Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHO DO FOGO Vol. II / Isabela & Eduardo Mastral
FILHO DO FOGO Vol. II / Isabela & Eduardo Mastral

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

FILHO DO FOGO

Volume II

Primeira Parte

 

As semanas passaram sem maiores novidades.

Aquele sábado tinha sido agradável. Treinei Kung Fu e fui direto para a casa de Camila

Vamos comer juntos mais cedo?! — Convidara ela. — Podíamos pedir uma pizza e pegar filme de vídeo, né? O que acha? Você ficou tão sumido no final de semana passado...

Ela estava feliz, descontraída e louca para me agradar. Havíamos retomado o namoro há pouco, após mais uma das nossas tão freqüentes brigas e separa­ções. Havia sido um “Deus-nos-acuda” como sempre.

Camila começou a não querer mais comer, emagreceu terrivelmente, vivia atrás de mim. Foi pressão de todos os lados para que voltássemos. Dona Carminha falava com minha mãe e depois me mandava recados:

— A Camila continua sem comer. Só fala de você. É melhor repensar esta decisão! Você não vai encontrar outra moça como ela. Só fala em morrer, em se matar, em definhar de inanição, coisas assim! — E por aí adiante.

De fato Camila emagreceu muito. Quando a vi de novo até assustei. Ficou abatida, acabada, deixando a todos preocupados. E até tentou “suicídio”. Feliz­mente não foi dos mais inteligentes, tomou apenas algumas cartelas de aspirina. Era o que havia de disponível.

Eu não queria mais manter aquele relacionamento, principalmente depois da Iniciação. Mas a velha “pena” acabou novamente falando mais alto. (Onde que eu estava com a cabeça???...)

Decidi realmente ir comer pizza à noite na casa de Camila, afinal eu a havia visto apenas na última terça-feira. Ela havia estado a me esperar no portão apro­veitando o sol do final da tarde.

— Acho melhor pedir pelo telefone, para entregar! Pode ser meia “frango com catupiry” e meia “portuguesa”, ou você quer toda “portuguesa”? — Camila sabia que eu não dispensava a “portuguesa” e tão logo cheguei ela já me acenava com o panfleto do cardápio.

— Pode pedir meio a meio, como você quiser. — Então, tá!

Entramos em casa conversando. A poodle veio fazer festa. A poodle somen­te, porque os dobermanns continuavam no quintal. Fui direto para o telefone encomendar a pizza.

— Trás também uma coca grande, por favor! — Pedi, antecipando um super copo com gelo e limão para acompanhar o refrigerante.

Depois de cumprimentar Dona Carmem fui atrás da Camila, que estava no quarto.

— Eu peguei aquele filme que você queria ver. — Explicou Camila, sentando sobre a cama.

Preferimos ficar por lá naquele horário — começo da noite — pois o relaciona­mento da família dela comigo não era dos melhores e em breve todos estariam por lá. Entenda-se por “família” a irmã e o Pastor. Não conseguia suportar a Kelly, sempre procurando um motivo para implicar comigo ou com a Camila. Mas o pior de todos era o “Pastorzinho”!!! Deixa estar... eu ia pegá-lo de jeito.

Uma vez no quarto me acomodei no chão, de costas para a parede. Camila sentou-se de frente para mim, contando as novidades do serviço:

— ...e acabou dando a maior confusão; também todo mundo avisou que o controle ia ficar mais rigoroso a partir de segunda-feira, mas ele não quis dar o braço a torcer. Não sei, não... talvez seja despedido!

Ouvi quando o Pastorzinho chegou. Não da Igreja, é claro, afinal sexta-feira era dia de folga. No entanto o carro da Igreja bem que ficava com ele, e com gasolina à vontade! Hum...nada como um dia após o outro.

— Imagine só, que rolo! — Camila dava risada. Eu havia perdido o final da história ao desviar minha atenção para os ruídos na sala e o som de vozes.

Procurei descontrair-me. Acho que só estava um pouco mais irritado do que de costume. Jogamos um pouco de xadrez, mas logo chegou a pizza. Camila, como sempre trouxe pratos, talheres e copos para o quarto. Eu coloquei um peda­ço de pizza sobre o outro fazendo um sanduíche, e dispensei os talheres. Estava com o sanduíche a meio caminho da boca e o copo cheio de borbulhante coca-cola quando...: TUM! Minha mente deu um estalido! Eu não podia comer àquela hora! Haveria um Ritual naquela noite para o qual eu deveria manter-me em jejum por seis horas.

Nem sempre isso era necessário, mas naquele dia sim.

Olhei para Camila, que experimentava o seu pedaço sabor “frango com catupiry”.

— Ah, eu não vou comer, não, tá? — Falei de pronto, sem delongas.

— Não?!! — Ela parecia não compreender. — Mas, por quê? Você não queria pizza?

— Queria, até, mas sei lá... perdi a fome. Não vou comer agora. — Respondi com convicção. — Come você!

— Mas eu não vou agüentar tudo. O que faremos com este monte de pizza?! — Perguntou ela meio brava.

— Ah, não sei! Dá para sua família!

— Agora pode, né?

— Bem, se não quer dar para sua família dê para os cachorros. Você escolhe!

— Não, vou dar para minha família, aproveitar que meu irmão chegou agora.

— Dá este pedaço aqui para ele — Falei rindo. Num momento de “descuido” eu havia cuspido embaixo do queijo.

Ela, estranhamente, concordou. Nem entornou o caldo. Eu achei que Camila não devia estar muito bem. Não era apenas porque o dinheiro saía do meu bolso. Havia algo mais. Situações assim começaram a acontecer com freqüência. Numa outra ocasião, logo depois deste dia, Camila não discutiu diante de outra descul­pa bastante esfarrapada.

Agora eu tinha compromissos em dias pouco favoráveis. Para Camila, é lógico. Porque para mim o dia nunca estava desfavorável. Os Rituais de Celebra­ção eram todas as sextas e sábados à partir das onze e meia. Além das reuniões de estudo no Grupo às segundas e quartas.

Conforme aproximava-se o horário combinado com Marlon, eu procurava sair da casa dela:

— Olha, este tênis aqui está incomodando muito. — Falei para Camila. — Eu vou para casa trocar de sapato, tá bom? Preciso ir agora!

— Tudo bem. — Afirmou Camila. — Eu vou junto com você.

— Não! Não precisa ir junto. — Retruquei. — Eu vou e volto. Você aproveita para tomar um banho enquanto isso, com calma.

Novamente ela concordou, sem discussões e sem insistir mais. Nem parecia a Camila que eu conhecia. Seria só a boa vontade de reconquistar os bons perío­dos de namoro?

Quando cheguei em casa, peguei o telefone e liguei para ela:

— Olha, eu não vou voltar mais. Estou cansado e vou aproveitar para descansar um pouco hoje.

Ela não pareceu se incomodar:

— Descanse bastante, então, amanhã a gente se vê. Tudo bem!

Eu sabia como era difícil convencer uma mulher quando ela faz questão da presença do homem. Ou Camila não estava fazendo questão, ou...?

Mas, a bem da verdade, pouco me interessava estar muito ou pouco tempo com Camila.

“O quê me faz continuar esse relacionamento?”

Fui levando o namoro aos trancos e barrancos. Só que logo depois da Inici­ação eu passei a ter convicção muito clara de uma coisa:

— Eu não vou casar com esta mulher. Não é ela a pessoa certa! Se eu me unir desta forma à Camila estarei prejudicando a mim mesmo, meu desenvolvimento e crescimento na Irmandade. Depois... — Meu semblante sempre ficava carregado nessa altura. — Depois eu vou ter que aturar esta família e isto decididamente não dá!!!

E este era um fator que pesava muito. Camila de fato não me incomodava. Ela levava o Cristianismo no “vai-da-valsa”. E só queria me agradar. Com medo de perder o namorado, acabou domada. E passou a concordar com praticamente tudo, não reclamava das coisas mais absurdas. E com essa submissão toda ficou muito mais fácil ludibriá-la sobre aonde eu estava e o que fazia

Dona Carminha e a avó eram boas... mas estavam eternamente me contando aquelas histórias bíblicas intermináveis, e tentando arrastar-me para a Igreja, e falando de Jesus. E isso era tão insuportável! Eu até evitava dirigir muito a pala­vra para as duas. Não suportava mais escutar aquela pergunta:

— Você leu a Bíblia hoje?

Bíblia! Bíblia! Bíblia! Estava cheio daquela palavra. Eles todos me davam nojo com sua eterna “Bíblia”! Minha vontade era de dar uma respostinha à altura.

— Não li, não! Eu a uso para outros fins!!!

Mas como isso não era possível (tinha que manter uma certa diplomacia por causa de Camila), ficava só na vontade. E que vontade!

Mas suportar o “Pastorzinho”...! Sem dúvida que esse era o “xis” da ques­tão.

Naquela época ainda dava pra agüentar porque eu estava quase o tempo todo ocupado. Estudava; tinha os compromissos com a Irmandade à noite. O tempo que me sobrava era, naturalmente, para treinar Kung Fu. Restava muito pouco para Camila e quase nada para a família dela.

Camila acreditava nas mais tolas desculpas que eu pudesse dar. Os estudos e os Rituais começavam tarde mas eu não tinha carro. Dependia de Marlon — que me levava quase sempre — ou de Thalya, que também tinha carro. Por vezes eu até combinava com eles nas imediações da casa de Camila porque não era muito distante do palacete de Zórdico. A maior parte dos Rituais realmente acontecia lá. E eu, que nem sequer fazia idéia quando estava estudando no Grupo!

Quando começava a dar o horário em que deveria sair sempre acabava tendo que apelar: cansaço, sono, coisas para estudar, dor-de-cabeça, etc. ..etc. ..etc. ...! E quando o argumento estava ficando batido demais eu era obrigado a me utilizar de verdadeiras “pérolas” da invencionice. Era relativamente fácil. Em suma, eu realmente nunca tive o menor problema e Camila nunca desconfiou daquela vida dupla. Nem ela e nem ninguém da família. Isto deixava de ser coincidência, extrapolava as leis da probabilidade e do fato dela querer agradar-me.

Sem dúvida o dedo de “meu pai” estava naquela história. Só que, nessa altura, eu ainda não compreendia este contexto espiritual. Não podia supor que Abraxas ou qualquer outro se daria ao trabalho de influenciá-la de alguma for­ma. Não sabia que também tinham esse Poder. Achava que tudo era apenas fruto da minha capacidade de persuasão. Nem cheguei a questionar muito. Se o tivesse feito acharia estranho que minha namorada concordasse, em pleno fim de semana, com o fato de que eu precisasse, com urgência (inadiável), arrumar as gavetas do armário, por exemplo.

— A gente aproveita melhor uma outra hora. Eu chego mais cedo no outro sábado, tá?

Poucas vezes Camila realmente insistiu para que eu me demorasse mais. Certamente que este não era o feitio dela:

— Ah, Edu! Dorme aqui em casa hoje, vá, amanhã não tem horário. Fica aqui hoje?

— Não dá, Camila. Não tenho nem pijama aqui na sua casa.

— Mas eu te arrumo uma camiseta do meu irmão!

— Nem pensar. Eu só durmo com o meu pijama! — O mais curioso é que Camila era a primeira que deveria saber que eu não usava e nem nunca usei pijama.

Acabei até rindo-me disso mais tarde. Nada do que ela sugeria serviu. E então ela concordou.

Marlon também havia me instruído um pouco acerca dela logo de cara.

— Dá a cartada logo. — Falou ele tão logo comentei que reatara o namoro. — Você quer realmente torná-la maleável a ponto de não ser obstáculo de espécie nenhuma? É muito simples: chega nela e diz que não está mais gostando. Isso é fato, certo?

— Em parte, Marlon. Sabe como é que é, não se trata daquele amor, nada disso. Mas tenho pena e acho que um pouco eu ainda gosto dela. Não vou casar! Mas ela é boazinha, é uma moça direita... é difícil encontrar uma moça direita hoje em dia!

Em momento algum ele me incentivou a romper de vez o relacionamento.

— É importante que você continue com ela enquanto for bom para você. Mas quando você achar que acabou, que não é mesmo ela que você quer... então põe o ponto final sem esta história de ficar com pena. Não aceite imposições de família e nem de ninguém. Decida por você mesmo! Por hora, continue namorando a moça. Mas para que ela não seja um problema para você, faça como eu disse. Diga que seu amor está acabando, que você está com muita dúvida a respeito do relacionamento, dúvidas em relação a ela, por aí adiante. Fala que você vai dar uma última chance para ela te reconquistar, e caso isso não ocorra é “tchau” mesmo! Afinal, se ela tentou até se matar por sua causa...! Te garanto que ela será super compreensiva!

E assim foi mesmo. Ela era muito compreensiva em todos os aspectos. Como Marlon havia dito. E ele também me havia feito entender que era muito bom ter duas mulheres. Ou três. Ou quantas eu desejasse.

— Salomão teve setecentas. — Disse-me Marlon com ar cínico. — Vejam só, o Rei de Israel, o escolhido de Deus. Naturalmente que ele teve que deixar de lado um pouco a lei de Deus, e fez o que tinha vontade. Se teve setecentas é porque o negócio devia ser bom pra caramba! A verdade é que às vezes o homem precisa de mais de uma mulher para se completar. — Ele sorria com malícia no olhar. — Tem mulher que é “boazinha” como você mesmo comentou, mas que para outras coisas não é tão boa assim. Tem outras que são muito carinhosas, meigas... mas também rancorosas. Outras são inteligentes, boas para longas conversas. Por outro lado, independentes demais. Por aí vai! Então uma compensa a outra. A deficiência aqui é suprida pela eficiência ali. O bom mesmo é ter várias. Você aproveita o melhor de cada uma!

Incentivada a poligamia, eu fiquei pensando. Marlon tinha dourado um pou­co as coisas, mas o fato é que todo homem pensava assim mesmo. Só que, apesar disso, eu pensava diferente. Não estava com vontade de fazer coleção de namora­das. Por ora ficava com Camila.

E mesmo porque havia Thalya nessa história toda. Novamente esbarrava nesse pequeno e irrevogável “detalhe”. Mas eu podia estar com ela sempre que assim o quisesse.

Ela era imprevisível e combinava muito com o meu próprio jeito de ser. Intelectualmente falando eu podia manter com ela os diálogos que seriam impos­síveis de ter com Camila. Thalya era linda. Não dava para negar esse fato. E Camila, bem, ela era boazinha, direita, submissa. Bem diferente. De certa forma uma completava mesmo a outra, como dissera Marlon. Pelo sim, pelo não... eu ia deixar como estava.

Thalya compreendia perfeitamente que tipo de aliança tínhamos um com o outro. Era uma aliança de Poder... não um “casamento”!

— A união que nós temos, — Disse ela certa vez. — não implica em “respeito”, esse respeito que a Igreja muito ridiculamente impõe. Nosso elo está acima des­tas efemeridades. Eu posso ter tantos homens quantos eu queira, e você a mesma coisa com as mulheres. Mas ainda assim eu e você somos — e sempre seremos — como um só. Vai muito além de um coito! Lembra-se? O laço de sangue nunca quebra! Isso quer dizer que tem tempo certo para tudo. Por hora se você acha que deve ficar com essa fulaninha, que fique. Se quiser ficar comigo, que fique tam­bém.

Era fato. E ficamos assim combinados. Eu namoraria Camila quanto quises­se e Thalya teria “tantos homens quantos desejasse”, mas fora do contexto da Irmandade. Ficou acertado que, lá dentro, não teríamos “outras” ou “outros”. Pelo menos por enquanto. E não era uma questão moralista, era apenas uma espécie de “pacto” que levava mais em consideração a amizade e o carinho que tínhamos um pelo outro do que qualquer outra coisa.

Fosse como fosse, do lado de fora ela aproveitava do modo dela e eu do meu. Thalya era como o tempo: podia-se “prever”, mas jamais determinar. E eu não podia estar na dependência de alguém assim.

A verdade era que não havia necessidade de escolher... então deixei rolar! Mas acho que se tivesse mesmo que ter escolhido... difícil dizer... qual delas seria? Tal vez... minha “alma gêmea”...?

 

Camila tinha uma vizinha que volta e meia estava lá na casa dela. Seu nome era Tamara. Tanto ela quanto a família eram hippies. O passatempo de Tamara era fazer aqueles artesanatos que se vendem em feirinhas de hippies. Os irmãos dela — bem mais cabeludos do que eu — eram músicos e tocavam “na noite”, em barzinhos. A mãe era professora de piano e o pai — imagine! — um maestro!

A meu ver, eram um bando de loucos! Da casa da Camila podia-se escutar aquele piano martelando o dia inteiro, um entra e sai de alunos da manhã à noite, e guitarras e baterias nos intervalos.

E como se não bastasse tanta esquisitice, como todo bando de malucos, eles eram todos ateus. Eu me divertia com aquela família, e especialmente com Tamara que volta e meia aparecia em casa de Camila. Sempre com suas roupas indianas e seus “papos filosóficos” totalmente sem pé nem cabeça! Não sei como aquela moça podia acreditar em tanta besteira!

O detalhe: naturalmente que o Pastorzinho queria evangelizá-la. E, de que­bra, trazer toda a família dela “para Cristo”.

Depois que fui Iniciado, minha bronca com o Sérgio piorou bastante. Eu não suportava nem ouvir a voz irritante dele e estava louco para confrontá-lo um pouco. Mais ou menos uns dois meses após o Rito de Iniciação eu estava num domingo à tarde pronto para tomar um chá com Camila. E Tamara estava por lá. O Pastorzinho borboleteava aqui e ali, e não levou muito tempo para que ele e Tamara acabassem desembocando numa discussão acerca do Cristianismo.

Vibrei! Eu não via a hora de ter uma deixa qualquer. Afinal, no meu entender eu tinha argumentos de sobra para fazer o Sérgio engolir a sua doutrina vã. Meu problema não era a Tamara e as tolices nas quais acreditava. Eu queria era pegar o Pastor de jeito! Queria vê-lo engolir toda a sua mediocridade e hipocrisia, aquele aproveitador! Minha antipatia parece que tinha se multiplicado tremendamente. E como eu ansiava pelo gostinho de deixá-lo numa situação de constrangimento público!

“Mais dia, menos dia eu vou acabar tendo uma bela oportunidade e vou entupir esses Cristãozinhos de meia tigela!”

Tratei de esperar. E demorou! Estranhamente, muito estranhamente, naque­le último mês a mãe de Camila não me pegou para contar nenhuma história bíbli­ca: nada de Davi, Abraão ou Rute. A avó... nem me perguntou se eu havia lido a Bíblia, ou se ia acompanhá-los à Igreja. Nada acontecia! E eu tinha que me con­tentar apenas em desejar, ironicamente, uma boa “jornada de trabalho” ao Sér­gio. Quando ele saía para pregar eu não perdia a oportunidade:

— Bom serviço!

— Mas isso não é serviço, já te disse.

— Lógico que é. Você ganha pra isso! — Eu era cínico.

Logo depois que comecei a freqüentar a Escola Preparatória com Marlon as coisas mudaram um pouco de figura, sem que eu percebesse. Ir à Igreja, só se fosse para assistir ao “show”! O “show” que o Pastor dava, o “show” da Congregação. E para aprontar pequenas maldades.

Era tudo muito engraçado. Eu morria de dar risada diante da cara vermelha e suada do Pastor titular! E via as pessoas naquele transe coletivo, erguendo as mãos, aplaudindo, chorando. Faziam cada cara... eu não conseguia me conter. E ria, ria, ria compulsivamente!

No fim aquilo acabava contagiando a Camila, e ela entrava na brincadeira:

— Olha! Olha só a cara daquela mulher gorda ali! — Eu a cutucava, apontan­do. — Parece que ela está fazendo cocô.

Eu não tinha o mínimo de respeito por nada e por ninguém. Olhares tortos nem de longe surtiam o menor efeito. Eu devolvia um ar de “não tô nem aí” e continuava com a mesma falta de educação. Afinal, ninguém tinha nada que ver com isso, eu estava falando com Camila, não tinha culpa se escapava alguma coisinha aqui e ali.

Tudo o que eu pudesse fazer para afrontar as pessoas eu fazia. Toda e qual­quer situação de constrangimento que eu pudesse criar... eu criava. Só pensava em fazer pequenas maldades todo o tempo que estava na Igreja. Acostumado ao “senta-levanta” de sempre, aprontava também:

— Levanta pra louvar ao Senhor! Agora ajoelha! Agora senta! Agora levanta para orar! Vire para o seu irmão e diga...

Eu resolvia que ia ao banheiro e, uma vez erguido o povo, colocava tachinhas nos bancos. Longe de onde eu estava sentado, é claro! Acho que volta e meia devia acertar alguém. Pensar naquilo — alguém pulando depois de espetar o traseiro — me enchia de um estranho e sádico prazer!

Outras vezes arremessava chicletes mascados nas cabeleiras mais longas. De preferência enquanto todos estavam de olhinhos fechados para “orar ao Se­nhor”. No banheiro escrevia palavrões nas portas, xingava os Pastores, achincalhava a Bíblia.

Assim, o Culto terminava por ser o momento mais hilariante da semana.

Mas isso... antes! Antes da Iniciação... antes da aliança de sangue... antes do meu comprometimento com Abraxas e a Irmandade.

Ir à Igreja agora seria inconcebível, nem me passava pela cabeça. Era um programa reles demais.

“Ainda que seja o mais engraçado do mundo, para mim... basta!!!”

Volta e meia Camila também deixava de ir a Igreja para ficar comigo, aliás a família toda não era muito assídua! Somente o “Pastorzinho” ia regularmente porque, afinal de contas, se não fosse também não comia. Salário “suado” aque­le!!!

As coisas estavam neste pé quando naquela tarde de domingo, de repente, a Tamara me veio com esta:

— Escuta, Sérgio. — Principiou ela ainda bebendo os últimos goles de chá mate. — Me desculpe, você é Pastor, mas deixa eu te perguntar uma coisa...

O Pastorzinho limpou as mãos no guardanapo, aguardando o que viria:

— Não é por nada, mas você acredita mesmo nesta história de que Maria recebeu um filho do Espírito Santo?! — Perguntou Tamara naquele jeito desleixado de hippie. — Pra mim, o José levou um belo par de chifres e ela quis colocar a culpa no anjo, né? Porque, imagina só, vê se isto tem cabimento! E o José engo­liu essa.

— Não, não! — Começou o Sérgio. — Isto está na Bíblia e é uma coisa muito séria. Não convém brincar com estas coisas.

Eu já acendi os olhos: “Opa!”

Ele continuou falando que a concepção de Jesus havia sido assim mesmo, e blá-blá-blá, porque a Bíblia dizia que era assim, então era assim. Encostado no batente da porta eu simplesmente interrompi a explanação de sopetão:

— E você acredita em tudo que está escrito na Bíblia? — Perguntei com certo mau-modo e à queima-roupa, os olhos chispando na direção dele.

“Que oportunidade esta menina acaba de me criar!”, pensei exultando.

— Sim, acredito! — Respondeu o Pastor com ar sério, balançando a cabeça repetidas vezes.

Hoje reconheço que a pergunta que fiz era básica. Mas ela não soube res­ponder!

— Pois é. Você deve estar lembrado então que Deus criou o tal Adão, né? E pelo que parece a mulher não estava nem nos propósitos da Criação, pois ela só apareceu depois. Deve ter sido porque o coitado do Adão ficou lá no jardim olhando os cavalos... os pássaros... os elefantes... todos se divertindo, tendo seus prazerezinhos, não é? E ficou encafifado, pensando: “Bom, o que será que tem parecido comigo por aqui?”. E Deus colocou a mulher lá pra ele. E daí nasce o Caim e o Abel. Mas me diga... se só havia esta gente por lá, como é — ou melhor, de onde é — que saíram todas as outras pessoas? Só se Caim teve relação com a mãe, né? Explica aí, vai! O que que aconteceu?

Meu tom de falar, meu semblante, meu olhar, tudo expressava um ar de descaso agressivo e debochado.

— Bom... — Começou ele, enrolando os dedos no guardanapo, pressentindo no ar um clima pouco amistoso. — A Bíblia não é muito clara a este respeito, mas parece que eles tinham uma irmã...

Eu nem esperei ele terminar a frase. Ribombei logo:

— Irmã!!? — Até para mim aquela era nova! — Mas então houve relação entre irmãos?! Tudo bem, eu entendo que o negócio devia estar feio mesmo se não havia ninguém para o Caim e o Abel darem umas bimbadinhas! Se Deus “gene­rosamente” não lhes deu ninguém... como é que ficavam os pobres coitados? Ou será que Deus criou uma mulher do nada para eles também? Que Deus maluco! Fala mais tarde que incesto é pecado, mas toda a Humanidade principiou como sendo fruto de um tremendo pecado de incesto??? Só podia dar no que deu, né? Sodoma, Gomorra, perdição... só vindo o dilúvio para acabar tudo de vez. — Eu nem esperava resposta. Emendava logo uma idéia na outra. — Então, o pecado só pode ser relativo mesmo! A mesma coisa numa hora é pecado, na outra não é. Não é assim? Para formar a Humanidade valia incesto, mas depois não valia mais. Legal isso aí! Até o coitado do Canaã levou na cabeça com esta do pai dele dar umas e outras em família, né? Gozado é que quem pecou foi o pai... mas quem leva a maldição é o filho. Tudo a ver!

Ele parecia um tanto confuso. Eu continuei, pois acho que ele nem pescou o lance de Canaã! Nem sabia do que eu estava falando.

— Quer ver mais uma? Uma mais fácil, tá? De lambuja! Canaã é muito difí­cil! Em uma época é pecado ter mais de uma mulher, em outra não é! Salomão tinha setecentas mulheres e trezentas concubinas. Depois, no Novo Testamento, faz-se menção ao homem ser “marido de uma só mulher”. Mas este que teve mil mulheres foi “somente” o rei de Israel e o homem mais sábio do mundo?!!!? Este Deus aí da Bíblia é completamente louco.

Aquilo foi demais para ele e para os presentes.

— Não, senhor!! — Exclamou o Sérgio um tanto ou quanto exaltado ao ver tão ostensivamente ofendidos os seus preceitos. — Deus é o mesmo ontem, hoje e sempre!

— Ah, pois é mesmo? — Respondi com pouco caso. — Então me prova isto, me prova com base nesta Bíblia mais confusa que o próprio Deus. Quer ver mais um exemplo das loucuras de Deus, só pra você se conformar? Os profetas de Deus... aqueles que deveriam pregar ao povo de Israel e ser exemplos vivos do próprio Deus... por exemplo, Eliseu. Pediu a “porção dobrada” da unção de Elias. Nem bem recebeu, o que ele faz com sua “porção dobrada”? Causa a morte de quarenta e dois meninos, amaldiçoando-os em nome de Deus. Foram mortos por duas ursas... consegue imaginar a cena? A Bíblia diz que eles foram despedaça­dos!. Sabe como é que é, né? Vísceras pulando para todos os lados, cabeças ro­lando...! E tudo isso porque, brincando, chamaram o profeta de “carequinha”.

Despejei mais alguns argumentos tirados das minhas aulas e vomitei todo o meu desprezo diante deles. Tamara limitava-se a alternar o olhar entre mim e o Sérgio, muda diante da discussão que ameaçava pegar fogo. A expressão do ros­to do Pastorzinho merecia uma foto!

— Prova! — Retruquei novamente. — Porque eu não estou vendo lógica ne­nhuma nisso tudo! Ontem Deus pensava de um jeito, hoje de outro, e amanhã... vá saber o que passa na cabeça Dele! — Havia desdém e sarcasmo nas minhas pala­vras. — Hoje, a Igreja se esfola para viver debaixo dos preceitos que considera ser revelação da “vontade” de Deus. Mas vá saber o que Ele vai inventar amanhã para seus “adoráveis filhinhos”! Quer mais um exemplo? Antes Deus mandava o seu Povo escolhido destruir todos os povos diferentes. Morriam mulheres, crianças, ao fio da espada, uma chacina em nome de Deus... hoje, nada de matar ninguém: é pecado! Não parece mudança demais? E, amanhã como é que fica? Será que o que você crê hoje... não vai virar “pecado” amanhã?

Não sei o que houve, se deu um branco na cabeça dele ou se a expressão do meu rosto simplesmente o fez querer deixar por menos. Mas, o fato é que ficou evidente que ele estava enrolado e confuso. Não precisava mais nada. Aquelas idéias acerca da relatividade do pecado e a mutabilidade do Criador, ainda que apenas esboçadas, fizeram com que ele se atrapalhasse todo!

Mérito de meu treinamento. Estava satisfeito! Tinha lavado a alma. Acaba­do com ele em poucos minutos, na frente de todos. Ele e o seu Cristianismo de fachada.

— Bom... — O Pastorzinho ainda tentou esboçar uma reação. O guardanapo jazia todo amarfanhado sobre a mesa. — Você até tem razão no que colocou mas certamente há uma explicação para isso, pois Deus de fato é o mesmo. Sempre. Ontem, hoje e sempre. Deus é fiel e sua Palavra...

Ele não desistia. Ataquei por outro ponto:

— Ah, Deus é fiel?!! — Dei risada. — Me mostra a fidelidade Dele! O que aconteceu com os discípulos de Jesus, os que deram sangue, suor e lágrimas pela divulgação do Evangelho? — Eu quase gritei ao responder, a raiva transparecendo em meu semblante. — Morreram todos de forma horrível! Pedro foi crucificado de ponta cabeça, vários foram decapitados, Estevão foi apedrejado, centenas... crucificados... queimados... devorados por leões... torturados! Aqueles de quem Deus se orgulhava. Aqueles a quem foi prometida “tão grande salva­ção”, os escolhidos a quem “nada poderia causar dano”. Cujas casas estariam “livres de pragas”. A quem se diz, conforme o salmo 91: “Mil cairão ao teu lado, dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido...”. Mas simplesmente foram entregues nas mãos do inimigo.

Houve um momento de silêncio. Concluí:

— Bela fidelidade!... Esta aí eu dispenso! Se você crê na Bíblia, crê que ela é cem por cento Verdade, como explica isto? Ela está negando a Si mesma! Você vai ver em sua própria vida no que esta fidelidade vai dar...

Penso hoje que alguém mais compromissado com Deus teria uma boa res­posta para me dar. Eu não era ainda um “expert” em argumentação. Podia ser convincente com alguém menos informado. Mas pelo visto ele estava meio fraquinho em conhecimento de contextos bíblicos.

— Bem... eu nunca tinha pensado nisso que você disse... — Resmungou ele meio atordoado.

Fui implacável:

— Nunca tinha pensado? Mas então você acredita em algo que nem entende? Não sabe dar boas razões para justificar a sua fé? As pessoas falam e você sim­plesmente acredita? Quem te garante que a Bíblia não foi manipulada pelos ho­mens e não passa de uma fajutice?

Foi um vexame total. Ele foi levantando da mesa, resmungando baixo: —Bom...

— Pode ser que a Bíblia tenha sido adulterada! — Continuei. — A Igreja Cató­lica, com todo o seu poderio, mexeu em tanta coisa e mudou tanta coisa. E as pessoas que se dizem donas-da-verdade e que acreditam na Bíblia como sendo um Absoluto cometeram atrocidades. E tudo em nome de um Deus de Amor. E cometeram atrocidades devido às diferentes interpretações do mesmo assunto, do mesmo texto, não?! Porque se Deus é um só, e não muda, você há de concor­dar que a Verdade deveria ser uma só! Como você explica toda esta divergência de interpretações? E — mais ainda — a infinidade de seitas derivadas da Bíblia? Todas crendo terem a interpretação certa! Jesus veio e disse “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. Se Ele é o único Caminho, a Verdade também deveria ser uma só. Como então existe este monte de lixo Cristão, um querendo ser mais do que o outro, brigando entre si, discutindo? Cadê o Absoluto? Tudo é relativo! A bondade de Deus é relativa, a Verdade de Deus é relativa... o pecado é relativo! Tudo vai da interpretação!

Ele passou a mão sobre os cabelos e procurou interromper a discussão:

— Bom, talvez fosse mais interessante você marcar um horário com o Pastor Sines. Ele poderá esclarecer todas as suas dúvidas. Ele está acima de mim, co­nhece bastante.

Nem sei que fim deu na Tamara depois disso. Eu só tinha olhos para o Pastorzinho baratinado.

Camila cochichou-me depois, meio que me recriminando:

Mas, pôxa vida! Você não consegue mesmo fechar esta matraca?

Eu não respondi, mas pensei comigo: “Eles não têm como refutar isto!” E o episódio terminou assim, com todo mundo “deixando passar”. Nunca havia uma contestação mais direta. Nunca houve. Aliás era assim em todos os aspectos, não só no âmbito espiritual. O problema maior deles é que não havia realmente como me criticar. Ninguém tinha moral para me falar nada. Ninguém tinha essa autoridade.

O pai dela às vezes me perguntava sutilmente pelo casamento.

— E aí? Vocês vão ou não vão casar?

— Casar? Com dezoito anos?!

— Tudo bem, é meio cedo mesmo, mas também não vejo vocês fazendo pla­nos para o futuro! Mais de dois anos namorando, a Camila já está com vinte...

— E daí? Casar pra quê? Eu caso quando tiver condições, não vou ficar as­sim que nem você!

Ele tinha que ficar quieto. Seu Augusto sabia muito bem que vivia de favor, estava sempre endividado e não supria as necessidades da família. Uma vez a mãe de Camila teve que mandar arrancar um dente porque não tinha dinheiro para o tratamento. E eu, embora não casado com Camila, era capaz de suprir todas as necessidades dela, em todos os sentidos.

— Vou casar quando puder sustentar a minha casa e minha família numa boa, não vou ficar morando de favor por aí, dependendo dos outros. Isso é bíblico, não é mesmo? “Deixará o homem a seu pai e sua mãe...” e blá, blá, blá, não é assim?!! Né?

E por aí afora.

Sempre que procuravam me dar uma lição de moral eu acabava revidando insolentemente com as armas que eles próprios queriam usar contra mim. Não adiantava vir com “ar caxias” recitando versículos que nem eles cumpriam. Ti­nham mais é que calar a boca e deixar-me em paz! Antigamente eu escutava, por educação. Mas agora até a educação nesse sentido eu havia deixado de lado.

— Vai ser muito fácil desviar a Camila. Ela não tem compromisso nenhum, a base bíblica dela é super frágil. — Normalmente eu derrubava suas argumenta­ções bíblicas com duas ou três rebatidas, nas coisas mais elementares. Ela não tinha firmeza da sua crença e eu, pelo meu lado, estava absolutamente convicto de estar no caminho certo.

A doutrina da Irmandade era muito superior à do Cristianismo.

— Gostaria que Camila pudesse encontrar o mesmo que eu encontrei. Não deixa de ser uma maneira de retribuir o que ela já fez por mim e que, eu sabia, tinha sido de coração. Coitada... o que vai ser dela? — E acabava me condoendo. — Tão dependente de mim, tão limitada... e ainda por cima... Cristã! Acredita nesse besteirol que falam nas Igrejas!

E tudo que ela me dizia sobre a Igreja eu contestava.

— Mas você é cabeça-dura, Eduardo! Você não entende!!! — Ela brigava co­migo. — Está escrito!

— E daí que está escrito? Prova que é assim. Me convença de uma maneira um pouco mais inteligente do que dizer “está escrito”!

Cá comigo eu achava que não seria difícil influenciá-la. Camila não tinha vida de oração, não lia a Bíblia e ia uma vez por semana à Igreja se tivesse carona. Não queria mais saber de ir de ônibus.

— Eu vou convencê-la! E vou trazê-la para a Irmandade! Eu só gostaria que ela fosse bem cuidada. — Refletia. — Na Igreja as pessoas não são cuidadas. Na Irmandade, sim, somos família de fato, sem este cheiro de hipocrisia...

Eu era muito ingênuo para ter idéias tão loucas a respeito de Camila na Ir­mandade! Ela nunca seria aceita pelo Satanismo. Jamais entraria lá. Camila era fraca. Dependente. Sem iniciativa. Sem garra. Nunca saberia pensar daquela ma­neira.

E a Irmandade era a cúpula... o resultado de uma seleção natural... o lugar dos fortes. E ser forte significava muita coisa. Uma delas era poder sobrepujar — sem olhar para trás — a maior parte dos valores impostos pela Sociedade.

 

Nesta época eu continuava treinando Kung Fu, só que agora vinha ganhan­do bem na ADINK. Tinha um salário invejável. E fazendo o que eu gostava!

Tinha o meu grau de Professor em Wing Chun. E logo depois disso passei a ser também instrutor na W. Wei, ensinando Ton Long como era do meu interesse. Eu me aperfeiçoava com rapidez no novo estilo. Estava no final do quarto está­gio e tinha sido aprovado com notas “dez” nos estágios anteriores. Por indicação dos meus superiores, e após minha aprovação como instrutor, passei a ter aulas somente com o principal Mestre da Academia, o Liu. Era também ele quem coor­denava os exames. Treinando sob a sua supervisão eu iria progredir ainda mais rápido. Só os melhores tinham aulas com ele.

Os chineses são muito criteriosos em suas avaliações. Para arrancar deles um “dez”... não é fácil! Do Mestre Liu em especial. Ele até dava notas altas se houvesse merecimento: 9.6; 9.7; até mesmo um 9.8 eu vi acontecer. Mas eu fui o único na Academia a conquistar todas as notas “10.0” nos meus exames, inclusi­ve em técnicas específicas.

Isso sem dúvida foi a principal porta de acesso ao seleto e reduzidíssimo grupo de alunos de Mestre Liu. Os treinos aconteciam no Bairro da Liberdade. Isto me estimulava muito, a maior parte dos alunos era mais adiantada do que eu. Isso significava novos referenciais e metas a serem atingidas. Como sempre eu queria mais, mais, mais! Ser o segundo nunca seria o suficiente. Nem que eu me matasse de treinar, mas enquanto não superasse — ou, pelo menos me equiparasse — aos melhores, não seria o suficiente. Nisto eu era ambicioso, reconheço. E me enfiei de cabeça no novo desafio. Eu adorava o Ton Long!

 

Começou aos poucos e, de início, não o notei. Mas após a Iniciação paulati­namente algumas coisas começaram a ficar diferentes. Reparei que meu vigor tinha aumentado. Em todos os sentidos. Não sei se coincidência ou não, mas eu me contentava com poucas horas de sono e mesmo assim estava sempre bem disposto. Não sabia mais o que era ficar doente, nem resfriado eu tinha mais. E quanto ao exercício físico, parece que realmente a minha resistência aumentou muito, eu não me cansava nem diante dos mais extenuantes treinos. Foi uma mudança muito bem vinda.

Eu já tinha uma habilidade nata para o esporte, mas agora eu vivenciava na prática que esta capacidade podia de fato ser potencializada. Como haviam me ensinado na Irmandade.

Os treinos específicos com o Mestre Liu eram muito diferentes dos dados na Academia para todos os alunos. Durava três horas e o enfoque era principalmente na parte técnica, basicamente nas lutas e no manejo de armas.

Aprendi muito ali, debaixo de uma disciplina muitíssimo rigorosa, “marci­al” mesmo. Meu desenvolvimento deu um salto gigantesco nessa época. Logo comecei o meu quinto estágio. Mas isso aconteceu somente cerca de cinco ou seis meses depois que fui iniciado na Irmandade.

 

O primeiro fato em relação ao Kung Fu que me marcou muito após a minha Iniciação foi mais ou menos nesse período de minha vida. Eu sempre tivera um pouco de dificuldade no domínio das técnicas de “Chikow”. Era uma cobrança meio minha, não me sentia plenamente satisfeito com o meu desempenho. Na verdade, eu não tinha me interessado muito pela técnica logo de cara. Meu pri­meiro Mestre tinha “ocidentalizado” demais a arte e acabou dando muito pouca ênfase ao “Chikow”. E a primeira impressão é a que fica. O contato só começou a ser realmente profundo depois do terceiro estágio do Ton Long.

Os estilos internos e externos do Kung Fu, mais de 360, tiveram sua essên­cia produzida numa raiz indiana. O Kung Fu não nasceu na China, surgiu antes na índia de uma técnica de autodefesa chamada Vadjaramushi. Um monge indi­ano, Bodhidarma, refugiou-se no Templo chinês Shaolin após períodos de muita perseguição na Índia. Ali ensinou as técnicas do Vadjaramushi que, somadas aos exercícios medicinais praticados pelos monges de Shaolin, deram origem às for­mas mais primitivas do Kung Fu e também à linha Zen-Budista.

Mas o que vem a ser o “Chikow”?

O doutrina Kung Fu leva em consideração a existência de três formas de energia. A energia “li”, que é definida como sendo a nossa força física, a força muscular propriamente dita, e que gera a capacidade de realizar qualquer traba­lho. A energia “wei” é aquela que nós, aqui no Ocidente, entendemos como aura. É basicamente o resultado dos processos bioquímicos e biofísicos do organismo.

E a energia “chi”. Esta última é a chamada “energia adormecida” e acredita-se que ela esteja concentrada no plexo solar, quatro dedos abaixo do umbigo. O seu símbolo é o de uma serpente enrolada, que também é muito difundido na Yoga e no Tantra Yoga.

A serpente é uma figura muito respeitada na China, e representa Poder. Ali­ás, o Hu Lai Shien, ou estilo do “Punho da Serpente Sagrada”, é um dos mais temidos na China. A “serpente adormecida”, ou “chi”, é a forma mais poderosa de energia do ser humano.

Compreendido isto teoricamente é necessário aprender a liberá-la. Caso con­trário ela ficará sempre fora de uso. Realmente como uma serpente enrolada, adormecida, inerte. Para isso são as técnicas de “Chikow”. “Chi” quer dizer ener­gia; “kow” é movimento. Literalmente falando, “Chikow” é “energia em movi­mento”. Essas técnicas possibilitam fazer circular e, por fim, canalizar a energia “chi”.

Para que o “chi” circule é necessário que os chakras estejam desimpedidos. O que eu aprendi no Kung Fu acerca deles, mesmo antes de conhecer Marlon, foi muito semelhante ao que mais tarde aprenderia na Escola. Mas até então eu não tinha visto com muito interesse os resultados imediatos da técnica, como quebrar tábuas e tijolos.

“Para quê isso?!”, eu me indagava, mais interessado nas armas e na arte em si do que naquela demonstração de força bruta.

Mas agora entendia melhor os conceitos relacionados aos chakras, ou me­lhor, aos Portais. E passei a ter uma expectativa totalmente diferente. A Irmanda­de me abrira a visão. E o que antes era pura demonstração de brutalidade ganhou um novo colorido.

Resolvi me dedicar bem mais seriamente ao “Chikow”.

