-vida prolongada lhe permitisse caminhar entre os vivos aquando do nascimento da sua filha. Não era uma filha saída do seu ventre, era a filha da sua alma. A filha que Cassandra tinha vislumbrado numa teia entrelaçada.

Tinha prometido porque o que Cassandra lhe transmitiu tinha-lhe agitado os nervos como linhas de orientação numa tempestade, porque esse era o preço do treino que o tornaria numa Viúva Negra, porque, já nessa altura, as Trevas cantavam-lhe como não o faziam a outros machos dos Sangue.

Tinha mantido a promessa. Mas a filha nunca chegou. O bater insistente na porta do seu gabinete privado despertou-o dos seus pensamentos.

— Entre — disse, a voz profunda nào mais do que um sussurro cansado, um fantasma do que fora.

Mephis SaDiablo entrou, colocando-se ao lado da cadeira, em silêncio.

— Que pretendes, Mephis? — perguntou Saetan ao seu filho mais velho, demónio-morto desde essa longínqua guerra entre Terreille e Kaeleer.

Mephis hesitou. — Está a passar-se algo estranho.

O olhar contemplativo de Saetan vagueou de volta para o lume. — Outro poderá tomar conta do caso, se alguém o desejar. A tua mãe pode tratar disso. Hekatah sempre desejou o poder sem a minha interferência,

— Não — exclamou Mephis, desconfortavelmente.

Saetan examinou o rosto do filho e percebeu que estava com dificuldades em engolir. — Os teus... irmãos? — perguntou finalmente, incapaz de ocultar a dor provocada pela questão. Tinha sido um tolo adulado para lançar o feitiço que lhe devolveu, temporariamente, a semente da vida. Não lamentava a existência de Daemon e de Lucivar, mas, durante séculos, tinha-se torturado com os relatos do que lhes ia acontecendo.

Mephis abanou a cabeça e olhou fixamente para a lareira em mármore vermelho-escuro. — Na ilha das cildru dyathe.

Saetan estremeceu. Nunca tinha temido o que quer que fosse no Inferno, mas sentia sempre um desespero agonizante pelas cildru dyathe, as crianças demónias-mortas. No Inferno, os mortos mantinham a forma da última hora de vida. Este Reino frio e maldito nunca fora um lugar simpático, mas olhar para aquelas crianças, ver o que lhes tinha sido infligido pelas mãos de terceiros, ao ponto de não existir escapatória possível daquelas manifestas feridas... Era demasiado para suportar. Mantinham-se na ilha, relutantes em manter qualquer contacto com os adultos. Nunca forçou a sua presença pois Char, o líder escolhido, visitava-o de vez em quando para devolver os livros, os jogos e o que quer que encontrasse que pudesse ocupar as suas jovens mentes e ajudá-los a passar os inexoráveis anos.

— As cildru dyathe tomam contas delas próprias — afirmou Saetan, ajeitando o cobertor. — Sabes disso.

— Mas, de vez em quando, nas últimas semanas, há uma outra presença ali. Nunca fica por muito tempo, mas eu senti-a, bem como Prothvar quando voou sobre a ilha.

— Deixa-os em paz — disse Saetan, bruscamente, devolvendo alguma força à voz com a irritação. — Talvez tenham encontrado um cachorro órfão.

Mephis respirou fundo. — Hekatah já discutiu com Char sobre este assunto. Devido a isto, as crianças escondem-se de quem se aproxime. Se ela tivesse autoridade para...

Antes que Saetan pudesse responder ao breve batimento, a porta abriu-se. Andulvar Yaslana, outrora o Príncipe Eyrieno dos Senhores da Guerra de Askavi, irrompeu pela sala. Atrás dele vinha o seu neto, Prothvar, carregando um grande globo coberto por um pano preto.

— SaDiablo, há algo que deves ver — disse Andulvar — Prothvar trouxe isto da ilha das cildru dyathe.

Por educação, Saetan simulou uma expressão de interesse. Quando eram jovens, ele e Andulvar tinham-se tornado improváveis amigos e tinham servido juntos em várias cortes. Nem mesmo Hekatah tinha destruído essa amizade quando se pavoneou, carregando alegremente uma criança que não era dele - a criança de Andulvar. Este facto não o virou contra o único homem a quem alguma vez tinha chamado amigo - quem poderia culpar um homem por se deixar enredar num dos esquemas de Hekatah?

- porém, tinha destruído o seu tempestuoso casamento.

Saetan olhou para cada um dos homens e verificou a mesma intranquilidade em três pares de olhos dourados. Mephis era um Príncipe dos Senhores da Guerra de Jóia Cinzenta e praticamente inabalável. Prothvar era um Senhor da Guerra Eyrieno de Jóia Vermelha, um guerreiro criado e treinado. Andulvar era um Príncipe Eyrieno dos Senhores da Guerra que usava a Ébano-Acinzentada, a segunda Jóia mais escura. Todos eram homens possantes que não se assustavam facilmente - mas agora estavam amedrontados.

Saetan inclinou-se para a frente, o medo dos outros três homens a espicaçar a bolha de indiferença na qual se tinha fechado há uma década. O corpo estava enfraquecido e precisava de se apoiar numa bengala para caminhar, mas a mente ainda estava aguçada, as Jóias Negras ainda vibravam, a destreza na Arte estava bem apurada.

Subitamente, soube que necessitaria de toda essa força e destreza para lidar com o que quer que estivesse a acontecer na ilha das cildru dyathe.

Andulvar retirou o pano do globo. Saetan limitou-se a olhar fixamente, o seu rosto repleto de espanto e descrença.

Uma borboleta. Não, não era uma simples borboleta. Era uma enorme criatura fantástica que batia as asas delicadamente dentro do globo que a confinava. Porém, foram as cores que atordoaram Saetan. O Inferno era um Reino que se encontrava sempre na penumbra, um Reino que empalidecia as cores até quase nem existirem. Pálida era o que a criatura no globo não era. O seu corpo era de um laranja em tons de abóbora, as suas asas de uma mistura improvável de azul celeste, amarelo dourado e verde-relva. Enquanto olhava, a borboleta perdeu a forma e as cores misturaram-se como um giz a pintar à chuva.

Alguém na ilha das cildru dyathe tinha criado este glorioso pedaço de magia, tinha conseguido manter as cores dos Reinos dos vivos num lugar que atenuava a vitalidade, a vibração da vida.

— Prothvar conseguiu prender esta num globo escudado — explicou Andulvar.

— Dissolvem-se quase de imediato — disse Prothvar, em jeito de desculpa, encolhendo as asas negras e com membranas para junto do corpo.

Saetan endireitou-se na cadeira. — Traz o Char à minha presença, Senhor Yaslana. — A sua voz assemelhava-se a um suave trovão, acariciadora e dominante.

— Não virá de bom grado — disse Prothvar. Saetan fixou o Senhor da Guerra demónio-morto. — Traz o Char à minha presença.

— Sim, Senhor Supremo.

O Senhor Supremo do Inferno estava calmamente sentado à lareira, os dedos finos encostados uns aos outros, as longas unhas de um preto brilhante. O anel de Jóia Negra na sua mão direita cintilava devido a um fogo interior.

O rapaz estava à sua frente, com os olhos no chão, esforçando-se por não se mostrar assustado.

Saetan observou-o com os olhos semicerrados. Já havia mil anos que Char era o líder das cildru dyathe. Tinha doze, talvez treze anos, quando alguém o tinha empalado e lhe tinha pegado fogo. A vontade de viver tinha sido mais forte do que o corpo, pelo que foi aos tropeções que passou um dos Portões indo parar ao Reino das Trevas. O corpo estava de tal forma queimado que era impossível dizer de que raça provinha. Não obstante, este rapaz demónio tinha reunido as outras crianças mutiladas e tinha criado um refúgio, a ilha das cildru dyathe.

Teria sido um excelente Senhor da Guerra, se lhe tivessem permitido atingir a maioridade, reflectiu Saetan indolentemente.

Andulvar, Mephis e Prothvar estavam em pé, formando um semicírculo por detrás da cadeira de Char, impedindo qualquer forma de fuga.

— Quem cria as borboletas, Char? — perguntou Saetan, muito calmamente.

Os ventos que provêem do norte silvam sobre quilómetros de gelo, reunindo humidade enquanto rasgam o mar gelado e, ao tocarem por fim num homem, essa humidade gelada e cortante infiltra-se nos ossos e enregela-o em lugares que o fogo mais quente não consegue aquecer. Saetan, quando se encontrava assim tão calmo, tão tranquilo, era como esses ventos.

— Quem cria as borboletas, Char? — repetiu.

Char fixava o chão, as mãos cerradas, a cara a contorcer-se com as emoções que grassavam dentro de si. — É nossa. — As palavras irromperam da sua boca. — Pertence-nos.

Saetan manteve-se calmo, embora gelado pela fúria que crescia em si. Até obter uma resposta, não havia tempo para gentilezas.

Char olhou-o também fixamente, aterrorizado mas disposto a resistir.

Todos os cidadãos do Inferno conheciam as subtis diferenças da morte - existia a morte e existia a morte. Todos os cidadãos do Inferno sabiam que a única pessoa que poderia obliterá-los com um pensamento era o Senhor Supremo. Ainda assim, Char desafiou-o abertamente e aguardou.

De repente, algo mais se encontrava na sala. Um toque suave. Uma pergunta que circulava num fio psíquico. Char baixou a cabeça, derrotado — Ela quer conhecê-lo.

— Então trá-la cá, Char. _

Char endireitou os ombros. — Amanhã. Trago-a amanhã. Saetan examinou o orgulho periclitante nos olhos do rapaz. — Muito bem. Senhor da Guerra, podes acompanhá-la aqui... amanhã.

 

Saetan folheava um antigo texto da Arte, em pé na estante de coro, as luzes das velas a espalharem uma incandescência suave à sua volta. Não se voltou quando soou uma leve pancada na porta do gabinete. Uma ágil sonda psíquica informou-o sobre quem era.

— Entre. — Continuou a folhear o livro, tentando refrear o seu génio antes de tratar daquele pequeno demónio insolente. Por fim, fechou o livro evirou-se.

Char estava de pé junto à porta, os ombros orgulhosamente para trás.

— A linguagem é curiosa. Senhor da Guerra — disse Saetan com uma indulgência enganadora. — Quando disseste “amanha não esperava que se passassem cinco dias.

O medo rastejou até aos olhos de Char. Os seus ombros descaíram. Virou-se para a porta e o seu rosto foi invadido por uma estranha mistura de ternura, irritação e resignação.

A menina deslizou pela porta, centrando de imediato a atenção no quadro despojado de Dujae, Descida aos Infernos, pendurado por cima da lareira. Os olhos azul celeste passaram da grande secretária em madeira escura, ignoraram Saetan educadamente, iluminaram-se quando viu as estantes de livros que iam do chão até ao tecto e que cobriam quase toda uma parede e detiveram-se no retrato de Cassandra.

Saetan apoiou-se na bengala de ponta prateada, lutando para manter o equilíbrio, ao mesmo tempo que sensações o esmagavam como uma forte ressaca. Esperava uma cildru dyathe dotada. Esta rapariga estava viva! Devido às competências exigidas na criação daquelas borboletas, esperava que estivesse mais perto da adolescência. Não poderia ter mais do que sete anos. Esperava inteligência. A expressão nos seus olhos era meiga e de raciocínio lento. O que é que estava uma criança viva a fazer no Inferno?

Nesse momento, virou-se e olhou para Saetan. Enquanto observava os olhos de tonalidades azul celeste alterarem-se para tonalidades de safira, a ressaca arrebatou-o.

Olhos vetustos. Olhos em turbilhão. Olhos perturbados, sábios, que vêem.

Um dedo gelado percorreu-lhe subtilmente a coluna no preciso momento em que foi invadido por um desejo ardente e perturbador. O instinto disse-lhe o que ela era. Demorou um pouco mais a encontrar a coragem para aceitar.

Não a filha do seu ventre, mas a filha da sua alma. Não somente uma feiticeira dotada, mas a Feiticeira.

Jaenelle baixou os olhos e afofou o cabelo louro aos canudos, aparentemente já sem a certeza de ser bem-vinda.

Reprimiu o desejo de lhe desfazer aqueles canudos ridículos.

— Sois o Sacerdote? — perguntou timidamente, entrelaçando os dedos. — O Sacerdote Supremo da Ampulheta?

Uma sobrancelha negra ergueu-se ligeiramente e um débil e seco sorriso tocou os seus lábios. — Há muito tempo que ninguém me chama assim, mas é verdade, sou o Sacerdote. Sou Saetan Daemon SaDiablo. O Senhor Supremo do Inferno.

— Saetan — disse, como que a experimentar o nome. — Saetan. — Era uma doce carícia, uma carícia sensual e encantadora. — Fica-vos bem.

Saetan engoliu uma gargalhada. No passado, tinham sido despoletadas muitas reacções ao seu nome, mas nunca assim. Não, nunca assim. — E tu como te chamas?

— Jaenelle.

Aguardou que ela referisse um nome de família, mas tal não aconteceu. À medida que o silêncio se prolongava, a sala foi-se impregnando de uma prudência repentina, como se Jaenelle aguardasse algum tipo de armadilha. Com um sorriso e um encolher de ombros de indiferença para mostrar que não tinha importância, Saetan gesticulou em direcção às cadeiras junto à lareira. — Queres sentar-te e falar comigo, criança-feiticeira? A minha perna não me permite ficar em pé durante muito tempo.

Jaenelle dirigiu-se à cadeira que se encontrava mais perto da porta, com Char a segui-la de perto, possessivamente.

Os olhos dourados de Saetan cintilaram de aborrecimento. Fogo do Inferno! Tinha-se esquecido do rapaz. — Obrigado, Senhor da Guerra. Podes ir.

Char papagueou um protesto. Antes que Saetan pudesse responder, Jaenelle tocou no braço de Char. Não foram proferidas quaisquer palavras e Saetan não sentiu qualquer fio psíquico. O que quer que tivesse sido transmitido entre as duas crianças foi muito subtil e não havia dúvidas sobre quem dominava. Char fez uma vénia e deixou o gabinete, fechando a porta ao sair.

Assim que se instalaram junto à lareira, Jaenelle pregou Saetan à cadeira com os seus olhos azuis e intensos. — Podeis ensinar-me a Arte? A Cassandra disse que o faríeis se vos pedisse.

O mundo de Saetan desabou eíoi reconstruído no tempo de um batimento de coração. Não permitiu que tal fosse visível no seu rosto. Haveria tempo mais tarde. — Ensinar-te a Arte? Não vejo porque não. Onde é que se encontra a Cassandra agora? Perdemos o contacto ao longo dos anos.

— No seu Altar. Em Terreille.

— Muito bem. Chega aqui, criança-feiticeira.

Jaenelle levantou-se obedientemente e colocou-se ao lado da cadeira de Saetan.

Saetan levantou uma mão, com os dedos dobrados para dentro, e acariciou suavemente a face de Jaenelle. De imediato, os seus olhos encheram-se de raiva e, dentro de Saetan, o Negro vibrou subitamente. Deteve-se nos olhos deixando que os dedos deslizassem lentamente pelo queixo, tocando levemente nos lábios, dando uma volta completa e regressando. Não tentou ocultar a curiosidade, o interesse ou o afecto que sentia pela maioria das fêmeas.

Por fim, juntou os dedos de ambas as mão à sua frente e aguardou. Passado um momento, a vibração tinha desaparecido e controlava de novo os pensamentos. Ainda bem, pois não conseguia parar de pensar porque é que o facto de ser tocada a enraivecia daquela forma. — Prometo-te duas coisas — disse. — Em troca, quero que me prometas uma.

Jaenelle olhou-o desconfiada. — Prometer o quê?

— Prometo, pelas Jóias que uso e por tudo o que sou, que te ensinarei tudo aquilo que me pedires, consoante as minhas capacidades. Prometo também que nunca te mentirei.

Jaenelle reflectiu sobre estas palavras. — O que é que eu tenho de prometer?

— Que me manterás informado sobre qualquer lição de Arte que te seja transmitida por terceiros. A Arte requer dedicação para a aprender convenientemente e disciplina para lidar com as responsabilidades que tal poder acarreta. Quero uma garantia de que tudo o que venhas a aprender te seja transmitido correctamente. Compreendes, criança-feiticeira?

— Assim sendo, ireis ensinar-me?

— Tudo o que sei. — Saetan deixou-a reflectir. — Combinado?

— Combinado.

— Muito bem. Dá-me as tuas mãos. — Segurou aquelas pequenas mãos, de pele clara, nas suas mãos morenas. — Vou tocar-te a mente. — Novamente, a raiva. — Não te magoarei, criança-feiticeira.

Com todo o cuidado, Saetan aproximou-se com a sua própria mente até se encontrar perante as barreiras interiores de Jaenelle. Eram os escudos que protegiam os Sangue da sua própria espécie. Como anéis dentro de anéis, quanto mais barreiras são ultrapassadas, mais pessoal se torna a ligação mental. A primeira barreira protege os pensamentos do dia-a-dia. A última barreira protege o âmago do Eu, a essência de um ser, a teia interior.

Saetan aguardou. Apesar de desejar muito obter as respostas, não queria quebrá-la pela força. Neste momento, tudo dependia da confiança.

As barreiras tombaram e Saetan prosseguiu.

Não esquadrinhou os pensamentos nem desceu mais profundamente do que o necessário, apesar da curiosidade. Se o tivesse feito, teria sido uma traição ofensiva do código de honra dos Sangue. Além de que existia um vazio estranho e profundo na mente dela que o perturbava, uma neutralidade suave que, tinha certeza, escondia algo muito diferente. Depressa encontrou o que procurava - o fio psíquico que vibraria em concordância com um fio da mesma categoria, pelo qual tinha sido puxado, e que lhe diria as Jóias que Jaenelle usava ou que iria usar após a Cerimónia de Direito por Progenitura. Começou pela Branca, a categoria mais baixa e continuou, à espera de ouvir o zumbido de resposta.

Fogo do Inferno! Nada. Não esperava qualquer resposta até alcançar a Vermelha, mas a essa profundidade já esperaria algo. Teria de usar a Vermelha de Direito por Progenitura para que pudesse usar a Negra após realizar a Dádiva às Trevas. A Feiticeira sempre usou a Negra.

Sem pensar, Saetan puxou pelo fio Negro.

O zumbido surgiu.

Saetan largou-lhe as mãos, surpreendido pelas suas próprias não estarem a tremer. Engoliu em seco pois tinha o coração na boca. — Já te sujeitaste à Cerimónia de Direito por Progenitura?

Jaenelle esmoreceu.

Ergueu-lhe o queixo, com delicadeza. — Criança-feiticeira?

Os seus olhos azul-safira encheram-se de angústia. Uma lágrima escorreu-lhe pela face. — Não passei no t-teste. Isso significa que tenho de devolver as Jóias?

— Falhaste qual... Quais Jóias?

Jaenelle enfiou a mão nas pregas do vestido azul, retirando uma bolsa de veludo. Colocou-a em pé na mesa baixa ao lado da cadeira de Saetan com um sorriso orgulhoso embora choroso.

Saetan fechou os olhos, encostou a cabeça ao espaldar da cadeira e esperou sinceramente que a sala parasse de rodopiar. Não precisava de olhar para saber o que eram: doze Jóias em bruto. Branca, Amarela, Olho-de-Tigre, Rosa, Azul-Celeste, Violácea, Opala-Sangue, Verde, Azul-Safira, Vermelha, Cinzenta e Ébano-Acinzentada.

Não se sabia de onde as Jóias provinham. Se alguém estivesse destinado a usar uma Jóia, esta surgiria simplesmente no Altar após a Cerimónia de Direito por Progenitura ou após a Dádiva às Trevas. Mesmo na sua juventude, era raro alguém receber uma Jóia em bruto - uma Jóia que nunca tinha sido usada por nenhum Sangue. A sua Jóia Vermelha de Direito por Progenitura tinha sido uma Jóia em bruto. Quando lhe foi oferecida a Negra, também era em bruto. Mas receber um conjunto completo de Jóias em bruto...

Saetan inclinou-se para a frente e tocou com a ponta da unha na Jóia Amarela. Cintilou, o fogo no interior a adverti-lo para se afastar. Franziu o sobrolho, intrigado. A Jóia identificou-se como fêmea, estando ligada a uma feiticeira e não a um macho dos Sangue, mas dentro dela existia algo de masculino, ainda que débil.

Jaenelle limpou as lágrimas e fungou. — As Jóias mais claras são para praticar e para as coisas do dia-a-dia até estar pronta para embutir estas.

— Apresentou outra bolsa de veludo. A sala rodopiou em todas as direcções. As unhas de Saetan trespassaram os braços em couro da cadeira.

Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as Trevas sejam misericordiosas!

Treze Jóias Negras em bruto. Jóias que já cintilavam com o fogo interior de uma ligação psíquica. Só o facto de uma criança ter estabelecido ligação a uma Jóia Negra sem que a sua mente tivesse sido arrastada para as suas profundezas já era bastante perturbador, mas a força interior necessária para estabelecer ligação e para manter treze delas... Sentiu o medo a trepar-lhe pela coluna, a percorrer as veias. Demasiado poder. Demasiado. Nem os Sangue estavam destinados a deter tal poder. Nem a Feiticeira tinha alguma vez controlado todo este poder.

A verdade é que esta controlava. Esta jovem Rainha. A filha da sua alma.

Com esforço, Saetan estabilizou a respiração. Poderia aceitá-la. Poderia amá-la. Ou poderia temê-la. Cabia-lhe a si a decisão e, o que quer que decidisse aqui e agora, seria uma decisão com a qual teria de viver.

As Jóias Negras iluminaram-se. A Jóia Negra do seu anel iluminou-se em resposta. O sangue latejou-lhe nas veias, provocando-lhe dores de cabeça. O poder nestas Jóias aliciava-o, exigindo reconhecimento.

Descobriu que, afinal, a decisão era fácil de tomar - na verdade, já a tinha tomado há muito, muito tempo.

— Onde obtiveste estas Jóias, criança-feiticeira? - perguntou com a voz enrouquecida.

Jaenelle encolheu os ombros. — Foi o Lorn.

— L-Lom? — Lorn? Era um nome presente nas lendas mais antigas dos Sangue. Lorn era o último Príncipe dos Dragões, a raça fundadora que criou os Sangue. — Como... onde conheceste o Lorn?

Jaenelle recolheu-se ainda mais.

Saetan reprimiu o ímpeto de lhe retirar as respostas à força e suspirou dramaticamente. — Um segredo entre amigos?

Jaenelle anuiu com a cabeça.

Novo suspiro. — Nesse caso, faz de conta que nunca perguntei. — Bateu levemente com o dedo no nariz de Jaenelle. — O que quer dizer que não lhe poderás contar os nossos segredos.

Jaenelle olhou-o com os olhos bem abertos. — Temos algum?

— Para já não, — resmungou — mas vou inventar um para que passemos a ter.

Soltou uma gargalhada argentina, aveludada, um som extraordinário que deixava transparecer a voz que teria dentro de alguns anos. À semelhança do seu rosto, demasiado exótico e grosseiro para ela nesta altura, porém, doces Trevas, quando o rosto amadurecesse!

— Muito bem, criança-feiticeira, vamos ao que interessa. Guarda as Jóias. Não irás precisar delas por agora.

— Ao que interessa? — perguntou, juntando as Jóias e enfiando as bolsas nas pregas do vestido.

— A tua primeira lição nas bases da Arte.

Jaenelle esmoreceu e arrebitou-se em simultâneo.

Saetan gesticulou com o dedo. Um pisa-papéis rectangular ergueu-se da secretária em madeira escura e deslizou pelo ar até se deter na mesa baixa. O pisa-papéis era uma pedra polida tirada da mesma pedreira das pedras que tinha usado na construção do Paço neste Reino.

Saetan posicionou Jaenelle em frente da mesa. — Quero que apontes um dedo para o pisa-papéis... assim... e que o desloques pela mesa até onde conseguires.

Jaenelle hesitou, humedeceu os lábios e apontou o dedo.

Saetan sentiu a vaga de poder em bruto transmitida pela Jóia Negra.

O pisa-papéis não se moveu.

— Volta a tentar, criança-feiticeira. Na outra direcção. Voltou a sentir a vaga de poder, mas o pisa-papéis não se moveu. Saetan coçou o queixo, confundido. Era Arte simples, algo que não de- veria apresentar qualquer problema para ela.

Jaenelle esvaeceu. — Eu tento — disse, a voz abatida. — Eu tento e volto a tentar, mas nunca acerto.

Saetan abraçou-a, sentindo uma dor agridoce no coração quando os braços de Jaenelle lhe rodearam o pescoço. — Não te preocupes, criança-feiticeira. A Arte leva tempo a aprender.

— Porque é que eu não consigo? Todos os meus amigos conseguem. Relutante em deixá-la, Saetan forçou-se a si próprio a afastá-la. — Talvez tenhamos de começar por algo pessoal. Normalmente é mais fácil. Há alguma coisa com a qual tenhas dificuldades?

Jaenelle afofou o cabelo e franziu a testa. — Tenho sempre dificuldades em encontrar os meus sapatos.

— Serve. — Saetan alcançou a bengala. — Coloca um sapato em frente da secretária e depois vem para aqui.

Coxeou até ao lado mais distante da sala e ficou em pé, de costas para o quadro de Cassandra, sinistramente divertido por estar a dar a primeira aula da Arte à sua nova Rainha sob os olhos vigilantes mas desconhecedores da sua última Rainha.

Quando Jaenelle se juntou a ele, disse:

— Muito do trabalho da Arte requer a conversão da acção física em acção mental. Quero que imagines... a propósito, como está a tua imaginação? — Saetan vacilou. Porque é que se mostrava tão magoada? A sua intenção era gracejar um pouco uma vez que já tinha visto aquela borboleta. — Imagina-te a agarrar o sapato e a trazê-lo até aqui. Avança, apanha e trá-lo.

Jaenelle esticou o mais que pôde o braço, cerrou a mão e puxou.

Aconteceu tudo ao mesmo tempo.

As cadeiras em couro que se encontravam junto à lareira silvaram na sua direcção. Contra-atacou a Arte com a Arte, não tendo mais do que um momento para se sentir surpreendido por não ter resultado, antes de uma das cadeiras o derrubar. Caiu sobre a outra e só teve tempo de se enrolar sobre si mesmo antes da cadeira da secretária em madeira escura bater contra as costas daquela onde se encontrava, virando-se sobre esta e enjaulando-o. Ouviu os livros encadernados a carneira a zunirem pela sala como pássaros enlouquecidos antes de caírem no chão com um ruído surdo. Os sapatos de Saetan pateavam freneticamente, tentando escapar dos seus pés. E, para além de tudo isto, Jaenelle bramia:

— Parem parem parem!

Segundos mais tarde, tudo ficou silencioso.

Jaenelle espreitou pelo espaço entre os braços das cadeiras. — Saetan?

— disse, numa voz baixa e vacilante. — Saetan, estais bem?

Mediante a Arte, Saetan enviou a cadeira de cima de volta à secretária em madeira escura. — Estou bem, criança-feiticeira. — Enfiou os pés nos sapatos e ergueu-se com dificuldade. — Há muitos séculos que não vivia tal excitação.

— A sério?

Endireitou o casaco preto tipo túnica e alisou o cabelo. — Sim, a sério.

— Sendo ou não o Guardião, um homem da sua idade não deveria ter o coração a galopar daquela forma dentro da respectiva caixa torácica.

Saetan olhou à volta do gabinete e reprimiu um gemido. O livro que tinha estado na estante de coro estava suspenso no ar, virado ao contrário. Os restantes livros formavam carreiros no chão do gabinete. Na verdade, o único objecto em couro que não tinha respondido ao chamamento era o sapato de Jaenelle.

— Desculpai, Saetan.

Saetan cerrou os dentes. — Leva tempo, criança-feiticeira. — Deixou-se cair na cadeira. Tanto poder em bruto e ainda tão vulnerável até ela aprender a usá-lo. Um pensamento percorreu-lhe a mente, fazendo-o arrepiar.

— Mais alguém tem conhecimento das Jóias que Lorn te deu?

— Não. — A sua voz assemelhava-se a um murmúrio da noite. Medo e dor encheram os olhos cor de safira e algo mais, algo ainda mais forte do que aquelas sensações superficiais. Algo que o fez gelar até ao âmago.

Ficou ainda mais gelado pelo medo e pela dor presentes nos seus olhos.

Mesmo uma criança forte e poderosa dependia dos adultos à sua volta. Se a sua força o enervava a ele, como é que reagiria o seu povo, a sua família se descobrissem o que aquele pequeno invólucro albergava? Aceitariam a criança que já era a Rainha mais poderosa da história dos Sangue ou temeriam esse poder? E se temessem o poder, tentariam separá-los, quebrando-a?

Uma Noite da Virgem levada a cabo com uma habilidade maléfica poderia despojá-la do seu poder, deixando o resto intacto. Mas uma vez que a sua teia interior estava tão profundamente localizada no abismo, ela poderia recolher-se para o mais longe possível, permitindo-lhe suportar a violação física - a não ser que o macho tivesse a capacidade de descer assim tão profundamente pelo abismo de forma a colocá-la em perigo.

Existiria um macho assim tão forte, tão tenebroso, tão perverso?

Existia... um.

Saetan fechou os olhos. Podia mandar chamar Marjong, deixar o Carrasco fazer o necessário. Não, ainda não. Não para esse. Não o faria até existir uma razão para tal.

— Saetan?

Abriu os olhos relutantemente e observou, primeiro estupidificado e, de seguida, com um sentimento crescente de espanto, conforme Jaenelle arregaçava a manga e lhe oferecia o pulso.

— Não há necessidade de um pagamento de sangue — ripostou.

Não baixou o pulso. — Ficareis melhor.

Aqueles olhos vetustos causticavam-no, despiam-no por completo até ficar a tremer, desnudado à sua frente. Tentou recusar, mas as palavras não queriam sair. Podia sentir o sangue fresco, a força da vida a bombear através das veias de Jaenelle num ritmo antagónico ao do batimento do seu próprio coração.

— Não dessa forma — disse com a voz rouca, puxando-a para si. — Não comigo. — Com a delicadeza de um amante, desabotoou-lhe o vestido e com a unha fez uma incisão na pele sedosa do pescoço. O sangue fluiu, quente e doce. Cerrou a boca sobre a ferida.

O poder de Jaenelle ergueu-se debaixo dele como uma torrente lenta e negra, habilmente controlada, uma torrente que o arrastou, que o purificou e que o curou apesar da sua mente estremecer por se encontrar tão absorvida por outra tão poderosa e, ao mesmo tempo, tão dócil.

Contou os batimentos do coração de Jaenelle. Ao chegar aos cinco, ergueu a cabeça. Não lhe pareceu que estivesse chocada ou assustada, as emoções habituais sentidas pêlos vivos ao serem solicitados a oferecer o sangue directamente das veias.

Jaenelle passou um dedo trémulo pêlos lábios de Saetan. — Se tivésseis bebido mais, ficaríeis completamente curado?

Saetan invocou uma bacia de água morna e lavou o sangue da garganta de Jaenelle com um pano de linho quadrado e limpo. Não iria explicar a uma criança o que aqueles dois goles de sangue já lhe estavam a provocar. Ignorou a questão, na esperança de que Jaenelle não o pressionasse a res- ponder e concentrou-se na Arte necessária à cura da ferida.

— Ficaríeis? — perguntou, mal o pano e a bacia desapareceram.

Saetan hesitou. Tinha dado a sua palavra em como não mentiria. — Seria mais benéfico que o processo de cura se fosse efectuando um pouco de cada vez. — Ao menos, isso era bem verdade. — Outra lição, amanhã?

Jaenelle desviou rapidamente o olhar.

Saetan ficou tenso. Teria ela ficado assustada pelo que tinha feito?

— Já... Já prometi a Morghann que a visitaria amanhã e a Gabrielle no dia a seguir.

O alívio provocou-lhe tonturas. — Então, daqui a três dias? Jaenelle examinou-lhe o rosto. — Não vos importais? Não estais zangado?

Na verdade, importava-se, mas fazia parte da possessibilidade instintiva de um Príncipe dos Senhores da Guerra. Além disso, tinha muito que fazer antes de a voltar a ver. — Creio que os teus amigos não teriam uma boa opinião sobre o teu novo mentor se este te tomasse todo o tempo, não concordas?

Sorriu abertamente. — É provável. — O sorriso desapareceu. O olhar magoado regressou aos seus olhos. — Tenho de ir.

É verdade, tinha muito que fazer antes de voltar a vê-la. Jaenelle abriu a porta e parou. — Acreditais em unicórnios? Saetan sorriu. — Uma vez conheci-os, há muito tempo. O sorriso de Jaenelle antes de desaparecer pelo corredor iluminou a sala, iluminou os recantos mais escuros do coração de Saetan.

— Fogo do Inferno! O que é que aconteceu, SaDiablo? Saetan agitava o sapato abandonado de Jaenelle à frente de Andulvar, sorrindo friamente. — Uma lição de Arte.

— O quê?

Conheci a criadora da borboleta.

Andulvar olhou espantado para a confusão. — Foi ela que fez isto? Porquê?

— Não foi intencional, apenas descontrolado. Ela não é cïldru dyathe. É uma criança viva, uma Rainha e é a Feiticeira.

Andulvar ficou de boca aberta. — Feiticeira? Como Cassandra era Feiticeira?

Saetan abafou uma resmunguice. — Não como a Cassandra mas, sim, Feiticeira.

— Fogo do Inferno! Feiticeira. — Andulvar abanou a cabeça e sorriu. Saetan fixou os olhos no sapato. — Andulvar, meu amigo, espero que ainda possuas toda a força sob o cinto da qual te gabavas, visto que estamos em grandes apuros.

— Porquê? — questionou Andulvar, desconfiado.

— Porque vais ajudar-me a treinar uma Feiticeira de sete anos que, neste momento, já dispõe de um poder em bruto capaz de nos transformar em pó e, no entanto, — deixou cair o sapato sobre a cadeira — é um desastre nas bases da Arte.

Mephis bateu rapidamente à porta e entrou no gabinete, tropeçando numa pilha de livros. — Um demónio acabou de me contar algo estranhíssimo.

Saetan ajeitou as pregas da capa e alcançou a bengala. — Sê breve, Mephis. Tenho um compromisso e já estou bastante atrasado.

— Disse que viu o Paço deslocar-se alguns centímetros. Todo o Paço. Passados alguns momentos, voltou ao lugar.

Saetan manteve-se em pé, imóvel. — Mais alguém viu?

—Acho que não, mas...

— Diz-lhe, pois, que mantenha a boca fechada caso não queira ficar sem a língua.

Saetan passou rapidamente por Mephis, deixando o gabinete que tinha sido o seu lar na ultima década, deixando para trás o seu preocupado filho demónio-morto.

Mephis bateu rapidamente à porta e entrou no gabinete, tropeçando numa pilha de livros. — Um demónio acabou de me contar algo estranhíssimo.

Saetan ajeitou as pregas da capa e alcançou a bengala. — Sê breve, Mephis. Tenho um compromisso e já estou bastante atrasado.

— Disse que viu o Paço deslocar-se alguns centímetros. Todo o Paço. Passados alguns momentos, voltou ao lugar.

Saetan manteve-se em pé, imóvel. — Mais alguém viu?

— Acho que não, mas...

— Diz-lhe, pois, que mantenha a boca fechada caso não queira ficar sem a língua.

Saetan passou rapidamente por Mephis, deixando o gabinete que tinha sido o seu lar na ultima década, deixando para trás o seu preocupado filho demónio-morto.

 

                         CAPÍTULO 2

No crepúsculo outonal, Saetan observou o Santuário, um lugar esquecido e em desmoronamento, repleto de memórias e de pequenos bichos, o que lhe trazia alguma vida. Ainda assim, no interior deste lugar desfeito, encontrava-se um Altar das Trevas, um dos treze Portões que ligavam os Reinos de Terreille, de Kaeleer e do Inferno.

O Altar de Cassandra.

Encoberto por um escudo de visão e por um escudo psíquico Negro, Saetan coxeou pelas divisões exteriores desertas, roçando poças de água que ficaram após uma trovoada vespertina. Um rato, à cata de comida entre as pedras caídas, não detectou a sua presença. A Feiticeira que habitava neste labirinto de divisões também não o iria pressentir. Apesar de ambos usarem Jóias Negras, a força de Saetan era um pouco mais obscura, um pouco mais profunda do que a dela.

Saetan deteve-se à porta de um quarto. As cobertas da cama pareciam relativamente novas bem como as pesadas cortinas corridas sobre as janelas. Eram necessárias para o descanso da Feiticeira durante as horas diurnas.

No início da meia-vida, os corpos dos Guardiões conservam a maior parte das capacidades dos vivos. Ingerem comida como os vivos, bebem sangue como os demónios-mortos e podem caminhar à luz do dia, embora prefiram o lusco-füsco e a noite. Com o passar dos séculos, a necessidade de alimentos diminui até já só precisarem de yarbarah, o vinho de sangue. A preferência pela escuridão torna-se uma obrigatoriedade uma vez que a luz do dia provoca dores físicas debilitantes.

Encontrou-a na cozinha, trauteando desafinadamente, a retirar um copo de vinho do armário. O vestido disforme, cor de lama, tinha laivos de sujidade. O longo cabelo entrançado, desvanecido num tom vermelho velho, estava coberto por teias de aranha. Ao virar-se de frente para a porta, ainda sem dar conta da presença de Saetan, o reflexo do lume suavizou a maioria das rugas do seu rosto, as rugas que ele sabia existirem pois estavam no retraio pendurado no seu gabinete privado, o retraio que tão bem conhecia. Tinha envelhecido desde a morte que não foi morte.

Mas também ele tinha envelhecido.

Deixou cair o escudo de visão bem como o escudo psíquico.

O copo de vinho estilhaçou-se no chão.

— A praticar Arte caseira, Cassandra? — Perguntou calmamente, lutando para reprimir um sentimento avassalador de traição. Afastou-se de Saetan. — Devia ter percebido que ela te diria.

— Sim, devias ter percebido. Também devias saber que eu viria. — Jogou a capa para cima de uma cadeira de madeira, sinistramente divertido pela forma como os olhos esmeralda de Cassandra se arregalaram ao perceber o quão pesadamente se apoiava na bengala. — Estou velho, Senhora. Completamente inofensivo.

— Nunca foste inofensivo — disse causticamente.

— É verdade, mas nunca te importaste com isso quando eu tinha uma serventia para ti. — Cassandra não respondeu e Saetan desviou o olhar. — Odiavas-me assim tanto?

Cassandra aproximou-se. — Nunca te odiei, Saetan. Eu... — tinha medo de ti.

As palavras pairaram entre eles, por proferir.

Cassandra fez desaparecer o copo de vinho partido. — És servido de um copo de vinho? Não tenho yarbarah, mas tenho um tinto aceitável.

Saetan acomodou-se numa cadeira junto à mesa em pinho. — Porque é que agora não bebes yarbarah?

Cassandra posou uma garrafa e dois copos de vinho na mesa. — Aqui é difícil de adquirir.

— Vou mandar-te algumas garrafas.

O primeiro copo de vinho foi bebido em silêncio.

— Porquê? — perguntou Saetan, por fim.

Cassandra brincava com o copo de vinho. — As Rainhas de Jóia Negra são raras e distantes no tempo. Quando eu me tornei Feiticeira não existia ninguém para me ajudar, ninguém com quem falar, ninguém que me auxiliasse na preparação para as alterações drásticas na minha vida após ter realizado a Dádiva. — Riu-se sem graça. — Não tinha ideia do que significava ser Feiticeira. Não queria que a minha sucessora passasse pelo mesmo.

— Podias ter-me contado que pretendias tomar-te uma Guardiã em vez de simulares a derradeira morte.

— E terias ficado como o Consorte leal e fiel de uma Rainha que já não necessitava de um?

Saetan voltou a encher os copos. — Poderia ter sido um amigo. Ou poderias ter-me dispensado da tua corte, se era isso que pretendias.

— Dispensar-te? A ti? Tu eras... és... Saetan, o Príncipe das Trevas, Senhor Supremo do Inferno. Ninguém te pode dispensar. Nem mesmo a Feiticeira.

Saetan olhou-a fixamente. — Maldita sejas — disse amargamente.

Cassandra, aborrecida, afastou uma madeixa de cabelo que lhe tinha caído sobre o rosto. — Está feito, Saetan. Foi há uma eternidade. Agora temos que pensar na criança.

Saetan observou o lume na lareira. Cassandra tinha direito à sua própria vida e com certeza não era responsável pela dele, todavia, não compreendia - ou não queria compreender - o significado que aquela amizade poderia ter tido para Saetan. Mesmo que nunca mais a voltasse a ver, o facto de saber da sua existência poderia ter preenchido algum do vazio. Teria Saetan desposado Hekatah se não se sentisse tão desesperadamente só?

Cassandra entrelaçou os dedos à volta do copo. — Viste-a?

Saetan pensou no seu gabinete e bufou. — Sim, vi-a.

— Vai tornar-se Feiticeira. Tenho a certeza.

— Vai tornar-se? — Os olhos dourados de Saetan semicerraram-se. — O que é que queres dizer com “vai tornar-se”? Estamos a falar da mesma criança, Jaenelle?

— Claro que estamos a falar de Jaenelle — ripostou Cassandra.

— Ela não “vai tornar-se Feiticeira, Cassandra. Ela já é Feiticeira. Cassandra abanou a cabeça energicamente. — Não é possível. A Feiticeira usa sempre as Jóias Negras.

— Assim como a filha da minha alma — afirmou Saetan, com uma calma extrema.

Levou um momento até perceber. Quando percebeu, ergueu o copo de vinho com as mãos trémulas e esvaziou-o. — C.. .como é que tu...

— Mostrou-me as Jóias que lhe foram oferecidas. Um conjunto completo de Jóias “mais claras” em bruto - e esta foi a primeira vez que ouvi alguém referir-se à Ébano-Acinzentada como uma Jóia clara — e de treze Negras em bruto.

O rosto de Cassandra ficou arroxeado. Saetan esfregou-lhe as mãos geladas, preocupado pela comoção que vislumbrou nos seus olhos. Cassandra tinha sido a primeira a ver a criança na teia entrelaçada. Tmha sïào ela que lhe tinha contado. Teria Cassandra somente visto a Feiticeira sem compreender o que estava para vir?

Saetan lançou um feitiço de aquecimento à sua capa, enrolando-a à volta de Cassandra. Seguidamente, aqueceu outro copo de vinho sobre uma pequena labareda de fogo encantado. Quando os dentes de Cassandra deixaram de tiritar de frio, regressou à sua cadeira.

Os olhos esmeralda de Cassandra fizeram a pergunta que não conseguiu verbalizar.

— Lorn — disse calmamente. — Foi Lorn quem lhe deu as Jóias.

Cassandra estremeceu. — Mãe Noite. — Abanou a cabeça. — Não deveria ser assim, Saetan. Como iremos controlá-la?

A mão de Saetan fez um movimento súbito ao encher de novo o copo. O vinho espalhou-se pela mesa. — Não a controlamos. Nem sequer iremos tentar.

Cassandra bateu com a palma da mão na mesa. — É uma criança! Demasiado jovem para compreender tal poder e sem preparação emocional para aceitar as responsabilidades que esse poder acarreta. Nesta idade, está extremamente receptiva a influências.

Por pouco não lhe perguntou quais as influências que temia, mas o rosto de Hekatah surgiu-lhe repentinamente na mente. Encantadora, charmosa, intriguista, malvada Hekatah, que casou com Saetan apenas porque julgava que ele a tornaria, pelo menos, na Sacerdotisa Suprema de Terreille ou, provavelmente, na influência feminina dominante dos três Reinos. Quando se recusou a ceder aos seus desejos, Hekatah tentou por si própria, causando a guerra entre Terreille e Kaeleer, uma guerra que deixou Terreille devastado durante séculos e que foi a razão pela qual muitas das raças de Kaeleer tinham impedido o acesso de estranhos às suas terras, nunca mais se ouvindo falar nem se voltando a ver essas raças.

Se Hekatah deitasse as garras a Jaenelle e se moldasse a menina à sua imagem ávida e ambiciosa...

— Tens de a controlar, Saetan — afirmou Cassandra, observando-o. Saetan abanou a cabeça. — Mesmo se estivesse disposto a isso, creio que não conseguiria. Â volta dela existe uma névoa suave, uma bruma delicada, fria e obscura. Mesmo sendo tão jovem, creio que não iria gostar de descobrir o que j az por detrás sem que ela me convidasse. — Incomodado pela forma como Cassandra continuava a fulminá-lo com o olhar, Saetan olhou à volta da cozinha e reparou num desenho primitivo pregado à parede. — Onde é que foste buscar aquilo?

— O quê? Oh, a Jaenelle deixou-o há alguns dias e pediu-me para o guardar. Parece que estava a brincar na casa de uma amiga e não quis levar o desenho para casa. — Ajeitou os cabelos rebeldes que teimavam em sair da trança. — Saetan, disseste que há uma suave névoa à sua volta. Ao redor de Beldon Mor também existe uma bruma.

Saetan franziu o sobrolho. Porque é que havia de se importar com o tempo que fazia numa qualquer cidade? Aquele desenho continha uma resposta, se ele a conseguisse deslindar.

— Uma bruma psíquica — acrescentou Cassandra, batendo com os nós dos dedos na mesa, — que afasta demónios e Guardiões.

Saetan ficou repentinamente interessado. — Onde fica Beldon Mor?

— Em Chaillot. É uma ilha a oeste daqui. Podes vê-la na colina que fica por trás do Santuário. Beldon Mor é a capital. Creio que é aí que Jaenelle vive. Tentei encontrar uma forma de...

Tinha agora toda a atenção de Saetan. — Estás doida? — Passou os dedos pelo espesso cabelo negro. — Se ela se esforçou tanto para manter a privacidade, porque é que a estás a tentar invadir?

— Devido ao que ela é — disse Cassandra, entre dentes. — Julgava que seria óbvio.

— Não invadas a sua privacidade, Cassandra. Não lhe dês uma razão para não confiar em ti. E a razão para tal também deveria ser óbvia.

Passaram alguns minutos de silêncio tenso.

A atenção de Saetan voltou a centrar-se no desenho. Uma utilização criativa de cores vivas, mesmo que não conseguisse entender o que representavam. Como é que uma criança capaz de criar borboletas, de mover uma estrutura do tamanho do Paço e de construir um escudo psíquico que mantinha afastados somente seres de tipos específicos poderia ser tão inábil em Arte básica?

— É tosco — murmurou Saetan, à medida que os seus olhos se arregalavam.

Cassandra levantou os olhos, aborrecida. — É uma criança, Saetan. Não podes esperar que tenha o treino ou o controlo motor...

Guinchou quando Saetan lhe agarrou o braço. — É isso mesmo! Para Jaenelle, fazer algo que exija um consumo enorme de energia psíquica é como dar-lhe uma grande folha de papel e lápis de cor que ela possa agarrar. As pequenas coisas, o básico pelo qual habitualmente começamos visto não exigir tanta força, são como pedir-lhe que utilize um pincel de um único pêlo. Ainda não possui o controlo, físico ou mental, para as realizar. — Deixou-se cair na cadeira, exultante.

— Excelente — exclamou Cassandra, sarcasticamente. — Não consegue mover mobília num quarto mas consegue destruir um continente por completo.

— Nunca o fará. Não é essa a sua índole.

— Como podes ter a certeza? Como irás controlá-la?

Voltaram ao mesmo.

Saetan agarrou a capa e colocou-a sobre os ombros. — Não a vou controlar, Cassandra. Ela é a Feiticeira. Nenhum macho tem o direito de controlar a Feiticeira.

Cassandra examinou-o. — Assim sendo, o que irás fazer? Saetan alcançou a bengala. — Amá-la. Terá de ser suficiente.

— E se não for?

— Terá de ser. — Deteve-se à porta da cozinha. — Posso visitar-te de vez em quando?

O sorriso de Cassandra não chegou bem aos olhos. — É o que os amigos fazem.

Deixou o Santuário extasiado e magoado. Tinha amado Cassandra de todo o coração, mas não tinha qualquer direito de lhe pedir o que quer que fosse, excepto o que o Protocolo estipulava que um Príncipe dos Senhores da Guerra podia pedir a uma Rainha.

Além do mais, Cassandra era o seu passado. Jaenelle, que as Trevas o ajudassem, era o seu futuro.

 

Saindo do Vento Negro, Saetan surgiu num pátio exterior onde existia uma das teias de desembarque oficial da Fortaleza, que estava gravada na pedra com uma Jóia clara ao centro. As Jóias mais claras serviam como faróis para quem caminhava nos Ventos - uma espécie de vela de boas-vindas na janela - e cada teia de desembarque tinha uma. Era a única utilização alguma vez encontrada para essas Jóias.

Apoiando-se na bengala, Saetan claudicou pelo pátio vazio até às enormes portas em aço embutidas na própria montanha, tocou a sineta e aguardou para entrar na Fortaleza, na Montanha Negra, Ebon Askavi, onde os Ventos se reúnem. Era aqui o arquivo da história dos Sangue bem como um santuário para os Sangue com as Jóias mais escuras. Era também o covil privado da Feiticeira.

As portas abriram-se, em silêncio. Geoffrey, o historiador/bibliotecário da Fortaleza, aguardava-o do outro lado. — Senhor Supremo. — Geoffrey fez uma pequena vénia como cumprimento.

Saetan devolveu a vénia. — Geoffrey.

— Há já muito tempo que não visitáveis a Fortaleza. A vossa ausência foi sentida.

Saetan bufou levemente, os lábios formaram um sorriso sarcástico e ligeiro. — Por outras palavras, não tenho sido necessário ultimamente.

— Por outras palavras — Geoffrey concordou, sorrindo. Caminhando ao lado de Saetan, os olhos negros de Geoffrey olharam de relance para a bengala. — Pois aqui estais.

— Preciso da tua ajuda. — Saetan olhou para o rosto pálido do Guardião, de um branco puro e perturbador em combinação com os olhos pretos, as sobrancelhas pretas como uma penugem, o cabelo negro com uma crista de viúva vincada, a túnica e as calças pretas e os lábios vermelho sangue mais sensuais que Saetan alguma vez vira, quer fosse em homem ou em mulher. Geoffrey era o último da sua raça, uma raça desaparecida há tanto tempo que já ninguém se lembrava quem eram. Já era muito velho quando Saetan chegou à Fortaleza como Consorte de Cassandra. Nessa altura, tal como agora, já era o historiador e o bibliotecário da Fortaleza. — Preciso de pesquisar algumas das lendas antigas.

— Lorn, por exemplo?

Saetan parou bruscamente.

Geoffrey virou- se, os olhos pretos cautelosamente neutros.

— Viste-a — disse Saetan, uma ponta de ciúmes na voz.

— Vimo-la.