Em primeiro lugar, antes de pensar em fazer circular o “chi” com intuito de canalizá-lo os chakras têm que estar liberados. Para que isso aconteça é preciso seguir corretamente algumas normas disciplinares. A primeira delas é a dieta. Os orientais acreditam que uma dieta composta basicamente de vegetais, ervas, fo­lhas e raízes é indispensável. A carne — especialmente a vermelha — obstrui os chakras e impede a plena circulação de energia. Nos Templos orientais antigos, como o Templo Shaolin, e também nos templos zen-budistas, a alimentação con­tinha muito arroz e vegetais, mas quase nunca carne.

Dessa forma a dieta era condição indispensável caso quiséssemos realmente nos aprimorar na técnica de “Chikow”. A explicação até que tem muita lógica. Se nos alimentamos com carne o processo digestivo é moroso e pode levar até quase doze horas. Pelo menos é o que diz a Medicina Tradicional Chinesa. Se não ingerirmos carne o tempo de digestão diminui tremendamente. Cai, por exemplo, para duas ou três horas. O gasto energético é, portanto, muito menor. Se o indiví­duo se alimenta de forma errada três vezes por dia ele passa vinte e quatro horas sobrecarregando o organismo e desperdiçando energia. Ao longo do tempo o gasto desnecessário de energia e o acúmulo de energia negativa causa um desgas­te do organismo como um todo levando à fadiga, envelhecimento precoce e doen­ças.

O segundo item para aprimorar o “Chikow” tem a ver com a parte sexual. Experiências sexuais individuais não são permitidas. Estas levam à perda inútil de grande quantidade de energia. A relação só é permitida se for “homem-mulher” porque então está havendo troca de energia, e não desperdício. O que se perde é recebido através do parceiro. Portanto não há gasto inútil.

Igualmente, se o homem quiser acumular energia pode simplesmente evitar a consumação do ato. É um conceito fácil de entender: toda a energia produzida para ser utilizada no clímax da relação sexual ficaria “retida”, “acumulada”, “guar­dada”. Funciona mais ou menos como se fosse rodado um dínamo ou carregada uma bateria com alta força. Quando liberada, esta energia sai como uma explo­são. Esta forma de “carregar” o organismo com energia através do estímulo sexual não consumado é muito utilizada no Tantra Yoga, principalmente.

Estas eram as principais recomendações: o acúmulo de energia, a redução dos gastos, e a dieta capaz de favorecer o trânsito energético através dos chakras.

Entenda-se que nada disso realmente “abre” os chakras, apenas propicia as condições mais favoráveis possíveis. O que realmente “abre” o chakra é a técni­ca específica orientada e realizada por meio do “Chikow”. Basicamente envolve três aspectos: a respiração, a concentração e a meditação.

A respiração é somente abdominal. Aprende-se a controlá-la desta forma com exercícios. Deitados de costas no solo, com uma vareta de bambu apoiada na região abdominal, procura-se mover apenas a vareta, e não os pulmões.

Para sentir o fluxo de energia leva bastante tempo. Não é nada que se consi­ga na primeira ou na segunda vez, ou em poucas aulas. A técnica básica se faz através dos exercícios de meditação e concentração. São vários os estágios a serem percorridos. Aos poucos aprendemos a imaginar e sentir o fluxo de energia por todo o corpo. As posturas usadas são diversas, mas basicamente a posição do cavalo fechado (kinhomah — em chinês) e a postura da árvore, muito utilizada também no Tai-chi-chuan.

Imagina-se uma fonte de água pura, cristalina, jorrando a partir do plexo solar e que irá percorrer todos os pontos chakras do corpo. Esta água, sempre jorrando, sobe pelo centro do corpo atravessando o coração, chega ao pescoço e começa a entrar pelo braço direito, flui e sai pela palma da mão, que está voltada para cima. É “jogada” e entra pela palma da mão esquerda. Continua o seu cami­nho: sobe pelo braço, pelo pescoço, volta para o outro braço, sai de novo, entra pelo meio das sobrancelhas, sobe pela fronte, desce pela nuca. Sempre fluindo, em movimentos, rodando, circulando.

A grosso modo é assim que funciona. As sensações experimentadas são as mais diferentes: começa com um formigamento principalmente nas mãos, logo nos primeiros estágios. Depois a temperatura do corpo sofre variações. Ora, sen­te-se frio; outras vezes, muito calor, a ponto de suar e ficar todo enrubescido. Estes “sintomas” eram uma prova bastante palpável de que aquilo tudo não era uma mera alucinação. O Mestre não sugeria as sensações. Elas apenas aconteci­am de forma semelhante com todos.

É óbvio que o “Chikow” só começa a ser ensinado a partir de um certo nível dentro da caminhada no Kung Fu. O conceito oriental da coisa é que, em primei­ro lugar, temos que moldar o “li”, ou seja, a força física, o exterior. Apenas bem mais tarde é possível iniciar a moldagem do “chi”.

Não deixava de ser um “arremedo” da mesma doutrina que iria aprender no Satanismo: o desenvolvimento do “Chikow” e o pleno domínio do “chi” leva a atingir o ápice de nosso potencial. Desenvolve a habilidade até o patamar máxi­mo da capacidade humana. Logicamente o bom desempenho abrange uma série de “desbloqueios sociais”, por assim dizer. É preciso reformular conceitos tais como “medo”, “isto ou aquilo machuca”, “não é possível”, e assim por diante.

Da mesma forma que aprenderia na Irmandade a despir-me de velhas doutri­nas para introjetar outras, no Kung Fu este ensinamento corria paralelo e aprego­ava a mesma coisa. Eu conhecia, sim, conhecia muito bem o ditado chinês que Zórdico utilizara numa das suas primeiras aulas: “Se queres provar meu chá tens antes que esvaziar tua xícara”.

Não deixava de ser também um ensinamento que colocava o homem em posição introspectiva e centralizado nele mesmo: “Eu posso, eu faço”. De fato. O homem faz. Pois ele é energia e pode dominar a energia que existe nele. Pelo menos, assim eu aprendi. Naturalmente que no Kung Fu ninguém falou em Enti­dades de dimensões paralelas para aumentar ainda mais a minha capacidade. Isto eu tinha o privilégio de conhecer porque o Oculto me fora mais descortinado do que a eles, meus Mestres de Artes Marciais.

Observar que os conceitos orientais ensinados tinham a ver — ainda que de forma um pouco mais rudimentar — com o que aprendi na Irmandade, só me fizeram confirmar ainda mais aquilo como absoluta verdade. E me entregar de corpo e alma.

***

Nos finais de semana às vezes eu treinava um pouco de “Chikow” num ter­reno baldio perto de casa. Era perfeito em todos os aspectos, um lugar isolado, amplo, sem olhares curiosos para atrapalhar. E o melhor: havia material excelen­te e totalmente disponível. Sempre grande quantidade de madeira boa e forte, ideal para ser usada. Nem sempre era muito fácil conseguir coisas assim para quebrar. Pelo simples fato de que “coisas boas” são para guardar e não para quebrar.

Era um domingo de manhã. Eu estava ali perto com dois amigos, vizinhos da própria rua. Conversando sobre nada em especial acabamos por passar de­fronte ao muro que separava o terreno da calçada. E eu comentei só por comen­tar:

— Às vezes eu treino aí dentro. — Falei.

— Sério, é? Mas por onde você passa para entrar aí? — Perguntou o Hamil­ton.

— Dá pra pular o muro ali por trás, na esquina.

— Legal! Vamos dar uma olhadinha? — Falou o Régis já querendo dar a volta pelo outro lado.

— Vamos! Vamos entrar lá! — Concordou Hamilton.

Pulamos fácil o muro. O terreno tinha chão de terra batida e plana, alguns tufos de mato aqui e ali, uma pilha de pedregulhos e duas de areia. Uns sacos de lixo estavam amontoados num canto. Um gatinho amarelo com manchas cinzen­tas que estava estirado no solzinho cálido azulou.

— Quanta coisa tem aqui, heim?! — Fez o Hamilton olhando para os meus preciosos pedaços de madeira.

Xeretamos um pouquinho por lá, até que o Régis falou: — E você treina direto aqui?

— Direto, não, que não tenho muito tempo sobrando. Mas às vezes dá pra vir pra cá, sim! Venho só pra quebrar umas tábuas, sabe? Aqui tem bastante!

— Ah, qualé? Deixa disso! Não vem com onda de dizer que você quebra essas tábuas! — Caçoou numa boa o Hamilton.

— Quebro, lógico que quebro. Através do “Chikow”! O Régis já foi mais prático:

— Quebra, é? Pois então... vamos ver isso!

Correu e escolheu uma tábua que estava apoiada contra a parede. Era até modesta. O Hamilton se animou também:

— Antes do Edu quebrar de verdade... — Olhou irônico pra mim. — ...deixa eu tentar!

O Régis apoiou melhor a tábua inclinando-a um pouco e com a outra ponta bem fixada no chão. E o Hamilton afastou-se, tomou impulso, veio correndo e “zás”! Pulou com força sobre ela aplicando uma bela patada bem no centro. A pobre coitada não agüentou e “crack”! Rachou!

— Uau, que ninja que eu sou! Também consigo quebrar as tábuas do Edu! E nem preciso desse seu “Chi-ca-bom” aí!

Eu nem esquentei:

— Uma tabuinha de nada que nem esta, Hamilton! Até criança quebra isso daí.

— Então, tá! Régis, vamos achar uma melhor!

Os dois separaram outra, de maior espessura, e a acomodaram como a pri­meira.

— Lá vai... ninja!!! — O Hamilton fez toda a cena de novo e com um uivo selvagem (daqueles que vemos nos filmes), avançou com ímpeto.

— Ai, ai, ai! — Ele chacoalhava o pé no ar, rindo ao mesmo tempo. — Essa doeu!

A tábua continuou intacta. O Régis resolveu tentar também. Mas ele não levava lá muito jeito para a coisa, não tinha agilidade e nem sabia usar a muscu­latura.

— Não é questão de força. — Expliquei. — É mais jeito do que força, você tem que potencializar o movimento, entende? Joga o quadril assim...e chuta! — Mos­trei de leve como deveria ser o movimento.

— Larga mão de conversa e quebra você logo isso aí! — Incentivou o Hamil­ton.

Aceitei o desafio com calma. Levei tudo na brincadeira, nem me concentrei muito com eles rindo e se cutucando, falando graças o tempo inteiro do meu lado. Mas eu não precisava de “Chikow” para quebrar aquela tábua. Era como eu tinha dito, só questão de jeito, de usar a técnica certa. Nada que minha energia “li” não pudesse dar conta.

Foi fácil. “Crash”!! A tábua rachou no meio ficando as duas metades presas por algumas farpas.

— Pôxa! Que legal! Tremendo! Como é que você faz? — Eles vibravam.

— É questão de fazer o movimento certo. — Respondi de novo, sem maiores explicações.

Mas o Hamilton estava na febre.

— Vamos lá! De novo!

Arrumou nova tábua, parecida com a primeira. Tentou fazer como eu expli­cara, mas ficou com o pé dolorido outra vez.

— Ai, isso dói, caramba! — Ele ainda não estava muito convencido. Seu olhar revelava a intenção de testar-me um pouco mais.

Ele vasculhou e vasculhou, sem dar-se por achado. Finalmente descobriu uma viga de madeira maciça. Era robusta, troncuda, de formato quadrado e uns dez centímetros de diâmetro. Parecia um pé de mesa que alguém tinha jogado fora.

— Ah! Olha isso aqui.

Ele a arrastou para posicioná-la no mesmo lugar das tábuas. Limpou uma mão na outra, triunfante, e virou-se para mim.

— Esta aqui eu duvido que você quebre! — Desafiou. — Aquelas ali eram muito fraquinhas pra você. Mas vamos ver essa!

Nesse exato momento, não sei nem de onde me saiu a turma da rua. Alguém espichou a cabeça por cima do muro e gritou:

— Olha lá o Catatau, o Hamilton e o Régis!

E foram entrando. O Raimundo, o Marcelo, o Luís Gustavo e mais um ou dois:

— E aí, galera? Que que está pegando? — Indagavam eles.

— Chega mais! — Convidou o Régis. — O Edu está quebrando umas tábuas aqui pra gente.

— Quebrar tábua?! Quem está quebrando tábua?! — O Edu!

— Tudo bem, depois a gente aproveita a madeira quebrada, fazemos um fogo e rumamos uma carreira. Vá!

— Bebemos um vinho também! A turma ria e falava alto. Todos me conheciam. E respeitavam. Resquícios da velha “29”. Ficaram para ver a “quebra das tábuas”. Ninguém nem tentou quebrar antes de mim, tal era a certeza de que nada poderiam com aquela peque­na viga.

Desta vez tive que fazer a técnica nos conformes. Senão — eu sabia — não conseguiria também. Então me esqueci deles. Assumi a postura correta, controlei a respiração, senti o fluir do “chi” pelos chakras, dobrei as pernas para retesar aquela energia crescente como uma mangueira dobrada represa o fluxo à montan­te. Levei um certo tempo naquilo.

Fazia parte do processo visualizar a coisa concretizada. Abri os olhos, olhei para a viga inclinada e formei aquela imagem mental rapidamente, imaginei-a partida. Vislumbrei o alvo como sendo algo atrás dela para que o chute tivesse mais penetração ainda. Estava pronto. Tomei impulso e chutei baixo, como quem quer quebrar uma patela. Liberei o ar dos pulmões ruidosamente, como estava acostumado:

— Hei!!!

E CRASH! Sinceramente nem eu acreditei que tinha conseguido.

Quebrada. Houve um murmurar de assombro que percorreu a turma.

— Que legal, meu irmão!!!

Mas o Hamilton estava chato mesmo, não queria dar o braço a torcer:

— Não é possível! Essa madeira devia estar podre! Só estando podre pra acontecer isso!

E procurando, encontrou mais duas vigas iguais. Deviam ser da mesma mesa. Só que aí eu também impus a condição:

— Vocês que tentem primeiro! Vocês não estão dizendo que a madeira está podre?! Pois então... quebrem!

Nos minutos seguintes a rapaziada se alternou, em fila indiana, esforçando-se na tarefa proposta. Mandaram ver o pé na viga que, heroicamente, resistiu a todos sem sequer lascar. Voava de um lado para o outro e nada. A turma é que saía pulando num pé só.

— Acho que a madeira não está podre, não! — Comentavam entre si, com risos.

— Vai ver que só a outra que estava ruim! — Disse o Hamilton, zombeteiro. E para mim: — Dessa vez... duvido mesmo, Edu!

Olhei para ele e cometi um erro. Por uma fração de segundo a dúvida veio, num flash, enquanto me posicionava.

“Será que vou conseguir... de novo?!”

Aquela ponta de dúvida iria me prejudicar, eu sabia. Como diz o ditado chi­nês: “Quem teme perder já está vencido”. Então, quase instintivamente, fiz o gesto. Depois de erguer os braços acima e atrás da cabeça e deslizá-los vagarosamente para frente e para baixo, deveria juntar as mãos em posição “zen” (como quem reza). Só que ao invés disso eu as ajuntei numa outra posição, semelhante, mas que queria dizer coisas totalmente diferentes.

Movimentei-as lentamente de uma forma muito específica. Murmurei quase inaudivelmente as palavras de encantamento necessárias para sinalizar a Abraxas que eu precisava da ajuda dele. Foi a primeira vez que experimentei o que somen­te tinha conhecido na teoria.

Eu havia aprendido a manipular minha força. Tanto é que quebrei de fato a primeira viga. Mas agora, eu estava prestes a ver se realmente era possível o que me disseram: que o meu potencial poderia ser aumentado além do limite máxi­mo...! Pois bem: que fosse acrescentado “Poder à minha força”.

Por meio daquela sinalização eu dava a Abraxas a permissão de utilizar-se do Portal aberto no Ritual de Iniciação e semi-canalizasse sua força através de mim. Pensei no que me haviam dito, e falei de mim para mim: “Eu tudo posso... naquele que vai me fortalecer!”

E baixinho:

— Não deixe que o teu protegido seja envergonhado.

Fechei os olhos. De repente, em segundos, comecei a sentir uma força dife­rente tomando conta de mim. Minha perna esquerda — aquela que eu usava para chutar — parecia que estava se tornando como uma barra de aço. Quase que eu podia perceber a musculatura saltar e crescer, tornar-se rígida. Tinha a impressão de que se eu chutasse o muro podia abrir nele um buraco.

A respiração involuntariamente ficou forte, carregada, pesada. As batidas cardíacas estavam mais intensas e surdas, quase audíveis. E ao redor dos olhos vieram ondas sucessivas de calor como se estivesse afluindo muito sangue para aquela região.

Pela primeira vez o silêncio era total. Ninguém dava um pio.

Olhei para a viga. Parecia irracional. Por uns instantes, senti raiva... ódio! Ódio daquela tábua. Minha mente já não via um pedaço de madeira apenas, parecia... parecia que era uma cruz! E eu queria quebrar, destroçar aquilo!!! Nem sei porque pensei daquele jeito. Tudo foi tão rápido...

Voei na direção da viga completamente esquecido de tudo o mais e apliquei tal coice que meu pé a atravessou e bateu na parede! E nem senti nada. Estava alucinado.

O pessoal deu um urro de assombro, todos juntos.

— Não é possível...! — Gritou o Hamilton de novo, primeiro do que todos. — Quero ver você quebrar a. outra!

Num ápice ele colocou a outra. Eu praticamente o atropelei, nem o deixei sair da frente, escoiceei novamente, com um grito seco. O ódio ainda me domina­va, aquela idéia insana de 'quebrar a cruz” martelando dentro da cabeça.

— HEI!!!

Quebrei de novo.

A turma me cercou, desta vez realmente convencidos. Todos queriam falar comigo, me davam tapinhas nas costas.

— Caramba, Eduú!

Mas eu estava com raiva deles também, com ódio. Minha vontade era chutar todo mundo. Não sei por quê. Mas eu queria mesmo era dar um bico em cada um! Procurei me controlar, procurei pensar, era uma raiva totalmente desprovida de lógica. Eles eram meus amigos, tudo aquilo não passava de brincadeira. Normalmente eu tinha tanto senso de humor.......

“Por que que eu vou chutar eles?!?”, raciocinei ainda com incoerência pro­curando me manter afastado. Vai que de repente eu socava alguém!

— Espera aí! — Fiz um gesto para afastá-los.

— Gente, ele machucou o pé! — Falou um deles.

Não tinha machucado nada mas aproveitei a deixa para poder me abaixar, desviar um pouco o rosto. Fui sentindo aquela estranha sensação abandonar-me devagar, a respiração voltando ao normal, o coração cedendo ao ritmo de antes, a musculatura relaxando.

Eu não sabia bem como agir, o que fazer para dizer a Abraxas que fosse embora. Eu sabia que tinha sido ele! Tinha usado o meu corpo, sei lá! Canaliza­do, semi-canalizado, influenciado...!? Nunca tinha experimentado nada parecido antes. Meu corpo ainda estava esquisito, com uma tremedeira por dentro. E a perna esquerda meio bamba, mole, cansada. Aliás, todo o meu hemi-corpo es­querdo ficou meio adormecido e formigando.

Foi passando aos poucos. Quando me acalmei e pude pensar direito... tremendo! Tremendo! Simplesmente tremendo!!!.

Comecei a perceber que...pôxa vida, era verdade! Ainda não sabia lidar bem, mas...funcionava!

 

Apesar de episódios como este ainda assim eu poderia dizer que o que mais mudou em mim foi a “disposição interna”. Parecia que minha índole tinha ficado diferente! Naturalmente esta constatação só me ocorreu claramente anos mais tarde. Na época, sinceramente falando, não foi nada que realmente me chamasse a atenção. Mas o fato é que mudei sensivelmente.

Eu já vinha de um contexto cheio de violência por causa da passagem pela Gangue. Mas agora era diferente! Atos de violência não dependiam mais de que alguma coisa específica acontecesse. Uma palavra, uma ofensa, uma provoca­ção. Não se podia mais dizer que eu “ficava agressivo”, uma mudança puramen­te causai, temporal. A realidade agora é que eu “era agressivo”. Um sentimento constante de ira me dominava e já não dependia de fatores externos.

Antes eu ainda conseguia encontrar uma causa: “Meus pais não me dão atenção”, por exemplo; ou: “Sou a ovelha negra”. Mas agora já não havia causa aparente. Era um estado de espírito. Muito sutil, muito leve, quase indetectável. Mas estava lá.

Comecei a perceber a mudança principalmente nos treinos de Kung Fu por­que praticamente não existiam mais brigas de rua.

Nos treinos, embora houvesse combate e às vezes nós lutássemos como que parecendo defender a própria vida, era puramente esportivo. Quero dizer, meu oponente nunca foi um inimigo real, não era necessário machucar ninguém. Sem­pre fui cuidadoso, ponderava os golpes, respeitava os que eram mais fracos do que eu. Especialmente os meus alunos! Tanto é que muitas vezes, tanto na ADINK como na W. Wei lutávamos mesmo sem os protetores. As regras eram estabelecidas... e pronto! A maioria sabia respeitar.

Mas alguma coisa mudou. De repente as lutas passaram a ter um outro sabor para mim. E machucar parece que criava por dentro uma sensação muito estra­nha de prazer e regozijo. Era como se tivesse sido despertado um lado negro dentro de mim.

Certa ocasião eu estava dando aula na W. Wei. E, como era o meu costume, no final do treino eu organizava os alunos para fazerem pequenos simulados de lutas comigo. Nesse dia em especial havia um aluno novo, meio fortinho até, e que era segurança do metrô. Eu o chamei de cara e nem bem o rapaz aproximou-se de mim, pensei no íntimo:

“Esse cara bem que merecia uma coca!”

Comecei a “lutar” com ele, devagar, na manha, explicando aos outros volta e meia o que se encaixava melhor. O rapaz avançava para mim com muito respei­to, afinal eu era o instrutor dele.

Mas ele me irritava. Mais do que isso, eu sentia raiva. Queria poder acabar com a raça dele! De graça enfiei um chute bem dado na boca do estômago, de pura maldade. Não causou muito estrago, é verdade, mas foi com força e ele ficou ali caído no chão, se contorcendo na frente de todos, gemendo. Demorou para se recuperar.

E eu fiquei sem saber porque fiz aquilo.

Dei a resposta que passaria a usar como desculpa vezes seguidas:

— Você estava com a guarda aberta. Não tem outro jeito. Assim como nin­guém aprende a nadar sem engolir água... ninguém aprende a lutar sem tomar porrada!

Fiz parecer que aquilo era tão somente uma lição “filosófica”. E o deixei levantando sozinho. Os outros alunos ficaram muito quietos, olhando para mim com ar ressabiado. Todos sabiam que eu não era daquele jeito. Afinal eu era alegre e bem humorado, muito amigo da maioria deles. Aquela demonstração gratuita não fazia parte do meu estilo. Devem ter achado que eu estava de lua virada e só.

Mal sabiam eles que cenas assim iriam repetir-se muitas vezes.

Um outro destempero acabou sendo na ADINK. Alguns Professores tinham uma certa rixazinha comigo porque eu havia entrado depois de todos eles e era o que tinha mais alunos. Mas que culpa eu tinha? Meu estilo de aula era diferente, os alunos gostavam muito de mim e do meu jeito criativo de diversificar. E o meu curso de armas continuava de vento em popa.

O único Professor que tinha tantos alunos quanto eu era o Túlio. De quebra, era o melhor da Academia e um dos poucos que não me via com maus olhos. Pelo contrário, éramos bem amigos.

O Túlio era um Professor nato, alguém com dom para a coisa. E ele nem era chinês! Antes um mulato bonitão, forte, cobiçado pelas moçoilas, de traços meio mestiços, com olhos amendoados e cabelo comprido todo trançado. Mas tinha absorvido muito da cultura oriental até mesmo no seu jeito de conversar e de se portar, muito calmo, comedido. E se virava falando um chinês até que bem legal!

Eu apreciava tremendamente o seu Kung Fu e a sua maneira de ensinar. Tínhamos sempre oportunidade de estarmos juntos no treino dos Professores, todos os sábados. Aliás, o treino do sábado era uma espécie de “tira-teima”. Uma exibição em grupo, na verdade. Não havia nenhum Mestre que pudesse dispor de tempo e coordenar o treino uma vez que este fora iniciativa dos próprios Profes­sores, e não uma exigência da ADINK. Então fazíamos como bem queríamos. Ou seja: sempre um tentando provar que era melhor que o outro.

Mas não deixava de ser bom porque lutávamos muito e isso, no fim, acaba­va resultando em crescimento. E também sempre se aprende muito observando quem é bom. Claro que eu queria aprender com o Túlio. Tinha outros caras bons, sem dúvida, mas ele era exímio na técnica e também praticava outros estilos além do Wing Chun.

E o melhor: ele era humilde, acessível, não estava sempre se vangloriando para cima dos demais.

Só que se de um lado o Túlio era o melhor, o mais galinho de briga era o Fred. E esse não era pedante e filhinho-de-papai só no nome. Era o natural dele mesmo. Tudo bem que no Kung Fu era muito bom, ágil, com boa visão de com­bate. Mas ninguém gostava de enfrentá-lo porque não sabia lutar limpo. Só que­ria dar pancada. Não era de meias medidas. Então dificilmente ele encontrava parceiros, mesmo no treino dos Professores.

Uma vez eu o vi levar um corretivo bem dado. Não fazia ainda muito tempo que eu era Professor na ADINK e gostava de assistir às aulas do Túlio sempre que fosse possível. Uma tarde eu treinei muito e depois, para descansar, acomo­dei-me para observar a aula dele sentado a um canto no chão.

De repente o Fred entrou na sala para “participar” da aula. O Túlio nesse horário não dava Wing Chun, ensinava Hu Lai Shien, um estilo que ele praticava em uma conceituadíssima Academia. Esse tipo de coisa era permitido às vezes, como conhecimento extra para os alunos, e se o Mestre do estilo aprovasse. Era mais ou menos o mesmo tipo de coisa que eu fazia com as armas e os artifícios que aprendera no Ton Long.

O Fred ficou quieto e submisso no começo. Mas depois ele foi fazer um exer­cício de “sombra” com um aluno. Isso consiste em simular o combate mas sem tocar o oponente com os golpes, que devem ser muito leves. E começou a provoca­ção. Não deu um minuto e o Fred encheu a lata do rapaz, enfiou o pé na perna dele que até envergou. O pobre do aluno deixou escapar umas lágrimas dos olhos, qui­eto.

O Túlio foi muito rápido em tomar atitude. Não falou palavra mas apontou para o Fred com o dedo em riste, e, em seguida, apontou para si próprio como quem diz: “ Você luta comigo, agora”. Por aquela tão repentina o Fred não espe­rava. Não deu nem tempo de entrar em guarda. O Túlio arrumou um chute tão forte e de tanto impacto no peito dele que o “pobre” Fred voou para trás alguns metros, caiu para fora do tatame e rolou de costas contra a parede do vestiário num enorme estrondo.

A parede não passava de uma divisória leve de madeira coberta por uma cortina. Do outro lado, já dentro do vestiário, havia um pesado armário de ferro para os alunos. O Fred desapareceu no meio da cortina, derrubou a divisória e quase que o armário foi junto. Um vexame incalculável!!! Os alunos ficaram olhando, estupefatos mas intimamente regozijando-se: “Ele mereceu isto!”.

Um bom tempo depois disso, depois da minha Iniciação, certo dia eu treina­va esperando a hora de dar minha aula.

Estava tenso, carregado, queria bater, bater, bater, bater. O saco de pancada não era mais meramente um “saco”, um objeto inanimado. Agora eu enxergava ali uma pessoa, um inimigo. Não esmurrava como alguém normal, mas domina­do por um ódio cego, e imaginava como seria destroçar aquela pessoa, bater violentamente nos pontos vulneráveis, nos pontos letais, acabar com ela, destruí-la completamente.

Só que nada disso adiantava. O saco de pancada já não dava barato, não aliviava a minha eletricidade. Podia bater, esmurrar, chutar por horas se fosse o caso, mas eu não relaxava.

E naquela tarde eu estava mesmo meio “quente”, carregado de pólvora. Queria uma faísca qualquer! Qualquer coisa que me servisse de desculpa para explodir e descarregar o que eu trazia no íntimo. Eu queria machucar alguém! Por quê, não me pergunte, eu não sabia. Só sabia que queria bater em alguém.

É até difícil de explicar. Por fora eu parecia o mesmo de sempre, alegre e extrovertido. Mas eu me sentia com se estivesse com alguma coisa entalada na garganta, como que remoendo uma raiva contida.

Por vezes eu me perguntava porque me sentia assim, afinal eu levava a vida que pedi a Deus... ou melhor... ao diabo! Tudo ia bem, tudo ia realmente muito bem!

Mas enfim... durante a aula aliviei a minha sede de estrago ao confrontar um aluno. Talvez influenciado pela façanha do Túlio eu o machuquei após fazer uma finta na direção do rosto. Quando ele ergueu as mãos para se proteger dei um chute de impacto na base dos arcos costais. No tombo, ele derrubou o armário do vestiário. E terminou com uma trinca na última costela. Pronto! Eu fizera a pro­eza maior ainda!

E a desculpa padrão... sempre a mesma, com pequenas variações:

— Esta é a única maneira de você perceber aonde está errando. Não vai es­quecer nunca mais.

Evidentemente que esta não era a didática.

Certa feita o Fred desafiou-me para uma luta. Foi logo depois desse episó­dio. Mas ele não sabia lutar “na manha”! E o único capaz de derrubá-lo era o Túlio.

“Caramba.”, pensei. “Este cara está a fim de me encher a lata!”

E recusei.

— Não, obrigado. Não quero lutar.

— Sem essa, cara! Vamos lá! — E me dava chutinhos folgados, me descabelava, fazia trejeitos idiotas.

Aquilo começou a me irritar de verdade. Os outros Professores, que obser­vavam, acabaram entrando na brincadeira.

— Yeaaahhh! — E gozação pra cá, e piadinhas pra lá.

Se o Túlio estivesse presente ele teria colocado ordem na coisa, mas nesse dia ele não estava. Lembrei-me do episódio da viga quebrada há poucos dias, diante dos meus amigos.

“Pois eu vou quebrar esse cara no meio!”

Estava irado pra valer. E respondi:

— OK! Você quer lutar? Então vamos.

Ele era fisicamente mais forte do que eu e, tecnicamente falando, superior. Reconheço. Mas retruquei:

— Só me dá um tempinho!

E tratei de me concentrar. Só que usei do mesmo artifício e, ao invés de cruzar as mãos em posição zen...usei o gesto ritualístico ao mesmo tempo em que murmurava o encantamento. Entrei em mabú (posição do cavalo aberto), fiquei de olhos fechados, só esperando. As mesmas reações que senti na outra ocasião deveriam acontecer, só que... nada! Não senti nada!

Abri os olhos. O Fred olhava para a minha cara, com as mãos na cintura.

— Como é?! Já acabou com essa palhaçada aí?! — Gritou ele.

— Não! — Respondi com maus modos, fuzilando-o e sentindo-me mais irritado ainda. — Espera mais um pouco! — E cá comigo: “Pô!.Será que o Abraxas vai me deixar na mão?!!”

A turma ao redor até parou o treino, encostaram-se nas paredes, acomoda­ram-se para ver. De repente éramos só nós dois para dar o “show”, eu e o Fred.

Num flash recordei das palavras de incentivo de Marlon, os conceitos da Irmandade e das próprias palavras de Abraxas: “Não temas, eu estou com você”.

“Não tema...” — De olhos fechados ainda eu raciocinava. “Caramba, ele está comigo! Por que então eu não sinto nada?!”

E repeti os gestos e as palavras. Mas parecia tudo muito vazio à minha volta. Continuei sinceramente sentindo-me como que jogado para as traças.

— E essa agora!

Só que com ou sem Abraxas eu ia lutar, o Fred era muito folgado, não importava que fosse melhor do que eu. Eu ia quebrar a cara dele assim mesmo. O máximo que podia acontecer era levar umas porradas.

“Mas aí o pessoal separa, eu só fico com um hematoma e tudo bem! Tô na chuva é pra me molhar mesmo!”

Me posicionei e fiquei esperando. Ele me atacaria primeiro e eu tentaria pegá-lo no primeiro contra-ataque. E ficou aquela cena vai-não-vai, vem-não-vem, uns chutinhos tanto dele quanto meus.

Mas aí, de repente, num abrir e fechar de olhos ele veio que nem uma vaca louca pra cima de mim! Eu fui me defendendo, me defendendo, recuando, recuando...parede! O Fred aproveitou a chance e veio com um soco seco na altura do estômago, que defendi. Mas acho que abaixei demais o corpo, nem sei, mas parece que ele acertou a minha nuca. O golpe foi forte e localizado. Senti as pernas bambearem e o corpo amolecer instantaneamente.

Tenho certeza que dali eu ia para o chão. Mas não foi assim que aconteceu.

Foi num instante. Senti que ia cair... mas não caí! Abri os olhos... estava de pé....... e aquela sensação tão diferente no corpo! Não havia tempo para pensar. O Fred me atacou de novo e eu revidei com muita fúria e muita destreza! Consegui dar um golpe nele que até hoje não saberia dizer como aconteceu! Um contra ataque como aquele, veloz, requereria bastante treino. Mas saiu mesmo como um relâm­pago, instintivo e animal.

O Fred terminou caído no chão completamente travado, com o braço virado nas costas, em posição totalmente submissa. Ainda lembro que o pensamento me ocorreu:

“Eu posso parar agora.... ou quebrar o braço dele!”

Mas aí não tive mais consciência de nenhum outro pensamento, raciocínio ou lógica. Foi uma coisa estranha. Não senti. Quando vi, já tinha feito. Chutei a região do cotovelo dele e escutei o som: “closh”! A tensão oferecida pelo braço desapareceu, ele envergou que nem um galho seco e o osso do antebraço veio para fora num jorro de sangue. Parecia que eu tinha quebrado uma madeira. Foi uma sensação muito diferente.

O sangue manchava a camisa e escorria em profusão, o braço estava caído ao longo do corpo com aquela coisa branca espetando para fora: o úmero dele! Foi uma comoção geral.

— Meu Deus, o osso dele está pra fora!!!

O Fred berrava — na realidade, urrava — de dor e desespero. A confusão e a correria começaram:

— Hospital! Hospital! Hospital!

Ajeitaram-no como foi possível. Quando saíram com ele da sala de treino foi mais gritaria de quem estava fora.

Um dos alunos estava de carro. Levado para o Hospital, foi operado na urgência. Ele ficou muito tempo afastado... e, até onde eu sei, o braço dele nunca mais foi o mesmo.

Na Academia a situação ficou delicadíssima. Um clima estranho, todos me olhavam meio esquisito. Fui obrigado a me justificar. Mas os Mestres entende­ram aquilo como acidente, não era a primeira vez que coisas assim graves acon­teciam nos treinos. Uma vez eu mesmo vi. Numa demonstração um dos Mestres fraturou a escapula de um aluno ao mostrar um golpe.

E apesar de algumas pessoas ainda questionarem se tinha sido mesmo ne­cessário chutar... no fim ficou por isso mesmo. Fazia parte de um esporte como aquele. Levou um tempo até que o choque geral na Academia passasse. Mas depois as pessoas começaram a me olhar com outros olhos. Eu havia acabado com o mito.

— Pôxa...o Eduardo bateu no Fred!

E me admiravam.

Mas da minha parte, fiquei meio sem entender o que tinha acontecido na­quele dia. Não estava esperando aquela reação, imaginava que seria algo mais ou menos como da primeira vez, algo mais ou menos “controlável”. Quando vi o rapaz naquele estado, num piscar de olhos... eu sabia que não tinha condições naturais de fazer aquilo. Pelo menos, não ainda!

E embora eu fosse tomado por aquela indescritível e estranha sensação de prazer, meu lado “humano” ficou meio chocado. De verdade.

 

As reuniões em Grupo dos “Fire's sons” haviam começado na semana se­guinte logo após o meu primeiro Rito individual com Abraxas. Para meu assom­bro também elas aconteciam na residência de Zórdico. Aliás, eu e Thalya fazía­mos parte do grupo de Zórdico! Na época da Escola eu não tinha a menor idéia de como era grande aquele lugar e quanto tempo eu passaria lá.

Eu tinha ficado pensando a respeito de como seriam as reuniões. No meu entender seria inconcebível estar separado de Marlon. Lucifér não faria isso, isso é coisa de Deus. Ele, sim, separa as pessoas. Mas meu pai sabia o que era melhor. E realmente não fiquei longe de meu amigo.

Os Rituais de Celebração semanais — aqueles que reuniam toda a Irmandade em São Paulo —, nas sextas e sábados, também aconteciam ali em casa de Zórdico. Foi uma grande surpresa para mim porque eu e Thalya nunca tínhamos visto movimento anormal de carros nos dias das aulas na Escola.

Mas é que a casa, na verdade, não era uma só. As casas de todo o quarteirão tinham sido compradas e unidas por passagens subterrâneas. E estavam englo­badas dentro de muros altíssimos que conferiam ao conjunto a dimensão de uma fortaleza. As entradas eram muitas, por ruas diferentes, de forma que nunca cru­zamos com o imenso número de membros da Irmandade que vinha para os Rituais.

 

Mas agora aquele lugar passava a ser muito mais descortinado aos meus olhos. Não havia mais necessidade de ficarmos limitados a uma saleta escondida. Podíamos caminhar por ali à vontade, sem receios. O lugar era muito bonito!

Nosso Grupo de Fire's Sons tinha mais ou menos quinze pessoas. Foi uma surpresa agradável olhar para eles. A maioria já era conhecida, pelo menos de vista. Alguns tinham estado presentes no “Jantar de Formatura”. Outros conhe­cemos no Ritual de Iniciação. Estavam ali o Ariel e o Górion, dentre outros ros­tos familiares. E a Rúbia.

Ela me abraçou apertado, sorridente.

— Que bom que você está aqui!

Ainda que Thalya tivesse pegado em minha mão incontinenti e me olhado meio contrariada, nem liguei. Aquela peruana era mesmo um estouro! Rúbia cum­primentou Thalya com o mesmo carinho e ela própria terminou de nos apresentar a quem não conhecíamos.

Já não nos reuníamos no Porão. Mas nossa sala de reuniões, no primeiro an­dar, não era bem o que se podia chamar de “sala de reuniões”. Era super infor­mal, ampla, aconchegante, cheia de poltronas com almofadas, lareira. Amplos janelões com cortinas de tecido suave davam vista para o jardim cheio de árvo­res.

Uma farta mesa exibia tudo o que havia de delicioso. Podíamos ficar bem à vontade, pegar o que quiséssemos à hora que quiséssemos. Eu não perdia tempo, para variar.

Percebi que havia também sofisticados aparatos para projeção de filmes e slides.

Zórdico continuava presidindo as reuniões e nos ensinando a todos. Às ve­zes era Marlon quem nos dirigia nos estudos, mas mais raramente. Tanto Marlon quanto Zórdico ocupavam posição de “Mestres”. Mas Zórdico estava num pata­mar um pouco acima.

Os propósitos do grupo eram o aprimoramento. Era absolutamente necessá­rio o conhecimento amplo, completo e profundo da Magia e das suas técnicas básicas. E tudo tem um começo, começamos com o que era genérico e básico. O conhecimento específico viria a seu tempo. O evoluir é conseqüência.

Novamente veio a teoria. E principiamos a aprender sobre a diversidade dos muitos processos ritualísticos. Primeiro os mais simples, a nível individual, que são usados para crescimento e consagração pessoais. (Aprendi que também há Ritos para serem feitos em pequenos conjuntos, normalmente com cinco a nove participantes, e que visam resultados específicos comuns).

Aprendemos de tudo um pouco nesse sentido. Esmiuçamos cada detalhe. Desde os componentes usados em cada tipo de Ritual, o por quê de sua utiliza­ção, a simbologia por trás de cada item, a forma de realizar os Ritos e preparar os ingredientes, as palavras de encantamento, e muito mais.

Terminado isso, passamos a estudar a Cerimônia Ritual em si, isto é, o Ritu­al de Celebração (aquele que reúne toda a Irmandade). Começamos pelo Cerimo­nial “normal”, aqueles que são feitos semanalmente. Há outros Ritos que são específicos para determinados períodos do ano, e também as Festas. Estes foram abordados mais tarde.

Com relação à Cerimônia Ritual aprendemos o significado de cada peça, cada etapa, cada postura, cada gesto, cada palavra, cada encantamento, de forma muito incisiva. Estudamos também muito a fundo a respeito do uso das ervas e a confecção das poções.

Era bom compreender tudo aquilo. Sabíamos agora porque se fazia cada coisa. Era uma diferença crucial, mais ou menos como o médico e a enfermeira: esta última executa ordens muitas vezes sem saber porque o faz. Mas o médico é o detentor do conhecimento, dos detalhes, da profundidade. E todos nós, como “Médicos da Magia” tratávamos de aprender, absorver todo aquele conhecimen­to recheado de significados e simbolismos tão profundos!

Passávamos de duas a três horas estudando todas aquelas coisas durante duas noites por semana. E era muito diferente do jeito da Escola. Agora não haveria mais limites. O Oculto vinha sendo mais e mais descortinado. E a Magia tinha que ser entendida a fundo. Era necessário conhecer o âmago, a essência dela, os mínimos detalhes.

É óbvio que o processo era progressivo. Não se dá feijoada a recém-nasci­dos. E os mais adiantados estavam ali com o propósito de auxiliar os mais jo­vens, pelo menos naquela etapa inicial.

Foi-nos dada também uma introdução do aramaico e do latim, o necessário para aquele período. A fluência em aramaico só é necessária a nível do sacerdócio.

Eu devorava tudo aquilo como alguém que tivesse que tirar o pai da forca! Queria aprender o máximo e o mais depressa possível.

Estudamos também História da Magia pois faz-se necessário conhecer a origem dos Rituais para compreender como eles se desenvolveram e porque são como são. Mas não ficamos apenas na História. Em se tratando de Magia às vezes usávamos como material didático alguns livros “internos”. Ou seja, nada que se encontre em livrarias. Aliás, nenhum deles podia sequer sair de lá. O Livro dos Mortos do Antigo Egito (mas não aquele que se encontra por aí), manuscri­tos antigos dos Druidas, dos Essênios, dos Babilônicos. Antigos Ritos africanos.

Os primórdios da Magia estavam contidos neles.

Passamos também por coisas bem mais contemporâneas associadas aos alquimistas e à Bruxaria da Idade Média.

Depois aprendemos, em pinceladas meio por alto, como foram os primórdios da revelação de Lucifér e como isto desenvolveu-se. Os povos politeístas adora­vam “deuses” sem necessariamente compreender a profundidade daquela dimen­são espiritual. Mas a “Igreja Satânica” organizada e estruturada, por assim di­zer, passou a existir no século XVI. No entanto, já na época dos Druidas no século V, foram lançados alguns princípios rudimentares.

Antes disso a presença de Lucifér não era explícita. Revelações pro­gressivas tiveram que acontecer aos poucos ao longo da História da Huma­nidade. Evidentemente que as informações não são repassadas de uma vez só, mas ao longo de milênios. Os ensinamentos recebidos das Trevas foram seguindo de geração em geração. Alguns Ritos foram preservados intactos desde os primórdios. Outros foram sofrendo alterações conforme o revelar das orientações do pai.

E hoje — ah! Tempo de glória! — hoje Lucifér explicitou a sua estratégia de forma cabal aos seus filhos. A Irmandade é detentora desta verdade, e trabalha assiduamente em prol dela. Sem dúvida... o Hoje é um tempo de muitos privilégi­os e regalias que os antigos almejaram, mas não alcançaram!

 

Naquele período eu me dediquei realmente de corpo e alma ao estudo. n A Irmandade tinha uma Biblioteca imensa e cheia de livros a que eu gradativamente ia tendo acesso. Cada vez mais eu podia ler volumes de Magia que não encontraria em livraria nenhuma do mundo. Tudo o que eu tinha passado tanto tempo procurando estava ali, finalmente, cada vez mais ao meu dispor.

Comecei a estudar, sozinho, sobre algumas hierarquias demoníacas, formas e tipos de Ritos, os grandes Bruxos da História e tudo o mais que me interessas­se. O Ocultismo que eu encontrava ali era muito diferente daquele divulgado na Sociedade. Era totalmente diferente, cheio de embasamentos. Verdadeiro. Aquela Biblioteca foi de inestimável valor no meu crescimento.

Mas o conhecimento maior certamente que vinha das reuniões do Conselho. Nessas ocasiões eu vivia um pouco da prática de tudo o que aprendia nos livros. Mais tarde vim a saber que a escolha dos membros de cada Grupo “Fire's sons” não era aleatória, mas cuidadosamente selecionada.

Eu convivia muito bem com os participantes do meu Conselho. Apesar de que todos eram pessoas singulares, naturalmente estreita-se relacionamento com alguns. Comecei aos poucos a conhecê-los melhor, saber de suas vidas, suas profissões, alguns dos seus encargos dentro e fora da Irmandade, etc.

E logo mais pessoas se me tornaram próximas além de Rúbia, Ariel, Górion e o próprio Zórdico.

Um deles era um homem de seus 40 anos, claramente árabe, falava um por­tuguês com certo sotaque e se vestia super esquisito. Seu nome era Aziz; e ele era professor de História numa Faculdade de muito renome. Claro que lá tinha muito campo de trabalho para ele. Foi inclusive autor de vários livros.

Um outro era egípcio. Aliás, seu pseudônimo era esse mesmo: Egípcio. Fora dos limites da Irmandade ele se utilizava da fachada de parapsicólogo. Dava palestras sobre esse assunto por todo o Brasil, e também sobre poderes da mente, radiestesia, hipnose, seres extraterrestres. Tudo nessa linha. Era sempre muito requisitado por escolas e Faculdades. Além disso, Egípcio era um sujeito muito forte no dom da persuasão. Falava muito pouco, ouvia muito. Mas quando fala­va, convencia quem quer que fosse do que quer que fosse!

Mas o que mais me chamava a atenção nele é que era um indivíduo frio. Tanto é que depois ele foi até drenado para fazer parte de um segmento da Irman­dade denominado de “Inquisitores”. Eram estes responsáveis pela vingança em todos os sentidos, quando isso se fizesse necessário. É muito difícil alguém cogi­tar em sair do Satanismo, nunca soube de ninguém, o caminho era mesmo sem volta. Mas às vezes ouvia-se falar de pessoas tentadas a desistir e voltar atrás. Esse grupo era encarregado de matar tais desertores.

Aliás, esse era um dos assuntos prediletos do Egípcio: ele gostava muito de falar sobre assassinato, sobre formas e mais formas de acabar com a vida alheia. Era inteligentíssimo.

Kzara era uma moça de características indianas, vestia-se como tal, e tinha mesmo nascido na índia. Era muito bela. Tinha a cor das indianas, o corpo cheio e bem torneado, com cabelos muito negros. Os olhos, de uma beleza singular, eram de um tom verde muito profundo. Tinha seus 23 anos e era uma peça estratégica em algo que, na época, não compreendi bem. E não vi qualquer vanta­gem naquilo. Algo sobre seduzir pessoas e levá-las ao adultério. Só vim a entender mais tarde.

De qualquer maneira o seu encanto não fazia efeito sobre nós, os homens com quem ela convivia. Ainda mais sobre mim, porque nesse caso tinha um fator a mais. Thalya era muito ciumenta! Eu nem podia conversar muito, perguntar coisas sobre a Índia como gostaria. Thalya já chegava me agarrando e fazendo algumas obscenidades. Kzara não se importava, ria muito, qualquer coisa era motivo para ela dar risada.

Havia outros colegas que estavam ali conosco naquele Grupo mas que não vieram a fazer parte do meu círculo de amigos mais próximos. Como por exem­plo o simpático rapaz de seus 30 anos, de nome Cerdic, norte-americano de ori­gem e que era, como Aziz, professor de conceituadíssima Universidade. Ou o casal de sotaque boliviano e aparência indígena que estava sempre muito bem vestido. Naion e Surama. Ele era alto e de boa aparência, um empresário bem sucedido. Ela, bem mais nova, estava ligada a um escritório de Advocacia.

Dentre outros.

No meu convívio semanal pude verificar logo de cara que problemas finan­ceiros não existiam, nem de saúde. Mas existiam problemas outros e estes eram solucionados sempre em conjunto. Nos Grupos de Conselho aprendíamos que a ajuda mútua era muito mais do que necessária, era uma questão de honra, um dever a ser exercido. E todo o bem recebido de alguém deveria ser retribuído nove vezes.

 

Meu relacionamento com Abraxas cresceu rapidamente. Eu o sentia clara­mente, já o tinha visto.. o próximo passo era a comunicação verbal propriamente dita. De verdade! Só assim estaríamos de fato integrados para trabalharmos jun­tos.

A primeira vez que Abraxas falou comigo depois da Iniciação foi numa das reuniões do Grupo. Sempre que terminávamos os estudos havia um momento de confraternização em “família”. O clima de seriedade cedia lugar às brincadeiras e ao riso, aos papos informais, ao companheirismo mútuo que só entre aquelas pessoas eu experimentei de forma tão intensa.

Parece estranho dizer isto hoje... mas havia amor entre nós. Pelo menos eu via assim. E dentro do que eu conhecia e experimentara, aquele era um amor verdadeiro.

E foi no meio da brincadeira que Abraxas novamente me pegou de surpresa. Rúbia virou-se para nós, numa roda, e perguntou alto:

— Adivinhem que carta eu tenho na mão! — Os braços eram mantidos nas costas. — Vamos ver quem adivinha?

Naturalmente era um desafio para nós, os novatos. Para eles era muito sim­ples. Eu queria brincar também, de forma que procurei mentalizar do jeito que tinha aprendido na Escola. Só que... que injúria! Antes funcionava, a resposta aparecia na minha mente e eu sempre acertava. Mas agora... neca! Não estava mais funcionando.

— Que coisa! — Virei-me para Thalya. — Dava certo quando a gente fazia juntos a telepatia, e agora nada de nada! Puxa! Você também não está conseguin­do adivinhar?!

Marlon respondeu antes dela, observando-me:

— Agora é diferente, filho! Aquela era uma maneira grosseira e rudimentar de adivinhação. Servia apenas para demonstrar que o Poder existe e pode ser desperto. Mas agora você não precisa mais disso. Deve pedir àquele que dá “Po­der à sua força”.

Sem dar resposta, simplesmente obedeci. Pronunciei rápida e audivelmente as palavras de encantamento necessárias para chamar o meu Guia. E imaginei que talvez ele colocasse uma imagem na minha mente e eu pudesse saber qual era a carta. Mas foi aí que escutei — claramente! — no meu ouvido esquerdo:

— Ás de espadas!

Até assustei. Não era como um cochicho, nem um “eco mental”. Era uma voz mesmo, que falava bem dentro do meu ouvido. Clara. Alta. Perfeita. Sem a menor sombra de dúvida!

— Ás de espada! — Repeti imediatamente.

— Acertou! — Rúbia rodopiou nos calcanhares e mostrou a carta a todos. — Palminhas para Rillian!

Este era meu pseudônimo. Eu tinha tido que escolher um, Thalya também. Desde a Iniciação que já não éramos sequer mencionados como “Eduardo e Thalya”. Ela manteve um apelido que usava às vezes: Tassa.

Rúbia foi trocando e trocando as cartas e eu... ouvindo e ouvindo! UAU! Que coisa!!!!

Depois desse episódio passei a brincar muito com aquilo, parecia uma crian­ça com o novo passatempo. Levava o baralho aonde quer que fosse e vivia mos­trando a “mágica” aos meus amigos. Eles ficavam fascinados. E eu mais do que eles.

Abraxas passou a falar comigo constantemente, mesmo sem que eu o cha­masse. Era uma troca. Às vezes era ele quem tinha a necessidade de me falar, de incumbir-me de algo, orientar-me de qualquer forma. Sempre no ouvido esquer­do. Pelo visto ele gostava muito daquele lado. O ouvido direito parecia não exis­tir.

Foi mais ou menos nessa altura que voltamos a falar das Artes Mágicas no Grupo de Estudos. Só que o enfoque foi totalmente diferente. Tínhamos aprendi­do antes que as Artes Mágicas servem para desbloquear e potencializar capacidades mentais. Mas para nós — filhos do Fogo — realmente perdiam o valor. Um dia questionei com Marlon:

— Você mesmo disse que elas são rudimentares. No entanto... há algo mais por trás delas, certo?

— Rillian, na época da Escola parte do Oculto vinha lhe sendo revelado, mas ainda era tempo de ignorância. Vocês aprenderam um pouco de teoria e muito pouco de prática. Podemos dizer que naquela época você entrou em contato com a “periferia” do Oculto envolvido nelas. Agora temos que ir ao cerne da coisa, por assim dizer. Afinal... o domínio das Artes Mágicas é o início do aprendizado de todo bruxo. Mas é o início, apenas. Há muito mais além disso. Aos verdadei­ros bruxos em início de aprendizado elas têm certo valor pois permitem acesso à Entidades até o terceiro nível dimensional. Ou seja, demônios de patente muito baixa. Por exemplo...lembra-se da transferência bioplasmática? Vocês não apren­deram quase nada sobre isso. É o que se conhece vulgarmente por Vodú. Mas a transferência bioplasmática, ou bioplasmódica, é uma prática muito rudimentar. A técnica em si é o meio pelo qual se pode alterar o biocampo de alguém. Na verdade é um pequeno Feitiço. Através dele você está invocando uma Entidade e faz com que ela se utilize da sua própria energia para interferir com a energia da pessoa que você quer atingir. O enfraquecimento desse campo energético causa predisposição a uma série de alterações, principalmente doenças. O boneco Vodu nada mais é do que uma sinalização. Uma espécie de “endereço” para orientar a aproximação dos demônios. É até ridículo pensar nisso agora. Com o desenvol­vimento de Alta Magia a sinalização torna-se totalmente descartável.

— Está vendo? É o que eu digo. Esta é a questão que me incomoda! Por que tanta ênfase em práticas que não são necessárias de fato? Quer dizer, eu não preciso jogar cartas ou ler a mão de alguém para saber tudo sobre ela. Basta perguntar ao Abraxas. Não preciso de perfumes, incensos ou jogos de luzes colo­ridas para influenciar quem quer que seja. E talvez em breve não seja necessário fazer um bonequinho de ninguém para atingir essa pessoa. Agora tenho contato direto com meu Guia. Essas técnicas passaram a ser meio da “Idade da Pedra”, não? Por quê, então... gastar tanto tempo com elas? Por que voltar a falar nelas?!”

— Você tem razão. As Artes Mágicas são a forma mais “inocente” de Magia que existe. Aliás, nem podemos chamar a isso de Poder! Para o mundo leigo até pode ser, mas para nós... está muito aquém disso. Porque agora, como filhos do Fogo temos mais privilégios. Muito mais do que antes. Esse é um fato. Entenda o seguinte: você não precisa realmente das Artes Mágicas... concorda?

Nem precisei pensar:

— Não!

Marlon riu:

Você mesmo já respondeu sua pergunta. Qual é a dúvida?

— Como assim?!...

— Você já respondeu. Não precisa das Artes Mágicas para seu uso pessoal. Pois não é através delas que o Poder vem. Então, logicamente que o conhecimen­to e uso delas não se destina a você. — Ele olhou para mim com um piscar de olhos. — Não é simples? Para nós — Satanistas — elas não são “fim”! São “meio”. Úteis, sim, mas nunca para nosso próprio benefício e crescimento. No ponto em que nos encontramos hoje, excetuando a Numerologia cabalística, as Artes Má­gicas são puras “ferramentas de engano”!

Logo minha curiosidade foi saciada. Marlon pigarreou e tocou a mão em meu ombro, segurando-me firme.

— Eduardo, é tempo de você compreender o seguinte. Muitos são os objeti­vos quando somos escolhidos por Lucifér. Um deles, naturalmente, é o prazer de gozar a vida em total plenitude. Você tem sido chamado para isso, para deixar de lado regras estúpidas, dogmas, preconceitos, mediocridades, prisões das mais variadas. E abraçar a Liberdade! Tornar-se filho do Fogo é tornar-se um ser livre, completo e pleno. Este é o objetivo do pai, mas não é o único. Fomos chamados com um propósito claro e este segundo objetivo é tão importante quanto o primeiro: você foi chamado não apenas para ser um filho das Trevas, mas um guerreiro das Trevas. Você é filho do Fogo...e guerreiro do Fogo! E para ser guerreiro... é preciso treinamento! É preciso saber manejar as armas, é preciso estar capacitado para atender plenamente ao recrutar do general. As Artes Mági­cas “puras”, as nove raízes, podem ramificar-se em outras infinitas práticas que também vêm a causar influência. Estas também são chamadas de Artes Mágicas. Nessa ramificação aparece de tudo um pouco e a diversidade nas práticas é muito grande. Mas decrescem em Poder.

Aquilo lançava entendimento sobre muita coisa. No começo minha mente não tinha conseguido compreender bem aquilo. Por que esta gama imensa de técnicas, essa “rede” invisível tremendamente abrangente, permeando tudo e to­dos? É fácil perceber que quanto maior o número de tentáculos que englobam uma Sociedade, mais fácil é obter domínio abrangente sobre ela.

E — isto me surpreendeu - vim a saber que em relação às nove raízes, os pilares, há quase que plena necessidade das Entidades para realizá-las. Isto é, a sua prática requer muito pouco do ser humano. Foi então que comecei a compre­ender melhor as experiências que tinham sido feitas na Escola. Ao mexermos com as Artes Mágicas puras, mesmo sem saber estávamos já entrando em conta­to com os demônios. Mas era um contato inconsciente. Muito diferente do que acontecia agora. Comecei a perceber porque Zórdico era tão enfático em dizer que “tudo seria provado”. De fato... estava sendo.

— Comecemos do princípio. — Disse Marlon. — É tempo de compreender isto plenamente. Recapitulemos o que você já sabe: as Artes Mágicas têm por objeti­vo alcançar a plenitude da potencialidade: é o que os indianos chamam de “Prana”, os chineses de “Tao”, os japoneses “Satori”, e por aí vai. Chame do que quiser:

Absoluto, Perfeição, Êxtase, Clímax, Platô! Na Escola você aprendeu um pouquinho mais sobre isso, que parte do potencial adquirido vem através dos Guias. Nas reuniões específicas, ainda na Escola, um pouco mais do Oculto foi revelado: os Guias, as Entidades, são espíritos, demônios valentes que creram na causa de nosso pai, Lucifér. E que habitam em outras dimensões. Assenti afirmativamente. Marlon continuou:

— E agora, como Iniciado, você sabe um pouco mais ainda: é simples até demais. O contato direto e profundo com os Guias fez com que, para nós, as Artes Mágicas se tornassem dispensáveis como “ferramentas de crescimento” mas, como “ferramentas de engano” são armas de que dispomos. Você percebe como é diferente isso que estou te dizendo? Para os “órfãos”, aqueles que não têm o mesmo pai que temos, que estão à deriva no mundo, a Arte Mágica tem um fim em si mesma! É a prática pela prática mas, para nós, é mais do que isso. Porque percebemos, sabemos, foi-nos revelado o verdadeiro motivo para o qual foram criadas. Engano! Sabendo disso, que dispomos dessas armas para um fim específico... então devemos conhecê-las e usá-las. Porque para nós foram cria­das. Não para os “órfãos”!

— Se não foram criadas para os órfãos, como fica isso? Há pessoas que não fazem parte da Irmandade mas que praticam algumas destas Artes apenas por praticar... há até mesmo os que crêem de verdade nisso e fazem desta “arte” um negócio!

— A grande maioria destas pessoas pensa que domina alguma coisa, ou que tem um dom especial. Na verdade elas é que são dominadas, porque são fracas e vazias. São apenas instrumentos descartáveis, influenciados por demônios sem sequer o saberem na maioria das vezes, e que contribuem para o nosso próprio propósito. Porém para eles não há nunca privilégios de filhos, porque não são filhos. Arderão no Inferno dos Órfãos. — Respondeu Marlon com seriedade e firmeza. — Para começo de conversa a teoria a que eles têm acesso não aponta para a realidade. Qualquer um pode dominar princípios astrológicos de fundo de quintal, aprendidos em manuais sem fundamento. Mas não terão muito mais do que isso. No entanto o caminho à mente deles está aberto. Quando vocês inicia­ram as práticas adivinhatórias no período da Escola muitas respostas “apareci­am” na cabeça. Vinham de onde? Dos demônios acessados nas dimensões supe­riores. A diferença entre vocês e os indivíduos ignorantes é que vocês sabem, agora, o que ocorria. Eles... nem isto! — Marlon tornou a repetir enfaticamente: — Tais pessoas são meros instrumentos de Lucifér para ajudar a alcançar os seus objetivos. São peças sem valor, “órfãos”...que pensam que sabem, mas não sa­bem nada. Fracos, inexpressivos, totalmente manipuláveis. O conhecimento real e profundo, toda a mecânica da coisa... é dado a poucos. Muito poucos. Nós, por exemplo! Aos demais é dada uma capacidade ilusória que visa puramente en­dossar ainda mais o erro.

Eu batia de leve uma mão na outra, com o semblante ligeiramente enrugado. Compenetradíssimo. Realmente... como tinha me passado pela cabeça que perde­ríamos tempo com o que não interessava??!

— Por que o que é a Magia, afinal? — Perguntou Marlon. — É a tentativa de criar-se um efeito tal que, aos olhos de quem vê, uma ilusão possa se apresentar como realidade. O efeito causado no expectador deve ser forte o suficiente para que ele fique literalmente “encantado”. Em outras palavras aquilo tem um im­pacto tão profundo sobre a sua mente que causa uma confusão da realidade. Ela se funde com a fantasia, e vice-versa, e para quem está encantado a fantasia torna-se real. Veja bem, é muito diferente de “loucura”. Quem está sob encanta­mento não está louco. Mas é que essa pessoa já perdeu a capacidade de discernir o que é imaginário do que não é. Já não sabe mais o que é...e o que não é. Quando digo que o encantamento faz com que se creia no falso... é o mesmo que dizer que houve um “engano”! Percebe? Lembre-se de que a revelação é progressiva, in­clusive para você. Então, aprenda. Parte, apenas pequena parte da Magia conti­nua sendo fruto das Artes Mágicas. Então, vamos conceituar novamente: tudo que produz uma ilusão capaz de fazer o ser humano distanciar-se da Verdade pré-estabelecida por Deus é conceituado como “Magia”. E o encantamento é o produto dela. Já os instrumentos usados para que a Magia se manifeste e cause o encantamento são vários: desde os mais rudimentares, como as Artes Mágicas, até os grandes Feitiços da Alta Magia.

Interessante aquele novo conceito. Lançava luz sobre novos horizontes... novos destinos!

— Faz sentido. É que eu ainda não tinha totalmente claro em minha mente tudo isso.

— Eu sei. Há tempo para todas as coisas. Até então você tem aprendido a ser filho. Agora é necessário ser um pouco além de filho... começar a ser guerreiro! Começar a usar a menor das armas, aquela que você pode empunhar agora. As Artes Mágicas. Mas depois, com o passar do tempo e mediante o seu crescimento você verá as belezas da Alta Magia, dos grandes Feitiços, dos grandes Encanta­mentos. E então poderá descartar plenamente as Artes Mágicas. É uma questão de patente, soldado! Portanto, instrua-se com afinco.

Realmente esse era o caminho. Compreendi perfeitamente o que Marlon queria dizer. Eu já era um guerreiro da Arte Marcial. Sabia que o bom manejo das armas tem que ser conseguido aos poucos. Agora eu queria usar as Artes Mági­cas com esse novo objetivo: guerrear!

De início eu e Thalya apenas nos divertíamos com aquilo tudo. Eu já tinha uma facilidade toda especial com qualquer tipo de adivinhação. Gostava e usava muito bem a quiromancia, o taro e a radiestesia. Aprimorei mais ainda as técni­cas. Mas agora eu sabia exatamente por que e para quê deveria usá-las. Thalya seguia na mesma linha.

Sinceramente falando, era mais uma brincadeira do que qualquer outra coisa. Abraxas às vezes apontava claramente pessoas que eu deveria abordar, mas com a maioria era puramente um instinto natural. Aquilo passou a ser o meu dia-a-dia, impregnou em mim. Eu já não precisava me esforçar para ser o que eu era.

As primeiras experiências de que me recordo foram mesmo com leituras de mão. As mulheres são naturalmente mais sensíveis, curiosas e supersticiosas. Eu gostava de ler a mão delas. Falava muita coisa, acertava a maior parte, e brinca­deira vai e vem, uma falava para a outra e sempre tinha alguém que estava dis­posta a “ler a sorte”.

Normalmente meu Guia não me falava nada. Eu olhava e era muito clara para mim a interpretação daquelas linhas, era quase instintivo, fácil, natural. O que eu tinha aprendido me chegava muito rápido à cabeça, não havia dificuldade. O passado era claríssimo; o presente nada além do óbvio; o futuro, no entanto... era mais vago mais difícil de interpretar. Então, eu “jogava dados”. “Plantava se­mentes”. Induzia.

Logo as histórias que Thalya e eu tínhamos para contar não chegavam mais ao fim tanto era o Poder de influência que passamos a possuir. E ficávamos ale­gres porque nos tinha sido concedido o privilégio de estar desviando pessoas de um caminho que pudesse — talvez — levá-las a Deus. Como já tínhamos aprendi­do, essa era a primeira forma de bem atender às determinações e vontades de Lucifér. Era o nosso primeiro passo para nos tornarmos guerreiros!

Tudo tem um preço. Disso nós sabíamos muito bem. Nosso relacionamento com os Guias não tinha “mão única”. Havia uma troca. Sempre! Nós pedíamos... eles atendiam... eles pediam... nós atendíamos. Parecia justo. Nós deví­amos nos agradar mutuamente.

Ficou muito claro que afastar as pessoas de Deus agradava a eles e a Lucifér. Como Iniciados nós não podíamos fazer muita coisa, mas as Artes Mágicas esta­vam ao nosso dispor para isso mesmo. O que, a princípio, já era o suficiente.

Eu tinha um ódio mortal de Deus, bem como todos os demais. E queríamos — como queríamos! — cumprir bem os desígnios de nosso pai. Queríamos ver quem podia mais! Quem constituirá o maior reino! Afastar o ser humano do Seu Criador já é uma afronta. É devolver o troco na mesma moeda pois Ele e os Seus escolhidos também têm afrontado a Serpente e os seus... desde o início!

Uma coisa, porém, é fato: nem todos são bons o bastante para virem efetiva­mente a ter a revelação do Oculto. E servirem ao príncipe deste mundo! Lucifér escolhe os seus... mas aos demais cabe a destruição. Que ficassem afastados de Deus!

Eu era feliz por ser digno de fazer parte do Exército das Trevas, por ter sido chamado. Agora eu sabia onde estava pisando. Como filho das Trevas eu tinha privilégios e como guerreiro, deveres. Queria cumprir bem o meu papel e agradar tanto ao meu senhor Abraxas quanto a meu pai Lucifér.

Em breve eu seria um guerreiro de Lucifér!

Aprendi que estávamos em Guerra. E Guerra é Guerra!!! Não se entra nela para perder. Os fins justificam, sim, os meios! Vale qualquer coisa, “quem pode mais... chora menos”!

Pouco nos importava que os que fossem desviados de Deus estivessem a caminho de um Inferno de horror e sofrimento. São “órfãos”. Sinal que não fo­ram escolhidos nem por um e nem por outro. São fracos, e o destino deles é a morte. Não servem a Deus... não servem a Lucifér... que mais lhes resta?!

Cada vez compreendia melhor aquela frase: “Poder à força, morte aos fra­cos”.

 

O episódio da Regina serviu muito bem para por em prática meus novos conhecimentos. Isto é, a arte do engano. Coisas assim passaram a acontecer com freqüência.

Essa foi também a primeira vez que Abraxas realmente foi enfático em me sinalizar o que queria.

Era uma manhã abafada apesar da brisa. Eu estava passando sozinho por uma rua pertinho de casa, no quarteirão de cima, aproveitando a sombra agradá­vel das árvores. Vi, de longe, uma amiga minha sentada na calçada em frente à casa dela. Estava acompanhada por uma outra moça que eu não conhecia. A Bia, minha amiga, me viu e acenou de longe, cumprimentando.

Retribuí ao aceno e foi então que senti o já costumeiro formigamento à es­querda, principalmente no rosto. Eu sabia que era uma espécie de “prenuncio”, um sinal de Abraxas. Imediatamente escutei bem claro:

— Vá até aquela moça. — Disse Abraxas. — O nome dela é Regina. Atravessei a rua em direção às duas.

— A mãe dela morreu há uma semana. — Continuou explicando ele na sua voz gravíssima, antes que eu chegasse perto. — Ela está inconformada com isto, está muito abatida. O nome dela é Regina...sabe o que quer dizer isso? Rainha! — E categoricamente: — Você precisa trazê-la para cá!

— Oi, Edu! — Exclamou a Bia. — Vem aqui!

Bia olhou para a mocinha ao lado e já foi explicando:

— Essa aqui é uma amiga minha, ela está passando uns dias comigo e... Não a deixei concluir:

— Eu sei. O nome dela é Regina, não é? . — Ué?! Vocês dois já se conhecem?

A moça olhou para mim meio que desconfiada e pouco disposta a bater papo:

— Acho que não. Nunca nos encontramos antes. — Fez ela com ligeiro mau humor. E diretamente para mim: — Você me conhece?

— Não te conheço, não. — E entrei de sola, cheio de sorrisos para ela. — Você sabe o que quer dizer “Regina”? Quer dizer Rainha! E isso torna você uma pessoa muito especial!

Ela ainda assim não respondeu e a Bia continuou, tentando salvar a situação:

— Pois é, Edu, a gente precisa juntar uma galerinha aí pra sair com a Regina esses dias. Ela está passando por uns momentos meio difíceis...

Interrompi de novo:

— Eu sei, Regina, como você está chateada. Perder alguém que a gente ama é terrível.... — Minha entonação de voz demonstrava pesar e eu olhava diretamente para a novata.

Dessa vez ela pareceu levar um pequeno choque e ergueu o rosto, franzindo a testa.

— Mas... você me conhece?!

— Não, eu já te disse isso. Mas eu sei que a sua mãe faleceu há uma semana. Não foi? E você está tremendamente transtornada com a morte dela.

Ela emudeceu e ficou me olhando, os olhos tristes demonstrando uma ponta de espanto e respeito. De repente, encheram-se de lágrimas e ela se descontrolou, chorando de dor por ter sido tão subitamente tocada na ferida recém aberta.

Eu continuei falando com brandura, ao mesmo tempo em que me inclinava, abraçando-a:

— Mas, olhe, não fique triste. A sua mãe está agora num lugar muito bonito... um lugar lindo! E ela pediu que eu viesse aqui hoje e falasse para você que ela está muito bem, e que ela te ama muito. Que você pare de se preocupar com ela porque em breve vão tornar a se encontrar! — Eu improvisei um pouco, esperando dicas do Abraxas.

A Bia me olhava com assombro e sem conseguir formular uma frase. E Re­gina, chorando de soluçar diante de mim, não cessava de questionar:

— Mas, como? Como? Como ela falou com você?! Como você soube disto? —Bem, os mortos... eles se comunicam!

E escutei novamente a voz poderosa de Abraxas:

— Traga ela para cá! — Ribombou no meu ouvido.

— Você quer conversar com sua mãe? — Perguntei gentilmente.

Ela procurou enxugar os olhos com o lencinho do qual certamente não se desvencilhou naqueles dias tão terríveis. E olhava-me com uma expressão estra­nha, como se eu fosse uma espécie de Buda dos tempos modernos, ou o salvador da Pátria. Alguém que podia oferecer-lhe o impossível.

— Eu tenho um amigo que psicografa. Ele pode entrar em contato com sua mãe.

A Bia se intrometeu, procurando ajudar:

— Imagina, Edu! É só depois de um ano que dá para entrar em contato. Retruquei explicitamente e com toda a segurança do mundo:

— Não é assim, não! Este meu amigo é super “elevado” espiritualmente. Ele psicografa na hora! Garanto! Eu já vi. Depois depende no nível espiritual da pes­soa que partiu, e a mãe dela já estava em um nível bem alto. Ela já tem autorização de imediato para se comunicar! — E olhando para Regina, novamente bati no ponto certo. — E ela está com saudades da filha!

Regina baixou a cabeça, pensativa. E Abraxas deu a dica novamente:

— Ela marcou um encontro de aconselhamento com um Pastor. — A voz dele transmitia um sentido negativo referindo-se ao Pastor. — Pastor Sálvio. Ela vai aconselhar-se com ele.

— Olha... — Meu tom de voz era brando, mas firme. — Não vai atrás de outra coisa, não! Dê ouvidos à sua mãe. Sabe o que você vai escutar daquele Pastor?

Ela estremeceu e passou a chorar compulsivamente dessa vez, cobrindo o rosto com as mãos. Nem a Bia entendia mais: — Pastor?!...

— Sim. O Pastor Sálvio. Você marcou um horário com ele, não foi, Regina? — Perguntei de novo.

— Mas a Igreja foi tão boa comigo e com minha família! — Ela quase gritava, querendo justificar-se mais a si mesma do que a mim. — Minha vizinha é evangé­lica, e quando mamãe... se foi... eles ajudaram tanto... cuidaram de tudo... do veló­rio, do sepultamento!... Ela foi até velada na própria Igreja! — Soluçava.

Percebi que Regina devia estar a um passo de sua conversão... àquele Deus hipócrita!!! Quebrantada como estava!

— Sabe o que aquele Pastor vai falar para você? Ele vai dizer que a sua mãe foi para o Inferno. Que você nunca mais vai vê-la! Que não há como se comuni­car com ela, que cartas psicografadas são coisas dos demônios!!! Escuta o que eu estou dizendo! Estes Protestantes... eles não acreditam nestas coisas. Eles estão cegos... perdidos! Não dê ouvidos a isso. — E continuei falando com docilidade, com brandura. Volta e meia eu ouvia o sopro de uma ou outra dica.

Não demorou muito mais tempo. Abraxas contou-me um detalhe que foi a conta:

— Pede para ela olhar na terceira gaveta da cômoda. A mãe tinha comprado um presente. O aniversário da Regina é na semana que vem! — Disse-me ele.

— Escuta. Na gaveta da cômoda de sua mãe, na terceira gaveta...

— A gaveta está trancada à chave e a chave está dentro do guarda-roupa!

— Escutei Abraxas dizer, no meio da minha frase.

— A gaveta está trancada, e a chave está dentro de um guarda-roupa... — Fui dizendo.

— Ah! Eu sei!! Acho que sei onde está! — Completou Regina ansiosa. — Mas o que tem?! O que é?

— A sua mãe, antes dela... bem, ela tinha comprado um presente para você, comprou antecipado! É seu aniversário na próxima semana, não é?

Regina chorava. E Abraxas esclareceu:

— A mãe dela morreu de repente. Morreu atropelada.

Estava tudo explicado. E Regina... quase decidida! Ao erguer novamente o rosto para mim seus olhos já diziam que ela faria como eu dissesse. Completei:

— Sua mãe me disse que gostaria muito que você abrisse o presente. Ela te ama muito. Não quer ver você sofrendo por causa dela. Não precisa mais estar triste. Que mais eu preciso dizer para que você acredite que falo a verdade?

Abraxas continuou:

— Olhos claros. Cabelo castanho escuro. Estatura média. Um brinco de pé­rola com ouro branco.

— Olha Regina, eu vi sua mãe. Eu não a conheci em vida, mas eu a vi. Ela tinha olhos claros, grandes, bonitos... um cabelo escuro, castanho escuro! Usava um par de brincos muito delicados... eram de ouro branco e havia uma pérola. Tinha mais ou menos a sua altura. Esta não é sua mãe?!? — Eu fechava os olhos como se estivesse vendo, mas na realidade estava ouvindo. — Eu estou vendo ela! Ela está bem aí ao seu lado. E quer falar com você!

Regina estava profundamente sensibilizada com o que ouvira, abalada até, totalmente quebrantada.

— E além disso... sua mãe não quer nenhuma missa de sétimo dia, não! — Falei, mas por falar, apenas para poder acrescentar logo a seguir: — E também não quer que você vá conversar com nenhum Pastor. Ela quer que você fale dire­tamente com ela!

— Tá bom, tá bom! — Gritou Regina. — Eu vou! Como é que eu faço? Aonde eu tenho que ir? Mamãe, querida mamãe! Como é que eu faço? — A choradeira continuava, a tristeza estampada no rosto e no olhar.

A batalha estava ganha. Sorri intimamente, procurando acalmá-la, sempre com muito carinho e respeito:

— Fique tranqüila. Procure se acalmar que tudo vai sair bem!

E realmente ela foi comigo, como Abraxas determinara. Levei-a à casa de Ariel. Uma das “ferramentas fortes” dele era o espiritismo. Eu havia ligado para ele durante a semana para marcar um encontro com Regina.

— Eu recebi uma ordem de Abraxas para trazê-la para cá. — Expliquei a ele.

— Tá bom. Trás ela aí que a gente conversa! Então eu a levei tão logo possível.

— Realmente tinha um presente na cômoda... — Disse ela tão logo me viu novamente. — E eu não fui ao encontro com o Pastor Sálvio. Não marquei para outra data também.

Ariel disse-lhe um monte de coisas, todas certeiríssimas. Até escreveu-lhe um bilhetinho da “mãe”. Com a letra dela! E Regina saiu de lá encantada com o que vira e ouvira. Ariel havia terminado o encontro com a orientação:

— Sua mãe está dizendo que você deve freqüentar tal e tal lugar! — Deu-lhe o endereço de um centro espírita Kardecista, conforme foi orientado pelo seu próprio Guia. — Você deve estar lá. Aquele é seu caminho. Você vai preparar-se, desenvolver-se, crescer em mediunidade. E, em breve, você poderá ver sua mãe. Em algum tempo atingirá este potencial e ela poderá aparecer para você. E não haverá mais necessidade de intermediários, como eu!

Minha missão estava cumprida.

Era tudo tão palpável... tão certeiro... pegou-a no momento certo... e no ponto certo!

Pelo que soube depois, por meio da Bia, realmente ela estava freqüentando o tal centro. E largou mão da Igreja Evangélica!

 

Várias semanas mais tarde cruzei novamente com Regina. Estava passando novamente perto da casa de Bia que, para variar, me acenou da janela do seu quarto, no segundo andar. Parei para uma conversa rápida. A Regina estava lá outra vez. Desta feita ela fez muita questão de conversar comigo, estava diferen­te.

— Você me ajudou muito... nossa, como é que você sabe todas essas coisas?

— Tudo é uma questão de oportunidade... e de aprendizado. Começamos a conversar. Ela me olhava, olhava diferente, não tirava os olhos de cima de mim.

Abraxas ainda me disse, em dado momento:

— Ela te agrada?

— Bom... ela é bonita. — Respondi, baixo, apenas para que ele escutasse.

Regina tinha o cabelo louro abaixo dos ombros e olhos tremendamente ver­des. Não foi preciso que ele dissesse mais nada, eu sabia que se a quisesse, esta­ria disponível. De fato, ela se insinuou muito. Me perseguiu com o olhar durante toda a noite. E a Bia facilitou tremendamente as coisas, lá pelas tantas deixou-nos sozinhos. Até a mãe dela fez de tudo para que eu ficasse:

— Dorme aí, pode subir. Fique à vontade!

Eu aproveitei e fomos mesmo para o quarto, eu e Regina. Conversamos bastante, rimos, cantamos. Dava para perceber que ela estava fascinada comigo e louca para maiores envolvimentos. Quando ela forçou a barra, me fiz de besta enquanto deu. Mas como ela não deu paz, tive que ser mais direto:

— Regina, não vale a pena. — Falei olhando fundo nos seus olhos. — Não faça nada de que você possa se arrepender amanhã.

— Você não quer? — Ela foi bem explícita. — Não me acha bonita?

— Você ainda está muito carente e a gente nem se conhece. Deixa rolar a amizade, se tiver de ser, vai ser.

E fiquei por lá até umas sete da manhã. Desconversei e fui mesmo embora. Apesar do que Abraxas me dissera, eu não a queria. Tinha minha liberdade. Mais tarde comentei com Marlon o verdadeiro motivo da minha recusa:

— Fiquei com pena dela... ela parecia tão triste ainda!

Foi uma das poucas vezes em que Marlon irou-se comigo: — Pena?! Pena?!! — Ele ficou bravo de verdade. — Que sentimento mais pri­mitivo! Podia ser qualquer outro motivo, Eduardo! Os filhos do Fogo são os escolhidos, o resto...sabe o que é o resto? Puro excremento! Não valem nada! O que são na ordem das coisas para que mereçam a sua pena?! Engrossar o reino de Lucifér é despovoar o Reino de Deus, e isso é o que de fato importa! E despovoar o Reino de Deus não significa fazer a todos filhos do diabo, entende, meu filho? Lucifér escolhe apenas os melhores, ele quer para si uma raça pura! Parta sempre do seguinte princípio: se duas nações poderosas estão em conflito, e uma delas consegue dividir a outra em quinhentas partes, já está ótimo! Não é necessário que as quinhentos partes sejam englobadas à nação mais poderosa. Deu pra en­tender?

 

Muitas outras coisas começaram a mudar.

Um outro dia eu estava com Marlon e Thalya tomando um café no meio da tarde perto da Alameda Santos. O lugar era bonito e agradável, ficava bem em­baixo de um “Flat”. Não sei como começou a conversa, e muito menos como eles conseguiram me convencer.

Marlon às vezes dava a entender muito de leve que talvez eu devesse mudar um pouco a minha indumentária. E procurava me preparar para aceitar aquilo numa boa. Eu continuava me vestindo ao meu modo: rasgado, com botinas de exército, braceletes.

— Sabe, Eduardo, a Sociedade dá muita importância para os “rótulos”. As aparências. E sempre somos tratados de acordo com o rótulo que apresentamos. Você precisa pensar em mudar um pouco o seu visual. Pode ser que fique muito bom! O que que você acha?

Thalya comentou de imediato:

— Ah, é isso mesmo.   Você devia experimentar, Edu! Eu não tenho nada contra o seu estilo, inclusive gosto muito, mas todo mundo dá um passo pra trás quando te vê. Quem não te conhece e não sabe como você é, já fica assustado de cara. Já pensam que vão ser assaltados!

Demos risada.

— Mas é assim que eu gosto. Me sinto bem assim! Pra que mudar?

— Ah, Edu!!! Vamos experimentar! Pensando bem, já imaginou você com uma roupa da hora?

— Até Deus usou de rótulos. — Continuou Marlon. — Se Ele se apresentasse aos homens dizendo algo mais ou menos assim: “Olha, Me sigam. Me sigam porque agora vocês vão ser separados da sua família, vão perder tudo o que têm. Vou entregá-los na boca do leão depois que vocês tiverem feito tudo o que Eu quero”. Vê lá se alguém ia atrás dessa conversa! Mas Ele se “rotulou”, se apre­sentou da forma como sabia que seria mais bem aceito. Lucifér também se apre­senta como quer, dependendo da sensação que quer causar. E a Sociedade tam­bém é assim. Para você ser bem aceito, precisa apresentar o rótulo certo.

— Faz sentido. Mas não sei, não! Sabe que que é? E se eu tiver que lutar com alguém na rua? Se eu for dar um chute quem garante que uma calça social não vai prender os meus movimentos? E se o solado dos sapatos sociais não derem a aderência que eu preciso, e eu escorregar e cair no meio de uma confusão? Isso pode me custar muito caro!

— Também não é assim, filho. Tem calças que são muito boas, muito resis­tentes, e que dão perfeita liberdade. Os sapatos também não são essa coisa horrível que você está pensando. Mas é claro que roupas e sapatos bons custam um certo dinheiro. E eu sei que você está acostumado somente com aqueles sapatos terríveis do “DIC”!

Thalya caiu na gargalhada e me cutucou, toda espevitada.

— É isso mesmo, que eu sei!

Tive que rir de novo. Não adiantava querer negar. O único par de sapatos que eu tinha era uma tragédia de mal feito. (Bons mesmo eram os meus tênis “motoca”. Eles tinham até uma bolsinha do lado para guardar moedas para o ônibus).

— Mas como é que ficam as caneleiras?! — Perguntei, querendo complicar. Vou poder continuar usando por baixo da calça? Vai que não cabe!

— Cabe. Cabe, sim! Pode continuar andando o dia inteiro com elas que não tem problema.

E me convenceram.

— Tudo bem, uma hora qualquer aí eu vejo se compro uma outra roupa... Mas Marlon atiçou ainda mais as bichas de Thalya que estava à toda com a idéia de me ver arrumado. Tirou um maço de notas do bolso do paletó e colocou sobre a mesa. Em dinheiro de hoje era mais ou menos uns cinco mil reais. Grana que não acabava mais.

— Olha, isso aqui é pra vocês dois. Podem usar como quiserem. Comprem umas roupas novas!

Thalya me entregou de novo sem dó, exclamando prontamente:

— E nem pense em comprar pó com isso! É pra comprar roupa! Cocaína, era o que ela queria dizer. Não que eu fosse usar a droga, mas eu podia fazer uma quantia três vezes maior revendendo. E brinquei:

— Eu transformo isso aí em quinze mil! Marlon interferiu, bem humorado:

— Deixa essa bobagem pra lá, já conversamos sobre isso. Não vai te levar a lugar nenhum! Depois, não precisa se preocupar com dinheiro. Podem ir e usem à vontade. Se precisarem de mais depois a gente conversa. Tudo bem? Estamos combinados?!

Era a primeira vez que ele me dava dinheiro. E que quantia!

— Vamos, vamos, vamos! — Thalya estava afoguetada. Tudo para ela era motivo de festa.