— Draca também? — Saetan sentiu um aperto no peito ao imaginar Jaenelle a enfrentar a Senescal da Fortaleza. Draca já era vigilante e supervisora de Ebon Askavi muito, muito antes de Geoffrey chegar. Ainda era ela que servia a Fortaleza, era ela quem se encarregava de garantir o conforto dos eruditos que aqui vinham estudar, das Rainhas que procuravam um lugar obscuro para repousar. Era de tal forma reservada que se tornava insensível, usando essa insensibilidade como defesa contra aqueles que se arrepiavam ao se depararem com uma figura humana com uma ascendência réptil inequívoca. A insensibilidade como defesa do coração era algo que Saetan compreendia demasiadamente bem.

— São grandes amigas — disse Geoffrey ao caminharem pêlos corredores sinuosos. — Draca ofereceu-lhe um quarto de hóspedes até os aposentos da Rainha estarem prontos. — Abriu a porta da biblioteca. — Saetan, ireis ensiná-la, não ireis?

Detectando algo de estranho na voz de Geoffrey, Saetan voltou-se com muita da sua antiga graciosidade. — Opões-te? — Reprimiu de imediato a rispidez na sua voz ao ver a inquietação nos olhos de Geoffrey.

— Não — Geoffrey sussurrou, — não me oponho. Estou... aliviado. — Indicou os livros ordenadamente empilhados numa das extremidades da mesa em madeira escura. — Retirei aqueles, antecipando a vossa visita, mas existem outros volumes, alguns são textos muito antigos, que retirarei da próxima vez. Julgo que ireis necessitar deles.

Saetan acomodou-se numa cadeira em couro junto à mesa em madeira escura e aceitou com gratidão o copo de yarbarah que Geoffrey lhe ofereceu. Doía-lhe a perna. Não estava em condições de andar tanto.

Retirou o primeiro livro da pilha e abriu-o na página onde se encontrava o primeiro marcador. Lorn. — Antecipaste, realmente.

Geoffrey sentou-se na extremidade oposta da mesa e começou a examinar outros livros. — Algumas coisas. Nem tudo, certamente. — Trocaram um olhar. — Algo mais que possa verificar por vós?

Saetan engoliu o yarbarah de um só gole. — Sim. Preciso de informações sobre duas feiticeiras chamadas Morghann e Gabrielle. — Começou a ler a entrada respeitante a Lorn.

— Se usam Jóias, estão no registo da Fortaleza.

— Posso dizer com segurança que as encontrarás nas categorias mais escuras — disse Saetan, sem levantar os olhos.

Geoffrey afastou a cadeira. — Em que Territórios?

— Ha? Não faço a mínima ideia. Jaenelle é de Chaillot, por isso começa pêlos Territórios em redor, onde esses nomes sejam usuais.

— Saetan — disse Geoffrey com um humor incomodado, — às vezes sois tão útil como um balde com um furo no fundo. Não me podeis indicar algo mais por onde possa começar?

Desviado da terceira tentativa de ler o mesmo parágrafo, Saetan respondeu secamente — Entre os seis e os oitos anos. Agora vais deixar-me ler?

Geoffrey redarguiu num idioma que Saetan não compreendia, mas não era necessária tradução. — Tenho de verificar o registo da Fortaleza de Terreille, pelo que vai levar algum tempo, mesmo que a vossa informação esteja vagamente correcta. Servi-vos de mais yarbarah.

As horas passaram rapidamente. Saetan leu a última entrada que Geoffrey tinha assinalado, fechou o livro com cuidado e esfregou os olhos. Quando levantou os olhos, deu com Geoffrey a examiná-lo. Nos olhos pretos do bibliotecário havia um olhar estranho. Na mesa, encontravam-se dois registos.

Saetan apoiou o queixo nos dedos unidos. — E então?

— Acertastes nos nomes e nas idades — disse Geoffrey suavemente. O dedo gelado deslizou como um murmúrio ao longo da coluna de Saetan. — E isso quer dizer o quê?

Devagar, quase contra vontade, Geoffrey abriu o primeiro livro no marcador da página. — Morghann. Uma Rainha que usa Violácea de Direito por Progenitura. Tem quase sete anos. Vive no burgo de Maghre na Ilha de Scelt, no Reino de Kaeleer.

— Kaeleer! — Saetan tentou erguer-se de um pulo. A perna cedeu de imediato. — Pêlos Infernos, como é que ela chegou ao Reino das Sombras?

— Provavelmente da mesma forma que chegou ao Reino das Trevas. — Geoffrey abriu o segundo registo, hesitando. — Saetan, ireis ensiná-la bem, não ireis? — Não esperou pela resposta. — Gabrielle. Uma Rainha que usa Opala de Direito por Progenitura. Sete anos. Fortes possibilidades de ser uma Viúva Negra natural. Vive no Reino de Kaeleer, no Território dos Dea al Mon.

Saetan repousou a cabeça nos braços e gemeu. As Crianças da Floresta. Tinha estado com as Crianças da Floresta, a raça mais feroz e mais isolada alguma vez gerada em Kaeleer. — Não é possível — disse, esticando os braços na mesa. — Enganaste-te.

— Não me enganei, Saetan.

— Ela vive em Terreille, não em Kaeleer. Enganaste-te.

— Não me enganei.

Descendo pela coluna, sentiu um murmúrio gelado que lhe congelou os nervos, transformando-se numa adaga fria no estômago. — Não é possível — repetiu Saetan, espaçando as palavras. — Os Dea al Mon jamais permitiram a entrada de alguém no seu Território.

— Pois parece que abriram uma excepção. Saetan abanou a cabeça. — Não é possível.

— Também não o é encontrar-se com Lorn — retorquiu Geoffrey bruscamente. — Também não o é caminhar impunemente por todos os cantos do Inferno. Sim, sabemos disso. Da última vez que nos visitou, o Char acompanhou-a.

— O cabrãozinho — resmoneou Saetan.

— Pedistes-me que encontrasse Morghann e Gabrielle. Encontrei-as. E agora o que ireis fazer?

Saetan fixou o olhar no tecto alto. — O que é que queres que faça, Geoífrey? Retiramo-la da própria casa? Confinamo-la na Fortaleza até atingir a maioridade? — Soltou uma risada forçada. — Como se pudéssemos. A única forma de a confinar seria convencê-la de que não poderia sair, embrutecer-lhe os instintos até já não ter a certeza de nada. Queres ser o canalha responsável por esse esquartejamento emocional? Pois eu não o farei. Pelas Trevas, Geoffrey, o mito vivo chegou e é este o preço exigido para que ela caminhe entre nós.

Geoffrey fechou os registos com cuidado. — Tendes razão, claro, mas... não há nada que possais fazer?

Saetan fechou os olhos. — Ensiná-la-ei. Servi-la-ei. Amá-la-ei. Terá de ser suficiente.

 

Surreal bamboleou-se pela porta da frente da casa da Lua Vermelha de Deje em Beldon Mor, lançou um sorriso ao porteiro de casaco vermelho acastanhado e prosseguiu pela entrada em mármore, coberta de plantas, até alcançar a recepção. Aí, tocou a sineta em bronze que se encontrava no balcão as vezes suficientes para irritar o mais dócil dos temperamentos.

Uma porta com a indicação "Privado" abriu-se repentinamente, surgindo à pressa uma senhora voluptuosa de meia-idade. Ao ver Surreal, o olhar carrancudo desapareceu e os olhos arregalaram-se numa surpresa maravilhada.

— Voltaste, finalmente. — Deje retirou de baixo do balcão uma pilha espessa de pequenos papéis, acenando-os a Surreal. — Pedidos. Todos dispostos a pagar o preço que pediste - e sabemos bem a ladra que és - e todos pretendem uma noite inteira.

Sem lhes pegar, Surreal folheou a pilha de papéis com a ponta do dedo. — Se fosse atendê-los a todos, ficaria aqui durante meses.

Deje inclinou a cabeça. — Seria assim tão mau?

Surreal riu-se, mas os seus olhos verde-dourados deixavam transparecer algo de astuto e de predador. — Nunca conseguiria o valor que peço se os meus — abanou os dedos em direcção aos papéis — amigos julgassem que estaria sempre por aqui. Também iria reduzir a tua margem de lucro.

— Lá isso é verdade — disse Deje, rindo.

— Além disso, — continuou Surreal, metendo o cabelo negro atrás das orelhas delicadamente pontiagudas, — só ficarei aqui algumas semanas e não quero ter uma agenda sobrecarregada. Trabalharei os dias suficientes para pagar o quarto e a alimentação e passarei os dias restantes a ver as vistas.

— Quantos tectos é que queres ver? São as vistas que tens neste ramo.

— Ora, Deje! — Surreal abanou-se com a mão. — Não é, de forma alguma, verdade. Por vezes também vejo os motivos dos lençóis de seda.

— Também podes ir montar a cavalo. — Deje voltou a por os papéis debaixo do balcão. — Ouvi dizer que há carreiros muito agradáveis mesmo à saída da cidade.

— Não, obrigada. Quando tiver terminado, não estarei interessada em montar mais nada. Queres que comece hoje à noite?

Deje afagou o cabelo escuro e muito bem arranjado. — De certeza que alguém que fez uma reserva para hoje estará à altura.

Riram-se uma para a outra.

Deje chamou a si uma pasta fina em pele e retirou um pergaminho de aspecto caro. — Hmm. Casa cheia. E haverá sempre um ou dois que aparecem convencidos de que são demasiado importantes para necessitarem de reserva.

Surreal apoiou os cotovelos no balcão, o rosto entre as mãos. — O teu chefe excelente. Provavelmente só cá vêm pelo jantar.

Deje sorriu maliciosamente. — Tentarei saciar todos os tipos de apetites.

— E se a especialidade acabar, as entradas principais também são saborosas.

Deje riu-se, fazendo tremer o peito que ameaçava saltar para fora do vestido reduzido. — Bem dito. Olha. — Indicou um nome na lista. — Lembro-me de dizeres que não te importas de estar com ele. Deve estar esfomeado, mas aprecia as entradas assim como o prato principal.

Surreal concordou, acenando a cabeça. — Sim, serve perfeitamente. Um dos quartos do jardim?

— Claro. Fiz umas pequenas remodelações desde a última vez que cá estiveste. Creio que irás gostar. Aprecias verdadeiramente estas questões.

- Deje retirou uma chave de um dos pequenos cubos na parede por detrás do balcão. — Este é adequado.

Surreal guardou a chave na mão. — Creio que vou jantar no quarto. Há aqui alguma ementa? Ainda bem. Vou fazer já o pedido.

— Como é que te consegues lembrar das preferências e das aversões de todos, especialmente sendo de tantos sítios e com tantos costumes diferentes?

Surreal fingiu estar ofendida. — Deje. Costumavas andar pêlos quartos antes de te tornares ambiciosa. Sabes perfeitamente que é para isso que servem os livrinhos pretos.

Deje enxotou Surreal do balcão. — Vai lá. Tenho trabalho a fazer e tu também.

Surreal caminhou ao longo do amplo corredor, os olhos perspicazes abrangendo os quartos de ambos os lados. Era verdade. Deje era ambiciosa. Tendo começado por um pacotes de ofertas de clientes satisfeitos, comprou uma mansão e transformou-a na melhor casa da Lua Vermelha do Concelho. E, contrariamente às outras casas, aqui um homem podia descobrir mais do que um corpo quente na cama. Tinha uma pequena sala de jantar recatada que servia iguarias toda a noite; uma sala de recepções na qual aqueles com temperamento artístico ganharam o hábito de se reunir para debater entre eles enquanto petiscavam e bebericavam bom vinho; uma sala de bilhar, na qual os politicamente ambiciosos se reuniam para planear a próxima jogada; uma biblioteca repleta de bons livros e grandes cadeiras de couro; quartos privados, nos quais um homem podia refugiar-se da sua vida diária e ser servido, o que podia significar apenas um bom jantar, uma massagem dada por especialistas e paz e sossego; e, finalmente, os quartos e as mulheres que podiam satisfazer os apetites carnais.

Surreal encontrou o quarto, trancou a porta e olhou vagarosamente à volta, acenando a cabeça em aprovação. Tapetes grossos e macios; paredes brancas com aguarelas de bom gosto; mobília escura; uma cama de dossel de grandes dimensões, envolvida por um tecido muito leve; esferas de música e o suporte em bronze ornamentado que as continha; portas deslizantes em vidro que davam para um jardim murado e privado que tinha uma pequena fonte e delicados salgueiros bem como uma variedade de flores que desabrocham à noite e uma casa de banho com um chuveiro e uma banheira encastrada posicionada em frente à janela com vista para o jardim.

— Muito bom, Deje — exprimiu Surreal serenamente. — Mesmo muito bom.

Instalou-se rapidamente, invocando as roupas de trabalho e pendurando-as cuidadosamente no guarda-fatos. Nunca andava com muita roupa, só o suficiente para satisfazer os diversos apetites em qualquer que fosse o Território onde se encontrasse. A maior parte dos seus haveres estava espalhada numa dúzia de esconderijos por todo o Reino de Terreille.

Surreal reprimiu um arrepio. Era melhor não pensar nesses esconderijos. Com certeza que seria muito melhor não matutar nele.

Abriu as portas de vidro para poder ouvir a fonte e instalou-se numa cadeira, sentando-se sobre as pernas. Surgiram dois livros pretos em pele, ficando a pairar à sua frente. Agarrou num deles, folheou as páginas até à última que se encontrava escrita, invocou uma caneta e escreveu uma nota.

Esse contrato estava terminado. O tolo não demorou muito a morrer, ao contrário do que Surreal desejaria, mas a dor tinha sido intensa. E o pagamento tinha sido muitíssimo bom.

Fez o livro desaparecer e abriu o outro, verificou a entrada de que necessitava, anotou a ementa que pretendia e, com um movimento rápido do pulso, enviou-o para a cozinha. Após fazer desaparecer o segundo livro, levantou-se e espreguiçou-se. Mais um rápido movimento do pulso e logo sentiu o peso familiar do cabo da faca, experimentando um conforto que brilhava na lâmina fina e aguçada. Virando o pulso para o outro lado, fez a faca desaparecer e bateu com as mãos uma na outra. Um só era o suficiente para hoje à noite. Nunca lhe causou qualquer problema. Além do mais - sorriu ao lembrar-se -, tinha sido ela que o tinha ensinado, há quanto tempo? Doze, catorze anos?

Tomou um duche rápido, arranjou o longo cabelo negro de forma a soltá-lo facilmente, maquilhou-se e vestiu um fino vestido dourado esverdeado que ocultava tanto quanto desvendava. Por fim, cerrando os dentes face ao inevitável, dirigiu-se ao espelho de pé e observou o rosto, o corpo que tinha odiado toda a vida.

O rosto era delicadamente esculpido com as maçãs do rosto salientes, um nariz fino e olhos dourado-esverdeados, um pouco grandes demais, que tudo viam e nada revelavam. O corpo esbelto e elegante parecia ilusoriamente delicado mas possuía músculos fortes que Surreal tinha trabalhado ao longo dos anos, garantindo estar sempre em plena forma para a profissão que elegeu. Porém, era a pele beijada pelo sol, morena clara que a fazia resmungar. Pele hayiliana. A pele do seu pai. Poderia passar facilmente por hayiliana se usasse o cabelo solto e óculos escuros para ocultar a cor dos olhos. Os olhos caracterizavam-na como mestiça. As orelhas que formavam uma delicada ponta em bico... essas eram as orelhas de Titian.

Titian, que descendia de uma raça que Surreal nunca tinha encontrado nas suas viagens por Terreille. Titian, que tinha sido quebrada pela espada de Kartane SaDiablo. Titian, que tinha escapado e se tinha prostituído como forma de se sustentar para que Kartane não a pudesse encontrar e destruir a criança que carregava. Titian, que foi encontrada um dia com a garganta cortada e foi enterrada numa campa sem identificação.

Todos os assassínios, todos aqueles homens que iam ao encontro da própria morte planeada, eram ensaios gerais para o parricídio. Um dia, iria encontrar Kartane no sítio certo, na altura certa e iria vingar Titian.

Surreal virou-se de costas para o espelho e esforçou-se por colocar as memórias de lado. Ao ouvir um leve batimento na porta, colocou-se no centro do quarto para que fosse a primeira visão de que o seu convidado fruísse ao entrar. E, ao vê-lo, planearia o serão em consonância.

Mediante a Arte, abriu a porta antes do convidado girar a maçaneta, deixando as gavinhas de sedução emanarem como um perfume exótico. Abriu os braços e sorriu ao mesmo tempo que a porta se trancava por detrás dele.

Dirigiu-se a Surreal apressadamente, transbordando carência, a Jóia Cinzenta ao pescoço em chamas. Deteve-o colocando-lhe as mãos no peito e acariciou-o suavemente. Com uma respiração ofegante, o convidado cerrava e abria as mãos sem lhe tocar.

Satisfeita, Surreal deslizou até à pequena mesa junto às portas envidraçadas e enviou um pensamento para a cozinha. Pouco depois, surgiram dois copos gelados e uma garrafa de vinho. Serviu o vinho, ofereceu-lhe um copo e levantou o dela numa saudação. — Philip.

— Surreal. — A voz soou enrouquecida, dolorida.

Surreal bebericou o vinho. — O vinho não é do teu agrado?

Philip bebeu metade do copo de um só gole.

Surreal ocultou o sorriso. Quem é que ele desejaria realmente e não podia possuir? Quem é que fingiria que ela era quando fechava as cortinas e desligava todas as luzes para poder satisfazer a luxúria agarrando-se às ilusões?

Surreal continuou a refeição vagarosamente, deixando que Philip a consumisse com os olhos ao mesmo tempo que bebia o vinho e saboreava os acepipes. Como sempre, falava com ela de um modo obscuro e labiríntico, dizendo mais do que se apercebia ou do que pretendia.

Philip Alexander, Príncipe de Jóia Cinzenta. Um homem honesto com cabelo amarelo-avermelhado e olhos cinzentos honestos e inquietos. Meio-irmão de Robert Benedict, um recente jogador político desde que se tinha ligado a Hayll, a... Kartane. Robert usava apenas a Amarela, e mesmo assim conseguida com dificuldade, contudo, era o filho legítimo, com direito aos bens e à fortuna do pai. Philip, dois anos mais novo e nunca reconhecido formalmente, tinha sido criado como um acessório de Robert. Cansado de desempenhar o papel de bastardo agradecido, rompeu com a família tornando-se acompanhante/consorte de Alexandra Angelline, a Rainha de Chaillot.

Um envenenamento cultural subtil levado a cabo durante duas gerações tinha permitido que os machos dos Sangue de Chaillot distorcessem o domínio matriarcal tornando-o algo contranatura, tendo arrancado o controlo do Território às Rainhas, o que tornava Alexandra não mais do que uma testa-de-ferro, embora fosse ainda a Rainha de Chaillot e usasse uma Jóia Opala. Um pouco estranho. Bem, invulgar. Corria o burburinho de que ainda mantinha contacto com as assembleias da Ampulheta, pese embora as Viúvas Negras tivessem sido banidas pêlos machos dos Sangue no poder. Tinha uma filha, Leiand, que era a esposa de Robert Benedict. Viviam todos juntos na propriedade dos Angelline em Beldon Mor. Encenou o jantar enquanto pôde antes de passar a jogada para a cama. Um Príncipe de Jóia Cinzenta privado de prazer há muito poderia ser um companheiro involuntariamente rude, mas tal não a preocupava. Surreal também usava a Cinzenta, mas nunca neste trabalho. Usava sempre a Verde de Direito por Progenitura ou nem sequer usava qualquer Jóia, permitindo que os clientes sentissem que tinham o controlo. Ainda assim, hoje Philip não se importava de uma abordagem um pouco grosseira, sendo um dos poucos homens que conhecia na sua segunda profissão que realmente pretendiam oferecer, bem como receber, prazer.

Sim, Philip era uma boa forma de começar esta estadia. Surreal diminuiu as chamas das velas, obscurecendo o quarto. Agora Philip não estava apressado. Tocava, apreciava, saboreava. E Surreal, orientando com subtileza, deixou-o fazer o que tinha vindo fazer.

Já era madrugada quando Philip se vestiu e se despediu, beijando-a. Surreal fixou o olhar no dossel em escumilha. Valeu o que pagou e ainda mais. E tinha sido uma agradável distracção das memórias que ultimamente a assolavam, que eram a razão pela qual tinha vindo a Chaillot. Memórias de Titian, de Tersa... do Sádico.

Surreal tinha dez anos quando, uma tarde, Titian trouxe Tersa para casa, aconchegando a desmazelada feiticeira na sua própria cama. Nos escassos dias que a Viúva Negra enlouquecida passou com elas, Titian passou horas a ouvir a linguagem incompreensível de Tersa intervalada por estranhos gracejos e provérbios enigmáticos.

Uma semana após Tersa ter partido, regressou com o homem mais belo e mais insensível que Surreal alguma vez tinha visto. O primeiro Príncipe dos Senhores da Guerra que alguma vez tinha conhecido. Nada disse, permitindo que Tersa tagarelasse enquanto observava Titian, enquanto cauterizava com o olhar a criança que tremia ao lado da sua mãe.

Por fim, Tersa parou de falar e puxou a manga do homem. — A criança é Sangue e devia aprender a Arte. Tem o direito de usar as Jóias se for suficientemente forte. Por favor, Daemon.

Os olhos dourados de Daemon semicerraram-se ao chegar a uma decisão. De uma carteira que se encontrava no bolso interior do casaco, retirou várias notas de cem marcos, colocando-as com cuidado na mesa. Invocou uma folha de papel e uma caneta, escreveu algumas palavras e colocou o papel e uma chave sobre as notas.

— O sítio não é fino mas é quentinho e limpo. — A voz profunda e sedutora transmitiu um delicioso arrepio a Surreal. — É apenas a alguns quarteirões daqui, num bairro onde ninguém faz perguntas. Estão aí os nomes de dois possíveis tutores para a rapariga. São bons homens que não caíram nas boas graças dos que detêm o poder. Podem fazer uso da habitação pelo tempo que quiserem.

— Qual é o preço? — Sentia-se o gelo na voz suave de Titian.

— Que não neguem a Tersa o acesso ao local sempre que ela se encontre nesta parte do Reino. Não farei uso da habitação enquanto lá estiverem, porém. Tersa terá de poder usar o refugio que adquiri para ela.

Assim ficou combinado e, alguns dias mais tarde, Surreal e Titian já estavam no primeiro lugar decente que a rapariga alguma vez conhecera. O senhorio, transparecendo um ligeiro tremor de medo na voz, informou-as de que a renda estava paga. As notas de cem marcos destinaram-se a comida e roupas quentes e Titian ficou grata por nunca mais ter de permitir que um homem atravessasse a sua soleira.

Na Primavera seguinte, quando Surreal fazia os primeiros progressos com os seus tutores, Tersa regressou e levou Surreal ao Santuário mais próximo para a Cerimónia de Direito por Progenitura. Surreal voltou, exibindo com orgulho uma Verde em bruto. Com lágrimas nos olhos, Titian envolveu a Jóia zelosamente num tecido macio e guardou-a numa caixa em madeira com estranhos entalhes.

— Uma Jóia em bruto é rara, Irmãzinha — Titian disse, retirando algo da caixa. — Aguarda até saberes quem és antes de a embutires. Nessa altura, será mais do que um recipiente para o poder que o teu corpo não consegue reter, será uma afirmação do que és. Entretanto — enfiou uma corrente em prata pela cabeça de Surreal —, esta ajudar-te-á a começar. Foi minha, em tempos. Tu não és uma criança da lua, o ouro está mais de acordo contigo. Contudo, é o primeiro passo de uma longa caminhada.

Surreal observou a Jóia Verde. A armação em prata estava cinzelada com a forma de dois veados que se dobravam ao redor da Jóia, os chifres entrelaçados no topo, ocultando o anel no qual a corrente fechava. Enquanto estudava a Jóia, o sangue cantou-lhe nas veias, um chamamento débil que não conseguia localizar.

Titian observou-a. — Se alguma vez encontrares o meu povo, irão reconhecer-te por essa Jóia.

— Porque é que não os podemos ir ver?

Titian abanou a cabeça e afastou-se.

Aqueles dois anos foram bons para Surreal. Passava os dias com os tutores, um deles ensinava-lhe a Arte, enquanto o outro lhe transmitia todas as disciplinas básicas de uma educação geral. À noite, Titian ensinava-lhe coisas diferentes. Mesmo quebrada, Titian era hábil com a faca e sentia-se nela uma crescente inquietação, como se aguardasse algo que a tornava inflexível na instrução e nos exercícios.

Um dia, tinha Surreal doze anos, ao regressar a casa encontrou a porta da habitação entreaberta; Titian jazia no quarto da frente com a garganta cortada, o punhal com cabo de chifre próximo dela. As paredes palpitavam de violência e raiva... e avisavam para que corresse, corresse, corresse.

Surreal hesitou um momento antes de correr para o quarto de Titian e remover do respectivo esconderijo a caixa entalhada com a Jóia que lhe pertencia. De um tropeção súbito, apanhou rapidamente o punhal do chão e fê-lo desaparecer, bem como à caixa, tal como tinha sido instruída. Foi então que desatou a correr, deixando Titian, e quem quer que as andasse a perseguir, para trás.

Titian tinha completado há pouco vinte e cinco anos.

Menos de uma semana após a morte da mãe, Surreal foi atravessada por uma lança pela primeira vez. Lutando sem esperança, viu-se a si própria a cair por um longo e obscuro túnel, o seu fio no abismo. Ao nível da Verde encontrava-se uma teia reluzente que se estendia ao longo do túnel. À medida que caía nessa direcção, sem controlo, à medida que a dor de ser penetrada inundava as paredes de vermelho, Surreal recordou-se de Tersa, recordou-se de Titian. Caso alcançasse a sua teia interior estando descontrolada, despedaçá-la-ia e regressaria ao mundo real como uma sombra de si, para sempre consciente e em constante sofrimento pela perda da Arte e do que poderia ter sido.

A recordação de Titian deu-lhe a força interior para lutar contra as estocadas que pareciam não ter fim, cada golpe impelindo-a para mais próximo da teia interior. Aguentou-se, lutando com todo o coração. Quando os golpes pararam... quando finalmente acabou... Surreal estava praticamente a um palmo da destruição.

A sua mente aninhou-se aí, exausta. Quando o homem saiu, forçou-se a ascender. A dor física era horrenda e os lençóis estavam ensopados com o seu próprio sangue, no entanto, estava intacta da maneira mais importante. Ainda usava as Jóias. Ainda era uma feiticeira.

No espaço de um mês, matou pela primeira vez.

Era como todos os outros, levou-a para um quarto hediondo, utilizou o seu corpo e pagou-lhe com um marco de cobre que mal lhe daria para comprar a comida suficiente para o dia seguinte. O ódio pêlos homens que a usavam, e o de Titian antes dela, transformou-se em gelo. Assim, quando os impulsos se tornaram mais intensos, quando arqueou as costas e o peito se ergueu à sua frente, Surreal invocou o punhal de cabo de chifre e apunhalou-o no coração. A força de vida do homem foi bombeada para ela ao mesmo tempo que o sangue da vida se derramava.

Mediante a Arte, Surreal empurrou o corpo pesado de cima dela. Este não lhe iria bater ou recusar-se a pagar. Era entusiasmante.

Durante três anos deambulou pelas ruas, o corpo de criança e o aspecto invulgar como um chamariz para os mais sórdidos. No entanto, a sua destreza com a faca não era desconhecida e era do conhecimento geral nas ruas de que um homem sensato pagaria adiantado a Surreal.

Três anos. Até que um dia, quando tentava passar por um beco que já tinha sondado para se certificar de que estava vazio, sentiu alguém por detrás de si. Rodopiou sobre si própria, o punhal na mão, ficando a olhar espantada para Daemon Sadi que se encontrava encostado à parede, a observá-la. Sem pensar, desatou a correr pelo beco para fugir dele e esbarrou contra um escudo psíquico que a reteve até que a mão de Daemon lhe prendeu o pulso. Nada disse. Simplesmente, apanhou os Ventos, puxando-a com ele. Nunca tendo viajado numa dessas Teias psíquicas, Surreal agarrou-se a Daemon, desorientada.

Uma hora mais tarde, estava sentada a uma mesa de cozinha numas águas-furtadas mobiladas noutra parte do Reino. Tersa pairava sobre ela, encorajando-a para que comesse, enquanto Daemon bebia vinho e a observava.

Demasiado nervosa para comer, Surreal atirou-lhe as palavras. — Sou uma prostituta.

— Não és lá muito boa nisso — respondeu Daemon, calmamente.

Encolerizada, Surreal insultou-o com todas os palavrões que conhecia.

— Estás a ver o que quero dizer? — perguntou, rindo-se, quando por fim Surreal se calou.

— Serei o que sou.

— És uma criança de sangue misto. Metade Sangue hayiliano. — Brincou com o copo. — O povo da tua mãe vive... quanto?... cem, duzentos anos? Tu podes chegar a dois mil ou mais. Queres passar esses anos a comer restos nos becos e a dormir em quartos nojentos? Existem outras formas de fazer o que fazes - por melhores quartos, melhor comida, melhor pagamento. Terias de começar como aprendiz, é claro, mas conheço um sítio onde te aceitarão e te darão uma boa formação.

Daemon passou vários minutos a escrever uma lista. Quando terminou, empurrou-a para a frente de Surreal. — Uma mulher que teve uma educação deverá poder passar mais tempo sentada numa cadeira do que deitada de costas. Uma vantagem razoável, creio.

Surreal olhou fixamente para a lista, apreensiva. Ali estavam as disciplinas esperadas - literatura, línguas, história - e, no final da página, uma lista de habilidades mais apropriadas à faca do que ao sexo pago.

Enquanto Tersa arrumava a mesa, Daemon levantou-se da cadeira e inclinou-se sobre Surreal, o peito a roçar-lhe as costas, a sua respiração quente a provocar-lhe cócegas nas orelhas pontiagudas. — Subtileza, Surreal — sussurrou. — A subtileza é uma grande arma. Existem outras formas de cortar a garganta a um homem sem necessidade de inundar as paredes com o seu sangue. Se continuares por esse caminho, irão descobrir-te, mais cedo ou mais tarde. Um homem pode morrer de variadíssimas formas. — Soltou um riso abafado, deixando transparecer uma maldade profunda. — Alguns homens morrem por falta de amor... outros morrem por causa dele. Pensa nisso.

Surreal foi para a casa da Lua Vermelha. A directora e as outras mulheres ensinaram-lhe as artes da alcova. O restante aprendeu tranquilamente por si própria. Em dez anos, tornou-se na prostituta mais bem paga da casa - e os homens começaram também a negociar as suas outras competências.

Viajava por Terreille, oferecendo os seus préstimos à melhor casa da Lua Vermelha da cidade onde se encontrasse e aceitando, cautelosamente, contratos para a sua outra profissão, que achava mais estimulante – e que lhe proporcionava mais prazer. Trazia sempre com ela um conjunto de chaves de casas de cidade, apartamentos, águas-fürtadas - alguns destes sítios nas zonas mais caras das localidades, outras em ruas calmas e isoladas, onde ninguém fazia perguntas. Por vezes, encontrava-se com Tersa e prestava-lhe os cuidados de que necessitava.

E por vezes, dava consigo a partilhar um local com Sadi, quando ele conseguia escapar-se da corte onde estava a servir, para passar um serão tranquilo. Foram bons tempos para Surreal. Quando lhe apetecia falar, Daemon revelava possuir vastos conhecimentos e, quando Surreal tagarelava, os seus olhos dourados encerravam sempre o regozijo controlado de um irmão mais velho.

Ao longo de quase trezentos anos, iam e vinham, à vontade um com o outro. Até à noite em que, já um pouco embriagada, bebeu uma garrafa de vinho enquanto o observava a ler um livro. Daemon estava instalado despreocupadamente numa cadeira, a camisa desabotoada até meio, os pés descalços numa almofada de apoio, o cabelo preto invulgarmente desgrenhado.

— Estava a pensar — disse Surreal, lançando-lhe um sorriso tolo. Daemon levantou os olhos do livro, uma sobrancelha a erguer-se ao mesmo tempo que um sorriso começava a curvar-lhe os cantos da boca.

— Estavas a pensar?

— Curiosidade profissional, tens de compreender. Falam sobre ti nas casas da Lua Vermelha, sabes?

— Falam?

Surreal não deu conta do arrefecimento súbito da sala ou da alteração da cor dos olhos de dourado para um tom amarelo-escuro e vítreo. Não reconheceu a perigosa delicadeza na sua voz. Limitou-se a sorrir para ele. — Vá lá, Sadi, seria realmente um grande trunfo, em termos de carreira. Não há uma prostituta no Reino que saiba em primeira mão o que significa ser satisfeita pelo...

— Tem cuidado com o que pedes. Pode realizar-se.

Surreal soltou uma gargalhada e arqueou as costas, os mamilos salientes através do fino tecido da blusa. Somente quando Daemon se desenrolou da cadeira com uma rapidez de predador e a pressionou contra ele, prendendo-lhe as mãos atrás das costas, é que Surreal se apercebeu do perigo de o provocar. Puxando-lhe o cabelo até ficar com lágrimas nos olhos, forçou-a a levantar a cabeça. Apertou-lhe os pulsos com mais força até Surreal choramingar de dor. E a seguir, beijou-a.

Esperava um beijo brutal, por isso a ternura, a suavidade com que os lábios de Daemon se encostaram aos dela, assustaram-na muito mais. Não sabia o que pensar, o que sentir, pois as mãos dele continuavam a magoá-la deliberadamente enquanto a sua boca se revelava tão generosa, tão persuasiva. Quando por fim a levou a abrir a boca, cada suave carícia da língua provocava-lhe um impulso escaldante entre as pernas. Quando Surreal já não aguentava mais, Daemon levou-a para o quarto.

Despiu-a com uma lentidão exasperante, as suas longas unhas num sussurro sobre a pele trémula de Surreal, ao mesmo tempo que a beijava e lambia e retirava a roupa. Era uma doce tortura.

Após tê-la despido completamente, aliciou-a para a cama. Cordas psíquicas prenderam-lhe os pulsos e puxaram-lhe os braços sobre a cabeça. Cordas à volta dos tornozelos abriram-lhe as pernas. Daemon manteve-se ao lado da cama e Surreal começou a aperceber-se da ira gélida e implacável a serpentear à sua volta... e de uma brisa suave e controlada, um vento de Primavera, ainda misturado com o frio cortante do Inverno, que percorria o seu corpo, acariciando-lhe o peito, a barriga, percorrendo os pêlos negros da púbis, entre as pernas, exactamente antes de se dividir para percorrer em simultâneo a zona interna das coxas, circundando os pés, subindo pela parte externa das pernas, passando pelas costelas e envolvendo o pescoço para, então, começar de novo.

Continuou, uma e outra vez, até Surreal já não aguentar a provocação, até ficar desesperada por qualquer tipo de toque que a libertasse.

— Por favor — gemeu, tentando livrar-se da impiedosa carícia.

— Por favor, o quê? — Daemon despiu lentamente a roupa. Surreal observou-o avidamente, os olhos vidrados a aguardar a visão da prova do prazer de Daemon. O choque ao ver o Anel de Obediência num órgão completamente flácido, fê-la aperceber-se de que a ira que rodopiava à sua volta tinha mudado. O sorriso de Daemon tinha mudado.

Quando Daemon se deitou a seu lado, o calor do seu corpo parecia frio em comparação com o fogo que ardia dentro dela, quando a mão estimulante de Daemon retomou o jogo da mão fantasma, Surreal compreendeu por fim o que pairava no ar, no sorriso dele, nos seus olhos. Desdém.

Jogava com uma seriedade terrível. De cada vez que as suas mãos ou que a sua língua lhe proporcionavam algum sentimento de libertação, os finos véus de sensualidade eram rasgados da sua mente e via-se forçada a beber caVce apôs cace ao desdém de Daemon. Quando a levantou uma última vez, Surreal impeliu as ancas na direcção de Daemon ao mesmo tempo que lhe pedia que parasse. O riso frio e penetrante de Daemon comprimiu-lhe as costelas ao ponto de já não conseguir respirar. No momento em que começava a deslizar para uma libertação doce e apática, parou. Tudo parou.

À medida que a sua cabeça desanuviava, ouviu água a correr na casa de banho. Alguns minutos mais tarde, Daemon voltou, totalmente vestido, a limpar a cara a uma toalha. Entre as pernas de Surreal existia uma necessidade palpitante que precisava de ser apaziguada, uma única vez. Suplicou-lhe uma pequena consolação.

Daemon sorriu, o sorriso frio e cruel. — Agora já sabes como é ir para a cama com o Prostituto de Hayll. Surreal começou a chorar.

Daemon jogou a toalha para cima de uma cadeira. — Não te recomendo a utilização de um estimulador — disse, num tom agradável. — Pelo menos nos próximos dois dias. Não ajuda e poderá piorar bastante a situação. — Voltou a sorrir-lhe e saiu de casa.

Não conseguiu perceber quanto tempo passou até que as cordas à volta dos pulsos e dos tornozelos finalmente desapareceram e pôde rolar para o lado, enrolando-se com os joelhos bem junto ao peito e chorando de vergonha e de raiva.

Ficou com medo dele, temia sentir a sua presença ao abrir a porta. Quando se encontravam, Daemon era friamente cortês e raramente falava - e nunca mais olhou para Surreal com qualquer tipo de afecto.

Surreal olhou fixamente para o tecido fino do dossel. Foi há cinquenta anos e ele nunca lhe tinha perdoado. Agora... sentiu um calafrio. Agora, se os rumores se confirmassem, havia algo de terrivelmente errado com Daemon. Não havia uma corte, onde quer que fosse, que o conseguisse reter por mais do que algumas semanas. E desapareceram muitos Sangue, nunca mais se ouvindo falar deles, sempre que o seu mau génio rebentava.

Daemon tinha razão. Havia muitas, mesmo muitas formas de um homem morrer. Mesmo sendo tão virtuosa como era, tinha ainda de despender algum esforço para se desfazer de um corpo. O Sádico, contudo, nunca deixou o mais pequeno vestígio.

Surreal arrastou-se até ao duche e suspirou ao sentir os músculos da coxa relaxarem sob o jacto de água quente. Pelo menos, parecia não haver perigo de tropeçar nele durante a sua estadia em Beldon Mor.

 

Nem mesmo os violentos estrondos na porta do gabinete conseguiam competir com o praguejar descomedido de Prothvar e os guinchos de fúria de Jaenelle.

Saetan fechou o livro na estante de coro. Houve um tempo, não assim tão distante, em que ninguém desejava abrir aquela porta, quanto mais bater-lhe até ficar quase em brasa. Apoiando-se a um canto da secretária em madeira escura, cruzou os braços e aguardou.

Andulvar entrou de rompante no gabinete, ostentando uma expressão que misturava, de forma perturbadora, medo e fúria. Prothvar entrou imediatamente a seguir, arrastando laeneüe pela parte de trás do vestido. Quando tentou soltar-se, agarrou-a por trás e levantou-a do chão.

— Põe-me no chão, Prothvar! — Jaenelle levantou o joelho e lançou a perna para trás, atingindo directamente os genitais de Prothvar. Prothvar gritou e largou-a.

Em vez de cair, Jaenelle executou uma cambalhota perfeita no ar antes de ficar em pé, ainda a cerca de trinta centímetros acima do solo, soltando um chorrilho de blasfémias em mais idiomas daqueles que Saetan conseguia identificar.

Saetan esforçou-se por mostrar uma autoridade neutra e decidiu, com relutância, que esta não era a melhor altura para discutir Linguagem Adequada a Meninas. — Criança-feiticeira, pontapear um homem nos testículos poderá ser uma forma eficaz de lhe chamar a atenção, mas é algo que uma criança não deve fazer. — Estremeceu quando Jaenelle centrou nele toda a atenção.

— E porque não? — interrogou. — Um amigo disse-me que era isso que deveria fazer se um macho alguma vez me agarrasse por trás. Fez-me prometer.

Saetan ergueu uma sobrancelha. — Este amigo é macho? — Muito interessante.

Antes que pudesse averiguar mais, Andulvar ribombou sinistramente:

— Esse não é o problema, SaDiablo.

— Então qual é? — Na verdade, não queria saber. Prothvar apontou para Jaenelle. — Aquela pequena... ela... diz-lhe! Jaenelle cerrou os punhos e olhou furiosamente para Prothvar. — A culpa foi tua. Riste-te e não me quiseste ensinar. Tu é que me derrubaste. Saetan ergueu uma mão. — Devagar. Ensinar-te o quê?

— Não me ensinou a voar — acusou Jaenelle.

— Tu não tens asas! — retorquiu Prothvar.

Posso voar tão bem como tu!

— Não foste treinada!

— Porque tu não me quiseste ensinar!

— E podes ter a certeza que não o irei fazer!

Jaenelle lançou-lhe uma maldição eyriena, fazendo com que os olhos de Prothvar saltassem das órbitas.

O rosto de Andulvar ganhou um perigoso tom azulado antes de apontar para a porta e gritar:

— FORA!

Jaenelle saltitou para fora do gabinete seguida por Prothvar, a coxear. Saetan tapou a boca com a mão. Queria rir. Doces Trevas, como queria rir, mas o olhar de Andulvar avisara-o de que se desse sequer um riso abafado, teriam de se debater numa rixa descontrolada.

— Achas isto divertido — trovejou Andulvar, agitando as asas.

Saetan pigarreou várias vezes. — Julgo que deve ser difícil para Prothvar encontrar-se no lado perdedor de uma discussão com uma menina de sete anos. Não me apercebi de que o ego de um guerreiro pudesse ser magoado com tanta facilidade.

A expressão carrancuda de Andulvar não se alterou. Saetan ficou irritado. — Sê sensato, Andulvar. Pois ela quer aprender a voar. Viste como ela se equilibra bem no ar.

— Vi muito mais do que isso — ripostou Andulvar. Saetan rangeu os dentes e contou até dez. Duas vezes. — Diz-me. Andulvar cruzou os braços musculados e olhou para o tecto. — A amiga do diabrete, Katrine, está a ensinar-lhe como voar, mas Katrine voa como uma borboleta e Jaenelle quer voar como um falcão, como um eyrieno. Daí ter pedido a Prothvar que a ensinasse. Ele riu-se, o que, admito, não foi muito sensato e ela...

— Irritou-se.

— ... saltou da torre alta do Paço.

Houve um momento de silêncio antes de Saetan explodir. — O quê?

— Sabes qual é a torre alta, SaDiablo. Construíste este maldito sítio. Trepou ao cimo da muralha e saltou. Ainda achas divertido?

Saetan apoiou as mãos abertas na secretária. Todo o seu corpo estremeceu. — Portanto, Prothvar apanhou-a quando ela caiu.

Andulvar bufou. — Quase a matou. Quando ela saltou, ele lançou-se de cabeça, pela lateral, atrás dela. Lamentavelmente, Jaenelle estava em pé, no ar, a menos de três metros abaixo do peitoril. Quando surgiu pelo lado, esbarrou com ela a toda a velocidade e caíram ambos mais de três quartos da distância antes de Prothvar conseguir controlar o voo picado.

— Mãe Noite — murmurou Saetan.

— E que as Trevas sejam misericordiosas. Sendo assim, o que é que vais fazer?

Falar com ela — respondeu Saetan ameaçadoramente, ao mesmo tempo que dirigia um pensamento à porta, observando-a a abrir suave e rapidamente. — Criança-feiticeira.

Jaenelle aproximou-se, a ira apaziguada e transformada na determinação obstinada que Saetan já sabia reconhecer.

Lutando para não perder a calma, Saetan observou-a por um momento. — Andulvar contou-me o que aconteceu. Tens algo a dizer?

— Prothvar não tinha nada que se rir de mim. Eu não me rio dele.

— Habitualmente, são necessárias asas para voar, criança-feiticeira.

— Tu não precisas de asas para caminhar nos Ventos. Não é assim tão diferente. E até os eyrienos precisam de um pouco de Arte para voar. Foi Prothvar que disse.

Não sabia o que era pior: Jaenelle a ter uma atitude chocante ou Jaenelle a ser sensata.

Com um suspiro, Saetan agarrou-lhe as pequenas mãos, de aspecto delicado. — Assustaste-o. Como é que iria saber que não te estatelarias no chão?

— Ter-lhe-ia dito — respondeu, um tanto ou quanto apaziguada. Saetan fechou os olhos por um momento, a pensar rapidamente.

— Muito bem. Andulvar e Prothvar irão ensinar-te a maneira de voar dos eyrienos. Em troca, tens de prometer seguir as suas instruções e efectuar o treino pela ordem correcta. Sem te atirares da torre, sem saltos surpresa de penhascos... — O ar de culpa de Jaenelle fez com que o coração de Saetan batesse a um ritmo estranho. Terminou com a voz estrangulada — ... sem experiências na Pista dos Sangue... ou em qualquer outra Pista até eles acharem que estás preparada.

Andulvar virou as costas, proferindo uma série de palavrões.

— De acordo? — perguntou Saetan, prendendo a respiração.

Jaenelle anuiu, descontente mas resignada.

Tal como os Portões, as Pistas existiam nos três Reinos. Ao contrário dos Portões, só existiam no Território de Askavi. Em Terreille, eram os campos de treino dos guerreiros eyrienos, desfiladeiros onde os ventos e os Ventos colidiam num teste duro e perigoso de força mental e física. A Pista dos Sangue continha os fios dos Ventos mais claros, do Branco ao Opala. A outra...

Saetan engoliu ruidosamente. — Já experimentaste a Pista dos Sangue?

O rosto de Jaenelle iluminou-se. — Ah, claro, Saetan. É tão divertido. — O entusiasmo enfraqueceu face ao olhar espantado de Saetan.

Lembra-te de respirar, SaDiablo. — E Khaldharon?

Jaenelle fixou o olhar no chão.

Andulvar voltou-a e abanou-a. — Só um punhado dos melhores guerreiros eyrienos tenta, uma vez por ano, enfrentar a Pista de Khaldharon. É o teste irrefutável à força e às capacidades, não é um recreio para miúdas que querem saltitar de sítio para sítio.

— Eu não saltito!

— Criança-feiticeira — avisou Saetan.

— Só experimentei um bocadinho — disse, entre dentes. — E unicamente no Inferno.

Andulvar ficou de boca aberta.

Saetan fechou os olhos, na esperança de que a súbita dor lancinante nas têmporas desaparecesse. Já teria sido bastante perigoso se ela tivesse experimentado a Pista de Khaldharon em Terreille, o Reino mais afastado das Trevas e onde os Ventos adquiriam o máximo da força, mas experimentar a Pista no Inferno... — Não voltarás às Pistas até Andulvar achar que estás preparada!

Surpreendida pela veemência de Saetan, Jaenelle observou-o. — Assustei-te.

Saetan circulou pela sala, à procura de algo que pudesse rasgar sem riscos. — Podes ter a certeza de que me assustaste.

Afofou o cabelo e observou-o. Quando Saetan regressou à secretária fez uma vénia femnina e respeitosa. — As minhas desculpas Senhor Supremo. As minhas desculpas, Príncipe Yaslana.

Andulvar resmungou. — Se te vou ensinar a voar, também te posso ensinar a usar os bastões, o arco e a faca.

Os olhos de Jaenelle cintilaram. — Sceron está a ensinar-me a usar a besta e Chaosti está a mostrar-me como se usa a faca — informou.

— Mais razões para aprenderes a usar também armas eyrienas, — disse Andulvar, sorrindo sombriamente.

Depois de Jaenelle ter saído, Saetan olhou para Andulvar, preocupado. — Espero que tenhas em consideração a sua idade e o seu sexo.

— Vou fazê-la trabalhar no duro, SaDiablo. Se a vou ensinar, e julgo não ter opção de escolha, vou fazê-lo como se de um guerreiro eyrieno se tratasse. — Sorriu maliciosamente. — Além disso, Prothvar irá adorar ser o seu adversário quando ela aprender a usar os bastões.

Quando Andulvar saiu, Saetan instalou-se na cadeira por detrás da secretária, abriu uma das gavetas com uma chave e retirou uma folha de pergaminho caro, preenchido até metade pela sua elegante caligrafia. Adicionou três nomes à lista que continuava a aumentar: Katrine, Sceron, Chaosti.

Com o pergaminho novamente fechado e seguro, Saetan recostou-se na cadeira e esfregou as têmporas. Aquela lista perturbava-o visto desconhecer o seu significado. Crianças, sim. Amigos, certamente. Mas todos de Kaeleer. Jaenelle tinha de se ausentar durante horas para poder percorrer essas distâncias, mesmo no Vento Negro. O que é que a família dela pensaria destes desaparecimentos? O que é que diriam? Jaenelle nunca falava de Chaillot, da sua casa, da sua família. Esquivava-se às perguntas que lhe fazia, fosse qual fosse a forma com que as construía. Do que é que tinha medo?

Durante muito tempo, Saetan fixou o vazio. Por fim, enviou um pensamento por um fio masculino Ébano Acinzentado, de macho para macho. “Ensina-a bem, Andulvar. Ensina-a bem.”

 

Saetan saiu do pequeno quarto contíguo ao seu gabinete privado, a secar energicamente o cabelo. As suas narinas dilataram-se de imediato e a ruga entre as sobrancelhas acentuou-se ao fixar a porta do gabinete.

As harpias possuíam um odor psíquico característico e esta, a aguardar pacientemente que Saetan reconhecesse a sua presença, fazia-o sentir-se apreensivo.

De volta ao quarto, vestiu-se depressa mas cuidadosamente. Depois de se sentar à secretária em madeira escura, abriu as fechaduras físicas e psíquicas da porta e aguardou.

O andar silencioso e deslizante fê-la alcançar a secretária rapidamente. Era uma mulher esguia, de pele clara, com uns enormes olhos azuis, orelhas delicadamente pontiagudas e cabelo louro grisalho longo e fino. Vestia uma túnica verde floresta, calças com um cinto castanho em pele e botas até meio da perna. Do cinto pendia uma bainha vazia. Não usava qualquer Jóia e a ferida que percorria o seu pescoço testemunhava a forma como tinha morrido. Examinou-o, tal como ele a examinou.

A tensão cresceu na sala.

As harpias eram feiticeiras que tinham morrido às mãos de um macho. Independentemente da raça de onde eram originárias, eram mais instáveis e mais matreiras do que outras feiticeiras demónias-mortas, raramente saindo do seu território, um território no qual nem os machos demónios-mortos se aventuravam. Todavia, aqui estava ela, de livre vontade. Uma Viúva Negra e Rainha dos Dea al Mon.

— Sentai-vos, por favor, Senhora, — disse Saetan, acenando com a cabeça em direcção à cadeira em frente à secretária. Sem tirar os olhos de Saetan, instalou-se graciosamente na cadeira. — Como vos posso ser útil?

Quando começou a falar, a sua voz assemelhava-se a um vento suspirante soprando numa clareira. Mas nessa voz também existiam relâmpagos. — Servi-la?

Saetan tentou reprimir o calafrio que aquelas palavras lhe provocaram, mas ela detectou-o e sorriu. Esse sorriso fez com que a irritação de Saetan fervilhasse até à superfície. — Sou o Senhor Supremo, feiticeira. Não sirvo ninguém.