— Calma, deixa eu tomar o café primeiro!

— E esse cabelo? Você bem que podia cortar, né? Aquilo j á era exigir demais.

— Pode esquecer. Não vou cortar coisa nenhuma! Nem o professor do boxe conseguiu isso.

Era fato. Eu tinha treinado um pouquinho de boxe no DER De início tudo bem. O professor Mutuca era bom e ensinava legal. Ainda que vivesse pegando no meu pé porque a toda hora eu enfiava chute no saco de pancada, como fazia no Kung Fu.

Mas boxe era boxe. Não se pode chutar o saco! Só que eu não estava nem aí. Bastava o Mutuca distrair e lá estava eu com chute atrás de chute. Às vezes me empolgava, esquecia tudo e todos, e Poft! Poft! Poft!

De repente, aquele silêncio. Todo mundo olhando pra mim só esperando o que ia acontecer. E eu tomava altas bordoadas do professor. Mas não respondia. Ficava quietinho porque podia ser expulso, e eu queria treinar.

Mas aí o Mutuca começou a implicar com o meu cabelo. Logo me arrumou um apelido: Maestro.

— Maestro, você precisa cortar esse cabelo. Aqui não dá pra ter essa gadelha. É pra sua própria proteção. Se você levar um soco, abrir o supercílio e o cabelo entrar dentro, é muito mais fácil de infeccionar.

— Pôxa, Mutuca, levou tanto tempo pra ficar assim comprido. Que coisa! Eu desconversava um pouco e às vezes prendia num rabo. Mas nem me passava pela cabeça acatar aquela sugestão besta de cortar o cabelo. Só que ele não me dava trégua.

— Maestro... quando é que você vai cortar o cabelo?! Estou avisando, se você não vier com o cabelo cortado amanhã não vai poder treinar! Esse seu cabelo é pra quem faz música, entendeu? Não é pra quem luta boxe.

Vi que ele não ia desistir e procurei ganhar tempo.

— Mas sabe o que é? Eu estou sem dinheiro para o corte. Meu pai só vai me dar a mesada mês que vem.

Como se meu pai me desse alguma mesada! Ele torceu um pouco o nariz mas compreendeu.

— Mês que vem, é? E que dia do mês que vem?

Joguei uma data bem distante. Quem sabe ele esquecia daquela bobagem? Mas que nada. Não é que o Mutuca guardou tudo na cabeça e nem bem chegou o dia, já veio me cobrando:

— Então? Recebeu a mesada?

— Recebi, mas meu irmão ficou doente, sabe? E eu tive que comprar remédio pra ele. E, olha, não tenho dinheiro para o corte.

Mutuca olhou bem pra minha cara e por fim perguntou:

— Quanto é que custa o corte? Chutei um valor. Ele enfiou a mão no bolso e me deu o dinheiro.

— E não me apareça mais aqui sem cortar o cabelo! “Oba! Grana!”, regozijei-me.

Na saída do treino passei no supermercado e comprei um engradado de cer­veja. Levei para a casa do Éder, chamamos o Cebola e mais alguns. Ficamos até as tantas bebendo, tocando violão. E nem por sombra me passou pela cabeça fazer o que deveria com o dinheiro.

Até que não deu mais pra enrolar. E o Mutuca acabou me expulsando do treino. Nem liguei.

— Eu não ia cortar mesmo! — Retruquei para ele. — E fiquei com o seu dinhei­ro!

Quando ele começou a se irritar, fui embora. Esqueci do boxe. Contei a Marlon o episódio e fui categórico novamente.

— Não vou cortar o cabelo!

Thalya deu-se por vencida. Marlon só riu e nos despachou:

— Bem, crianças... tenho o que fazer agora. Aproveitem um pouco. Eduardo, por que você não vai para o Shopping com a sua irmã e compra umas coisas legais? — E para Thalya: — Confio no seu bom-gosto!

E foi o que fizemos. Ela estava de carro e fomos direto para o Shopping Morumbi. Foi uma tarde muito agradável. Primeiro rodamos bastante olhando as vitrines. Eu nem podia acreditar que estava mesmo fazendo aquilo. Eu não gosta­va de olhar vitrines e nem de experimentar roupa. Finalmente nos decidimos por uma loja enorme e muito elegante que tinha de tudo em termos de roupa mascu­lina, inclusive sapatos.

Thalya conseguiu me estimular o suficiente para que eu experimentasse di­versos modelos de terno.

— Uau, que gato você está! — E entrava junto comigo na cabine, me ajudava com as camisas e o blazer.

Comprei três ternos finíssimos, várias camisas, sapatos e meias. Gastamos uma fábula.

— O perfume deixa que eu compro. — Gritou Thalya. — Eu quero escolher! Depois fomos olhar roupas para ela. Thalya não era o tipo de moça que gostava de usar trajes muito sociais. Preferia as roupas indianas e largas, calças jeans, camisetas. Mas agora ela tinha que empatar comigo. Mas não comprou muita coisa: um conjunto de saia e tailleur muito delicado, e um vestido azul de festa.

Aí fomos jantar. Logo depois acabamos passando em frente ao salão de cabeleireiros. Era luxuoso e me espantei com o preço do corte. Muitíssimo além daquele valor que eu tinha surrupiado do Mutuca.

— E se você entrar só para lavar e pedir pra acertar o corte? Não precisa cortar muito. Só acertar? Heim? Que tal?!!

E acabei indo. Mas cortei bem pouquinho. Ficou bom.

Quando apareci em casa de Camila, ela e a família levaram um susto tre­mendo. Camila olhou para o terno de marca, os sapatos impecáveis, sentiu o cheiro do perfume.

— Eduardo! Você acertou os números na loto? Eu vivia jogando.

Não. Não acertei, não. Mas é que eu vou começar a trabalhar numa grande Empresa e eles me adiantaram o salário.

Que desculpa esfarrapadíssima!!! Mas acreditaram. Quiseram saber tudo sobre o meu emprego. Eu não tinha o que contar sobre o emprego porque o empre­go não existia. Então só respondi:

— É segredo. Ninguém tem que saber aonde eu trabalho!

E ponto final. Diante daquele resultado surpreendente não havia nem o que questionar!

 

Profissionalmente falando, naquela altura dos acontecimentos tudo era uma incógnita para mim.

Minha Iniciação na Irmandade coincidiu com um período no qual eu havia optado por algo nada convencional. Acabara por desistir dos empregos conven­cionais e há meses vinha vivendo apenas do Kung Fu.

Naturalmente que minha família detestou esta opção. Primeiro porque neste aspecto eu nunca fui incentivado mesmo. Segundo porque a minha remuneração era muito sazonal. Além do que eu não tinha registro em carteira. Pelo menos a princípio.

Mas a maior parte do tempo eu recebia uma boa grana. Apenas em algumas ocasiões — nas férias de Inverno, por exemplo — meu salário chegava a diminuir em até 80%.

Eu já era quase adulto e totalmente dono do meu nariz, fazia o que bem entendia, mas a pressão vinha implacável de todos os lados. Principalmente da minha família e de Camila, que literalmente continuava odiando tudo que se rela­cionasse com o Kung Fu.

Resolvi então tentar reconciliar um emprego “normal” com minha vida de Professor. Não houve muita dificuldade nisto e eu optei por um emprego na Pharthon’s. Temporário. Só para ver no que ia dar.

Condensei todos os meus períodos de aulas nas terças e quintas à noite, de forma que não colidisse com as reuniões da Irmandade. O colégio levei como dava. Tinha que faltar um pouco, não tinha jeito. E o dia reservei para trabalhar na Pharthon's.

A Empresa tinha ônibus fretado mas eu nunca tinha usado esse tipo de mor­domia. Isso fez com que meu primeiro dia de trabalho fosse uma comédia! Para­do cedinho no ponto, tomei o primeiro fretado que apareceu. Eu não sabia que o nome da Empresa deveria aparecer no painel do ônibus. E, feliz da vida, me acomodei e tratei de dormir até chegar no serviço.

A bem da verdade eu não estava lá muito empolgado. Se não fosse possível conciliar com as aulas de Kung Fu o emprego que fosse para o espaço! Porque, bem ou mal, eu gostava muito do que fazia na Academia. A maior parte do tempo a grana era suficiente e, se não fosse, sempre dava pra arrumar um “extra” por lá mesmo. Na ADINK esporadicamente eu convocava treinos que varavam a ma­drugada toda com os meus alunos. Naturalmente que eles me pagavam in cash, na hora. Normalmente esse treinos rendiam muito e o pessoal adorava a novida­de. Era muito proveitoso para ambas as partes. E haja cooper pelas ruas de São Paulo!

O fato de ter as chaves da Academia me facilitava porque o meu sangue de “marginal” ainda corria pelas veias. Eu podia revirar tudo, fuçar à vontade! Um dia descobri uma gaveta cheia de diplomas em branco... que eu podia surrupiar... carimbar... e vender!

Vendi muito diploma. Especialmente para aquele povo que estava voltando para o nordeste, que viera tentar a vida em São Paulo e não tinha dado certo. Olha só que bela oportunidade! Voltar como mestre de Kung Fu e abrir uma academia! Óbvio que um diploma deste custava caro. Mas depois acabei me arrependendo. Não porque tivesse furtado, mas por estar prostituindo a Arte. E parei com aquilo movido por esta causa muito nobre: preservar as puras raízes do Kung Fu.

Eu ponderava em todas essas coisas afundado na poltrona do ônibus freta­do. E dormi. E acordei ultra longe! No meio de uma fábrica.

“Nossa! Onde estou?”, pensei comigo.

Que trabalheira para voltar. Mais tarde, quando já estava relativamente entrosado com o pessoal do meu serviço, fui apelidado de “Alien, o 43° passagei­ro” por causa deste episódio.

E uma vez na Pharthon's... como o serviço era chato! Eu era um mero auxi­liar administrativo encarregado do Telex e do arquivo! Que sofrimento para tor­nar aquele trabalho medíocre deglutível.

Uns vinte dias depois do meu início, Marlon me encostou na parede por causa desse assunto. Foi no meio de um bate papo informal, no meio do chope, no meio dos salgadinhos. Uma das coisas boas de se fazer parte da Irmandade era que eu nunca precisava falar sobre os meus problemas. Eles simplesmente sabi­am, ou adivinhavam as minhas necessidades! Especialmente Marlon.

Thalya não estava presente nesse dia, nem sei por quê. Mas Rúbia estava, Ariel, Górion, Aziz, Zórdico, Kzara e mais alguns. Todos conversavam, riam, Rúbia não parava de contar piadas de Cristãos.

Até que Marlon voltou-se para mim e subitamente quis saber sobre o meu trabalho. Eu comecei a contar sobre o episódio do primeiro dia e a confusão em tomar o ônibus fretado. Marlon tinha o corpo voltado para mim e escutava atento minha história. Mas não era bem o que ele queria ouvir. E voltou à carga:

— Mas o que é que você faz lá?

Naturalmente que eu não ia perder o rebolado. Respondi emendando uma frase na outra e fazendo parecer que meu serviço era uma das sete maravilhas do mundo. Discursei um pouco, abusando do palavreado. A quem eu queria enga­nar?

Marlon permaneceu quieto e continuava me olhando enquanto eu falava. Mas a pergunta dele me derrubou:

— E você está contente lá? Parece mesmo ser um serviço muito interessante...

Num instante senti meu orgulho ruir. Não tinha porque fazer parecer que aquela estupidez toda era tão boa assim! E Marlon me queria tão bem, não havia o por quê daquela dissimulação entre nós.

— Não... — Respondi até meio cabisbaixo. — Não estou contente.

— E aonde você gostaria de trabalhar? — Ele pareceu querer me animar.

— Ah! Eu queria trabalhar num prédio bonito. Fazer alguma coisa legal. Inte­ligente. O meu serviço é muito besta! — Agora era eu mesmo falando. — Eu não agüento mais fazer arquivo, cuidar daquelas pastas e passar aquelas mensagens idiotas o dia inteiro! — Desabafei. — Estou cheio de ser pau-para-toda-obra e ficar datilografando.

A empatia de Marlon foi genuína:

— É...você está coberto de razão. Merece coisa muito melhor! Você é inteli­gente e cheio de potencial. Diga-me uma coisa... aonde você gostaria realmente de trabalhar?

     Divagar um pouco naquela idéia foi gostoso. Sonhar, afinal, não faz mal nenhum. — Pôxa, cara...eu gostaria de trabalhar na Avenida Paulista! É super linda e fica perto de casa. Eu adorava a Paulista. Já tinha trabalhado lá um tempo e daria tudo para voltar. — Mas “Paulista” é vago, né, Eduardo?! Que lugar da Paulista? Tem algum lugar que você gostaria mais?

Dei risada com a brincadeira dele e resolvi encarar de verdade. Nem precisei pensar muito.

— Tem, sim! Tem o prédio da Canion Tower!

Era um prédio lindo, recém inaugurado, uma grande instituição financeira multinacional. Sempre que eu passava por ali ficava babando. E pensava em como não seria o máximo estar lá dentro todos os dias!

Mas a pergunta de Marlon até me cortou um pouco o barato:

— E você gostaria de trabalhar lá?

Parecia um cruel retorno à realidade. Mesmo assim respondi afável, apesar do ar zombador:

— Ah, sei, eu vou ser o “boy”, né? — A pergunta dele era ridícula. — Ou, quem sabe, o porteiro! Ou segurança! Não, obrigado! Ascensorista, será que precisa?! Acho que não, o elevador deve ser computadorizado! — E dava risada compulsivamente.

Marlon sorriu diante dos comentários tão depreciativos a meu próprio respeito, mas poupou maiores comentários.

— Eu só te fiz uma pergunta simples: gostaria ou não gostaria?

Peguei uma mini-coxinha do prato levemente incomodado com a questão. Procurei não demonstrar o que sentia, afinal aonde ele queria chegar? E respondi, resmungando, enquanto comia a coxinha:

— É claro que gostaria, né, Marlon! Que pergunta.

— Você por acaso se esqueceu, Eduardo... de a quem pertence este mundo? — Marlon fitava-me um olhar sério agora, remexendo a tigela de tremoços com o garfinho. — Parece que você se esqueceu de que Lucifér ofereceu este mundo... as Nações... ao próprio Jesus! Já parou para pensar nisto? Ninguém dá o que não tem.

Eu dei um muxoxo, sem responder.

— A Lucifér foi dado este mundo. — Continuou Marlon. — E ele o dá a quem quiser! Me parece que você se esqueceu do direito legal que passou a ter... quando foi feito filho do Fogo. Você não é mais a mesma pessoa... Rillian!

Ele falava com convicção e segurança, e apoiou a mão sobre o meu ombro. Era o gesto carinhoso de sempre. Mas eu recebi as palavras de Marlon como um mero discurso. Ou, melhor! Nem as recebi. Apenas escutei, como me cumpria fazê-lo. Mais nada.

— Você não está a par da realidade. Vejo que você não está compreendendo o que ocorre. Não está ainda de olhos abertos para ver. — Marlon fez uma pausa rápida. — Você foi chamado para muito mais do que apenas brincar com Artes Mágicas.

Encarei tudo aquilo como uma “bronquinha”. E era de fato. Ele concluiu:

— O Oculto já lhe foi revelado, filho, mas está parecendo que para você ele ainda está oculto, não?

Eu não quis argumentar mais, meio irritado. Apenas dei de ombros e com um resmungo seco encurtei a história:

— OK. Tá bom. Deixa isso pra lá. Na Pharthon's está bom para mim, é uma Empresa boa também e quem sabe eu consigo crescer lá dentro, aos poucos!

Ele não disse mais nada e eu também não. Mudamos de assunto e eu esqueci da conversa. Nem dei importância alguma ao que ele me dissera.

 

Passados dois dias eu estava bem no meio de minha entediante jornada de trabalho, em meio aos arquivos e o Telex, quando avisaram-me:

— Telefone pra você!

— Já vou. — Devia ser a Thalya. — Alô?

— Eduardo? Eduardo Mastral? — Não era a voz de Thalya.

— Sou eu.

— Boa tarde! Eu sou a Noêmia, da Agência de Empregos “Bonanzza”! E nós estamos aqui com o currículo do senhor.

Minha mente deu algumas voltas: “As Agências devem ter trocado cadas­tros, só pode!”

Mas ainda assim perguntei, espantado:

— Que currículo? Vocês têm o meu currículo?!

— Sim, estou com ele aqui na minha mão. Você não é o Eduardo Daniel Mastral, e não mora em tal e tal lugar? — Sou eu mesmo!

— Estamos com uma vaga que talvez lhe interesse. Você não quer dar uma passadinha aqui amanhã pela manhã para a gente conversar?

Fui raciocinando enquanto falava com ela. Realmente eu havia distribuído alguns currículos antes de decidir-me pelo emprego na Pharthon's. Devia mes­mo ter sido algum intercâmbio entre as Agências. Agendei a entrevista.

— Amanhã de manhã, então! Você pode me confirmar o seu endereço? — Pedi.

— Certamente!

Qualquer coisa era melhor do que o meu atual emprego. Desliguei o telefone bastante animado.

No dia seguinte fui à tal Agência, feliz da vida, faltando no emprego por uma boa e justa causa. Minha curiosidade logo foi saciada e a oportunidade me alegrou muito:

— Temos vaga na Canion Tower. — Esclareceu-me a Noêmia. — Uma vaga de auxiliar administrativo, outra de assistente administrativo e outra de técnico de câmbio. Estou vendo que você está registrado aqui na Pharthon's como auxiliar administrativo. O que você faz lá?

Eu estava bastante surpreso com a coincidência. E chutei o pau da barraca, aumentando os meus encargos e responsabilidades, com ar seriíssimo. Ela ouvia, fazendo anotações em minha ficha. Logo que terminei de falar ela me fez mais umas duas ou três perguntas tolas e avisou-me:

— Vou então encaminhá-lo para a vaga de auxiliar administrativo, na qual você mais se encaixa. A entrevista na Empresa será hoje mesmo, à tarde!

— Muito obrigado!

Eu já estava me erguendo, mas ela interrompeu-me com um sorriso e um comentário.

— Você sabe como você vai, né?

— Vou de ônibus. — Esclareci.

— Não, não! Estou dizendo que você precisa ir de terno!

— Ah! — Sorri de volta. Meus 18 anos e minha história de vida me haviam poupado desse tipo de conhecimento. — Tudo bem, não se preocupe!

— Boa sorte!

Despedi-me dela com o envelope de encaminhamento na mão. Saí exultante para a rua.

— Que sorte a entrevista ser hoje!

Voei para casa para me aprontar o quanto antes. Tinha que estar na Empresa no começo da tarde.

“Ainda bem que agora eu não terei problemas com a roupa!”, refleti alegre­mente.

De fato, não fossem as recentes compras que fizera e teria que pegar em­prestado um terno do meu pai. Algumas poucas vezes eu tinha tido que fazer uso deles, e foi um desastre! As calças ficavam de pula-brejo e as mangas do paletó vinham quase até o cotovelo se eu erguesse os braços.

Ironicamente falando, não era muito diferente daqueles Pastores que ficam pregando aos urros na Praça da Sé.

Fazer o quê! E fui.

Na Canion Tower as entrevistadoras deixaram claro logo de início:

— São duas as vagas para auxiliar administrativo e estamos com doze candi­datos. Mas estamos finalizando o processo de seleção e, para dizer a verdade, já estávamos decidindo o quadro. No entanto nós trabalhamos com várias Agênci­as, e como a Bonanzza mandou você, vamos entrevistá-lo. Saiba que você é o último candidato porque temos que decidir com urgência este cargo.

A entrevista foi muito simples. Só o básico. Mas tudo o que eu pudesse aumentar, aumentava astronomicamente. Empolgado como estava, me saí muito bem.

— Está ótimo. Hoje mesmo vamos finalizar a escolha. Se você estiver dentre os escolhidos, entraremos em contato. — Disse uma delas estendendo-me a mão.

Agradeci e fui direto para casa. Nem valia a pena ir para a Pharthon 's na­quela altura. Quando cheguei, minha mãe me deu o recado assim que abri a por­ta:

— A Edite ligou para você.

Era uma das moças que me haviam entrevistado! UAU! Liguei de volta.

— Parabéns, você foi aprovado! — Congratulou-me ela. — Daria pra você começar na semana que vem? Segunda-feira?

Era uma quarta. Perfeito!

— Claro! Segunda está ótimo! — Desliguei o telefone no auge. — Que mão na roda!!!

O melhor de tudo era que eu podia dar um bico na Pharthon's! Eu poderia simplesmente faltar... mas isso não seria tão divertido! E resolvi que iria trabalhar na quinta-feira só para me divertir um pouco.

Naquele dia mesmo à noite, na reunião de Conselho, eu estava ansioso para contar a novidade ao Marlon. Ele estava ocupado no final conversando com al­gumas pessoas que tinham vindo de fora. De modo que apenas dei-lhe umas batidinhas no ombro:

— Depois quero falar com você!

E fiquei conversando no meio do pessoal. Quem soube das novidades em primeira mão foi Thalya.

— Imagina só! Já começo na segunda!

— Pôxa, cara, que massa! Lá é super-super-bonito!

Thalya vibrava genuinamente apesar de que ela mesma trabalhasse em um posto de gasolina como frentista. Tudo bem que não era um posto qualquer, fica­va pertinho da Paulista, na esquina de uma das Alamedas. Mas ainda assim, pos­to era sempre posto! Não raro Thalya chegava cheirando a gasolina nas reuniões.

— Ih, você deixou cair gasolina na roupa outra vez! — Era o meu comentário costumeiro.

Mas ela nem se abalava. Estava bastante segura que um cheirinho de gaso­lina, se partisse dela, era até que muito charmoso. Ainda mais que agora Thalya era modelo, tinha saído até em algumas revistas legais nos últimos meses.

— Caramba!... — Ela ainda estava espantada com a Canion Tower. — Até agora nós não passávamos de dois peões, o arquivista e a frentista. Isso até dá título de filme! Mas agora você está melhorando. Será que eu consigo ser promo­vida no posto, pra acompanhar?

Até me esqueci de Marlon. Ele me procurou mais tarde, mas ao me ver mui­to entretido e aos risos no meio do grupo, deixou passar.

No dia seguinte, com toda a rompança do mundo comecei de cara chegando atrasado na Pharthon's. Havia uma senhora que era a “Supervisora do Arquivo” e o trabalho dela era “deixar tudo em ordem”. E quem era o único subalterno dela... aquele a quem D. Clotilde podia encher de serviços chatos? Eu. Isso mes­mo. Eu era o “menino” que ajudava no arquivo. E ela supervisionava.

— Eduardo, pegue a pasta verde!

— Sim.

— Agora guarde.

— Sim.

— Agora passe essa mensagem. E leve a resposta lá no décimo! — Sim. E “Por favor”, “Obrigado” eram palavras que dificilmente se encontravam no seu vocabulário, pelo menos comigo. Mas aquele seria o dia da vingança! Eu estava com ela na garganta.

Como se não bastasse a falta do dia anterior e o atraso, fiz cera para tomar café. Encontrei D. Clotilde já de “ovo” tão logo entrei no departamento.

— Você faltou ontem e essas pastas precisam ser arquivadas com urgência. — Foi logo dizendo, antes do “Bom dia”. — Nossa, você precisa ser um pouco mais responsável! Como é que você pretende ser alguma coisa na vida deste jeito?! E olhe, essas pastas precisam estar arquivadas antes do meio dia, ouviu bem? Vou subir lá no sétimo e quando eu voltar quero ver tudo em ordem porque se o meu gerente me aparecer e vir esta bagunça toda, vai sobrar é pra mim! — E blá, blá, blá! Ela andava à minha frente gesticulando. — Tem também estas mensagens que deveriam já ter sido enviadas desde ontem! E esta página datilografada aqui não está certa! Você copiou uma palavra errada, e deu outra idéia, e quase me causou um tremendo estrago! Isso não pode mais acontecer. Trate de copiar a página toda outra vez, seu Eduardo!

Tão logo me incumbiu das tarefas, sumiu. Eu me acomodei no meu canto e fiquei desenhando. Vampiros, cemitérios, lobisomens. Desenhei, desenhei. Cansei de desenhar e D. Clotilde não aparecia!

Então fui para o Telex. Naquela época, quando o Telex era bastante usado, sempre tinha alguém “do outro lado”. Disquei qualquer número e lancei o chavão:

— Oi! Quem aí?

— Oi! — Veio a resposta. — É o Uruca.

— Oi, Peruca, aqui é o Catatau!

— Não é Peruca, é Uruca.

— Peruca é mais legal. Que você faz aí?

— Eu opero Telex. E você?

— Eu também. Como está o tempo?

— Tá sol! Você vem pra cá?

— Não, Peruca, só queria passar o tempo.

— Pô, não mexe comigo. Na verdade eu sou o amigo do primo do tio do vizinho do irmão do Schwarzenegger.

— Tá legal. E eu sou o primo do amigo do sobrinho do Bruce Lee.

Eu estava no meu assunto predileto e a conversa foi por aí afora. Pelo visto o colega também não tinha mais o que fazer. Era engraçado!

— Tem hotel legal aí, Uruca?

— Sei lá. Não moro em hotel.

— Acho que eu vou aí!

Quando a D. Clotilde chegou eu já havia gasto quase ique uma bobina inteira de Telex só no papo furado! Ela olhou de longe para mim e pensou que eu estava trabalhando. Comentou, toda espantada:

— Nossa, mas o texto ficou grande! O que aconteceu?

Chegou mais perto e leu algumas frases. O sangue afluiu-lhe ao rosto e ela só faltou me bater. Muito vermelha rasgou o papel gritando:

— Mas o que é que você pensa que está fazendo, menino?!! Vai já cuidar do seu serviço!! — Bateu sobre a pilha de pastas. — Arquive estas pastas agora!

Eu cruzei as pernas na cadeira e falei com calma, contendo o riso:

— Ah, eu não vou arquivar, não. Arquiva você!

— Vai já e enfia estas pastas no armário, menino, que se o gerente passar por aqui...

— Quer saber? Tem lugar melhor para enfiar as pastas! — Eu não tinha um pingo de educação. — E outra: eu vou embora! Você é muito chata. Fica aí sozi­nha! Pronto! Perdeu o menino!!!

Virei as costas e fui direto para o departamento pessoal.

— A conta.

Foi rápido. Quando passei de volta pelo meu setor lá estava D. Clotilde arqui­vando as pastas. Pus as mãos na cintura e falei bem alto, imitando o jeito dela, em tom irônico:

— E arquive tudo, ouviu?!

Ela olhou com ódio para mim. Ah, se pudesse me pegar! Saí triunfante e muito bem vingado da Pharthon's. Fui direto para a Academia, aproveitar o tem­po livre. E esperei ansioso pela segunda-feira.

 

Quando pude conversar com Marlon foi com todo o orgulho do mundo. Já cheguei cheio de mim:

— Marlon! Adivinhe aonde estou trabalhando!

— No Canion Tower.

— Ué?!...Eu já te contei? Ah, já sei! Foi a Tassa, né?

— Não, não foi. Mas eu já sabia. Eu te disse que você merecia algo melhor. Meus parabéns! E não vai ficar só nisso. Espere!

Não falei nada. Será que eles tinham feito alguma coisa? Facilitado de algu­ma forma...?

Até aquele momento não tinha associado a recente conquista com a Irman­dade.

 

Eu e Camila estávamos novamente brigados, para variar. Tinha rolado um “pau” feio e eu tinha terminado outra vez.

— Não quero mais ficar com ela! Meu mundo e o dela não combinam mais! — Saí furioso, disposto a não dar as caras nunca mais.

Foi a mesma ladainha de sempre. Mas depois a caixinha de pertences logo foi enviada para minha casa: as coisas que eu havia dado a ela. Lógico que os presentes mais caros como roupas, tênis importado e algumas jóias ela nunca devolvia! Como se eu quisesse algo de volta!

Mas quem sabe dessa vez dava certo!

Estávamos separados há alguns dias e eu aliviadíssimo com a situação quando conheci a Mariana. Foi na Canion Tower, ela foi contratada para o setor de marketing e começou alguns dias depois de mim. De cara chamou a atenção do pessoal do setor dela e dos setores vizinhos.

— Esta garota aí é jeitosinha.

E era mesmo. A rapaziada apostou quem a levaria primeiro para almoçar. Mas, que nada! Ela almoçava com as moças todos os dias e recusava os convites. Eu observava, caçoando dos meus colegas.

— Vocês não estão com nada, heim?

Resolvi fazer do meu jeito. Se ela sorrisse, estava no papo. No final da ma­nhã eu a observei passar perto de minha mesa, por trás do vidro divisório, quan­do foi para o outro lado do departamento com uns papéis na mão. Fiquei espe­rando.

Quando Mariana voltou, dei umas pancadinhas no vidro para chamar-lhe a atenção. Os setores eram todos separados daquela maneira. Ela olhou e eu colo­quei sobre o vidro o convite: “Vamos almoçar hoje?”. E fiz uma careta gozada do outro lado. Mariana olhou primeiro para mim e depois para o papel. E riu. Não me deu resposta mas foi para o seu lugar.

Na hora do almoço, à caminho do elevador, só dei uma batida em cima do tampo da mesa dela:

— E aí? Vamos almoçar?! — Mas não parei e nem dei muita bola para ela. Enquanto eu esperava o elevador, Mariana apareceu.

— O seu convite foi engraçado! — Disse ela.

A partir daí ficamos amigos e em menos de uma semana ela mesma deu o ultimato. Na hora do almoço fomos dar uma espiadinha na Exposição de Arte do Espaço Cultural. Mariana me beijou e considerou que estávamos namorando. Eu não tinha dito nada sobre isso mas deixei rolar. Que menina impulsiva! Só que... haja perseguição! Não é que Mariana era mais uma daquelas crentes da Congregação Cristã do Brasil?!!!

Logo fui convidado para ir à sua casa conhecer a família. Fui. Mais conversa de Bíblia! Eu já não agüentava mais, que falta de sorte! Tudo de novo. Ganhei mais umas duas Bíblias em pouco tempo. A mãe dela era daquelas mulheres de cabelo comprido e coque que só falava na “Palavra”.

— Você sabe o que Deus disse para Moisés no monte? Venha cá, venha cá... olhe só...

O Pai de Mariana também me falava da Bíblia, só que mais raramente. O seu assunto predileto era abelha. Ele era apicultor.

— Tudo bem? — Eu cumprimentava cordialmente. — Como vai o senhor?

— Tudo bem, mas olhe, rapaz! Sabe que nesta época do ano as abelhas “tais” fazem “tal” tipo de mel? — E então ele engatava no piloto automático e podia esquecer.

Não que realmente as abelhas não fossem interessantes, e o mel muito ilustrativo, mas é que eu não conseguia falar nada. Era um monólogo, ele não parava e eu também não tinha como me livrar dele, a não ser que fosse mal educado. Acabava deixando. E era abelha pra cá e abelha pra lá!

Em casa de Mariana era sempre assim, ou era Bíblia, ou era abelha. Por quanto tempo eu suportaria aquilo?!...

Certo sábado Mariana carregou-me para o Culto. Não sei como ela conse­guiu fazer aquilo...! Mas o fato é que quando acordei eu já estava sentado no banco ao lado do irmão dela. Não podíamos sentar juntos porque havia uma ala masculina e outra feminina. Ele fazia parte da orquestra e carregou-me para o meio da dita cuja durante o período do Louvor. Eu me sentia patético. As músicas eram chatíssimas. Só hino!

O anfitrião que trouxe a palavra naquela noite foi o futuro e “abençoado” cunhado da Mariana. Observei tudo com olhos que pesavam de sono. Os homens estavam todos de terninho! Eu queria morrer! Que tormento. Acho que minha cara dizia tudo. Mas suportei corajosamente até o fim.

— Você não acha que as mulheres dessa Igreja já parecem umas santas? — Perguntou-me depois da pregação o futuro cunhado.

As mulheres estavam todas cobertas com um véu branco. Uma coisa de louco! Não achei o que responder.

No dia seguinte, domingo, estava marcado o “Churrasco Santo”. O pai dela, como apicultor, era dono de um pequeno sítio e estava já acertado o encontro da família e de alguns membros da Igreja. Eu estava curioso para ver qual era o divertimento deles. Fui espremido no carro ao lado de Mariana, no meio “Améns” e “Aleluias” e “Glórias a Deus” que não acabavam mais!

— Vamos buscar o irmão Filipe!

Buzinaram na frente da casa dele. Na minha cabeça parece que até o ecoar da buzina dizia “Amém”! Acho que mais uma vez estava amarrando o burro no lugar errado. Devia ter saído com a Thalya!

O trajeto foi feito em meio aos hinos: “fervor”, “ardor”, “amor”......

— Canta aí, Edu! — Mariana me cutucava. — Eu não sei a letra!

— Mas é tão fácil! Olha...”fervor”, “amor”, “ardor”! Eu só enxergava as rimas.

— Não quero cantar. — Fiquei de cara amarrada. Aquilo já estava me enchen­do!

Nessa altura eu já sabia alguns pequenos feitiços que precisava por em prá­tica. Só não pedi a Abraxas para ele fazer bater o carro porque eu estava dentro. Pensei comigo em dado momento: “O que será que Marlon faria nesta situação? Cercado de crentes?!”.

Por sorte não era longe e chegamos logo. A chácara era modesta mas agradá­vel, e o dia estava bonito.

“Tudo bem, talvez dê para aproveitar um pouco, afinal, apesar desses cren­tes todos!”

Foi o meu pensamento. Mas parecia que a Igreja inteira estava lá, oh, que coisa! Os carros não paravam de chegar, abarrotados de comida no porta-malas. As mulheres começaram a arrumar tudo em diversas mesas enquanto os homens se incumbiam do churrasco. As crianças e os mais jovens reuniram-se no peque­no campo de futebol ao lado.

Mariana ia me apresentando ao restante da família e aos conhecidos. Nin­guém me olhou torto por causa do cabelo aparado e uma aparência mais decente. Mas implicava-me especialmente o rapaz de cabelinho engomadinho que não parava de me encarar. Qual seria a daquele cara? Mariana esclareceu quando inquirida a respeito, procurando inocentemente me provocar um ciuminho:

— Aquele ali é o Eliseu. É que ele gosta de mim, sabe? Já faz tempo! Grande coisa que ele gostava dela, como se me fizesse muita diferença. Nem

me dei ao trabalho de responder. Mas fiquei de olho nele. Eu estava na condição de namorado, e não ele. Será que não dava para ele ir encarar outro gaiato?

Procurei me distrair mas o fato é que o tal do Eliseu começou a me irritar ao extremo. Volta e meia lá estava ele me olhando.

Convidaram-me para uma pelada. Recusei polidamente. Eu era péssimo de bola!

Ao lado de Mariana, encarapitado num galho de árvore, eu mantinha um olho nela e outro no jogo. Estavam orando antes de começar, vê se pode uma coisa dessas! E acertaram que um time era dos “Querubins” e o outro dos “Serafins”!

— Que gostoso estar aqui, né, Edu?! — Mariana era muito carinhosa e meiga, fazia afagos no meu cabelo e na minha mão. Que pena que fosse Cristã! — Olha só este verde! Não é ótimo sair de São Paulo um pouco?

— Se é! — Eu sorri de volta e procurei não prestar atenção nos rapazes que corriam atrás da bola. Nem no Eliseu, que corria se exibindo.

As tias de Mariana passavam por nós a toda hora, sempre olhando para cima. Às vezes ficavam paradas um pouco mais longe, mas sempre de antena em nós. E pareciam sempre cochichar, esquecidas que eu poderia perceber a indiscri­ção. E tão esquecidas estavam que volta e meia literalmente ficavam falando e falando, quase bradando, voltadas na nossa direção. E de repente parece que caíam em si, e acenavam. Me parecia um comportamento muito estranho e eu procurava fazer de conta que não estava percebendo.

Mas num dado momento achei graça. Uma delas acenava-me tão insistente­mente que achei pouco delicado da minha parte ignorar. E com um sorriso e um gesto de cabeça, acenei de volta.

— Tchau!

Mariana me deu um tapinha de leve no braço:

— Eduardo! Não faz isso!

— Ué? Por quê? Ela está me dando tchau faz tempo!

— Não é tchau! Elas estão intercedendo!!

— Orando, é o que você quer dizer, não é? E precisa ficar chacoalhando a mão desse jeito na minha direção?!

Mariana estava séria e explicou:

— Não é “chacoalhar” a mão! É que ela está revestida do Poder do Espírito e a mão treme mesmo.

Acho que não consegui controlar muito bem a expressão do rosto.

— Poder do Espírito, é? Tá bom, então. Nem dei mais corda. Eram um bando de loucos, coitados...! Os sanatórios devem estar cheios de poder, então.

— Mas é isso, sim!

A bola correu para baixo da árvore e o Eliseu veio correndo pegar. Eu já não conseguia ouvir o que Mariana me dizia sobre o Espírito. Segui Eliseu com os olhos e comecei a sentir aquela raiva cada vez maior crescendo dentro de mim. Era tanta, tanta raiva que já nem era raiva. Era ódio mesmo. Aquele ódio cego, descomunal, indescritível! Comecei a sentir os olhos muito quentes, cheios de sangue.

Eu queria causar algum estrago e isso era tudo em que eu conseguia pensar. Queria ver ele passar algum vexame na frente de todos! Queria causar um pouquinho de dor, nada de muito grave, quem sabe um machucadozinho, tal­vez?...

Tinha mesmo que ver se aqueles pequenos Feitiços que aprendera funciona­vam. Discretamente eu fiz o sinal do Pentagrama no ar e o empurrei na sua direção, pronunciei baixo o encantamento em aramaico. Foi aí que escutei, vindo de longe:

— Eduardo? Edu?! — Mariana me chamava olhando com ar esquisito para mim. — Tudo bem com você?

— Tudo. Tudo bem, por quê?

Ela estava visivelmente emocionada, quase em lágrimas, e sorria de felici­dade:

— Meu bem, você entrou em transe. Eu te chamava e você não respondia. E você falou em línguas!

— Ah...é?... — Me fiz de morto, sem compreender direito. Será que eu tinha mesmo voado?

— É o Poder do Espírito Santo sobre você! As orações foram atendidas! Você sem dúvida deve ter aceitado Jesus ontem no Culto e hoje o Pentecostes desceu sobre a sua vida! Oh, eu estou tão feliz!!! — E me abraçava com força. — Vamos! Quero contar essa benção para todos. Como Deus é maravilhoso!

Eu ignorei o que ela dizia, ainda sentindo ódio e só queria ver o que aconte­ceria. Parece que Abraxas esperou que eu tornasse a voltar os olhos para o jogo. Foi a conta para ver o Eliseu tomar um tombão, após colidir com outro rapaz. Até aí, nada de mais. Mas um terceiro que vinha correndo atrás deu-lhe um chute na boca ao invés de na bola. Coincidência ou não, lá estava o sangue espirrando, pingando pelos lábios, como eu desejara.

Não houve nada de muito irrecuperável, mas o transtorno comeu uma parte do seu dia e dos demais. Voltando do Pronto-Socorro explicou que tinha quebra­do dois dentes e levado uns pontos na parte interna da mucosa bucal.

Passado o susto, Mariana não desistiu e fez a festa a seu modo, arrastando-me junto com ela e contando as “novas” aos parentes e amigos:

— Ele foi batizado no Espírito Santo e falou em línguas! Eu vi! Novamente foi “Glória a Deus”, “Amém” e “Aleluia” demais para o meu gosto.

Saí dali disposto a por um paradeiro naquilo de uma vez por todas. Não ia dar para continuar com Mariana embora ela fosse uma moça muito bacana. Eu já estava saturado dessas coisas em casa de Camila, e ia agora trocar o roto pelo rasgado??? Antevi a tortura: ser arrastado para a Igreja todo final de semana e ser obrigado a conviver com aquela gente eternamente! Impensável!

Quando contei à Thalya o meu final de semana ela comentou:

— Nossa, cara, eu não sei como é que você suporta isso! Se fechar a área vira hospício, e se cobrir, vira circo!

Ela tinha razão. Terminei o namoro imediatamente, naquela semana mesmo. Ironicamente foi no Dia dos Namorados, e Mariana tinha até me comprado um presente. Mas fui irredutível! Ela chorou e chorou, não entendeu minha pressa em terminar o que parecia estar indo tão bem.

Procurou-me algumas vezes depois disso, no Parque perto de casa. Eu havia montado um grupo de vizinhos que treinava Kung Fu comigo todos os sábados.

Mas eu não lhe dei muita trela e Mariana acabou por desistir. Deixei bem claro que estava mesmo tudo acabado.

E Camila, por sua vez, voltou a me procurar insistentemente jurando de pés juntos que tudo seria diferente. E reatamos. Era tão difícil eu ter certeza se gosta­va mesmo dela ou não...

Tirando o percalço com Mariana, que depois passou a me evitar acintosa­mente, estava me dando bem e satisfeito com o serviço na Canion Tower. Ainda que eu continuasse a ser meramente um auxiliar administrativo. Mas as minhas responsabilidades cresceram e passei a fazer tudo o que havia dito que fazia no outro emprego, e que na realidade era mentira.

Como não fosse nada que exigisse muito, eu me dei bem e logo fui também designado para auxiliar um rapaz que trabalhava no setor de câmbio, o Marcos. Ele era Técnico de Câmbio e estava sobrecarregado devido às férias de um colega.

Quando iniciei o serviço soube da existência de uma vaga de assistente ad­ministrativo não preenchida.

Me informei melhor e lembrei da Thalya:

— Posso indicar uma amiga para a vaga?

A resposta foi afirmativa. Liguei para o posto de gasolina na mesma hora:

— Thalya, vê se você vem almoçar comigo hoje! Tenho uma surpresa. A voz de Thalya soava estridente do outro lado:

— O quê?! Nossa, que barulho tá aqui hoje! Surpresa? Que surpresa?!

— Vem que você fica sabendo!

— Ah, Edu, dá uma dica! — Gritou ela.

Desencostei o fone do ouvido:

— Caramba, esse telefone funciona bem, heim? Tô te aguardando, OK? — Falou!! — Gritou Thalya de novo antes de desligar. Mais tarde eu desci para almoçar com a mochila nas costas. Normalmente ela vinha vazia e voltava cheia. Era tudo tão estratégico! O refeitório da Canion Tower era uma coisa como eu nunca tinha visto e eu comia para valer. Não con­tente com isso, ainda levava tudo o que me interessava, enchendo a mochila com iogurtes, frutas, refrigerantes em lata e o que mais pudesse carregar. Afinal, as refeições não eram descontadas do meu salário!

Thalya atrasou e fiquei cheio de esperar. Fui comer sozinho e abarrotar a mochila como de costume.

Estava já sentando à mesa quando meu amigo de setor, o Fábio, entrou refei­tório adentro com a “figurinha”! Lá vinha Thalya com o macacão do posto, com boné sobre seus cabelos amarrados, tênis manchados de graxa e cheirando gaso­lina! Bem disposta a chocar todo aquele que cruzasse com ela.

Não quis acreditar:

— Mas, Thalya! Por que você não trocou de roupa?!!

O Fábio só olhava, sem dizer palavra, impressionado pela beleza dela apesar da indumentária pouco convidativa. Todo o refeitório também notou a presença de minha estranha convidada.

— Ah, cara, que que tem?! — Thalya deu de ombros lançando-me o sorriso mais maravilhoso do mundo.

Pensando bem... grande coisa mesmo!

— Tá bom, vá! Senta aí e come alguma coisa, se quiser mais tem na minha mochila. Nem vou te perguntar como você me encontrou aqui!

Thalya nem precisou se servir. Havia o bastante para três em minha bandeja. E ela nem mesmo comeu muito, só um iogurte e duas maçãs.

Expliquei do que se tratava. Thalya sequer olhou para os lados.

— Se você disser que sim, já te indico já! Topa fazer a entrevista? — Perguntei por fim.

— Mas nem! Por que você não me avisou antes, heim, Edu? Agora eu tenho que voltar até o posto.

— Você já devia ter vindo arrumada, né, Thalya? Quem mandou inventar? Mas tudo bem, corre lá, se arruma e vem para a entrevista.

— Legal! — Thalya apoiou os cotovelos na mesa para terminar de comer a maçã.

Resumo da ópera: Thalya fez mesmo a entrevista. Mas não naquele dia, sexta. Foi na segunda-feira à tarde. E na quarta-feira pela manhã estava traba­lhando comigo, no mesmo setor.

Tanto eu quanto ela estávamos esfuziantes de alegria!

Consegui por fim contar as novidades ao Marlon. Ele estava muito defasado das notícias, pois agora não apenas eu, mas Thalya também estava trabalhando no Canion Tower.

Marlon, adivinhe de novo! — Exclamei.

— Tem a ver com o Canion Tower. — Respondeu Marlon sem rodeio.

— Pois é. Thalya também está lá!

— Isso é ótimo! Afinal de contas vocês tem que estar juntos, certo? Eu olhei com certo espanto para ele.

— Temos que estar juntos...? Bom, isso se refere ao contexto da Irmandade, não?

— Não apenas. Vocês têm mais Poder unidos, filho. Eu já cansei de falar isso! Vocês se completam.

— Bom...e você não está contente que nós entramos? Ele riu com a pergunta:

— Mas é claro que estou contente! E é claro que vocês dois iam entrar! Não era lá que você queria trabalhar?

— É, queria...

— Pois então... lá você está! E não se esqueça. Você e Tassa devem estar juntos.

Não compreendi bem. Estava meio atordoado. Marlon já sabia de novo... então...? Não pude ficar quieto dessa vez.

— Você conhece alguém lá? — Perguntei, enfático, mas senti estar fazendo a pergunta errada.

Ele balançou a cabeça:

— Rillian...você é filho do dono-do-mundo! E tem uma Entidade poderosíssima ao seu lado. Você acha que ele não pode manipular pessoas? Quem são estas bostinhas humanas perto dele? Você é filho do Fogo! Bota isso na sua cabeça!

Fiquei pensativo. Marlon havia feito um "abre-portas" para nós. Usando para isso a força dos demônios. Que coisa.

 

Só aí realmente me dei conta do que ocorrera. Fora rápido demais... tantos concorrentes... foi questão de dias tanto para mim como para ela! Eu falei sobre o Canion Tower e dias depois... estava lá! Um pouquinho mais...e também Thalya! Que coisa... que coisa!

Durante os primeiros dois meses eu fiz o meu serviço rotineiro pela manhã e à tarde dei suporte ao Marcos no setor de câmbio, mesmo depois que o tal colega retornou das férias. Eu já tinha uma noção daquele assunto devido a meu curso técnico em Administração e realmente me interessei bastante. E procurei sincera­mente aprender como funcionava o trâmite cambial.

O Marcos era bastante acessível, respondia com paciência a todas as minhas perguntas e sempre que sobrava tempo ensinava-me tudo o que eu queria saber.

Ao cabo dos dois meses ele adoeceu e teve que ficar em casa vários dias. Trinta dias em licença médica. Teve sarampo. O Gerente do setor, que já estava habituado comigo zanzando ali diariamente sugeriu, meio em caráter emergencial, que minha chefia me cedesse "emprestado" durante aquele período a fim de co­brir o buraco. Como não houve objeções, logo fui procurado pelo Gerente do Câmbio para oficializar o pedido:

— Eduardo, você tem aprendido bastante o trabalho por aqui. Daria pra que­brar nosso galho por uns dias até ajeitarmos esta situação?

Concordei com bom ânimo:

— Com certeza posso não fazer o melhor, mas farei o melhor que posso. Pode deixar, não haverá problemas, eu estou bem familiarizado com a rotina. O senhor não se arrependerá! — Para variar, supervalorizei meu trabalho, me vendi com classe!

Toda segurança que eu apresentava exteriormente não era lá o perfeito refle­xo da realidade. De fato eu aprendera muito naquele período. Todo o substrato que necessitava eu o tinha bem à mão, e ainda contava pontos a meu favor o fato de "correr atrás" do conhecimento. E a oportunidade que surgiu em tão pouco tempo era absolutamente imperdível!

Havia outros Técnicos de Câmbio, uns vinte mais ou menos. No entanto todos eles estavam ocupado demais com suas próprias rotinas, de modo que não podiam incorporar mais carga de trabalho ao que já faziam. Então, lá estava eu! Sozinho de verdade.

Carreguei minha mochila para minha "nova mesa". Ainda que por pouco tempo, é verdade, mas enquanto eu estivesse ali... o lugar era meu e pronto! Inspi­rei fundo, lançando um olhar para as pilhas de papéis à minha frente.

— OK... vejamos! — Comecei a remexer nas coisas um tanto ou quanto nervo­samente. — Não deve ser tão terrível assim. Faz até que um bom tempinho que tenho acompanhado toda esta coisa. O chefe confiou em mim e sabe que farei um bom trabalho. Caso contrário, não estaria aqui!

Tomei a calculadora financeira, uma HP-12C, e a caneta nas mãos. Afundei-me na mesa para tomar pela primeira vez minhas próprias decisões. Até o meio da manhã tudo correu sem novidades. Mas depois apareceu uma questão um pouco mais delicada.

— Nossa... — Minha mente rodopiava velozmente diante das conclusões a que fui chegando. — Será que estas taxas estão certas mesmo? Devo despachar isto para a CACEX...ou não? Pelos meus cálculos e análises, faria assim... assim... e assim...! Acho que isso é o melhor. — Eu rabiscava incessantemente no bloco de anotações à minha frente. — Mas seria tão bom poder conferir com alguém!

Ergui os olhos. Nem adiantava pedir qualquer orientação aos outros Técnicos, disso eu sabia bem. Todos estavam de nariz virado para mim. A maioria achava que era um tanto ou quanto cedo para eu estar sentado ali. Bem, não tinha sido idéia minha. E eu não queria perguntar nada ao Gerente logo no primeiro dia!

"Aceitei o desafio... e eu vou me sair muito, muito bem.

E o primeiro passo para isso era não confiar em nenhuma dica deles. Eu sabia que a melhor maneira do serviço deles sobressair era fazer o meu ir de mau a pior. Só que eu tinha alguém melhor com quem contar!

Levantei-me da mesa e fui ao banheiro, único local onde haveria um mínimo de privacidade. Entrei dentro da cabine, fechei-a bem. Ajoelhei-me em posição za-zen sobre a tampa do vaso. E pedi ajuda.

— Olha, eu não sei o que fazer, Abraxas! — Murmurei em um tom baixo quase inaudível aos ouvidos humanos, mas muito audível aos ouvidos dele. — Você existe desde antes que o mundo fosse mundo, a sua sabedoria é incomparável! Então o que é este serviço, estas exportações e importações, estes negócios para você? É nada! Me ensine, meu amigo, me ensine, Abraxas! Diga-me o que devo fazer exatamente. Aumente minha capacidade, minha inteligência e meu raciocí­nio. Usa meu corpo se for necessário, mas ajuda-me!

Esperei um pouco, de olhos fechados, mas não senti qualquer indício da presença dele. Insisti um pouco ainda, mas nada ocorreu.

"Esse Abraxas é meio de lua! Custava dar um pouco de atenção?!", pensei comigo mesmo, ao escutar barulho de gente no banheiro. Abri a cabine e retornei ao setor.

Diante de minha principal dúvida, resolvi arriscar e perguntar ao Técnico sentado na mesinha ao lado da minha. Mas realmente era a velha história da "panelinha".

— Deixa aí que daqui a pouco eu vejo. — Respondeu o rapaz. — Eu preciso finalizar uma negociação importante antes do meio-dia!

Não deixei. Ele que fosse para o Inferno!

Havia uma moça, a Malú, que desde o início me pareceu mais confiável. Ela escutou minha pergunta e procurou ajudar-me, demonstrando solicitude e boa vontade:

— Olha, Eduardo. — Disse-me ela após ter se inteirado melhor da questão.

— Você pensou bem e acho que você poderia fazer assim mesmo... mas que tal...

— E deu-me algumas dicas.

Ainda assim eu estava na dúvida se realmente era o melhor. Acatei em parte o que ela sugeriu e o resto resolvi por mim mesmo da maneira que julguei mais conveniente. Aquilo tudo envolvia milhões...! Um erro poderia ser crasso.

Tudo pronto e eu ia já despachar para o boy os documentos, quando escutei claro como água cristalina:

— Não faça deste jeito. — E Abraxas falou-me pouco mais de meia dúzia de palavras, orientando-me no que deveria investir e qual importação liberar.

Ele não fez nem como eu queria e nem como Malú dissera. Mas não questi­onei mais nada, nem sabia o que estava fazendo, mas resolvi o problema confor­me Abraxas dissera. Depois encaminhei ao Gerente para colher sua assinatura:

— Você pode dar uma olhada nestes papéis? — Coloquei os documentos na mesa dele. — Já estão prontos!

Ele olhou, olhou... e não dizia nada! Dei uma vacilada. Embora soubesse que aquele que tinha falado comigo existe desde antes da fundação do mundo, e que para ele aquilo era brincadeira de criança... senti uma sensação ruim na boca do estômago.

"Ai, ai, ai. Será?!"

— Deixa isto aqui um pouco. — Falou o Gerente. — Vou analisar melhor, depois falo com você.

Voltei para minha mesa um pouco tenso. Será que eu tinha feito alguma besteira???!!

De soslaio eu olhava para ele, através dos vidros. Percebi que ele continuava olhando para os papéis... depois olhava para mim... aí para os papéis de novo... tomou a calculadora financeira, fez contas... levantou, levou os documentos para outro Gerente, discutiram a respeito... aí os dois começaram a fazer contas... depois levantaram...

— Ihhh...acho que fiz algo que não devia! — Resmunguei.

Fiquei esperando. Meia hora. Não tinha o que fazer, até que o Gerente vol­tou e com um meneio de cabeça, perguntou-me:

— Escuta... de onde você tirou esta idéia?

— Que idéia?

— Bem, isto aqui que você fez! Sabe que nós não tínhamos pensado nisso? Está perfeito! Esta operação vai trazer um ótimo lucro, talvez milhões!!! Nossa, é fantástico! Tremendo! Parabéns, muito bom mesmo, Eduardo! Você tem gran­de habilidade, que faculdade você faz? — Ele não parava de me elogiar, batendo no meu ombro, algo até fora de proporção. Nem parecia verdade. — Como você descobriu isto?

— Intuição. Acho que foi só intuição.

— É muito bom ter você aqui. Depois vamos conversar mais.

E eu só pensei comigo mesmo: "Desde que ele não me faça nenhuma per­gunta muito técnica..."

Todo cheio de mesuras e sorrisos, o Gerente tomou a caneta e assinou os papéis. Parecia que tinha implantado dentes postiços, tão feliz estava com a solu­ção que eu havia apresentado. A partir daí houve um estopim. E o serviço fluiu realmente.

Abraxas orientou-me audivelmente mais umas três ou quatro vezes, mas depois o serviço tornou-se fácil e, como gostasse daquilo, estudei e aprendi mui­to. Eu gostava de estudar quando o assunto me interessava. Sempre gostei! Aqui­lo não era dificuldade nenhuma.

Procurei aprender também com meus colegas que, nessa altura, diplomati­camente deixaram de ser grosseiros. Havia mais de uma maneira de atingir o mesmo fim, por isso cada um desenvolvia uma rotina individual de trabalho que melhor se adaptasse aos problemas. E meu prestígio perante a Gerência cresceu tanto que alguns Técnicos até queriam aprender comigo!

Eu deslizava como sabão quando não era capaz de resolver uma parada. Quando a dúvida era pertinente e não urgente, levava ao conhecimento de Marlon, que me orientava como proceder. Aquilo valeu muito. Mais do que um curso de Faculdade pois aprendi na prática, no dia-a-dia. Quando comecei de fato a domi­nar completamente a rotina procurava sentar com meus colegas e captar seus problemas e dificuldades nos processos. E novamente levava as dúvidas para Marlon, às vezes até para Zórdico.

Isso foi um ótimo estímulo para mim, consistia num desafio! Venci muitos obstáculos e resolvi muitas questões, claro, com ajuda de Abraxas, Marlon e Zórdico! E como aprendi!

Acabei por ganhar a simpatia e respeito de meus colegas e de meus superio­res.

 

— O fundamento básico é o que se segue: todo caminho que não leva a Deus é bom. — Instruía-nos Zórdico certa noite.

Naquele dia tínhamos saído todos juntos após a aula do "Fire's Sons" e Zórdico, conhecedor das minhas dúvidas, abordou o assunto.

— As Artes Mágicas servem bastante para isso porque é fácil influenciar pessoas vazias e fracas. A única Arte que tem significado para o nosso uso é a numerologia cabalística pois tudo está ligado a ela. As demais servem apenas para fagocitar as pessoas. E por que usar a Numerologia? Porque é fidedigna em dar dados sobre o futuro. Vocês podem se questionar: como pode uma Entidade acessar o que não ocorreu ainda? Prever o que virá? Mas vejam bem... o homem também é capaz de fazer algo semelhante, não? Um estudo meteorológico pode prever chuva, frio, calor; e o sismógrafo pode adiantar quando um terremoto acontecerá. Um cálculo matemático pode estabelecer o horário exato em que um avião chegará a seu destino. Os astrônomos podem dizer quando ocorrerá o pró­ximo eclipse, ou quando virá o próximo cometa. Bem, se nossa inteligência pode prever certas coisas, o que não pensar de seres que existem antes da fundação do mundo? Mas como isso acontece? Imagine a seguinte seqüência de eventos: um ser qualquer, distante dois mil anos-luz da Terra nos observa com seu potente telescópio. Lá do seu planeta — chamemos de planeta "X" — ele tinha uma visão muito ampla e, ao desviar o telescópio noutra direção, viu um gigantesco cometa que se aproximava da Terra. Este estava a quatro mil anos-luz da Terra e a dois mil anos-luz do planeta "X". Por outro lado, a luz do meteoro levou dois mil anos para chegar até o planeta "X". Certo? Isto quer dizer que quando o cometa foi visto através do telescópio tanto este quanto o observador estavam a uma distân­cia semelhante da Terra. Dois mil anos-luz!

Concordei com a cabeça.

— Mas imagine agora: se o observador pudesse viajar a uma velocidade mui­to superior à da luz...por exemplo, duas vezes a velocidade da luz...ele chegaria aqui na Terra em mil anos-luz, ou seja, mil anos antes do choque. E ele diria: "Um cometa está se aproximando da Terra e vai colidir com ela dentro de mil anos." Ele só pôde afirmar isso porque se antecipou a um fato que já existia! E isso foi possível somente porque ele não estava limitado à nossa contagem de tempo e espaço. O futuro só está oculto a nós porque estamos cerceados dentro da nossa dimensão. Mas no mundo espiritual... essas leis que nos cercam e nos aprisionam não existem mais. Passado, presente e futuro caminham de forma Paralela uma vez que nas dimensões superiores não existe o fator Tempo: não existe o antes e o depois. Por isso Deus Se intitula "Eu sou": sem passado ou futuro, mas existindo sempre, simplesmente. Por isso Ele próprio também diz que as coisas que hão de vir já são agora. Isto é, já existem. Nas dimensões superiores tudo simplesmente "É". O homem instintivamente sabe disso, afinal toda história de ficção tem início em uma probabilidade: como a viagem à Lua de Júlio Verne. Era ficção na época, mas havia uma probabilidade de ser real. Via­gens no Tempo hoje são ainda uma ficção, mas por quanto tempo? Matematica­mente os físicos sabem ser possível. Mas não é sobre isso que quero falar, por­tanto não divaguemos.

Zórdico pegou o fio da meada e continuou, retomou a seqüência inicial.

— Mas a arte do engano, no entanto, não se restringe às Artes Mágicas. Há um outro quinhão da Sociedade que é muito estratégico nesse sentido. Lembra-se quando falei sobre a cultura de cada povo, que é respaldada por ritos...?

Fiz que sim.

— Naquela altura isso não foi apresentado como algo de muito mais valor. Não que seja, de fato, mas quer ver como é interessante? Raciocine comigo: o homem é um ser pensante. E como tal, acaba por muitas vezes divagando e com isso cria idéias e conceitos que nada têm a ver com a realidade. E curioso o comportamento humano, não é preciso ensinar nada ao homem: se separarmos um grupo em uma ilha, ainda crianças, com certeza, após algumas décadas já terão desenvolvido uma cultura com linguagem, costumes, crenças e rituais pró­prios. O homem precisa disso! A maior parte das crendices populares não têm o menor fundamento! Por exemplo, quem disse para o índio que ele tem que fazer aquele totem? Quem disse que máscaras feias espantam maus espíritos? Isso funcional Tem fundamento? É claro que não, funciona só na cabeça dele. Porque ele quis acreditar que poderia ser assim. As crendices, muito ao contrário das Artes Mágicas, são criadas pelo próprio homem. A mente dele está cheia de lixo e eles podem transformar qualquer besteira em algo "importantíssimo".

— Mas você está falando de índios. Nem precisa ir assim tão longe! É só olhar à nossa volta. — Retruquei. — As pessoas acreditam em cada coisa absurda... que pé de coelho dá sorte, que quebrar espelho dá sete anos de azar, que duende existe, que "santo" morto pode fazer milagre, que defunto se comu­nica, que defumar a casa espanta mau-olhado, e por aí vai. O povo acredita em cada coisa!

— Mas isso é no mínimo estratégico, se formos olhar por outro ângulo. — Interveio Marlon. — O povo divaga porque divaga. Faz parte da nossa natureza humana. Algumas crenças têm uma raiz longínqua que até se perdeu no tempo. Mas até disso Lucifér se utiliza, na sua sabedoria, e é isto que ele tem feito através dos séculos e séculos.

Eu escutava com toda a atenção do mundo. Estávamos todos diante de uma janta indescritível e a conversa havia novamente se desviado do corriqueiro para o meu assunto ultimamente predileto: como introduzir o engano não apenas num indivíduo isolado, mas em toda uma cultura! Lembro-me que Marlon me fizera essa pergunta no dia da minha Iniciação, no carro, à caminho do Castelo.

— Diferente do que acontece com o indivíduo, para contaminar um povo pode levar séculos e séculos. Mas desde a fundação do mundo Lucifér tem tido todo o tempo necessário. Os povos, como já dissemos, têm crendices — ou mitos. Não é assim? Que povo não tem os seus mitos? Como eles se originam não importa tanto, basta saber que os mitos sempre saem da observação e da vivência humana. A partir daí os demônios começam a trabalhar. Chega um momento na história desse povo que aquela crendice está tão incrustada que passa a ser um rito. O próprio nome já diz: ritual não é aquilo que se faz esporadicamente, mas periodicamente. Quando há uma periodicidade em alguma prática, ela impregna... e vira tradição! E uma vez consolidada uma tradição... para derrubar isso depois, meu caro... — Zórdico deu uma risadinha. — Precisa muito! Quebrar tradições individuais, que não têm respaldo na cultura aonde está imerso o indivíduo não é tão difícil. Mas destruir a tradição de um povo é quase impossível. É algo que foi absorvido, introjetado, impregnado de tal forma ao longo de gerações e gerações e gerações... que já não pode ser mudado. A legalidade dada aos demônios nessa cultura é tão grande que praticamente nada pode derrubar essas fortalezas. Per­gunto eu... em que fundamento elas foram construídas?

Balancei a cabeça:

— Um fundamento falso. Que coisa tremenda.... — Eu falava reverentemente diante daqueles fatos. — Compreendo, compreendo... Zórdico, diga-me, então...a base das religiões falsas é esta também? Mitos que viraram Ritos e que por fim o povo já não podia mais viver sem eles?!?...

— De uma boa parte delas, sim. E eu diria que essa é a melhor parte! Pensam estar caminhando para Deus... mas embasados numa crença estúpida e vazia que, ao contrário, jamais os aproximará do Criador. Mas os sujeitará a um cativeiro árduo e pavoroso, uma carga duríssima de ser suportada. Desfalecem antes do fim. E no fim... nada mais os aguarda senão o lago de fogo e enxofre! Não é isto? "Apartai-vos de mim, malditos..."? — O olhar dele era estranho, profundo, quase cruel. — O Inferno de sofrimento existe, como você sabe, e está destinado aos "órfãos" de toda espécie.

Retruquei novamente, decidido a espremê-lo ao máximo. Queria aprender:

— Está certo, deu pra segurar essa. Mas me explica um pouco mais do que vem depois.

— Depois do quê?

— Bom... você me explicou como se cria uma tradição ritualística, ou até mesmo uma religião falsa. Mas, convenhamos... à medida que o tempo passa a gente se cansa de bobeiras sem fundamento. A tendência natural, ainda mais com o desenrolar da ciência e da tecnologia, não seria que essas coisas acabassem sendo sufocadas e deixassem de existir?

Marlon pareceu gostar da pergunta. Ele mesmo respondeu:

— Em outras palavras, você está querendo saber como idéias destituídas de lógica podem perpetuar-se ad infinitum, inclusive dentro da Era Moderna?

— Mais ou menos por aí.

Foi a vez dele responder de uma forma inesperada:

— E quem foi que disse, Rillian, que os mitos, os ritos, as idéias e tradições, as religiões... dogmas... crendices... e etc... não têm lógica?!

— ???!!! — Fiquei mudo por uns instantes. — Ué, não foram vocês mesmos que disseram que tudo isso é história de carochinha? Pare de brincar.

— Não é brincadeira. A sua pergunta tem muita lógica e a minha resposta também. É claro que não se pode manter alguém mergulhado na ignorância se isso for absolutamente uma loucura do início ao fim. Eu não te disse que as pessoas que lidam com o que pensam ser uma Arte Mágica têm a sensação ilusó­ria de Poder e conhecimento? Ilusória! Compreende?! Aqui é a mesma coisa. Se o engano não for capaz de enganar, é falho. Mas Lucifér sempre pensa em tudo. E dá todo o respaldo necessário para que a ilusão continue. Eternamente! Afinal, uma meia-verdade é melhor do que uma mentira completa!

Ele tomou calmamente uns goles de vinho enquanto eu permanecia com os olhos fitos nele. Marlon teve que rir:

— Ilusão, Eduardo! Se funciona com uma pessoa isolada, por que não funci­onaria com um povo todo? Se há castas inferiores de demônios capazes de influ­enciar astrólogos e cartomantes de fundo de quintal... por que não haveria legiões e legiões de exércitos demoníacos, sob o comando de Entidades poderosas, que pudessem dominar legalmente toda uma cultura... e criar nela a ilusão de que os seus mitos idiotas são reais? Da mesma forma que as crendices e os mitos, as falsas religiões também nasceram na própria mente do homem. Ninguém nunca disse que os processos rituais deviam ser feitos assim. Não vieram de Deus...e também não vieram de Lucifér, é claro! Você sabe qual é o culto agradável a Lucifér. O resto, meu amigo... é uma confusão que nasceu da cabeça humana e morrerá do mesmo jeito que nasceu, isto é: sem efeito espiritual nenhum! As religiões falsas não agradam nem a Deus nem a Lucifér, não têm fundamento, lógica, nada de nada. Só existem duas coisas no mundo: Satanismo e Cristianis­mo. O resto... é só resto!

A venda caiu de vez dos meus olhos e meu rosto se iluminou.

— Puxa, tem razão. Como estive cego até agora!

— E muito fácil manter viva uma crença qualquer se dermos substrato, algo palpável para o povo se apoiar. Os demônios se encarregam disso. Não há ciên­cia e tecnologia que se sobreponha ao insobrepujável. Com certeza este não é o caminho. Nada tem um sabor mais doce do que o inexplicável! — Disse Zórdico.

— É deitar e rolar!

— Você captou bem o cerne da questão! As próprias Entidades se incumbem de fazer perpetuar as crenças. Quer ver um exemplo simples? Pegue lá uma das suas experiências simples de colégio: uma lata vazia de óleo é esquentada no fogo. O que acontece? O ar quente se expande e vai para fora da lata. Aí você tapa o orifício da lata com um palitinho e imediatamente coloca-a debaixo da torneira. O grande fenômeno: a lata amassa inteirinha. Porque a pressão é maior fora da lata do que dentro. Mas mostra isso para alguém que não entende! "Nos­sa, como você fez isso?". E você responde: "Eu não fiz nada... foram os espíri­tos!". Deu pra entender? As crendices funcionam na mesma linha. Mas a explica­ção por trás de toda uma montoeira de fenômenos inexplicáveis é uma só: os demônios armam o palco e as pessoas acreditam. Funciona como a pessoa que não sabe porque a lata amassou. E a partir daí começam uma série de doutrinas falsas. E uma casta específica de demônios fica incumbida de fazer com que o equívoco não se desfaça. A inteligência das Entidades é muito maior do que a inteligência humana! Mas hoje em dia, com a organização da Irmandade, se for necessário podemos ajudar nesse processo.

— Sério?! Isso pode acontecer?

— Sim, é fácil infiltrar alguém dentro de qualquer doutrina para facilitar o engano e desviar ainda mais da verdade. A Verdade de Deus é diferente da verda­de suprema de Lucifér! Por exemplo, veja o Ariel: ele trabalha dentro do Espiri­tismo. Você e eu sabemos que ele não é espírita, é Satanista. Mas ele está propositalmente colocado como um instrumento que atua seguindo as orientações das Entidades que o acompanham. Isto é ainda mais palpável e mais poderoso para influenciar pessoas. É interessante ter Satanistas "disfarçados" em quase todos os lugares. Estes estão ali com propósitos específicos. Apenas os líderes mais proeminentes de algumas ramificações próximas a nós poderão — eventualmente — saber a verdade sobre isso.

Fiquei pensativo. E depois voltei à questão dos mitos culturais.

— Isto me faz lembrar o ritual zumbi de certa tribo africana. A tribo vodu. Eles produzem um pó onde vai de tudo, até raspa de crânio. Tem todo um ritual só para fazer o pó. A substância ativa dele é o tetradoxeno, extraído das vísceras de um tipo de sapo. Esta droga causa um bloqueio da transmissão neuromuscular e uma diminuição drástica da atividade cerebral cortical e de um tal sistema reticular ativador ascendente. Em suma: o indivíduo que entra em contato com o pó fica como morto. A partir daí, em estado cataléptico, só um eletroencefalograma para diagnosticar a vida. "Mortinho" o cara, ele é enterrado, de acordo com o rito. Só que o efeito da droga dura apenas doze horas. Aí o sujeito é desenterrado. E então começa o rito para fazer "reviver" o morto. Como o efeito já está passan­do, ele volta à vida mesmo. Tem todo um contexto ritualístico aí, o pajé dança com uma serpente, tem fogueira e essas coisas todas. Mas como a pessoa passou muito tempo embaixo da terra sofreu um déficit de oxigenação no cérebro, e ela volta "zumbi". O cérebro volta lesado. Existe uma explicação científica, mas as tribos acreditam que a alma da pessoa ficou aprisionada dentro de um coco. É a mesma coisa que dissemos até agora, né?

— Você está certo. E não se esqueça que os próprios zumbis são manipuláveis e podem passar a ser diretamente usados. É natural que os demônios capacitem pessoas para coisas "especiais", é assim que funciona. Só que não são elas que dão o comando como ocorre conosco. Nem sabem o que está acontecendo. E estes se queimam, como queimam! Mas note o principal ponto: para introduzir algo dentro de um povo, e fazer disso uma coisa bem aceita, não podemos ir de encontro às suas raízes. O interessante é simplesmente manter as aparências, isto é, as crendices, as idéias, as doutrinas, as religiões. E introduzir elementos no­vos, adaptáveis ao modo de pensar e de enxergar o mundo daquela gente. Assim temos certeza de que serão plenamente bem digeridos. Veja as próprias Artes Mágicas, por exemplo: aproveitando-se de elementos e raízes culturais próprias foram introduzidas práticas que se perpetuam até hoje. Se você pensar bem des­de milhares de anos antes de Cristo, Deus já tinha dito ao Seu povo: "Não haverá entre ti quem faça passar pelo fogo o seu filho ou filha, nem adivinhador, prognosticador, agoureiro, feiticeiro, encantador, necromante, mágico, ou quem consulte os mortos...". Sinal de que havia quem fizesse tudo isso! Percebe?! Estas práticas existiam... e continuam existindo! E cada uma delas se originou e perpetuou com a intenção de fagocitar ou, pelo menos, influenciar a fundo uma determinada cultura ou conjunto de culturas. Os elementos falsos que vêm dos Guias também têm como base o mesmo objetivo.

— Ah, é mesmo. A Verdade plena é um privilégio dos filhos do Fogo. Mas você falou em ramificações próximas da Irmandade?!... Mas o que são essas ramificações?

— Doutrinas falsas cuja origem foi direcionada pelos próprios Guias. São como Braços da Irmandade.

— Mas desde a origem?! Então quer dizer que nem sempre essas falsas dou­trinas partem da ignorância de pessoas que nem sonham com nada disso que comentamos até agora?

— Certamente. As doutrinas podem também partir diretamente da mente dos Guias. E difundirem-se da mesma forma que as outras. Mas alegre-se! Você foi eleito. Até Deus elegeu os seus filhos, não é isso? Está escrito.

— É!... Pôxa, legal o que você me ensinou com tudo isso. Como Lucifér sabe infiltrar-se no meio dos povos e plantar o que quer. O que é bem aceito no Orien­te ou na África nem sempre, ou melhor, quase nunca tem muito respaldo aqui nas Américas, por exemplo. Mesmo assim ele consegue prevalecer tanto lá como aqui. Mas conte-me mais segredinhos! E, voltando um pouco às Artes Mágicas, como se originaram realmente?

— A origem delas, como surgiram e se espalharam, você aprenderá mais tarde. Por enquanto atenha-se ao princípio básico do seu uso. E olhe, você falou de falsas religiões, seitas, falsas crenças, e até citou o ritual zumbi. Mas nem é preciso correr até a África! Há exemplos tão palpáveis bem debaixo dos nossos olhos! Mega-exemplos! — Zórdico saboreava as palavras com o olhar brilhando de satisfação. — Você não sente o mau cheiro que vem sendo exalado de farsas tremendas que têm influenciado a nossa própria cultura brasileira desde há mui­to, muito tempo? — Olhou-me nos olhos.

Eu estava empolgado com o que acabara de ouvir.

— Mas, puxa vida, esse negócio é como... como uma doença oportunista! Vocês já ouviram falar em doenças oportunistas?

— Aquelas que se desenvolvem em um organismo debilitado, imunodeprimido? Sim, no que você está pensando? — Perguntou Marlon.

— As doenças oportunistas aparecem "do nada" e podem virar pragas devas­tadoras num organismo fraco e sem defesa. Estive aqui fazendo um paralelo en­tre isso e o que vocês disseram sobre falsas religiões. As pessoas vazias e igno­rantes, sem o conhecimento, apoiadas em práticas e conceitos que não têm fun­damento, criam culturas vazias. Óbvio que não quero dizer que essas pessoas equivocadas não são inteligentes. Alguém pode ser muito inteligente e estar en­ganado do mesmo jeito! Certo? Mas a cultura vazia é como um organismo imunodeprimido. Qualquer agente externo pode entrar... e causar estragos pro­fundos! Crescer, alastrar como câncer.

— Eu melhoraria um pouco a sua definição. Concordo com o seu exemplo, mas as pessoas são vazias por definição. Não é uma mera questão de "depressão espiritual". Perante o Reino Espiritual a Humanidade pode ser comparada a montes de "vermes". Em termos de potencialidade. Só existem duas raças puras, como você sabe.

— Os Filhos de Deus e os filhos de Lucifér.

— Isso. O que passar disto entra no contingente dos "imunodeprimidos". Dos órfãos! Os filhos de Lucifér somos nós, os que fazemos parte da Irmandade e os que estão em posições muito altas nos braços mais próximos. Os Filhos de Deus... — E o semblante de Marlon carregou-se um pouco. — ...são os verdadeiros Cristãos. Apenas nós...e eles... temos alguma possibilidade de deixarmos de ser "vermes"! Não me entendam mal! — E riu.

— Muitos se dizem Cristãos... — Observou Thalya que escutava quieta até então, entretida com o seu fusilli.

— Muitos se dizem, mas não são! — Retruquei, convicto por experiência própria. — A maioria não conhece o Reino e nem o Deus a quem julgam servir.

— De fato não são muitos. — Tornou Zórdico. — E Deus lá sabe atrair e manter o Seu Povo?! Nós dominamos a Terra e estes Cristãozinhos que esperem porque em breve serão totalmente esmagados.

— O Rillian falou há pouco em coisas que alastram como câncer. — Começou Rúbia, entrando na conversa também. — Eu gostei do exemplo. Você tem razão! O câncer corrói e enfraquece o hospedeiro. Algumas religiões falsas foram tão bem introduzidas que se tornaram como tumores que engolfam tudo o que vêem pela frente, destroem, necrosam, fedem! — Ela deu umas pancadinhas sobre a mesa. — Há culturas e povos completamente necrosados e prontos para irem feder na caldeira!!!

Ela e Thalya deram risada de novo, juntas, falando besteiras sobre como seria fazer churrasco de "órfãos".

— É verdade! Tudo isso é uma verdadeira podridão. — Ariel estava apoiado confortavelmente no espaldar da cadeira, rodando de leve os cubos de gelo do seu whisky.

Eu também rodei meus cubos de gelo. A coca-cola borbulhava no copo alto e a película esbranquiçada do limão podia ser vista nas bordas.

Aquele desvendar tinha me fascinado completamente. A sabedoria de Lucifér era incomparável, quanta astúcia em enredar o ser humano integralmente. Ofere­cendo milhares de caminhos diferentes para serem escolhidos, aparentemente todos bons... e todos levando para um só lugar: longe de Deus! Lucifér tinha provado — e continua provando — que deu de "mil a zero" em Deus! Deus ofere­ceu apenas um Caminho para que o Seu povo possa chegar a Ele. Através Da­quele que evitávamos até pronunciar o Nome, Daquele que foi pregado na Cruz...

Mas meu pai, ah, que sabedoria! Que gosto em falar! Todos os outros cami­nhos estão a seu serviço, para engrossar as suas fileiras, fazer prevalecer o seu reino.

— Estive pesquisando um pouco sobre as origens de algumas religiões brasi­leiras, como vocês comentaram agora há pouco. Mas realmente, não tive muito tempo...

Foi a vez de Zórdico me interromper.

— Rillian, você vai aprender tudo isto no devido tempo. Estudar em livros escritos por homens aquilo que Lucifér faz não vai elucidar o seu caminho. Pou­pe seu esforço e concentre-o por hora em coisas mais urgentes. É admirável o seu desejo de aprender, mas poupe-se de estudar o material errado.

— Sim, eu sei que vou aprender. Mas eu queria saber um pouco da origem das principais linhas. Algumas são como os tumores que acabamos de falar... doutrinas tão arraigadas... tão incrustadas!

— Bem, meu querido... — Zórdico às vezes me tratava assim. — Seja paciente. Por hora, junte as peças do seu quebra-cabeça: a raiz africana veio com os escra­vos. Foi modificada pela fusão com as culturas indígenas e a herança européia dos colonizadores do novo mundo. O que existe hoje é o produto disto tudo no hospedeiro brasileiro — uma mistura de índios, negros e brancos. Que é o povo brasileiro senão a mistura de raças e culturas diferentes? A miscelânea foi total. O hospedeiro foi favorável... e o processo é sempre o mesmo. Que divaguem!

Hoje o Brasil está totalmente tomado e sabemos que quase todas as religiões e seitas de expressão derivam basicamente de duas linhas. De repente a conversa passou a ficar tão engraçada!... Marlon já não conseguia falar com seriedade e nem nós conseguíamos ouvi-lo sem que sorrisos caçoístas brotassem em nossos lábios. Zórdico não ficava atrás. Thalya e Rúbia riam já às gargalhadas e Ariel não parecia mais tão entretido no whisky:

— Como o povo é idiota! O "legado" espírita é um dos melhores! Cada coisa que eu vejo acontecer! — Ele melhor do que ninguém podia saber disso.— Deus proibiu e condenou o acesso aos mortos. Mas naturalmente que os "mortos" falam...

— Mas não os mortos que eles estão pensando! — Exclamei de sopetão.

— Sim. — Fez Zórdico. — Os "mortos" a que Deus se refere são os anjos expulsos de sua presença, nossos aliados. É claro que Ele proibiu esta comunica­ção. Afinal, as Entidades são detentoras de informações que Deus deseja omitir ou ocultar muitas vezes. Deus é contra o conhecimento vindo das Entidades espi­rituais. Aliás, ao que parece Ele é contra todo e qualquer conhecimento que vá além daquilo que a sua Pessoa determinar. Não fosse assim não teria proibido o homem de comer da árvore do conhecimento!

— Mas Lucifér nos dá este conhecimento. — Tornei a exclamar.

A partir daí a conversa deixou de ser "cultural" e ficamos apenas terminan­do o jantar e vomitando nossa indignação contra Deus. E a indigestão parecia não ter fim. Aliás... não tinha fim mesmo!

Um pouco mais de tempo e Thalya fez uma outra pergunta que nos devolveu à uma conversa puramente "séria".

— Deus tratou sua Criação de modo completamente sem lógica. Engraçado se formos pensar bem. É de se imaginar que o ato de criar o homem implicasse em dotá-lo do direito de viver a vida em plenitude. Mas Deus não deu esse direito ao homem. Por outro lado... — Thalya tinha o ar pensativo. — Sabemos que Deus criou o homem...isto é, todo homem! Inclusive nós!.... Sendo assim...

Eu ajudei a completar o pensamento:

— Realmente é estranho pensar nisso, que fomos criados por Deus. Marlon fez um leve murmúrio meio sarcástico, meio irônico, meneando a cabeça com desdém:

— Hum...não se deixem levar por questões tão tolas! O fato de Deus ter-nos criado a todos é de menor significado. Porque Ele equivocou-se com a Criação. "Viu que era bom", mas depois "Arrependeu-se"! Não é assim? Parece que ter criado o homem e tudo o mais na verdade não foi tão bom assim. Isto revela a natureza equivocada de Deus. Ele fez, mas depois Ele mesmo destrói.

Zórdico completou:

— Fomos criados por Deus, sim, mas um Deus... louco! É uma verdadeira confusão! Deus parece esquizofrênico, e em cada surto Ele muda as regras do jogo!

Marlon retomou a linha de raciocínio:

— Lucifér, muito ao contrário, sempre teve o perfil do verdadeiro deus. Ele, sim, sempre foi o mesmo ontem, hoje e sempre. E embora não possuísse ainda o poder da Criação em si, o conhecimento da essência humana é inerente a ele. Todo ser humano tem no seu interior o lado negro, a natureza ruim que caminha paralela ao lado bom. Ainda que Lucifér não tivesse o Poder de criar o homem ele foi capaz de lançar uma semente na essência mais profunda do ser humano, na Criação de Deus. De modo que ele é parte do homem... e parte do homem é dele!

— E parece que a natureza humana busca mais ao pai Lucifér do que ao Pai Deus. Tudo funciona mais ou menos como na paternidade natural: nem sempre aquele que gera é o verdadeiro pai de uma criança. — Comentou Ariel.

Eu compreendia aquele conceito muito bem.

— Deus ficou muito aquém do esperado como "Pai". Ele gerou o homem mas teve uma atitude pouco condizente: "Bem, você está aí, gerado, à minha imagem e semelhança, mas agora, filho, a sua vida vai ser assim: você só pode andar desse lado da rua, do outro lado não pode ir. Estas árvores altas, está vendo? Você pode olhar, tá bem? Mas nada de subir nelas, caminhe somente no meio daqueles matinhos ali. Estas outras coisas que estão à sua volta é o seguinte: estas aqui podem ser tocadas, pode comer, cheirar, apalpar. Mas aquelas outras... nem encoste nelas! Ah, e está vendo aquela mulher ali? Ela não é pra você, não, ouviu bem? Se você quiser, Eu te dou esta aqui! E é só essa, viu?" — Marlon falava em tom debochado, ridicularizando, e arrancou risadas de todos.

— É mesmo! — Falou Thalya. — Deus impôs regras demais. Impediu o desabrochar da Sua Criação. E o homem olha para si mesmo e sente aquele vazio. "Pôxa, não tenho liberdade para nada!!!".

Rúbia foi categórica. Demonstrava alegria e alívio na voz ao comentar:

— Mas ainda bem que veio um outro... e nos adotou! Livrou-nos dos maus tratos do Pai Deus.

Zórdico escutava mas abriu a boca para comentar:

— Você está certa, Rúbia, mas não fomos "libertos" do Pai Deus... porque Ele sequer era nosso Pai! Deus agiu um pouco pior do que isso que vocês estão falando. Ele fez mais ou menos como a mulher que está para dar à luz e, uma vez nascida a criança, joga o bebê no lixo! Na verdade, toda a Humanidade foi rene­gada por Ele! De repente o próprio Criador é "Pai adotivo" também! Não se fala lá na Bíblia em "Espírito de adoção"?!! E em "Enxertar a Oliveira brava na verdadeira"? Ora, se há necessidade de adoção é sinal de que os Cristãos não eram filhos antes. E se não eram filhos... é porque foram rejeitados! Não diz também a Palavra que "Foi-lhes dado o poder de serem feitos filhos de Deus"? A Humanidade foi rejeitada por causa da semente de Lucifér. Por terem desejado ser livres, por terem querido sair de debaixo do jugo. Por causa de tudo aquilo que o Bode representa... e que faz parte do mais íntimo do ser humano. Mas o próprio Deus é livre! Se o homem é sua imagem — e Deus assim o fez — como fazer morrer o desejo? Como mantê-lo aprisionado? Isso não tem o menor senso de lógica! Então... pai adotivo por Pai adotivo... cada um escolhe o que desejar! Meu íntimo se revolvia, inquieto, afrontado. Zórdico tinha razão!