A expressão da Harpia não se alterou mas os seus olhos ficaram gélidos. — A Sacerdotisa Suprema do Inferno anda a fazer perguntas. Isso não é bom. Por isso, volto a perguntar. Senhor Supremo, servi-la?

— O Inferno não tem Sacerdotisa Suprema.

Riu-se sinistramente. — Assim sendo, ninguém informou Hekatah desse pequeno pormenor. Se não servis, sois amigo ou inimigo?

Saetan fez uma careta, falando rispidamente. — Não sirvo Hekatah e embora tenhamos sido casados outrora, duvido que me considere um amigo.

A Harpia olhou-o com repugnância. — Hekatah só interessa porque ameaça interferir. A criança. Senhor Supremo. Servis a criança? És amigo ou inimigo?

— Qual criança? — Um punhal gelado golpeou-o no estômago. A Harpia saltou da cadeira e deu uma volta rápida ao redor do gabinete. Quando regressou à secretária, a mão direita passava continuamente na bainha, como se procurasse a faca que não existia.

— Sentai-vos. — Vendo que não se movia, um trovão ribombou na voz de Saetan. — Sentai-vos. — Hekatah desconfiava da recente actividade e os rumores sobre uma estranha feiticeira que aparecia e desaparecia no Reino das Trevas aguçou-lhe o interesse. Mas ele não tinha qualquer controlo sobre quem Jaenelle via ou por onde andava. Se as Harpias tinham conhecimento da sua existência, quem mais saberia? Quanto tempo demoraria até Jaenelle seguir um fio psíquico que a conduziria directamente aos braços de Hekatah? E esta Harpia seria uma amiga ou uma inimiga? — Os Dea al Mon têm conhecimento da criança, — disse Saetan, cautelosamente.

A Harpia acenou com a cabeça. — É amiga da minha parente Gabrielle.

— E de Chaosti.

Um sorriso cruel e satisfeito tocou-lhe os lábios. — E de Chaosti. Também ele é meu parente.

— E vós, quem sois?

O sorriso desvaneceu-se. Um ódio gelado inflamou-lhe os olhos. — Titian. — Perscrutou o corpo de Saetan com os olhos, recostando-se, de seguida, na cadeira. — Aquele que me quebrou... tem o vosso nome de família mas não possui a vossa linhagem. Mal tinha completado doze anos quando fui traída e levada de Kaeleer. Levou-me para se entreter e quebrou-me com a sua lança. Mas tudo tem um preço. Deixei-lhe um legado, a única semente desse homem que alguma vez irá florescer. No fim, será a ela que irá pagar a dívida. E quando chegar a altura, ela irá servir a jovem Rainha.

Saetan expirou lentamente. — Quantos mais sabem da existência da criança?

— Demasiados... ou insuficientes. Depende do jogo.

— Isto não é um jogo! — Ficou imóvel. — Deixai-me entrar.

Titian contorceu o rosto, repugnada.

Saetan inclinou-se para a frente. — Compreendo porque é que o facto de ser tocada por um macho te repugne. Não vos peço levianamente... ou para mim.

Titian mordeu o lábio. Enterrou as mãos na cadeira. — Muito bem. Concentrando os olhos na lareira, Saetan produziu o gesto psíquico, tocou a primeira barreira interior e sentiu a aversão de Titian. Aguardou pacientemente até ela se sentir preparada para abrir as barreiras. Uma vez no interior, moveu-se delicadamente, como um convidado educado. Não demorou muito a encontrar o que procurava, logo quebrando a ligação, aliviado.

Não sabiam. Titian especulava, as suas conjecturas aproximavam-se bastante. No entanto, ninguém que não fosse da confiança de Saetan sabia com toda a certeza. Uma criança estranha. Uma criança excêntrica. Uma criança misteriosa e intrigante. Chegava. A sua criança sábia e prudente. Saetan não conseguia deixar de pensar no que é que ela teria passado que a tinha tornado tão prudente, sendo tão jovem.

Voltou-se para Titian. — Estou a ensinar-lhe a Arte. E sirvo-a.

Titian olhou ao redor da sala. — Aqui?

Saetan sorriu sarcasticamente. — Bem visto. Estou cansado deste gabinete. Talvez seja altura de lembrar ao Inferno quem domina.

— Quereis dizer, quem domina em representação — afirmou Titian, com um sorriso predatório. Deixou que as palavras persistissem por um momento. — Ainda bem que estais interessado, Senhor Supremo — reconheceu relutantemente. — Ainda bem que ela tem um protector tão poderoso. É audaz, a nossa Irmã. Seria sensato ensinar-lhe a ser prudente. Mas não vos deixeis iludir. As crianças sabem o que ela é. É tanto o seu segredo como é a sua amiga. O Sangue canta para o Sangue e Kaeleer por inteiro está a adoptar, aos poucos, um única estrela negra.

— Como sabeis acerca das crianças? — perguntou Saetan, desconfiado.

— Já vos disse. Sou parente de Gabrielle.

— Estais morta, Titian. Os demónios-mortos não se misturam com os vivos. Não interferem nos assuntos dos Reinos dos vivos.

— Ai não. Senhor Supremo? Vós e a vossa família ainda dominais Dhemian, em Kaeleer. — Encolheu os ombros. — Além disso, os Dea al Mon não se importam de conviver com os que vivem no crepúsculo eterno do Reino das Trevas. — Com alguma hesitação, acrescentou: —E a nossa jovem Irmã não parece compreender a diferença entre os vivos e os mortos.

Saetan endireitou-se. — Achas que ficou confusa ao conhecer-me? Titian abanou a caIAéça. — Não, a confusão já estava instalada antes de saber da existência doJnferno ou de conhecer um Guardião. Ela caminha por um estranho caminho, Senhor Supremo. Quanto tempo demorará até começar a caminhar pelas orlas do Reino Distorcido?

— Não há razões para supormos que o irá fazer — respondeu Saetan com firmeza.

— Não há? Seguirá o estranho caminho onde quer que a levar. O que é que vos faz pensar que uma criança que não vê qualquer diferença entre os vivos e os mortos irá distinguir entre a sanidade e o Reino Distorcido?

— NÃO! — Saetan saltou da cadeira e foi-se colocar de frente para a lareira. Tentou refrear o pensamento de Jaenelle a deslizar para a loucura, incapaz de lidar com a sua essência, mas a ansiedade fluiu como ondas num mar agitado. Mais ninguém na história dos Sangue tinha usado a Negra como a Jóia de Direito por Progenitura. Mais ninguém tinha tido de carregar a responsabilidade - e o isolamento - que estava incluída no preço de usar uma Jóia tão escura, sendo ainda tão jovem.

Saetan sabia que Jaenelle já tinha visto coisas que uma criança não deveria ver. Tinha visto os segredos e as sombras nos seus olhos.

— Não há ninguém em Terreille em quem possas confiar para tomar conta dela?

Saetan deixou escapar uma gargalhada angustiada. — Em quem confiaríeis, Titian?

Titian esfregou as mãos nervosamente nas calças.

Era uma jovem mulher quando morreu, pensou Saetan com uma tristeza afectuosa. Tão frágil por baixo de toda aquela força. Tal como todas são.

Titian humedeceu os lábios. — Conheço um Príncipe dos Senhores da Guerra de Jóia Negra que, por vezes, toma conta de quem necessita de ajuda. Se for abordado, poderá...

— Não — interrompeu bruscamente, o orgulho a debater-se com o medo. Era irónico que Titian considerasse Daemon um protector adequado. — É propriedade do fantoche de Hekatah, Dorothea. Pode ser obrigado a obedecer.

— Não creio que maltratasse uma criança.

Saetan regressou à secretária. — Talvez não o fizesse por vontade própria, mas a dor pode levar um homem a fazer o que não faria de livre vontade.

Os olhos de Titian arregalaram-se ao compreender. — Não confiais nele. — Reflectiu e abanou a cabeça. — Estais enganado. Ele é...

— Um espelho. — Saetan sorriu ao mesmo tempo que Titian inspirava com um sibilo. — Sim, Titian. Ê sangue do. meu sangue, semente do meu ventre. Conheço-o bem... e não conheço. É uma faca de dois gumes capaz de cortar a mão que o ampara tão facilmente como corta o inimigo.

— Acompanhou-a à porta. — Agradeço-vos o conselho e a preocupação. Se souberdes de notícias, ficava grato se me informásseis.

Na soleira da porta, Titian virou-se e examinou-o. — E se ela cantar ao seu sangue tão profundamente como canta ao vosso?

— Senhora. — Saetan fechou a porta calmamente na cara de Titian e fechou-a à chave. De volta à secretária, encheu um copo de yarbarah e observou a pequena labareda a dançar sobre a mesa, aquecendo o vinho de sangue.

Daemon era um excelente Príncipe dos Senhores da Guerra, o que significava que era um perigoso Príncipe dos Senhores da Guerra.

Saetan esvaziou o copo. Ele e Daemon eram um par à altura. Acreditaria mesmo que o seu homónimo representava uma ameaça para Jaenelle ou eram ciúmes por ter de ceder perante um possível amante, especialmente por esse amante ser também seu filho? Não podendo responder com honestidade a essa pergunta, hesitava em dar a ordem para a execução de Daemon.

Por enquanto, não havia qualquer razão para mandar chamar Marjong, o Carrasco. Daemon não se encontrava perto de Chaillot e, por alguma razão, Jaenelle não vagueava por Terreille como o fazia por Kaeleer. Talvez Titian estivesse certa em relação a Daemon, mas não podia correr tal risco. O seu homónimo tinha a astúcia para iludir uma criança e a força para a destruir.

Mas se fosse necessário executar Daemon para proteger Jaenelle, não iria ser enviado para a sepultura pelas mãos de um estranho.

Devia isso ao filho.

 

                       CAPÍTULO 3

Saetan sorriu friamente ao ver o seu reflexo. A cabeça coberta de cabelos negros estava mais grisalha nas têmporas do que há cinco anos atrás, porém as rugas no rosto deixadas pela doença e pelo desespero atenuaram-se enquanto as rugas de expressão tinham-se acentuado.

Afastando-se do espelho, passeou-se ao longo da galeria do segundo andar. A perna doente ficava entorpecida se andasse demasiado, mas já não necessitava daquela maldita bengala. Riu-se baixinho. Jaenelle era um tónico revigorante de formas diversas.

Ao descer as escadas que terminavam na sala informal de recepções, reparou na mulher alta e esguia que o observava com os olhos semicerrados. Reparou também no conjunto de chaves que trazia ao cinto e sentiu-se aliviado por ter sido tão fácil encontrar a governanta actual.

— Boa-tarde — trauteou. — És a Helene?

— E se for? — Cruzou os braços e bateu com o pé no chão, ritmadamente.

Bem, não esperava uma calorosa recepção de braços abertos, ainda assim. .. Sorriu. — Para um pessoal que não tem tido ninguém a quem servir, durante tanto tempo, e não tendo incentivos, mantiveste a casa em excelente estado.

Os ombros de Helene endireitaram-se bruscamente e os olhos brilharam de raiva. — Cuidamos do Paço porque é o Paço. — Os olhos semicerraram-se ainda mais. — E quem sois? — interrogou.

Saetan levantou uma sobrancelha. — Quem pensas que sou?

— Um intruso, é o que penso — respondeu Helene com rispidez, pondertPrfrHBS nas ancas. — Um desses que se esgueira por aqui de tempos a tempos para se pasmar e embeber-se da atmosferál

Saetan soltou uma gargalhada. — Fariam melhor se não se embebessem muito da atmosfera deste lugar. Contudo, tem sido sempre mais calmo do que o equivalente em Terreille. Suponho que, após tantos anos ausente, sou uma espécie de intruso, mas... — Ergueu a mão direita. A Jóia Negra cintilou no anel e, em simultâneo, deu-se uma resposta ribombante proveniente das pedras do Paço SaDiablo.

Helene ficou lívida e olhou-o espantada.

Saetan sorriu. — Vês, minha querida, ainda responde ao meu chamamento. Lamento, mas estou prestes a provocar estragos na tua rotina.

Helene fez uma vénia desajeitada. — Senhor Supremo? — balbuciou.

Saetan inclinou a cabeça. — Vou abrir o Paço.

—Mas...

Saetan endireitou-se. — Há algum problema nisso?

Nos olhos dourados de Helene surgiu um brilho débil, ao mesmo tempo que limpava as mãos no grande avental branco. — Uma limpeza profunda remediará, com certeza, mas... — Olhou intencionalmente para os cortinados. — .. .uma renovação seria bem melhor.

A tensão esvaiu-se de Saetan. — E dar-te algo de que te orgulhes em vez de te remediares com um título vazio?

Helene corou e mordiscou o lábio.

Escondendo um sorriso, Saetan fez os panos caídos desaparecer e estudou a sala. — Novos cortinados e tecidos finos, sem dúvida. Com um bom enceramento, a mobília de madeira ainda serve, desde que os feitiços de conservação se tenham preservado e os móveis mantenham uma estrutura robusta. Novos sofás e cadeiras. Plantas junto às janelas. Também alguns novos quadros nas paredes. Papel de parede novo ou tinta? O que é que achas?

Helene demorou algum tempo a recuperar a voz. — Quantas divisões pensais renovar?

— Esta, a sala formal de recepções do outro lado do corredor, a sala de jantar, o meu gabinete público, o meu quarto principal, meia dúzia de quartos de hóspedes - e um quarto principal especial para a minha Senhora.

— Talvez a Senhora gostasse de supervisionar a decoração? Saetan olhou-a com um ar de divertimento escandalizado. — Com certeza que gostaria. No entanto, a minha Senhora fará doze anos daqui a quatro meses e eu preferia que ela vivesse num quarto que decorei para ela em vez de eu próprio viver num Paço decorado com os seus gostos um tanto ou quanto... eclécticos.

Helene olhou embasbacada por um momento mas absteve-se de perguntar o que Saetan lhe via nos olhos. — Posso mandar vir alguns livros com amostras de tecidos para que possais escolher.

— Excelente ideia, minha querida. Achas que consegues tornar este sítio apresentável em quatro meses?

— O pessoal não é muito. Senhor Supremo — informou Helene, hesitante.

— Sendo assim, contrata a ajuda que precisares. — Saetan caminhou devagar até à porta que dava para o grande corredor. — Voltaremos a falar no final da semana. É tempo suficiente?

— É, Senhor Supremo. — Fez novamente uma vénia.

Tendo nascido nos bairros degradados de Draega, a capital de Hayll, filho de uma prostituta desinteressada, não esperava nem queria que os criados rastejassem à sua volta. Não mencionou este facto a Helene pois, se a tinha interpretado correctamente, aquela teria sido a última vénia que lhe faria.

No final do grande corredor, hesitou antes de abrir a porta do seu gabinete público. Passeou à volta da divisão, tocando ao de leve na mobília coberta, fazendo ligeiras caretas ao ver os dedos sujos de pó.

Outrora, tinha governado Dhemian Kaeleer a partir deste gabinete. Ainda governava, lembrou-se a si próprio. Tinha oferecido Dhemian Terreille a Mephis quando se tornou Guardião, mas não a terra gémea no Reino das Trevas.

Ah, Kaeleer. Tinha sempre sido um vinho adocicado para Saetan, com a magia profunda e os mistérios. Agora, esses mistérios estavam a sair da bruma, novamente, e a magia era ainda poderosa. Fio a fio, )aenelle estava a reconstruir a teia, convocando todos para a dança.

Esperava que fosse do seu agrado poder usar este lugar. Esperava ser convidado quando Jaenelle estabelecesse a sua própria corte. Queria ver quem escolheria ela para o Primeiro Círculo, queria ver os rostos que se relacionassem com a lista de nomes. Teriam conhecimento uns dos outros? Ou dele?

Saetan abanou a cabeça, sorrindo.

Tivesse, ou não, sido essa a vontade de Jaenelle, a filha da sua alma de cabelo louro tinha-o, de certeza, devolvido aos vivos.

 

Subindo as escadas para o apartamento no terceiro andar, Surreal mudou o cesto das compras de uma mão para outra e retirou as chaves do bolso das calças. Aotíhegar ao patamar vislumbrou a sombra de uma figura encostada à por» e logo as chaves desapareceram, dando lugar ao seu pequeno punhal preiwrido.

A mulhe» afastou o cabelo negro emaranhado do rosto e levantou-se, cambaleando.

— Tersa — murmurou Surreal, fazendo desaparecer o pequeno punhal, ao mesmo tempo que corria em direcção à mulher titubeante.

— Tens de lhe dizer — sussurrou Tersa.

Surreal deixou cair o cesto e enrolou o braço à volta da cintura de Tersa. Após ter invocado as chaves e aberto a porta, arrastou a mulher que continuava a murmurar até ao sofá, praguejando baixinho sobre o estado de Tersa.

Foi buscar o cesto e trancou a porta antes de regressar ao sofá com um pequeno copo de conhaque.

— Tens de lhe dizer — murmurou Tersa entre dentes, batendo delicadamente no vidro.

— Bebe, irás sentir-te melhor — disse Surreal asperamente. — Não o vejo há meses. Já não lhe sou de grande utilidade.

Tersa agarrou Surreal pêlos pulsos e disse ferozmente:

— Diz-lhe para ter cuidado com o Sacerdote Supremo da Ampulheta. Não é um homem condescendente quando alguém ameaça aquilo que é. Diz-lhe para ter cuidado com o Sacerdote.

Respirando fundo, Surreal levantou Tersa e ajudou a mulher mais velha a arrastar-se até à casa de banho.

Dizer-lhe? Não queria sequer chegar-se perto dele. O que é que iria fazer com Tersa? Existiam apenas duas camas na casa. Não iria ceder-lhe a sua, por isso Tersa teria de dormir na de Sadi. Porém, fogo do Inferno, tinha-se tornado tão sensível relativamente a ter uma mulher no seu quarto, que conseguia perceber que a empregada doméstica tinha sido diferente, mesmo que só tivesse vindo uma única vez. Merda. Não era provável que aparecesse - doces Trevas, rogo-vos que não permitis que apareça - mas se tal acontecesse e se se opusesse ao facto de Tersa usar a sua cama, poderia pô-la fora.

Surreal despiu as roupas andrajosas de Tersa. — Anda, Tersa. Precisas de um banho quente, de uma refeição decente e de uma boa noite de sono. — Tens de lhe dizer.

Surreal fechou os olhos. Estava em dívida para com ele. Nunca se esqueceu disso. — Eu digo-lhe. Seja lá como for, eu digo-lhe.

 

Após vários minutos de silêncio incómodo, Philip Alexander virou-se no sofá e ficou de frente para a sobrinha. Tentou alcançar a sua mão débil mas ela retirou-a, evitando o toque.

Frustrado, Philip passou os dedos pelo cabelo e tentou, uma vez mais, ser sensato. — Jaenelle, não estás a fazer isto para ser cruel. És uma criança doente e queremos ajudar-te a melhorar.

— Não estou doente — disse Jaenelle calmamente, olhando em frente.

— Sim, estás. — Philip manteve uma voz firme mas amável. — Não sabes distinguir entre o faz-de-conta e o mundo real

— Eu sei distinguir.

— Não sabes, não — insistiu Philip. Esfregou a testa. — Estes amigos, estes sítios que visitas... não são reais. Nunca foram reais. A única razão pela qual os vês é porque não estás bem.

Dor, confusão e dúvida encheram os seus olhos azul céu. — Mas parecem tão reais — murmurou.

Philip puxou-a para junto dele, agradecido por não o ter rejeitado. Abraçou-a como se esse abraço fosse a cura que anos de tratamento não conseguiram. — Sei que te parecem reais, meu amor. É esse o problema, não vês? O Dr. Carvay é o curandeiro mais notável para...

Jaenelle contorceu-se para se libertar do abraço. — Carvay não é um curandeiro, é...

— Jaenelle! — Philip respirou profundamente. — É exactamente sobre isso que estamos a falar. Inventar histórias maldosas sobre o Dr. Carvay não te irá ajudar. Inventar histórias sobre criaturas mágicas...

— Já não falo sobre elas.

Philip suspirou, frustrado. Isso era verdade. Tinha sido curada ou tinha ultrapassado aquelas fantasias, mas as histórias que inventava agora eram apenas farinha do mesmo saco. Um tipo de farinha muito mais perigoso.

Philip levantou-se e ajeitou o casaco. — Talvez... talvez se trabalhares com afinco e se deixares que o Dr. Carvay te ajude, desta vez fiques curada e possas regressar a casa de vez. A tempo do teu aniversário.

Jaenelle olhou-o de uma forma que não conseguiu decifrar.

Philip conduziu-a à porta. — A carruagem está lá fora. O teu pai e a tua avó irão acompanhar-te e ajudar-te a instalares-te.

Ao ver a carruagem desaparecer pela longa estrada, Philip esperou sinceramente que esta fosse a última vez.

 

Saetan estava sentado à secretária em madeira escura no seu gabinete público com um copo de vinho meio vazio na mão e observou a divisão restaurada.

Helene tinha usado muito bem a Arte caseira. Tinha terminado a renovação das divisões que Saetan tinha solicitado bem como da maior parte das salas públicas e de toda uma ala de alojamentos. O facto de ter contratado praticamente toda a vila de Halaway para o conseguir... Bem, todos precisavam de um objectivo. Até ele próprio. Em especial.

Uma batida breve na porta despertou-lhe a atenção. — Entre — disse, esvaziando o copo de vinho.

Helene olhou à volta do gabinete com satisfação antes de se aproximar da secretária, endireitando os ombros. — A Sr." Beale quer saber por quanto tempo mais vai ter de atrasar o jantar.

— Uma refeição tão boa como a que a Sr.” Beale preparou não deve ser desperdiçada. Porque é que tu e os outros não apreciam os seus esforços?

— Então a vossa convidada não vem?

— Parece que não.

Helene pôs as mãos nas ancas. — Uma maria-rapaz, é o que ela é, nem sequer ter a decência de enviar as desculpas...

— Estás a exceder-te, minha senhora. — Saetan ripostou suavemente. Não havia qualquer dúvida sobre a ameaça ou sobre a irritação nas suas palavras.

Helene encolheu-se, afastando-se da secretária. — Eu... Peco-vos perdão, Senhor Supremo.

Algo aplacado, Saetan inspirou profundamente e expirou devagar. — Se não pôde vir, teve as suas razões. Não a julgues, Helene. Se ela aqui estiver e se tiveres alguma razão de queixa ao servi-la, dirige-te a mim e farei o que puder para mitigar o problema. Mas não faças julgamentos. — Caminhou lentamente para a porta. — Mantém o pessoal suficiente para servir os hóspedes que possam chegar. E mantém um registo de quem entra e de quem sai - especialmente de quem fizer perguntas sobre a Senhora. Ninguém entra sem se identificar previamente. Entendido?

— Sim, Senhor Supremo — respondeu Helene.

— Um bom jantar, minha querida. — E saiu.

Saetan caminhou pelo longo corredor em pedra em direcção ao seu gabinete privado bem abaixo do Paço, no Reino das Trevas. Tinha abandonado o pequeno quarto adjacente, visto que tinha regressado ao seu quarto principal vários andares acima, mas, à medida que os dias e as semanas iam passando, deu por si a regressar e a ficar. Pelo sim, pelo não.

Uma silhueta franzina saiu da penumbra junto à porta do gabinete. A ansiedade escoava em ondas do rapaz ao mesmo tempo que Saetan destrancava a porta, sem pressas, gesticulando para que entrasse. Um relance às chamas das velas produziu um brilho suave, toldando os contornos da
sala e aliviando a sensação de um imenso poder que enchia o gabinete que tinha ocupado durante tanto tempo.

— Acompanhas-me num copo de yarbarah, Char? — Sem esperar a resposta, Saetan encheu um copo do decantador que se encontrava em cima da secretária e aqueceu-o com uma pequena labareda. Ofereceu o copo a Char.

A mão do rapaz tremia ao aceitar o copo e os seus olhos estavam repletos de medo.

Ansioso, Saetan aqueceu um copo para si e instalou-se na outra cadeira, junto à lareira.

Char bebeu apressadamente, um sorriso momentâneo nos lábios ao saborear o último gole. Olhou para o Senhor Supremo, para o rosto que raramente demonstrava qualquer vestígio de emoção, e desviou rapidamente o olhar. Tentou falar mas não produziu qualquer som. Pigarreou e voltou a tentar. — Tende-la visto? — perguntou num sussurro rouco.

Saetan bebeu o vinho de sangue antes de responder. — Não, Char, não a vejo há três meses. E tu?

Char abanou a cabeça. — Não, mas... tem acontecido algo na ilha. Chegaram outros.

Saetan inclinou-se para a frente. — Outros? Não são crianças?

— Sim, crianças, mas... acontece algo quando chegam. Não chegam pêlos Portões nem encontram a ilha caminhando nos Ventos. Eles vêm... — Char abanou a cabeça, vacilando nas palavras.

Saetan baixou a voz e trauteou de uma forma relaxante. — Deixas-me entrar, Char? Deixas-me ver? — O alívio de Char foi tão intenso que provocou em Saetan uma inquietação crescente. Recostando-se na cadeira, alcançou a mente do rapaz, encontrou as barreiras já abertas e seguiu Char até à memória do que tinha visto e que o tinha perturbado tanto.

Saetan expirou soltando um silvo de reconhecimento e rompeu a ligação o mais depressa que pôde, sem prejudicar o rapaz.

Quando é que Jaenelle tinha aprendido aquilo7.

O que é? — perguntou Char.

— Uma ponte — respondeu Saetan. Esvaziou o copo e voltou a enchê-lo, surpreendido por ver a sua mão firme, uma vez que por dentro, todo ele tremia. — Chama-se uma ponte.

— É muito poderosa.

— Não, a ponte em si não tem qualquer poder. — O olhar perturbado de Char encontrou o seu e Saetan permitiu que o rapaz visse a agitação que sentia. — Todavia, quem a construiu possuí muito poder. — Pousou o copo e inclinou-se para a frente, os cotovelos sobre os joelhos, os dedos de ambas as mãos juntos e a roçar o queixo. — De onde vêm estas crianças? Elas dizem de onde vêm?

Char humedeceu os lábios. — De um lugar chamado Briarwood. Não dizem se é uma povoação, uma cidade ou um Território. Dizem que uma amiga os informou sobre a existência da ilha e lhes indicou o caminho.

— Hesitou, com uma timidez repentina. — Podeis vir ver? Talvez... possais compreender.

— Vamos agora? — Saetan levantou-se, puxando as mangas do casaco. Char fitou o chão. — Deve ser um sítio horrível, Briarwood. — Levantou os olhos e olhou para Saetan, os olhos inquietos suplicando algum conforto.

— Porque é que ela iria a um sítio tão horrível?

Saetan levantou Char e pôs um braço à volta dos ombros magros do rapaz, sentindo-se mais perturbado do que gostaria de admitir quando Char se encostou a ele, carente por aquele aconchego. Trancando a porta do gabinete, manteve o passo lento e firme ao mesmo tempo que alimentava o rapaz com gota psíquica após gota psíquica de vigor e de sentimento de segurança. Quando os ombros de Char voltaram a endireitar-se, Saetan deixou o braço cair descontraidamente.

Três meses. Durante três meses, Jaenelle não deu qualquer notícia. E agora crianças estavam a viajar atravessando uma ponte para a ilha das cildru dyathe.

A nova habilidade de Jaenelle tê-lo-ia intrigado mais se a pergunta de Char não estivesse a retumbar no seu sangue, a pulsar-lhe nas têmporas.

Por que razão teria ido a um lugar tão horrível? Porquê, porquê, porquê?

E onde?

 

— Briarwood? — Cassandra aqueceu dois copos de yarbarah. — Não, nunca ouvi falar de Briarwood. Onde fica? — Ofereceu um copo a Saetan.

— Em Terreille, por isso deve ser algures em Chaillot. — Beberricou o vinho de sangue. — Talvez uma pequena vila ou uma povoação perto de Beldon Mor. Por acaso não tens um mapa dessa maldita ilha?

Cassandra corou. — Bem, tenho. Fui a Chaillot. Mas não a Beldon Mor — acrescentou rapidamente. — Saetan, tive de ir porque... bem, algo estranho tem vindo a acontecer. De vez em quando, há uma sensação nas Teias, como se... — emitiu um som frustrado.

— Alguém estivesse a puxá-las e, de seguida, entrelaçasse as vibrações — concluiu Saetan secamente. Ele e Geoffrey tinham passado horas a estudar atentamente livros sobre a Arte na biblioteca da Fortaleza com o objectivo de tentar perceber, mas continuavam sem entender como é que Jaenelle o tinha feito.

— Exactamente — disse Cassandra.

Saetan observou-a a invocar um mapa e a estendê-lo sobre a mesa da cozinha. — O que tens sentido é uma ponte construída por Jaenelle. — Apanhou com destreza o copo de yarbarah que caiu da mão de Cassandra. Pousando os dois copos na mesa, Saetan conduziu-a até um banco junto à lareira e abraçou-a, afagando-lhe o cabelo e trauteando lengalengas. Passado algum tempo, parou de tremer e conseguiu falar de novo.

— Não é assim que é construída uma ponte — afirmou peremptoriamente.

— Não é como tu ou eu construiríamos - se conseguíssemos – uma ponte.

— Somente os Sangue no apogeu da Arte têm a capacidade de construir uma ponte que transponha uma distância que justifique o esforço. Duvido que ainda exista alguém em Terreille que tenha a capacidade para taL — Empurrou-o, resmungando de seguida quando Saetan não a largou. — Vais ter de falar com ela sobre este assunto, Saetan. Vais mesmo. É demasiado nova para este tipo de Arte. E porque razão construiu uma ponte quando pode caminhar nos Ventos?

Saetan continuou a afagar-lhe os cabelos, amparando-lhe a cabeça no seu ombro. Conhecia Jaenelle há cinco anos e, ainda assim, Cassandra continuava sem compreender do que realmente se tratava, continuava sem compreender que Jaenelle não era uma jovem Rainha que se iria tornar na Feiticeira, mas que já era a Feiticeira. Contudo, neste momento Saetan também não tinha a certeza de que compreendia. — Ela não viaja pela ponte, Cassandra — disse cautelosamente. — Envia outros. Os que não conseguiriam de outra forma.

Será que a verdade iria assustá-la tanto como o tinha assustado a ele? Provavelmente não. Ela não tinha visto aquelas crianças.

— De onde vêm? — perguntou preocupada.

— De Briarwood, onde quer que seja.

— E para onde vão?

Saetan respirou fundo. — Para a ilha das cildru dyathe.

Cassandra libertou-se de Saetan e dirigiu-se aos tropeções para a mesa. Agarrou-se à beira para se manter direita.

Saetan observou-a, aliviado por ver que, embora assustada, não tinha perdido o discernimento. Aguardou que Cassandra se recompusesse, reparou no momento em que parou para reconsiderar, apercebendo-se da Arte necessária para tal feito.

— Construiu uma ponte daqui para o Inferno7

Sim.

Cassandra afastou uma madeixa rebelde do rosto, a ruga vertical entre as sobrancelhas acentuando-se à medida que pensava. Abanou a cabeça. — Os Reinos não podem ser atravessados dessa forma.

Saetan recuperou o copo de yarbarah e esvaziou-o. — Como é óbvio, com esse tipo de ponte, podem. — Estudou o mapa, começando pela extremidade sul da ilha e subindo para norte, em direcção a Beldon Mor, zona a zona. Com as unhas compridas, deu pequenas pancadas na mesa. — Não vem no mapa. Se for uma pequena aldeia perto de Beldon Mor, é provável que não seja considerada com tendo importância suficiente para constar no mapa.

— Se for sequer uma aldeia — murmurou Cassandra. Saetan ficou gelado. — O que é que disseste?

— E se for um lugar? Existem muitos lugares aos quais são dados nomes, Saetan.

— Sim — trauteou, um olhar vago nos olhos. Mas que tipo de lugar faria aquilo a crianças? Resmungou frustrado. — Está a ocultar algo por trás daquela maldita bruma. É por isso que não quer ninguém do Reino das Trevas nessa cidade. Quem estará ela a proteger?

— Saetan. — Timidamente, Cassandra pôs uma mão no braço de Saetan. — Talvez se esteja a proteger a si própria.

Os olhos dourados de Saetan mudaram instantaneamente para um tom amarelo-escuro. Puxou o braço onde a mão de Cassandra se apoiava e começou a andar de um lado para o outro. — Eu nunca a magoaria. Ela conhece-me suficientemente bem para saber isso.

— Creio que ela sabe que não a magoarias deliberadamente. Saetan girou sobre os calcanhares, um movimento gracioso de bailarino. — Diz de uma vez o que tens a dizer, Cassandra. — A sua voz, embora calma, estava repleta de trovões e de uma fúria crescente.

Cassandra deslocou-se pela divisão, fazendo com que a mesa ficasse entre eles. Não que isso fosse um impedimento. — Não és só tu, Saetan. Não percebes? — Abriu os braços, implorando. — Também sou eu e Andulvar e Prothvar e Mephis.

— Não a magoariam — disse Saetan friamente. — Não posso falar por ti.

— Estás a ser insultuoso — ripostou, para logo de seguida recuperar o controlo respirando profundamente. — Muito bem. Digamos que esta noite apareces à porta da família de Jaeneüe. E a seguir? É pouco provável que tenham conhecimento do vosso relacionamento, que tenham conhecimento de qualquer um de nós. Já pensaste no choque que terão ao descobrir o tipo de associação que tens com ela? E se a abandonarem?

— Pode viver comigo — bufou.

— Saetan, sê sensato! Queres que Jeanelle cresça no Inferno, a brincar com crianças mortas até já não se lembrar como é andar entre os vivos? Por que razão lhe imporias tal vida?

— Poderíamos viver em Kaeleer.

— Durante quanto tempo? Lembra-te de quem és, Saetan. Quão ansiosos estarão aqueles amiguinhos por visitar a casa do Senhor Supremo do Inferno?

— Cabra — sussurrou, a voz tremente com o sofrimento. Deitou yarbarah no copo, bebeu-o frio e fez uma careta devido ao sabor.

Cassandra deixou-se cair numa cadeira à mesa, demasiado fatigada para se manter de pé. — Posso ser cabra, mas o teu amor é um luxo que ela pode não ter possibilidades de adquirir. Manteve-nos afastados deliberadamente e já não nos visita. Será que isso não te diz nada? Não a viste, ninguém a viu nos últimos três meses. — Lançou-lhe um sorriso vacilante.

— Talvez fossemos apenas uma fase pela qual estava a passar.

Um músculo estremeceu no queixo de Saetan. Nos seus olhos, havia um olhar estranho e letárgico. Quando por fim falou, as palavras foram suaves e rancorosas. — Não sou uma fase, Senhora. Sou a sua âncora, a sua espada e o seu escudo.

— Parece que a serves, pela forma como falas.

— Eu sirvo-a, Cassandra. Servi-te em tempos e servi-te bem, mas não mais. Sou um Príncipe dos Senhores da Guerra. Conheço as Leis dos Sangue que se aplicam quando servimos e a primeira lei não é servir, é proteger.

— E se ela não desejar a tua protecção?

Saetan sentou-se no lado oposto a Cassandra, os dedos firmemente entrelaçados. — Quando constituir a sua própria corte, pode dar-me um pontapé no rabo, se assim o desejar. Até lá... — As palavras perderam-se.

— Pode haver outra razão para a deixares ir. — Cassandra respirou fundo. — Hekatah visitou-me há alguns dias. — Retraiu-se perante o silvo de irritação emitido por Saetan, mas prosseguiu numa voz atrevida:

— Supostamente, veio ver o teu novo divertimento.

Saetan olhou-a espantado. Estava a convidá-lo a julgar o assunto levianamente, a considerar a visita de Hekatah como uma insignificância! Não, ela compreendia o perigo. Só não queria enfrentar a ira de Saetan.

— Continua — disse, com demasiada calma. Aquela mistura de medo e de prudência nos olhos de Cassandra era-lhe bastante familiar. Tinha testemunhado aquele olhar em todas as mulheres com as quais tinha ido para a cama, após ter começado a usar a Negra. Até Hekatah, embora o tivesse ocultado bem, com vista aos seus objectivos. Mas Cassandra era a Feiticeira. Usava a Negra. Nesse momento, odiava-a por ter medo dele. — Continua

— repetiu.

— Creio que não ficou muito impressionada — acrescentou Cassandra precipitadamente, — e duvido que soubesse quem eu era. No entanto, ficou desorientada quando se apercebeu que eu era uma Guardiã. De qualquer modo, pareceu mais interessada em descobrir se eu tinha conhecimento de uma criança que pudesse ser do teu interesse, um “festim jovens pelas suas palavras.

Saetan praguejou ferozmente.

Cassandra estremeceu. — Hekatah fez um desvio para me comunicar o teu interesse em carne jovem, esperando com isso, suponho eu, criar ciúmes para me tornar sua aliada.

— E o que é que lhe disseste?

— Que o teu interesse aqui era o restauro do Altar das Trevas que tinha sido baptizado em honra da Rainha que outrora serviste e, embora, me sentisse lisonjeada por ela ter pensado que me acharias divertida, infelizmente tal não era verdade.

— Talvez devesse rectificar essa opinião.

Cassandra sorriu atrevidamente, mas havia pânico nos seus olhos. — Eu não ando às cambalhotas com qualquer um. Príncipe. Quais são as tuas referências?

Por despeito, Saetan deu a volta à mesa, ergueu Cassandra e beijou-a suave e demoradamente. — As minhas referências são as melhores, Senhora — sussurrou quando, finalmente, os seus lábios se separaram dos dela. Largou-a, afastou-se e pôs a capa sobre os ombros. — Infelizmente, a minha presença é necessária noutro local.

— Durante quanto tempo vais esperar por ela?

Quanto tempo? Feiticeiras sombrias, feiticeiras fortes, feiticeiras poderosas. Sempre dispostas a receber o que lhes oferecia, dentro e fora da cama, mas nunca gostaram dele, nunca confiaram nele, sempre o temeram. E havia Jaenelle. Durante quanto tempo esperaria?

— Até que ela regresse.

 

Zunia-lhe nos nervos, persistente e irritante.

A resmonear durante o sono, Saetan voltou-se e puxou os cobertores até aos ombros.

O zunido continuou. Um chamamento. Um apelo.

Ao longo da Negra.

Saetan abriu os olhos no quarto escuro, escutando com os sentidos internos bem como com os externos.

Um grito estridente de fúria é desespero inundou-lhe a mente.

“ Jaenelle — sussurrou, sentindo um arrepio de frio quando os pés descalços tocaram o chão frio. Vestindo um roupão, dirigiu-se ao corredor para logo parar, com dúvidas sobre o rumo a tomar. Concentrou-se e enviou um chamamento pela Negra. “Jaenelle”

Não houve resposta. Apenas o zunido entrelaçado de medo, desespero e fúria.

Encontrava-se ainda em Terreille. Este pensamento rodopiava na cabeça de Saetan, enquanto percorria os corredores tortuosos do Paço. Não havia tempo para cogitar sobre como teria ela enviado aquela explosão de pensamento entre os Reinos. Não havia tempo para nada. A Senhora estava em perigo e inacessível.

Entrou de rompante no grande salão, ignorando a dor lancinante na perna doente. Um pensamento arrancou as portas da frente do Paço. A correr, desceu os degraus e circundou o Paço, dirigindo-se ao edifício isolado onde estava situado o Altar das Trevas.

Ofegante, arrancou o portão de ferro das dobradiças e entrou no amplo salão. As mãos de Saetan tremiam ao centrar o candelabro em prata com quatro braços na pedra negra e lisa. Respirando profundamente para se acalmar, acendeu as três velas negras representantes dos Reinos pela ordem adequada para abrir um Portão entre o Inferno e Terreille. Acendeu a vela no centro do triângulo constituído pelas outras três, a vela que representava o Eu, e invocou o poder do Portão, aguardando pacientemente enquanto a parede em pedra por detrás do Altar dava lentamente lugar a uma neblina e se tornava num Portão entre os Reinos.

Saetan atravessou a neblina. Ao quarto passo saiu da neblina e entrou nas ruínas que albergavam o Altar das Trevas em Terreille. Ao passar pelo Altar, reparou nos cotos de velas negras no candelabro baço e perguntou-se qual seria a razão pela qual este Altar estava a ser usado com tanta frequência. Saiu do edifício, já sem tempo para curiosidades.

Reuniu a força das Jóias Negras e enviou um pensamento por um firme fio psíquico. “Jaenelle!" Aguardou por uma resposta, lutando contra o impulso de apanhar a Teia Negra e voar até Chaillot. Se estivesse nos Ventos, estaria incontactável durante várias horas e já poderia ser tarde demais. “Jaenelle”.

"Saetan? Saetan!” Do outro lado do Reino, a sua voz chegou a Saetan como um murmúrio debilitado.

“Criança-feiticeira!” Fez convergir a sua força naquela ligação ténue. “Saetan, por favor, tenho de... Preciso de..

"Luta, criança-feiticeira, luta! Tu tens força!”

“ Preciso... não sei como... Saetan, por favor."

Até a Negra tinha limites. Rangendo os dentes, Saetan praguejou ao mesmo tempo que as suas longas unhas feriam as palmas das mãos fazendo jorrar o sangue. Se a perdesse agora... Não. Não a iria perder! Não importa o que tivesse de fazer, encontraria uma forma de lhe enviar o que ela precisava.

No entanto esta ligação entre eles estava fiada tão delicadamente que a mínima coisa poderia quebrá-la e Jaenelle tinha a maior parte da atenção centrada noutro local. Se a ligação se quebrasse, Saetan não conseguiria atravessar o Reino e voltar a encontrá-la. Ao manter a sua extremidade, a Jóia Negra estava a esgotar-se a uma velocidade impressionante. Nem queria pensar no que tinha custado a Jaenelle alcançá-lo no Inferno. Se pudesse usar alguém como ponto de transferência, se pudesse entrançar a sua força com a de outrem, durante um minuto... Cassandra? Demasiado longe. Se desviasse nem que fosse um pouco da sua força para procurar, poderia perder Jaenelle de vez.

Porém, precisava da força de mais alguém!

E ali estava. Prudente, irritada, concentrada. Outra mente no fio psíquico Negro, orientada para ocidente, para Chaillot. Outro macho.

Saetan ficou gelado. Somente outro macho usava as Jóias Negras. “Quem és?" Era uma voz profunda e culta com uma leve rouquidão sedutora. Uma voz perigosa.

O que poderia dizer? O que é que se atreveria a dizer ao filho que tinha amado por escassos anos antes de ser obrigado a abandonar? Não havia tempo para resolver os assuntos entre os dois. Não agora. Por isso optou pelo título que não era usado em Terreille há 1.700 anos. "Sou o Sacerdote Supremo da Ampulheta."

Entre os dois, foi transmitido um tremor. Uma espécie de reconhecimento cauteloso que não era bem reconhecimento. O que significava que Daemon tinha ouvido o título algures mas não sabia quem o detinha. Saetan respirou fundo. "Preciso da tua força para manter esta ligação.” Um longo silêncio. “Porquê?

Saetan rangeu os dentes, não se atrevendo a deixar que os pensamentos se dispersassem. Não posso facultar-lhe os conhecimentos de que ela necessita se não amplificar esta ligação e, caso não obtenha estes conhecimentos, pode ser destruída." Mesmo sem uma ligação completa entre os dois, Saetan sentiu Daemon a ponderar as suas palavras.

Subitamente, um fluxo de poder Negro em bruto e mal controlado precipitou-se na direcção de Saetan, ao mesmo tempo que Daemon disse: “Usai o que precisardes."

Saetan extraiu a força de Daemon, drenando-a implacavelmente ao mesmo tempo que enviava um pensamento acutilante em direcção a Chaillot. "Senhora!”

“Socorro.. .” Tanto desespero naquela palavra.

"Tira o que necessitares." Palavras de Protocolo, de serventia, de capitulação.

Saetan derrubou as suas próprias barreiras interiores, proporcionando-lhe acesso a tudo o que sabia, a tudo o que era. Caiu de joelhos e agarrou a cabeça, certo de que o seu crânio iria estilhaçar-se devido à dor provocada pela entrada de rompante de Jaenelle, vasculhando-lhe a mente como se estivesse a abrir armários e a atirar todo o conteúdo para o chão até encontrar o que pretendia. Demorou apenas um momento. Pareceu uma eternidade. De seguida, retirou-se e a ligação extinguiu-se.

“Obrigada”. Um débil murmúrio, quase sumido. “Obrigada.”

O segundo agradecimento não foi dirigido a Saetan.

Pareceram horas e não minutos até as suas mãos tombarem para as coxas, inclinando depois a cabeça para trás para olhar o falso céu da aurora. Levou mais um minuto a perceber que não estava sozinho, outra mente tocava ainda levemente a sua, revelando algo mais do que prudência.

Saetan fechou rapidamente as barreiras internas. “Procedeste bem, Príncipe. Agradeço-te... por ela.” Cautelosamente, começou a afastar-se da ligação entre os dois, incerto de que poderia sair vencedor de um confronto com Daemon.

Todavia, Daemon também se retirou, exausto.

À medida que a ligação se extinguia, imediatamente antes de Saetan ficar, de novo, sozinho consigo próprio, a voz de Daemon chegou-lhe vaga, as palavras como uma ameaça melíflua.

“Não vos atravesseis no meu caminho. Sacerdote.”

Segurando-se a um dos postes da cama de dossel, Daemon içou-se até ficar em pé, ao mesmo tempo que a porta se abriu de rompante e seis guardas entraram cautelosamente no quarto.

Normalmente teriam boas razões para o temer, mas não hoje. Mesmo que não tivesse esgotado as suas forças até à exaustão, não teria lutado. Hoje, o que quer que lhe acontecesse, era para ganhar tempo pois ela, onde quer que estivesse, precisava de recuperar.

Os guardas rodearam-no e conduziram-no até ao pátio exterior claramente iluminado.

Ao avistar os dois postes com as correias de couro presas na base e no topo, hesitou por um brevíssimo momento.

A Senhora Cornéiia, a última Rainha de estimação a comprar os seus serviços a Dorothea SaDiablo, encontrava-se junto aos postes. Os seus olhos faiscavam. A sua voz gotejava de excitação. — Dispam-no.

Daemon afastou furiosamente as mãos dos guardas e começou a despir-se quando uma descarga de dor proveniente do Anel de Obediência o fez tomar fôlego. Olhou para Cornéiia e baixou as mãos.

— Dispam-no — ordenou Cornéiia.

Màos rudes despiram-no à pressa e arrastaram-no para os postes. Os guardas amarraram-lhe os tornozelos e os pulsos aos postes, apertando as correias de couro até ficar retesado.

Cornéiia riu-se para ele. — Um escravo está proibido de usar Jóias. Um escravo não pode fazer mais nada para além da Arte básica, como bem sabes.

Sim, sabia. Tal como sabia que Cornéiia detectaria a libertação daquela enorme quantidade de força negra e que o castigaria por isso. Para a maioria dos machos, a ameaça de dor - especialmente a dor que poderia ser produzida pelo Anel de Obediência - era suficiente para os manter submissos. Mas Daemon tinha aprendido a encarar a agonia como uma delicada amante e usava-a para alimentar o seu ódio por Dorothea e por tudo e todos a ela ligados.

— A punição para este tipo de desobediência é de cinquenta chicotadas

— disse Cornéiia. — Tu mesmo farás a contagem. Se te enganares numa, será repetida até a dizeres correctamente. Se te perderes, a contagem recomeça.

Daemon forçou a voz a soar indiferente. — O que é que a Senhora SaDiablo dirá sobre o tratamento que dais à sua propriedade?

— Dadas as circunstâncias, não creio que a Senhora SaDiablo se importe — respondeu Cornéiia suavemente. A sua voz transformou-se num estalido de chicote:

— Comecem!

Daemon ouviu o assobio do chicote antes de o golpe o atingir. Por um breve momento, foi percorrido por um estranho arrepio de prazer antes de o corpo reconhecer a dor. Inspirou irregularmente. — Um.

Tudo tem um preço. — Dois. — Uma Lei dos Sangue ou parte de um código de honra? — Três. — Nunca tinha ouvido falar do Sacerdote Supremo da Ampulheta até encontrar um dos avisos de Surreal, mas havia algo de familiar naquela outra mente. — Quatro. — Quem era o Sacerdote?

— Cinco. — Um Príncipe dos Senhores da Guerra... — Seis. — ... como ele próprio... — Sete. — ... que usava as Jóias Negras. — Oito. — Tudo tem um preço. — Nove. — Quem é que lhe tinha ensinado isto? — Dez. — Mais velho. Mais experiente. — Onze. — A oriente. — Doze. — E ela estava a ocidente. — Treze. — Não sabia quem ela era, mas sabia, sim, o que ela era. — Catorze. Quinze. Tudo tem um preço.

Os guardas arrastaram-no de volta para o quarto e trancaram a porta.

Daemon tombou sobre as mãos e sobre os joelhos. Apoiando a testa no chão, tentou atenuar a dor lancinante nas costas, nádegas e pernas o tempo suficiente para se levantar. Cinquenta chicotadas, cada uma rasgando-lhe a carne. Cinquenta chicotadas. Nem mais uma. Não se tinha enganado uma única vez na contagem, apesar das explosões de dor que Cornéiia tinha enviado pelo Anel de Obediência para o distrair.

Juntando os pés debaixo de si, impulsionou-se para uma posição quase direita e caminhou penosamente para a casa de banho, incapaz de abafar o gemido que acompanhava cada passo.

Ao alcançar a casa de banho, apoiou uma mão na parede e abriu as torneiras para encher a banheira com água morna. A sua visão ficava repetidamente desfocada e o corpo tremia de dor e cansaço. Só à terceira tentativa conseguiu invocar o pequeno estojo em pele que continha os seus medicamentos escondidos. Uma vez aberto, levou um minuto até que a sua vista permitisse ver com nitidez suficiente o frasco que pretendia.

Combinadas com água, as ervas em pó purificavam feridas, adormeciam a dor e permitiam que o processo de cura se iniciasse - se conseguisse manter a mente suficientemente constante, se conseguisse recolher-se em si próprio tão profundamente que lhe permitisse reunir o poder, a Arte de que necessitaria para sarar a carne rasgada.

Os lábios de Daemon esboçaram um sorriso sinistro enquanto desligava a torneira. Se enviasse um chamamento pela Negra, se pedisse ajuda ao Sacerdote, será que a obteria? Era pouco provável. Não era um inimigo. Ainda não. Mas Surreal tinha feito bem em deixar aquelas notas a avisá-lo sobre o Sacerdote.

Daemon soltou um grito quando o frasco lhe escorregou das mãos, estilhaçando-se no chão da casa de banho. Pôs-se de joelhos, soltou um som agudo quando se cortou num pedaço de vidro e ficou a olhar fixamente para o pó, com lágrimas de dor e frustração a brotar dos olhos. Sem o pó para o ajudar a sarar as feridas, poderia ainda sará-las até certo ponto, pode-ria ainda estancar a hemorragia... mas as cicatrizes ficariam. Não precisava de um espelho para saber qual seria o seu aspecto.

"Não!” Não se apercebeu de ter efectuado um envio. Estava somente a tentar aliviar a frustração.

Um minuto mais tarde, ainda de joelhos no chão da casa de banho, a tremer e a tentar não dar livre curso aos soluços que cresciam dentro de si, sentiu uma mão tocar-lhe no ombro.

Daemon girou sobre si próprio, dentes à mostra e olhos ferozes.

Não estava ninguém ali. O toque tinha desaparecido. Mas havia uma presença na casa de banho. Estranha... ou não.

Daemon perscrutou a divisão e não encontrou nada. Mas ainda estava presente, como algo que se vê pelo canto do olho e que desaparece quando nos viramos para ver. Com uma respiração ofegante, Daemon aguardou.

Quando regressou, o toque mostrou-se hesitante, cauteloso. Daemon sentiu um calafrio ao percorrer-lhe suavemente as costas. Sentiu um calafrio pois, juntamente com o cansaço e o desânimo, o toque suave estava repleto de uma ira gelada.

As ervas em pó e o vidro partido desapareceram. Um momento mais tarde, uma bola em bronze, perfurada como uma bola para o chá, surgiu sobre a água e mergulhou. Pequenas mãos-fantasma, dóceis embora fortes, ajudaram-no a entrar no banho.

Daemon arfou quando as feridas abertas tocaram na água, mas as mãos puxaram-no para baixo, para baixo, para baixo até ficar deitado de costas, com a água a cobri-lo. Após alguns momentos, deixou de sentir as mãos. Consternado por julgar que a ligação tinha sido quebrada, debateu-se para se sentar, mas logo se apercebeu que algo o mantinha deitado. Relaxou e percebeu lentamente que a pele estava dormente do queixo para baixo, percebeu que já não sentia dor. Suspirando com gratidão, Daemon apoiou a cabeça na banheira e fechou os olhos.

Uma escuridão doce e estranha fluiu por de. Gemeu, mas era um gemido de prazer.

Estranha a forma como a mente consegue vaguear. Quase que conseguia cheirar o mar, sentir o poder das ondas. Sentiu, depois, o forte odor da terra após a chuva quente da Primavera. E o calor adocicado dos raios de sol numa tarde agradável de Verão. O prazer sensual ao entrar nu numa cama com lençóis limpos.

Quando, relutantemente, abriu os olhos, o odor psíquico ainda persistia, mas Daemon sabia que ela já se tinha ido embora. Moveu o pé pela água já fria. A bola em bronze também já tinha desaparecido.

Com todo o cuidado, Daemon saiu do banho, abriu o ralo e vacilou, sem saber o que fazer. Pegou numa toalha e deu pequenos toques na parte da frente do corpo para absorver a maior parte da água, mas sentia alguma relutância em tocar as costas. Cerrando os dentes, voltou as costas para o espelho e olhou por cima do ombro. Era melhor saber qual a gravidade dos ferimentos.

Daemon ficou pasmado.

Ali estavam cinquenta linhas brancas, como linhas de giz na pele castanho dourada. As linhas pareciam frágeis e levaria alguns dias de cuidados antes de se poder afirmar que as feridas estavam solidamente fechadas, mas estava curado. Se não voltassem a abrir, as linhas desvanecer-se-iam. Nenhuma cicatriz.

Daemon dirigiu-se com todo o cuidado para a cama e deitou-se de barriga para baixo, movendo os braços devagarinho para cima, colocando-os sob a almofada, como suporte para a cabeça. Era difícil manter-se acordado, era difícil deixar de pensar em como um prado pode parecer tão prateado sob o luar. Difícil...

Alguém tinha estado a tocar-lhe nas costas já há algum tempo antes de Daemon se aperceber. Resistiu ao impulso de abrir os olhos. Não haveria nada para ver e, se ela se apercebesse de que estava acordado, poderia afastar-se.

O seu toque era firme, delicado, conhecedor. Deslocava-se devagar em linhas circulares ao longo das costas de Daemon. Refrescante, relaxante, confortante.

Onde estava ela? Não se encontrava perto, por isso como conseguiria estabelecer o contacto? Não sabia. Não se importava. Entregou-se ao prazer daquele toque fantasma, uma mão que um dia seguraria fisicamente.

Quando se foi embora outra vez, Daemon levou lentamente um braço às costas, tocando-lhes cuidadosamente. Olhou admirado para o espesso unguento que ficou nos dedos, limpando-os ao lençol. Os olhos fecharam-se. Não havia razão para lutar contra o sono que tanta falta lhe fazia.

Contudo, imediatamente antes de se entregar, pensou uma vez mais no tipo de feiticeira que vinha em auxílio de um estranho, ela própria exausta devido à sua provação, e lhe curava as feridas. — Não te atravesses no meu caminho. Sacerdote — murmurou entre dentes e adormeceu.

 

                             CAPÍTULO 4

Saetan bateu com o livro na secretária e estremeceu de raiva.

Tinha passado um mês desde o apelo por conhecimento. Um mês de espera por alguma palavra, alguma indicação de que estava bem. Tentou entrar em Beldon Mor, mas Cassandra estava certa. A bruma psíquica que rodeava a cidade era uma barreira apenas sentida pêlos mortos, uma barreira que mantinha todos no exterior. Jaenelle não corria riscos fosse qual fosse o segredo por detrás da bruma e a sua falta de confiança era uma lâmina entre as costelas de Saetan.

Enredado nos seus pensamentos, não se apercebeu da presença de mais alguém no gabinete até ouvir chamar por si uma segunda vez.

— Saetan? — Tamanha dor e súplica naquela vozinha cansada. — Por favor, não te zangues comigo.

A visão desfocou-se. As unhas cravaram-se na secretária em madeira escura, penetrando na madeira dura como pedra. Queria dar livre curso a todo o medo e a toda a raiva que tinha crescido em si desde a última vez que a tinha visto, meses atrás. Queria sacudi-la por se atrever a pedir-lhe para reprimir toda a fúria. Ao invés, respirou fundo, serenou o rosto pondo uma máscara o mais neutra que conseguiu e virou-se na direcção de Jaenelle.

A visão que teve fê-lo sentir-se mal.

Era pele e ossos. Os olhos safira eram uma cova no crânio, quase inexistentes devido às escuras olheiras por baixo deles. O cabelo louro que Saetan adorava tocar, pendia frágil e baço à volta do rosto magoado. Nos tornozelos e nos pulsos, eram visíveis queimaduras provocadas por cordas e sangue ressequido.

— Vem cá — disse, a voz esvaziada de emoções. Quando Jaenelle não se moveu, deu um passo na sua direcção. Jaenelle retraiu-se e recuou. A voz de Saetan ganhou o tom de um fraco trovão. — Jaenelle, vem cá.

Um passo. Dois. Três. Olhou fixamente para os pés de Saetan, a tremer.

Não lhe tocou. Não confiava em si próprio o suficiente para controlar o ciúme e o despeito que o abrasava ao mesmo tempo que olhava para ela. Preferia ficar com a família e ser tratada desta forma a ficar com ele, que a amava com todo o seu ser, mas a quem não era confiada a sua protecção pois era um Guardião, era o Senhor Supremo do Inferno.

É preferível brincar com os mortos a ser um deles, pensou amargamente. Neste momento, não tinha forças suficientes para brigar com ele. Mantê-la-ia aqui por uns dias, deixando-a sarar. Só nessa altura faria com que o cabrão do pai se ajoelhasse à sua frente, forçando-o a renunciar a todos os direitos de paternidade. Faria...

— Não os posso abandonar, Saetan. — Jaenelle levantou os olhos. As lágrimas que corriam pelas faces magoadas de Jaenelle apertaram-lhe o coração, mas o rosto manteve-se como uma pedra e aguardou em silêncio.

— Não há mais ninguém. Não percebes?

— Não, não percebo. — A sua voz, pese embora controlada e serena, ribombou na sala. — Ou talvez perceba. — O olhar frio varreu-lhe o corpo trémulo. — Preferes suportar isto e ficar com a tua família a viver comigo e com tudo o que tenho para te oferecer.

Jaenelle pestanejou surpreendida. Os seus olhos perderam um pouco do ar perturbado e ficou pensativa. — Viver contigo? Estás a falar a sério?

Saetan observou-a, perplexo.

Pesarosamente, Jaenelle abanou a cabeça lentamente. — Não posso. Gostaria, mas não posso. Ainda não. Sozinha, a Rose não iria conseguir.

Saetan baixou-se, apoiando-se num joelho, e segurou as mãos débeis, quase transparentes de Jaenelle nas suas. Estremeceu quando Saetan lhe tocou, mas não as retirou. — Não teria de ser no Inferno, criança-feiticeira — disse suavemente. — Abri o Paço em Kaeleer. Poderias viver aí e talvez frequentar a mesma escola que os teus amigos.

Jaenelle deu uma risadinha e, por momentos, os seus olhos dançaram divertidos. — Escolas, Senhor Supremo. Vivem em vários lugares.

Saetan sorriu afectuosamente e inclinou a cabeça.— Escolas, seja. Ou tutores particulares. Tudo o que desejares. Posso providenciar, criança-feiticeira.

Os olhos de Jaenelle encheram-se de lágrimas ao mesmo tempo que abanava a cabeça.

— Seria fantástico, deveras, mas... ainda não. Ainda não os posso deixar.

Saetan reprimiu os argumentos e suspirou. Ela tinha-o procurado em busca de consolo, não para brigar. E uma vez que não poderia servi-la oficialmente até Jaenelle constituir uma corte, não tinha qualquer direito de se colocar entre ela e a família, independentemente do que sentia. — Está bem. Mas lembra-te, por favor, tens um lugar para ficar. Não tens de permanecer com eles. Contudo... estaria disposto a preparar o que fosse necessário para que a tua família te visitasse ou vivesse contigo, sob a minha supervisão, se assim o desejasses.

Jaenelle arregalou os olhos. — Sob a tua supervisão? — disse debilmente. Soltou uma gargalhada semelhante a um gorgolejo, tentando, de imediato, parecer austera. — Não porias a minha irmã a aprender a usar os bastões com o Prothvar, pois não?

A voz de Saetan tremeu de divertimento e devido às lágrimas por verter. — Não, não a poria a aprender a usar os bastões com Prothvar. — Com todo o cuidado, puxou-a para os seus braços e abraçou o corpo débil. Lágrimas brotaram dos olhos fechados de Saetan quando Jaenelle colocou os braços à volta do seu pescoço, num abraço apertado. Abraçou-a, aqueceu-a, confortou-a. Quando, por fim, Jaenelle se afastou dele, pôs-se rapidamente em pé, limpando as lágrimas do rosto.

Jaenelle desviou o olhar. — Voltarei logo que possa.

Acenando a cabeça em concordância, Saetan voltou-se para a secretária, sem conseguir falar. Não ouviu um único movimento, não ouviu a porta abrir-se, porém, quando se voltou, ela já ali não estava.

 

Surreal estava deitada debaixo do homem que transpirava e que grunhia, movendo as ancas ao ritmo adequado e gemendo com sensualidade sempre que uma mão gorda lhe apertava os seios. Olhava fixamente para o tecto enquanto as suas mãos deambulavam para baixo e para cima nas costas suadas com uma urgência não muito simulada.

Porco estúpido, pensou quando um beijo baboso lhe molhou o pescoço. Deveria ter cobrado mais por este contrato - e tê-lo-ia feito se soubesse o quão desagradável seria na cama. No entanto, só teria uma oportunidade e estava quase no auge.

Agora o feitiço. Ah, tecer o feitiço.

Voltou a mente para o interior, deslizou das profundidades serenas da Verde para a Cinzenta ainda mais tranquila, mais profunda, mais silenciosa, tecendo rapidamente o feitiço de morte à volta do homem, entrelaçando-o com os ritmos da cama, com o batimento acelerado do coração e com a respiração irregular.

A prática tinha-a tornado hábil na sua Arte.


O último elo do feitiço era um retardamento. Não amanhã, mas depois de amanhã ou no dia a seguir. Nessa altura, fosse devido a uma irritação, fosse devido a um desejo carnal, logo que o coração disparasse, o feitiço faria explodir uma veia no coração, queimaria o cérebro com o poder da Cinzenta, quebrar-lhe-ia a Jóia e não deixaria mais do que carne em putrefacção.

Tinha sido um comentário ríspido de Sadi que convenceu Surreal a ser meticulosa nos seus assassínios. Daemon considerava a possibilidade de que os Sangue, sendo mais do que carne, poderiam continuar a usar as Jóias após a morte do corpo - e poderiam recordar-se de quem os tinha ajudado a seguir o caminho enevoado para o Inferno. Tinha dito:

— Independentemente do que fizeres ao corpo, conclui a eliminação. Afinal, quem é que gostaria de um dia, ao virar uma esquina, encontrar um dos demónios-mortos que gostariam de retribuir o favor?

Assim sendo, Surreal concluía sempre a eliminação. Não haveria nada detectável, nada que conduzisse a ela. As Curandeiras que exerciam agora em Terreille, tal como eram, partiriam do princípio que tinha estoirado a mente e as Jóias na tentativa de salvar o corpo da morte física.

Surreal despertou dos seus devaneios quando os grunhidos e as batidas aumentaram momentaneamente. Por fim, deixou-se cair. Surreal virou a cabeça, tentando não inalar o odor nauseabundo do corpo imundo.

Quando já ressonava, deitado de costas, Surreal escapou-se da cama, vestiu um robe de seda e franziu o nariz. O robe teria de ser limpo antes de o voltar a usar. Prendeu o cabelo atrás das orelhas e dirigiu-se à janela, abrindo a cortina.

Tinha de decidir para onde se dirigir agora que este contrato estava terminado. Deveria ter tomado esta decisão há dias atrás, mas continuava a hesitar devido aos sonhos recorrentes que varriam a sua mente como as ondas numa praia. Sonhos sobre Titian e as Jóias de Titian. Sonhos sobre a necessidade de estar algures, sobre a necessidade da sua presença algures.

Mas Titian não lhe podia indicar o local.

Talvez as luzes nesta velha e decrépita cidade fossem demasiadas. Talvez não conseguisse decidir por não conseguir ver as estrelas.

Estrelas. E o mar. Algum sítio limpo, onde pudesse ter uma agenda pouco preenchida para puder passar os dias a ler ou a caminhar junto ao mar.

Surreal sorriu. Tinham passado três anos desde a última vez que tinha estado algum tempo com Deje. Chaillot possuía algumas praias bonitas e calmas na parte oriental. Num dia límpido, conseguia ver-se a Ilha Tacea. E existia um Santuário perto, não existia? Ou algum tipo de ruínas antigas. Piqueniques, caminhadas demoradas e solitárias. Deje ficaria feliz por vê-la e não a forçaria a preencher todas as noites.

Sim. Chaillot.

Surreal afastou-se da janela quando o homem roncou e se virou bruscamente de lado. O Sádico tinha razão. Existiam imensas formas de matar um homem de modo eficaz, sem ser necessário salpicar o sangue pelas paredes.

Era pena que não lhe dessem o mesmo prazer.

 

Lucivar Yaslana ouvia as meias verdades romanceadas que Zuultah jorrava sobre si a um círculo de feiticeiras nervosas e de olhos esbugalhados, perguntando-se a si próprio se partir uns quantos pescoços de fêmeas iria trazer algum colorido às histórias. Com relutância, pôs de lado aquela fantasia agradável, e perscrutou a sala apinhada em busca de algum tipo de diversão.

Daemon Sadi deslizou à sua frente.

Lucivar reteve a respiração e voltou-se para o círculo de Zuultah. Da última vez que as Rainhas tinham sido pouco cuidadosas em mante-los separados, ele e Daemon tinham destruído uma corte durante uma briga que tinha começado num desacordo sobre se o vinho que estava a ser servido era apenas medíocre ou se, na realidade, era mijo de cavalo colorido.

Tinha sido há quarenta anos. Era tempo suficiente entre as raças de longevidade reduzida para que as jovens e inquietas Rainhas se convencessem de que o poderiam controlar, bem como a Daemon, ou, melhor ainda, de que eram elas as maravilhosas Rainhas detentoras de uma tal determinação que conseguiam domar dois Príncipes dos Senhores da Guerra com Jóias Negras. Bem, este Príncipe Eyrieno dos Senhores da Guerra não era domável - pelo menos não o seria nos próximos cinco anos. Quanto ao Sádico... Qualquer homem que se referisse às suas próprias habilidades na cama como mel envenenado não era passível de ser domado ou controlado, a não ser por escolha própria.

Já o serão ia longo quando Lucivar teve oportunidade de se escapar para o jardim das traseiras. Daemon tinha saído uns minutos antes, após uma altercação abruta e ríspida com a Senhora Cornelia.

Deslocando-se com uma cautela de predador, Lucivar seguiu o rasto de ar fresco deixado pela passagem de Daemon. Virou uma esquina e parou.

Daemon estava de pé no meio do caminho de gravilha, o rosto voltado para o céu nocturno ao mesmo tempo que uma suave brisa lhe agitava o cabelo negro.

A gravilha sob os pés de Lucivar moveu-se ligeiramente.

Daemon voltou-se em direcção ao som Lucivar hesitou. Sabia bem o que significava aquele olhar letárgico e vidrado nos olhos de Daemon, lembrava-se demasiado claramente do que tinha acontecido nas cortes onde aquele sorriso terno e assassino tinha permanecido por mais do que um breve segundo. Nada, nem ninguém, estava seguro quando Daemon se encontrava naquele estado de espírito. Porém, fogo do Inferno, era isso que tornava divertida a dança com o Sádico.

Exibindo o seu próprio sorriso indolente e arrogante, Lucivar avançou e esticou lentamente as asas negras em toda a sua amplitude antes de as voltar a fechar bem junto ao corpo. — Olá, Bastardolas.

O sorriso de Daemon ficou mais descontraído. — Olá, Bastardinho. Já lá vai muito tempo.

— É verdade. Tens bebido bons vinhos ultimamente?

— Nenhum que tu apreciasses. — Daemon examinou as roupas de Lucivar e franziu o sobrolho. — Decidiste tornar-te num rapaz bem comportado?

Lucivar bufou. — Decidi que quero comida decente e uma cama decente para variar, bem como uns dias fora de Pruul, e tudo o que tenho de fazer é lamber as botas de Zuultah sempre que ela regressa dos estábulos.

— Talvez seja esse o teu problema, Bastardinho. Não lhe deverias lamber as botas mas sim beijar-lhe o rabo. — Voltou-se e deslizou pelo caminho.

Lembrando-se da razão pela qual queria falar com Daemon, Lucivar seguiu-o com relutância até um belvedere aconchegado a um canto do jardim, de onde não seriam avistados da mansão. Daemon sorriu daquela forma fria e melíflua e desviou-se para deixar Lucivar entrar primeiro.

Nunca permitas que um predador sinta o medo.

Incomodado pelo seu próprio desconforto, Lucivar voltou-se para estudar as folhas luminescentes do cipreste que se encontrava perto. Ficou hirto quando Daemon surgiu por trás, quando as longas unhas murmuraram nos seus ombros, brincando com a pele de uma forma apaixonada.

— Desejas-me? — sussurrou Daemon, passando os lábios pelo pescoço de Lucivar.

Lucivar bufou e tentou afastar-se, mas a mão que o acariciava rapidamente se tornou um vício. — Não — disse de forma categórica. — Suportei muito disso em acampamentos de caça dos eyrienos. — Com um sorriso rasgado, voltou-se. — Pensas realmente que o teu toque faz disparar o meu coração?

— E não faz? — sussurrou Daemon, com um estranho olhar. Lucivar olhou espantado. A voz de Daemon estava demasiado melíflua, a trautear em demasia, perigosamente letárgica. Fogo do Inferno, Lucivar pensou desesperadamente ao mesmo tempo que os lábios de Daemon tocavam os seus, o que é que se passava de errado com ele? Este não era o seu tipo de jogo.

Lucivar tentou recuar. As unhas de Daemon cravaram-se na parte de trás do pescoço. As afiadas unhas dos polegares espicaçavam-lhe a garganta. Mantendo os pulsos pressionados contra as coxas, Lucivar fechou os olhos e entregou-se ao beijo.

Não havia qualquer razão para se sentir humilhado e envergonhado. O seu corpo estava a reagir a um estímulo da mesma forma que reagiria ao frio ou à fome. A reacção física nada tinha a ver com sentimentos ou desejo. Nada.

Contudo, Mãe Noite, Daemon poderia pegar fogo a uma pedra!

— Porque é que estás a fazer isto? — Lucivar arquejou. — Pelo menos diz-me porquê.

— E porque não? — respondeu Daemon amargamente. — Tenho de me prostituir para toda a gente, por que não para ti?

— Porque eu não te desejo. Por que não é isso que tu queres. Daemon, isto é uma loucura! Porque é que estás a fazer isto?

Daemon encostou a testa à de Lucivar. — Uma vez que já sabes a resposta, por que é que me perguntas? — Massajou os ombros de Lucivar. — Já não aguento ser tocado por elas. Desde... Já não suporto o toque, o cheiro, o gosto. Violaram tudo o que sou até já não restar nada puro a oferecer.

Lucivar agarrou os pulsos de Daemon. A vergonha e a amargura que impregnavam o odor psíquico de Daemon arranharam-lhe um nervo que se tinha recusado a explorar nos últimos cinco anos. Quando fosse suficientemente crescida para compreender o que significava, será que aquela gatinha de olhos azul-safira os desprezaria pela forma como tinham sido forçados a servir? Não teria importância. Lutaria com todas as suas forças pela possibilidade de a servir. E o mesmo faria Daemon. — Daemon. — Respirou profundamente. — Daemon, ela chegou.

Daemon recuou. — Eu sei. Senti-a. — Enfiou as mãos trémulas nos bolsos das calças. — Há perturbações à sua volta...

— Que perturbações? — perguntou Lucivar bruscamente.

— .. .e não canso de me perguntar se ele consegue - se irá - protegê-la.

— Quem? Daemon!

Daemon caiu ao chão, agarrado à zona genital e a gemer.

Praguejando baixinho, Lucivar abraçou Daemon e aguardou. Nada mais poderia ser feito por um homem a sofrer devido a uma descarga de dor enviada pelo Anel de Obediência.

Quando findou e Daemon se levantou, o seu belo e aristocrático rosto tinha endurecido numa máscara fria e vitrificada pela dor e a sua voz estava vazia de emoções. — Parece que a Senhora Cornelia solicita a minha presença. — Sacudiu um raminho da manga do casaco. — E pensar que ela já teria aprendido. — Hesitou antes de deixar o belvedere. — Cuida-te, Bastardinho.

Lucivar encostou-se ao belvedere muito depois dos passos de Daemon se terem desvanecido. O que é que teria acontecido entre Daemon e a rapariga? E o que é que quereria dizer com "Cuida-te, Bastardinho"? Uma despedida afectuosa... ou um aviso?

— Daemon? — Lucivar murmurou, recordando-se de outro lugar e de outra corte. — Daemon, não. — Correu em direcção à mansão. — Daemon!

Lucivar entrou de rompante pelas portas em vidro abertas e abriu caminho por entre grupos de mulheres tagarelas, quase sem se aperceber do rosto encolerizado de Zuultah à sua frente. Tinha percorrido metade dos degraus que levavam aos quartos dos hóspedes quando uma descarga de dor proveniente do Anel de Obediência o fez cair de joelhos. Zuultah estava a seu lado, o seu rosto contorcido de raiva. Lucivar tentou erguer-se mas outra onda do Anel de Obediência fê-lo dobrar-se de tal forma que a sua testa tocou os degraus.

— Deixai-me ir, Zuultah. — A voz estava alterada pela dor.

— Vou-te ensinar boas maneiras, arrogante...

Lucivar contorceu-se para a conseguir olhar de frente. — Deixai-me ir, cabra estúpida — sibilou. — Deixai-me ir antes que seja tarde de mais.

Demorou um longo minuto até Zuultah se aperceber de que não era ela que Lucivar temia e demorou outro longo minuto até Lucivar se conseguir levantar.

Com uma mão a agarrar os genitais, Lucivar içou-se pela escadaria e forçou-se a correr, embora aos tropeções, em direcção à ala dos hóspedes. Não havia tempo para pensar na multidão que crescia atrás de si, não havia tempo para pensar em mais nada a não ser chegar ao quarto de Cornélia antes de...

Daemon abriu a porta de Cornelia, fechou-a atrás de si, puxou os punhos da camisa para baixo e, de seguida, bateu violentamente com o punho na parede.

Lucivar sentiu a mansão estremecer à medida que o poder da Jóia Negra ondulava pela parede.

Surgiram fendas na parede, abrindo-se em todas as direcções, cada vez maiores e maiores.

— Daemon?

Daemon puxou novamente os punhos da camisa para baixo. Quando, por fim, olhou para Lucivar, os seus olhos estavam tão gelados e vidrados como uma pedra preciosa opaca - já não eram humanos.

Daemon sorriu.

Lucivar tremeu.

— Corre — trauteou Daemon. Ao ver a multidão que abarrotava o corredor atrás de Lucivar, virou-se calmamente e caminhou na direcção oposta.

A mansão continuava a estremecer. Por perto, algo desabou.

Humedecendo os lábios, Lucivar abriu a porta de Cornéiia. Olhou espantado para a cama, para o que estava na cama, e lutou para controlar as entranhas nauseadas. Afastou-se da porta aberta e ficou ali, demasiado entorpecido para se mover.

Cheirou-lhe a fumo, ouviu o crepitar das chamas que consumiam um quarto. Pessoas gritaram. As paredes da mansão retumbaram à medida que se separavam mais e mais. Olhou à volta, baralhado, até que uma parte do tecto se abateu a alguns metros dele.

O medo aclarou-lhe as ideias e tomou a única acção sensata.

Correu.

 

Dorothea SaDiablo, a Sacerdotisa Suprema de Hayll, percorria toda a sala de estar, a capa-casulo a roçar o chão, que usava sobre um simples vestido negro, a ondular atrás dela. Batia com as pontas dos dedos umas nas outras, uma vez e outra, observando distraidamente que a sua prima Hepsabah estava cada vez mais agitada devido ao silêncio e ao caminhar contínuos.

Hepsabah contorcia-se na cadeira. — Não vais mesmo voltar a trazê-lo para aqui? — guinchou devido ao pânico crescente. Tentou manter as mãos quietas pois Dorothea achava irritantes os seus gestos nervosos, mas as mãos pareciam pássaros cujas asas tinham sido cortadas, agitando-se irremediavelmente no seu colo.

Dorothea lançou um olhar penetrante na direcção de Hepsabah e continuou a caminhar de um lado para o outro. — Para onde é que o hei-de mandar? — disse bruscamente. — Pode levar anos até que alguém queira contratá-lo. E com as histórias que correm, talvez nem consiga oferecer o cabrão como presente. A maior parte daquele lugar ficou queimado de tal maneira que está irreconhecível... mas o quarto de Cornéiia está intacto. Foram muitas as pessoas que viram o que estava naquela cama. Tem havido demasiada conversa.

— Mas... não está lá e não está aqui. Onde está ele?

— Fogo do Inferno, eu é que sei! Por perto. Escondido algures. Provavelmente a estorcegar umas quantas feiticeiras ale não restar mais do que ossos estilhaçados e carne transformada em polpa.

— Podias convocá-lo com o Anel.

Dorothea parou de andar e olhou fixamente a prima com os olhos semicerrados. As suas mães tinham sido irmãs. Desse lado, a linhagem era perfeita. E o consorte que tinha sido o progenitor de Hepsabah tinha demonstrado potencial. Como é que duas das Cem Famílias de Hayll tinham concebido esta idiota afectada? A não ser que a sua querida tia tivesse permitido ter sido fecundada por algum tipo de escumalha. Pensar que Hepsabah era o melhor que tinha para trabalhar numa forma de lhe por as rédeas. Tinha sido um erro. Talvez tivesse sido melhor ter deixado aquela cabra de Dhemian ficar com ele. Não. Aí punham-se outros problemas. A Sacerdotisa das Trevas tinha-a avisado. Serviu-lhe de pouco.

Dorothea sorriu para Hepsabah, satisfeita por vê-la encolher-se cada vez mais na cadeira. — Achas pois que o devia chamar? Usar o Anel quando os destroços naquele lugar ainda mal arrefeceram? Estarás tu disposta a dar-lhe as boas-vindas se eu o trouxer dessa forma?

O rosto macio e cuidadosamente maquilhado de Hepsabah engelhou-se de medo. — Eu? — gemeu. — Não me obrigarias a isso. Não podes obrigar-me. Ele não gosta de mim.

— Mas és a mãe dele, minha querida — ronronou Dorothea.

— Mas tu sabes... tu sabes...

— Sim, sei. — Dorothea continuou a andar para trás e para a frente, mas mais devagar. — Ora bem. Ele está em Hayll. Registou-se esta manhã num dos postos de entrada. Brevemente estará aqui. Deixemo-lo ter um dia ou dois para descarregar a sua raiva em quem quer que seja. Entretanto, terei de organizar algum tipo de diversão pedagógica. E terei de pensar no destino que lhe irei dar. O lixo hayiliano e os plebeus não percebem o que ele é. Gostam dele. Acham que a generosidade insignificante que demonstra é como ele é verdadeiramente. Deveria ter preservado a imagem do quarto de Cornélia num cristal encantado para lhes mostrar como ele é na realidade. Não interessa. Não ficará muito tempo. Encontrarei alguém suficientemente insensato para ficar com ele.

Hepsabah levantou-se, alisou o vestido dourado sobre o corpo acolchoado e curvilíneo e afage»ú o cabelo negro encaracolado. — Bem, devo ir ver se o quarto está preparado. — Soltou uma risadinha nervosa por detrás da mão. — É o dever de uma mãe.

— Não te encostes muito aos postes da cama, minha querida. Sabes bem como ele odeia o cheiro almiscarado de uma mulher.

Hepsabah pestanejou, engolindo com dificuldade. — Eu nunca — disse indignada, amuando de imediato. — Não é justo.

Dorothea aconchegou um cabelo rebelde nos elegantes caracóis de Hepsabah. — Quando começares a ter esses pensamentos, minha querida, lembra-te de Cornelia.

A pele morena de Hepsabah empalideceu. — Sim — murmurou entre dentes, enquanto Dorothea a conduziu à porta. — Sim, lembrar-me-ei.

 

Daemon deslizou pelo passeio apinhado com passadas largas e sem paragens, ao mesmo tempo que as pessoas saltavam do seu caminho, voltando a preencher o espaço que deixava ao passar. Não os via, não ouvia as vozes sussurrantes. Com as mãos nos bolsos das calças, deslizava pela multidão e pelo barulho, inconsciente e indiferente. Estava em Draega, a capital de Hayll, Estava em casa.

Nunca tinha gostado de Draega, nunca tinha gostado dos altos edifícios em pedra ao lado uns dos outros, não deixando o sol penetrar, nunca tinha gostado das estradas de betão e dos passeios de betão com árvores enfezadas e empoeiradas que cresciam em pedaços de terra circulares recortados no betão. Oh, havia muito que fazer aqui: teatros, espectáculos de variedades, museus, sítios para jantar. Todas as coisas de que um povo de longevidade prolongada, arrogante e inútil, necessitava para preencher as horas vazias. Mas Draega... Se tivesse a certeza de que duas feiticeiras em particular jazeriam esmagadas e enterradas nos escombros, estilhaçaria a cidade sem pensar duas vezes.

Virou de repente para a rua, ziguezagueando por entre as carruagens que tiveram de parar bruscamente, sem se aperceber da ira dos condutores. Um ou dois passageiros puseram a cabeça de fora por uma janela lateral para gritar com ele, mas ao verem a sua cara e reconhecerem quem era, enfiaram rapidamente as cabeças para dentro, na esperança de Daemon não ter reparado neles.

Desde que tinha chegado nessa manhã que estava a seguir um fio psíquico que o puxava na direcção de um destino desconhecido. Não estava perturbado pelo puxão. As sinuosidades caóticas denunciavam quem estava na outra extremidade. Não sabia por que razão estaria ela em Draega, logo aqui, mas a necessidade de o ver era forte o suficiente para o puxar na sua direcção.

Daemon entrou no grande parque no centro da cidade, virou para o caminho que levava à zona sul e diminuiu a velocidade. Entre as árvores e a erva, com os sons da rua abafados, respirava um pouco melhor. Transpôs uma ponte pedonal que atravessava um riacho que não era mais do que um fio, hesitou um momento, tomando a bifurcação à direita no caminho que levava ainda mais para o interior do parque.

Por fim, chegou a uma porção oval de relva. Um banco de ferro rendado estava colocado no final da oval. Um semicírculo de ervas-da-fortuna servia de pano de fundo, pequenas flores azuis com a base branca preenchiam os arbustos. Em cada extremidade da oval estavam duas árvores altas e antigas e os respectivos ramos entrelaçavam-se lá bem ao alto, deixando que apenas laivos de luz do sol chegassem ao solo.

O puxão cessou.

Daemon ficou em pé na relva com o formato oval, girando lentamente sobre si próprio, completando um círculo. Quando se ia embora, uma risadinha abafada veio dos arbustos.

— Quantos lados tem um triângulo? — questionou a voz rouca de uma mulher.

Daemon suspirou e abanou a cabeça. Desta vez iriam ser enigmas.

— Quantos lados tem um triângulo? — A voz voltou a perguntar.

— Três — respondeu Daemon.

Os arbustos afastaram-se. Tersa sacudiu as folhas do casaco esfarrapado e afastou o cabelo negro e emaranhado do rosto. — Tolo rapaz, não te ensinaram nada?

O sorriso de Daemon era dócil e brincalhão. — Parece que não.

— Dá cá um beijo à Tersa.

Apoiando as mãos nos ombros magros de Tersa, Daemon beijou-a levemente na face. Perguntou-se a si próprio quando teria sido a última vez que ela tinha comido, mas decidiu não lhe fazer essa pergunta. Era rara a vez que sabia responder ou que se importava sequer e ao verbalizar a pergunta só estaria a fazê-la infeliz.

— Quantos lados tem um triângulo?

Daemon suspirou, resignado. — Minha querida, um triângulo tem três lados.

Tersa franziu o sobrolho. — Estúpido rapaz. Dá-me a tua mão.

Daemon estendeu a mão direita, obedientemente. Tersa agarrou os dedos longos e finos com os seus próprios pauzitos de aspecto frágil e virou a palma da mão para cima. Com o dedo indicador da mão direita, desenhou três linhas comunicantes na palma da mão, uma e outra vez. — Um triângulo dos Sangue tem quatro lados, tolo. Como o candelabro no Altar das Trevas. Lembra-te disso.

Uma e outra vez, até as linhas começarem a emitir um brilho branco na mão morena de tons dourados. — Pai, irmão, amante. Pai, irmão, amante. O pai veio primeiro.

— É o que normalmente acontece — disse Daemon, secamente.

Ignorou-o. — Pai, irmão, amante. O amante é o reflexo do pai. O irmão fica entre ambos. — Parou de desenhar e levantou os olhos. Era uma daquelas vezes em que os olhos de Tersa estavam límpidos e concentrados e, apesar disso, estava a olhar para um lugar que não era o mesmo onde se encontrava o seu corpo. — Quantos lados tem um triângulo?

Daemon estudou as três linhas brancas na palma da mão. — Três.

Tersa inspirou, desesperada.

— Onde está o quarto lado? — perguntou rapidamente, na esperança de impedir a repetição da pergunta.

Tersa estalou as unhas do polegar e do indicador, premindo de seguida a unha do indicador, afiada como uma faca, no centro do triângulo na palma da mão. Daemon emitiu um silvo quando a unha cortou a carne. Puxou a mão para trás mas os dedos de Tersa agarravam-na tão fortemente que magoava.

Daemon observou o sangue a brotar na cova da mão. Ainda a segurar-lhe a mão com uma força de ferro, Tersa levantou-lhe lentamente a mão em direcção à cara. O mundo ficou indistinto, desfocado, envolto numa névoa. A única coisa nítida e dolorosa que conseguia distinguir era a sua mão, um triângulo branco e o sangue vivo e brilhante.

A voz de Tersa era uma cantilena monótona. — Pai, irmão, amante. E o centro, o quarto lado, aquela que a todos domina.

Daemon fechou os olhos quando Tersa lhe levou a mão aos lábios. O ar estava demasiado quente, demasiado perto. Os lábios de Daemon entreabriram-se. Lambeu o sangue da palma da mão.

Faiscou na língua, um relâmpago vermelho. Cauterizou-lhe os nervos, crepitou por ele e reuniu-se no estômago, reuniu-se numa brasa branca e incandescente que aguardava um fôlego, um único toque que transformaria a sua masculinidade inflamada num inferno. A mão fechou-se e Daemon balançou-se, cerrando os dentes para parar de suplicar por aquele toque.

Quando abriu os olhos, a oval de relva estava vazia. Abriu a mão, lentamente. As linhas estavam a desaparecer, o pequeno corte estava sarado.

— Tersa?

A voz de Tersa chegou-lhe distante e a esbater-se. — O amante é o reflexo do pai. O Sacerdote... Será o teu melhor aliado ou o teu pior inimigo. Mas a escolha será tua.

— Tersa!

Mal se ouvia. — O cálice está a partir-se.

Tersa!

Foi assaltado por uma onda de raiva rematada pelo terror. Cerrando a mão, balançou o braço para a frente e à altura dos ombros. O choque do punho ao bater numa das árvores abalou-o até aos calcanhares. Daemon apoiou- se à árvore, os olhos fechados, a testa encostada ao tronco.

Quando abriu os olhos, o casaco preto estava coberto de cinza cinzento esverdeada. Franzindo o sobrolho, olhou para cima. A recusa em aceitar prendeu-se-lhe na garganta, estrangulando-o. Afastou-se da árvore e sentou-se no banco, o rosto escondido entre as mãos.

Vários minutos mais tarde, forçou-se a olhar para a árvore.

Estava morta, queimada a partir do interior pela sua fúria. De pé entre todas as coisas verdes e vivas, os ramos cinzentos e esqueléticos ainda se estendiam para alcançar a companheira. Daemon dirigiu-se à árvore e pressionou a mão no tronco. Não sabia se haveria uma forma de a examinar para verificar se a seiva ainda correria no seu interior ou se teria sido completamente cristalizada pelo calor da sua raiva.

— Lamento — sussurrou. Uma poeira cinzento esverdeada continuava a cair dos ramos mais altos. Há alguns minutos essa poeira tinha sido folhas verdes e vivas. — Lamento.

Respirando fundo, Daemon seguiu o caminho de volta por onde tinha vindo, as mãos nos bolsos, cabisbaixo e com os ombros descaídos. Imediatamente antes de sair do parque, voltou-se e olhou para trás. Não conseguia ver a árvore mas podia senti-la. Abanou a cabeça devagar, um sorriso sinistro nos lábios. Tinha enterrado mais Sangues do que aqueles que poderiam alguma vez imaginar e, no entanto, mostrava pesar por uma árvore.

Daemon sacudiu a cinza do casaco. Teria de se apresentar a Dorothea em breve, amanhã, o mais tardar. Queria fazer mais duas paragens antes de se apresentar na corte.

 

— Minha querida, o que é que tens feito a ti própria? Não és senão pele e osso.

Surreal inclinou-se sobre o balcão da recepção, fez uma careta e inspirou. — Nada, Deje. Só estou estafada.

— Tens deixado que os homens façam de ti refeição? — Deje olhou-a de uma forma sagaz. — Ou é o teu outro negócio que te tem deitado abaixo?

Os olhos dourado-esverdeados de Surreal ficaram perigosamente inexpressivos. — Que negócio é esse, Deje?

— Não sou tola, minha querida — disse Deje, devagar. — Sempre soube que não aprecias realmente este ofício. Porém, ainda és a melhor.

— A melhor fêmea — retorquiu Surreal, prendendo o longo cabelo negro atrás das orelhas pontiagudas.

Deje colocou as mãos no balcão e inclinou-se para Surreal, preocupada.

— Ninguém te pagou para dançares com... Bem, sabes como os mexericos voam e houve conversas sobre uns problemas.

— Não fiz parte de tal, graças às Trevas.

Deje suspirou. — Fico contente. Aquele nasceu demónio, de certeza.

— Se não o é, deveria sê-lo.

— Conheces o Sádico? — perguntou Deje, os olhos atentos.

— Conhecemo-nos — disse Surreal, com relutância. Deje hesitou. — É tão bom como dizem? Surreal estremeceu. — Nem perguntes.

Deje pareceu surpreendida, mas depressa recuperou a atitude profissional. — Não interessa. Não é da minha conta, de qualquer maneira.

— Dando a volta ao balcão, pôs um braço à volta dos ombros de Surreal e encaminhou-a pelo corredor. — Um quarto com jardim, creio. Podes sentar-te lá fora tranquilamente ao serão e podes tomar as refeições no quarto, se assim o desejares. Se alguém reparar que estás cá e solicitar a tua companhia, dir-lhe-ei que estás no período da lua e precisas de descansar. A maior parte nem sabe notar a diferença.

Surreal sorriu debilmente. — Bem, essa é a verdade.

Deje abanou a cabeça e deu um estalido com a língua em sinal de aborrecimento ao mesmo tempo que abria a porta e conduzia Surreal para dentro do quarto. — Às vezes és tão sensata como uma fedelha no primeiro ano, a esforçares-te numa altura em que as Jóias te chuparão até ao tutano se tentares fazer uso delas. — Resmungou para si própria enquanto puxava para trás a coberta da cama e afofava as almofadas. — Veste uma camisa de noite agradável e confortável - não uma dessas coisas justas - e deita-te. Hoje temos uma sopa reconfortante que irás comer. E tenho alguns romances novos na biblioteca, de leitura leve e agradável. Vou trazer-te alguns para que possas escolher. E...

— Deje, devias ter sido mãe de alguém — Surreal deu uma gargalhada.

Deje pôs as mãos nas amplas ancas e tentou parecer ofendida. — Uma bela coisa para se dizer a alguém no meu ramo. Fez um gesto com as mãos como se estivesse a enxotar. — Para a cama e nem mais uma palavra. Querida? Querida, o que é que se passa?

Surreal tombou na cama, lágrimas a cair silenciosamente pelas faces.

— Não consigo dormir, Deje. Tenho sonhos que me dizem que deveria estar algures, que deveria fazer algo. Mas não sei onde nem o quê.

Deje sentou-se na cama e limpou as lágrimas do rosto de Surreal. — São apenas sonhos, querida. Sim, são. Tu estás é fatigada.

— Tenho medo, Deje — murmurou Surreal. — Há algo de errado com ele. Posso senti-lo. Quando comecei a fugir, na esperança de caminhar na direcção oposta, todo o maldito continente não era suficientemente grande. Preciso de um sítio limpo por uns tempos. — Surreal olhou para Deje, os grandes olhos repletos de fantasmas. — Preciso de tempo.

Deje afagou o cabelo de Surreal. — Claro, querida, claro. Todo o tempo que precisares. Ninguém te vai pressionar na minha casa. Vá lá, agora mete-te na cama. Eu trago-te algo para comer e uma coisinha para te ajudar a dormir. — Beijou-lhe a testa e saiu apressadamente do quarto.

Surreal vestiu uma velha e macia camisa de noite e deitou-se. Era bom estar de volta à casa de Deje, estar de volta a Chaillot. Se o Sádico se mantivesse à distância, talvez conseguisse dormir um pouco.

 

Daemon bateu à porta da cozinha.

Lá dentro, a cantigazita alegre que alguém estava a cantar parou.

Aguardando que a porta se abrisse, Daemon olhou à volta, satisfeito por ver que a pequena casa estava em bom estado de conservação. O relvado e os canteiros de flores estavam impecavelmente tratados. A colheita de Verão no jardim de vegetais estava quase concluída, mas as vinhas vigorosas numa das extremidades prometiam uma boa colheita de abóboras.

Ainda era muito cedo para abóboras. Daemon suspirou de mágoa ao mesmo tempo que lhe crescia água na boca devido à memória das tartes de abóbora de Manny.

Ao fundo do quintal existiam duas barracas. A mais pequena albergava, provavelmente, ferramentas de jardinagem. A maior era a carpintaria de Jo. O velhote estaria, talvez, ali enfiado a elaborar uma pequena mesa elegante a partir de pedaços de madeira, alheado de tudo, excepto do seu trabalho.

A porta da cozinha continuava fechada. O silêncio permaneceu.

Preocupado, Daemon entreabriu a porta o suficiente para enfiar a cabeça e os ombros e espreitar.

Manny estava em pé junto à mesa, uma mão enfarinhada posta no peito.

Maldição. Deveria ter percebido que a visita de um Príncipe dos Senhores da Guerra iria assustá-la. Tinha mudado bastante desde a última vez que a vira e ela poderia não reconhecer o seu odor psíquico.

Sorrindo com o seu melhor sorriso, disse:

— Minha querida, se queres fingir que não estás em casa, ao menos devias fechar as janelas. O cheiro desses bolinhos de avelã atrai as personagens mais repugnantes.

Manny deu um grito de alívio e de alegria, contornou a mesa a correr e dirigiu-se à porta, as mãos enfarinhadas acenando alegremente. — Daemon!

Daemon entrou na cozinha, passou o braço à volta da cintura larga da mulher e rodopiou-a.

Manny riu-se à gargalhada, esbracejando. — Põe-me no chão. Estou a enfarinhar o teu belo casaco.

— Quero lá saber do casaco. — Beijou-a na face e pô-la cuidadosamente no chão. Com uma vénia e um floreio do pulso, ofereceu-lhe um ramo de flores. — Para a minha senhora preferida.

Com os olhos turvos devido às lágrimas, Manny inclinou a cabeça para cheirar as flores. — Vou pô-las dentro de água. — Movendo-se numa grande agitação pela cozinha, encheu uma jarra e levou vários minutos a arranjar as flores. — Vai para a sala de estar que eu já te levo uns bolinhos de avelã e chá.

Manny e Jo tinham servido na corte de SaDiablo quando Daemon estava a crescer. Manny tinha tomado conta dele, tinha-o praticamente criado. E a querida ainda estava a tentar.

Escondendo um sorriso, Daemon enfiou as mãos nos bolsos e raspou o sapato preto e brilhante no chão da cozinha. Olhou para ela através das longas pestanas negras. — O que que eu fiz? — disse, numa voz de rapazote, triste e ligeiramente mal-humorada. — O que que eu fiz para já não merecer uma cadeira na cozinha?

Tentando parecer irritada, Manny só se conseguia rir. — Não vale a pena tentar educar-te devidamente. Senta-te lá e comporta-te.

Daemon riu-se, despreocupado e sentínáo-se um rapazinho, caindo graciosamente numa das cadeiras da cozinha. Manny retirou pratos e chávenas. — Embora não perceba por que razão queres ficar na cozinha.

— A cozinha é onde está a comida.

— Parece que há coisas que os rapazes nunca deixam de fazer. Toma. — Manny colocou um copo à frente de Daemon. Daemon olhou para o copo, depois para ela.

— É leite — acrescentou Manny.

— Eu percebi — disse Daemon, secamente.

— Ainda bem. Bebe. — Cruzou os braços e bateu o pé. — Sem leite não há bolinhos de avelã.

— Sempre foste uma mandona — resmungou Daemon. Pegou no copo, fez uma careta e bebeu tudo de uma vez. Entregou-lhe o copo, sorrindo com o melhor sorriso de rapazote que conseguia fazer. — E agora posso comer um bolinho de avelã?

Manny riu-se, abanando a cabeça. — És impossível. — Pôs a chaleira para o chá ao lume e começou a passar os bolinhos de avelã para uma bandeja. — O que é que te traz por cá?

— Vim ver-te. — Daemon cruzou as pernas e juntou os dedos de ambas as mãos repousando-os no queixo.

Manny levantou os olhos, arfou e voltou a arranjar os bolinhos. Perplexo devido ao olhar atónito de Manny, Daemon observou-a a arranjar tudo uma outra vez. Em busca de um tópico neutro, disse:

— A casa está muito bonita. Mante-la assim não é muito trabalho para ti?

— Os jovens da aldeia ajudam — disse Manny calmamente. Daemon franziu o sobrolho. — Não têm reservas suficientes para um faz-tudo e para uma empregada de limpeza?

— Temos, mas por que razão quereria outra mulher a andar pela minha casa fora, a dizer-me como polir a minha mobília? — Sorriu manhosamente. — Além disso, as raparigas estão sempre dispostas a ajudar em troca de um dinheirito para os gastos, de algumas das minhas receitas especiais e de uma oportunidade para namoriscarem com os rapazes sem os pais a vigiar. E os rapazes estão dispostos a ajudar no trabalho lá fora em troca de um dinheirito para os gastos, de comida e de uma desculpa para despirem as camisas e mostrarem os músculos às raparigas.

O riso de Daemon encheu a cozinha. — Manny, tornaste-te a casamenteira da aldeia.

Manny sorriu satisfeita consigo própria. — O Jo está neste momento a trabalhar num berço para um dos jovens casais.

— Espero que tenha havido um casamento antes disso.

— É claro — disse Manny indignada. Bateu a bandeja de bolinhos de avelã ao colocá-la à frente de Daemon. — Devias ter vergonha, a zombar de uma senhora idosa.

— Ainda posso comer bolinhos de avelã? — perguntou arrependido. Em resposta, Manny despenteou-lhe o cabelo e retirou a chaleira do fogão.

Daemon fixou o olhar no vazio. Tantas perguntas e nenhuma resposta.

— Estás perturbado — disse Manny, enchendo a bola de chá.

Daemon abanou-se. — Estou à procura de informações que talvez sejam difíceis de encontrar. Uma amiga disse-me para ter cuidado com o Sacerdote.

Manny colocou a bola de chá no bule para fazer a infusão. — Ah, qualquer um com um mínimo de bom senso tem de ser cauteloso perto do Sacerdote.

Daemon olhou-a espantado. Ela conhecia o Sacerdote. Estariam as respostas assim tão perto? — Manny, senta-te por um momento.

Manny ignorou-o e colocou apressadamente as chávenas na mesa, mantendo-se fora do alcance de Daemon. — O chá está pronto. Vou chamar o Jo...

— Quem é o Sacerdote?

—... ficará feliz por te ver.

Daemon desenrolou-se da cadeira, colocou uma mão à volta do pulso de Manny e puxou-a para a outra cadeira. Manny olhou espantada para a mão de Daemon, para o anelar que não ostentava qualquer anel embutido, para as longas unhas, tingidas de preto.

— Quem é o Sacerdote?

— Não deves falar dele. Nunca deves falar dele.

— Quem é o Sacerdote? — A voz tornou-se perigosamente suave.

— O chá — disse debilmente.

Daemon serviu duas chávenas de chá. De volta à mesa, cruzou as pernas e juntou os dedos de ambas as mãos. — Agora.

Manny levou a chávena aos lábios mas achou que o chá estava demasiado quente para beber. Pousou a chávena, mexendo na pega até esta se encontrar exactamente paralela à borda da mesa. Por fim, deixou cair as mãos no colo e suspirou.