— É...Deus criou tudo, fez nascer tudo.. trouxe à luz tudo o que existe. Mas depois, Ele só é Pai de alguns. Escolheu o povinho filhinho-de-Papai, Israel, porque os demais se recusaram a seguir as Suas regrinhas. Só que uma parte destes excluídos teve o privilégio de ser adotada por um verdadeiro pai. Deus escolheu alguns... Lucifér também! E nós somos os seus "queridinhos"! E ele é o que é, sempre! O que supre, sustenta, que dá a liberdade de agir, de atingir o conhecimento e a liberdade, a plenitude verdadeira.

Ariel completou:

— Esta vida é um momento sublime no meio da Eternidade, e tem que ser completamente aproveitada. Para que submeter-se à castração Divina? Se Lucifér tem tudo o que precisamos para sermos felizes?

Decididamente eu estava mesmo no lugar certo. Que reino impressionante Lucifér tinha construído. Que domínio das circunstâncias, que Poder, que visão!!!

Foi aí que reparei em dois casais conversando em uma mesa mais ou menos próxima. Estavam em clima bem romântico mas um dos rapazes era daquele tipo intragável: "Sou o tal". Fazia a maior pose na frente das moças. O mais perfeito "mauricinho". Estava escrito na cara e no jeito dele.

Naquela noite nós estávamos conversando num belíssimo restaurante muito grã fino. Afinal eu e Thalya tínhamos que ter aonde usar as nossas roupas soci­ais. Então, depois dos estudos, Zórdico havia sugerido nos levar para conhecer um lugar realmente decente.

Eu tinha ficado um bom tempo de queixo caído com o restaurante. Thalya também. Espaçoso, luxuosíssimo, o maitre só faltava nos carregar no colo. À meia-luz tocava sempre ao vivo um piano acompanhado por um quarteto de cor­das. E as pessoas desfilavam recendendo a dinheiro.

Mas realmente eu me impliquei com o sujeito na outra mesa.

— Que cara mais metido aquele ali. Olha só, Tassa, ele se acha o gostosão!

— Como tem gente besta nesse mundo! — Retrucou ela observando também. — E que cara de idiota ele tem!

Marlon foi o primeiro a sugerir, discreto, sem olhar muito na direção dele:

— E vocês não querem fazer ele passar uma vergonha qualquer? — Vergonha?!

Eu pensei em tudo, menos em usar algum Feitiço. Mesmo porque nós prati­camente nem sabíamos como fazer um. Eu poderia soltar um "pum" perto deles.

Ou Thalya podia fazer a cena completa:

— Quer dizer que você anda me traindo, é? E essa é a vagabunda da sua outra namorada?!

Eu e ela imediatamente nos entreolhamos com os semblantes brilhando e a mente dando voltas. Mas Zórdico adivinhou o rumo dos nossos pensamentos:

— Não! Não, crianças! O que vocês estão maquinando? Vocês são filhos do Fogo, usem o Poder. Os Guias trabalham pra vocês

— Usar o Poder?! Mas como? — Indaguei.

— Peça para Abraxas.

— Se eu fizer um encantamento eu posso matar ele? — Perguntei cheio de curiosidade.

— Bom, até poderia. Mas não é ainda o momento disso. Não precisa matar o cara, né? Faça algo melhor. Faça ele passar um belo constrangimento.

Olhei de novo na direção dele. Ele rodava a taça de vinho nas mãos. Que maneira tola de insinuar o óbvio. Fazia até contorcionismos com o pulso.

— Será que eu posso fazer aquela taça explodir? O que você acha, Marlon?

— Não custa tentar!

Todos olhavam para nós. Era bem claro que eles queriam ver a gente se divertir um pouco. Ninguém se ofereceu para fazer nada em nosso lugar.

Eu não sabia muito, nem sabia direito como fazer. Mas tinham dito que eu e Thalya juntos teríamos mais Poder. Então me decidi, peguei a mão dela e disse:

— Tassa, pede junto comigo. Pede para Thorzzodú ao mesmo tempo que eu peço para Abraxas. Vamos fazer aquela taça explodir!

E na minha cabeça eu já via mesmo aquilo arrebentando em mil pedaços, voando caco de vidro na cara dele. Pedimos e esperamos. Não aconteceu nada nos primeiros instantes. Eu dei uma olhadinha para Zórdico. Mas ele já estava olhando pra mim. Então fez um gesto rápido apontando para o rapaz:

— Olhe!

E então imediatamente vi a taça partir-se em duas. A metade perto dele caiu inteira sobre a roupa e ensopou de vinho a camisa branca. Mais que depressa ele apertou o dedo na gravata para tentar fazer estancar o sangue que escorria de um talho. Depois viu o guardanapo e enrolou o dedo apertado nele. O pessoal do restaurante acudiu para saber o que tinha acontecido.

Thalya não se controlava. Ria alto e compulsivamente. Eu ri também, mas não tanto quanto ela. Os demais mantiveram a linha. Não ficava bem nós rirmos demais.

— Uau! Nós fizemos isso?!! — E eu olhava para Thalya.

Ela estava mais entusiasmada do que eu e procurava com os olhos mais alguém pelo restaurante.

— Olha, Rillian, olha aquela mulher ali! Vamos explodir a taça dela também?

— É isso aí, vamos fazer explodir todas as taças do restaurante!

Deram risada e disseram:

— Chega de brincadeira por hoje. Vocês podem usar o Poder, mas não osten­sivamente.

Nós assentimos e nos acalmamos. Passamos a conversar de outras coisas depois que esgotamos o assunto da taça. Eu continuava olhando e olhando o ambiente.

— Puxa, esse restaurante deve ser o melhor lugar do Brasil!

— Não. Não é. No exterior, inclusive, tem coisa melhor ainda. Você vai co­nhecer! No tempo certo!

 

Certa noite Marlon puxou a mim e Thalya de lado na reunião do Grupo e falou, animado, com a expressão do rosto muito característica: tinha algo de novo a nos contar!

— A partir de agora vocês dois devem oferecer um Rito só entre vocês! — Explicou.

E começou a nos dar todas as orientações necessárias para que pudéssemos fazer o Ritual juntos. Até aquele momento eu tinha oferecido o meu, e Thalya o dela. Mas agora teríamos por obrigação um ato cerimonial conjunto no último sábado de cada mês.

Era relativamente rápido e simples. Fazíamos no porão de minha casa antes de nos encontrarmos com Marlon para ir ao Ritual de Celebração da Irmandade. Não durava mais do que quinze minutos.

Aquele processo tinha por objetivo reforçar a nossa aliança um com o outro, era um símbolo da minha união com Thalya. Mas não somente isso. Era também a celebração da nossa união como casal perante as Entidades. Visava desenvol­ver um feeling todo especial entre nós como almas gêmeas, como dois seres que se complementam e que, juntos, oferecem algo aceitável diante dos demônios.

Deveríamos praticar para que, em tempo oportuno, nossos poderes viessem de fato a se unir para finalidades comuns que vão além da mera celebração.

Os elementos usados não eram muitos: o Pentagrama, incenso, algumas er­vas. Nem se faziam necessárias as velas. Elas tinham um contexto mais individu­al. Devíamos também utilizar uma roupa especial, um manto semelhante ao que tinha sido utilizado no Rito de Iniciação. Este era permitido ter em casa.

A primeira vez que celebramos a nossa união meus pais não estavam em casa. Tinham saído para a Formatura de ginásio de meu irmão Roberto. Não havia muita novidade além do fato de termos que fazer tudo a dois, mas estáva­mos tranqüilos. Era gostoso nos juntarmos para isso. Tantas eram as promessas!

Entoamos os mantras e os encantamentos alternadamente, e depois em coro, posicionados sobre o Pentagrama. Os incensos aromáticos já tinham perfumado o ambiente calmo e silencioso. Tomamos as alianças e as colocamos numa taça de ouro. Esta taça também tinha sido fornecida para aquele fim. Tinha um forma­to estranho, com duas asas laterais e três pedras vermelhas incrustadas formando um triângulo.

O simbolismo era simples mas profundo.

Usando a pequena lanceta de ouro perfuramos os nossos dedos. Gotejamos sobre as alianças. Uma mistura de cor forte e sabor como de vinho tinto foi colocado para completar a taça. A presença dos Guias era forte, completamente pal­pável, e uma sensação muito profunda de alegria nos invadia.

E bebemos ambos daquela bebida. Era uma união de sangue. Uma aliança de sangue! Algo de profundo valor, que não seria desfeito.

Nos abraçamos ao final, unindo fortemente as nossas mãos num gesto sim­bólico.

— Poder à força! — Eu disse.

— Morte aos fracos! — Veio Thalya em resposta.

 

Cada vez mais Thalya e eu tínhamos consciência — e desejo — de estarmos juntos. Eu fazia parte dela e ela fazia parte de mim de uma forma que já não seria possível com mais ninguém.

Numa ocasião pude comprovar claramente que idéias apenas induzidas po­dem concretizar-se de fato. E isso veio a fazer com que eu e ela estivéssemos mais juntos do que nunca também na Canion Tower.

Fazia já alguns meses que eu estava no setor de Câmbio. O Marcos tinha tido um sarampo muito complicado, acabou tendo infecções e foi obrigado a sair por mais tempo do que o previsto. Depois passou pela perícia médica e foi afas­tado em licença, nem sei por quê. Fato é que não iria voltar tão cedo. A vaga dele continuava existindo, mas alguém tinha que fazer o serviço.

Realmente agora a rotina me era quase totalmente familiar e eu podia perfei­tamente me virar sozinho. Às vezes discutia um pouco com a Malú, debatendo possibilidades. Mas já nos tratávamos de igual para igual.

Como eu estava lá, e a Gerência tinha se alegrado muito comigo... acabei ficando por lá mesmo! Efetivamente como Técnico de Câmbio! Mas com isso Thalya ficou muito defasada em relação a mim. Aquilo tinha que mudar em bre­ve.

Malú sentava-se bem atrás de mim. O departamento do Câmbio era todo assim, com duas fileiras paralelas de mesas individuais, uma atrás da outra. Bas­tava girar a cadeira e podíamos discutir à vontade sobre o serviço ou outra coisa (às vezes era mais sobre outras coisas). Certa ocasião reparei que ela usava uma aliança na mão direita.

— Ah, você é noiva, heim? — Comentei. — E quando é que casa? Malú devia ter uns 23, 24 anos:

— Bom, se tudo der certo, quem sabe lá para o final do ano. Já temos até uma data em mente, mas precisamos juntar dinheiro. O dinheiro é o que pesa, por isso não deu certo o casamento ainda. Mas, se Deus quiser...

— Hoje em dia casar consome grana à beca!

— E você, não casa?

— Bem depois dos vinte, com certeza! É cedo! — E dei risada. — Posso ver a sua mão? Já te dou umas dicas sobre você e esse seu casamento.

Alguns dias antes Abraxas tinha me falado algo que adorei ouvir:

— Thalya tem que estar sentada na cadeira dela. Esta mulher vai sair daqui. Aquilo me acendeu. Não poderia haver nada melhor. Mas o que ele queria dizer? Eu não sabia bem o que fazer, nem mesmo se deveria fazer algo. Mas quem sabe eu não podia ajudar a antecipar aquele tempo?! Parecia tão improvável... mas se ele dissera, haveria de ser.

Ela me olhou um pouco antes de estender a mão.

— Andaram comentando que você sabe ler a sorte... Devolvi o olhar sem pestanejar:

— E você não quer experimentar?

— Pois é, que mal faz, né? Vamos lá! — Ela se acomodou na cadeira, dando de ombros, e estendeu-me a mão com um sorriso. — Me diz o que você está vendo aí.

Olhei, vi as linhas, observei mais um pouco e então comecei.

— Pôxa, mas ele foi o seu primeiro namorado?

— Como é que você sabe?

— Bom, está aqui, né? Tá vendo? — Apontei. — Forma aqui uma única ilha, isto quer dizer que não houve outros.

Malú gostou e se acomodou melhor.

— Que mais?

— Vocês devem estar juntos há bastante tempo, deixa ver... uns cinco anos!

— É verdade! Quatro e meio!

— Mas vamos começar por essa linha aqui, ela mostra vários aspectos da sua personalidade!

E fui falando, explicando o por quê de cada dado novo que eu ia acrescen­tando. E Malú se encantava!

— Uau! Aonde foi que você aprendeu isso?!!

— Foi na Rosa Cruz. É muito interessante.

Resolvi arriscar. Continuei olhando a mão dela e voltei a falar do relaciona­mento com o noivo:

— Mas estou vendo aqui que você casa mesmo este ano! Vou te dizer uma coisa...

A confiança dela já estava ganha mesmo. Talvez eu pudesse criar alguma predisposição, influenciá-la. No meio de todas aquelas coisas verdadeiras que eu já tinha visto poderia introduzir sugestões facilitadoras. Que desabrochariam em futuro próximo. E ainda que agora eu não mais estivesse vendo nada, fui falando. Com o mesmo jeito cativante, procurei a brecha certa para entrar:

— E qual é seu signo?

— Aquário.

— Aquário! Aquário é sonhador... mas, sabe, às vezes o aquariano fica muito preso apenas nos sonhos, não luta para concretizá-los. Fica como que "preso" dentro do aquário. E é preciso conhecer... o mar! O mar está aí para ser conquistado e somente os corajosos trocam o aquário, aparentemente seguro, pelo mar. E o seu noivo? Que signo é o dele?

— Ele é de câncer!

— Pôxa, que bom, os dois estão associados à água! Vocês estão muito bem, o relacionamento tem muita chance de dar certo quando é assim. Vocês realmente vão casar este ano! Ele é o homem certo para você.

Observei melhor e aí comecei a avançar realmente na direção que eu queria:

— Vejo aqui algumas coisas a nível profissional para você... estas linhas estão me dizendo que você não vai ficar muito tempo aqui na Canion, não! Este não é o seu lugar.

Malú mantinha a mão estendida acomodada na minha e apoiou a cabeça levemente inclinada na outra mão. E sussurrou:

— Sabe que eu já pensei mesmo nisso? Porque depois que eu casar... vai ficar mais difícil, talvez vá morar longe. Mas eu fico pensando: viver só dentro de casa não vai ser bom também.

— Sim, com certeza. Este marasmo não se adapta à você. Mas eu vejo tam­bém outros talentos. Coisas que estão ocultas, escondidas, amortecidas... — Con­tinuei cutucando. — É tão claro! Tem outras coisas que você gosta de fazer!

— É...tem razão, eu gosto muito de pintura mas acho que eu não faço isso muito bem. Só de hobbie mesmo!

Bingo!!

— Mas não é isso que vejo aqui, dona moça! Você tem uma veia artística muito forte. Mas é aquele lance de ficar presa dentro do aquário e se contentar com isso. É que você nunca tentou arriscar e seguir este impulso que está ador­mecido. Ele pode acordar! Estas linhas são um reflexo daquilo que você pode conquistar... se for em direção ao mar! O aquariano sonha...mas nunca faz nada para que o sonho se transforme em realidade.

Malú ouvia profundamente interessada. Eu a olhava firme, dentro dos olhos.

— Lembra disso: você é capaz de escrever o seu próprio destino. Você é a escritora do livro da sua vida! Sabe, se alguém gosta de drama, vai viver um drama. Se gosta de terror, vai viver terror. Se gosta de tristeza, se não acredita que felicidade existe de fato... vai realmente ser infeliz toda a vida. E você... você gosta de romance... — Aquilo era tão primário! Toda mulher gosta de romance. — Viva o seu romance. Aproveite-o! Escreva-o! Viva cada página da sua vida com intensidade e paixão, saboreando as delícias dela e a alegria de poder ser livre! Não coloque e não aceite fronteiras, limites, empecilhos. Descubra o seu Potencial.

Apertei levemente a mão dela, à guisa de solidariedade e incentivo. Eu me empolgava ao ver a reação positiva dela. Continuei dando corda:

— Acredite no sonho... acredite nele e você vai pular fora desse aquário. E vai ter o mar à sua frente! Descobrirá coisas novas, a rotina deixará de ser tão enfadonha. Você não vai mais ver aquelas coisinhas de sempre, no fundo do aquário. Vou fazer a sua numerologia! Me responda algumas perguntinhas...

E fiz. Malú inclinava-se sobre a mesa, na minha direção, embevecida, satis­feita.

— O que você está falando tem tudo a ver comigo! — Comentava ela, enquan­to eu rabiscava os cálculos rapidamente. — É que é tão difícil ir contra a sensação do "dever", sabe?

Observei pela tabela numerológica que submissão era um traço característi­co dela. Mesmo assim continuei investindo e falei uma interpretação diferente dos números.

— Vejo que você realmente é amante da liberdade! Os números completam de forma mais profunda o que eu já disse. E você tem um lado emotivo muito forte que, associado à sua sensibilidade, formam um alicerce para que você possa construir grandes coisas na área artística.

Eu olhava de soslaio para ela de vez em vez e observava um brilho crescente no rosto dela. Sabia que as Entidades deviam estar à volta, endossando o que eu dizia. Malú realmente ia se animando a olhos vistos e vi que a semente estava caindo em solo fértil. Estava plantado. No devido tempo frutificaria.

Se fosse necessário Abraxas designaria demônios para acompanhá-la, influenciá-la mais ainda, direcioná-la naquela direção, ajeitar as circunstâncias. Até mesmo seria destacada outra pessoa diferente para dizer as mesmas coisas, em ocasião subseqüente, se houvesse proveito. A única coisa que Abraxas me disse ali na hora foi simples:

— Toque sua mão de leve nos cabelos dela.

Fiz o que ele dizia, sem questionar. Malú estremeceu involuntariamente mas recompôs-se logo. Eu sabia que tinha atingido o meu objetivo.

— Mas você está dizendo para eu me rebelar com tudo, então? — Ela tentou questionar um pouco, falou brincando, mas senti uma ponta de verdade no que ela dizia.

— De modo nenhum. Eu não estou dizendo para você fazer nada, estou sim­plesmente vendo você através das ferramentas que eu tenho. Mas já que você falou em rebelar-se... não é uma rebeldia em relação ao sistema! É mais profundo do que isso, é um rebelar-se contra a sua própria natureza acomodada! Compre­ende? Seu maior inimigo é você mesma e não o mundo à sua volta. Vencer a si mesmo nos leva a dar um avanço muito grande! — Continuei elogiando-a e por fim falei novamente, desta vez de forma bastante enfática. — Seu lugar não é aqui! Você não nasceu para ficar amarrada numa mesa de escritório, fazendo este serviço idiota!

Malú inspirou fundo, convencida de muita coisa, eu sabia:

— E você? — Redargüiu ela. — Com todo esse potencial que você tem, tão inteligente, falando tão bem...será que este é o seu lugar?

— Mas eu entrei agora, né? Entrei como auxiliar administrativo mas já estou fazendo o serviço de Técnico de Câmbio. Isto significa que estou crescendo! O que é progresso? Progresso é um vetor crescente, não é? Quando eu deixar de ver horizontes aqui realmente é hora de mudar de rumo. A essência da natureza hu­mana é assim mesmo. Do mesmo jeito que a árvore cresce para cima buscando cada vez mais alcançar o céu... esse também é o desejo do ser humano! Dei um leve tapinha na mão dela:

— Vá lá! Escreva uma página da sua história. Seja produtora, diretora, figurinista e — principalmente — a atriz principal. Quer coisa melhor do que isso?!! — Estalei os dedos. — Só que enquanto isso não acontece, vamos traba­lhando, né?

E Malú ficou mesmo pensando naquilo.

 

Mais tarde comentei com Marlon:

— Olha, eu falei um bocado de coisas para a Malú, aquela moça que trabalha comigo. E pelo jeito está mesmo criada uma disposição diferente nela! — Expli­quei o contexto. — Ela ficou super influenciada, Marlon. O que você acha?

— A palavra tem muito Poder. Especialmente aquela que sai da nossa boca. Pode ter certeza de que algo vai acontecer!

— Abraxas me disse que ela vai sair de lá!

— Não se preocupe. As Entidades vão se incumbir de continuar fazendo a cabeça dela, darão ordenanças para que isso se cumpra. Tanto Abraxas quanto Thorzzodú sabem que vocês dois devem andar lado a lado. Já comentou com Tassa sobre isso?

— De leve.

— Alguma coisa vai acontecer. Aguarde o tempo certo!

— Vou continuar trabalhando neste sentido. Pelo menos no que eu puder fa­zer...

Marlon sorriu, devolvendo um olhar significativo, satisfeito porque apren­díamos com rapidez. Aqueles meses após a Iniciação tinham transformado pro­fundamente as nossas vidas em todos os aspectos. E isto era apenas o começo!

As semanas passaram rápidas e Malú começou a ficar sobrecarregada de serviço. O fim do ano estava próximo e havia muito o que acertar sobre o casa­mento. Ela e o noivo tinham desistido de labutar por mais dinheiro extra e conso­lidado a data. Mas havia vezes em que Malú chegava atrasada e outras em que precisava sair mais cedo. E se atrapalhava com tudo.

— Você não quer ajuda, Malú? — Sugeri certo dia. — Tem uma moça amiga minha que é assistente e sabe bastante. Você talvez possa solicitá-la para que ela te ajude um pouco no serviço!

— Edu, talvez seja mesmo a solução, por que não pensei nisso antes? Pôxa, será que daria para você ver isso pra mim? Estou atarefadíssima agora!

Não esperei outra ordem e fui direto ao Supervisor de Thalya.

— Hum. — Disse-me ele. — Não sei se vai dar para liberar a moça agora. Mas vou ver o que dá pra fazer.

E tudo aconteceu sem a menor oposição de ninguém, "lisinho"! No mesmo dia, no fim da tarde, ele ligou de volta.

— Vamos fazer assim? Todas as manhãs ela fica aí no Câmbio com a Malú. De tarde volta para o nosso setor, combinado?

Combinadíssimo!

E foi assim. Thalya, toda compenetrada, aprendia e ajudava Malú. Depois do almoço dava um "adeusinho" e voltava à sua antiga função. Foi bastante divertido, não resta dúvida. Thalya zanzava por ali a manhã inteira, atarefada e risonha, e eu acabava virado para trás bem mais do que de costume.

Apesar de haver muito trabalho era uma alegria o tempo todo, eu e Thalya vivíamos rindo e animando todo o setor. Malú também ria por qualquer coisa e estava muito satisfeita em trabalhar conosco. Trabalhávamos mais em trio do que individualmente, todo o serviço era dividido e feito em conjunto.

Até para almoçar estávamos sempre juntos. Thalya perguntava do casamen­to, incentivava, dava palpites, sugestões, olhava junto revistas de noivas. Malú nos considerava seus amigos. Pena que nós fôssemos de fato "amiguinhos-da-onça". Sutilmente, nos bastidores éramos nós dois contra ela. Já tinha sido introjetado dentro de nós o princípio de que não existe amizade, compaixão ou consideração fora dos limites da Irmandade. O que passava disso era puro jogo de interesses.

Coitada da Malú! Às vezes eu tinha um pouco de dó, mas Thalya não estava nem aí. Era mais cruel. Mas até que eu me divertia com as suas pequenas maldades, e até endossava-as. Certa ocasião, durante o almoço, Thalya estava sentada ao lado de Malú e diante de mim. Então, do nada, no meio da conversa, Thalya estendeu a mão aberta sobre o prato de Malú, como quem sente o vapor, e per­guntou:

— Está quente a sua comida? — E pronunciou alto e rápido algumas palavras de encantamento que eu compreendi muito bem, mas que deixou a pobre Malú a ver navios.

— Ué? O que é isso que você está falando? — Malú sorria. — Está enrolando a língua, é, menina?

Thalya tinha fama de ser muito impulsiva, espevitada. E meio "louquinha", no bom sentido. Por isso Malú não ligou quando veio a resposta:

— Isso foi um palavrão em aramaico! — E ria, ria. Volta e meia olhava para mim como quem diz: "Vamos ver se vai funcionar!".

Era só brincadeira, para variar. Mas senti a mão de Thalya que procurava a minha por baixo da mesa:

— Só para garantir, Edu, vai! — Exclamou ela, divertindo-se a valer.

Estendi a mão sobre o prato da Malú repetindo as mesmas palavras.

— Ué! Você também fala palavrão em aramaico? — Malú tomou um gole de suco e virou-se para conversar com alguém do outro lado.

Ela nem estava ligando muito para nós. Sabia que quando baixava a "hora da bobeira" podia desistir de arrancar de nós alguma atitude coerente. No entender dela nós "éramos assim mesmo".

Mas o fato é que eu e Thalya estávamos ainda naquela fase de êxtase com aquele vislumbrar do Poder. O início do Poder. Estávamos começando a apren­der alguns Feitiços e era sempre muito engraçado ver pessoas caindo da escada, vomitando, tendo dores de cabeça, machucando-se com ferimentos leves.

— Será que vai funcionar? — Perguntou Thalya.

— Acho que vai, né? Sempre funciona!

Havia um regozijo íntimo em provocar a maldade. Thalya em especial reve­lou-se muito má. Mas eu já tinha aprendido que as mulheres são assim mesmo. Podem ser piores do que os homens. Quando são boas, são boas de verdade, abnegadas e abençoadoras. Mas quando estão em aliança com as Trevas tornam-se instrumentos muito fortes também.

Mulheres são assim. Ou santas, ou demoníacas, tanto usadas para a bênção como para a desgraça; tanto podem gerar vida... como matar!

O almoço terminou e subimos de volta para o departamento. Durante a tarde nada aconteceu. Foi só lá pelas quatro que começou.

— Puxa, meu estômago está doendo já faz tempo... — Reclamou a Malú de repente, meio pálida e com as mãos frias. — Mas está piorando. Será que foi a comida? Vocês estão bem?

Eu e Thalya confirmamos:

— Estamos bem, sim.

— Melhor você ir até a enfermaria se não melhorar, né? — Fez Thalya com ar "preocupado".

E a Malú não melhorou mesmo. Continuou com dores, vomitou um pouco, teve que sair mais cedo. Mas só. No dia seguinte já estava bem.

Alguns dias depois desse episódio, empolgados com o primeiro sucesso, tentamos fazer algo que viesse de fato a desestruturar a Malú. Quem sabe ela não dava no pé de uma vez por todas?!?

E durante o nosso Rito a dois tentamos pedir aos Guias que dessem um jeito para que isso acontecesse. Mas nem eu e nem ela tínhamos a menor noção de como fazer um Feitiço de maiores proporções. Esses conhecimentos viriam, mas não tinham ainda chegado.

E realmente não adiantou fazer o Feitiço do "nosso jeito". Nada aconteceu.

— Pôxa, mas o Marlon disse que algo ia acontecer! — Reclamei com Thalya. — Que eu tinha que esperar o tempo certo, que Abraxas e Thorzzodú fariam o resto. Mas já se passaram semanas, está demorando e nós não conseguimos re­solver essa parada sozinhos.

Hoje tenho cá comigo que a demora dos demônios tinha sido proposital. Para que almejássemos ainda mais o Poder pleno. Porque naquela altura, como simples Iniciados no Satanismo, realmente era muito pouco o que podíamos fazer sozinhos. Só mesmo as dores de cabeça, os vômitos e os machucados de sempre.

Quando havia necessidade de algo maior era necessário que se recorresse a alguém.

— Vou ter que falar com Marlon. Ou Zórdico. Ou você poderia pedir à Rúbia! No dia do Ritual da Irmandade fui direto em Marlon.

— Acho que nós estamos fazendo alguma coisa errada. Está demorando para acontecer.

Contei como tínhamos feito o Feitiço. Marlon riu, desta vez muito paternal:

— Nãããão... não é assim que faz, meu filho! Vocês não sabem fazer ainda. Não é desse jeito que se lida com situações desse tipo!... Vá lá! Qual é o nome completo dela?

De posse dos dados, Marlon tornou a sorrir. Thalya já tinha grudado perto de nós e olhava para ele com olhos grandes.

— Podem ficar descansados, crianças...! Vai ser como vocês querem. Depois de alguns dias, Malú adoeceu. De leve, é verdade, teve algo como uma virose que a afastou por vários dias. Mas não sei o que deu nela, resolveram antecipar o casamento. Uma atitude totalmente inusitada. Malú veio alguns dias, faltou outros e, em poucas semanas, no princípio de dezembro, casou-se. Ficou fora todo o período da Lua-de-Mel e também tirou as férias atrasadas, quase um mês e meio longe do setor.

Todo esse tempo Thalya ficou em tempo integral no lugar dela, vigiada de perto pelo Supervisor do Câmbio. Terminado o tempo de afastamento de Malú, afinal de contas ela não voltou. Simplesmente ligou para nós à guisa de despedi­da:

— Sabe que que é? Estou a fim de curtir o casamento! — Disse-me ela ao telefone. — Mande um abração para o pessoal! E, olhe, Edu, obrigada mesmo por tudo, foi muito importante o que você falou. Me fez pensar e vejo agora com mais clareza. Sei que o meu caminho é outro. Não quero continuar nesse empre­go. Toda sorte pra você! Quem sabe a gente não se cruza ainda por aí?

Felicitações de ambas as partes, desliguei o telefone e contei para Thalya em primeira mão.

E ficou a vaga. E Thalya ocupou a vaga. Naturalmente.

Comemoramos, e Marlon recebeu a notícia alegremente, sem qualquer es­panto.

 

Depois que Thalya veio definitivamente para o meu setor vivemos um perí­odo muito gostoso a partir de então. Volta e meia ficávamos até mais tarde para "colocar em ordem" alguma bobeira. Além da hora-extra, a Canion pagava o jantar e o táxi. Enquanto tinha gente no departamento ficávamos por lá mesmo, mas depois saíamos para a Avenida Paulista.

Jantávamos em algum bom restaurante ali por perto. Depois de muito papo, uma sobremesa e um cafezinho pegávamos o táxi para casa. Ou, mais freqüente até nestes dias, para as Reuniões de Celebração da Irmandade.

Geralmente já estava previamente combinado um ponto de encontro com Marlon. Não era conveniente ir de táxi até a casa de Zórdico. Ainda que ninguém tivesse falado nada explicitamente, era natural: ninguém que não pertencesse à Irmandade deveria ir até lá, parar em frente, ver o local. Ninguém que não sou­besse do que se tratava. Aquele lugar não deveria ser apresentado a quem quer que fosse. Por isso sempre nos encontrávamos com Marlon antes.

Descíamos do táxi. Ele já estava à nossa espera. Entrávamos no carrão enor­me, importado. Normalmente os motoristas dos táxis ficavam olhando... olhando... sem entender bem. Era engraçado!

Thalya estava feliz da vida como Técnica de Câmbio efetiva. Ela também tinha mudado muito naqueles pouco mais de nove meses desde que fôramos Ini­ciados.

Ainda que continuasse a brincalhona de sempre, cheia de querer fazer graça, agora eu via que minha amiga era capaz de manter-se séria e compenetrada sem­pre que fosse preciso. Era respeitosa com tudo o que se referisse à Irmandade, aos Ritos, aos Guias, aos nossos novos amigos. Falava de uma maneira mais adulta, não tinha medo de nada, agia sempre com determinação diante do que queria.

No entanto, assim como eu, não foi somente isto que mudou na personalida­de dela. Era como se estivéssemos sendo submetidos a uma "metamorfose". Lenta ainda...mas inexorável. Na mente, nas emoções, nas ações e reações, nos propó­sitos de vida, na maneira de enxergar o mundo e seus habitantes.

Não haveria mais como viver a mesma vidinha de antes.

Mas não era nada que não estivéssemos dispostos a entregar.

 

A Irmandade toda se reunia de sexta para sábado e de sábado para domingo nos chamados "Encontros de Celebração". Era comemorada a nossa união com os Poderes das Trevas, nossa gratidão por termos sido escolhidos, nosso agrade­cimento porque cada um de nós teria o seu lugar no reino do nosso pai.

Eu já tinha ficado muito impressionado com o número de pessoas presentes no Castelo. Mas o grupo que se reunia em São Paulo era muito expressivo tam­bém. Normalmente nos encontrávamos em cinco mil pessoas na casa de Zórdico.

De fato a Irmandade era um "corpo"! Tudo o que eu tinha escutado em teo­ria e nunca tinha experimentado na prática durante os meus devaneios pelas Igre­jas agora estava bem diante de mim. Só que do outro lado. Havia realmente um profundo elo que nos unia, invisível mas palpável. As pessoas dentro do Satanismo eram unidas. "Irmandade" não era apenas um nome. Carregava um intenso signi­ficado. E verdadeiro! Pela primeira vez na vida eu me deparava com algo que... era verdadeiro.

A Irmandade parecia um formigueiro. Cada um tinha o seu papel muito bem definido e tudo funcionava perfeitamente.

Havia os Iniciados: aqueles que tinham acabado de chegar. Estes começam a ser treinados e entendem um pouco melhor como funciona o grande formigueiro do qual fazem parte agora. Como bebês, são poupados da maior parte das obri­gações e dos principais Ritos que vão além dos habituais. Mas o cuidado é bas­tante. É fundamentada uma sólida base sobre a qual construir-se-á a longa traje­tória. O tempo que se permanece como "Iniciado" varia de pessoa para pessoa. Depois disso os Iniciados tornam-se Aprendizes, ou Discipulandos. São aque­les que já conhecem um pouquinho da periferia da Magia e conseguem realizar pequenos encantamentos como os que eu e Thalya vivíamos fazendo.

O próximo patamar é o de Mago. O Mago já está mais consciente dos seus deveres e do seu chamado dentro do contexto da Irmandade. Já passou do "leitinho" inicial e é capaz de compreender melhor a Magia em si, os seus propósitos, e os motivos que movem o Satanismo. Mas ainda que conheça melhor a Magia isso ainda é expresso mais a nível teórico do que pratico. Não foi atingida ainda uma patente capaz de conferir um pouco de autonomia. Para os Feitiços complexos e mais poderosos faz-se necessária a dependência dos mais experientes.

Quando se atinge o patamar de Feiticeiro a coisa muda bastante de figura. Atinge-se um patamar hierárquico de bastante respeito e se está apto a lidar de forma muito mais plena com a Magia. Não somente o Feiticeiro é capaz de reali­zar encantamentos bastante poderosos como conhece bem a mecânica espiritual por trás destes Feitiços. Conhece o "por quê" de cada prática.

Os Feiticeiros podem ser divididos em três hierarquias: superficiais, media­nos e profundos. O Poder cresce gradativamente porque as Entidades acessadas são cada vez mais poderosas. O Feiticeiro superficial atinge até o quinto patamar dimensional; os medianos, o sétimo patamar; os profundos, o nono patamar. Este é o grau máximo atingido dentro do escalão de Feiticeiro.

Depois o Feiticeiro torna-se Bruxo. É semelhante ao Feiticeiro em função, mas cresce em conhecimento e Poder.

A partir daí entra-se já na função sacerdotal. Existem também níveis a se­rem galgados dentro dessa classe, que se subdivide em Sacerdotes e Sumos Sa­cerdotes.

Os primeiros geralmente são em número de oito nas Celebrações normais. Sua função é "preparar a casa" para o recebimento do povo e das Entidades. Isto implica em chegar ao local com pelo menos três horas de antecedência. A prepa­ração requer um sem número de detalhes que vão desde a confecção dos incensos e o preparo das ervas aromáticas, até o acendimento das velas e tochas, passando pelo preparo das bebidas, da mesa, dos instrumentos, do Pentagrama, etc.

Para isso contam com um grupo de doze auxiliares. Estes são, no mínimo, Feiticeiros.

O grau de Sumo Sacerdote é o patamar máximo atingido dentro da Irmandade. Nem todos chegarão a isso. Os Guias escolherão e apontarão quais são as pessoas que eles querem exercendo as funções sacerdotais, tanto Sacerdotes como Sumos Sacerdotes.

O Sumo Sacerdote tem por função dirigir as reuniões. O conhecimento deles é vastíssimo, conhecem muito bem todas as literaturas satânicas, todos os tipos de Rituais em pormenores, falam fluentemente o aramaico e o latim. São os de­tentores dos grandes segredos, das grandes revelações de Lucifér e de Poderes indescritíveis.

A mudança de patamar hierárquico nunca é decidida pela própria pessoa e o tempo que se gasta em cada patamar pode variar bastante. Pois o reconhecimento não é humano, ao contrário, vem das Entidades. Os demônios dizem quando cada um está — ou não — apto para galgar mais um degrau. E a sinalização é feita à classe Sacerdotal, nunca diretamente ao contemplado. Então acontece a mu­dança de nível, sempre dentro de um contexto ritualístico específico para o novo "cargo".

A questão do chamado e do destino espiritual de cada filho do Fogo é muito singular, muito individual. Há quem não tenha sido escolhido para galgar muitos patamares hierárquicos, por exemplo. Pode-se ficar anos e anos como Feiticeiro, como Bruxo, ou até como Mago. Outras vezes, conforme haja direção de Lucifér, o crescimento é muito rápido. Alguns entrarão em contato quase que de cara com questões estratégicas. Outros nem sequer saberão dessas. Tudo depende do propósito para o qual cada um foi escolhido.

Por exemplo, no meu próprio Conselho havia de tudo um pouco: As "patentes" dos meus amigos eram várias. Górion, Naion, Surama e Ariel eram Magos. Rúbia já era Feiticeira. Aziz e Kzara também. Marlon, Egípcio e Cerdic eram Bruxos. Zórdico era Sacerdote. E eu e Thalya, Aprendizes.

A partir do grau de Feiticeiro abrem-se portas para que, se for do interesse das Entidades, a pessoa assuma mais de uma função. Há algumas outras posi­ções que podem ser consideradas.

Os Mestres das Escolas, ou Mestres Doutrinários, é uma delas. Nessa altura eu já sabia que havia muitas Escolas como a que eu tinha freqüentado com Thalya. Zórdico era Sacerdote e Mestre Doutrinário, por exemplo. Marlon era Bruxo e estava iniciando como Mestre, mas ainda num patamar menos elevado do que o de Zórdico.

Outra posição é a dos cinco "Profetas": pessoas cuja casta demoníaca que os acompanha lhes confere uma capacidade diferente de discernimento espiritu­al. Estes conseguem perceber muito facilmente quando alguém tem algum pro­blema, e que tipo de problema. Até as coisas mais "escondidas" não permanecem ocultas diante deles. Indivíduos que estejam com dúvidas, titubeantes, tentando esconder algo não passam despercebidos. Os Profetas atuam também como sentinelas no sentido de imediatamente perceber qualquer tipo de espião ou intruso dentro da reunião.

Uma última posição é a dos Músicos que, sempre em múltiplos de nove, são responsáveis pela orquestra e pelos corais.

Eu admirava em especial o trabalho deles...! Normalmente a orquestra é bastante grande, com uma média de vinte e sete participantes, e são tocados os mais diversos instrumentos musicais. Até as coisas mais estranhas, que eu nunca vi em nenhum outro lugar fora da Irmandade. O coral também é enorme, com pelo menos cinqüenta e quatro pessoas.

As músicas e os cantos são impressionantes!!! Afinal, o pai da matéria, Lucifér, os tinha ensinado e capacitado. Uma música diferente, melodiosa, afinadíssima... maravilhosa! Ela é dita "inspirada" porque não há ensaios ou par­tituras a serem seguidas. Na hora da Celebração os músicos são simplesmente canalizados pelas Entidades e produzem tudo aquilo.

É como se descesse uma orquestra e um coral de uma dimensão superior e, canalizando os humanos, em sincronia com eles produzissem aquele efeito indescritível.

 

Na Celebração daquele sábado, com pontualidade impressionante iniciamos a entoação de um mantra em uníssono e, a seguir, a música começou. Estávamos alegres! Era impossível não estar alegre. Aquele tipo de Ritual acontecia todos os finais de semana.          

Marlon segurou forte minha mão esquerda. Eu tomei a de Thalya. Rúbia também estava perto e aproximou-se de nós. Górion e Egípcio estavam bem à nossa frente e nos lançaram seus sorrisos. O povo todo deu-se as mãos formando um gigantesco círculo de milhares de pessoas.

Nosso local habitual de culto era um vastíssimo salão subterrâneo em casa de Zórdico. Aquele salão me lembrava um pouco o outro, no Castelo, talvez por causa das dimensões. Mas a belíssima decoração não era muito semelhante.

O teto altíssimo era muito lindo, totalmente abobadado, e me lembrava a arquitetura das antigas catedrais góticas. Era pintado em toda a sua extensão de azul claro e desenhos de nuvens. À primeira vista eram de fato apenas nuvens; no entanto, se detida a vista por algum tempo, a figura clara e impressionante dos demônios começava a aparecer no meio daquelas nuvens, e nas próprias nuvens.

Havia nove pares de enormes colunas laterais unidas por arcos que se esten­diam de um lado a outro do salão. Os nove pares de colunas, junto com os seus arcos, delimitavam como que nove galerias subseqüentes, a primeira perto do altar e a última próxima ao hall de entrada. O povo ficava acomodado nas nove galerias, sobre almofadas. Um corredor central percorria todas elas, da porta ao altar.

As colunas de mármore negro estavam envolvidas a intervalos por anéis largos de ouro, ricamente trabalhados, e com inscrições em aramaico. Os arcos, de mármore claro, também tinham inscrições em aramaico e detalhes minuciosos primorosamente entalhados.

O altar, sobre uma plataforma, ocupava toda a porção anterior do recinto.

Aquele salão era destinado apenas às Cerimônias de Celebração, de modo que não havia a região escondida pelo manto negro. (Fiquei sabendo depois que naque­le recinto existe todo um aparato para lidar com o corpo do sacrifício Ritual.)

O altar tinha os mesmos elementos que eu já conhecia: a mesa de mármore negro, o candelabro de nove braços, o triângulo desenhado no chão. Na parede dos fundos do altar, vermelho-rubro sobre fundo negro, o imenso Pentagrama com o círculo ao redor e os símbolos em cada ponta.

A iluminação ficava por conta de duas piras de fogo ao pé das escadas, mas bem menores do que a do Castelo. O resto da iluminação vinha das velas e lamparinas artificiais colocadas sobre suportes nas colunas.

A música começou leve, melodiosa. O coro entrou de manso, indescritivelmente belo. Fechei os olhos saboreando aquilo, apertei mais ainda a mão de Marlon, meu melhor amigo, e de Thalya, minha alma-gêmea. Mais do que ouvindo, fui sentindo aquela música, e ela permeava a minha alma, entrava dentro de mim. Todos começaram a acompanhar o ritmo com um balançar suave do corpo, em total sincronia.

À medida que a música fluía uma sensação de júbilo crescente foi invadindo todo o nosso ser. As melodias vão se alternando, o povo se alegra cada vez mais, riem e sorriem aberta e sinceramente. Fui-me deixando embalar, e de repente estávamos todos cantando juntos, balançando o corpo ao sabor da melodia e deixando a energia daquele ambiente entrar bem lá no fundo...