— Nunca te deviam ter levado de perto dele — disse tranquilamente, procurando nas memórias. — Não deveriam ter quebrado o contrato. A assembleia da Ampulheta em Hayll tem vindo a enfraquecer desde então, tal como ele previra. Ninguém quebra um contrato com o Sacerdote e sobrevive.

Devias ter ido viver com ele definitivamente nesse dia, o dia em que recebeste a Jóia de Direito por Progenitura. Estavas tão orgulhoso por ele estar presente, mesmo que a Cerimónia de Direito por Progenitura fosse realizada à tarde em vez de ser à noite, como habitualmente. Planearam dessa forma, planearam fazê-lo vir durante a luz mais intensa do dia, quando as suas forças estivessem enfraquecidas.

Após te ter sido atribuída a Jóia Vermelha de Direito por Progenitura e quando te encontravas com a tua mãe e com Dorothea e com todas as acompanhantes de Dorothea, aguardando o sinal para saíres do círculo cerimonial e para te dirigires para onde te aguardava para que te ajoelhasses perante ele como forma de ofereceres os teus serviços... foi quando aquela mulher, aquela mulher cruel e intriguista, disse que pertencias à Ampulheta, que a paternidade era negada, que ele não podia ter sido o teu progenitor, que ela tinha mandado os guardas servir a feiticeira de Dhemian a seguir para garantir que era fecundada. Estava uma tarde quente mas ficou tão gelada, tão terrivelmente gelada. Dorothea tinha ali reunidas todas as assembleias da Ampulheta, dúzias e dúzias de Viúvas Negras, a observá-lo, a aguardar que caminhasse para o círculo, quebrando assim a honra que lhes devia.

Contudo, não o fez. Foi-se embora.

Quase que te conseguiste libertar. Quase que o alcançaste. Choravas, gritavas para que esperasse por ti, lutando com os dois guardas que te prendiam os braços, os teus dedos fechados à volta da Jóia. De repente, surgiu um raio de luz Vermelha e os guardas foram arremessados para trás. Precipitaste-te para a frente, tentando chegar à orla do círculo. Ele voltou-se e aguardou. Um dos guardas deitou-te a mão. Estavas a um palmo da orla. Estou convencida de que se um dedo que fosse tivesse ultrapassado aquele círculo, ele ter-te-ia arrastado com ele, já não se preocuparia se seria benéfico viveres com ele ou viveres sem o teu povo.

Não conseguiste. Eras muito novo e eles eram muito fortes.

Por fim, partiu. Dirigiu-se àquela casa que continuas a visitar, a casa onde vivias com a tua mãe e destruiu o gabinete. Rasgou os livros, reduziu os cortinados a farrapos, partiu todos os móveis que ali se encontravam. Não conseguia mitigar a raiva. Quando finalmente me atrevi a abrir a porta, estava ajoelhado no meio da sala, o peito a palpitar tentando respirar, com um olhar enlouquecido.

Quando, por fim, se levantou, fez-me prometer que cuidaria de ti e da tua mãe, o melhor que pudesse. E eu prometi pois preocupava-me contigo e com ela e porque ele tinha sido sempre bondoso para mim e para o Jo.

Depois disso, desapareceu. Retiraram-te a Jóia Vermelha e colocaram-te o Anel de Obediência nessa mesma noite. Não comias. Disseram-me que tinha de te obrigar a comer. Tinham planos para ti e não iam permitir que definhasses. Prenderam o Jo numa caixa metálica, colocaram-no num sítio sem sombras e disseram que só lhe dariam água e comida quando eu conseguisse que tu comesses. Quando eu conseguisse que comesses por dois dias consecutivos, soltá-lo-iam.

Durante três dias não quiseste comer, independentemente do que eu suplicasse. Julgo que nem sequer me ouvias. Estava desesperada. À noite, quando saía e ficava tão perto da caixa quanto me era permitido, ouvia o Jo a choramingar, a pele estava em bolhas por tocar naquele metal a escaldar. Foi então que te fiz algo cruel. Uma manhã, arrastei-te para fora e obriguei-te a olhar para a caixa. Disse-te que estavas a matar o meu homem por despeito, que ele estava a ser castigado porque tu eras um rapaz mal comportado que não comias e que, se ele morresse, eu iria odiar-te para toda a eternidade.

Não sabia que Dorothea tinha expulsado a tua mãe. Não sabia que eu era tudo o que te restava. Mas tu sabias. Tu sentiste-a partir.

Fazias tudo o que te dizia. Comias quando eu te dizia para comer, dormias quando eu te mandava dormir. Eras mais um fantasma do que uma criança. Mas libertaram o Jo. — Manny limpou as lágrimas das faces com a ponta do avental. Bebeu um pouco de chá frio.

Daemon fechou os olhos. Antes de aqui vir, tinha passado naquela casa abandonada e a desmoronar-se na qual tinha vivido outrora, à procura de respostas, como sempre fazia quando se encontrava nesta parte do Reino. Memórias, tão inapreensíveis e traiçoeiras, importunavam-no ao deambular pêlos quartos. Contudo, era o gabinete destruído que realmente o impelia a voltar, a divisão na qual quase conseguia ouvir uma voz profunda e poderosa como um suave trovão, quase conseguia cheirar um odor masculino marcante e apimentado, quase conseguia sentir-se abraçado por braços fortes, quase conseguia acreditar que, em tempos, tinha estado em segurança, protegido e tinha sido amado.

E agora sabia finalmente a razão.

Daemon passou a mão sobre as mãos de Manny, apertando-as delicadamente. — Contaste-me tudo até aqui, conta-me o resto.

Manny abanou a cabeça. — Fizeram-te algo para que te esquecesses dele. Disseram que, se alguma vez descobrisses, matar-te-iam. — Olhou para ele, suplicando. — Não podia deixá-las matar-te. Tu eras o filho que eu e o Jo não conseguimos ter.

Uma porta na mente de Daemon, que não sabia existir, começou a abrir-se.

— Já não sou um rapaz, Manny — disse Daemon, serenamente, — e não me matarão assim tão facilmente. — Fez outro bule de chá, colocou uma chávena com chá acabado de fazer à frente de Manny e recostou-se na cadeira. — Como... se chamava?

— Tem muitos nomes — Manny murmurou, olhando fixamente para a chávena.

— Manny. — Daemon esforçava-se para não perder a paciência.

— Chamam-lhe o Sedutor, o Carrasco.

Daemon abanou a cabeça, ainda sem compreender. Mas a porta abriu-se um pouco mais.

— É o Senhor Supremo da Ampulheta. Mais um pouco.

— Estás a empatar — disse Daemon bruscamente, fazendo com que a chávena estremecesse no pires. — Qual é o nome do meu pai? Deves-me isso. Sabes bem o que tem sido para mim ser um bastardo. Ele chegou a assinar o registo?

— Oh, sim — disse apressadamente. — Mas alteraram essa página. Estava tão orgulhoso de ti e do rapaz eyrieno. Não tinha conhecimento, sabes, sobre o facto de a rapariga ser eyriena. Luthvian, era o nome dela.

Não tinha asas ou cicatrizes que indicassem a amputação das asas. Ele não soube até o menino nascer. Ela queria cortar-lhe as asas, criar o rapaz talvez como um Dhemian. Mas ele não quis, na alma o rapaz era eyrieno e seria mais caridoso matá-lo no berço do que cortar-lhe as asas. Ela chorou ao ouvir isto, com medo de que ele viesse mesmo a matar o menino. Acho que o faria, caso ela fizesse o que quer que fosse que lhe pudesse danificar as asas. Construiu-lhe uma casinha confortável em Askavi, tomou conta dela e do menino. Por vezes, trazia-o de visita. Vocês brincavam juntos... ou lutavam. Era difícil dizer qual. Depois, ela assustou-se. Disse-me que Prythian, a Sacerdotisa Suprema de Askavi, lhe tinha dito que ele apenas queria o rapaz para ração, que queria um abastecimento de sangue fresco para bebericar. Por isso entregou o rapaz a Prythian para que o escondesse e fugiu. Quando voltou para o buscar, Prythian não lhe disse onde estava o rapaz, e riu-se dela e...

— Manny. — A voz de Daemon era suave e fria. — Pela última vez, quem é o meu pai?

— O Príncipe das Trevas. Um pouco mais.

— Manny.

— O Sacerdote é o Senhor Supremo, não percebes? — gritou Manny.

— O nome.

— Não.

— O nome, Manny.

— Ao sussurrar o nome, convoca-se o homem. A porta escancarou-se e as memórias jorraram para fora. Daemon olhou espantado para as suas próprias mãos, para as longas unhas, tingidas de negro. Mãe Noite.

Engoliu com dificuldade e abanou a cabeça. Não era possível. Por muito que quisesse acreditar, não era possível. — Saetan — disse calmamente. — Estás a dizer-me que o meu pai é Saetan?

— Chiu, Daemon, chiu!

Daemon pôs-se em pé de um salto, tombando a cadeira. — Não, não me calo. Morreu, Manny. Uma lenda. Um antepassado há muito desaparecido.

— O teu pai.

— Morreu.

Manny humedeceu os lábios e fechou os olhos. — É um dos mortos vivos. Um dos quais a quem chamam Guardiões.

Daemon endireitou a cadeira e sentou-se. Sentiu-se mal. Não admira que Dorothea o espancasse quando curava a dor da exclusão fazendo de conta que Saetan era seu pai. Afinal não era a fingir. — Tens a certeza? - perguntou, por fim.

— Tenho.

Daemon riu-se rudemente. — Estás enganada, Manny. Só podes estar. Não imagino o Senhor Supremo do Inferno a ir para a cama com a cabra da Hepsabah.

Manny contorceu-se.

As memórias continuaram a fluir, peças de um quebra-cabeças a flutuarem para o sítio certo.

— A Hepsabah não — disse devagar, esmagado pela magnitude das mentiras que compunham a sua vida. Não, a Hepsabah não. Uma feiticeira de Dhemian... que foi expulsa da corte. — Tersa. — Apertou a cabeça entre as mãos. — Quem mais senão Tersa.

Manny estendeu a mão na direcção de Daemon mas não o tocou. — Agora já sabes.

As mãos de Daemon tremiam ao acender um cigarro preto. Observou o fumo a ascender numa espiral, demasiado abatido para fazer algo mais.

— Agora já sei. — Fechou os olhos e murmurou: — O meu melhor aliado ou o meu pior inimigo. E a escolha será minha. Doces Trevas, por que é que tinha de ser ele?

— Daemon?

Abanou a cabeça e tentou sorrir tranquilizadoramente.

Passou mais uma hora com a Manny e o Jo, que tinha finalmente voltado da carpintaria. Entreteve-os com histórias ligeiramente indecentes sobre os aristocratas dos Sangue que tinha servido nas várias cortes, nada lhes dizendo sobre a sua própria vida. Não conseguiria jamais apagar a mágoa que sentiria se Manny imaginasse sequer que era o Prostituto de Hayll.

Quando, por fim, partiu, caminhou durante horas. Não conseguia parar de tremer. A dor de uma vida de mentiras crescia a cada passo até a raiva ameaçar dilacerar o que restava do seu autodomínio.

Era já madrugada quando apanhou o Vento Vermelho e viajou até Draega.

Pela primeira vez na vida, queria ver Dorothea.

 

                       CAPÍTULO 5

Ao caminhar do seu quarto para as salas de audiências, Kartane SaDiablo perguntou-se a si próprio se não se teria fortalecido com um copo a mais de conhaque antes de se apresentar perante a sua mãe e regressar formalmente à sua corte. Se não fosse por isso, toda a maldita corte estava a comportar-se de forma curiosa. Os aristocratas dos Sangue precipitavam-se pêlos corredores em pequenos grupos, olhando para a frente e para trás. Os machos da corte comportavam-se normalmente assim, às cotoveladas e aos encontrões, até um deles ser empurrado para a frente e oferecido como sacrifício. Ser o objecto da atenção de Dorothea, quer ela estivesse satisfeita ou zangada com um homem, era sempre uma experiência desagradável. Mas as mulheres comportarem-se também daquela forma...

Quando se deparou com um criado a sorrir, compreendeu, por fim.

Nessa altura, já era tarde demais.

Sentiu o frio ao virar uma esquina e resvalou ao parar em frente de Daemon. Tinha há muito parado de tentar compreender o que sentia sempre que via Daemon - alívio, medo, irritação, inveja, vergonha. Neste momento, perguntou-se apenas se Daemon ia, finalmente, matá-lo.

Kartane recuou para o único artifício emocional que lhe restava. Repuxou os lábios num sorriso trocista e disse:

— Olá, primo.

— Kartane. — A voz inexpressiva de Daemon na corte, entrelaçada de aborrecimento.

— Foste então chamado de volta à corte. A Tia Hepsabah estava a sentir-se sozinha? — É isso. Lembra-o de quem é.

— E Dorothea?

Kartane tentou manter a insolência na voz, tentou manter o sarcasmo, tentou não se lembrar de tudo o que não se conseguia esquecer.

— Ia agora apresentar-me a Dorothea — disse Daemon calmamente,

— mas posso adiar por alguns minutos. Se tendes de vos encontrar com ela, por que é que não ides à frente? Nunca fica muito bem-disposta depois de me ver.

Kartane sentiu-se como se tivesse sido esbofeteado. Daemon odiava-o, odiava-o há séculos pelo que tinha dito, pelo que tinha feito. Mas Daemon também se recordava e por isso, estendia a sua cortesia e compaixão ao seu primo mais novo.

Sem se atrever a falar, Kartane acenou com a cabeça em sinal de concordância e precipitou-se pelo corredor.

Não se dirigiu imediatamente à sala de audiências onde Dorothea o aguardava. Ao invés, atirou-se para dentro da primeira sala vazia que encontrou. Encostado à porta trancada, sentiu o ardor das lágrimas nos olhos e sentiu-as correr pela face, ao mesmo tempo que sussurrava:

— Daemon.

Daemon era o primo cuja posição na família nunca tinha sido muito bem explicada à criança Kartane, à excepção de que era subtil e diferente da dele próprio. Kartane era o filho único de Dorothea, mimado e privilegiado, servido por uma mão cheia de criados, tutores e governantas que saltavam para obedecer ao seu mais pequeno capricho. Tinha, também, sido mais uma jóia para a sua mãe, propriedade da qual se envaidecia, que ostentava e exibia.

Não era para Dorothea ou para os tutores ou governantas que Kartane corria em criança quando esfolava um joelho e necessitava de ser reconfortado ou quando se sentia sozinho ou quando queria gabar-se sobre a sua mais recente aventurazita. Não era para eles. Tinha sempre corrido para Daemon.

Daemon, que tinha sempre tempo para falar e, mais importante, para ouvir. Daemon, que o tinha ensinado a montar, a esgrimir, a nadar, a dançar. Daemon, que lhe lia pacientemente o mesmo livro, uma e outra vez, porque era o seu favorito. Daemon, com quem tinha feito longas caminhadas errantes. Daemon, que nem uma única vez se tinha mostrado aborrecido por ter um rapazinho sempre agarrado às suas pernas. Daemon, que o tinha abraçado, amparado, tranquilizado quando chorava. Daemon, que pilhava a cozinha a altas horas, mesmo que fosse proibido, para levar a Kartane fruta, pãezinhos, pedaços de carne assada fria - qualquer coisa que satisfizesse a fome insaciável que sentia continuamente visto não poder comer à vontade sob o olhar vigilante da sua mãe. Daemon, que tinha sido apanhado uma noite e espancado como castigo, mas que nunca disse a ninguém que a comida não era para si.

Daemon, cuja confiança tinha traído, cujo amor tinha perdido com uma única palavra.

Kartane era ainda um rapazinho desengonçado quando Daemon foi subcontratado pela primeira vez para outra corte. Tinha-lhe custado muito perder a única pessoa em toda a corte que realmente se preocupava com ele como um ser vivo e inteligente. Mas também sabia que existiam problemas na corte, problemas que giravam à volta de Daemon, da posição de Daemon na hierarquia da corte. Sabia que Daemon servia Dorothea e Hepsabah e a assembleia de Dorothea de Viúvas Negras, embora não o fizesse da mesma forma que os consortes ou que outros homens, quando convocados. Sabia da existência do Anel de Obediência e como podia controlar um homem, mesmo que fosse mais forte e usasse Jóias mais escuras. Ficava confundido pela aversão de Daemon ao toque de uma mulher. Ficava confundido pelas brigas entre Daemon e Dorothea, discussões acesas que faziam com que as paredes em pedra parecessem feitas de papel e que cresciam em crueldade. Era habitual que essas discussões terminassem com Dorothea a usar o Anel de Obediência, punindo-o com dores atrozes, até Daemon suplicar por perdão.

Um dia, Daemon recusou-se a servir uma feiticeira da assembleia de Dorothea.

Dorothea convocou o Primeiro, o Segundo e o Terceiro Círculos da corte. Com o marido, Lanzo SaDiablo a seu lado - Lanzo, o bêbedo mulherengo cujo único valor era o de conceder a Dorothea o nome SaDiablo - deu início ao castigo.

Kartane tinha-se escondido por detrás de uma cortina, gelado de frio, ao ver Daemon a combater o Anel, a combater a dor, a combater os guardas que o prendiam para que não atacasse Dorothea. Foi necessária uma hora de sofrimento para que se ajoelhasse, soluçando devido às dores. Foi necessária mais meia hora para o obrigar a rastejar até Dorothea e suplicar por piedade. Quando finalmente parou de enviar dor pelo Anel, Dorothea não permitiu que Daemon se retirasse para o seu quarto, onde Manny lhe poderia dar um sedativo e lavar-lhe o corpo frio e transpirado, para que dormisse enquanto a dor abrandava lentamente. Ao invés, mandou que lhe atassem as mãos e os pés a um dos pilares, mandou-o amordaçar para que os gemidos de dor fossem abafados e deixou-o ali para o humilhar e para avisar outros com o exemplo, enquanto ela orientava calmamente os outros assuntos da corte.

A lição não foi perdida para Kartane. Ser Anelado era a forma mais cruel de controlo. Se Daemon não conseguia aguentar a dor, como poderia ele? Tornou-se crucial não dar a Dorothea uma razão para lhe colocar um Anel.

Nessa noite, após ter sido permitido a Daemon descansar um pouco, foi-lhe ordenado que servisse a feiticeira que tinha recusado anteriormente.

Essa noite revelou-se como a primeira vez que Daemon ficou frígido. Entre os Sangue, existiam dois tipos de raiva. A raiva quente era a ira da emoção, superficial até na própria fúria - a raiva entre amigos, amantes, família, a raiva de todos os dias. A raiva gélida era a raiva das Jóias - profunda, intocável, a raiva gelada que tinha início na essência da pessoa. Implacável, quase sempre imparável até toda a fúria se esgotar, a raiva gélida não era atenuada pela dor ou pela fome ou pelo cansaço. Ao elevar-se de um local tão profundo, o corpo que a albergava tornava-se insignificante.

Nessa primeira noite, ninguém reconheceu a mudança subtil no ar à passagem de Daemon quando se dirigia para os aposentos da feiticeira.

Só quando a criada entrou no quarto na manhã seguinte e se deparou com os espelhos e as janelas cobertos de gelo e descobriu a obscenidade deixada na cama, só então Dorothea compreendeu que tinha destroçado algo em Daemon durante aquele castigo, tinha-o despojado de urna camada de humanidade.

Hekatah, a autoproclamada Sacerdotisa Suprema do Inferno, teria reconhecido o olhar de Daemon se o tivesse testemunhado, teria compreendido quão genuína era a descendência. Dorothea demorou um pouco mais. Quando compreendeu, por fim, que o que Daemon tinha herdado do pai era algo muito mais obscuro e muito mais perigoso do que poderia imaginar, ofereceu-o como presente a uma Rainha de estimação que governava uma Província no sul de Hayll.

Dorothea nada disse sobre a matança. Entre os Sangue, não havia qualquer lei contra o assassinato. Pouco disse sobre a reacção de Daemon a ajoelhar-se ao servir, elogiando a sua formação como escravo de prazer e acrescentando, unicamente, que poderia tornar-se um pouco irascível se fosse utilizado com demasiada frequência.

Antes do final da semana, Daemon tinha partido.

Pouco tempo depois, Kartane ficou a saber o que a presença de Daemon lhe tinha poupado. O apetite de Dorothea por uma diversidade de carinhas larocas não era menos exigente do que o de Lanzo, sendo a única diferença o sexo, e ela mantinha, na corte, um conjunto de jovens Senhores da Guerra para a agradar e à sua assembleia. Até então, Kartane não tinha sido mais do que o filho mimado e gracioso de Dorothea.

Uma noite mandou chamar Kartane aos seus aposentos. Enquanto se dirigia, nervoso, ao encontro de Dorothea, listava mentalmente o que tinha feito nesse dia, perguntando-se o que poderia ter feito que a desagradasse. Contudo, ela lisonjeou-o e acariciou-o e afagou-o. Essas carícias, que sempre achou incómodas, agora assustavam-no. Ao inclinar-se para ele, disse-lhe que o seu pai lhe tinha sido leal e que ela esperava que ele também o fosse. Kartane estava demasiado ocupado a tentar perceber como é que o facto de Lanzo ir para a cama com uma jovem criada diferente, todas as noites, poderia ser considerado lealdade, para perceber o objectivo. Só percebeu quando sentiu a língua de Dorothea a deslizar para a sua boca. Empurrou-a, atirou-se do sofá e rastejou de costas para a porta, não se atrevendo a desviar os olhos de Dorothea.

Ficou furibunda devido à recusa de Kartane. Valeu-lhe a primeira tareia.

Os vergões ainda estavam doridos quando o chamou novamente. Desta vez não se mexeu enquanto ela lhe acariciava os braços e as coxas e lhe explicava, numa voz ronronante, que um Anel poderia ajudá-lo a ser mais receptivo. Mas ela não julgava que tal fosse necessário. E ele?

Não, não achava que fosse necessário. Sujeitou-se. Fez o que lhe era dito para fazer.

Deitado na cama nessa noite, Kartane pensou em Daemon, em como, noite após noite, ano após ano, Daemon tinha feito o que Kartane tinha sido forçado a fazer. Começou a compreender a aversão que Daemon sentia a tocar numa fêmea a não ser que fosse forçado a tal. E perguntou-se que idade teria Daemon quando Dorothea o levou pela primeira vez para a sua cama.

Não se ficou por aquela primeira vez. Só terminou anos mais tarde, quando Dorothea o enviou para uma escola privada visto que andava a espetar a sua lança de forma tão rancorosa em todas as jovens criadas que Lanzo e os seus companheiros se queixavam que as raparigas não ficavam capazes de usar durante dias.

A escola privada que frequentou, na qual os rapazes eram todos originários das melhores famílias hayilianas, serviu para dar o polimento final no gosto de Kartane pela crueldade. As casas da Lua Vermelha repugnavam-no e só se conseguia satisfazer com uma mulher experiente se a magoasse. Após lhe ter sido negado o acesso a um par de casas, descobriu que era fácil dominar raparigas mais novas, assustá-las, levá-las a fazer o que ele quisesse.

Começou a apreciar o prazer que Dorothea sentia por possuir poder sobre outrem.

Todavia, mesmo a mais jovem prostituta era uma feiticeira que tinha passado pela Noite da Virgem e estava protegida pelas regras da casa. Não tinha, como a sua mãe tinha, poder absoluto sobre quem montava.

Começou a procurar a satisfação do seu prazer noutros lugares e encontrou, por acaso, aquilo que almejava.

Kartane e os amigos foram uma noite a uma estalagem para beber, jogar, para conseguir o néctar gratuitamente. Eram oriundos das melhores famílias, famílias que nenhum estalajadeiro se atreveria abordar. Os outros divertiam-se com as jovens que serviam cerveja e comida, na pequena sala de jantar privada, que a maior parte das estalagens tinha para convidados importantes. Mas Kartane estava intrigado com a jovem filha do estalajadeiro. Tinha o rubor inicial da feminilidade, um pequeno toque de curvas. Ao arrastá-la em direcção à porta da sala privada, o estalajadeiro precipitou-se para ele, berrando de raiva. Kartane ergueu a mão, enviou uma vaga de energia pelo anel com a Jóia no seu dedo, fazendo com que o homem perdesse os sentidos. De seguida, arrastou a rapariga para a sala e fechou a porta.

O medo que a paralisava e a fazia tremer transmitia-lhe uma sensação deleitável. Não possuía o odor almiscarado de mulher, não sentia o odor psíquico de uma feiticeira com poder recente. Folgou com a sua dor, atordoado pelo êxtase e pelo prazer que lhe dava levá-la para além da sua teia interior e quebrá-la.

Quando, por fim, saiu da sala, com a sensação de que, pela primeira vez, controlava a sua vida em tantos e tantos anos, jogou duas notas de marcos de ouro para o balcão, reuniu os amigos e desapareceu.

Foi assim que começou.

Dorothea nunca desaprovou a escolha do jogo desde que ele a satisfizesse sempre que regressava à corte e desde que não destroçasse nenhuma das feiticeiras que pretendia para a sua corte. Durante duzentos anos, Kartane jogou o seu jogo com membros dos Sangue que não eram da aristocracia. Por vezes, mantinha a mesma rapariga durante várias semanas ou meses, jogando com ela, aguçando-lhe o medo, tornando-se cada vez mais depravado nas suas exigências, até a fecundar. Muitas vezes até uma feiticeira quebrada era capaz de provocar um aborto espontâneo e assim o fazia para não carregar a semente de um homem que odiava, pese embora nunca mais pudesse carregar outra criança no ventre. Por vezes, se uma rapariga não ficasse completamente entorpecida e se ainda fosse divertido, chamava uma Curandeira corrompida pela fome e pêlos tempos difíceis para que lhe fornecesse a infusão purificadora. A maior parte das vezes, expulsava-as, simplesmente, deixava-as regressar às famílias ou a para uma casa da Lua Vermelha ou para a sarjeta. Para ele, era igual.

Kartane jogou este jogo durante duzentos anos. Foi então que, numa das vezes em que o seu regresso à corte foi solicitado, encontrou Daemon à sua espera.

Nessa altura, Kartane já compreendia a razão pela qual Daemon era Sadi e não SaDiablo, que essa era a solução de compromisso que a família estava disposta a fazer. No entanto, ao ver a ira nos olhos de Daemon, Kartane soube que, ao contrário de Dorothea, Daemon nunca aprovaria o que Kartane tinha feito. Ao ouvir um cáustico sermão sobre honra, Kartane atingiu o ponto fraco de Daemon. Disse a Daemon que ele, Kartane, o filho da Sacerdotisa Suprema, não tinha de ouvir sermões de um bastardo.

Um bastardo.

Um bastardo.

Jamais se esqueceu do abalo e da dor nos olhos de Daemon. Jamais se esqueceu do que sentiu quando a única pessoa que tinha amado e que o tinha amado se recompôs e pôs aquele ar distante de corte, desculpando-se por se lhe ter dirigido inapropriadamente. Saberia para sempre que, se tivesse corrido atrás de Daemon naquele preciso momento e se se tivesse desculpado, suplicado por perdão, explicado a dor e o medo, pedido ajuda… tê-la-ia. Daemon teria encontrado uma forma de o ajudar.

Mas não o fez. Deixou que a palavra prevalecesse. Deixou-a infiltrar-se mais e mais até que a fenda se transformou num abismo e a única coisa em comum era a raiva um do outro.

Por fim, Dorothea mandou Daemon embora e não soube dele durante cem anos. Quando regressou, já tinha feito a Dádiva às Trevas. Corriam rumores que diziam que Daemon tinha saído da cerimónia com a Jóia Negra, mas não se sabia ao certo pois ninguém a tinha visto.

Não interessava a Kartane que Jóias usava Daemon. Já estava suficientemente assustado com aquilo em que Daemon se tinha tornado. Desde então, tinham feito o seu melhor para se evitarem mutuamente.

Kartane secou as lágrimas das faces e endireitou o casaco. Apresentar-se-ia a Dorothea e abandonaria a corte o mais depressa possível. Escaparia dela, da corte... e de Daemon.

 

Daemon deslizou ao longo dos corredores da mansão SaDiablo até alcançar a ala dos quartos. Apresentar-se a Dorothea tinha sido tão desagradável como sempre, mas, pelo menos, tinha sido breve. O facto de vê-la tinha-lhe mexido com os nervos quase até ao ponto de ruptura e, ainda agora, o seu autocontrole estava débil, na melhor das hipóteses. Precisava de uma hora calma antes de se vestir para o jantar e passar a noite a agradar Dorothea e a sua assembleia.

Entrou na sala de estar e reprimiu um resmoneio ao reparar na visita que o aguardava.

Hepsabah virou-se para Daemon com um sorriso tremeluzindo nos lábios, as mãos irrequietas executando uma dança complexa. Abominava o desejo ardente nos olhos de Hepsabah e o almiscarado do seu odor psíquico, mas sabendo que lhe era exigido que entrasse no jogo, sorriu e fechou a porta.

— Mãe — disse com uma ironia mal disfarçada. Baixou a cabeça para lhe beijar a face. Como sempre, Hepsabah virou a cabeça no momento certo para que os lábios de Daemon roçassem os dela. Os braços de Hepsabah jogaram-se ao pescoço de Daemon, enfiando a língua avidamente na sua boca ao mesmo tempo que o apertava contra si. Habitualmente, tê-la-ia afastado, enojado pelo facto de a sua mãe desejar tal intimidade. Agora, manteve-se passivamente, sem dar nem retirar, analisando, simplesmente, as mentiras que constituíam a sua vida.

Hepsabah afastou-se dele, a fazer beicinho. — Não estás feliz por me ver — acusou.

Daemon limpou a boca às costas da mão. — Tão feliz como sempre fico. — Ali estava ela, com um dispendioso vestido de seda, enquanto Tersa, a sua verdadeira mãe, usava um casaco esfarrapado e dormia sabe-se lá onde. Apesar dos esforços de Dorothea e de Hepsabah, Tersa tinha-lhe dado o amor que pôde, à sua maneira destroçada. De alguma forma, ele iria compensá-la, assim como iria fazê-las pagar. — O que é que queres?

— Seria simpático se demonstrasses um pouco mais de respeito pela tua mãe. — Alisou o vestido, percorrendo com as mãos os seios e a barriga, olhando por baixo das pestanas.

— Tenho um grande respeito pela minha mãe — retorquiu maliciosamente.

Aparentando alguma inquietação, afagou o ar perto da manga de Daemon e disse com uma frágil jovialidade:

— Preparei o quarto para ti. Agradável e confortável. Talvez a seguir ao jantar nos possamos sentar e ter uma conversa simpática, hum? — Dirigiu-se para a porta, balançando as ancas de forma provocadora.

Daemon explodiu. — Queres diziér que então já devo estar mais submisso para por a cara entre as tuas pernas. — Ignorou o resfolego de choque. — Deixarei de me subjugar, Mãe. Nem esta noite, nem nunca. Nem a ti nem a ninguém nesta corte. Se ordenarem que me ajoelhe enquanto aqui permanecer, eu prometo-te que o que aconteceu a Cornéiia não será nada em comparação com o que farei. Se pensas que o Anel me impedirá, é melhor ponderares. Já não sou um rapaz, Hepsabah, e quero que morras.

Hepsabah recuou, afastando-se de Daemon, os olhos arregalados de medo. Agarrou atabalhoadamente o puxador da porta e precipitou-se para o corredor.

Daemon abriu uma garrafa de conhaque, aguardou o tempo suficiente para sondar o líquido à procura de eventuais sedativos ou de outras surpresas desagradáveis que lhe tivessem sido adicionadas, levou a garrafa à boca e inclinou a cabeça para trás. Queimou-lhe a garganta e pegou fogo ao estômago mas, apesar disso, continuou a engolir até precisar de respirar. O quarto rodou um pouco mas depressa estabilizou visto que o seu metabolismo digeria o álcool como se fosse comida. Era uma desvantagem de usar Jóias mais escuras - era necessária uma grande quantidade de álcool para se ficar agradavelmente ébrio. Daemon não queria ficar agradavelmente ébrio. Queria entorpecer a raiva e as memórias. Não podia con^ontar-se com Dorothea agora. Podia quebrar o Anel e, ao mesmo tempo, Dorothea. Ao longo dos últimos anos tinha ganho essa certeza. Do que não tinha certeza era dos danos que ela lhe poderia infligir antes de a destruir, não tinha a certeza se ficaria mutilado para sempre quando, finalmente, conseguisse retirar o Anel, não tinha a certeza sobre quais os outros danos que poderia infligir a si próprio que o poderiam impedir de voltar a usar a Negra. E havia uma Senhora algures, para a qual se queria manter íntegro. Logo que a encontrasse...

Daemon sorriu friamente. O Sacerdote devia-lhe um favor e duas Jóias Negras, mesmo que uma estivesse sujeita ao Anel, deveriam ser suficientes para dar conta de uma Sacerdotisa Suprema de Jóia Vermelha.

Rindo, Daemon dirigiu-se para o quarto e vestiu-se para o jantar.

 

Mordiscando o lábio inferior, Kartane dirigiu-se a Daemon, que observava uma porta fechada. Na noite anterior, não tinham sido colocados perto um do outro ao jantar e Daemon tinha-se recolhido cedo - para alívio de todos - pelo que esta era a primeira vez, desde o brusco encontro da tarde anterior que estavam juntos, sem a presença de dúzias de pessoas como amortecedores.

Kartane não era um homem baixo e, mesmo com todos os excessos, permanecia em forma e tonificado, mas ao lado de Daemon sentia-se ainda no corpo de um rapaz. Era mais a amplitude dos ombros de Daemon do que os cinco centímetros de diferença na altura, o rosto amadurecido pela dor e não pela idade que faziam Kartane sentir-se franzino a seu lado. Era também a diferença entre uma juventude amplamente vivida e um macho no seu apogeu.

— Sabeis do que se trata? — perguntou Daemon serenamente. Kartane abanou a cabeça. — Ela disse apenas que a nossa presença era exigida numa diversão.

Daemon respirou profundamente. — Maldição. — Abriu a porta, desviando-se para deixar Kartane entrar.

Kartane deu alguns passos na sala e sentiu o ar atrás de si ficar gelado, conforme a porta se fechava. Olhou de relance para o rosto de Daemon, para os olhos semicerrados que repentinamente se tornaram amarelo-escuros e perguntou-se, ao examinar a sala, o que teria provocado a fúria de Daemon.

Era uma sala austera, mobilada com várias filas de cadeiras organizadas num semicírculo em frente a dois postes presos ao chão. Ao lado dos postes estava uma mesa comprida com um pan» branco estendido sobre ela. Sob os postes e à volta, estava uma pilha volumosa de lençóis brancos.

Daemon praguejou baixinho. — Pelo menos, como filho privilegiado podeis ficar descansado que não fareis parte da diversão. Só tereis de assistir e suportar.

Kartane olhou admirado para os postes. — Não compreendo. O que é? Nos olhos de Daemon houve uma centelha de compaixão, imediatamente antes de o seu rosto ficar impassível e de a sua voz retomar aquela qualidade inexpressiva e aborrecida que usava sempre na corte. — Nunca vistes isto?

— Parece-me um pouco exagerado se ela vai mandar chicotear alguém — disse, tentando parecer sarcástico para ocultar o medo crescente.

— Chicotear, não — afirmou Daemon amargamente. — Rapar. O olhar de Daemon desfez as entranhas de Kartane em água. Daemon não voltou a falar até chegarem à primeira fila de cadeiras.

— Ouvi, Kartane, e ouvi bem. O que vai acontecer ao desgraçado que Dorothea vai amarrar entre aqueles postes dependerá do mal-estar que demonstrardes. Se vos mostrardes desinteressado, não fará menos do que já planeou, no entanto, será realizado rapidamente e tereis de aguentar ver durante menos tempo. Percebeis?

— Rapado? — perguntou Kartane com uma voz estrangulada.

— Nunca vos contaram como são feitos os eunucos? — Daemon enfiou as mãos nos bolsos e afastou-se.

— Mas... — Kartane ficou tenso quando Dorothea e a sua assembleia entraram. — Para que é isto? — murmurou. — Porquê todas estas cadeiras?

Os olhos de Daemon mostravam um olhar preocupado e distante. — Porque acham divertido, Senhor Kartane. Esta é a diversão vespertina. E, se estivermos ambos com sorte, seremos unicamente os convidados de honra.

Kartane olhou rapidamente para Daemon e logo para os postes. Dorothea não o faria. Não podia. Fora por isso que Daemon o tinha alertado, por não ter a certeza se... Não. Não a Daemon. Não a Daemon.

Kartane pontapeou uma cadeira antes de se deixar cair noutra com os braços cruzados e as pernas estendidas para a frente, assemelhando-se a uma criança amuada. — Tenho melhores formas de passar a tarde — resmungou.

Daemon virou-se, uma sobrancelha arqueada, questionando-se. Dorothea dirigiu-se a eles, os olhos a dardejarem de irritação pelo comportamento de Kartane.

— Ora bem, meu querido — ronronou, — faremos o nosso melhor para te entreter. — Acomodou-se na cadeira ao lado de Kartane e, com um gesto gracioso da mão, indicou que Daemon deveria sentar-se à sua esquerda.

Kartane endireitou-se, mas manteve um ar amuado. Retraiu-se à medida que as cadeiras por detrás de si se enchiam, vozes femininas sussurrando como se estivessem numa sala de espectáculos, a aguardar o início da peça.

Dorothea bateu as palmas e a sala ficou em silêncio. Dois enormes guardas, de aspecto rude, fizeram uma vénia a Dorothea e saíram da sala. Regressaram um momento mais tarde, conduzindo um homem de fraca constituição.

Daemon lançou um olhar rápido e aborrecido ao homem que estava a ser conduzido aos postes, inclinou-se para o lado oposto a Dorothea e apoiou o queixo na mão.

Dorothea silvou baixinho.

Daemon endireitou-se na cadeira, cruzou as pernas e juntou os dedos em arco. — Não é que interesse — disse de modo arrastado, — mas o que é que ele fez?

Dorothea pousou a mão na coxa de Daemon. — Curioso? — ronronou.

Daemon encolheu os ombros, ignorando os dedos que subiam pela sua coxa.

Dorothea retirou a mão, incomodada pela expressão de aborrecimento no rosto de Daemon. — Não fez nada. Apeteceu-me rapá-lo. — Sorriu maliciosamente, acenou com a cabeça aos guardas e observou com grande interesse enquanto prendiam a vítima bem esticada nos postes. — É um Senhor da Guerra mas é criado de quarto de profissão. É oriundo de uma família especializada em servir os Sangue de Jóias mais escuras. Mas, depois de hoje, duvido que exista um macho em Hayll que o queira por perto. O que é que achas?

Daemon encolheu os ombros e, uma vez mais, apoiou o queixo na mão.

Quando o homem já se encontrava bem preso aos postes, um dos guardas puxou o pano da mesa. Ouviram-se murmúrios de apreciação da audiência ao serem revelados chicotes, esmagadores de testículos e uma variedade de outros instrumentos de tortura. Os últimos instrumentos que o guarda retirou foram as navalhas de rapar.

Kartane sentiu-se mal e, ainda assim, esperançoso. Se todas aquelas coisas estavam a ser exibidas, talvez...

"Não” disse Daemon num fio masculino, de macho para macho. “Ela vai rapá-lo.”

“Não tens a certeza.”

“Não se pode permitir que a diversão termine depressa demais.”

Kartane engoliu com dificuldade. “Não tens a certeza.”

“Ireis ver.”

Dorothea ergueu uma mão. O guarda dirigiu-se à extremidade oposta da mesa e ergueu o primeiro chicote. — O que é que vai ser hoje. Irmãs?

— Dorothea gritou jovialmente. — Vamos chicoteá-lo?

— Sim, sim, sim — berrou uma multidão de vozes femininas.

— Ou...

Ouviram-se aplausos e risos quando o guarda, aparentando estar mais nervoso, ergueu o esmagador de testículos para que o pudessem ver.

— Ou... — Dorothea apontou e o guarda ergueu as navalhas de rapar. Kartane estudava o soalho, evitando tremer, tentando não se lançar para a porta. Sabia que não lhe seria permitido ausentar-se e perguntou-se, com uma ponta de ressentimento, como é que Daemon conseguia estar ali sentado com um ar tão entediado. Provavelmente por Sadi não ter qualquer utilidade para aqueles órgãos.

— Rapar, rapar, rapar! — ribombou a sala com as vozes da assembleia.

Kartane tinha assistido a lutas de cães, a lutas de galos, a um sem número de exibições nas quais animais irracionais eram obrigados a lutar uns com os outros. Tinha ouvido o troar de vozes masculinas a instigarem o favorito à vitória. Todavia, nunca tinha ouvido, em todos esses lugares, a satisfação que agora percebia ao ouvir a assembleia a exortar a decisão.

Saltou na cadeira quando a mão de Dorothea lhe apertou o joelho, com um sorriso gélido que lhe transmitia a satisfação pelo medo que Kartane sentia.

Dorothea ergueu a mão para solicitar silêncio. Quando a sala ficou em silêncio absoluto, disse, no seu mais melodioso ronronar:

— Rapem-no. — Fez uma longa pausa e, de seguida, sorriu docemente.

— Uma rapagem total.

Kartane girou a cabeça de um lado para o outro, incrédulo, mas, antes de poder dizer o que quer que fosse, Daemon virou a cabeça o suficiente para olhar para ele. O olhar de Daemon era muito mais assustador do que Dorothea alguma vez poderia ser, por isso Kartane engoliu as palavras e afundou-se um pouco mais na cadeira.

A Curandeira e o barbeiro entraram na sala e caminharam vagarosamente até à mesa. O barbeiro, um homem cadavérico que vestia um traje negro de punhos justos, tinha entradas no cabelo, lábios desenhados a lápis e desprezíveis olhos amarelos. Fez uma vénia a Dorothea e de seguida à assembleia.

A Curandeira, uma mulher desinteressante que se ocupava das doenças dos criados visto não ser suficientemente versada na Arte para tratar os aristocratas dos Sangue, invocou uma bacia de água morna e sabão. Segurou a bacia enquanto o barbeiro lavava as mãos.

Seguidamente, o barbeiro ensaboou sem pressas os testículos da sua vítima.

“Porquê?" Kartane enviou num fio masculino.

“Torna-os escorregadios" respondeu Daemon. “Assim é mais difícil conseguir um corte completo à primeira."

O barbeiro pegou numa pequena faca recurvada e ergueu-a para que a audiência visse. Posicionou-se por detrás do homem.

"Para que todos possam ver" explicou Daemon.

Kartane cerrou os punhos e fixou o olhar no soalho.

— Observa, meu amor — Dorothea ronronou, — ou teremos de fazer tudo de novo.

Kartane fixou o olhar num dos postes no momento em que o barbeiro puxou a faca para trás. Logo a seguir, uma pequena massa escura jazia nos lençóis que estavam a ficar rapidamente vermelhos.

O Senhor da Guerra preso aos postes soltou um grito de agonia, logo cerrando os dentes para abafar o som.

O estômago de Kartane embrulhou-se ao ouvir o murmúrio de desapontamento que percorreu a sala. Mãe Noite! Esperavam um segundo corte!

O barbeiro colocou a faca ensanguentada num tabuleiro e lavou as mãos enquanto a Curandeira fechava as artérias. Quando se afastou, o barbeiro pegou numa faca de lâmina recta e posicionou-se em frente de um dos postes. Esticou o órgão do homem até à extensão máxima, virou-se para o público, abanou a cabeça com tristeza e disse:

— Há aqui tão pouco, quase não fará diferença.

A assembleia riu-se e aplaudiu. Dorothea sorriu.

Kartane esperava que fosse uma amputação rápida. Todavia, quando o barbeiro encostou a faca ao órgão do Senhor da Guerra e serrou vagarosamente através da carne, cada golpe acompanhado por um grito, Kartane ficou hipnotizado, incapaz de desviar o olhar.

Mereciam o que lhes fazia. Eram criaturas sórdidas que só serviam para procriação e para o prazer do homem. Deviam ser quebradas quando eram jovens, era bom quebrá-las enquanto jovens, antes de se tornarem criaturas como estas aqui sentadas. Quebrá-las a todas. Destruí-las todas. Os machos dos Sangue deviam governar, têm de governar. Se ao menos a conseguis-se matar. Será que Daemon o ajudaria a livrar Hayll daquela portadora de pragas? Teriam todas de ser mortas, claro. E depois quebrar todas as jovens e treiná-las para servir. Era a única forma. A única forma.

O silêncio fê-lo pestanejar.

Dorothea levantou-se da cadeira, apontando furiosamente para a Curandeira. — Disse-te para lhe dares algo para nos certificarmos de que não desmaiaria. Olha para ele! — O dedo de Dorothea indicava agora o homem que pendia, desmaiado, nos postes, a cabeça caída sobre o peito.

— Fiz como ordenastes, Sacerdotisa — a Curandeira balbuciou, torcendo as mãos. — Juro pelas Jóias que assim o fiz.

Era a sua imaginação ou Daemon estava satisfeito com algo?

— Já não temos divertimento hoje devido à tua incompetência — gritou Dorothea. Fez um gesto que denotava impaciência. — Levem-no. — E saiu impetuosamente da sala, o coventículo no seu rasto.

— Eu dei-lhe mesmo a poção — lamentou-se a Curandeira, seguindo atrás do barbeiro que saía da sala.

Kartane manteve-se sentado na cadeira, demasiado entorpecido para se mexer, até que os guardas jogaram o homem para os lençóis ensanguentados bem como os órgãos amputados. Foi então que correu para a casa de banho mais próxima e vomitou violentamente.

 

Dorothea andava de um lado para o outro, lentamente, na sua sala de estar.O roupão esvoaçante silvava com o movimento das suas ancas e o corpete com um grande decote favorecia o pequeno peito que ainda se mantinha firme. Ao passar pela mesa, pegou numa pena de escrever. A espinha dorsal da maior parte dos homens transformar-se-ia em gelatina quando ela pegava numa pena. Daemon, contudo, observou-a, simplesmente, nunca alterando a expressão gélida e entediada.

Passou com a pena pelo queixo ao passar pela cadeira de Daemon. — Portaste-te mal, outra vez. Talvez devesse mandar que te chicoteassem.

— Sim — respondeu Daemon afavelmente, — por que não o fazeis? A Cornéiia poderia dizer-vos como isso é eficaz para me trazer à razão.

Dorothea cambaleou mas continuou a andar. — Talvez devesse raparte. — Acenou com a pena na direcção de Daemon. — Gostarias de fazer parte da irmandade da pena?

— Não.

Fingiu-se surpresa. — Não?

— Não. Prefiro ficar asseado ao mijar.

O rosto de Dorothea contorceu-se de raiva. — Tornaste-te rude, Daemon.

— Deve ser das companhias.

Dorothea acelerou o passo, desacelerando apenas ao reparar no divertimento nos olhos de Daemon. Maldito seja, pensou ao bater repetidamente com a pena nos lábios. Sabia o quanto a perturbava e desfrutava disso. Não confiava nele, não acreditava ainda conseguir controlá-lo. Nem o Anel o conseguia parar quando ficava frígido. E ali estava sentado, tão seguro de si próprio, tão despreocupado.

— Talvez devesse rapar-te. — O ronronar habitual transformou-se num rosnado. Abanou a pena na direcção dos genitais de Daemon. — Afinal não tens qualquer uso para isso.

— Todavia, não é lá muito bom para o negócio — disse Daemon calmamente. — As Rainhas não pagarão pêlos meus serviços se não houver nada para comprar.

— Um bocado de carne inútil visto que não o podes usar.

— Ah, mas elas apreciam tanto olhar para ele.

Dorothea atirou a pena para o chão e pisou-a. — Bastardo!

— Já me dissestes vezes sem conta. — Daemon fez um aceno irritado com a mão. — Basta de encenações. Não me ireis rapar, nem agora nem nunca.

— Dá-me uma razão para não o fazer!

Com um movimento fluído, Daemon saltou da cadeira, prendendo-a contra a mesa. As mãos apertaram-lhe os braços, magoando-a, enquanto a boca se colava à dela, ferindo-lhe os lábios com os dentes. Enfiou-lhe a língua na boca com uma tal ferocidade controlada que ela não conseguia pensar em mais nada a não ser o toque de Daemon e o repentino calor húmido entre as pernas.

Era sempre assim com ele. Sempre. Era mais do que o corpo. Não eram bem as Jóias, não era bem uma ligação. Nunca conseguia tocar-lhe os pensamentos ou os sentimentos, nunca o alcançava. Contudo, havia uma tal sensação de poder selvagem e controlado, de masculinidade, que fluía dele, rodopiava à sua volta. As mãos, a língua... canais para esse fluxo. Condutores sensoriais.

Quando julgava já não aguentar mais, quando pensou que tinha de o afastar ou afogar-se na sensação, Daemon impeliu as ancas para a frente e balançou-se contra ela. Gemendo, Dorothea pressionou o seu corpo contra o dele, desejando senti-lo hirto, necessitando que ele a desejasse.

No momento em que levantou os braços para lhe abraçar o pescoço, Daemon recuou, sorrindo, os olhos dourados a arderem de raiva, não de desejo.

— É por isso que não me rapareis, Dorothea. — A voz sedosa tornou-se áspera devido à repugnância. — Há sempre a hipótese, não é verdade, de algum dia eu pegar fogo, de o desejo.se tornar tão insuportável que eu volte a rastejar para vós em busca de qualquer tipo de alívio que me possais dar.

— Nunca permitirei que chegues a esse ponto — gritou Dorothea, uma mão esticada na direcção de Daemon. — Pelas Jóias, juro... — Tremendo de raiva, Dorothea esforçou-se para se endireitar. Mais uma vez tinha-se humilhado, suplicando-lhe.

Daemon sorriu com o sorriso frio e cruel que punha sempre que distorcia o jogo do amor, usando-o para magoar a mulher que servia. É tão fácil, dizia o sorriso. São todas tão tolas. Podem castigar o corpo quantas vezes quiserem, quantas vezes se atreverem, mas nunca me conseguirão tocar.

— Cabrão — murmurou Dorothea.

— Podeis matar-me — disse Daemon suavemente. — Isso resolveria ambos os nossos problemas, não é verdade? — Deu um passo na direcção de Dorothea que, de imediato se voltou a encostar à mesa, aterrorizada. — Porque é que não me quereis ver morto, Dorothea? O que acontecerá no dia em que já não caminhar entre os vivos?

— Sai — disse bruscamente, tentando não soar tão fraca como, de repente, se sentia. Porque é que estava a dizer aquilo? O que é que sabia? Tinha de o retirar de Hayll, retirá-lo daquele lugar e rapidamente. Furiosa, atirou-se a ele, mas Daemon desviou-se graciosamente e Dorothea caiu estatelada no chão. — Sai! — gritou, batendo com os pulsos no chão.

Daemon saiu do quarto, assobiando uma cançoneta inarmónica. Ao cruzar-se com um Senhor da Guerra rechonchudo que se dirigia esbaforido ao quarto de Dorothea, Daemon virou-se para o encarar. — Eu não entraria ali até ela se acalmar um pouco — disse animadamente. Piscou o olho ao homem embasbacado e prosseguiu pelo corredor, rindo.

— Maldita seja a tua alma nas entranhas do Inferno, despacha-te lá com isso! — gritou Kartane ao criado que lhe era atribuído sempre que se encontrava na corte. Mandou as camisas para dentro de um baú e prendeu as correias.

Após ter fechado os baús, os olhos de Kartane varreram o quarto à procura de algo de que se tivesse esquecido.

— Senhor Kartane — o criado arfou.

— Eu encarrego-me disto. Estás dispensado. Sai. Sai!

O criado apressou-se a sair do quarto.

Kartane enrolou os braços à volta dos postes da cama. Precisava desesperadamente de descansar, mas sempre que fechava os olhos via os lençóis ensanguentados, ouvia os gritos.

Para longe daqui. E depressa. Antes que Dorothea o chamasse, antes de ser apanhado. Para algum sítio onde as feiticeiras já estivessem a ser silenciadas. Um lugar que estivesse na sombra de Hayll, onde adulariam o filho da Sacerdotisa, mas que ainda não estivesse completamente contaminado pela decadência da terra antiga. Que não fosse bem território virgem, mas que fosse ainda uma serviçal a aprender as profanações de Hayll.

— Chaillot — sussurrou Kartane e sorriu. O outro lado do Reino. Hayll mantinha aí uma embaixada, por isso ninguém questionaria a sua presença. Robert Benedict era um discípulo astuto. E havia aquele maravilhoso lugar que tinha ajudado a construir em Beldon Mor, aquele "hospital" para jovens raparigas de temperamento nervoso das famílias aristocratas dos Sangue, onde homens como o Senhor Benedict podiam deliciar-se com acepipes que não poderiam ser oferecidos por nenhuma casa da Lua Vermelha respeitável. Poderia levar semanas até que Dorothea o detectasse, especialmente se incutisse no pessoal da embaixada que estava lá para fazer pesquisas para a Sacerdotisa. Ficariam demasiadamente assustados sobre o que poderia dizer sobre eles para comunicarem a sua presença.

Kartane fez os baús desaparecer e escapuliu do quarto para a teia de aterragem. Apanhou a Teia Vermelha e dirigiu-se de imediato para ocidente, em direcção a Chaillot.

 

Hekatah entrou na saleta, o vestido de seda de aranha a rodopiar à volta do pequeno corpo, os diamantes cosidos à gola subida brilhando como estrelas num céu vermelho sangue. Tinha-se vestido cuidadosamente para este encontro "casual" muito bem planeado. Apesar do cavalheirismo de homem do povo que fazia com que fosse cortês com toda e qualquer mulher, quer fosse bonita ou não, Saetan valorizava uma mulher que se apresentasse de uma forma que a favorecesse e, embora já tendo passado o seu apogeu, a Hekatah nunca tinham faltado homens.

Contudo, ele, criança bastarda da rua que era, olhava-a de relance por cima dos óculos em meia-lua que tinha começado a usar, marcou a página no livro e fez desaparecer os óculos antes de, finalmente, lhe dar toda a atenção.

— Hekatah — disse, com uma ponderação aprazível. Reprimindo a fúria, passeou-se pela sala. — É maravilhoso ver o Paço remodelado — disse, a voz ameninada repleta do arrulho afectuoso que outrora o tinha levado a abrir-se cautelosamente para ela.

— Já era altura de o fazer.

— Por alguma razão especial?

— Estava a pensar dar um baile de demónios — respondeu secamente. Inclinou o queixo para baixo e levantou os olhos para ele, olhando através das pestanas, não se apercebendo de que era uma paródia à jovem feiticeira birrenta e sensual que tinha sido há muitos séculos atrás. — Não remodelaste a torre sul.

— Não havia necessidade. Foi esvaziada e limpa. É tudo.

— Mas os meus aposentos sempre foram na torre sul — protestou.

— Como disse, não havia necessidade.

Hekatah olhou fixamente para as finas cortinas ebúrneas por detrás dos cortinados vermelhos afastados para os lados. — Bem — disse, como se estivesse a ponderar calmamente no assunto, — creio que poderia ocupar um quarto na tua ala.

— Não.

— Mas, Saetan...

— Minha querida, esqueceste-te. Nunca tiveste aposentos no Paço deste Reino. Nunca viveste em nenhuma das casas que me pertence desde que me divorciei de ti e nunca mais viverás.

Hekatah ajoelhou-se ao lado da cadeira de Saetan, satisfeita pela forma como o vestido formava uma roda à sua volta, uma extremidade reluzente da manga espalhada pelas pernas dele. — Sei que tivemos as nossas divergências no passado mas, Saetan, agora precisas de uma mulher aqui.

— Ela poderia ter gritado vitória quando as sobrancelhas de Saetan se arquearam inquisitoriamente e uma verdadeira faísca de interesse surgiu nos seus olhos.

Ergueu uma mão e afagou-lhe o cabelo ainda negro, caindo solto e comprido pelas costas. — Porque é que preciso de uma mulher agora, Hekatah?

— Inquiriu numa voz dócil e enrouquecida.

A voz de amante. A voz que sempre a enfureceu pois soava tão carinhosa e fraca. Não era a voz de um homem. Não era a voz de seu pai. O seu pai nunca teria adulado. Ele nunca lhe teria permitido que ela o recusasse. Mas ele tinha sido um Príncipe Hayiliano, membro de uma das Cem Famílias, tão orgulhoso e arrogante como qualquer macho dos Sangue e não este...

Hekatah baixou os olhos, na esperança de que Saetan não tivesse percebido, novamente, o que pensava dele. Todo aquele poder. Poderiam ter governado todo o Território de Terreille e também Kaeleer, se Saetan tivesse sido minimamente ambicioso. Mesmo que fosse demasiado indolente, ela poderia tê-lo feito. Quem se atreveria a desafiá-la com a Negra a apoiá-la? Nem isso ele faria. Nem a apoiaria em Dhemian, o seu próprio Território. Manteve-a presa a Hayll, onde a família de Hekatah possuía bastante influência para a tornar Sacerdotisa Suprema. Todo aquele poder desperdiçado numa coisa que teve de se baptizar a si própria visto o progenitor ter achado que não valia a pena reclamar a semente. Mas Terreille ainda havia de ser dela, nem que para isso tivesse de usar uma marioneta débil como Dorothea.

— Porque é que preciso de uma mulher agora? — A voz de Saetan, já não tão dócil, fê-la regressar.

— Pela criança, claro — respondeu, virando a cabeça para beijar a palma da mão de Saetan.

— A criança? — Saetan ergueu a mão e juntou os dedos, em contemplação. — Um dos nossos filhos é demónio-morto há 50.000 anos e tu, minha querida, sabes com certeza melhor do que eu onde o outro se encontra.

Hekatah inspirou, silvando e expirou com um sorriso. — A rapariga, Senhor Supremo. O teu bichinho de estimação.

— Não tenho animais de estimação, Sacerdotisa.

Hekatah escondeu os punhos cerrados no colo. — Todos sabem que estás a treinar uma rapariguinha para te servir. O que estou a tentar salientar é que ela necessita da orientação de uma mulher para satisfazer as tuas necessidades.

— E que necessidades são essas?

Hekatah deu uma palmada no braço da cadeira. — Não faças joguinhos de palavras comigo. Se a rapariga tem algum talento, deveria ser treinada na Arte pelas suas Irmãs. O que farás com ela depois é uma preocupação tua mas, pelo menos, permite que eu a treine para que não se torne uma fonte de humilhação.

Saetan levantou-se vagarosamente da cadeira, dirigiu-se às janelas compridas e puxou as cortinas de tecido fino para os lados, usufruindo assim de uma vista límpida da paisagem eternamente crepuscular do Inferno. — Este assunto não te diz respeito, Hekatah — disse lentamente, a sua voz como um trovão sussurrante. — É verdade que aceitei um contrato para ser o tutor de uma jovem feiticeira. Estou enfadado. É um motivo de diversão. Se for uma fonte de humilhação para alguém, não me diz respeito. — Virou-se e olhou para Hekatah. — E não te diz respeito. Mantém as coisas desta forma pois se insistires que ela te diz respeito, muitas das coisas que ignorei no passado passarão a ser minhas.

Saetan deixou cair a cortina, sacudiu as pregas, ajeitando-as no devido lugar e saiu da sala.

Apoiando-se na cadeira, Hekatah levantou-se, dirigiu-se à janela e observou as cortinas finas. Lentamente, ergueu os braços.

Cabrão egoísta. Havia formas de o contornar. Pensaria ele que depois de todo este tempo ela não sabia qual era o seu ponto fraco? Tinha sido bem divertido vê-lo contorcer-se, o eminente Senhor Supremo acorrentado pela honra, enquanto aqueles dois filhos que ela própria tinha ajudado Dorothea a criar, eram espancados ano após ano, século após século. Eles agora odeiam-te. Senhor Supremo. Qual o bastardo que nào odeia o progenitor que nào o aceita?

O mestiço tinha sido um bónus. Quem poderia prever que restavam a Saetan tanto ardor e carência? Belos rapazes, bem constituídos, nenhum com a capacidade de ser homem. Ao menos o mestiço conseguia levantá-lo o que era muito mais do que se podia dizer do outro.

Com a sua ajuda, Dorothea tinha conseguido que a linhagem forte e negra dos SaDiablo regressasse a Hayll. Aguardar até à Cerimónia de Direito por Progenitura de Daemon para quebrar o contrato com Saetan tinha sido arriscado, mas é nessa altura que a paternidade é formalmente reconhecida ou negada. Até esse momento, um macho pode reclamar a criança como sua, pode fazer tudo o que um pai pode fazer pela sua prole. Todavia, até ser reconhecido formalmente, não tem qualquer direito à criança. Uma vez formalizado esse reconhecimento, uma criança do sexo masculino passa a pertencer ao pai.

E esse tinha sido o problema. Elas queriam a linhagem mas não o homem. Tendo testemunhado a educação de dois filhos por Saetan, Hekatah sabia desde o início que qualquer criança que crescesse sob a protecção de Saetan nunca poderia vir a ser moldado num macho que dedicaria a sua força às ambições dela. Pensou que, uma vez que visitava cada um dos rapazes durante apenas algumas horas por semana, a influência exercida diluir-se-ia, que a marca deixada por ele não se revelaria até lhe pertencerem e aí começar a treiná-los a sério.

Tinha-se enganado. Saetan tinha já incutido o seu código de honra de uma forma marcada na mente dos rapazes e, quando se apercebeu, já era tarde para os levar por outro caminho. Sem saberem porquê, lutavam contra tudo o que não se adequasse a esse código de honra e a luta e a dor e os castigos serviram também para os moldar.

E agora havia esta miúda.

Há cinco anos, tinha sentido um poder estranho e obscuro na ilha das cildru dyathe. Desde então, tinha seguido fragmentos sussurrados de conversas, indicações que levavam a nada. A teia entrelaçada que criou tinha-lhe mostrado somente poder negro num corpo de mulher, o género de poder que, se fosse moldado e direccionado no caminho certo, poderia facilmente controlar um Reino.

Tinha levado cinco anos a descobrir que Saetan estava a treinar a criança, o que a enfureceu. Aquela miúda devia ter-lhe pertencido desde o início, devia ter sido uma ferramenta emocionalmente dependente que teria realizado todos os seus sonhos e ambições. Com esse tipo de poder à sua disposição, nada - nem ninguém - a poderia deter.

Mas a verdade é que tinha chegado demasiado tarde.

Caso Saetan estivesse disposto a partilhar a rapariga, poderia ter reconsiderado. Uma vez que tal não aconteceu, e ela não iria deixar aquela criança crescer para se tornar uma ameaça aos seus planos, iria usar a arma mais brutal que tinha à disposição: Daemon Sadi.

Não devia sentir qualquer amor pelo pai. Ser-lhe-iam oferecidos dez anos de liberdade controlada - ainda que com o Anel, claro, mas sem ter de servir numa corte. Dez anos - não, cem - sem ter de se baixar perante uma feiticeira. O que é que representaria a eliminação de uma criança, uma estranha adulada pelo mesmo homem que o tinha abandonado, comparada com a realidade de não ter de servir? E se o mestiço fosse introduzido, para jogar pelo seguro? Sadi tinha a força para desafiar até o Senhor Supremo. Possuía a astúcia e a crueldade para iludir uma criança e destruí-la. Mas como fazê-lo chegar perto o suficiente para facilitar o golpe? Teria de pensar nesta questão. Algures a ocidente de Hayll. Tinha seguido a pista da rapariga até aí e, depois, nada... excepto aquela estranha e impenetrável névoa na ilha.

Oh, como Saetan iria contorcer-se, gritar pela sua honra, quando Sadi destruísse a sua bichinha de estimação.

Hekatah baixou os braços e sorriu ao ver as cortinas que pendiam esfarrapadas na vareta. Fez uma careta ao retirar um pouco de tecido da falha de uma das unhas e saiu apressadamente da saleta, ansiosa por sair do Paço e por em prática o seu plano.

Saetan trancou a Negco^a porta da sala de estar antes de se dirigir à mesa de canto onde se encontravam os copos e uma garrafa de cristal de yarbarah. Um sorriso escarnecedor distorceu-lhe os lábios ao reparar como as suas mãos tremiam. Ignorando o yarbarah, tirou uma garrafa de conhaque do armário por baixo da mesa. Encheu um copo e bebeu com intensidade, ofegando com o ardor que não lhe era familiar. Tinham passado séculos desde que tinha bebido álcool puro. Instalou-se numa cadeira, segurando com cuidado o copo de conhaque nas mãos trémulas.

Hekatah ficaria extasiada se soubesse o quanto o tinha assustado. Se Jaenelle fosse deturpada pela ambição de Hekatah e pelo insaciável desejo de esmagar e dominar... Não, Jaenelle não. Tem de ser entrelaçada suave e delicadamente aos Sangue, tem de aceitar a trela do Protocolo e da Lei dos Sangue, as únicas coisas que evitam que todos se joguem ao pescoço uns dos outros. Porque em breve, muito em breve, ela começaria a percorrer estradas que nenhum deles percorreu, ficaria tão distanciada dos Sangue com eles o estavam dos plebeus. E o poder. Mãe Noite! Quem a conseguiria deter?

Quem a quereria deter?

Saetan voltou a encher o copo e fechou os olhos. Não podia negar o que o seu coração sabia bem demais. Serviria a sua Senhora de cabelos louros. Acontecesse o que acontecesse, servi-la-ia.

Quando governou Dhemian em Kaeleer e Dhemian em Terreille, nunca tinha hesitado em reprimir a ambição de Hekatah. Acreditava, nessa altura, e ainda agora acreditava, que era errado usar a força para dominar outra raça. Mas se Jaenelle quisesse dominar... Custar-lhe-ia a honra, para não falar da alma, mas poria Terreille de joelhos para deleite de Jaenelle.

A única forma de proteger os Reinos era proteger Jaenelle de Hekatah e das suas ferramentas humanas.

Fosse qual fosse o preço.

 

Daemon recolheu-se ao seu quarto bastante tarde nessa noite. O vinho e o conhaque que tinha bebido ao longo da noite tinham-no entorpecido o suficiente para manter o sangue-frio apesar das insinuações devastadoras e da tagarelice piegas que tinha sido obrigado a ouvir ao jantar, apesar dos corpos que se roçavam nele "acidentalmente" durante toda a noite.

Mas não se encontrava suficientemente entorpecido para não sentir a presença de uma mulher no seu quarto. O odor psíquico chegou-lhe no momento em que abriu a porta do quarto. Resmoneando silenciosamente pela intrusão, Daemon4evantou a mão. As chamas das velas ao lado da cama produziram de imediato uma luz ténue.

A jovem feiticeira hayiliana estava deitada no centro da cama, o longo cabelo preto espalhado de forma sedutora pelas almofadas, o lençol aconchegado com recato junto ao queixo pontiagudo. Era nova na corte de Dorothea, uma aprendiza da assembleia da Ampulheta. Tinha-o observado durante todo o serão mas se não tinha dirigido a ele.

Sorriu para Daemon e abriu a pequena boca beiçuda, deslizando a ponta da língua ao longo do lábio superior. Destapando-se com lentidão, esticou o corpo desnudado e abriu as pernas indolentemente.

Daemon sorriu.

Sorriu enquanto apanhava as roupas que ela tinha espalhado pelo chão e mandou-as pela porta aberta para o corredor. Sorriu ao retirar o lençol e as cobertas da cama e ao atirá-las atrás das roupas. Continuou a sorrir quando a levantou da cama e a mandou pela porta fora com uma tal força que foi bater na parede oposta com um baque que soou a ossos partidos. O colchão foi a seguir, só não lhe acertando porque tinha-se virado para o lado, tendo começado a gritar.

Seguindo o som da correria, Dorothea precipitou-se pêlos corredores ao mesmo tempo que as paredes da mansão estremeciam com uma violência mal refreada. Abriu caminho pelo grupo de guardas que rosnavam até alcançar as criadas pessoais e outras feiticeiras da assembleia cujo chilreio desassossegado era abafado por gritos que iam aumentando de volume e de tom.

— Em nome do Inferno, o que é que se está a passar aqui? — gritou, o ronronar melodioso habitual assemelhando-se agora a uma gata no cio.

Daemon saiu do quarto, arranjando calmamente as mangas da camisa. As paredes do corredor cobriram-se instantaneamente de gelo.

Dorothea estudou o rosto de Daemon. Na realidade, nunca o tinha visto quando se encontrava no auge daquela raiva gélida, só o tinha visto quando estava a regressar daquele estado, mas Dorothea percebeu que Daemon estava no centro da tempestade e algo tão insignificante como uma entoação errada numa única palavra seria suficiente para despoletar uma explosão violenta que destruiria a corte.

Semicerrou os olhos e tentou não se arrepiar.

Era mais do que a raiva gélida, desta vez. Muito mais.

O seu rosto estava tão despojado de vida que poderia ter sido esculpido numa madeira refinada, no entanto estava repleto de algo. Aparentava uma calma artificial, os olhos dourados, tão vitrificados como as paredes, olhavam-na com a intensidade própria de um predador.

Algo o tinha vindo a empurrar em direcção ao ponto de ruptura emocional e, por fim, tinha rebentado.

Nas raças de longevidade reduzida, os escravos do prazer tornavam-se emocionalmente instáveis após alguns anos. Nas raças de longevidade prolongada este processo levava décadas, mas, eventualmente, a combinação de afrodisíacos e da constante excitação sem lhes ser permitido qualquer tipo de alívio, deturpava algo no interior dos machos. Posteriormente, com um tratamento cuidadoso, ainda poderiam realizar alguns serviços, mas já não poderiam servir como escravos do prazer.

Daemon tinha sido um escravo do prazer a maior parte da sua vida. Tinha-se aproximado deste ponto várias vezes no passado, mas tinha sempre conseguido recuar da orla. Agora não havia recuo possível.

Daemon falou, por fim. A voz soou monocórdica, mas era detectável uma ponta de trovão. — Regressarei quando conseguirdes retirar completamente o fedor do meu quarto. Até lá, não me chameis. — Deslizou pelo corredor e desapareceu.

Dorothea aguardou, contando os segundos. Passaram-se vários minutos até se ouvir a porta da frente a bater com um estrondo tal que a mansão abanou e estilhaçaram-se vidros devaneias por todo o edifício.

Dorothea virou-se para a feiticeira, uma criatura perversa com grandes potencialidades agora coberta modestamente com o lençol e choramingando corajosamente, queixando-se do tratamento cruel. Queria espetar as unhas naquela linda cara.

Não havia forma de controlar Sadi, não depois do que se passou hoje. A dor ou o castigo apenas o iriam enfurecer ainda mais. Tinha de o afastar de Hayll, enviá-lo para algum lugar dispensável. A Sacerdotisa das Trevas tinha feito várias sugestões quando ele foi concebido e quando quebraram o contrato para que o rapaz ficasse para a Ampulheta Hayiliana. Bem, a cabra poderia fazer agora alguma sugestão, agora que ele estava frígido e possivelmente a deslizar para o Reino Distorcido.

Endireitando a gola do roupão, Dorothea olhou uma derradeira vez para a jovem feiticeira. — Essa cabra é expulsa da Ampulheta e afastada da minha corte. Quero que ela e tudo o que tenha a ver com ela fora da minha casa dentro de uma hora.

Tomando o braço do jovem Senhor da Guerra que tinha estado a aquecer-lhe a cama antes de os gritos começarem, regressou à sua ala da mansão, sorrindo face ao pranto de desespero que enchia o corredor atrás de si.

 

Dorothea caminhava apressada pelo amplo caminho que levava ao Santuário, prendendo a capa que o vento tentava arrancar do seu corpo. A velha Sacerdotisa, dobrada e algo fraca de cabeça, abriu a pesada porta para que Dorothea entrasse, lutando depois com o vento para a fechar.

Dorothea acenou quase imperceptivelmente com a cabeça à velha mulher em sinal de reconhecimento ao passar por ela, desesperada por chegar ao local de encontro.

A câmara interior estava vazia, à excepção de duas cadeiras usadas e de uma mesa baixa colocadas em frente a uma lareira em chamas. Tirando a capa com uma mão, colocou a garrafa que tinha mantido junto ao corpo com cuidado sobre a mesa e tombou numa das cadeiras com um gemido.

Dois breves dias antes, tinha achado um atrevimento pedir ajuda à Sacerdotisa das Trevas, tinha-se irritado com as dádivas que teria de oferecer da corte ou da Ampulheta de Hayll. Agora estava disposta a suplicar.

Durante dois dias, Daemon tinha percorrido Draega, a tentar atenuar a raiva de forma impaciente e inexorável. Nesse período, matou um jovem Senhor da Guerra de uma das Cem Famílias - um jovem exuberante que tentava simplesmente divertir-se com a filha de um taberneiro. O homem tinha tido o atrevimento de protestar pois a sua filha era virgem e usava uma Jóia. O Senhor da Guerra tinha tratado do pai - não mortalmente - e estava a arrastar a rapariga para um quarto confortável quando surgiu Sadi, que ficou sentido com os gritos aterrorizados da rapariga e atacou ferozmente o jovem Senhor da Guerra, despedaçando-lhe as Jóias e transformando-lhe o cérebro numa poeira cinzenta.

O taberneiro agradecido ofereceu a Sadi uma boa refeição e um copo sempre cheio. Pela manhã, a história já se tinha espalhado por Draega e, por essa altura, não havia taberneiro ou estalajadeiro, Sangue ou plebeu, que não tivesse uma refeição quente, um copo cheio ou uma cama a aguardá-lo se passasse por aquela rua.

Dorothea não tinha a certeza se o Anel o iria deter desta vez, não tinha a certeza se ele direccionaria a fúria para ela se tentasse controlá-lo. E se ele conquistasse a dor...

Dorothea colocou as mãos sobre o rosto e voltou a gemer. Não ouviu a porta a abrir e a fechar.

— Estás inquieta, Irmã — disse a voz ameninada, como um trauteio.

Dorothea levantou os olhos, tremendo de alívio. Ajoelhou-se de supetão e inclinou a cabeça, numa vénia. — Preciso da vossa ajuda, Sacerdotisa das Trevas.

Hekatah sorriu e olhou avidamente para o conteúdo da garrafa. Mantendo o capuz da capa puxado para a frente para ocultar o rosto, sentou-se na outra cadeira e, com um movimento gracioso da mão, fez com que a garrafa deslizasse para junto de si. — Uma oferta? — perguntou, simulando alegria e surpresa. — Que generosa, irmã, lembrares-te de mim. — Com outro movimento da mão, invocou uma taça de vidro negro, encheu-o com o conteúdo da garrafa e bebeu intensamente. Suspirou de prazer. — Que doce é o sangue. Uma jovem e poderosa feiticeira. Mas uma única voz para dar tanto.

Dorothea rastejou de volta para a cadeira e endireitou o vestido. Os lábios curvaram-se num sorriso dissimulado. — Insistiu em ser a única, Sacerdotisa, desejando que tivésseis o melhor dela. — Era o mínimo que a cabra poderia ter feito, tendo sido a causadora do problema.

— Mandaste chamar-me — disse Hekatah de modo impaciente, logo baixando a voz para o trauteio sereno. — Como posso ajudar-te, Irmã?

Dorothea saltou da cadeira e começou a andar de um lado para o outro.

— Sadi enlouqueceu. Já não tenho qualquer controlo sobre ele. Se se mantiver em Hayll por mais tempo, destruir-nos-á a todos.

— Não podes usar o mestiço para o refrear? — Hekatah voltou a encher o copo e bebericou o sangue morno.

Dorothea riu-se amargamente. — Acho que já nada o pode refrear.

— Hmm. Sendo assim, tens que o mandar para outro sítio. Dorothea rodopiou, os punhos cerrados junto ao corpo, os lábios abertos revelando os dentes cerrados. — Para onde? Ninguém o aceitará. Seja qual for a Rainha para a qual o enviar, morrerá.

— Quanto mais longe, melhor — murmurou Hekatah. — Pruul?

— Zuultah tem o mestiço e sabeis bem que os dois não podem estar juntos na mesma corte. Além disso, Zuultah tem, de facto, conseguido mante-lo sob trela curta e Prythian não o quer deslocar.

— Desde quando é que te preocupas com o que quer aquela porca alada? — ripostou Hekatah. — Pruul é para ocidente, bem a ocidente de Hayll e basicamente deserto. Um lugar ideal.

Dorothea abanou a cabeça. — Zuultah é demasiado valiosa para os nossos planos.

— Ah.

— Ainda estamos a trabalhar os Territórios ocidentais e ainda não temos uma influência suficientemente forte.

— Mas tens alguma. Com certeza Hayll conseguiu algumas aberturas, algures onde nem todas as Rainhas sejam tão valiosas. Não há um único sítio, Irmã, onde uma Rainha tenha constituído um obstáculo? Algum sítio onde um presente copo o Sadi poderá revelar-se útil para ti?

Dorothea sentou-se na cadeira, a longa unha do dedo indicador a bater nos dentes. — Um sítio — disse calmamente. — A cabra daquela Rainha tem-se sempre oposto a mim. Demorou três gerações das deles para enfraquecer a cultura o suficiente e conseguir criar um conselho independente de machos com força bastante para refazer as leis. Os machos, que ajudámos a subir ao poder esventrarão a própria sociedade para conseguirem o domínio e uma vez que isso aconteça, o Território estará maduro para a colheita. Porém, a Rainha continua a bater-se e tenta constantemente fechar a minha embaixada e debilitar a minha influência.

— Dorothea endireitou-se na cadeira, com um brilho nos olhos. — Sadi será um presente perfeito.

— E se o seu temperamento ficar incontrolável... — Hekatah riu-se. Dorothea riu-se com ela. — Mas como fazê-lo chegar lá?

— Apresenta-o como uma oferenda.

— Não aceitaria. — Fez uma pausa. — Mas o seu genro é o acompanhante de Kartane e é um líder influente no conselho - graças a Hayll. Se o gesto lhe fosse dirigido, como poderia recusar?

Hekatah brincou com o copo. — Este lugar. É para ocidente? Dorothea sorriu. — Sim. Ainda mais distante do que Pruul. E suficientemente retrógrado para o irritar. — Dorothea pegou na capa. — Dais-me licença, Sacerdotisa? Tenho assuntos a resolver. Quanto mais depressa nos livrarmos dele, melhor.

— Claro, Irmã — Hekatah respondeu docemente. — Que as Trevas aligeirem a tua viagem.

Hekatah fixou o olhar no lume durante vários minutos. Esvaziando a garrafa, admirou o líquido escuro no vidro preto fumado e levantou a taça numa pequena saudação. — Quanto mais depressa te livrares dele, melhor. Quanto mais depressa ele for para ocidente, melhor ainda.

 

— SaDiablo, há algo que tens de saber.

Silêncio. — Viste-la?

— Não. — Uma longa pausa. — Saetan, Dorothea acabou de enviar Daemon Sadi para Chaillot.

 

                       CAPÍTULO SEIS

Imediatamente acordada, Surreal sondou o quarto escuro e os corredores lá fora em busca do que quer que lhe tivesse perturbado o sono.

Vozes de homens, vozes de mulheres, risos abafados.

Não pressentia qualquer perigo. Ainda assim...

Um vento suave, obscuro e frio, proveniente de Este, soprava sobre Chaillot.

Surreal aconchegou-se na cama, prendendo os cobertores à sua volta. A noite estava fresca, a cama quentinha e a mistura para dormir que Deje lhe tinha preparado levou-a suavemente de volta ao sono sem sonhos de que tinha desfrutado nas últimas noites.

O que quer que fosse, não estava à sua procura.

Kartane bateu com a porta do quarto e trancou-a dando uma pancada violenta com a mão. Durante uma hora andou para trás e para a frente nos seus aposentos, praguejando baixinho.

Tinha sido uma noite encantadora, passada com uma rapariga de rosto de porcelana, assustada e satisfatoriamente repugnada com tudo o que tinha de lhe fazer - e com tudo o que ele lhe tinha feito. Tinha deixado aquele recreio privado relaxado e saciado até Robert Benedict o ter feito parar à porta e lhe transmitir o quão satisfeita e honrada estava a sua família por receber tal presente da Senhora SaDiablo. Claro que o cabrão do seu irmão, Philip, cumpria os deveres de consorte para com a Senhora Angelline e é claro que ela não o poria totalmente de parte por um escravo do prazer, independentemente da sua fama, mas sentiam-se honrados.

Kartane praguejou. Tinha tecido a sua teia de mentiras à embaixada de Hayll sem falhas, para garantir que Dorothea, mesmo que o descobrisse rapidamente, não o pudesse mandar regressar sem causar um grande embaraço a si própria. Significava, também, que não podia ir-se embora de repente, sem ter de responder a algumas perguntas difíceis e indesejadas. Além do mais, este tinha-se tornado o seu recreio favorito e tinha planeado ficar aqui por uns tempos.

Despiu-se, deixando-se cair penosamente na cama. Havia tempo. Havia tempo. Daemon não estava aqui. Por enquanto.

Cassandra estava de pé à entrada do Santuário e observou o sol a nascer, incapaz de precisar a causa do nervosismo que sentia. O que quer que fosse, estava a chegar do horizonte ao mesmo tempo que o sol.

Fechando os olhos e expirando devagar e profundamente, desceu às profundezas da Negra, deu um passo mental para o lado, conforme era ensinado às Viúvas Negras, e ficou à beira do Reino Distorcido. Com os olhos enevoados pela paisagem onírica de visões, olhou para o sol que subia acima da linha do horizonte.

Manteve o olhar durante longos momentos e, depois, abanou violentamente a cabeça para desanuviar a vista e encostou o corpo com força à pedra da entrada, procurando apoio. Quando se certificou de que estava completamente no exterior da paisagem onírica, entrou no Santuário, de costas para o sol.

Caminhou aos tropeções até à cozinha, fechou os cortinados à pressa e sentou-se no banco junto ao lume fraco, agradecida pela escuridão.

Uma Viúva Negra que se colocasse à beira do Reino Distorcido poderia ver o verdadeiro rosto por detrás de qualquer máscara que uma pessoa usasse; poderia retirar memórias da madeira e da pedra para desvendar o que se tinha passado num determinado local; poderia divisar avisos sobre o que estava para vir.

O sol, quando Cassandra olhou através da paisagem onírica de visões, era uma esfera dilacerada e ensanguentada.

Alexandra Angelline examinou o quarto com um olhar crítico. A madeira do soalho brilhava, os tapetes tinham acabado de ser lavados, as janelas cintilavam, a roupa da cama era nova e fresca e o guarda-fatos estava cheio de roupas lavadas e passadas, penduradas em linha recta sobre os sapatos polidos. Respirou profundamente e sentiu o cheiro do ar outonal e da cera de limão.

E de algo mais.

Com um suspiro irritado, abanou a cabeça e dirigiu-se à governanta. — Ainda está presente. Suave, mas presente. Volta a limpá-lo.

 

Lucivar estudou o céu sem nuvens. Já se viam ondas de calor a tremeluzir do Deserto de Arava em Pruul, mas Lucivar sentiu arrepios de frio, estando gelado até aos ossos. Os sentidos externos nada lhe indicaram por isso voltou-se para o interior e, de imediato, sentiu a fúria gelada e obscura. Humedecendo nervosamente os lábios, enviou um pensamento por um fio masculino Ébano Acinzentado, restringido a uma única mente.

“Bastardolas?”

O que quer que fosse que viajasse pêlos Ventos passou por ele e continuou para ocidente.

“Bastardolas?"

A única resposta foi o silêncio gelado.

No Inferno, Saetan estava sentado à sua secretária em madeira escura no seu gabinete privado bem abaixo do Paço e olhava fixamente o retraio do outro lado da sala, um retrato que mal conseguia vislumbrar na quase obscuridade. Estava ali sentado há horas, a fitar o semblante de Cassandra, tentando sentir algo - amor, raiva - o que fosse que conseguisse aliviar a dor de coração.

Sentia apenas amargura e pesar.

Observou Mephis a abrir a porta do gabinete e a fechá-la atrás de si. Durante um longo momento olhou fixamente para o filho mais velho como se fosse um desconhecido e, depois, voltou o olhar para o retrato.

— Príncipe SaDiablo — disse Saetan, a voz repleta de um suave trovão.

— Senhor Supremo?

Saetan continuou a fixar o retrato durante mais alguns minutos. Suspirou amargamente. — Traz Marjong, o Carrasco à minha presença.

Num compartimento privado de uma Carruagem da Teia Amarela, Daemon Sadi estava sentado de frente para dois embaixadores hayilianos nervosos. Por detrás de um rosto que parecia uma máscara fria, bonita e artificial, a raiva estava controlada mas não diminuída. Nada disse aos seus acompanhantes durante a viagem. Na verdade, quase não se tinha mexido desde que deixaram Hayll.

Agora olhava fixamente para uma parede branca, ignorando as vozes em tom baixo dos homens. A mão direita continuava a procurar o pulso esquerdo, massajando com os dedos para trás e para a frente, para trás e para a frente, como se precisasse de se certificar de que a cicatriz que Tersa lhe tinha oferecido ainda aí se encontrava.

 

Daemon olhava fixamente pela janela à medida que a carruagem ia avançando pela estrada plana que levava à propriedade de Angelline, consciente de que o seu acompanhante, o Príncipe Philip Alexander, o observava dissimuladamente. Tinha ficado aliviado quando Philip parou de indicar, como forma de defesa, os locais de interesse ao percorrerem Beldon Mor. Compreendia a atitude defensiva do homem - os embaixadores hayilianos orgulhavam-se da capacidade de escarnecer subtilmente da herança cultural das cidades anfitriãs - mas estava demasiado intrigado pelo inapreensível quebra-cabeças que tinha tocado a sua mente, pouco depois de chegar a Beldon Mor, para dar a Philip mais do que respostas secas e educadas.

Há algumas décadas atrás, Beldon Mor teria sido, provavelmente, uma bonita cidade. Ainda era encantadora, mas Daemon reconheceu a contaminação da influência de Hayll. Dentro de duas gerações, Beldon Mor não seria mais do que uma Draega mais pequena e mais recente.

No entanto, existia uma tendência divergente sob a contaminação familiar, algo subtil que escapava ao reconhecimento. Tinha-se aproximado sorrateiramente nas horas que tinha passado na embaixada de Hayll, como uma bruma que se consegue quase sentir mas que não se consegue vislumbrar. Nunca tinha vivido uma experiência destas ainda que, de alguma forma, lhe parecesse familiar.

— Tudo isto faz parte da propriedade de Angelline — disse Philip, quebrando o silêncio. — A casa poderá ser avistada depois da próxima curva.

Pondo de lado O quebra-cabeças, Daemon esforçou-se por mostrar algum interesse pelo local onde iria viver.

Era um grande solar, de dimensões proporcionadas, que se enquadrava graciosamente no meio ambiente. Esperava que a decoração interior fosse da mesma elegância serena que o exterior. Seria um alívio viver num sítio que não lhe bulisse com os nervos.

É encantadora — disse Daemon quando chegaram à casa.

Philip sorriu circunspectamente. — É verdade.

Ao descer da carruagem e ao seguir Philip pêlos degraus até à porta, os nervos de Daemon tiniram. Os sentidos internos estenderam-se. No momento em que atravessou a soleira, parou de repente, atordoado.

O odor psíquico quase tinha desaparecido, mas Daemon reconheceu-o. Um odor negro. Um odor poderoso, terrível, maravilhoso.

Respirou profundamente e o desejo de uma vida intensificou-se.

Ela esteve aqui. Ela esteve aqui!

Queria gritar em sinal de triunfo, mas a expressão perplexa e prudente nos olhos cinzentos de Philip intensificaram os instintos predadores de Daemon. Quando chegou junto de Philip, já tinha divisado meia dúzia de formas de fazer desaparecer discretamente um Príncipe de Jóia Cinzenta. Daemon sorriu, satisfeito por ver o calafrio involuntário de Philip.

— Por aqui — indicou Philip secamente, virando e dirigindo-se à parte de trás da casa. — A Senhora Angelline aguarda-nos.

Daemon enfiou as mãos nos bolsos, dispôs o rosto com a expressão enfadada da corte e caminhou ao lado de Philip com uma indiferença elegante. Por mais impaciente que estivesse por conhecer as feiticeiras desta família e descobrir a que procurava, não adiantava que Philip ficasse demasiado inquieto, demasiado na defensiva.

Tinham quase chegado à porta quando um homem saiu da sala. Era gordo, corado e, no geral, pouco atraente, mas existiam semelhanças suficientes entre ele e Philip para os classificar como irmãos.

— Ora — disse Robert Benedict com um sentido sorriso sarcástico. — Este é Daemon Sadi. As raparigas estão excitadíssimas por te terem cá. Excitadíssimas. — Os seus olhos perderam-se na gordura ao sorrir maldosamente para Philip, antes de se virar para Daemon. — Leiand passou toda a manhã a aperaltar-se para ayocasião. Philip é agora uma espécie de administrador, pelo que não tem tempo para providenciar o conforto das raparigas, da forma como tu o farás. — Esfregou as mãos de contentamento maldoso. — Dão-me licença? O dever chama-me.

Afastando-se para deixar passar Robert, mantiveram-se em silêncio até a porta da frente se fechar. Philip estava branco sob o bronzeado de Verão, assobiando ao respirar através dos dentes cerrados e estremeceu com o esforço de tentar controlar alguma emoção pujante.

— Aguardam-nos — disse Daemon baixinho.

Os olhos de Philip estavam repletos de ódio puro. Daemon retribuiu o olhar, com serenidade. Um Príncipe dos Senhores da Guerra de Jóia Negra nada tinha a temer de um Príncipe de Jóia Cinzenta. Philip, na pior das fúrias não se igualava a Daemon no seu melhor temperamento e ambos o sabiam.

— Por aqui — disse Philip bruscamente, conduzindo Daemon para a sala.

Tentando não parecer demasiado ansioso, Daemon entrou na divisão solarenga que tinha vista para uma extensão de relvado verde e jardins, convencido de que a reconheceria no momento em que a visse.

Segundos mais tarde, engoliu um grito de raiva.

Estavam ali duas mulheres e uma rapariga com cerca de catorze anos, mas aquela que procurava não estava presente.

Alexandra Angelline, a matriarca da família Angelline e a Rainha de Chaillot, era uma bela mulher com um longo cabelo negro que começava a ficar grisalho, um rosto oval com uma estrutura óssea delicada e olhos da cor das Jóias Violáceas. As roupas eram de corte simples mas caras. A Opala dos Sangue pendurada ao pescoço estava embutida em ouro de forma simples. Sentada numa cadeira de costas altas, manteve um porte recto e orgulhoso enquanto o examinava.

Daemon examinou-a também. Não era uma Viúva Negra natural, mas existia uma impressão à sua volta que sugeria que teria passado algum tempo numa assembleia da Ampulheta. No entanto, por que razão iniciaria a aprendizagem e não lhe daria continuidade... A não ser que Dorothea já tivesse iniciado a purga das assembleias da Ampulheta de Chaillot nessa altura. A eliminação de potenciais rivais era uma das primeiras acções que Dorothea tomava para enfraquecer um Território, e outras Viúvas Negras eram rivais muito mais perigosas do que as Rainhas pois praticavam o mesmo tipo de Arte. Não eram necessárias muitas histórias murmuradas na escuridão para transformar a prudência relativamente a Viúvas Negras em medo activo, e uma vez instalado o medo, começava a matança. Uma vez iniciada a matança, as Viúvas Negras passavam à clandestinidade e as únicas que seriam treinadas na Arte eram as filhas nascidas na Ampulheta.

Visto que era a única herdeira de uma das maiores fortunas de Chaillot e a Rainha mais forte da ilha, a presença contínua numa assembleia da Ampulheta teria sido um risco para todos.

Leiand Benedict, a filha única de Alexandra e esposa de Robert, era uma versão mais apagada e frívola da sua mãe. O decote e as mangas com floreados do vestido não eram adequados à sua figura e o penteado demasiado elaborado para a hora do dia faziam-na parecer mais matrona do que a mãe. Daemon achou particularmente irritante o seu ar de curiosidade tímida. Aquelas que começavam por demonstrar uma curiosidade tímida tendiam a tornar-se as mais cruéis e as mais vingativas ao descobrirem o tipo de prazer que ele podia proporcionar. Ainda assim, sentiu pena dela. Podia sentir o seu âmago ainda fundido, desejando ainda algo mais imaculado, mais opulento, que a satisfizesse mais do que esta liberdade engaiolada que possuía. Foi então que pestanejou dirigindo-se a ele, o que fez com que desejasse bater-lhe.

Por último, a rapariga, Wilhelmina, a única filha do primeiro casamento de Robert. Ao contrário do pai, que tinha tez rosada e cabelo ruivo, ela tinha cabelo negro e brilhante como a asa de um corvo e a sua pele era muito clara, com um rubor surpreendente nas faces e olhos azuis acinzentados. Era uma rapariga bonita e tornar-se-ia ainda mais quando o corpo começasse a desenvolver-se e a ganhar curvas. Na verdade, era o único defeito que Daemon encontrava no aspecto da rapariga - era tão magra que parecia adoentada. Perguntou-se - tal como o tinha feito em tantos outros lugares - se estas pessoas, Sangue tal como ele próprio era Sangue, teriam ideia do que eram, compreenderiam o que implicava usar as Jóias – não somente os prazeres que se retiravam ou o poder que se poderia deter mas também o sofrimento físico e emocional que isso acarretava. Se a rapariga usava Jóias mais escuras do que as outras mulheres da família, talvez não reconhecessem o que era tão evidente para Daemon.

Quem quer que usasse as Jóias, especialmente uma criança, tinha um metabolismo acelerado. Era possível, mais em relação a uma feiticeira devido às exigências físicas do período da lua do que em relação ao seu equivalente masculino, desgastar o próprio corpo numa questão de dias se não tivesse comida suficiente à sua disposição.

Regulando a pequena lasca de Jóia Vermelha oculta por baixo dos rubis nos botões de punho para retenção auditiva, Daemon deixou a mente vaguear enquanto Alexandra o informava sobre a casa e os seus "deveres". A lasca de Jóia reteria a conversa até que Daemon a recuperasse. Neste momento, tinha algo mais importante em que pensar.

Onde estaria ela? Quem seria? Uma parente que vinha de visita? Uma convidada que tinha permanecido alguns dias e que tinha ido embora recentemente? Não podia perguntar a ninguém. Caso não suspeitassem que a Feiticeira tinha estado na sua presença, as suas indagações, independentemente do seu carácter inofensivo, poderiam pô-la em perigo. Dorothea tinha já fixado os seus tentáculos cancerosos em Chaillot. Se tivesse conhecimento de que esteOutra tinha tocado a ilha... Não. Não podia perguntar. Até ela regressar, faria o que fosse necessário para manter estas mulheres satisfeitas e sem desconfianças. Mas quando ela regressasse...

Por fim, foi-lhe indicado o seu quarto. Estava situado directamente por baixo dos aposentos de Alexandra e junto a umas escadarias traseiras, uma vez que se encontrava aqui especialmente para lhe proporcionar prazer, pois Leiand não necessitava mais do que um acompanhante quando Robert não estivesse disponível e Wilhelmina era demasiado jovem. Era um quarto simples com uma cadeira, uma lamparina e uma escrivaninha bem como uma cama de solteiro, uma cómoda com um espelho por cima, um guarda-fatos - e, Daemon reparou sentindo-se grato, uma casa de banho moderna contígua.

Tal como tinha antecipado, a conversa durante o jantar foi tensa. Alexandra falou sobre as actividades culturais a explorar em Beldon Mor e Daemon colocou as questões educadas que eram esperadas. Enquanto a conversa de Alexandra era diligentemente impessoal, Leiand estava agitada, nervosa e demasiado disposta a colocar questões capciosas que a faziam corar, independentemente da forma delicada como Daemon respondia – se chegasse a responder. Robert, que tinha regressado imprevistamente para jantar, parecia demasiado satisfeito com a situação, produzindo comentários maliciosos ao longo da refeição e envidando todos os esforços para, sempre que tivesse uma oportunidade, tocar Leiand de forma a enfatizar o direito que tinha sobre ela. Daemon ignorou-o, achando muito mais interessante o desconforto e a raiva crescente de Philip em relação a Robert.

À medida que o jantar avançava, Daemon desejou que Wilhelmina estivesse presente, visto que era sobre quem Daemon sentia mais curiosidade, aquela a quem poderia extrair informações mais facilmente. Porém, era considerada demasiado nova para cear e acompanhar os adultos.

Finalmente liberado para se retirar mas demasiado desassossegado para dormir, Daemon caminhou para trás e para a frente no quarto. Amanhã começaria a investigar a casa. Um quarto onde ela tivesse pernoitado ainda estaria impregnado com o seu odor psíquico, mesmo que tivesse sido limpo. Não havia tempo a perder, mas não podia deixar que o encontrassem a rondar de madrugada, na primeira noite que aqui passasse, não agora, não quando havia a possibilidade de finalmente vê-la, ouvi-la, tocar no que a sua alma tinha ansiado toda a vida. A Lei dos Sangue nada significava para ele. Os Sangue nada significavan/para ele. Ela seria Sangue e, no entanto, Outra, algo estranho, ainda que aparentado. Seria espantosamente magnificente.

Enquanto caminhava pelo quarto, despindo-se num lento striptease para ninguém, Daemon tentou imaginá-la. Nascida em Chaillot? Provavelmente. A residir em Beldon Mor? Tal explicaria aquela sensação ténue que tinha sentido. E se ela nunca se afastasse fisicamente da ilha, isso explicaria porque é que nunca tinha sentido a sua presença em nenhum local nos últimos anos. Sensata, cautelosa certamente, pois tinha evitado chamar a atenção durante tanto tempo.

Deslizou para a cama, apagou a luz... e gemeu quando lhe surgiu na mente a imagem de uma velha sensata, enrugada e esquelética.

Nào, implorou à noite silenciosa. Doces Trevas, ouvi a prece de um dos vossos filhos. Agora que está tão próxima, permiti que seja jovem o suficiente para me querer. Permiti que seja suficientemente jovem para necessitar de mim.

A noite não lhe deu resposta e o céu apresentava já uma tonalidade acinzentada que antecipava a aurora quando, finalmente, adormeceu. 3/Terreille

Durante dois dias, Daemon representou o acompanhante educado e atencioso de uma agitada Leiand que se desdobrava numa série interminável de visitas, exibindo o presente da Senhora SaDiablo. Durante duas noites, percorreu a casa, desgastando o controlo sobre o seu temperamento devido à falta de sono e à frustração. Tinha inspeccionado todas as divisões públicas, examinado todos os quartos de hóspedes e persuadido os criados para que lhe permitissem a entrada nas suas instalações - e nada tinha encontrado.

Não era exactamente nada. Tinha encontrado a biblioteca escondida no segundo andar da ala das crianças. Não era a biblioteca que os visitantes podiam ver ou a que era usada pela família. Esta era uma pequena divisão que continha os volumes sobre a Arte e, como tantas outras que tinha visto nas últimas décadas, possuía a sensação de uma divisão que quase nunca era usada.

Quase nunca.

Fechando a porta silenciosamente, Daemon dirigiu-se infalivelmente pela sala escura e atravancada, a uma mesa no canto oposto que tinha um abajur. Tocou-lhe, acariciando o cristal de cima para baixo para diminuir o brilho, encostou-se às estantes embutidas e inclinou a cabeça para trás, deixando-a tombar sobre uma prateleira.

O odor era forte nesta sala.

Daemon fechou os oinos, inspirou profundamente e franziu o sobrolho. Embora tenha sido limpa, a sala tinha o cheiro empoeirado e bafiento de livros antigos, mas um odor físico não suplantaria um odor psíquico. Esse odor obscuro... Tal como o corpo que o alberga, o odor psíquico de uma feiticeira possui um carácter almiscarado que um macho dos Sangue considera tão excitante como o corpo - se não mais. Este odor obscuro e adocicado estava assustadoramente limpo desse almiscarado e, ao continuar a respirar profundamente, a abrir-se ao que seria mais forte do que o corpo, sentiu-se angustiado por verificar essa situação.

Afastando-se das prateleiras, Daemon apagou a vela e aguardou que os olhos se adaptassem à escuridão antes de deixar a sala. Ora, ela tinha passado muito do seu tempo nesta divisão, mas tinha de ter ficado algures. Os olhos de Daemon moveram-se rapidamente pelo tecto ao deslizar entre as sombras e subir as escadas silenciosamente. O único sítio que faltava explorar era a ala das crianças, os quartos do terceiro andar, onde Wilhelmina e a sua preceptora, a Senhora Graff, passavam a maior parte dos dias. Era, também, o único local do qual Philip lhe tinha dito veementemente para se manter afastado, uma vez que os seus serviços não eram ali necessários.

Daemon deslizou pelo corredor, identificando os quartos com a sua mente penetrante, ao passar por eles: sala de aulas, sala de música, quarto dos brinquedos, sala de estar da Senhora Graff e quarto adjacente (do qual Daemon se afastou de imediato, os lábios delineados numa espécie de rosnar, ao sentir o odor insignificante de sonhos eróticos), casas de banho, dois quartos de hóspedes, o quarto de Wilhelmina. E o quarto do canto que tinha vista sobre os jardins das traseiras.

Daemon hesitou, repentinamente relutante em invadir ainda mais a privacidade de crianças. Como fazia habitualmente, tinha recolhido factos básicos sobre a família antes de entrar ao serviço. O embaixador hayiliano, irritado por estar a ser questionado, tornou-se bastante loquaz ao reparar no olhar frio de Daemon, dizendo pouca coisa que interessasse, excepto que tinham duas filhas. Daemon tinha conhecido Wilhelmina.

Restava apenas um quarto.

A mão de Daemon tremia ao girar a maçaneta da porta, entrando rapidamente no quarto.

As trevas adocicadas inundaram-no, mas mesmo aqui o odor era débil, como se alguém tivesse tentado eliminá-lo à força. Daemon encostou as costas à porta e pediu perdão em silêncio por aquilo que estava prestes a fazer. Era macho, estava a invadir e, tal como acontecia com ela, demoraria apenas alguns minutos para que os seu próprio odor psíquico negro ficasse gravado na divisão paraaualquer um destrinçar.