Desviei meus olhos de repente para Akilai, o gigante, nosso Sumo Sacerdo­te. Ele é o único que não dá as mãos para ninguém. Permanece num ritual solitá­rio fazendo gestos e se movendo de maneira bastante peculiar, como requer o momento.

Em dado momento, ergueu bem para o alto os seus braços e mãos. Todos nós sabemos o que vem a seguir e esperamos com certa ansiedade. Akilai desceu devagar as escadas e aproximou-se dos que estavam na primeira galeria. Tocou a mão de um deles. Quase que imediatamente a sensação de descarga elétrica che­gou até onde nós estávamos.

Ela vem pelas mãos e se espalha, inunda o corpo. Agradável, tênue... e então acontece aquele regozijo intenso, enquanto as sensações continuam se alternan­do. Frio na barriga, formigamento na cabeça; extremidades quentes, frias... quentes...!!! O coração começa a bater forte... depois diminui bruscamente o ritmo... aí acelera de novo... a respiração muda...! E sempre aquela descarga elétrica suave, impossível de nomear, produzindo uma sensação boa, quase atin­gindo um clímax!

Este período termina com um sinal de Akilai, o Sumo Sacerdote. Dura bas­tante tempo. Então todos erguemos as mãos para o alto e, juntos, nos prostramos com a testa no chão, ainda de mãos dadas, em unidade.

E então, quando erguemos o olhar... ele já está lá, bem atrás do Sumo Sacer­dote!

 

Nem sempre Lucifér pode vir. A sua presença é muito valiosa, mas ele tem que dividir suas atenções. Eu o vi apenas algumas vezes. Na falta dele são desig­nados outros para estarem presentes. Às vezes, um Principado. Outras vezes, Potestades. Mas nunca uma patente menor do que essa.

Naturalmente, se oferecíamos um Ritual de Celebração, a alguém oferecía­mos. E esse era o momento deles aparecerem diante da vista de todos. Um mo­mento muito aguardado. Éramos contemplados com a presença de demônios po­derosos: Astaroth, Behemoth, Asmodeo, Bélzebu e Leviathan, por exemplo. O próprio Abraxas aparecia bastante. Mas Asmodeo era um dos que vinham, mais vezes.

Todo o povo os vê. Não é privilégio de apenas alguns. Os demônios apare­cem cheios de pompa e de glória, enormes, exalando força, Poder, domínio. Al­gumas características individuais nos auxiliam a identificá-los. Os Principados e as Potestades sempre têm braceletes de ouro nos quais está inscrito o seu próprio emblema. Ajuda a identificar.

Asmodeo, por exemplo, tinha orelhas proeminentes e um sorriso muito simpático; louro, cabelos longos, com duas tranças ladeando a face, geralmente esta­va vestido com uma roupa azul de tecido acetinado. Parecia um guerreiro viking. Era forte, com ombros largos, e nos seus braceletes a insígnia vermelha: um "A" cortado.

Behemoth tinha aparência semelhante à de um elefante, com a pele grossa e o ventre espaçoso, as pernas lembrando as patas do elefante. Parecia animalesco, mas tinha um rosto com leves traços humanos e características meio indianas, meio orientais. Às vezes aparecia com uma roupa que sempre me lembrava um kimono.

Astaroth variava bastante. Às vezes aparecia numa forma masculina, outras vezes numa forma feminina. Como mulher é muito bonita. Mas como homem parece um ancião. A identificação vinha através da coroa que sempre usava. A sua inscrição aparecia tanto nela quanto nos antebraços.

Bélzebu tinha o rosto que parecia uma mistura de vários animais. Tinha chifres que saíam da nuca, muito longos, como os de um touro. Abriam acima da cabeça, e brilhavam como se fossem de cristal, meio transparentes. O contorno do rosto parecia com o de um bode, mas a aparência era de homem. Os olhos eram bem profundos. Tinha o cabelo bem preto e curto, e as laterais dele misturavam com a barba. Usava um monte de colares com pedras. O punho era estranho. Parecia cercado por garras.

Leviathan já não era muito humano. Parecia realmente um monstro, lembrava um dragão; as mãos eram como garras, pareciam deformadas, e os olhos, envergados, lateralizados, assemelhavam-se aos de um réptil. A boca era muito vermelha, parecia estar sempre cheia de sangue. Mais raramente ele aparecia como um homem com patas de bode. Mas não era feio.

Nas vezes em que vi meu pai Lucifér, ele se apresentou muito bonito. Bem bronzeado e com músculos tão absolutamente delineados que era quase como se não houvesse pele e gordura sobre eles. Os braceletes de ouro tomavam toda a extensão do seu antebraço e tinha muitos entalhes. No centro da testa, um sinal como o que tinha ficado na minha mão após o Rito de Iniciação.

Vestia-se sempre de branco. Às vezes um terno, às vezes algo como uma camiseta e calças brancas. Uma vez eu o vi como um "centauro", só que meio homem - meio bode.

No entanto uma característica era comum a eles. Sempre se apresentavam muito bem humorados, quase alegres. Falavam pouco, mas brandamente. E sor­riam muito. Pareciam realmente gostar de nós. E nós gostávamos deles!

Quando era Abraxas quem ia aparecer sobre o altar à vista de todos eu era convidado a estar lá na frente. Abraxas tinha sempre um sorriso um tanto ou quanto sarcástico e o olhar irônico. Era difícil saber se ele estava satisfeito com a Celebração ou se estava "cheio" de tudo. Parecia de fato um guerreiro, um general aparatado para a guerra. O olhar era muito firme, compenetrado, cortante, meio cerrado. Parecia estar sempre olhando de soslaio, observando tudo e todos. Lembrava-me o olhar de um cachorro raivoso prestes a atacar.

Às vezes, sorria. Mas tinha um ar muito enérgico. Alguém que, se "perdesse a paciência".....era bom nem estar por perto!

Eu me orgulhava muito em ser o seu protegido. Sempre que ele aparecia, olhava primeiro para mim. E deixava bem clara a nossa aliança.

A primeira vez que meu Guia apareceu "em público" foi uma surpresa para mim. Eu não sabia que ele viria e quando ergui o rosto do chão dei de cara com ele, olhando para mim. Depois, significativamente, Abraxas voltou-se para os demais como quem diz: "Nem se atrevam a mexer com ele".

Era bem óbvio. A rivalidade existia. Pode parecer incongruente, mas esse tipo de coisa é passível de acontecer: quem tem mais Poder tem mais respeito. E ciúmes às vezes pintavam por ali. Principalmente os Feiticeiros se envolviam em disputas à busca de Poder.

Mas se alguém desafiasse alguém para uma disputa de Poder... tinha que ter Guias à altura da peleja. Senão, a morte era certeira.

 

Naquele sábado, quando erguemos o rosto do chão lá estava ele, Asmodeo em pessoa. O povo vibrou à sua vista, se alegrou, bateu palmas, ergueu as mãos. Asmodeo inclinou levemente a cabeça e nós o imitamos, sempre erguendo os braços em regozijo, imitando os gestos que ele fazia.

Os Sacerdotes permaneciam em posição de reverência. Percebia-se que ne­nhum deles estava canalizado ainda.

Asmodeo deu uma palavra rápida de orientação geral e desapareceu logo. Talvez ele tivesse visitas a fazer, ou compromissos a cumprir. Deixaria outros ali no decorrer da noite e da reunião. Mas o fato de aparecer tinha razão de ser. Demonstrava a todos que ele estava lá Nós não estávamos cultuando as pare­des. Mesmo que não dissesse nada a aparição por si só já nos fazia lembrados:

— Estamos aqui. Estamos ouvindo cada palavra que vocês estão dizendo. Estamos com vocês. Recebemos o seu Ritual.

A sensação é ímpar, sem dúvida. E era muito bom aquele contato.

A seguir Akilai tomou a palavra. Abriu um livro enorme e com páginas como pergaminhos. O mesmo que tinha sido lido no jantar de Formatura. Era um mo­mento basicamente doutrinário, seguido de palavras de incentivo, orientações ou comandos estratégicos. Akilai leu um trecho em aramaico e passou a discorrer sobre ele. Era o Livro dos Grimões.

Normalmente estudávamos trechos deste livro, ou da Bíblia Negra. O Livro dos Grimões é um antiqüíssimo livro de Magia, anterior à era Cristã, uma espé­cie de Bíblia Negra "antiga". É composto de cinco livros escritos em períodos históricos diferentes, por autores diferentes, levando a uma revelação progressi­va de Lucifér a seus seguidores. Apresenta uma cadeia hierárquica demoníaca reduzida e os locais de atuação territorial destas Entidades no mundo conhecido. Palavras mágicas de encantamento e Ritos específicos de invocação de demônios também têm seu lugar no livro dos Grimões. Bem como também uma contextualização histórica da Magia e da bruxaria. Histórias reais de grandes Bruxos como Abra Merlin são contadas, por exemplo, e citam-se acontecimentos de relevância ligados a estes.

O Livro dos Grimões é usado em estudos comparativos e favorece o enten­dimento de como o Satanismo nasceu, cresceu e evoluiu. O original foi escrito com sangue, em aramaico. Ele fica um pouco de tempo em cada Unidade da Irmandade em todo o mundo. Quando estávamos com ele era um grande privilé­gio. Mas há cópias para uso particular nas principais Bases, em três línguas.

O exemplar a que tínhamos acesso era único e jamais saía de dentro da Biblioteca da Irmandade. E ele só podia ser tocado pelos Feiticeiros em diante. Os Iniciados, Aprendizes e Magos sequer podem chegar perto dele. Há até quem nem saiba da sua existência, tão secreto é. Um dos livros mais sagrados da Ir­mandade. Em alguns casos mais específicos é permitido que se copie alguma coisa dele, mas sem jamais retirá-lo da Biblioteca.

A Bíblia Negra foi escrita depois, bem depois do Livro dos Grimões. Possui quatro livros de Ensinamentos Mágicos inspirados pelos Grandes Príncipes de­moníacos e um Livro Doutrinário inspirado por Lucifér. Muitos dos seus ensinamentos fazem referência ao Livro dos Grimões. Estes são codificados com símbolos semelhantes aos usados pelos Alquimistas para que haja preservação dos segredos. Em se tratando da simbologia é possível "ler" a letra, mas não elucidar seu conteúdo completo sem a ajuda dos Mestres. Assim os maiores se­gredos ficam selados.

Os cinco Livros são: o Livro de Lucifér; o Livro de Leviathan; o Livro de Asmodeo; o Livro de Bélzebu; o Livro de Astaroth.

Os Livros de Ensinamentos Mágicos desmembram a Hierarquia Satânica referente ao Príncipe que o inspirou. Quer dizer, os Grandes Príncipes têm con­trole sobre os cinco Continentes através de exércitos de Principados e Potestades Territoriais que são plenamente expostos. Os Poderes específicos de cada um são mencionados, suas formas de atuação, os Ritos de Adoração, Consagração e Ini­ciação para cada Entidade.

Os Ritos para pactos específicos são também abordados, os métodos de sacrifício Ritual são esmiuçados nos mínimos detalhes, o mesmo se dá com o preparo de poções, incensos e ungüentos. Todo tipo de Feitiços e encantamentos são descritos.

O Livro Doutrinário de Lucifér relativiza valores, demonstra verdades ontológicas. (A verdade é imutável, porém Deus, o "Absoluto", é um "Mutante"). Contém alguns outros relatos históricos da Bruxaria pelo mundo: Egito, Alexandria, Europa, etc.e menciona enfaticamente toda a estratégia para o advento do anticristo. Relata também quais são os principais Braços internacionais da Irmandade e suas ações no Globo. Templários, Pitagóricos, Gnósticos, Golden Dawn, WICCA, Warlock, Maçonaria, AMORC (Antiga Ordem Mística Rosa Cruz), etc. Os braços regionais não são mencionados.

Por fim Lucifér faz a descrição do seu próprio Apocalipse. Como o Mundo será tomado por ele e seus filhos. Além de abordar uma descrição minuciosa do Inferno.

(Há um livro que é comercializado nos EUA e muitos têm fácil acesso a ele em livrarias esotéricas e Faculdades. Porém o que é apresentado neste repre­senta cerca de apenas dez por cento do conteúdo da verdadeira Bíblia Negra usada internamente na Irmandade).

É claro que eu não tinha acesso a todas essas informações logo de cara.

Tudo vem aos poucos.     .

Com o uso principalmente destes dois livros fica clara a bondade de Lucifér no descortinar da sua estratégia. Que vem desde o princípio do mundo.

Mas não somente estudávamos o nosso material. É muito importante conhe­cer o "material alheio". De sorte que havia ocasiões quando eram lidos trechos da Bíblia Sagrada.

— Olhem o que os Cristãos pensam! — Disse Akilai naquela noite. — Mas nós sabemos que o que se refere a esse assunto não é bem assim.

E ia por aí afora, mostrando o "outro lado da força". Segundo a Bíblia Negra.

— O tempo da nossa vitória está próximo!!! E era um delírio geral.

Depois dos estudos havia tempo para alguns avisos informativos relevantes também.

— Esta semana deu entrada no Hospital Bandeira de Prata o Pastor J. Gimenez. Unam seus esforços para de uma vez por todas colocar um fim nessa pedra de tropeço. Ele não morreu no acidente que causamos, mas agora está em nossas mãos. Ele não deve sair vivo daquele hospital!

Ou então:

— O irmão Hálax está tendo problemas com uma pessoa que abriu uma loja próxima à sua, no Shopping "M". Notifiquem seus Guias e reunam forças para que isso acabe.

Ou ainda:

— A esposa de Rosmùe está cada vez mais sendo empecilho ao bom desen­volvimento de nosso amigo. É hora de por um ponto final definitivo nessa histó­ria. Decididamente ela não tem entendido os avisos e nem cooperado. Nós somos filhos do Fogo e ninguém prevalecerá sobre nós. Ela vai pagar com a vida agora.

Em outras palavras tudo podia ser sentenciado de forma bem simples: "O mundo que caia. Nós vamos ficar em pé!". Se alguém tivesse algo a acrescentar à informação, podia fazê-lo na hora. Por exemplo:

— Quanto ao Pastor Gimenez, realmente ele está internado. Estive visitando-o há dois dias, ocasião em que pude lançar um encantamento e deixá-lo bem acompanhado. Mas unamos nossos esforços para que a queda deste homem se concretize efetivamente desta vez.

Quando eram referentes aos Cristãos os avisos só tinham razão de ser caso a pessoa em questão fosse, ou pudesse vir a ser, algum tipo de empecilho muito forte. Caso contrário não valia a pena perder tempo. De Cristãos vazios o mundo estava cheio! E Cristão de "rótulo" não representa nada para a Irmandade.

Os nomes e endereços dos verdadeiros homens e mulheres de Deus podiam vir de qualquer lugar, inclusive de fora do Brasil. Não raro recebíamos nomes e informações específicas de Pastores e líderes dos Estados Unidos, Canadá, ou até da Europa. A notícia corria como fogo em rastro de pólvora e o resultado era um "bombardeio" em massa!

O regozijo vinha se a queda se efetivasse e, mais ainda, se virasse notícia. Adultérios, escândalos, roubos e até morte eram muito bem-vindos. Esta última, porém, nem sempre era estratégica. Se alguém simplesmente morre quando ain­da é um líder honesto e correto, morre como "mártir" e continua sendo um referencial para muitos. Por isso é mais eficaz apenas causar o escândalo, derrubá-lo, feri-lo. Afinal se é "ferido o Pastor... as ovelhas se dispersam"! Morte física rápida era só em último caso. Só se o obstáculo estivesse incomodando muito.

Isso tudo era motivo de júbilos!

 

Depois que Akilai falou, a um gesto dele todo o povo se dividiu em grupos de cinco. Já estavam demarcados no chão os pequenos Pentagramas sobre os quais cada grupo deveria assentar-se. Nós todos voltamos a nos preparar para dar andamento à Cerimônia. Entoávamos mantras e encantamentos, em profun­da reverência, assumindo posturas específicas.

Os Sacerdotes, no alto do altar, consagravam o caldeirão onde já estava pre­parada a poção feita por eles próprios. A receita, minuciosa e detalhista, é de conhecimento exclusivo da classe sacerdotal. A bebida espessa, doce, cor de san­gue, com um teor levemente alcoólico e aroma agradável de ervas seria servida a todos em breve. Jarros de ouro com inscrições aramaicas em relevo foram cheios.

E os doze auxiliares passaram a percorrer a multidão.

No centro de nosso Pentagrama foi colocada a taça. Eu estava junto com Thalya, Marlon, Rúbia e Górion. Nossa taça foi preenchida e demos seqüência ao que viria. Quem é escolhido para estar na ponta do Pentagrama dá inicio à Pequena cerimônia, mas antes aguarda o sinal vindo dos Sacerdotes.

Dadas as mãos e somadas as forças, em total unidade, palavras mágicas são ditas e preces de reverência e adoração a Lucifér são proferidas em coro por toda a Irmandade.

 

Os mantras e as palavras de encantamento são uma linguagem espiritual. Uma linguagem Universal da Magia. Sempre foi usada e continuará sendo usada da mesma forma. Por isso é entendida da mesma maneira por qualquer filho do Fogo em qualquer lugar da Terra (como os números da Matemática).

E não somente os filhos entendem, mas também todos os demônios. Os mantras, os Ritos, os Feitiços, em última análise, são símbolos da Magia. Todo aquele compromissado com Lucifér e os Poderes das Trevas pode fazer a leitura dos mesmos, e comunicar-se com os Guias. E vice-versa. Em qualquer lugar, em qualquer situação.

Os encantamentos usados naquele momento do cerimonial visam "chamar" os Guias individuais, acessá-los, convidá-los a estar ali. Não que todas as legiões das Trevas que nos acompanhavam não estivessem ainda presentes. Mas este era o momento da sua manifestação.

Há um clamor conjunto por Poder e por visitação. Um oferecimento conjun­to e real de nossos corpos e nossas mentes aos Guias, um oferecer de nós mes­mos. Um clamor por comunhão. Um pedido de benção.

 

E novamente começava: as descargas elétricas, o alternar de sensações corpóreas agradáveis. Eu conhecia o aproximar-se de Abraxas. Sabia quando ele estava ali ao meu lado, atrás de mim; sentia sua presença, às vezes seu odor, e o efeito dele sobre mim. Mantive os olhos fechados mas meus lábios teimavam em sorrir: meu amigo estava ali!

Erguemos ritualisticamente nossas mãos, estendendo-as sobre a taça, energizando-a, consagrando-a. Ela simbolizava o nosso pacto uns com os outros, como um só corpo, e nossa aliança com o mundo espiritual. Na maioria das vezes não havia necessidade de colocar nosso sangue na taça, a não ser que houvesse uma orientação específica quanto a isto, no momento.

Às vezes alguém dizia:

— Meu Guia está dizendo que hoje é necessário adicionar um pouco do nosso sangue nesta taça.

E assim era feito. É reiterada a nossa total e completa entrega

Ao final, a taça é passada um por um em sentido anti-horário.

O maior líder dos demônios presentes tomaria a dianteira agora. Apenas o mais forte dos Guias prevalece neste momento. Ele canalizaria o seu protegido e falaria a todo o grupo. Ou poderia também materializar-se à nossa frente, sim­plesmente, na forma que desejasse.

Geralmente há entrega de palavras específicas para os componentes do gru­po: incentivo, orientação, revelação, ou até mesmo uma "exortação".

Observamos que Marlon estava encolhido e tremia um pouco. Quando ele estava no grupo, normalmente era o seu Guia que tomava a liderança. Mas quan­do eu estava separado dele era praticamente certo que Abraxas sobrepujaria os demais. Às vezes, mesmo quando Marlon estava comigo, em certas ocasiões era permitido que Abraxas se manifestasse ao invés do Guia dele.

Sabíamos quem iria canalizar quando a pessoa começava a sentir muito frio. Isto ocorre devido a um princípio simples: como as Entidades são sempre Potestades muito poderosas é necessário que o biocampo energético humano seja enfraquecido antes que aconteça a canalização. Porque esses demônios de nível dimensional muito elevado são, eles próprios, dotados de uma força energética muito intensa. Então, antes que entrem no corpo dos seus protegidos, faz-se ne­cessário "sugar" parte de sua energia. Isso traduz-se na sensação de frio.

Se a Entidade canalizasse subitamente, sem esse preparo, o choque energético seria tal que poderia causar um distúrbio eletromagnético muito intenso no ser humano, podendo chegar à parada cardíaca. (Não seria necessário o mesmo cui­dado se se tratasse de pequenas canalizações de demoniozinhos como "exús", por exemplo. Mas esse tipo de contato espiritual é totalmente desprezado dentro da Irmandade e simplesmente não acontece. Essas Entidades não servem para fazer aliança com os filhos de Lucifér. São apenas elementos descartáveis usados para o engano).

Marlon teve sua musculatura facial transformada quando foi canalizado pelo Guia. O olhar dele adquiriu aquele aspecto profundo e cortante que eu já conhe­cia, e a voz assumiu o timbre gutural característico. Depois de dizer tudo o que era necessário a cada um de nós, foi-se.

Depois disso Marlon ficou quieto ainda um tempo. Quando se desfaz a ca­nalização é comum sentir o corpo formigando e certa letargia que passa em al­guns minutos.

À medida que os grupos concluíam seu cerimonial individual todos rumavam para as últimas galerias, à espera. Ficavam conversando, trocando informações enquanto aguardavam o final completo de toda a Cerimônia.

Os Sacerdotes e Akilai acabavam de fazer o mesmo tipo de entrega e celebra­ção entre eles, no altar. Com a diferença de que todos eles ficam canalizados. Quando tudo termina, ainda assim não é o final definitivo. A partir daí algumas pessoas são chamadas para receber revelação e orientação individual através dos Sacerdotes, que continuam canalizados.

Normalmente trinta a cinqüenta pessoas são chamadas pelos nomes, e estas devem permanecer no Átrio Ritual. As demais se retiram para outro salão aonde acontecerá a confraternização, que vai até o raiar do dia.

O período da Cerimônia propriamente dita dura em torno de três horas ou três horas e meia. Portanto, terminava entre duas e duas e meia da madrugada.

Neste horário todos vão para o salão de confraternização. É momento de boa comida, bebida, música... e liberdade plena para fazer o que quiser.

 

Raras vezes eu pude participar destas confraternizações. Porque eu sempre era chamado. Naquele dia não foi diferente.

De início não conhecia muita coisa e pensei que essa fosse a praxe. Mas logo reparei que Thalya ia muito menos. Os outros colegas do meu Grupo tam­bém. Marlon não me tinha dito nada mas comecei a perceber que o comum não era estar lá sempre.

Mas... ao que parecia... as Entidades tinham certo prazer em me ver. Nem de longe saberia dizer o por quê daquele tratamento amistoso. E lembrei-me das palavras de Marlon e daquele estranho senso de urgência em relação à minha pessoa. Por que seria??!

Enfim, eu também gostava daquele contato e nem ligava para o fato de qua­se nunca ir à confraternização!

Nas primeiras vezes eu mais fiquei calado do que qualquer outra coisa, pro­curando manter uma postura reverente, escutando e respondendo apenas quando inquirido. Mas depois, soltei-me completamente. Era gostoso dialogar, aprender, ser instruído por eles. Conversávamos muito durante muito tempo. Conversas das mais variadas. Por incrível que pareça os demônios eram dotados de um excelente senso de humor e muita, muita inteligência.

A maior parte das vezes era Abraxas quem canalizava o Sacerdote, pois ti­nha que me falar a sós coisas que não diziam respeito ao grupo. Às vezes era um dos Guias do próprio Sacerdote que me falava. Outras vezes eram outros demô­nios.

Eu gostava daquele termo "canalizar". Nunca se fala em "possessão", um termo muito ruim e falso ao mesmo tempo. Em se tratando de nós, os filhos de Lucifér, o uso do corpo pelos demônios reflete uma parceria. O homem é o canal, o meio de divulgação da voz da Entidade. É importante!

Naquele primeiro ano todas as conversas foram mais a nível pessoal. Às vezes Abraxas passava muito tempo me explicando novamente conceitos sobre a Irmandade e sobre o Satanismo, só que de uma maneira diferente. Um esboço muito mais "pessoal" da doutrina, na visão dele mesmo como demônio.

Aquela abordagem tão peculiar geralmente me acrescentava anos-luz em relação a muitos aspectos. Abraxas dizia muitas vezes a mesma coisa, mas por prismas diferentes, e nunca era enfadonho. Ao contrário, era um descortinar de sabedoria, inteligência e capacidade.

Eu o enchia de perguntas. Aprender daquela forma, em primeira instância, era bom demais. Eu não desperdiçaria momentos como aqueles por coisa algu­ma.

Ele sempre iniciava com palavras de incentivo.

— Você foi escolhido, filho do Fogo, nunca se esqueça disso: do quanto você é precioso para Lucifér. Ele não escolhe qualquer um. E você vai ser capacitado com muito Poder no devido tempo. Ele tem planos para você.

As orientações vinham as mais variadas logo após os elogios e cumprimentos:

— O seu Ritual individual está sendo feito de forma correta, e está muito bom. No entanto esta palavra "(...)" tem sido pronunciada errada. — Disse-me Abraxas. — Não é assim, a pronúncia correta é "(...)". E você também pode me­lhorar aquela etapa, assim e assim.

Às vezes algumas colocações doutrinárias eram balizadas e corrigidas. Ele fazia muita questão de testar o meu entendimento.

— Você entendeu realmente o que tem sido colocado nas últimas reuniões do "Fire's Sons"? Ficou claro o significado de cada coisa?

Parecia também que todo meu círculo de amizades e conhecidos não lhe estavam ocultos. E não apenas isso: assim como o pai zeloso cuida em saber de com quem seus filhos andam, e com quem se relacionam, com Abraxas não era diferente. E lá vinham as muitas orientações:

— Olha, você tem andado muito com fulano. Mas saiba de uma coisa: ele é falso, tem duas caras, não é seu amigo. Deixe de estar perto dele, não é compa­nhia para você.

Minha família também era um quadro aberto para Abraxas; bem como a família de Camila:

— Evite estar muito tempo em sua casa no horário das dezoito horas, durante esta semana.

— ??? — Não entendi mas não perguntei. Eu confiava no que ele me dizia.

— Outro detalhe... quando você estiver com Camila e quiser vir para a reu­nião, ou tiver outras coisas mais importantes para fazer, ou simplesmente estiver a fim de sair, passear, livre, em paz... faça da seguinte forma: coloque a mão sobre a cabeça dela e diga calmamente que ela está cansada e que precisa descansar um pouco. — Ele tocou a mão em mim e acrescentou: — E ela vai mesmo ficar muito cansada e dormirá profundamente.

Logo que pude, experimentei. Realmente as desculpas fajutas estavam fi­cando meio esgotadas. E aquilo foi muito fácil! Funcionava de forma tão absur­damente rápida que eu mesmo ficava cada vez mais fascinado. Aquele Poder estava mexendo de fato comigo. Era muito fácil....muito fácil.

Em contrapartida, algumas vezes era eu quem levava para Abraxas os deta­lhes que me incomodavam. Era bem melhor quando eu podia falar diretamente com ele porque no nível de Magia meio "crú" em que me encontrava não dava para me virar sozinho. Eu não sabia como realizar Feitiços específicos para cada coisa. Precisava de ajuda, e queria aprender.

Então todas as minhas dúvidas e questionamentos, tudo que eu precisava levava ao conhecimento de Abraxas.

— Falando em Camila, sabe que eu não agüento mais a avó dela me falando sempre a mesma coisa? "Você leu a Bíblia?" — Arremedei. — E me pegando para contar histórias e mais um monte de abobrinhas! Ela me incomoda, me enche a sapituca!

— Não se preocupe — Respondeu ele com voz firme, categoricamente. — A partir de hoje você não vai mais ouvir isso.

E toda vez que eu chegava na casa de Camila, dona Olívia sentia um sono profundo e ia dormir. Estava sempre muito bem disposta até eu chegar; a partir daí dava muito sono e ela mal conseguia manter seus olhos abertos. E só desper­tava quando eu já tinha ido embora.

Ela se queixava que nem me via mais e acreditava estar fazendo um "pape­lão" comigo, indo sempre dormir quando eu chegava. Que ótimo papelão!!!

E ficava assim. Na Irmandade nunca ninguém se incomodou com o fato de eu conviver com a família de Camila. O assunto só vinha à baila quando eu tinha alguma reclamação específica. Aliás, reclamações não faltavam quando se trata­va da Kelly! Eu a detestava.

Este é o melhor dia para atacá-la. — E Abraxas sinalizava o dia do mês e o horário. — Faça como digo e você verá o que ocorre!

E ele mesmo me ensinava o Feitiço. Normalmente era preciso conseguir algum material que pertencesse a ela. Minha patente de Aprendiz ainda estava presa a essas limitações. Isto é, ainda estava inserida nos moldes dos pequenos Feitiços. Ainda precisava de objetos descartáveis. Como os bonequinhos vodu. Mas haveria tempo em que não mais seria necessário sinalizar com isso.

Então eu conseguia um pouco de cabelo ou algum objeto íntimo da Kelly. Pensava lá com meus botões:

"Vou arriscar e levar hoje. Se eles me chamarem após a Celebração, entrego direto na mão dele."

E batata! Era chamado.

Não me passava pela cabeça que Abraxas tinha muito, muito mais Poder. Mas ele agia de acordo com meu patamar hierárquico. Não além. A plenitude do Poder dele viria na mesma medida do meu crescimento.

Sem que eu dissesse nada, Abraxas me esperava com um ar zombeteiro nos olhos e um sorriso sarcástico:

— Pode dar o que você trouxe para mim.

— Com isto aqui você pode... pode causar um pouco de estrago? Ele meneava a cabeça:

— É claro! Mas a morte seria um prêmio para alguém como ela. Alguém morto não pode sofrer tanto! Viva é melhor, pelo menos você poderá contemplar sua dor, seu sofrimento lento...! Por isso eu a quero viva! Ela merece sofrer pois tem magoado o filho do Fogo. Vai sentir o calor do Inferno. Ela vai sofrer.

Pegava o material. Fazia gestos e pronunciava encantamentos. E depois ria. Ria tão compulsivamente que eu tinha vontade de rir junto.

— Aguarde. Aguarde que o que você vai ver vai deixá-lo muito contente. — Dizia com ar de regozijo antecipado.

Dias depois: Kelly era despedida, batia o carro bem no dia em que seu seguro acabava de vencer, era assaltada na rua, ficava muito doente, caíam seus cabelos, apareciam manchas que coçavam muito em sua pele e os médicos não tinham êxito no tratamento. Era só gasto e mais gasto de dinheiro com remédios caros. Uma sucessão de males assolavam a sua vida.

Na semana seguinte, a primeira pergunta de Abraxas:

— Quer que continue?... Ou já chega?

Por vezes eu acabava amolecendo, ficava com pena por causa de tanto mas­sacre. Já tinha sido advertido quando a estes "sentimentos primitivos" mas mes­mo assim respondia:

— Está bom. Pode parar.

Mas aí era ele que não queria saber! Olhava meio esquisito para mim e dizia:

— Vou torturá-la só por mais uma semana.

E não havia argumentação que o demovesse. Eu assistia com meus próprios olhos o desespero da Kelly.

Embora Thalya fosse minha alma-gêmea e eu estivesse "compromissado" com Camila, Abraxas, sempre reiterava:

— Você pode ter a mulher que desejar, sabia? Se você vir alguma a quem queira, basta pedir. Quer aprender a maneira certa de pedir?

Eu não tinha lá intenção daquilo, mas me dispus a aprender a sinalização específica: não queria desapontá-lo. Aquilo era um presente!

Muitos Feitiços específicos eu aprendi assim, diretamente com Abraxas, na medida em que ele me considerava apto para adquirir e lidar com aqueles ensinamentos.

Certas ocasiões eram diferentes. Eu chegava bem — pelo menos assim eu pensava — mas ele colocava a mão sobre meu coração, ou sobre minha cabeça, e o rosto assumia uma expressão como se estivesse sentindo algo:

— Ia entrar uma infecção em seu corpo, você ia ficar doente. — Sorria e falava com brandura. — Mas, tudo bem! Eu já tirei a enfermidade de você...

Eu devolvia o sorriso aliviado, meu rosto demonstrando meu quase... amor por ele! Eles não tinham o Poder de retirar males que não tivessem sido causados por eles mesmos. Será que algum Bruxo estaria me fazendo algum mal?! Mas o fato é que eu nunca tinha tido sequer gripe desde que entrara para a Irmandade.

Outras vezes, tão logo eu chegava, ou antes de ir-me, ele me tocava e fazia sinais na minha testa. Ou me ungia com ungüento para lacrar os meus Portais. A intenção era sempre de proteção. Eu aceitava aquilo com submissão e me poupa­va de perguntas. Confiava nele.

— Estou protegendo essa sua área. Ela está vulnerável.

Todos os meus problemas pessoais eu levava para Abraxas. Tudo o que eu não podia falar em casa ou com meus amigos, tudo de tudo: o relacionamento com Camila, as dificuldades profissionais, minhas dúvidas doutrinárias, meus sentimentos, o Kung Fu. Não que Marlon não fosse amigo o suficiente! Muito pelo contrário, ele era o amigo mais fiel que eu já tivera, mais disposto e presente que meu próprio pai. Apenas era diferente. Marlon era um amigo... Abraxas era outro amigo, porém muito mais sábio. E eu dispunha de ambos.

Uma vez Abraxas deu-me uma corrente. Nem sei de onde saiu aquilo, o Sacerdote estava com suas mãos vazias quando cheguei. Mas de repente ela sim­plesmente estava lá. Era linda, de ouro, grossa e trabalhada. Trazia pendurada uma delicada medalhinha de ouro com uma inscrição.

— Usa isso por algum tempo, para te dar livramento e proteção.

Eu não perguntei mas imaginei que novamente alguém talvez estivesse com inveja de mim, fazendo algo para me prejudicar. A luta seria espiritual, entre Abraxas e o demônio desafiante, mas eu estaria protegido, eu o sabia. Aquilo serviria como uma espécie de escudo.

Outra vez deu-me um pequeno maço de uma erva toda amassadinha, parecia palha.

— Feche um pouco os seus olhos. — Dissera ele.

Senti então um cheiro diferente e, ao abrir os olhos, ele segurava o macinho próximo ao meu nariz.

— Isso é para você. Põe embaixo do travesseiro essa noite.

E eu tinha sonhos diferentíssimos. Parecia que voava e estava num mundo todo diferente, as coisas com formas surrealistas, estranhas. Mas era muito bonito... lindo!

Mas a verdade era que todos os presentes que ele me dava tinham um fim muito específico e limitado, porque sempre desapareciam depois. No começo me assustei porque não sabia que seria assim. Foi justamente com a corrente. E eu pensei que a houvesse perdido!

Tinha passado quinze dias com ela e não a tirava do pescoço para nada. Como um talismã. Mas certa manhã acordei e reparei que estava sem ela.

— Nossa, será que eu deixei cair em algum lugar? Olhei, olhei e nada!

No final da semana fui chamado para ficar além do término da Cerimônia. Tinha até medo de ir.

— Ai, ai, ai... que que eu vou dizer?

Cheguei todo cabisbaixo, esquivo. Era sempre ele quem começava a falar. Com voz branda perscrutou meu rosto inclinado.

— A sua corrente sumiu, não é? Ergui o olhar procurando explicar:

— Mas eu não tirei pra nada, Abraxas!

— Eu sei. — Redargüiu Abraxas. — Mas ela deveria ser usada somente durante um período, e ele já acabou. Não precisa ficar preocupado com isso, filho!

Respirei aliviado. Era assim com todos os presentes. Apareciam do nada nas mãos do Sacerdote, e sumiam do nada também.

Outras ocasiões eu recebia dinheiro. Dinheiro mesmo, dinheiro vivo.

— Isto aqui, filho, é para você satisfazer uma parte dos desejos do seu cora­ção. Sabe aquilo que você está querendo? Aquele passeio? Pode fazer.

Era sempre uma soma considerável. Eu gastava sem dó, também para não desagradá-lo. Se o dinheiro era para ir de táxi até Aldeia da Serra e jantar em um luxuoso restaurante, ou passear de helicóptero sobre São Paulo, ou comprar aquele cobiçado terno de corte fino italiano, ou viajar com Camila... não importava! Se o dinheiro era dado para aquele fim, eu assim o usava. Era o máximo! Meu pai realmente me queria feliz.

Havia momentos descontraídos também. Certa ocasião eu perguntei, meio na brincadeira:

— Bom, você está dizendo tanta coisa hoje... quer dizer, então, que Deus não tem chance mesmo?!?

A resposta veio recheada de termos de baixo-calão. E rimos muito! E ele sempre tocava os meus olhos. Às vezes com sangue, às vezes com saliva. Sempre.

— Teus olhos vão emanar Poder. — Dizia. — Quando você olhar para alguém estarei vendo esta pessoa através de seus olhos. E quando você odiar esta pessoa... este ódio vai estar no nosso coração também. E se você desejar a morte, o nosso Poder irá se manifestar. E haverá morte. Um gesto de sua mão...e nós vamos atendê-lo. Prepare-se. Este tempo vai chegar!

Com relação à Igreja dava dicas também. Muito raramente eu era obrigado a ir.

— Você não deve entrar lá dentro com raiva. Entre calmamente. Faça o que eles fizerem, é meramente um teatro, uma interpretação, mas tem que convencer. A maioria dos que estão dentro das Igrejas nem sabe o que está fazendo! Eles seguem "comandos". Então, se levantarem a mão, você também levanta; se abai­xarem, faça o mesmo. Se sentarem, você senta, se levantarem você levanta; é simples, é só não destoar. Tenha a mesma "aparência" deles. No futuro você estará entre eles sem jamais ser notado. Irá até impressioná-los com sua "unção". Falará em "línguas", dirá "profecias", operará "milagres"de cura! Nós te capaci­taremos.

Em outras ocasiões ainda discutíamos a própria Bíblia. Eu questionava um pouco.

— Bem, mas e este negócio aí de... Jesus? — Pronunciei rapidamente o Nome pois todos evitávamos até o referir-se a Ele, tal o ódio que nos causava. Olhei de esguelha, com o rosto meio abaixado, procurando sondar se havia alguma reação negativa da parte dele. — Que Poder tem este homem??

Não houve reação negativa. Ele apenas riu grosseiramente agitando o corpo do Sacerdote e esgarçando ainda mais o seu rosto.

— Ah!! Este é mais um dos enganos de Deus! Ele tem se equivocado durante toda a História, mudando a direção de seus planos, de idéia, de conduta! Lucifér é o verdadeiro caminho. O próprio Jesus infringiu as leis que Ele mesmo colo­cou. Não poderia ser nada digno de nota.

Passou a discorrer, convenceu-me com argumentos que me pareceram muito fortes. Jesus não honrou seu pai, nem sua mãe, era um rebelde perante o sistema de sua época. Portanto tinha seus pecados também. E, se tinha, nada poderia fazer pelo homem.

Eu ainda nutria uma idéia estereotipada, resquício de filmes de TV, talvez:

— Mas vocês podem mesmo entrar em qualquer lugar? — Eu queria dizer outra coisa. — Qualquer Igreja?

Ele ria:

— É claro! O mundo é nosso! Não existem fronteiras.

Eu ficava muito contente em ouvir aquilo. "Faço parte de um time de vence­dores!".

— Deus faz com que o homem experimente o medo. O próprio Jesus sentiu pavor! — E riu novamente. — Pois sabia o que teria que enfrentar... e ainda tem idiotas que ousam nos desafiar como se fossem super-homens. Lucifér não quer que seus filhos sintam medo. — Olhou-me tão profundamente que quase abaixei os olhos. — Seu pai quer que você sinta paz, que esteja bem. Ele quer o melhor! Ameaça, dor e sofrimento são para os outros... não para você!

 

Depois destas longas conversas eu nunca comentava nada com Marlon pois esta era a orientação que as Entidades davam. Tanto Abraxas como os outros que eventualmente canalizavam para falar comigo. Mas Marlon também nunca per­guntava nada. Somente Thalya foi a grande curiosa, cheia de querer saber o que eu tinha conversado durante tanto tempo. Questionou após as primeiras vezes, mas depois deixou de insistir. Nas vezes em que ela era chamada eu também não ficava sabendo o que ocorrera.

De início Thalya quase não escondia uma pontinha de frustração devido a eu ser tratado claramente de maneira diferente. Mas Rúbia conversou com ela, explicando-lhe, creio eu, que certos fatos têm uma razão de ser. E isto criou nela um certo conformismo.

Quanto a mim, estava embevecido e fascinado demais para gastar tempo com questionamentos.

Só viria a saber mais tarde — bem mais tarde — o por quê daquela aparente "predileção".

 

Eu já vinha experimentando um pouco do que era poder contar com eles. Com a Irmandade e com os Guias. Thalya também teve sua oportunidade bem cedo e viu na prática que não estava sozinha para resolver os seus problemas.

Ela tinha um relacionamento extremamente truncado com o pai. Encontrava muito pouco com ele por causa do seu trabalho como prefeito em outra cidade. Mesmo assim este não era o problema maior. A família era muito desestruturada e ele nem a considerava como filha. Devia ser verdade. A mãe dela não era confiável, dava até em cima de mim quando nos cruzávamos. Os dois eram sepa­rados, e Thalya e a irmã eram diferentes em todos os sentidos.

Às vezes Thalya vinha chateada com as mudanças muito bruscas do pai. Ele era totalmente "de lua", às vezes dava o carro, às vezes tirava, às vezes dava dinheiro, às vezes nada. E ela compartilhava com o Conselho quando questiona­da a respeito. Foi sugerido que se fizesse um encantamento para que os proble­mas de relacionamento acabassem. Thalya confiou plenamente.

Como não era interesse dela que o pai morresse, os Feitiços tinham por objetivo apenas moldá-lo mais facilmente. Os objetos utilizados para isso foram enviados em forma de presentes. Um perfume, algo para comer, coisas desse tipo.

Realmente funcionou. E o pai de Thalya virou uma verdadeira seda com ela. Mas depois parece que a coisa mudou um pouco de rumo. O interesse do pai foi tanto que virou perversão. E ele passou a insinuar-se para ela querendo-a mais como mulher do que como filha. Aquilo criou em Thalya um ódio tão grande, e uma repulsa tão intensa, que consentiu em mudar o rumo dos encantamentos. E foi plantada uma semente de destruição propriamente dita.

Logo ele perdeu o cargo político que exercia e isso deu seqüência a uma sucessão de perdas de dinheiro e patrimônio. Até que ele não tinha praticamente quase mais nada. E então ficou doente, com tuberculose bastante grave, e foi internado em uma clínica distante. Fora de São Paulo. Ficou completamente afas­tado dela.