Levantando uma mão cuidadosamente, acendeu uma vela junto à cama, mantendo-a com uma chama suficiente para ver, embora ténue para que não passasse, esperava, pela fresta da porta do quarto se alguém passasse por ali. Depois, olhou à volta, a testa enrugando-se de perplexidade.

Era o quarto de uma menina: cómoda e guarda-fatos brancos, dossel e coberta da cama brancos decorados com pequenas flores cor-de-rosa cobriam a cama, soalho de madeira brilhante com tapetes fofinhos espalhados pelo chão.

Era completamente errado.

Abriu todas as gavetas da cómoda e encontrou roupa adequada a uma menina, mas ao tocá-la era como tocar uma minúscula faísca de relâmpago. Também a cama, ao deslizar os dedos levemente sobre a coberta, enviou uma faísca que lhe percorreu os nervos. No entanto, as bonecas e os animais de peluche - só possuíam o odor porque se encontravam neste quarto. Se algum deles estivesse impregnado com as suas trevas intrigantes, teria levado um consigo para o quarto, ficando agarrado a ele toda a noite. Por fim, dirigiu-se ao guarda-fatos e abriu as portas.

As roupas eram as roupas de uma criança, os sapatos destinavam-se a pequenos pés. Já havia algum tempo que não eram usados e o odor que possuíam também era insignificante. Já o guarda-fatos, contudo...

Daemon escrutinou-o, fragmento a fragmento, tocando tudo, ficando mais esperançado e mais descontrolado a cada bocado que deixava para trás. Quando já nada havia a inspeccionar, os dedos trémulos deslizaram pelas paredes internas, o sentido do tacto tornando-se um condutor para os sentidos interiores.

Ajoelhado no chão, esgotado pela desilusão, inclinou-se para a frente até que a mão tocou no canto da parte de trás do guarda-fatos.

Um relâmpago vibrou por Daemon até julgar que o seu sangue iria começar a ferver.

Intrigado, pôs as mãos em concha e criou uma pequena bola de luz encantada. Examinou o canto, fez a luz encantada desaparecer e sentou-se sobre os calcanhares, ainda mais intrigado.

Não havia nada ali... porém, havia. Nada que os seus sentidos físicos pudessem captar, mas os sentidos interiores insistiam que existia algo.

Daemon estendeu novamente a mão e sentiu um calafrio.

O quarto ficou, de repente, extremamente gelado.

O seu discernimento estava toldado pelo cansaço e demorou um minuto a perceber o significado do frio.

— Perdoai-me — murmurou ao retirar a mão, com cuidado. — Não pretendia invadir o vosso lugar privado. Prometo pelas Jóias que não voltará a acontecer.

Com as mãos trémulas, Daemon voltou a colocar as roupas e os sapatos exactamente da forma que os tinha encontrado, apagou a vela e deslizou até ao seu quarto, silenciosamente. Aí chegado, retirou a garrafa de conhaque escondida no seu próprio guarda-fatos e deu um longo gole.

Não fazia sentido. Podia perceber ter encontrado o odor psíquico na biblioteca. Mas no quarto da criança? Não nos brinquedos mas nas roupas, nas roupas da cama que um adulto poderia tocar diariamente se tomasse conta da criança. Ao fazer um comentário inofensivo sobre a existência de outra filha, tinha-lhe sido comunicado, bruscamente, que ela não estava em casa, que estava doente.

Estaria a sua Senhora a assumir os deveres de Curandeira? Teria ela dormido numa cama improvisada no quarto da criança para se manter por perto? Onde estaria ela agora?

Daemon guardou o conhaque, despiu-se e enfiou-se na cama. O aviso de Tersa relativamente ao cálice a partir-se desgastava-lhe os nervos, mas não havia nada que pudesse fazer. Não podia persegui-la como tinha feito noutras cortes. Ela estava por perto e ele não podia arriscar-se a ser mandado embora.

Daemon socou a almofada e suspirou. Quando a criança regressasse, a sua Senhora também regressaria.

E ele estaria à espera.

 

Surreal inclinou a cabeça para trás, sorrindo face ao calor do sol no rosto e devido ao cheiro do ar puro do mar. O período da lua tinha terminado; hoje à noite começaria a trabalhar para seu sustento e para pagar a Deje pela sua gentileza. Mas o dia pertencia-lhe e, ao ziguezaguear pelo caminho que levava ao Altar de Cassandra, desfrutou da paisagem acidentada, do sol nas costas, do vento fresco de Outono que brincava com o seu longo cabelo preto.

Ao contornar uma curva e ao avistar o Santuário, Surreal franziu o nariz e suspirou. Tinha feito esta caminhada para se deparar com uma ruína. Embora estivesse a iniciar o que poderia vir a ser uma longa e extensa vida, já tinha vivido anos suficientes para verificar que os sítios onde por vezes tinha permanecido, tinham-se tornado amontoados de pedras desfeitas quando lá voltava. O que representava história antiga para tantos era memória real para ela. Achou que o pensamento era deprimente.

Afastando o cabelo do rosto, entrou por uma porta aberta e olhou à volta, reparando nas fendas existentes nas paredes de pedra e nos buracos no telhado. Era mais apelativo estar sentada a desfrutar o sol outonal do que vaguear por quartos frios e áridos, pelo que se voltou para sair mas, ao chegar à porta de entrada, ouviu passos atrás de si.

A mulher que saiu dos aposentos interiores vestia uma túnica e calças feitas de um tecido preto acinzentado, com reflexos. O cabelo ruivo que caía pêlos ombros, era mantido no lugar por um pequeno círculo em prata que assentava bem à volta da sua cabeça. Imediatamente acima do peito, pendia uma Jóia Vermelha. O sorriso de boas-vindas era afectuoso, não sendo efusivo.

— Como te posso servir, Irmã? — perguntou serenamente. O cabelo, cuja cor vibrante se encontrava esmaecida pelo tempo e as rugas no rosto da mulher, declaravam longos anos, mas os olhos esmeralda e o porte imponente transmitiam que esta não era uma feiticeira com a qual se pudesse brincar.

— As minhas desculpas, Senhora. — Surreal enfrentou o olhar seguro da outra. — Vim ver o Altar. Não sabia que vivia aqui alguém.

— Ver ou pedir?

Surreal abanou a cabeça, intrigada.

— Quando alguém procura um Altar das Trevas, normalmente é para pedir ajuda que não pode ser obtida em mais nenhum lugar ou para respostas a questões do coração.

Surreal encolheu os ombros. Não se sentia tão incomodada desde o primeiro cliente na primeira casa da Lua Vermelha, quando se apercebeu o pouco que tinha aprendido em todos aqueles pequenos e sujos quartos dos fundos. — Eu vim... — As palavras da mulher penetraram, por fim. Questões do coração. — Gostaria de saber quem era o povo da minha mãe.

Surreal sentiu, de repente, um sussurro de algo que ali tinha estado sempre presente, uma escuridão, uma força com a qual não tinha estado sintonizada. Ao voltar a olhar para o Santuário, compreendeu que as coisas construídas à volta deste lugar eram insignificantes. O lugar em si continha o poder.

O olhar fixo da mulher não vacilou. — Tudo tem um preço — disse calmamente. — Estás disposta a pagar pelo que pedes?

Surreal buscou no bolso e ofereceu uma mão cheia de moedas de ouro.

A mulher abanou a cabeça. — Aqueles que são quem eu sou não são pagos nesse tipo de moeda. — Voltou-se em direcção à porta pela qual tinha surgido. — Vem. Vou fazer um chá e poderemos falar. Talvez nos possamos ajudar uma à outra. — Entrou na passagem, deixando que Surreal decidisse se ia embora ou se a seguia.

Surreal hesitou por um momento antes de voltar a colocar as moedas no bolso e seguir a mulher. Era em parte a sensação repentina de reverência pelo local, em parte curiosidade sobre qual a espécie de preço que esta feiticeira pediria pelas informações, em parte esperança de, finalmente, obter uma resposta a uma questão que a tinha assombrado desde que tinha compreendido perfeitamente o quão diferente era Titian de todos os outros. Além disso, era exímia com a faca e usava a Cinzenta. O local poderia transmitir-lhe um profundo respeito, mas não a feiticeira.

A cozinha era acolhedora e arrumada. Surreal sorriu devido ao contraste entre a sensação desta divisão e do resto do Santuário. Também a mulher se assemelhava mais a uma gentil feiticeira doméstica do que a uma Sacerdotisa de Santuário, cantarolando uma melodia alegre enquanto a água aquecia. Surreal sentou-se numa cadeira, apoiou os cotovelos na mesa em pinho e, num silêncio divertido, viu serem-lhe colocados à frente um prato de bolinhos de avelã, uma pequena taça com manteiga fresca e uma caneca para o chá.

Quando o chá ficou pronto, a mulher juntou-se a ela à mesa, um copo de vinho na mão. Subitamente desconfiada, Surreal olhou intencionalmente para o chá, para os bolinhos e para a manteiga.

A mulher riu-se. — Na minha idade, as minhas necessidades dietéticas excluem tais alimentos, infelizmente. Mas se te preocupam, podes testá-los. Não ficarei ofendida. É melhor que saibas que não tenciono prejudicar-te. De outro modo, como poderíamos falar honestamente?

Surreal sondou a comida e não encontrou mais nada para além do que era esperado. Retirando um bolinho de avelã, partiu-o em dois, barrou-o com manteiga e começou a comer. Enquanto comia, a mulher falou de assuntos generalistas, comentando sobre os Altares das Trevas, que existiam treze destes grandiosos locais obscuros de poder espalhados pelo Reino.

Já o copo de vinho estava vazio e Surreal bebericava a segunda caneca de chá quando a mulher disse: — Ora bem. Queres saber sobre o povo da tua mãe. Verdade? — Levantou-se e inclinou-se em direcção a Surreal, as mãos estendidas para tocar o rosto de Surreal.

Surreal afastou-se, os longos anos de prudência tinham-na tornado desconfiada.

— Shh — murmurou a mulher, tranquilizadoramente. — Só quero observar.

Surreal esforçou-se para se manter quieta enquanto as mãos da mulher seguiam as curvas do seu rosto, pescoço e ombros, levantavam o seu longo cabelo e desenhavam a curva da sua orelha até à ponta delicada. Depois de terminar, a mulher voltou a encher o copo de vinho e nada disse por uns momentos, sendo a sua expressão pensativa e estando os seus olhos concentrados noutro lugar.

— Não tenho a certeza, mas posso dizer-te o que penso.

Surreal inclinou-se para a frente, tentando não parecer demasiado ansiosa, porém susteve a respiração na expectativa.

O olhar da mulher era desconcertantemente fixo. — Há, no entanto, a questão do preço. — Brincou com o copo de vinho. — É usual que o preço seja determinado e aceite antes de a ajuda ser prestada. Os contratos deste tipo nunca são quebrados pois, se o forem, o preço é, então, pago habitualmente com sangue. Compreendes, Irmã?

Surreal inspirou devagar. — Qual é o vosso preço?

— Primeiro, quero que percebas que não te estou a pedir para que te coloques em risco. Não peço que corras quaisquer riscos.

— Está bem.

A mulher colocou o pé do copo de vinho entre as palmas das mãos e rolou o copo, devagar, para trás e para a frente. — Um Príncipe dos Senhores da Guerra veio recentemente para Chaillot, quer para Beldon Mor quer para uma povoação na periferia. Preciso de saber o seu paradeiro exacto, quem está a servir.

Surreal sentiu um desejo de invocar o pequeno punhal, mas manteve o rosto cuidadosamente neutro. — Este Príncipe tem nome?

— Daemon Sadi.

Não! — Surreal saltou da cadeira e pôs-se a andar de um lado para o outro. — Estais louca? Ninguém brinca com o Sádico se se quiser manter do lado de cá da sepultura. — Parou de andar e agarrou as costas da cadeira com tanta força que estremeceu com a pressão. — Não faço um contrato que envolva o Sadi. Esquecei.

— Não te peço mais do que localizá-lo.

— Para que possais enviar outro para fazer o trabalho? Esquecei. Porque é que não o encontrais vós?

— Por razões que só a mim me dizem respeito, não posso entrar em Beldon Mor.

— E acabastes de me dar uma boa razão para sair.

A mulher levantou-se e enfrentou Surreal. — É muito importante.

— Porquê?

O silêncio instalou-se entre ambas, fatigando-as, desgastando-as. Por fim, a mulher suspirou. — Porque pode ter sido enviado para aqui para destruir uma criança muito especial.

— Tendes algo mais para beber do que chá e vinho?

A mulher pareceu angustiada e divertida. — Pode ser conhaque?

— Óptimo — ripostou Surreal, deixando-se cair na cadeira. — Trazei uma garrafa e uma caneca limpa. — Quando a garrafa e a caneca foram colocadas à sua frente, encheu a ultima e engoliu um terço do conhaque. — Escutai, docinho — disse mordazmente. — Sadi pode ser muitas coisas e só as Trevas sabem tudo o que fez, mas nunca, nunca fez mal a uma criança. Sugerir tal...

— E se for forçado a tal? — Interrompeu a mulher.

— Forçado? — Surreal guinchou. — Forçado? Fogo do inferno, quem será o estúpido que irá forçar o Sádico? Sabeis o que faz a quem o pressiona? — Surreal esvaziou a caneca e voltou a enchê-la. — Além disso, quem quereria destruir esta criança?

— Dorothea SaDiablo.

Surreal praguejou até sentir as palavras a rodopiarem pela cozinha como fumo. Parou, por fim, ao reparar na expressão de divertimento pasmado da mulher. Bebeu mais outra bebida e voltou a praguejar pois a sua raiva tinha queimado o conhaque tão rapidamente que não se sentia minimamente ébria. Batendo com a caneca na mesa, passou as mãos pelo cabelo. — Senhora, sabeis bem como esfaquear alguém na barriga, não sabeis? — Fulminou a mulher com o olhar. Se a feiticeira tivesse devolvido calmamente o olhar furioso, Surreal tê-la-ia esfaqueado, mas ao ver lágrimas e dor - e medo - naqueles olhos cor de esmeralda...

Titian jazia no chão com a garganta cortada e as paredes a ribombarem a ordem para fugir, fugir, fugir.

— Vede. Eu estou em dívida para com ele. Olhou pela minha mãe e olhou por mim. Não tinha de o fazer, apenas o fez. Mas eu encontrá-lo-ei. Depois disso, veremos. Surreal levantou-se. — Obrigada pelo chá.

A mulher pareceu perturbada. — E o povo da tua mãe? Surreal também a olhou fixamente. — Se eu regressar, trocaremos informações. Mas dar-vos-ei alguns conselhos de graça. Não brinqueis com o Sádico. Ele possui uma memória longa e um temperamento perverso. Se lhe derdes uma razão, transformar-vos-á em pó. Eu saio sozinha.

Surreal saiu do Santuário, apanhou um Vento e passou por Chaillot, perseguindo o sol que se punha até ao oceano até se sentir suficientemente cansada para voltar para a casa de Deje e ser educada para com quem quer que fosse para a cama nessa noite.

 

Saetan entretinha-se com o abridor de cartas com o punho em prata, de costas para o homem que se encontrava imediatamente à entrada da porta do gabinete. — Está feito?

— Perdoai-me, Senhor Supremo — a resposta chegou numa voz rude e sussurrada. — Não consegui.

Por um trémulo segundo antes de se voltar para encarar Marjong, o Carrasco, Saetan não conseguiu perceber se se sentia aborrecido ou aliviado. Encostou-se à secretária em madeira escura e examinou o enorme homem. Era impossível interpretar as expressões de Marjong visto que a cabeça e os ombros encontravam-se sempre cobertos por um capuz negro.

— Ele está naquela cidade enevoada. Senhor Supremo — desculpou-se Marjong, mudando o grandíssimo machado de dois gumes de uma mão para a outra. — Não o consegui alcançar para executar o vosso pedido.

Então Daemon estava em Beldon Mor.

— Posso aguardar. Senhor Supremo. Se viajar para fora da cidade enevoada, eu...

— Não. — Saetan respirou devagar e profundamente. — Não. Não faças mais nada a não ser que te solicite especificamente. Percebido?

Marjong fez uma vénia e saiu do gabinete.

Com um sorriso abatido, Saetan deixou-se cair na cadeira e pôs-se a girar lentamente o abridor de cartas. Pegou-lhe e examinou a lâmina fina de vidro escuro e o punho em prata esculpida. — Um instrumento impressionante — disse baixinho, equilibrando-o nas pontas dos dedos. — Elegante, eficaz. Mas se não se tem cuidado... — Pressionou um dedo na ponta e observou uma gota de sangue a brotar. — Tal como tu, homónimo. Tal como tu. Agora a dança é nossa. Só nossa.

 

A rotina instalou-se nos dias de Daemon. Todas as manhãs acordava cedo, exercitava-se, tomava um duche e partilhava o pequeno-almoço com a Cozinheira na cozinha. Gostava da cozinheira dos Angelline, uma mulher viva e calorosa que lhe lembrava Manny - e que tinha ficado tão chocada quanto teria ficado Manny quando lhe pediu consentimento para tomar a primeira refeição do dia na cozinha em vez de a tomar na sala do pequeno-almoço com a família. Tinha-se compadecido ao perceber que Daemon passava fome por ter que andar sempre atrás dos pedidos nervosos e intermináveis de Leiand. Uma vez que acabava por se juntar à família, Daemon referiu sarcasticamente que o seu pequeno-almoço na cozinha era normalmente melhor do que aquele que era servido na sala do pequeno-almoço.

A seguir ao pequeno-almoço, reunia-se com Philip no escritório do administrador, que, contrariado, lhe entregava a lista das actividades agendadas para o dia, após o que caminhava durante meia hora pêlos jardins com Wilhelmina.

Alexandra tinha decidido que Wilhelmina precisava de algum tipo de exercício ligeiro antes de iniciar as aulas de Arte com a Senhora Graff, uma mulher horrivelmente rígida com quem Daemon tinha antipatizado de imediato - como tinha acontecido com ela em relação a Daemon, mais porque ele tinha ignorado as suas sugestões provocantes do que por qualquer outra razão. Leiand sugeriu então que Daemon acompanhasse a rapariga, uma vez que Wilhelmina tinha um medo despropositado dos homens e a presença de um macho Anelado que não representava uma ameaça poderia ajudá-la a atenuar o medo. Desta forma, sempre que o tempo o permitia, Daemon acompanhava Wilhelmina pêlos jardins.

Nos primeiros dias, tentou fazer conversa, tentou descobrir quais os interesses de Wilhelmina, mas ela esquivava-se a essas tentativas, tentando, simultaneamente, continuar a ser uma menina educada. Ocorreu-lhe, uma manhã, quando o silêncio se tinha prolongado para além do confortável, que esta era, provavelmente, uma das raras ocasiões do dia em que Wilhelmina se podia dar ao luxo de se dedicar aos seus próprios pensamentos. Uma vez que passava a maior parte do tempo na presença da inflexível Graff, não tinha autorização para "devanear" - uma expressão que Daemon tinha ouvido de Graff um dia, num tom que dava a entender que esta era uma repreensão habitual. Por isso, deixou de tentar falar com ela, permitindo-lhe aquela hora em solidão, enquanto caminhava respeitosamente à sua esquerda, as mãos nos bolsos, desfrutando do mesmo luxo de se dedicar aos seus pensamentos.

Wilhelmina tinha sempre um local de destino, embora parecesse nunca o alcançar. Independentemente dos caminhos que seguiam pêlos jardins. acabavam sempre num estreito caminho que levava a um denso recanto. Os seus passos vacilavam ao chegar ao local e, de imediato, passava à pressa, ofegando como se estivesse a correr há muito. Perguntou-se se algo lhe teria acontecido ali, algo que a assustou, que a repugnou e que, apesar de tudo, a atraía.

Uma manhã, quando estava perdido nos seus pensamentos, totalmente absorvido pelo quebra-cabeças que a sua Senhora tinha deixado, apercebeu-se de que tinham parado de andar e de que Wilhelmina tinha estado a observá-lo há já algum tempo. Estava junto ao caminho estreito.

— Quero ir ali — disse em ar de desafio, os punhos cerrados ao lado do corpo.

Daemon mordeu o lábio por dentro para manter o rosto neutro. Era a primeira faísca de vida que demonstrava e ele não queria apagá-la com um sorriso que poderia ser compreendido como condescendência. — Está bem.

Pareceu surpreendida pois, obviamente, esperava uma discussão. Com um sorriso tímido, conduziu-o pelo caminho e através de uma caniçada em arco.

O pequeno jardim dentro do jardim estava completamente cercado por teixos enormes que pareciam não ser podados deste lado há já vários anos. Um ácer dominava uma das extremidades, cercado por um banco em ferro circular que, em tempos, tinha sido branco, mas agora a tinta estava toda a descascar. À frente dos teixos estava o que restava de canteiros de flores, emaranhados, cobertos de ervas daninhas, ao abandono. Mas o que levou a que sustivesse a respiração, que fez com o coração disparasse, foi o canteiro de sangues-de-feiticeira na extremidade oposta.

Flor ou erva daninha, o sangue-de-feiticeira era belo, letal e - assim dizia a lenda - indestrutível. As flores de um vermelho sangue, com os cálices negros e as pétalas com as pontas negras, estavam completamente desabrochadas e assim permaneciam desde o primeiro fôlego da Primavera até ao último suspiro do Outono.

Whilelmina ficou junto ao canteiro, com os braços à volta de si própria e a tremer.

Daemon dirigiu-se ao canteiro, tentando decifrar a dor e a esperança no rosto de Wilhelmina. Os sangues-de-feiticeira só cresciam, supostamente, nos locais onde tivesse sido derramado, de forma violenta, o sangue de uma feiticeira ou no local onde estivesse enterrada uma feiticeira que tivesse encontrado a morte de forma violenta.

Daemon recuou, cambaleando.

Mesmo com o ar fresco e outros cheiros do jardim, o odor psíquico negro era forte neste local. Doces Trevas, aqui era forte.

— A minha irmã plantou estas — disse Wilhelmina abruptamente, com a voz trémula. — Uma para cada. Como recordação. — Mordeu o lábio, os olhos azuis bem abertos e assustados ao observar as flores.

— Está tudo bem — disse Daemon suavemente, tentando acalmar o pânico que crescia em Wilhelmina ao mesmo tempo que combatia o seu.

— Eu sei o que é o sangue-de-feiticeira e o que significa. — Procurou palavras que pudessem confortar ambos. — Este é um sítio especial por isso.

— Os jardineiros não vêm aqui. Dizem que está assombrado. Achais que está assombrado? Espero que sim.

Daemon reflectiu muito cuidadosamente sobre as palavras que proferiria a seguir. — Onde está a vossa irmã?

Wilhelmina começou a chorar. — Briarwood. Puseram-na em Briarwood. — Os soluços tornaram-se num pranto de coração destroçado.

Daemon abraçou-a delicadamente ao mesmo tempo que lhe afagava o cabelo, murmurando as "palavras de doce pesar" no Idioma Antigo, a língua da Feiticeira.

Passado um minuto, Wilhelmina afastou-o, fungando. Daemon deu-lhe o seu lenço e, sorrindo, retirou-lho das mãos ao vê-la a fixar o lenço, sem saber o que lhe fazer depois de o usar.

— Por vezes, ela fala dessa forma — disse Wilhelmina. — É melhor regressarmos. Saiu do recanto e apressou-se pelo caminho. Siderado, Daemon seguiu-a de regresso a casa.

Daemon entrou na cozinha e mostrou o seu melhor sorriso à Cozinheira.

— Há possibilidades de tomar uma chávena de café?

A Cozinheira lançou-lhe um olhar cáustico e zangado. — Se quiserdes. Confuso devido a esta súbita demonstração de fúria, Daemon despiu o sobretudo e sentou-se à mesa da cozinha. Enquanto puxava pela cabeça sobre o que teria feito para a aborrecer, a Cozinheira colocou uma caneca de café à sua frente, com uma batida, e disse:

— A Menina Wilhelmina estava a chorar quando regressou do jardim. Daemon ignorou o café, mais interessado na reacção da Cozinheira.

— Havia um recanto no jardim que queria visitar.

O olhar austero da Cozinheira atenuou-se de imediato, entristecendo.

— Ah, bom. — Cortou duas fatias grossas de pão fresco, enfiou carne fria entre as duas, colocando o petisco à frente de Daemon, em guisa de desculpa não proferida.

Daemon respirou profundamente. — Cozinheira, o que é Briarwood?

— Um lugar revoltante, se querem saber a minha opinião, mas aqui ninguém quer — disse bruscamente mas de imediato sorriu de fugida em direcção a Daemon.

— O que é?

Com um suspiro, a Cozinheira foi buscar a sua própria caneca de café e sentou-se em frente de Daemon. — Não estais a comer — disse distraidamente ao bebericar o café.

Daemon, obediente, deu uma dentada na sanduíche e aguardou.

— É um hospital para crianças emocionalmente perturbadas — disse a Cozinheira. — Parece que muitas jovens feiticeiras de boas famílias ficam bastante nervosas repentinamente quando começam a deixar a infância para trás, se bem me entendeis. Mas a Menina Jaenelle vai e vem daquele lugar desde os cinco anos por nenhuma razão especial que eu pudesse perceber, exceptuando que ela inventa histórias cheias de fantasia sobre unicórnios e dragões e coisas do género. — Inclinou a cabeça em direcção à parte da frente da casa. — Eles dizem que é desequilibrada porque é a única da família que não usa as Jóias, que ela tenta compensar o facto de não conseguir realizar as aulas da Arte, inventando histórias para obter atenção. Se quereis saber a minha opinião, a última coisa que a Menina Jaenelle quer é atenção. É só por ela ser... diferente. Tem qualquer coisa invulgar. Mesmo quando diz barbaridades, coisas que sabemos que não podem ser verdade, de alguma forma... começamos a questionar-nos, percebeis?

Daemon terminou a sanduíche e esvaziou a caneca. — Há quanto tempo está ausente?

— Desde o in”“cio da Primavera. Desta vez pôs-lhes uma pulga atrás da orelha, a todos. É por isso que a mantêm lá tanto tempo.

Daemon fez uma careta de descontentamento. — O que é que uma criança poderia dizer que os levaria a mante-la presa todo este tempo?

— Ela disse... — A Cozinheira parecia nervosa e perturbada. — Disse que o Senhor Benedict não era o seu pai. Disse que o Príncipe Philip...

Daemon deixou escapar um suspiro explosivo. Sim, pelo que tinha observado da dinâmica desta família, uma afirmação destas lançá-los-ia a todos numa violenta fúria. Contudo...

A Cozinheira olhou-o demoradamente e com lentidão, voltando a encher as canecas. — Deixai-me contar-vos sobre a Menina Jaenelle.

Há dois anos, o Senhor da Guerra que a minha filha servia decidiu que queria uma criada mais bonita e pô-la na rua, bem como à criança que tinha dado à luz e que era dele. Vieram ter aqui comigo, não tendo qualquer outro sítio para onde ir, e a Senhora Alexandra deixou-as ficar. A minha menina, estando adoentada na altura, fazia uns serviços leves nos salões e ajudava-me na cozinha. A minha neta, Lucy - a coisinha mais fofa que já vi - ficava a maior parte do tempo comigo na cozinha, embora a Menina Jaenelle a incluísse sempre nos jogos quando as meninas brincavam lá fora. A Lucy não gostava de estar lá fora sozinha. Tinha medo dos cães de caça do Senhor Benedict e os rapazes dos cães, sabendo que ela tinha medo, metiam-se com ela, atiçando os cães e largando depois as trelas para que a perseguissem.

Um dia, foi longe demais. Os cães tinham sido mal alimentados pois iam ser levados a sair e estavam mais agressivos do que o normal e os rapazes atiçaram-nos por demais. O líder da matilha soltou-se da trela, lançou-se atrás da Lucy e perseguiu-a até ao armazém do material de equitação. Ela tropeçou e o cão jogou-se a ela, abocanhando-lhe violentamente o braço. Ao ouvirmos os gritos, eu e a minha filha saímos a correr da cozinha e o Andrew, um dos moços da cavalariça, um bom rapaz, também veio a correr.

Lucy estava no chão, a gritar, a gritar com aquele cão agarrado ao braço e, de repente, ali estava a Menina Jaenelle. Proferiu algumas palavras dirigidas ao cão que, de imediato, largou a Lucy, esgueirando-se do armazém, com a cauda entre as pernas.

A Lucy estava num frangalho, o braço todo rasgado, o osso a sair no local onde o cão tinha abocanhado. A Menina Jaenelle disse ao Andrew para ir buscar um balde de água rapidamente e, ajoelhando-se ao lado de Lucy, começou a falar com ela, de forma serena, e a Lucy parou de gritar. O Andrew voltou com a água e a Menina Jaenelle fez aparecer de algum lado uma grande bacia oval, até hoje não sei de onde veio. O Andrew deitou a água na bacia e a Menina Jaenelle segurou-a por um minuto, só a segurou, e a água começou a fumegar como se estivesse ao lume. De seguida, colocou o braço de Lucy na bacia e tirou do bolso umas folhas e uns pós, deitando-os na água. Manteve o braço de Lucy debaixo de água, sempre a cantarolar, baixinho. Nós estávamos ali, em pé, a olhar. Não valia a pena levar a menina a uma Curandeira, mesmo que conseguíssemos arranjar o dinheiro para pagar a uma boa. Eu sabia. O braço estava demasiado estropiado. O melhor que mesmo uma boa Curandeira poderia fazer era amputá-lo. Assim, ficámos a olhar, a minha filha, o Andrew e eu. Não dava para ver muito, estando a água ensanguentada como estava.

Após um bocado, a Menina afastou-se e levantou o braço de Lucy da bada. Tinha um grande e profundo corte do cotovelo ao pulso... e era tudo. A Menina Jaenelle olhou cada um de nós nos olhos. Não tinha de dizer nada. Não a iríamos denunciar. Depois entregou-me um frasco de unguento, visto que a minha filha estava demasiado perturbada para fazer o que quer que fosse. "Passa-lhe este unguento três vezes ao dia e enfaixa o braço com uma ligadura não muito apertada durante uma semana. Se o fizeres, não ficará cicatriz."

Depois virou-se para a Lucy e disse: "Não te preocupes. Eu falo com eles. Não te irão incomodar novamente."

O Príncipe Philip, quando descobriu que a Lucy se tinha magoado devido à perseguição dos cães, repreendeu duramente os rapazes; mas, nessa mesma tarde, vi o Senhor Benedict a pôr moedas nas mãos desse rapazes dos cães, rindo e afirmando como estava satisfeito por eles manterem os seus cães em tão boa forma.

Seja como for, no Verão seguinte a minha filha casou com um jovem de uma boa e estável família. Vivem numa pequena povoação a cerca de 50 quilómetros daqui e eu visito-os sempre que me é concedida uma licença de alguns dias.

Daemon olhou para a caneca vazia. — Achas que a Menina Jaenelle falou com eles?

— Deve ter falado — respondeu a cozinheira, distraidamente.

— Então os rapazes deixaram de se meter com a Lucy? — insistiu Daemon.

— Oh. Não, continuaram na mesma. Não foram castigados por isso, foram? Mas os cães... Depois desse dia, não havia nada que aqueles rapazes fizessem que levasse os cães a perseguir a Lucy.

Nessa noite, incapaz de adormecer, Daemon voltou ao recanto. Acendeu um cigarro preto e olhou fixamente para os sangues-de-feiticeira através do fumo.

Ela chegou.

Tinha passado o serão a rever os factos de que dispunha, a ponderá-los uma e outra vez como se isso os fosse alterar. Não se tinham alterado e Daemon não gostou da conclusão a que chegou.

A minha irmã plantou estas. Como recordação.

Uma criança. A Feiticeira era ainda uma criança.

Não. Ele devia estar a interpretar alguma coisa de forma errada. Tinha de estar. A Feiticeira usava as Jóias Negras.

Talvez tivesse baralhado as informações. Talvez Wilhelmina fosse a irmã mais nova. Estava ainda a lutar para recuperar o controlo emocional quando chegou à embaixada hayiliana em Beldon Mor. Faria mais sentido se Jaenelle estivesse quase na idade de realizar a Dádiva às Trevas. Estaria à beira de se abrir à força madura, às Jóias Negras.

Mas o quarto, as roupas. Como poderia conciliar aquelas coisas com o poder que sentiu quando lhe curou as costas depois de Cornéiia o atar aos postes de chicoteamento?

Por vezes, ela fala dessa forma.

Os dedos de ambas as mãos chegariam para contar as pessoas que ainda sabiam algumas frases da língua original dos Sangue. Quem a teria ensinado?

Retrocedeu perante a resposta a essa questão. É um hospital para crianças emocionalmente perturbadas. Poderia uma criança usar uma Jóia tão escura como a Negra sem ficar desequilibrada mental e emocionalmente? Nunca tinha ouvido falar de alguém a quem tivesse sido atribuída um Jóia de Direito por Progenitura mais escura do que a Vermelha. O cálice está a partir-se.

Parou de pensar, deixando a mente sossegar. Os factos encaixavam-se, formando a conclusão inevitável.

Todavia, ainda precisou de mais alguns dias antes de a conseguir aceitar.

 

Depois de deixar Wilhelmina, Daemon mudou para o equipamento de equitação e dirigiu-se aos estábulos. Tinha a manhã livre, a primeira desde que tinha chegado à propriedade dos Angelline e Alexandra tinha dado permissão para que levasse um dos cavalos.

Ao chegar ao pátio da cavalariça, Guinness, o capataz, fez-lhe um breve aceno e continuou as instruções a um dos moços da cavalariça.

— Um passeio de cavalo, esta manhã? — disse Guinness quando Daemon se aproximou, o seu modo grosseiro atenuado por um ténue sorriso.

— Se for conveniente — respondeu Daemon, sorrindo. Aqui, como na maior parte dos sítios onde tinha servido, dava-se bem com o pessoal. Eram as feiticeiras a quem deveria servir que não tolerava.

— Pois sim. — Os olhos de Guinness subiram lentamente pelo corpo de Daemon, a começar pelas botas. — Bom, pernas compridas e firmes. Ombros fortes.

Daemon perguntou-se se Guinness lhe iria verificar os dentes.

— Como está a vossa montada?

— Eu monto razoavelmente bem — respondeu Daemon prudentemente, sem saber se se deveria preocupar com o débil brilho no olhar de Guinness.

Guinness sugou as bochechas. — O garanhão não tem saído nestes últimos dias. O Andrew é o único que o consegue montar e tem uma coxa magoada. Não posso deixar o rapaz sair com uma perna fraca. “Tais disposto a tentar?

Daemon inspirou profundamente, ainda desconfiado. — Está bem.

— Andrew! Albarda o Demónio.

As sobrancelhas de Daemon dispararam praticamente até ao cabelo. — Demónio?

Guinness voltou a sugar as bochechas, recusando-se a reparar na expressão indignada de Daemon. — Chama-se Dançarino Negro, mas nas cavalar cãs, quando ninguém nos ouve — lançou um olhar em direcção à casa — chamamos-lhe o que ele é na realidade.

— Fogo do Inferno — resmungou Daemon entre dentes ao atravessar o pátio para o local onde Andrew estava a colocar a sela no grande garanhão baio. — Há algo que deva saber? — perguntou ao jovem rapaz.

Andrew parecia um pouco preocupado. Por fim, encolheu os ombros. — Tem uma boca mole e uma cabeça dura. É demasiado esperto para a maioria dos cavaleiros. Irá levar-vos contra árvores se permitirdes. Mantende-vos em campo aberto, é o melhor. Mas tende cuidado com o fosso de escoamento de águas na extremidade mais distante. É demasiado larga para a maior parte dos cavalos mas ele quererá galgá-la e não se importa se chegar ao outro lado sem o cavaleiro.

— Obrigado — resmoneou Daemon.

Andrew sorriu de través e entregou as rédeas a Daemon. — Eu seguro-lhe a cabeça enquanto montais.

Daemon instalou-se na sela. — Podes deixá-lo.

O Demónio saiu da cavalariça bastante tranquilamente, acostumando-se ao freio, considerando o cavaleiro. Exceptuando a demonstração de uma ligeira irritação por se encontrar preso para um passeio, o Demónio portou-se relativamente bem - até chegarem a uma pequena elevação e o caminho curvar-se para a esquerda em direcção ao campo aberto.

O Demónio arrebitou as orelhas e investiu para a direita, em direcção a um velho carvalho solitário, quase atirando Daemon para fora da sela.

A batalha começou.

Por alguma razão perversa que só ele conhecia, o Demónio estava determinado a alcançar o carvalho. Daemon estava igualmente determinado em fazê-lo voltar em direcção ao campo. O cavalo investiu, espichou, contorceu-se, andou às voltas, lutou com as rédeas e mordeu. Daemon manteve o controlo suficiente para não ser atirado da sela, mas volta renhida após volta renhida, o garanhão lá ia conseguindo dirigir-se à árvore.

Quinze minutos mais tarde, o cavalo desistiu e ficou com as pernas trémulas e abertas, a cabeça baixa e os flancos cheios de espuma e a respirar com dificuldade. Daemon estava encharcado em suor e a tremer de cansaço, mas ligeiramente admirado pelo facto dos seus braços ainda se encontrarem nos seus encaixes.

Quando Daemon pegou novamente nas rédeas, o Demónio voltou a baixar as orelhas, preparado para o combate seguinte. Curioso sobre o que se iria passar, Daemon fê-los voltar em direcção à árvore e instigou o cavalo para a frente.

As orelhas do Demónio arrebitaram-se de imediato, o pescoço arqueou-se e o trote tornou-se insolente e enérgico.

Daemon não ofereceu qualquer ajuda, deixando o cavalo fazer o que queria. O Demónio circundou a árvore uma e outra vez, cheirando o ar, vigilante e a escutar... e a ficar cada vez mais transtornado. Por fim, o cavalo relinchou furiosamente e lançou-se em direcção ao caminho e ao campo.

Daemon não tentou controlá-lo até se dirigirem ao fosso. Ganhou – por pouco - esta batalha e quando o Demónio abrandou, demasiado cansado para voltar a debater-se, Daemon virou-o em direcção à cavalariça.

Os moços da cavalariça olharam de boca aberta quando Daemon entrou a cavalgar no pátio. Andrew correu a coxear e tomou as rédeas. Guinness abanou a cabeça e atravessou o pátio com passos largos, agarrou firmemente no braço de Daemon quando este deslizava penosamente da sela e conduziu-o ao pequeno escritório por detrás do armazém.

Retirando copos e uma garrafa da sua secretária, Guinness serviu dois dedos de bebida e ofereceu-a a Daemon. — Tomai — disse rudemente, servindo-se também. — Vai devolver a força às pernas.

Daemon, agradecido, bebeu o uísque ao mesmo tempo que massajava os músculos inchados do ombro.

Guinness olhou para a camisa encharcada de suor de Daemon e esfregou o queixo hirsuto com os nós dos dedos. — Não vos fez a vida fácil, pois não?

— Foi mútuo.

— Bem, pelo menos amanhã ainda vos respeitará.

Daemon engasgou-se. Quando conseguiu respirar novamente, quase que perguntou sobre a árvore, mas pensou melhor. Andrew era quem montava o Demónio.

Depois de Guinness sair para verificar as rações, Daemon atravessou o pátio até ao local onde Andrew estava a escovar o cavalo.

Andrew levantou o olhar com um sorriso respeitoso. — Mantivestes-vos nele.

— Mantive-me nele. — Daemon observou os movimentos suaves e calmos do rapaz. — Mas tive algumas dificuldades por causa de uma determinada árvore.

Andrew pareceu perturbado. A mão que escovava o garanhão hesitou um pouco antes de retomar o ritmo.

Os olhos de Daemon semicerraram-se e a voz tornou-se perigosamente sedosa. — O que é que aquela árvore tem de especial, Andrew?

— É só uma árvore. — Andrew olhou de soslaio para os olhos de Daemon e retraiu-se. Mexeu os pés, desconfortável. — Está no outro lado da elevação, compreendeis. O primeiro lugar fora da vista da casa.

— E então?

— Bem... — Andrew olhou para Daemon, suplicando. — Não contareis, pois não? — Fez um movimento rápido com a cabeça em direcção à casa. — Poderia causar uma série de problemas se descobrissem.

Daemon lutou para manter as rédeas no seu temperamento. — Descobrissem o quê?

— Sobre a Menina Jaenelle.

Daemon mudou de posição, sendo o movimento tão fluído e predatório que levou a que Andrew recuasse de imediato, mantendo-se junto ao cavalo como se fosse uma protecção. — O que é que tem a Menina Jaenelle? — trauteou.

Andrew roeu o lábio. — Na árvore... nós...

Daemon silvou.

Andrew ficou pálido e, de seguida, enrubesceu. Os seus olhos brilharam de raiva e os pulsos cerraram-se. — Achais... achais que eu...

— Então o que/azem naquela árvore? Andrew inspirou profundamente. — Trocamos. Daemon franziu o sobrolho. — Trocam?

— Trocamos de cavalos. Tenho uma constituição franzina, o pónei pode levar-me.

— E ela monta...?

Andrew colocou uma mão hesitante no pescoço do garanhão.

Daemon explodiu. — Seu grande filho da mãe, deixas uma menina montar isso?

O garanhão resfolegou em desagrado pela sua demonstração enfurecida.

Senso comum e cascos dançantes sobrepuseram-se ao desejo que Daemon sentia de estrangular o moço da estrebaria.

Apanhado entre o garanhão e o furioso Príncipe dos Senhores da Guerra, Andrew contraiu os lábios num sorriso forçado. — Devíeis vê-la em cima daquilo. E ele também toma conta da Menina.

Daemon foi-se embora, a fúria já gasta. — Mãe Noite — murmurou entre dentes, abanando a cabeça ao caminhar em direcção à casa e a um agradável duche quente. — Mãe Noite.

 

                     CAPÍTULO 7

 

— Já te disse — afirmou Philip com brusquidão. — Hoje não precisamos dos teus serviços.

— Eu ouvi o que...

Um músculo contraiu-se no queixo de Philip. — Tens um dia livre. Eu sei que os hayilianos julgam que somos um povo retrógrado, mas temos museus e galerias de arte e teatros. Deve haver algo que possas fazer por um dia que não seja indigno de ti.

Os olhos de Daemon semicerraram-se. Ao pequeno-almoço, Leiand tinha-se mostrado nervosa e invulgarmente calada, Alexandra estava inexplicavelmente tensa, Robert não se tinha deixado avistar e agora Philip exibia esta imprevisível raiva, tentando afastá-lo à força de casa durante todo o dia. — Muito bem.

Conformado com esta brusca rejeição, solicitou uma carruagem para o levar ao bairro comercial de Beldon Mor e dirigiu-se à cozinha para saber se a Cozinheira estava a par do que se estava a passar. Mas também esta senhora estava com um belo ataque de mau humor e Daemon retirou-se antes de ela o ver, assustando-se quando ela bateu com um enorme tacho no balcão.

Passou a manhã a deambular pelas livrarias, adquirindo uma diversidade de romances de autores originários de Chaillot e dando voltas à cabeça sobre o que é que teria posto todos os residentes da casa em tal estado. Fosse o que fosse, as respostas não se encontravam na cidade.

Regressou à propriedade de Angelline à hora de almoço, descobrindo que toda a família tinha saído numa missão.

Aborrecido por ter sido afastado, Daemon empilhou os livros na escrivaninha, mudou de roupa e dirigiu-se aos estábulos.

Também ali todos estavam enervados. Guinness ralhava com os moços da cavalariça enquanto se debatiam para controlar cavalos em grande excitação.

— Posso levar o garanhão a passear, se quiseres. — ofereceu-se Daemon.

— “Tais farto da vida? — ripostou Guinness. Respirou profundamente e serenou os ânimos. — Ajudaria se esse saísse do pátio por um bocado.

— As coisas estão um bocado tensas por aqui.

— Pois sim.

Quando percebeu que Guinness não iria acrescentar mais nada, Daemon dirigiu-se à cocheira do garanhão e aguardou que Andrew o preparasse. As mãos do rapaz tremiam ao verificar a cilha. Cansado de subterfúgios, Daemon levou o cavalo para fora do pátio e dirigiu-se ao campo.

Uma vez fora do pátio, o Demónio mostrou-se ansioso, receptivo e excitado. O que quer que estivesse a deixar os humanos nervosos, também era sentido pelo garanhão, mas tornava feliz este simples espírito.

Sem vontade para lutar, Daemon dirigiu-os para a árvore.

Demónio parou junto à árvore e ficou a olhar para a elevação que tinham acabado de passar, aguardando pacientemente. O cavalo manteve-se naquela posição durante dez minutos até que a ansiedade deu lugar ao desalento. Quando Daemon voltou o cavalo em direcção ao caminho, não houve qualquer resistência e o galopou sem grande convicção.

Uma hora mais tarde, Daemon passou as rédeas a Andrew e entrou na casa por uma porta das traseiras. Sentiu-a assim que passou a soleira, sendo assolado por uma raiva ardente que se subiu por ele e explodiu.

Percorrendo os corredores a passos largos, Daemon bateu com a porta do seu quarto, tomou um duche e vestiu-se à pressa. Se tivesse encontrado Philip durante aquela breve caminhada para o quarto, tê-lo-ia assassinado.

Como se atrevia aquele tolo de Jóia Cinzenta tentar afastá-lo? Como se atrevia7

Daemon sabia que os seus olhos estavam vítreos de fúria, mas não se importava. Saiu apressadamente do quarto e foi à caça da família.

Virou uma esquina à pressa e parou de repente.

Wilhelmina estava pálida, mas parecia aliviada. Graíf franziu o sobrolho. Leiand e Alexandra olhavam-no fixamente, sobressaltadas e tensas. Os ombros de Philip endireitaram-se num óbvio desafio.

Daemon viu tudo num instante e ignorou. A outra menina dominava toda a sua atenção.

Tinha um aspecto emaciado, os braços e as pernas não mais do que canas. Tinha a cabeça baixa e madeixas lisas de cabelo louro escondiam grande parte do seu rosto.

— Esqueceste-vos das boas maneiras? — Os dedos esqueléticos de Graff tocavam o ombro da menina.

Ao ser espicaçada por Graff, a menina ergueu a cabeça de repente e os olhos, aqueles olhos, fixaram os de Daemon por um breve momento antes de ela baixar o olhar, fazer uma vénia desequilibrada e murmurar:

— Príncipe.

O coração de Daemon disparou e cresceu-lhe água na boca.

Sabendo estar fora de controlo, fez uma pequena vénia e respondeu de modo brusco: — Senhora. — Acenou com a cabeça a Philip e às outras, virou-se e, quando se encontrou fora de vista, desatou a correr para a biblioteca e trancou a porta.

Estava ofegante, as mãos tremiam e, que as Trevas o ajudassem, estava em brasa.

Não, pensou furiosamente enquanto andava às voltas na biblioteca, à procura de alguma explicação, algum tipo de refúgio. NÃO! Não era como Kartane. Nunca tinha desejado o corpo de uma criança. Não era como Kartane!

Apoiando-se numa estante, Daemon obrigou-se a deslizar uma das mãos trémulas até ao montículo entre as pernas, que também tremiam... e chorou de alívio por sentir que aqueles centímetros de carne continuavam flácidos... ao contrário do resto do corpo, que estava a ferver com um intenso desejo.

Afastando-se da estante, Daemon dirigiu-se à janela e encostou a testa ao vidro frio. Pensa, maldito sejas, pensa.

Fechou os olhos e esboçou a imagem mental da rapariga, fragmento a fragmento. Â medida que se concentrava para se lembrar do corpo, o fogo atenuou-se. Até se recordar daqueles olhos cor de safira que fixavam os dele.

Daemon soltou gargalhadas histéricas ao mesmo tempo que lágrimas rolavam pelo seu rosto.

Tinha já aceitado que a Feiticeira era uma criança, mas não se tinha preparado para a reacção que teria quando finalmente a visse. Podia confortar-se afirmando que não desejava o corpo da criança, mas o desejo que sentia pelo que vivia dentro daquele corpo deixava-o assustado. A ideia de ser enviado para outra corte onde não a poderia ver de todo assustava-o ainda mais.

No entanto, há décadas que não servia numa corte por mais de um ano. O que poderia fazer para que este baile continuasse até que ela tivesse idade suficiente para aceitar a sua entrega?

E de que forma iria ele sobreviver se não ficasse ali?

 

Na manhã seguinte, bem cedo, Daemon cambaleou para a cozinha, com os olhos a arder e com a sensação de areia devido a uma noite em claro e o estômago a doer de fome. Após ter deixado a biblioteca na tarde do dia anterior, tinha permanecido no quarto, sem disposição para jantar com a família e sem disposição para encontrar alguém caso se esgueirasse para a cozinha em busca de algo para comer.

Ao chegar à cozinha, as risadinhas abafadas pararam de imediato e dois pares de olhos azuis bem diferentes observaram-no a aproximar-se. A Cozinheira, mais feliz do que alguma vez a tinha visto, saudou-o calorosamente e informou-o de que o café estava quase pronto.

Movimentando-se prudentemente, como se se estivesse a aproximar de algo jovem e selvagem, Daemon sentou-se numa das pontas da mesa, à esquerda de Jaenelle. Com uma ponta de arrependimento, olhou para o que restava de um pequeno-almoço formidável e para o último bolinho de avelã que restava no prato.

Passou-se um breve e incómodo momento de silêncio até que Jaenelle se inclinou sobre a mesa e sussurrou algo a Wilhelmina que, por sua vez respondeu também sussurrando e as risadinhas recomeçaram.

Daemon estendeu a mão para o bolinho de avelã, mas, sem reparar, Jaenelle pegou-lhe. Estava quase a dar-lhe uma dentada quando a Cozinheira pousou a caneca de café na mesa e arfou.

— E agora o que é que vai ser o pequeno-almoço do Príncipe, pergunto eu? — reclamou, mas os seus olhos brilhavam de orgulho face aos pratos vazios.

Jaenelle olhou para o bolinho de avelã, voltou a pousá-lo no prato relutantemente e empurrou o prato na direcção de Daemon.

— Não tem importância — disse Daemon serenamente, olhando directamente para a Cozinheira. — Na verdade, não estou com fome.

A Cozinheira abriu a boca de espanto, voltou a fechá-la com um bater de dentes e voltou para o balcão da cozinha, abanando a cabeça.

Sentiu um calor no rosto por ter dito aquela mentira inofensiva ao mesmo tempo que aqueles olhos azuis o estudavam, por isso concentrou-se no café, evitando o olhar que o fitava.

Jaenelle partiu o bolinho em dois, dando-lhe uma das metades num gesto que não deixava de ser uma ordem apesar de não ter sido pronunciada, e começou a comer a outra metade.

— É melhor não vos empanturrares muito durante o dia, sabeis, — disse a Cozinheira com um tom agradável ao mesmo tempo que labutava ao balcão. — Vou servir perna ao jantar.

Daemon levantou os olhos, alarmado, ao ver o bolinho que Jaenelle segurava cair na mesa. Nunca tinha visto ninguém ficar tão pálido como a morte. Os olhos de Jaenelle, enormes lagos, estavam fixos olhando em frente. A garganta agitava-se em convulsões.

Daemon afastou a cadeira para trás, preparado para a agarrar e a carregar caso fosse vomitar. — Não gostais de borrego, Senhora? – perguntou suavemente.

Lentamente, virou a cabeça na direcção de Daemon. Queria gritar ao sentir que as suas entranhas se contorciam face à dor e ao horror que viu naqueles olhos. Jaenelle pestanejou, lutando para se controlar. — B-borrego?

Daemon pegou-lhe com delicadeza numa das mãos. O seu aperto era doloroso, surpreendentemente forte. Os olhos de Jaenelle não se desviaram dos dele e Daemon percebeu que, com a ligação física entre os dois, estava completamente vulnerável. Não poderia haver qualquer dissimulação, qualquer mentira inocente. — Borrego — disse tranquilizadoramente.

Jaenelle soltou a mão da dele, desviando o olhar e Daemon suspirou discretamente, aliviado.

Jaenelle dirigiu-se a Wilhelmina. — Tens tempo para um passeio no jardim antes de ires ter com a Graff?

Os olhos de Wilhelmina dirigiram-se rapidamente a Daemon. — Sim. Eu dou um passeio quase todas as manhãs.

Jaenelle levantou-se da cadeira, vestiu o casaco e saiu porta fora antes de Wilhelmina ter sequer afastado a cadeira.

— Juntar-me-ei a vós num minuto — disse Daemon discretamente.

Wilhelmina vestiu o casaco e correu atrás da irmã.

A Cozinheira abanou a cabeça. — Não percebo. A Menina Jaenelle sempre gostou de borrego.

Mas não disseste borrego, disseste perna, pensou Daemon, ao mesmo tempo que vestia o sobretudo. Que outro tipo de perna serviriam naquele hospital que apavoraria tanto uma menina?

— Tomai. — A Cozinheira entregou-lhe outra caneca de café e três maçãs. — Pelo menos dá para acordardes. Ponde as maçãs no bolso - e vê lá se guardais uma para vós.

Daemon enfiou as maçãs no bolso. — És uma querida — disse ao mesmo tempo que deu um beijo na face da Cozinheira. Voltou-se para esconder o sorriso e também para que ela pudesse dizer a si própria - e acreditar - que Daemon não tinha visto o quão excitada e satisfeita ele a tinha deixado.

As raparigas tinham desaparecido. Despreocupado, passeou pêlos caminhos do jardim, bebericando o café. Sabia onde encontrá-las.

Estavam no recanto, sentadas no banco de ferro.

Wilhelmina tagarelava como se as palavras não saíssem tão depressa como queria, gesticulando animadamente, numa disparidade surpreendente em relação àquela menina calma e séria à qual estava acostumado. Quando se aproximou, a tagarelice foi interrompida e dois pares de olhos examinaram-no.

Daemon limpou duas maçãs na manga do sobretudo e entregou solenemente uma a cada uma das raparigas. Depois caminhou para o outro extremo do recanto. Não conseguia obrigar-se a voltar-lhes as costas, não conseguia deixar de olhar para ela, contudo, pôs no rosto uma impressão branda e começou a comer a maçã. Passado um momento, as raparigas começaram também a comer.

Dois pares de olhos. Os olhos de Wilhelmina possuíam um olhar de incerteza, de precaução, de hesitação. Mas os olhos de Jaenelle... Quando entrou no recanto, aqueles olhos informaram-no de que já tinha chegado a alguma decisão em relação a ele. Achava desconcertante não saber o que era.

E a voz dela. Estava a uma distância que não lhe permitia perceber as palavras pronunciadas baixinho, mas a cadência da voz era encantadora, melodiosa, como a rebentação das ondas numa praia ao pôr-do-sol. Franziu o sobrolho, perplexo. Havia também a questão da pronúncia. Existia um idioma comum aos Sangue, embora o Idioma Antigo estivesse quase esquecido, bem como um idioma nativo para cada raça. De forma que, todos os povos, mesmo falando a mesma língua, possuíam uma pronúncia distintiva - e a dela era diferente da pronúncia geral de Chaillot. Era como um redemoinho, como se tivesse aprendido várias palavras em sítios diversos e as tivesse amalgamado numa sonorização quer era distintivamente a sua. Uma voz encantadora. Uma voz que poderia arrastar um homem e sarar feridas profundas do coração.

O súbito silêncio apanhou-o desprevenido e Daemon virou-se para elas, uma sobrancelha levantada em sinal de dúvida. Wilhelmina olhava para Jaenelle. Jaenelle olhava atentamente na direcção da casa.

— A Graíf está à tua procura — informou Jaenelle. — É melhor ires depressa.

Wilhelmina saltou do banco e correu ligeiramente pelo caminho. Jaenelle mudou de posição no banco e observou o canteiro de sangues-de-feiticeira.

— Sabíeis que, se cantardes a melodia certa, dir-vos-ão os nomes das que já morreram? — Os olhos de Jaenelle desviaram-se do canteiro para examinar o rosto de Daemon.

Daemon dirigiu-se lentamente até ao local onde Jaenelle se encontrava. — Não, não sabia.

— Pois, é verdade. — Um sorriso amargo vacilou nos seus lábios e, por um breve momento, os seus olhos ganharam um olhar selvagem. — Enquanto Chaillot se erguer sobre o mar, aquelas por quem foram plantadas não serão esquecidas. E um dia a dívida de sangue será paga na totalidade.

E depois, ali estava novamente uma rapariguinha e Daemon disse para si mesmo, insistindo, que a voz sepulcral da meia-noite que tinha acabado de ouvir era o resultado de estar atordoado devido à falta de comida e à privação de sono.

— Vinde — disse Jaenelle, aguardando que ele a acompanhasse. Caminharam pêlos caminhos do jardim, em direcção à casa.

— Não tendes também aulas com a Senhora Graff?

Angústia e triste resignação inundaram o ar à sua volta. — Não — disse, numa voz cuidadosamente neutra. — A Graff diz que não tenho aptidão para a Arte e por isso não se justifica manter a Wilhelmina atrasada, visto que eu nem consigo aprender as lições mais básicas.

Daemon lançou-lhe um olhar com os olhos semicerrados e nada disse por um momento. — Então o que fazeis enquanto a Wilhelmina está nas aulas?

— Oh, eu... faço outras coisas. — Parou repentinamente, de cabeça levantada, a escutar. — A Leiand procura-vos.

Daemon produziu um som grosseiro e foi recompensado por um risinho de admiração. A sua mãozinha pálida e frágil agarrou-lhe o braço, impelindo-o. O coração de Daemon batia descoordenadamente ao mesmo tempo que Jaenelle o rebocava pelo caminho, a rir. Continuaram a brincadeira durante todo o caminho até à casa. Ela puxava, ele protestava. Por fim, rebocou-o para a cozinha, através da cozinha, ignorando o ar embasbacado da Cozinheira e em direcção à porta que levava ao corredor.

A meio metro da porta, Daemon parou, opondo resistência. Por ele, Leiand podia ir para o Inferno. Queria ficar com Jaenelle.

Jaenelle colocou as mãos nas costas de Daemon e empurrou-o pela porta.

Aterrando no outro lado, Daemon girou sobre si próprio e ficou a olhar para uma porta fechada. Não tinha havido tempo para Jaenelle fechar a porta. Agora que pensava nisso, não se lembrava de existir ali alguma porta.

Daemon ficou a olhar pasmado por mais um momento, os olhos de um dourado-escuro, os lábios a debaterem-se para não se abrirem num sorriso rasgado. Produziu mais um som grosseiro para quem quer que o estivesse a ouvir do outro lado da porta, despiu o sobretudo e foi ver o que Leiand queria.

 

Daemon desfez o nó da gravata de seda e desapertou os botões do colarinho. A seguir ao passeio matinal, tinha ido às compras com Leiand. Até agora não se tinha preocupado com o que ela vestia, a não ser para confirmar que as pregas das suas roupas e a futilidade da sua personalidade o irritavam. Hoje olhou-a como a mãe de Jaenelle e lisonjeou-a, persuadindo-a a comprar um vestido de seda azul, de linhas simples, que se adaptava ao seu corpo elegante. Após este episódio, Leiand parecia diferente, mais à vontade. Até mesmo a sua voz não lhe arranhava os nervos como habitualmente.

Quando Leiand terminou as compras, Daemon ficou com a tarde para si. Noutra corte qualquer, teria aplicado o tempo a rever os papéis que o seu agente de negócios enviava para uma caixa postal na cidade.

Ficariam espantados, pensou sorrindo friamente, se soubessem o quanto daquela pequena ilha lhe pertencia.

Jogar nos negócios era um jogo mental no qual se tinha aperfeiçoado. Com o rendimento anual que obtinha de todos os cantos do Reino, poderia ser o proprietário de todas as tábuas de madeira e de todos os pregos em Beldon Mor - sem contar a meia dúzia de contas em Hayll de que Dorothea tinha conhecimento e que saqueava ocasionalmente, nas alturas em que o seu estilo de vida excedia o seu próprio rendimento. Mantinha sempre o suficiente nessas contas para que ficasse convencida de que eram todos os seus investimentos. Para ele próprio... Sem a liberdade de viver de acordo com as suas escolhas, os seus prazeres pessoais eram roupas e livros, sendo os livros a aquisição mais pessoal, uma vez que as roupas, tal como o seu corpo, eram usados na manipulação de quem servia.

Em qualquer outra corte, teria dado bom uso a uma tarde livre. Hoje estava aborrecido, aborrecido, aborrecido, irritado por lhe ser proibido o acesso à ala das crianças e ao que quer que aí estivesse a acontecer.

O início da noite tinha sido ocupado com o jantar e uma ida ao teatro. De um momento para o outro, Robert tinha decidido acompanhá-los, tendo Daemon achado as manipulações de lugares no camarote privado e a tensão entre Philip e Robert mais interessante do que a própria peça.

Ora aqui estava ele no final do dia, incapaz de parar o seu devaneio desassossegado. Passou pela biblioteca de Arte e parou, sendo que uma ténue luz por baixo da porta lhe chamou a atenção.

No preciso momento em que abriu a porta, a luz apagou-se.

Daemon deslizou para dentro da biblioteca e ergueu a mão. A chama da vela no canto mais distante brilhou debilmente, contudo a luz era suficiente.

Os olhos dourados de Daemon cintilaram de prazer ao serpentear pela divisão atulhada de móveis até se deter junto às estantes, olhando para a cabeça loira que observava o chão diligentemente. Os pés descalços espreitavam por debaixo da camisa de noite.

— É tarde, pequenita. — Repreendeu-se pela vibração ronronante e sedutora na voz, mas não havia nada que pudesse fazer. — Não devíeis estar na cama?

Jaenelle olhou para cima. A desconfiança nos seus olhos foi uma bofetada na cara. Nessa manhã tinha sido o companheiro de brincadeira. Porque é que de repente era um estranho e um suspeito?

Tentando pensar em algo para dizer, Daemon reparou num livro na prateleira de cima que estava meio saído para fora. Conjecturando esperançosamente sobre a razão da súbita desconfiança, retirou o livro da prateleira e leu o título, franzindo a testa com a surpresa. Se esta era a ideia de Jaenelle de leitura para adormecer, não admirava que não se interessasse pelas aulas de Arte de Graff. Sem proferir uma palavra, entregou-lhe o livro e esticou-se para arranjar os outros na prateleira de cima. Quando terminou, o espaço onde o livro tinha estado já não existia e se alguém desse uma rápida vista de olhos às prateleiras não notaria a falta.

Então? Não o disse. Não enviou. Ainda assim, estava a colocar a pergunta e a aguardar uma resposta.

Os lábios de Jaenelle contraíram-se. Sob a circunspecção escondia-se o divertimento. E ainda mais escondido... talvez um ligeiro vislumbre de confiança?

— Obrigada, Príncipe — disse Jaenelle com o riso na voz.

— De nada. — Hesitou. — Chamo-me Daemon.

— Não seria boa educação da minha parte chamar-te assim. Sois mais idoso.

Rosnou, frustrado. Rindo, fez-lhe uma vénia insolente e saiu da biblioteca.

— Fedelha irritante — resmungou ao sair da biblioteca e regressar ao seu quarto. Mas o dócil sorriso cheio de esperança não lhe saía dos lábios.

Alexandra sentou-se na cama, os braços abraçando os joelhos. Uma corda de sineta pendia de cada lado da cama. A da esquerda servia para chamar a criada. A da direita - olhou para ela pela sexta vez em quinze minutos - tocaria no quarto abaixo do dela.

Pousou a cabeça nos braços e suspirou.

Estava tão elegante naquelas roupas de cerimónia, talhadas de forma perfeita para realçarem aquele corpo magnífico e aquele lindo rosto. Ao falar com ela, a sua voz era uma carícia sensual que lhe causava palpitações no estômago - uma sensação que nenhum homem lhe tinha provocado.

Aquela voz e aquele corpo eram exasperantes pois parecia desconhecer o efeito que provocava. No teatro, eram mais os binóculos dirigidos para ele do que para o palco.

Tinha de se ter em conta a sua fama. No entanto, para além de ser friamente cortês, nada tinha encontrado a apontar. Respondia quando era solicitado, executava os deveres como acompanhante com intuição e graça, era sempre delicado sem ser bajulador - e produzia tanto desejo sexual que todas as mulheres que estivessem estado naquele teatro iriam procurar um consorte ou um amante hoje à noite.

Era esse o problema, não era?

Não tinha tido um amante regular desde que tinha pedido que Philip se encarregasse da Noite da Virgem de Leiand. Desde sempre que sabia do amor ardente de Philip pela sua filha. Não seria justo para nenhum deles exigir a presença de Philip na sua cama depois dessa noite.

Embora uma parte dela se opusesse à ideia de manter machos somente com objectivos sexuais, o seu corpo ainda não tinha desistido de ansiar pelo toque de um homem. A maior parte das vezes, satisfazia esse desejo sempre que era convidada na corte de uma Rainha inferior a ela - ou quando se esgueirava para passar uma noite ou duas com algumas amigas Viúvas Negras, regalando-se com os machos que serviam essa assembleia.

Agora, no quarto abaixo do dela, estava um Príncipe dos Senhores da Guerra que lhe acelerava o pulso, um Príncipe dos Senhores da Guerra que possuía séculos de treino para providenciar prazer sexual, um Príncipe dos Senhores da Guerra que obedecia às suas ordens.

Se ela se atrevesse.

Alexandra puxou a corda da sineta do lado direito. Aguardou um minuto e voltou a puxar. Como é que se agia perante um escravo de prazer? Não eram considerados como estando na mesma categoria dos consortes ou dos amantes, isso ela sabia. Mas o que deveria fazer? O que deveria dizer?

Alexandra penteou o cabelo com os dedos. Haveria de descortinar. Tinha de o fazer. Se não obtivesse algum tipo de alívio esta noite, enlouqueceria.

Apesar da frustração, quase desistiu e apagou a luz, praticamente alivia-da por Daemon não ter obedecido, quando ouviu uma pequena batida na porta.

— Entre. — Sentou-se direita, tentando manter a dignidade. As suas mãos estavam húmidas da transpiração provocada pêlos nervos. Corou quando Daemon entrou no quarto e se encostou à porta. Ainda tinha a roupa de cerimónia vestida, mas o cabelo estava um pouco desgrenhado e a camisa desabotoada até meio oferecia-lhe uma visão do peito macio e musculado de Daemon.

O corpo de Alexandra reagiu à presença física de Daemon, retirando-lhe a capacidade de pensar e de falar. Tinha resistido a este momento desde que Daemon tinha chegado, mas agora queria saber como era tê-lo na sua cama.

Durante muito tempo, ele nada disse. Nada fez. Estava encostado à porta olhando-a fixamente.

E algo perigoso tremeluzia nos seus olhos dourados.

Alexandra aguardou, relutante em o mandar embora, demasiado assustada para exigir.

Por fim, Daemon dirigiu-se à cama e mostrou-lhe o que fazia um escravo do prazer.

 

Saetan ignorou a pancada leve na porta do gabinete, tal como tinha ignorado tudo o resto nas últimas semanas. Observou o manipulo a rodar, porém a porta estava trancada pela Negra e quem quer que se encontrasse do outro lado, aí permaneceria.

O manípulo voltou a rodar e a porta abriu-se.

Com os lábios crispados face a esta manifesta intrusão, coxeou à volta da secretária e imobilizou-se quando Jaenelle deslizou pela porta, fechando-a atrás dela. Ali ficou, tímida e hesitante.

— Jaenelle — sussurrou. — Jaenelle!

Abriu os braços. Jaenelle atravessou a sala a correr e saltou-lhe para cima, os seus magros bracinhos apertando tão fortemente o pescoço de Saetan que quase o estrangulava.

Saetan cambaleou visto que a perna fraca começava a ceder, mas conseguiu chegar a uma cadeira junto à lareira. Mergulhou o rosto na curva do pescoço de Jaenelle, os braços bem apertados à volta dela. — Jaenelle — sussurrou uma e outra vez, beijando-lhe a testa, beijando-lhe o rosto.

— Por onde tens andado?

Passado um momento, Jaenelle colocou as mãos nos ombros de Saetan e empurrou-o. Examinou-lhe o rosto e franziu o sobrolho. — Estás a coxear novamente — disse com uma voz magoada.

— A perna está fraca — respondeu secamente, ignorando-a. Jaenelle desabotoou a parte de cima da blusa e afastou o colarinho.

— Não — disse Saetan com firmeza.

— Precisas do sangue. Voltaste a coxear.

— Não. Tu estiveste doente.

— Não, não estive — protestou rispidamente e, de imediato, afastou o olhar.

Os olhos de Saetan ficaram amarelos e inspirou com um silvo. Se não estiveste doente, criança-feiticeira, o que te fizeram ao corpo foi deliberado. Não me esqueci da última vez que te vi. Essa tua família tem muito que explicar.

Não foi bem doente — Jaenelle corrigiu. Soava quase como se estivesse a suplicar-lhe que concordasse. Contudo, fogo do Inferno, como poderia olhar para ela e, ainda assim, concordar?

— O sangue é forte, Saetan. — Estava claramente a suplicar. — E tu precisas do sangue.

— Não quando tu precisas de todas as gotas para ti própria — resmungou Saetan. Tentou mudar de posição, mas com Jaenelle em cima dele, estava realmente preso. Suspirou. Conhecia demasiado bem aquele olhar determinado. Não sossegaria até Saetan lhe retirar sangue.

Ocorreu-lhe que ela teria as suas próprias razões para lhe oferecer o sangue, para além de ser benéfico para Saetan. Parecia mais frágil - e não apenas fisicamente. Era como se ao rejeitar o sangue estivesse a confirmar um medo arreigado que Jaenelle tentava controlar desesperadamente.

Foi isso que o fez decidir-se. Com suavidade, encostou a boca ao pescoço de Jaenelle.

Demorou imenso tempo a retirar muito pouco, saboreando o toque, na esperança de a conseguir enganar. Quando, por fim, ergueu a cabeça e premiu os dedos na ferida para a cicatrizar, vislumbrou dúvida nos seus olhos. Bem, dois podiam jogar esse jogo.

— Onde é que andaste, criança-feiticeira? — perguntou de forma tão delicada que era como uma exigência.

A pergunta silenciou com eficácia o seu protesto. Olhou-o de forma meiga e inocente. — Saetan, há alguma coisa que se coma?

Um impasse, como tinha calculado.

— Sim — disse friamente. — Acho que podemos arranjar qualquer coisa.

Jaenelle recuou lentamente da cadeira e observou Saetan a debater-se para se levantar. Sem dizer uma palavra, foi buscar a bengala que estava encostada à secretária em madeira escura e entregou-lha.

Saetan fez um esgar, mas aceitou a bengala. Com um dos braços pousado delicadamente à volta dos ombros de Jaenelle, deixaram o gabinete e os corredores baixos e com a madeira desbastada, percorreram o labirinto de entradas e chegaram, finalmente, às portas duplas da frente do edifício. Saetan conduziu-a à volta do Paço para o Santuário que albergava o Altar das Trevas.

— Existe um Altar das Trevas junto ao Paço? — perguntou Jaenelle, olhando interessada à sua volta.

Saetan soltou um riso abafado ao mesmo tempo que acendia as quatro velas negras pela ordem adequada. — Na verdade, criança-feiticeira, o Paço foi construído junto ao Altar.

Os seus olhos arregalaram-se à medida que a parede em pedra por detrás do Altar se desvanecia numa névoa. — Ooohh — murmurou com uma voz próxima do temor como nunca tinha ouvido dela. — Por que é que está a fazer aquilo?

— É um Portão — respondeu Saetan, perplexo.

— Um Portão?

Forçou a verbalização das palavras. — Um Portão entre os Reinos.

— Ooohh!

A mente de Saetan hesitou. Dado que Jaenelle viajava entre os Reinos havia já alguns anos, tinha partido do princípio de que sabia como abrir os Portões. Se ela nem sequer sabia da existência dos Portões, como é que, em nome do Inferno, tinha ela viajado entre Kaeleer e o Inferno durante todo este tempo?

Não podia perguntar. Não queria perguntar. Se perguntasse, ela responder-lhe-ia e depois teria de a estrangular.

Esticou a mão. — Caminha sempre em frente pela névoa. Quando terminares de contar devagar até quatro, estaremos do outro lado do Portão.

Uma vez do outro lado, caminharam à volta do Paço e pelas portas da frente.

— Onde estamos? — questionou Jaenelle ao estudar os prismas produzidos pela janela arqueada de vitrais sobre as portas.

— No Paço dos SaDiablo — respondeu suavemente.

Jaenelle virou-se lentamente e abanou a cabeça. — Este não é o Paço.

— Ah, mas é, criança-feiticeira. Acabámos de passar um Portão, lembras-te? Este é o Paço no Reino das Sombras. Estamos em Kaeleer.

— Então é verdade que existe um Reino das Sombras — murmurou ao abrir uma porta e espreitar para o interior da divisão.

Convicto de que aquelas palavras não eram para os seus ouvidos, não respondeu. Simplesmente, arquivou-as junto às outras questões perturbantes e por responder que envolviam a sua Senhora de cabelos louros. No entanto, provocaram-lhe uma sensação adicional de alívio por ter decidido dar-lhe a conhecer o Paço em Kaeleer.

Exactamente antes do seu longo desaparecimento, pretendia afastá-la do Inferno. Sabia que Jaenelle continuaria a visitar Char e as outras cildru dyathe, continuaria a visitar Titian, contudo Hekatah estava a evidenciar-se em demasia ultimamente, fomentando maldades com o pequeno grupo de feiticeiras demoníacas a que ela chamava a sua assembleia, maldades planeadas para o distrair, chamar-lhe a atenção, embora os sorrisos presunçosos, bem como as desculpas exageradamente pesarosas o enchessem de um temor que se estava a cristalizar lentamente em raiva gelada. Cada dia que mantinha Jaenelle afastada de Hekatah representava mais um dia de segurança para todos.

Jaenelle terminou as espreitadelas pelas divisões do salão principal e saltitou para junto de Saetan, com os olhos reluzentes. — É maravilhoso, Saetan.

Pôs-lhe o braço à volta dos ombros e beijou-lhe o alto da cabeça. — E algures nestes corredores está uma cozinha e uma excelente cozinheira chamada D. Beale.

Dirigiram ambos os olhos para o clique-claque de sapatos que se dirigia propositadamente a eles vindo do corredor de serviço no final do salão principal. Saetan sorriu ao reconhecer o clique-claque característico. Helene, que vinha ver quem é que estava na "sua" casa. Ia informar Jaenelle sobre quem se aproximava, mas ficou demasiado atordoado para falar.

O rosto de Jaenelle era a máscara mais gélida, apurada e malévola que alguma vez tinha visto. Os olhos safira estavam transformados em turbilhões. O seu poder interior não brotava num anel que ia aumentando, como aconteceria com qualquer outra feiticeira irritada, e que servia de aviso a quem se aproximasse. Não, estava a puxar para dentro, a descer em espiral para o seu núcleo, a partir do qual Jaenelle o expulsaria para o exterior, com resultados devastadores. Estava a ficar gelada, gelada, gelada e Saetan estava impossibilitado de a deter, incapaz de ultrapassar a distância que, de repente e sem qualquer explicação, se tinha criado entre os dois. Os seus ombros estremeceram debaixo do braço de Saetan e, exibindo uma graciosidade que faria inveja a qualquer predador, começou a deslizar à sua frente.

Saetan ergueu os olhos. Helene estava prestes a entrar no salão - e a morrer. Convocou o poder das suas Jóias, reuniu todas as suas forças. Tudo iria depender de uma palavra.

Estendeu a mão direita, a Jóia Negra a arder, detendo o movimento de Jaenelle. — Senhora — disse com um tom de voz de autoridade.

Jaenelle olhou para ele. Tremeu mas manteve a mão firme. — Quando se está a seguir o Protocolo e um Príncipe dos Senhores da Guerra dirige um pedido à sua Rainha, esta anui graciosamente, a menos que prescinda dos seus serviços. Peco-te que confies no meu discernimento sobre quem nos serve no Paço. Peço permissão para te apresentar à governanta, que se irá esforçar ao máximo para te servir adequadamente. Solicito que me acompanhes à sala de jantar para comermos alguma coisa.

Nunca lhe tinha ensinado Protocolo, os controlos e equilíbrios subtis de poder entre os Sangue. Tinha partido do princípio de que ela teria aprendido as bases pela vivência diária e pela observação. Julgou ter tempo para lhe ensinar os delicados pontos de intersecção entre Rainhas e machos de Jóias Negras. Neste momento, era a única trela que possuía. Se ela não respondesse... — Por favor, criança-feiticeira — sussurrou no preciso momento em que Helene entrou no salão e parou.

As Trevas rodopiaram à volta de Saetan. Mãe Noite! Nunca tinha sentido nada assim!

Jaenelle examinou a mão direita de Saetan durante bastante tempo antes de, lentamente, colocar a sua mão sobre a de Saetan que estremeceu, sem conseguir controlar-se, ao ver a verdade por um breve momento após o qual ela o afastou, gentilmente.

— Esta é a minha governanta, Helene, — disse Saetan, nunca desviandoos olhos de Jaenelle. — Helene, esta é a Senhora... — Hesitou, sem saber o que fazer. Proferir "Senhora Jaenelle" era demasiado familiar.

Jaenelle virou os olhos em turbilhão para Helene, que se encolheumas, com o instinto de uma pequena criatura perseguida, não se moveu.

— Angelline. — A palavra saiu como um sussurro da meia-noite.

— Angelline. — Saetan olhou para Helene, desejando que se mantives-se calma. — Minha querida, podes ver o que a D. Beale tem hoje para nós?

Helene recordou-se da sua posição e fez uma vénia. — Com certeza, Senhor Supremo — respondeu com dignidade. Voltando-se, deixou o grande salão com um passo firme e compassado que Saetan aplaudiu em silêncio.

Jaenelle afastou-se dele, cabisbaixa, os ombros descaídos.

— Criança-feiticeira? — Saetan interpelou-a docemente. Os olhos que encontraram os dele estavam perturbados e cheios de dor, repletos de um sofrimento que lhe apertava o coração por não saber a causa - ou, talvez, por saber.

Não tinha estremecido pois, com o toque de Jaenelle, tinha-se deparado com um poder tão distante de si como ele próprio estava em relação à Branca. Não se tinha afastado dela. Fora o que ali vira que o tinha horrorizado - durante os meses de ausência, Jaenelle tinha aprendido a única lição que não queria que ela soubesse.

Tinha aprendido a odiar.

Agora tinha de encontrar uma forma de a convencer que não se tinha afastado dela devido ao que ela era, tinha de superar a distância entre eles, tinha de encontrar uma maneira de a trazer de volta. Saetan tinha de compreender.

— Criança-feiticeira — disse numa voz com um tom cuidadosamente neutro, — porque é que ias atacar a Helene?

— É uma estranha.

Atingido pela resposta fria, a perna fraca de Saetan cedeu. De imediato, os braços de Jaenelle enrolaram-se à volta da cintura de Saetan que deixou de sentir o chão. Algo perplexo, olhou para baixo e tocou no chão com o sapato. Estava a pairar no ar, a cinco milímetros do chão. Se caminhasse normalmente, só um olhar atento perceberia que não caminhava directamente no chão. E também pela inexistência de som dos passos.

— Ajudar-te-á — explicou Jaenelle, estando a sua voz tão impregnada de justificação e de preocupação que o braço que tinha mantido à volta dos seus ombros a puxou para ele num forte abraço.

Ao caminharem para a sala de jantar, Saetan usou a perna fraca como desculpa para caminharem devagar, concedendo tempo a si próprio para pensar. Tinha de compreender o que teria originado aquela ferocidade.

Helene era uma estranha, era verdade. Mas Saetan tinha uma folha com uma vintena de nomes fechada na gaveta da sua secretária e todos tinham sido estranhos um dia. Porque Helene era adulta? Não. Cassandra era adulta. Também Titian, e Prothvar, Andulvar e Mephis. Também ele próprio. Porque Helene estava viva? Não, essa também não era a resposta.

Frustrado, repetiu mentalmente os últimos minutos, forçando-se a vê-los à distância. O som de passos, a alteração súbita em Jaenelle, o movimento predatório... à sua frente.

Parou repentinamente, chocado, mas foi puxado até Jaenelle perceber que não estava a tentar caminhar.

Tinha imaginado como seria a reacção de Jaenelle quando estivesse com ele em Kaeleer, fora do Reino onde Saetan governava, e, agora, sabia. Ela preocupava-se com ele. Estava disposta a protegê-lo pois, pelo menos para ela, uma perna fraca poderia torná-lo vulnerável face a um adversário.

Saetan sorriu, apertou-lhe o ombro e continuou a andar.

Geoffrey tinha razão. Tinha uma trela mais poderosa do que o Protocolo para a controlar. Infelizmente, a trela funcionava para os dois lados, por isso, de hoje em diante, teria de ter muito, muito cuidado.

Saetan olhou com uma consternação crescente para a quantidade de comida na mesa. Para além de uma malga de guisado e de pauzinhos de pão de milho, fruta, queijo, bolinhos de avelã, presunto frio, carnes frias, um frango assado inteiro, uma travessa de vegetais, pão fresco, manteiga de mel e um jarro de leite compunham a mesa. E tinha ficado por ali pois Saetan não tinha autorizado que o lacaio trouxesse o último tabuleiro carregado. Toda aquela quantidade de comida teria desencorajado um macho adulto esfomeado, quanto mais uma jovem menina.

Jaenelle olhou espantada para os pratos dispostos num semicírculo à volta do seu lugar na mesa.

— Come o guisado enquanto está quente — sugeriu Saetan docemente, bebericando um copo de yarbarah.

Jaeneiïe pegou na colher e começou a comer, mas após a primeira colherada pousou a colher, ficando novamente reservada e vacilante.

Saetan pôs-se a falar sem pressas. Uma vez que estava a falar como se não tivesse mais nada para fazer e nenhum sítio para ir e iria ficar à mesa durante bastante tempo, Jaenelle voltou a pegar na colher. Saetan reparou que, sempre que parava de falar, ela pousava a colher, como se não pretendesse que o facto de estar a comer o impedisse de falar. Por isso, Saetan tagarelou sobre os mexericos, contando-lhe sobre Mephis, Prothvar, Andulvar, Geoffrey e Draca, mas depressa esgotou os assuntos. Os mortos não têm uma vida muito ocupada, pensou friamente, lançando-se num longo discurso sobre o livro que estava a ler, sem se preocupar minimamente se era ou não demasiado complexo para ela.

Começou a sentir-se um pouco desesperado sobre o que dizer a seguir, quando, finalmente, Jaeneiïe se recostou, as mãos entrelaçadas sobre uma barriguinha saliente, e sorriu com o sorriso meloso e letárgico de uma criança bem alimentada e satisfeita. Saetan levou o copo aos lábios para ocultar o sorriso e olhou de relance para a chacina à sua frente. Talvez se tivesse precipitado ao mandar aquele último tabuleiro de volta para a cozinha.

— Tenho uma surpresa para ti — disse, mordiscando a bochecha enquanto Jaeneiïe se debatia para se endireitar na cadeira.

Conduziu-a ao segundo andar da sua ala. As portas do lado direito davam para os seus aposentos. Abriu uma porta do lado esquerdo.

Tinha planeado minuciosamente estas divisões. O quarto lembrava uma paisagem marítima com as paredes pintadas em tons suaves, tapetes felpudos cor de areia, coberta azul-marinho sobre a enorme cama, mobília em tons quentes acastanhados e almofadas da cor da vegetação das dunas. A sala de estar adjacente pertencia à terra. As divisões precisavam ainda dos toques pessoais que Saetan tinha deixado deliberadamente ausentes para que fossem femininos.

Jaeneiïe admirou, examinou, exclamou e gritou a Saetan quando viu a casa de banho:

— Até dá para nadar nesta banheira! Quando finalmente voltou para junto dele, Saetan perguntou:

— Gostas?

Sorriu e disse que sim com a cabeça.

— Fico contente, pois estes são os teus aposentos. — Ignorou o seu arquejo encantado e prosseguiu. — É claro que precisam do teu toque pessoal e a parafernália de uma senhora para lhes dar carácter e não coloquei quaisquer quadros nas paredes. Terás de os escolher.

— Os meus aposentos?

— Sempre que os quiseres usar, quer eu esteja ou não aqui. Um lugar calmo, que te pertence.

Observou prazenteiramente enquanto Jaenelle explorava uma vez mais os aposentos, com um brilho territorial nos olhos. O sorriso nos lábios de Saetan não se desvaneceu até ela tentar abrir a porta no lado oposto do quarto. Como estava trancada, virou costas, não se mostrando interessada o suficiente para indagar.

Quando Jaenelle regressou à casa de banho para ponderar nas possibilidades da banheira, Saetan observou a porta trancada.

Amava-a de todo o coração, mas não era tolo. Do outro lado daquela porta trancada encontrava-se outro apartamento, de menor dimensão, mas não menos minuciosamente decorado. Um dia, naqueles aposentos residiria um consorte, sempre que ela viesse de visita. Por agora, ou pelo menos até ela questionar, não havia razão para lhe dizer o que se encontrava no outro lado daquela porta ou para que serviria o respectivo ocupante.

— Saetan?

Despertou do seu devaneio obscuro, encontrando-a a seu lado, com alguma cor de regresso às maçãs do rosto devido à felicidade que sentia. — Achas que podemos recomeçar as minhas aulas?

— É claro. — Reflectiu um momento. — Sabes como criar luz encantada?

Jaenelle abanou a cabeça.

— Sendo assim, é um bom sítio para começar. — Fez uma pausa e adicionou descontraidamente:

— E que tal se as aulas decorressem aqui?

— Aqui?

— Sim, aqui. Dessa forma...

— Mas assim não veria o Andulvar e o Prothvar e o Mephis — Jaenelle protestou.

Por um brevíssimo momento, era suficientemente honesto para o admitir, sentiu ciúmes por Jaenelle querer vê-los, por não ser exclusivamente dele. — Mas é claro que os podes ver — afirmou calmamente, esforçando-se para não ranger os dentes. — Não há qualquer razão para que não possam vir aqui.

— Julguei que os demónios não saíam do Inferno.

— A maior parte das vezes é mais confortável para os mortos permanecerem entre os seus iguais, tal como é mais confortável para os vivos que os mortos se mantenham entre os mortos. Mas todos nós vivemos há tanto tempo atrás... — Encolheu os ombros. — De qualquer forma, mesmo que tenha sido há muito tempo, Mephis tem aqui vindo e ainda trata de vários dos meus assuntos neste Reino. Creio que apreciaria uma desculpa para sair do Reino das Trevas - tal como Andulvar e Prothvar. — Esperava não estragar tudo se parecesse demasiado astuto. — E, no final das aulas, podes visitar os teus amigos em Kaeleer mais facilmente.

— Lá isso é verdade — disse Jaenelle, devagar, ponderando. — Dessa forma, a maioria das vezes só teria de saltar das Teias uma vez em vez de duas. — Os olhos de Jaenelle iluminaram-se e estalou os dedos. — Ou posso até usar os Portões se me ensinares como os abrir.

A mente de Saetan não cambaleou. Rebolou e andou às voltas mentalmente, aterrando num montão. Tentou engolir mas a boca estava seca como um deserto. — Sem dúvida, — conseguiu, finalmente, emitir. Definitivamente, tinha que a estrangular. Caso contrário, magoar-se-ia devido às acrobacias mentais necessárias à conversão do impossível em algo razoavelmente verosímil. — As tuas aulas — coaxou, esperando, um pouco histericamente, que este fosse um assunto seguro.

Jaenelle sorriu abertamente para Saetan, que suspirou, derrotado.

— Quando queres começar?

Jaenelle ponderou sobre esta questão. — Hoje está a fazer-se tarde. Irão dar pela minha falta se não aparecer ao almoço. — Franziu o nariz. — Amanhã devia ir visitar o Lorn. Há algum tempo que não o visito e deve estar preocupado.

Lorn estar preocupado! Saetan reprimiu uma resmungadela.

— Depois de amanhã? Wilhelmina tem aulas de manhã, por isso ninguém dará pela minha falta até ao almoço.

— Combinado. — Beijou-a no alto da cabeça, acompanhou-a até à porta da frente do Salão e viu-a desaparecer ao mesmo tempo que acenava com a mão, despedindo-se. Permaneceu o tempo suficiente para se certificar de que Helene tinha ultrapassado o eventual choque que tivesse sofrido, deixou instruções específicas sobre o comportamento a adoptar sempre que Jaenelle chegasse - especialmente se chegasse na sua companhia - e voltou para o gabinete privado no Reino das Trevas.

Ali o encontrou Andulvar, um pouco mais tarde, a servir-se de um conhaque extremamente bem servido. Os olhos do eyrieno semicerraram-se ao reparar nas mãos trémulas de Saetan. — O que estás a fazer?

— Vou me embebedar o mais que puder — respondeu Saetan calmamente, bebendo um logo trago de conhaque. — Queres acompanhar-me?

— Os Demónios não bebem álcool puro e, a propósito, nem os Guardiões os deveriam fazer. Além disso, — Andulvar insistiu ao mesmo tempo que Saetan esvaziava um segundo copo, — por que razão é que te queres embebedar?

— Porque senão estrangulo-a, caso não me embebede.

— A fedelha voltou e tu não nos disseste nada? — Andulvar pôs as mãos nas ancas e rosnou. — E qual é a razão para a estrangulares?

Saetan serviu, com cuidado, o terceiro copo generoso de conhaque. Por que razão tinha deixado de beber conhaque? Uma bebida tão deliciosa. Era como despejar água num fogo mental em chamas. Ou era como despejar azeite? Não interessava. — Sabias que ela salta das Teias?

Andulvar encolheu os ombros, sem se mostrar surpreendido. — Pelo menos metade dos Sangue com Jóias consegue saltar entre as categorias dos Ventos.

— Ela não salta entre as categorias, meu caro Andulvar, ela salta entre os Reinos.

Andulvar engoliu em seco. — Isso não é possível — disse, arfando, agradecido por Saetan estar a servir conhaque num segundo copo.

— Isso era o que eu pensava. E nem sequer vou ponderar no perigo que tal representa enquanto ainda consigo pensar. A propósito, é desta forma que ela tem ido e vindo, durante todos estes anos. Até hoje, não sabia que existiam Portões.

Andulvar fitou a garrafa de conhaque. — Isso não chega para nos embebedar aos dois - partindo do princípio, claro está, de que ainda é possível ficarmos bêbedos.

— Há mais.

— Ah, então está bem.

Instalaram-se nas cadeiras junto à lareira, dedicados à sua tarefa.

— Os Guardiões não devem beber, sabes bem — disse Geoffrey, demasiado divertido para ser compreensivo.

Saetan fulminou o outro Guardião com o olhar e, de seguida, fechou os olhos, esperando que caíssem pois assim alguma parte da sua cabeça deixaria de lhe doer. Encolheu-se quando Geoffrey arrastou a cadeira pelo chão da biblioteca e se sentou.

— Novamente nomes? — perguntou Geoffrey, mantendo o tom de voz baixo.

— Um apelido, Angelline, provavelmente de Chaillot, e Wilhelmina.

— Um apelido e um local para começar. Sois muito gentil, Saetan.

— Quero é que morras. — Saetan assustou-se com o som da própria voz.

— Desejo concedido — respondeu Geoffrey animadamente ao sair para procurar o registo correspondente.

A porta da biblioteca abriu-se. Draca, a Senescal da Fortaleza, deslizou até à mesa e colocou uma chávena à frente de Saetan. — Issto irá ajudar-vos — disse ao voltar-se para se ir embora. — Embora não mereçaiss.

Saetan levou a infusão fümegante à boca, fez uma careta ao saboreá-la, mas bebeu metade. Recostou-se na cadeira, as mãos entrelaçadas à volta da caneca, ouvindo Geoífrey a virar as páginas do registo com consideração, tentando fazer o mínimo de barulho. Quando acabou a infusão que Draca tinha feito, as páginas já tinham parado de virar.

As sobrancelhas negras de Geoffrey formavam um V abaixo da saliente crista de viúva. Cerrou os sensuais lábios vermelho sangue. — Bem — disse por fim, — existe uma feiticeira em Chaillot chamada Alexandra Angelline, que é a Rainha do Território. Usa a Opala dos Sangue. A sua filha, Leiand, usa a Rosa e é casada com um Senhor da Guerra de Jóia Amarela chamado Robert Benedict. Não existe qualquer feiticeira chamada Wilhelmina Angelline, mas existe uma Wilhelmina Benedict que tem catorze anos, nascida em Chaillot e que usa a Violácea.

Saetan permaneceu imóvel. — Alguma outra ligação familiar? — perguntou muito baixinho.

Geoffrey ergueu os olhos bruscamente. — Apenas uma de relevância. Um Príncipe de Jóia Cinzenta chamado Philip Alexander partilha uma linhagem paterna com Robert Benedict e serve Alexandra Angelline. Se a linhagem não tiver sido formalmente reconhecida, não é invulgar que um bastardo adopte um apelido que reflicta a Rainha que serve.

— Eu sei disso. E sobre Jaenelle?

Geoffrey abanou a cabeça. — Não está registada.

Saetan juntou os dedos de ambas as mãos, arqueando-os. — Disse que o seu nome era Angelline, o que seria indicativo de que ela, pelo menos, está a dar continuação à tradição antiga do lado materno da família, seguindo a linhagem matriarcal. Disse que poderia vir de manhã, quando Wilhelmina estivesse nas aulas. Da mesma família?

Geoffrey fechou o livro. — Provavelmente. Terreille tem sido negligente relativamente ao registo da genealogia das famílias dos Sangue. Contudo, se registaram uma criança, porque não fizeram o mesmo com a outra?

— Porque uma das crianças usa a Violácea — respondeu Saetan com um sorriso gélido. — Não se aperceberam sequer que a outra criança usa as Jóias.

— Tendo em conta a Senhora de cabelo louro, seria difícil não perceber.

Saetan abanou a cabeça. — Mas seria. Nunca usou as Jóias com que foi dotada e é péssima na Arte básica. Se nunca tiver mencionado as formas mais criativas com que faz uso da Arte, não terão maneira de saber que ela pode fazer o que quer que seja. — Sentiu um punho gélido a enfiar-se entre as omoplatas. — A não ser que não acreditassem nela — terminou suavemente, relembrando o que Jaenelle lhe tinha dito sobre o Reino das Sombras. Arquivou aquele pensamento para consideração posterior e olhou para a chávena vazia. — Esta mixórdia sabe horrivelmente, mas está a ajudar-me a cabeça. Há possibilidades de beber outra chávena?

— Há sempre uma possibilidade — disse Geoffrey com uma ponta de riso na voz ao puxar a corda da sineta. — Especialmente se souber horrivelmente.

Saetan esfregou o queixo. — Geoffrey, és o bibliotecário da Fortaleza há muito, muito tempo e, provavelmente, sabes mais sobre os Sangue do que todos nós juntos. Ouviste alguma vez falar de alguém que tenha descido em espiral para alcançar a profundeza das suas Jóias?

— Em espiral? — Geoffrey pensou por uns momentos e abanou a cabeça. — Não, mas isso não significa que não possa acontecer. Perguntai a Draca. Comparado a ela, ainda estais na creche e eu não sou mais do que um adolescente. — Contraiu os lábios e franziu o sobrolho. — Há algo que li uma vez, há muito tempo atrás, fazia parte de um poema, creio eu, sobre os grandes dragões da lenda. Como é que era? “Descem em espiral até ao ébano...”

— “...capturando ass estrelass com ass caudass.” — A chávena à frente de Saetan desapareceu, sendo substituída por uma outra que Draca colocou na mesa.

— É isso — disse Geoffrey. — Saetan indagava se era possível que alguém descesse em espiral até ao âmago.

Draca virou a cabeça, num movimento lento e cuidadoso que se devia mais à longevidade do que à graciosidade, fixando os olhos de réptil em Saetan. — Desejaiss compreender issto?

Saetan olhou para o interior daqueles olhos vetustos e, relutantemente, acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

— Retirai o livro — Draca dirigiu-se a Geoffrey. Aguardou até ter toda a atenção. — Não oss Ssangue.

Um depósito quadrado cheio de água surgiu na mesa, cada lado tão comprido como o braço de Saetan e igualmente alto. Retirando lentamente as mãos das longas mangas das suas vestes, Draca abriu o punho ligeiramente cerrado sobre o depósito. Pequenas missangas, do tipo que as mulheres cozem nas roupas para reflectirem a luz, caíram na água e ficaram a flutuar à superfície. As missangas eram da mesma cor das Jóias.

Na outra mão, Draca segurava uma pedra lisa de forma oval, ligada a um cordel fino de seda. — Irei demonsstrar como oss Ssangue alcançam a teia interior, o núcleo do Eu. — Lenta e seguramente, baixou a pedra introduzindo-a na água até ficar suspensa a dois centímetros e meio do fundo do depósito. Tinha penetrado na água com tal suavidade que não tinha provocado qualquer agitação. As missangas flutuavam na superfície calma.

— Quando a desscida ao abissmo ou a asscenção do abissmo é realizada lentamente — disse, puxando a pedra em direcção à superfície, — é um assunto privado, uma comunhão com o próprio. Não perturba quem sse encontra à volta. Quando a raiva, o medo ou uma grande necessidade exige uma rápida desscida ao âmago para reunir o poder e asscender... — Deixou cair a pedra no depósito. Mergulhou a extensão total do cordel, detendo-se a dois centímetros e meio do fundo.

Saetan e Geoffrey observaram em silêncio a pequena ondulação na superfície a espalhar-se em direcção às extremidades do depósito, observaram as missangas a dançar nos anéis que se iam espalhando.

Draca puxou bruscamente. A pedra saiu disparada do depósito, arrastando um pequeno esguicho de água. Agitadas de um lado para o outro nas ondas, algumas das missangas de cores mais claras afundaram-se.

Draca aguardou que interiorizassem o resultado. — Uma esspiral.

A pedra deslocou-se em movimentos circulares sobre o depósito. Ao tocar a superfície, a água moveu-se com ela, girando, girando, girando à medida que a pedra efectuava calmamente a descida. As missangas, apanhadas no movimento, seguiram a pedra. A descida em espiral prosseguiu até a pedra se encontrar a dois centímentros e meio do fundo do depósito. Nessa altura, toda a água estava em movimento, todas as missangas enredadas.

— Um redemoinho — sussurrou Geoffrey. Olhou com inquietação para Saetan, que observava o depósito, os lábios cerrados, as longas unhas a cravarem-se na mesa.

— Não. — Draca deu um puxão na pedra. A água saltou com a pedra, bem acima do depósito, espalhando-se na mesa, ao cair. As missangas, expelidas do depósito juntamente com a água, jaziam na mesa como pequenos peixes mortos. — Um turbilhão.

Saetan virou as costas. — Disseste que os Sangue não podem efectuar espirais.

Draca pousou a mão no braço de Saetan, forçando-o a voltar-se e a olhar para ela. — Ela esstá para além doss Ssangue. Ela é a Feiticeira.

— Não interessa se é a Feiticeira. Ainda assim é Sangue.

— Ela é Ssangue e ela é a Outra.

— Não. — Saetan afastou-se de Draca. — Ainda assim é Sangue. É uma de nós. Tem de ser. — E era a sua dócil e curiosa Jaenelle, a filha da sua alma. Nada do que pudessem dizer poderia alterar isso.

Mas alguém a tinha ensinado a odiar.

— Ela é a Feiticeira — disse Draca, com uma docilidade que nunca tinha ouvido nela. — Irá quase ssempre efectuar esspiraiss, Ssenhor Ssupremo. Não podeiss alterar a ssua natureza. Não podeiss impedir ass pequenass esspiraiss, oss momentoss de raiva. Não podeiss impedi-la de desscer em esspiral até ao sseu próprio âmago. Todoss os Ssangue têm de efectuar a desscida de temposs a temposs. Mass o turbilhão... — Draca enfiou as mãos nas mangas das suas vestes. — Protegei-a, Ssaetan. Protegei-a com a vossa força e o vosso amor e talvez nunca venha a acontecer.

— E se acontecer? — perguntou Saetan com a voz rouca.

— Será o fim doss Ssangue.

 

 

                                                                                CONTINUA

 

 

                             CAPÍTULO 8

Daemon baralhou as cartas enquanto Leiand olhava de relance para o relógio - outra vez. Estava a jogar às cartas há quase duas horas e, se seguisse a rotina, deixá-lo-ia sair dentro de dez minutos ou depois de mais uma jogada, o que quer que se alcançasse em primeiro lugar.

Era a terceira noite nessa semana que Leiand tinha solicitado a sua companhia quando se retirava. Daemon não se importava de jogar às cartas, mas incomodava-o que insistisse em jogar na sua sala de estar e não na sala para recepções no andar de baixo. E os comentários provocantes ao pequeno-almoço elogiando-o pelo facto de a ter entretido tão bem, incomodavam-no ainda mais.

 

 

 

 

Na primeira manhã após terem jogado às cartas, Robert tinha ficado vermelho como um pimento e soprado ao ouvir Leiand tagarelar até reparar na raiva silenciosa de Philip. Depois disso, uma vez que um escravo de prazer não era considerado um homem “verdadeiro” e, por isso, não era considerado um rival, Robert tinha acariciado alegremente a mão de Leiand e tinha-lhe dito que estava satisfeito por ela achar que Sadi era uma companhia tão agradável, uma vez que ele próprio tinha de se ausentar tantos serões em trabalho.

Philip, por outro lado, tornou-se brutamente seco, atirando o itinerário diário a Daemon e cuspindo ordens verbais. Juntou-se também a Daemon e às raparigas no passeio matinal, colocando Jaenelle e Wilhelmina de cada lado, forçando Daemon a...

 

                                                                               

 

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