O dinheiro não faltava, pelo contrário. Passou a vir bem mais fácil. O pai tinha um fundo de pensão que ia para a mãe, e esta generosamente começou a repassá-lo para Thalya. De forma que a situação financeira dela melhorou muito. Todo o dinheiro que o pai antes recusava agora ela fazia bom uso. Bem como dos carros dele. Thalya ficou com um Santana e um Escort para usar de mão beijada.

 

A Irmandade era também muito bem guardada. Nenhum que não fosse dos nossos poderia entrar lá. Havia uma senha secreta que era característica de cada tipo de reunião.

Porém, às vezes as Entidades permitiam que um ou outro tolo adentrasse o Átrio Ritual. Acho que para divertir-se um pouco.

Certa ocasião fiquei muito impressionado com o que ocorreu.

Antes de iniciar a Celebração, cumprimentávamos-nos alegres à medida que íamos entrando. Naquele dia estranhei que todos respondiam ao cumprimento afavelmente erguendo a mão num gesto curioso, que eu não conhecia. Ninguém falava nada e eu não resisti:

— Ué? Que que deu no povo hoje? Tá todo mundo fazendo um gesto diferen­te!

— É um sinal. — Respondeu Marlon. — Quer dizer mais ou menos "Cuidado com o que você fala, porque tem gente estranha aqui entre nós". Tem uma pessoa que não é bem vinda em nosso meio.

Eu arregalei os olhos, embasbacado. Onde estaria, no meio de cinco mil pessoas?! Pelo visto os cinco "Profetas" já tinham sido comunicados pelos de­mônios.

— Sério?!!! — Senti um gelo na espinha e tive até medo de fazer a outra pergunta.

Thalya se adiantou na minha frente. Falou muito calma e com uma secura na voz que me impressionou.

— Bom... ele entrou! Mas não vai sair, não é?

— É claro que não! — Respondeu Marlon com uma risada. Mas eu estava meio inquieto:

— E o que a gente faz?!

— Não precisa fazer nada. — Respondeu Marlon novamente. — Deixa que ele faça sua matéria.

— Matéria?!!

— É um repórter. Descobriu alguma coisa e veio aqui com intenção de fazer um furo de reportagem.

Me calei. Só que acho que eu estava dando a maior bandeira, virando o pescoço que nem uma coruja a toda hora para ver se descobria onde ele estava. Não conseguia me concentrar em nada. Até que Zórdico, observando-me, apro­ximou-se de mim:

— A pessoa que você está procurando está ali. Aquele idiota de óculos. — Disse-me ele. E a seguir acrescentou em tom firme: — Não assuste nosso hóspe­de.

Era uma advertência. Procurei ser mais discreto.

Então eu o vi, num cantinho, todo estereotipado, o coitado! Todo de preto, com jaqueta de couro e gel no cabelo, a "pochette" cuidadosamente enfiada de­baixo do braço.

— A câmera está lá dentro. — Explicou Zórdico. — Ele está filmando através de um pequeno orifício feito no couro.

Tratado bem, e com naturalidade, ele até conversava com algumas pessoas. Era um rapaz jovem. Mas ninguém ia vestido todo de preto daquele jeito ridícu­lo, todos iam com roupas normais. Afinal, todo mundo usa roupa normal.

Os mantos foram entregues lá dentro e trocamos de roupa. O jovem repórter fez o mesmo, porém sua bolsinha permaneceu com ele. Quanta bandeira!

E então o Ritual começou a transcorrer normalmente. Entoamos as canções iniciais, o Átrio já estava esfumaçado pela queima dos incensos e das tochas acesas. Mas não cantamos muito naquele momento. A Bíblia Negra foi aberta e um trecho do livro de Leviathan foi lido pelo Sumo Sacerdote:

— "Poder à força, morte aos fracos..."

Akilai fixou a multidão com olhar profundo, visivelmente já canalizado. Caminhou, desceu do altar, entrou pelo meio da multidão que lhe dava passagem formando um corredor. Sua voz era potente e ecoava pelo salão como se ele falasse com o auxílio de amplificadores. Suas cordas vocais estavam super-potencializadas pelo poder do Principado que o canalizava. Na verdade, semi-canalizava. Um Principado não pode entrar completamente em um ser humano, pois o mataria.

— Desafiar os poderes das Trevas é subestimar a força de Lucifér. Quem entra na escuridão sem conhecer seus caminhos, encontrará o Inferno. A casa de nosso pai tem muitas moradas. Moradas para os filhos do Fogo... e moradas para os loucos. Esta noite... peço sua alma... o preço de sua ousadia será pago com sangue...

Parou bem na frente do repórter, olhando-o fixamente. Dava para sentir uma atmosfera de ódio no lugar. O grupo afastou-se formando um círculo à volta dos dois.

— Seu sangue... — Akilai tomou-o pelo pescoço com violência, e o ergueu do solo. — É nosso!

Só tinha visto cenas assim em filmes, erguer alguém do solo daquele jeito exigiria muita força. Porém o Sumo Sacerdote não parecia estar fazendo qual­quer esforço para mantê-lo no ar. E num gesto frio, calculado, rápido... partiu o pescoço daquele jovem. O som do osso partindo ecoou secamente. A turba en­trou em júbilo, seu corpo foi simplesmente incinerado e nada foi aproveitado. Leviathan não quis aquele sangue, bastava sua morte e seu espírito aprisionado no Inferno dos órfãos.

 

Nossos dias na Canion Tower estavam contados. Tudo começou com a história do laxante.

Havia uma garota, a Luciene, tão sem desconfiômetro! Sempre que passava próximo à minha mesa ou à de Thalya comia tudo o que havia por ali, sem a menor cerimônia, até a última migalha.

Era uma verdadeira draga, um aspirador de comida!

Então um belo dia eu pensei:

— Taí! Vou armar uma para ela.

Havia também mais uns dois Técnicos no departamento tremendamente implicados com Luciene. Após mancomunarmos um pouco em conjunto decidi­mos a vingança: um saboroso suco de abacate com um frasco inteirinho de um laxante incolor e insípido dentro. A bula advertia que para os casos mais graves deviam ser consumidas apenas quinze gotinhas. O frasco tinha 30ml...e não deu outra. Foi tudo!

A suculenta "isca" ficou sobre a mesa de Thalya.

— Oba! — Luciene, com seus olhos treinados para rastrear comida à distância, logo veio que nem uma águia pronta a dar o bote sobre uma lebre. — Tá bonito este suco! Dá um pouco?!

Thalya se fazia de muito ocupada e nós também. Então ela passou a mão no copo sem esperar resposta. Mas aí o azar: de repente chegou o Geraldo, um outro amigo que trabalhava no setor ao lado.

— Peraí, peraí, peraí! — Gritou ele para a Luciene. — Me dá um gole antes!

E já foi arrancando o suco das mãos dela. Eu me adiantei procurando evitar que ele caísse na ratoeira.

— Geraldo, não bebe isso aí, não! Larga de ser mal-educado, a Luciene já ia beber e você tira da mão dela?

Tratamos sutilmente de demovê-lo mas, de pura birra, Geraldo tomou tudo em um só gole!

— Geraldo, deixa para mim! — Gritou em vão a Luciene. Todos nós ficamos olhando para ele com piedade. Chiii! Avisamos depois, numa boa:

— ...e é melhor você ir para sua casará! Tinha uma dose cavalar de laxante no suco, dá para secar um mamute. Você não percebeu nada na textura, no gosto...?

— E, tava meio esquisitinho, mas achei que era falta de açúcar. Só que como eu não queria deixar nada para aquela predadora de bolachas.... bebi assim mes­mo!

— Melhor você comer uns quatro pacotes de bolacha de maisena. — Thalya ria.

Ele não acreditou em nós e não tomou nenhuma providência.

— Vocês estão é de onda com a minha cara!

E permaneceu até o final do expediente. No dia seguinte ficamos sabendo de tudo: o efeito começou, infelizmente, no trajeto para casa. Mais exatamente den­tro do trem aonde estudantes alegres jogavam truco. Um grito mais alto do Ge­raldo e...o inevitável! Ele não pôde mais impedir as leis orgânicas de seguirem o seu curso. O vagão dele foi o único a manter todas as janelas abertas apesar do frio terrível.

Geraldo entendeu que foi um "acidente" e nos perdoou. Mas o problema é que nós rimos tanto com aquela história que decidimos causar uma super disenteria coletiva. Eu, Thalya, Geraldo e mais um amigo, o Japa, armamos a bagunça na surdina. O projeto era "vacinar" os galões de água do andar com uma dose gene­rosa de laxante.

Compramos todo o estoque da farmácia.

— Você tem laxante aí?

— Temos. Vai levar um frasco?

— Não. Uma caixa inteira, 50 unidades!

— Nossa!

— É que vamos fazer uma doação para uma creche.

— Ah, que bonzinhos!

No dia seguinte, munidos de seringas, mandamos ver o medicamento nos garrafões de água.

Todos passaram mal!

E depois ficou um clima estranho. O povo se perguntava o que tinha ocorri­do e acabaram colocando a culpa no "goulash" do almoço. As filas eram enor­mes nos banheiros, faltou pouco para distribuírem números e colocarem em or­dem os mais desesperados.

Passados alguns dias, eu mesmo acabei sendo o culpado. Comentando com o Geraldo sobre o incidente e rindo a mais não poder, acho que algumas orelhas escutavam a conversa por trás das divisórias.

O negócio foi parar nos ouvidos de nossa chefe, também vítima da "Opera­ção Diarréia". E fomos todos chamados para "depor". Eu, Thalya, Geraldo e o Japa.

— Quer dizer que vocês foram os responsáveis pelo episódio?!

Ela estava muito brava, literalmente soltando fumaça pelas narinas. Talvez lembrada da noite que passou sentada no vaso sanitário, sem poder dormir...

— Todos ficaram super mal, eu mesma quase perdi minha flora intestinal! Tive que tomar soro no Pronto-Socorro e foi uma coisa horrível! — Ela reclamava sem parar.

Tentamos desconversar mas não houve jeito. E levamos advertência por ato indisciplinar.

Mas eu e Thalya não nos conformamos. Ficamos indignados e, à medida que os dias passavam, nos enchíamos cada vez mais de raiva dela.

— Pois vamos fazer um Feitiço bem bravo! — Bradou Thalya.

— A gente ainda não tem Poder para isso, Thalya! Só se pegarmos um objeto dela e levarmos para o Marlon.

— Pois vamos fazer isso mesmo!

Assim que houve a deixa entramos na sala da chefe e reviramos suas gave­tas. — Olha só!

— Caramba!

Não havia nada de uso pessoal ali. Mas encontramos algo bem melhor, um bloco de formulários de reembolso de despesas. Cada vez que fazíamos horas-extras tínhamos direito a retorno para casa de táxi e janta em qualquer restaurante das imediações. Desde que não ultrapassasse um determinado valor. E esse valor era ressarcido mediante o preenchimento dos formulários e aprovação da nossa chefia.

Mas as cópias que encontramos discriminavam dias em que não fizemos horas-extras, só que ela tinha preenchido em nosso nome e agora receberia o re­embolso!

— Tá ferrada! — Sussurrei. — Nem vai precisar de encantamento! Tá vendo só que bandida? Ela está recebendo grana no nosso lugar!

— Que folgadona!

Pegamos os blocos e fomos direto para a sala da Diretoria. No impulso da emoção juntaram-se a nós mais uns seis ou sete inquisitores que, da mesma for­ma, não iam com a fachada da "amada chefinha". E vieram fazer mais pressão.

Explicamos ao Diretor do que se tratava. Ele deu uma vista de olhos no material e jogou-o sobre a mesa com um comentário seco:

— Vou analisar. No final da tarde ele nos chamou para dar o laudo de sua "análise".

— Vocês estão despedidos. Levantaram uma suspeita que envolve uma Ge­rente com quinze anos de casa. Isto que vocês estão me apresentando é irrelevante.

— Irrelevante? Mas ela roubou!!!

— Só que não vamos levar isto em consideração. Quanto aos senhores, po­dem ir direto para o Departamento Pessoal.

E todos nós, ao todo dez pessoas, saímos em fila indiana para o olho da rua!

Que bela roubada!!! Aí sim nossa ira subiu às alturas. Contatamos Marlon após fazer um levantamento de dados pessoais dela e encomendamos uma vin­gança.

Após uma semana nossa ex-chefe foi demitida por justa causa. Ela e o marido, que trabalhava na Canion também. Nem sei sob qual justificativa. Mas nós estávamos vingados, era o que importava.

Mas, diante disso, agora tanto eu quanto Thalya estávamos desempregados. Thalya não estava mais a fim de trabalhar. O dinheiro do pai era mais do que suficiente. Ela podia, mas eu não. Então tratei de me por em campo para arrumar outro serviço.

 

O caminho à Alta Magia é possível de ser trilhado. Mas é um caminho para o qual são convidados apenas — e tão somente — os filhos de Lucifér. Para estes foi reservado algo mais. E esse algo mais é um novo início. Tudo o que tinha sido feito e ensinado até então era para que pudéssemos enfim dar o grande passo inicial. De encontro aos grandes Ritos, grandes Feitiços e encantamentos. Gran­des possibilidades!

Tinha sido divertido brincar com as Artes Mágicas e com a periferia da Magia, os Feitiços de menor porte. Mas estes já não tinham mais razão de ser em si mesmos. Era necessário ir em direção ao topo, ao cerne, ao âmago. À Alta Ma­gia.

Este novo caminhar estava associado à abertura dos Portais. Uma possibili­dade restrita à Irmandade. E embora eu soubesse ter aberto parcialmente um deles não compreendia ainda a mecânica da coisa.

A abertura dos chakras, mesmo que incompleta, leva à potencialização das capacidades humanas, ao sinergismo com o Cosmos e ao desenvolvimento de Poderes especiais. Isso é o que pregam as várias doutrinas por aí, mas não é assim. Segundo elas, o objetivo da abertura dos chakras é facilitar o fluxo de energias. Há várias maneiras de fazê-lo. Através de técnicas de Meditação e Con­centração, através de dietas alimentares, com o próprio Chikow dentro das Artes Marciais, e assim por diante.

Para a maioria leiga os Poderes sobrenaturais são decorrentes de um estado avançado de mente ou, no máximo, uma simbiose com forças "cósmicas", e só. Mas nós sabíamos que os Portais são, na realidade, facilitadores da ação das Entidades Superiores. Ou demônios.

Os Portais abertos implicam numa comunicação permanente entre o indiví­duo e a Entidade. Não é mais uma comunicação temporária e informal como quando se tratava das Artes Mágicas. Mas um acesso livre, pleno e cada vez mais cheio de mútuo compromisso.

A abertura de um Portal implica em entrar em Aliança com uma Entidade; implica em comunhão íntima com ela, em troca de favores. O Portal aberto se traduz sempre em duas grandes possibilidades.

Primeiro, acesso livre à uma Entidade específica. Não se trata mais do con­tato com um demônio qualquer, mas o Guia com o qual entramos em aliança. Assim como podemos acessá-lo, ele também pode nos acessar sempre que queira. Esta comunicação tem por objetivo a troca de informações e favores.

Em segundo lugar, o Portal aberto trás a possibilidade de realizar Feitiços cada vez maiores. A patente dos demônios é cada vez mais alta quanto mais elevado for o Portal aberto.

Na Escola Preparatória tínhamos visto que eram sete. Mas na verdade são nove os principais. A base da nuca; o ponto central no alto do crânio; entre as sobrancelhas (o terceiro olho); a região da fúrcula; o coração; a região do estô­mago; quatro dedos abaixo do umbigo; posterior ao saco escrotal; o cóccix.

Os Portais são nove porque nove também são as dimensões espirituais que podemos acessar em vida. O acesso à décima - segunda dimensão, região de do­mínio do próprio Lucifér, só se conhece após a morte.

Não existe necessariamente uma ordem seqüencial para a abertura dos Por­tais, ainda que a abertura de alguns traga mais Poder do que outros. Há Ritos específicos para a abertura de cada um deles. O primeiro pode — e deve — ser feito por substituição. Isto é, o Guia escolhe o Portal mas o Sumo Sacerdote consuma o ato Ritual no lugar da pessoa que está se submetendo à abertura do primeiro Portal.

Foi o que aconteceu comigo e com Thalya no Rito de Iniciação.

Cada Portal está associado a um determinado "tipo" de Poder e a um tipo específico de hierarquia demoníaca. Entende-se claramente, então, que em últi­ma análise a abertura dos Portais visa a conquista de Poder por meio de alianças com os demônios. O Poder pleno vem progressivamente à medida que os Portais vão sendo abertos e novas alianças são feitas. Cada hierarquia tem um Poder maior ou menor nesta ou naquela área. A abertura do Portal trás não só proteção específica naquela área, como concede Poder de utilizar a força demoníaca neste mesmo sentido através de encantamento.

Esses encantamentos produzidos são praticamente infindáveis e abrangem todas as áreas.

A capacidade de causar doenças leves ou graves, infecções importantes, al­terações do sistema imune, dores, desconfortos, lesões de todo tipo, muitas for­mas de cânceres, desbalanços endócrino-metabólicos são conseguidos pela aber­tura dos Portais da base da nuca, do plexo solar, do centro da cabeça e do estôma­go, por exemplo.

Lesões específicas e males em coluna lombar, dorsal e cervical são muito fáceis de serem causadas depois da abertura do Portal do cóccix. Alguém com dor freqüente dorme mal, fica mais tenso e mais propenso a outros tipos de ata­ques. A longo prazo uma postura arqueada influencia até a nível psíquico, altera a auto-estima, impede a prática de atividades físicas e sexuais com plenitude. A irritação crônica leva o indivíduo à prostração, fadiga e depressão.

O Portal do centro da cabeça está também ligado à mente. É o Portal mais poderoso e dá acesso à nona dimensão. É o único que requer três Ritos para ser aberto completamente. Dá Poder de lançar encantamentos a grandes distâncias, até sobre quem está do outro lado do mundo. O Poder de causar profundos dis­túrbios mentais também está relacionado à abertura deste Portal. O coração tem bastante relação com o simbolismo das emoções. Junto com o Portal do centro da cabeça este está ligado a todo tipo de alteração nessa área, inclusive franca loucura. O Portal do coração e da fúrcula estão ligados também a um Poder de morte. Através de aliança com espíritos de morte e demônios ceifadores há possibilidade de realizar esses Feitiços. Mas não a morte lenta que se causa por meio de doenças. Esses demônios são aqueles capazes de tomar a vida subitamente, arrancar a alma.

O Portal do saco escrotal faz com que se adquira uma capacidade sexual totalmente sobre-humana em todos os sentidos. Dá também o Poder de atacar nesta área. Casamentos, em especial, tornam-se muito abalados em face das disfunções e da apatia sexual. Além do que o Feitiço pode abrir acesso para demônios de sensualidade e prostituição que levam o indivíduo ao "pecado".

O Portal da Terceira Visão, aquele entre os olhos, está ligado a Poderes de premonição, revelação e clarividência.

Outra peculiaridade no uso dos Portais pela Irmandade é que, diferentemen­te das outras doutrinas que esbarram no conceito dos chakras, o Portal do estô­mago e o do saco escrotal não são compreendidos. Por exemplo, na Yoga, Tantra-Yoga e nas artes milenares orientais, principalmente, o conceito dos chakras é conhecido e usado, mas parcialmente. Para eles são apenas sete os principais, e não nove.

A abertura dos Portais — como eu já aprendera teoricamente e já havia vivenciado uma vez na prática — tinha o seu preço. E o preço era de sangue. Através de sacrifício.

"Por que sacrifícios humanos!!?"

O questionamento tinha razão de ser, afinal não era a prática mais corriquei­ra do mundo. Ia levar um tempo para que eu conseguisse digerir aquilo. Brigar na rua, arrebentar com alguém... era uma coisa. O sacrifício era algo muito diferente. Passei muito tempo sem querer pensar a respeito.

Durante a Escola tínhamos ouvido falar um pouco sobre isso. Mas pouco. Só que agora nada mais seria como antes. E eu precisava ser convencido da necessidade de atos como aquele. Explicações superficiais não iriam me conven­cer!

Quando os conceitos sobre os Portais começaram a ser muito enfatizados no Grupo de estudo dos "Fire's sons" questionei Marlon de leve. Sondando as suas reações e procurando fazê-lo compreender as minhas dúvidas.

Ele era sempre perspicaz. E paciente. Não precisei questionar muito. E Marlon Principiou indo tão direto ao assunto que estremeci.

— Não fomos nós que inventamos os Ritos Sacrifício, sabe? São muito antigos, e vieram espelhados em coisas lá do "outro lado". Após a queda do homem, para que novamente houvesse comunhão entre o homem e Deus foi instituído um sistema de sacrifícios dentro do Povo de Israel, a nação escolhida para receber revelação do Criador. Está tudo lá no livro de Levítico, tudo a respeito dos sacri­fícios.

Eu não sabia nada sobre o livro de Levítico, mas fui escutando. Marlon conhecia muito bem a Bíblia.

— Os sacrifícios de animais tinham por objetivo fazer com que o homem voltasse a ser "aceito" por Deus, ou seja, para que a comunhão de ambos voltas­se a se restabelecer. Em outras palavras, era necessário que novamente existisse um elo entre estas duas dimensões, a Divina e a humana, separadas por causa do pecado. O pecado rompeu a comunicação que existia no Éden. Como você já sabe, é óbvio que Deus não habita a mesma dimensão do homem, mas muitas dimensões acima. E a maneira de abrir — ou melhor, reabrir — esta porta fechada... é através da morte sacrificial. — Marlon encarou-me após a conclusão. — Concor­da comigo?

— OK. Mas de animais, pelo que compreendi até agora. E então?

— Sim, escute. Por causa do pecado Deus dispõe dos animais para que estes morram em lugar do homem. E diga-se de passagem que foi Ele em pessoa que mandou matar os animais, a Criação que Ele mesmo fez e disse que "Era bom", está lembrado? Interessante isso, não? Os animais são inocentes, desprovidos de inteligência, incapazes de se defenderem. Não foram eles que pecaram, mas ago­ra têm que morrer de uma forma dolorosa e cruel. E não eram um ou dois ani­mais, mas muitos e muitos. Centenas. Milhares. O que Deus mandou fazer com os animais denota parte da sua natureza cruel, mas isso não é novidade de qual­quer forma. — Marlon tinha a voz pesada ao falar das doutrinas bíblicas, o rosto levemente irado. — Mas vamos tentar compreender a lógica de Deus. Vamos es­quecer um pouco dos animais e raciocinar. Você compreende que a abertura entre estas dimensões acontecia através da morte... da dor... do sangue? Porque não dá para dizer que aquele tipo de morte não envolvia dor!! Mas, na realidade, o que Deus pediu tinha a sua razão de ser porque o sacrifício é necessário! Somente através dele há como haver reabertura do elo dimensional.

Eu desconhecia a Bíblia, de forma que fiz a pergunta óbvia:

— Mas por que houve o desligamento das dimensões? E porque o sacrifício...

— Calma! Eu já te disse sobre o desligamento, aconteceu por causa do peca­do! Agora imagine comigo se existia alguma possibilidade disso não acontecer! Deus deu ao homem uma série de capacidades, sentidos, raciocínio, vontade pró­pria. Mas colocou também uma série de limitações. Você tem mãos, mas nem tudo você pode pegar. Nem tudo você pode olhar, apesar de que te foram dados os olhos. Você tem paladar, e desejos, mas nem tudo o que existe nesse jardim você pode comer! Caso fosse desobedecida alguma dessas regras de sobrevivência a comunhão entre o homem e Deus estaria desfeita permanentemente! Deus sempre coloca uma regra, sempre! Ele nunca dará liberdade absoluta ao homem. Ele o criou, mas nunca dirá: "Você é livre. Seja feliz!". A liberdade de Deus é sempre cheia de condições. "Você é livre, filho, mas... aquilo não pode!". Se Deus colocou a tentação ao alcance do homem, sabendo que ele ia cair... então ele fez de propósito, e se fez de propósito é porque é sádico! — Marlon lançava faíscas pelos olhos. — E é assim porque Deus quis assim. E o elo entre as dimensões de fato ficou rompido. E uma vez fechada a porta Deus passa então a apontar o caminho para que acontecesse a reabertura: a matança dos animais, o justo entre­gue pelo injusto. Muito justo, não acha?!? — E ele riu.

Eu sentia aquela ira crescendo também dentro de mim. E uma revolta insana diante daquela argumentação. Mas aí Marlon voltou a falar do sacrifício Ritual satânico, e me acalmei.

— Da mesma forma que Deus, os demônios também podem abrir as portas que separam a nossa dimensão e a deles. Para isso faz-se necessário o sacrifício. Mas como você já sabe, não de animais. Por quê? É simples quando bem com­preendido e já está na hora desta dúvida deixar o seu coração. — Ele me olhou com brandura então, e passou a falar com mais calma. — Todo ser vivo possui uma energia vital. Você sabe disso. Encontramos diversos nomes para ela se per­corrermos as diversas culturas. Mas vamos chamá-la simplesmente de energia vital. O que é isto exatamente? É tão intuitivo que fica difícil conceituar. Vamos exemplificar, é o melhor caminho. Imagine um robô de brinquedo. Se você privá-lo da energia elétrica gerada pelas pilhas ele pára de funcionar muito embora todo o seu sistema mecânico esteja intacto. Sem a energia das pilhas, sem que haja corrente elétrica circulando, o robô não anda. Assim é a energia vital. Nós não a vemos, mas ela está lá. Sem ela não passamos de pura matéria inanimada, morta.

— Eu sei! — Interrompi. — Os chineses chamam essa energia vital de "chi"! O "chi" eu conheço!

— Isso mesmo! Compreendeu o princípio?

— Sim. Mas o que a energia vital tem a ver com os sacrifícios?

— No contexto das outras dimensões existem forças diferentes e que nós, que estamos aqui neste mundinho, não conhecemos. Ou, se conhecemos, não sabemos explicar como elas agem. Mas o fato é que as dimensões paralelas exis­tem, você aprendeu isso, e todas elas estão no mesmo lugar no espaço. Há, por­tanto, "forças" que determinam aonde começa uma e termina a outra.

— Chi, calma aí, Marlon! — Torci o nariz. — Como é o barato aí?

— Tudo é questão de física e química, Eduardo! Não é nada muito sobrenatu­ral. Porque a pedra atirada para o alto retorna? Por causa da força da gravidade. Por que é que um carro consegue fazer uma trajetória circular? Por causa do Produto de duas forças que se complementam, a centrípeta e a centrífuga. Se visualizarmos um objeto no fundo da água ele parecerá estar numa posição dife­rente da real. Por quê? Por causa da refração que a luz sofre ao entrar num meio mais denso que o ar. Por que um balão cheio de gás sobe?... Poderíamos ficar falando até amanhã. Sabemos que o nosso mundo é regido por uma infinidade de leis, de "forças" que determinam que ele seja assim, do jeito que nós o conhece­mos. No caso das dimensões dos seres espirituais não seria diferente, concorda? Quero que você entenda que as leis de lá não são as daqui, e vice-versa, e do mesmo modo como água e óleo não se misturam, mesmo quando colocados em contato, as dimensões paralelas também não! Elas estão sob a ação de forças invisíveis que delimitam o lugar de cada uma delas no espaço. A grosso modo, como eu já disse, todas as dimensões coexistem no mesmo lugar no espaço mas não se interpenetram.

— Mas havia uma ligação antes, como você mesmo disse. — As idéias apre­sentadas por Marlon começavam a fazer sentido. — Se havia uma ligação entre a dimensão de Deus e a do homem...

Marlon calmamente recusou-se a prosseguir:

— Pois conclua você mesmo!

— Bom... a reabertura teria alguma coisa a ver com essas "forças", quero dizer... com energia, talvez??? Mas o que o sacrifício...? — Fiquei quieto, pensando.

— A questão é óbvia. Por que a morte teria o poder de abrir um elo entre as dimensões? Você pensou bem! Tem a ver com energia, claro, tudo funciona por meio dela. Se pudermos liberar uma quantidade de energia grande o suficiente para vencer a barreira existente entre duas dimensões, é possível criar — ainda que momentaneamente — um Portal entre elas! Consegue compreender?

Balancei devagar a cabeça. Bem. Fazia lógica.

— Continue.

— Se bem manipulada... a energia vital pode ser muito poderosa. E só existe uma forma de utilizá-la a nosso favor, só existe uma maneira de liberá-la do organismo vivo...

— Já entendi. Pela morte.

— Exatamente. Num ato inédito de bondade Deus resolveu poupar o homem e pediu a morte de animais porque o que interessava afinal era a energia contida neles. Mas como eles só têm corpo e alma a quantidade de energia liberada não é muito grande. Por isso há necessidade de um número tão alto de sacrifícios. Mas se é o homem quem erra, não deve ser ele mesmo a pagar pelos seus atos? É mais justo que seja ele a morrer, afinal foi por sua causa que se perdeu o elo dimensional. Mas o mais importante é que a energia contida no espírito humano é altíssima. Nós não somos como animais, apenas com alma e corpo. Desse modo a energia vital liberada com a morte de um ser humano é infinitamente superior à morte de muitos animais! Lucifér assim prefere. O potencial energético humano é muito superior. E ele foi o culpado. É muito simples, não acha?

— Simples, sim. E bem destituído de emoção. Estamos falando de potencial energético ou de vidas?

— Estamos falando das duas coisas. Mas são diferentes. Até para Deus o fim justificou os meios. Não podemos fugir do princípio de que a morte é um "mal" necessário. — E Marlon retomou apenas a fim de enfatizar a conclusão. — Mas você sabe muito bem que "Bem" e "Mal" são relativos. Se o próprio Deus criou o Mal, é porque ele mesmo tinha a maldade dentro Dele. E Lucifér, a "essência do Mal" é o pai que te ama e te acolhe. É uma questão de conceito. A morte não é diferente. Leve em conta apenas a explosão de energia, que pode ser comparada a um tiro de arma de fogo, por exemplo. A bala só é projetada para fora do revólver porque foi criada uma condição energética atípica, caso contrário ela ficaria ali para sempre. O impacto da espoleta faz com que se incendeie a pólvora dentro da cápsula. A pólvora incendiada cria uma pressão muito grande que faz com que a bala acabe projetada violentamente para fora do cano. O Ritual Sacri­fício pode ser comparado a esta "condição energética atípica". O Fluxo da ener­gia vital é liberado e impulsionado de tal forma que é capaz de "furar" o bloqueio entre as duas dimensões, abrindo um elo entre elas.

Fiquei olhando para Marlon, ainda sem responder, assimilando o que ele dizia. Ele continuou:

— Imagine um lago congelado. Digamos que o ar acima da superfície conge­lada seja uma dimensão; a água, outra dimensão. E a barreira entre estas duas dimensões é o gelo. Se atirarmos com um revólver sobre a superfície do lago, a bala sai carregada de uma energia tal que atravessa o ar, o gelo e entra na água lá embaixo. Se esperarmos muito tempo, o gelo volta a se formar e o buraco aberto pela bala deixa de existir. Mas e se esta bala pudesse carregar um "fio" amarrado à ela? Mesmo depois de refeita a película de gelo o fio garantiria uma comunica­ção permanente entre o ar e a água! O elo não mais se fecha! Ficou mais claro agora?

Assenti. Não havia mais o que discutir.

— O Portal aberto fica aberto permanentemente. Veja... o "tiro" parte de um lugar para outro e o elo se dá entre estes. No caso, quem dá o tiro é aquele que executa o sacrifício. A outra dimensão é acessada. O elo tem duas vias. Tanto as Entidades podem acessar você, quanto você pode ir à elas. Não é preciso esperar que o contato parta deles! Isto significa Poder e autonomia.

Apenas o futuro me faria compreender plenamente. Era preciso deglutir aquilo tudo. Marlon sabia que feijoada demais faz mal, causa indigestão e — pior! — pode fazer a gente vomitar.

Por isso, quando me calei, refletindo a respeito e afundando-me em considerações das mais diversas, meu amigo simplesmente deixou-me quieto e absorto.

 

Mais tarde eu compreenderia que a questão da energia é o que há de mais importante para que se efetive uma abertura de Portais. Mas o sacrifício em si tem um simbolismo muito grande por causa do sangue. O sangue é um dos sím­bolos máximos dentro do contexto espiritual. É símbolo de vida. É símbolo de morte. É moeda espiritual!

O próprio Deus pediu sangue. E depois pediu um Sacrifício ainda maior, com o Cristo. Assim deduz-se, logicamente, que este é o preço: a moeda usada para galgar dimensões e acessá-las.

Deus pediu. E Lucifér também pede sangue. Só que a este não se oferece qualquer coisa, não se oferece sangue de bois, carneiros, bodes e pombas. O ser humano é o que existe de mais precioso. Apenas a estes foi dado o privilégio da "imagem e semelhança" e, naturalmente, este é o sangue que Lucifér quer! O sangue que lhe agrada! O sangue dos que são semelhantes Àquele que o expul­sou dos céus.

Que têm a ver os animais com esta história? Nada. Essa história é entre Deus... Lucifér... e os homens.

Os animais são usados muito pouco, somente para treinamento e aprendiza­gem das técnicas que serão utilizadas depois nos humanos. Porque é inconcebí­vel oferecer ao príncipe das Trevas um Ritual feito de qualquer jeito. Assim como um cirurgião aprende suas técnicas em animais e depois vai ao ser humano, al­guns processos ritualísticos requerem o mesmo cuidado. Treina-se nos animais para fazer com homens!

A aliança de sangue é algo de simbolismo indiscutível, extremamente pro­fundo, não se pode fazer pela metade. Deus dispunha das vidas dos animais e uma vez derramado o sangue, o máximo feito com ele era a aspersão. Inconcebí­vel !!! É como se Deus pedisse ao homem que fizesse um bolo de receita compli­cada, cheia de detalhes e etapas.

— Quando finalmente o bolo está pronto, bonito, depois de tanto trabalho, é oferecido a Deus. E tudo o que você recebe daquilo é uma cuspida na cara. É sua recompensa após todo o seu trabalho! Ele te dá em troca um pequeno farelinho daquilo tudo. — Tinha dito Marlon.

E essa comparação ficou impregnada na minha mente.....como pode uma coisa dessas?!

Mas Lucifér, não! Lucifér torna o ser humano co-participante de tudo junto com ele. Ao oferecer um sacrifício Ritual — sendo ambos conhecedores da impor­tância e do valor espiritual do mesmo — Lucifér convida o homem para sentar-se à sua mesa. A taça contendo o sangue é partilhada. A Cerimônia não é somente para ele, não se faz apenas em função de cultuá-lo isoladamente. É um partilhar, um brindar, um trocar de amizade, um bater solidário de corações. O tomar do sangue, bebê-lo é um honra incalculável!

— O culto oferecido a Lucifér é aceito, mas ele também presta um culto a todos os seus convidados. Nosso pai também nos está homenageando, está dizendo "Vocês são meus filhos! Bebem da mesma taça e partilham da mesma mesa". Na cultura antiga, o homem que bebia da mesma taça que o Rei era seu homem de confiança. Da mesma forma são assim considerados os que partilham da taça de Lucifér. São filhos do Fogo e Lucifér confia plenamente neles. É um grande privilégio!

 

A água fria parece que me despertou um pouco. Continuei jogando água com as duas mãos até que me senti melhor. Normalmente eu não ficava assim, com a cabeça fora de órbita, "aérea". Percebi que me recordava muito pouco de tudo o que acontecera de manhã. Para dizer a verdade, eu não lembrava de quase nada.

Sentei-me diante da mesa do Sr. Stênio. Ou melhor, diante da minha mesa. Aquele era o meu lugar definitivo agora. Muito bom. Era tudo o que eu podia dizer!

Mas eu continuava esquisito. Corri os olhos sobre o tampo da mesa e dei de cara com o porta-retrato colocado bem à minha frente. Era um retrato do Sr. Stênio junto com a família, a mulher e duas filhas pequenas.

A imagem que eu tinha na cabeça — a única coisa que conseguira reter da­quela manhã — não combinava com a foto. Eram mais do que justificadas as muitas lágrimas delas durante o enterro do Sr. Stênio.

Procurei me desfazer da foto o quanto antes, uma tentativa de dissipar aque­la sensação estranha que teimava em me dominar.

Coloquei no lugar uma foto minha, abraçado com Marlon e Thalya. E ape­guei-me com mais intensidade ainda ao que Marlon me dissera. Eu o havia pro­curado na noite anterior, durante a reunião do Grupo. Logo que tivera notícias do falecimento.

Eu estava chocado. Pensei que ele não soubesse.

— Marlon... o Stênio morreu!

— Há coisas que você ainda não entende, não é? — Respondeu Marlon com muita calma.

De fato. Eu não imaginara nem de longe uma atitude tão drástica. Fiquei ainda mais chocado porque ele já estava a par de tudo. — Você já sabia?! A pergunta era totalmente desnecessária.

— Mas você ganhou a promoção! — Continuou Marlon ignorando a minha pergunta.

— Droga! E ele precisava morrer, Marlon?! Eu pensei que ele fosse ficar doente, afastar-se um pouco, como a dona Tânia, que só quebrou o fêmur! Não precisava matar o cara!...

Naquele momento tudo o mais parecia ter assumido posição bastante secun­dária. Meu olhar dizia tudo, encarando meu amigo com muito espanto. Eu estava um tanto ou quanto sem entender.

— Rillian, pense bem. — Explicou Marlon com paciência. — Ele nunca deixa­ria de ser o Supervisor. Por que você está tão chocado com essa morte? Deus — que é o grande bonzinho da história — "naturalmente" matou os dois filhos do Sacerdote Arão. Sabia disso? Nadabe e Abiú. Matou os dois, e por quê? Porque a atitude deles desagradou a Deus. Note bem. E isso porque eles eram filhos de Arão! Deus nem sequer cogitou se atitude tão drástica causaria algum dano a Arão, por exemplo. "Não gostei!", e que se dane. Não foi assim? "Morram"! Essas são as atitudes de Deus, o Justo, o Amoroso!

— Tudo bem, Marlon, mas nós não estamos falando de Arão e nem nada disso, eu acho...

Ele me interrompeu.

— Escute antes de falar. — Marlon sabia fazer contrastes entre Deus e Lucifér com enorme riqueza de detalhes. — Lucifér é seu pai. Ele te ama e quer o melhor para você. Ele matou o Sr. Stênio mas...e daí?! Ele não era seu irmão, nem seu pai, seu amigo, seu filho. Que vínculo você tinha com ele, realmente? Sabe, Lucifér nunca tocará em um dos seus familiares porque sabe que se os ferir, estará ferin­do você. Não fará nunca o que Deus fez com Arão, seu servo. A sua família tem uma proteção também, por sua causa. Você, além da proteção, tem também o favorecimento, mas a proteção em si abrange tudo à sua volta e tudo o que lhe diz respeito. As pessoas não sabem, mas são privilegiadas em serem da sua família. Aqui não é como do lado de lá! Arão era Sumo Sacerdote, mas que garantias ele teve? Nenhuma! Absolutamente nenhuma! O próprio Deus fez descer fogo do céu sobre os seus filhos para os consumir.

Eu escutava, calado.

— Com relação ao Sr. Stênio, essa medida foi necessária. Não questione, por­que foi feito tão somente o que era necessário. Mesmo que ele ficasse em casa, doente, como você sugeriu, ele continuaria trabalhando de lá. Continuaria sendo o Supervisor de Operações Financeiras da Style. E você precisa galgar um posto alto logo. Precisa receber aquilo que você merece ter. Precisa melhorar essa sua auto-estima!

Ele fez uma pausa, encarando o meu rosto com firmeza e carinho ao mesmo tempo. Deu-me um tapinha nas costas, amigável:

— Quando Lucifér quer te dar alguma coisa, ele realmente quer fazer isto, quer concluir o seu objetivo de qualquer forma. O propósito, o fim é o que im­porta. E os fins justificam os meios. Isso faz você lembrado de algo?! — E con­cluiu: — O câncer é muito fácil de ser plantado!

Eu ainda não sabia o que dizer, continuava sentado esperando ele terminar, processando as idéias, abstendo-me de comentários.

— Deus às vezes age de forma muito estranha... e os Cristãos continuam a adorá-Lo do mesmo jeito! Ele avisa: "Agora vou forjar em você o caráter de não sei quem". E Deus vai e mata a família, faz capotar o carro, a empresa vai à bancarrota. Do lado de Deus os fins sempre justificam os meios. Que nem Jó, que quase morreu! — Marlon parecia visivelmente indignado. — "É isso aí! Vamos ver se você é bom mesmo, meu servo Jó!" E lá vai. Uma chuva de "bênção". Isso porque ele era o mais justo sobre a Terra. Que recompensa, heim? E querem fazer acreditar que Jesus veio para que a Humanidade tivesse Vida, e Vida em abun­dância! Ora, e isso é vida?!!! Vida de sofrimento, só se for! Mas os fins... justificam tudo isso! Parece que Deus não tem mais o que fazer. Mas Lucifér não faz isso, ele não tira o que você tem pra fazer você sofrer. Ele não quer sofrimento para o homem, quer, ao contrário, a plenitude da Felicidade. Você nasceu para ser feliz, Eduardo. Lucifér é aquele que dá vida de verdade. E é isso que você está come­çando a experimentar. Vida! Vida é você estar exercendo um cargo que merece ter. Vida é não passar necessidade, é ter paz com você mesmo. É ter amigos que estão ao seu lado sempre!

Me convenceu. De fato. O exemplo de Nadabe e Abiú me tocou profunda­mente. Realmente Deus não estava preocupado. Nem com eles e muito menos com Arão, que era pai. O contraste era tão imenso...! Lucifér era bom. A argu­mentação dele caiu no meu coração como uma bomba.

— Tem razão. — Admiti. — É só uma vida. Meu pai a tomou porque quis dar o melhor para mim.

E fiquei agradecido, sinceramente. A Lucifér, a Abraxas e a todas as Entida­des que tinham participado para que eu pudesse ter — e ser — o que eu queria. Compreendi o significado de tudo aquilo. Depois de refletir por alguns minutos tornei a me manifestar:

— Eu quero agradecer, então, Marlon. Não estava entendendo muito bem, mas agora gostaria de agradecer! Oferecer um brinde a estes demônios que estão me dando isso.

Então todos concordaram com a minha decisão, especialmente Marlon, sa­tisfeito que eu tivesse compreendido corretamente todas as coisas. Eles prepara­ram uma poção rápida ali, na hora. Um Pentagrama foi desenhado no chão e todos participaram comigo. Zórdico mandou trazer a oferta, um bezerro. Não era comum ter animais por ali. Aquele bezerro ia ter um outro destino mas foi possí­vel utilizá-lo naquele momento.

Eu morria de pena dos animais, mas procurei não dar muita atenção àquilo. Eu gostava muito de bichos e o bezerro parecia tão meigo. Foi o próprio Zórdico quem o sacrificou e eu me esforcei para não me deixar influenciar novamente. Tinha que aprender definitivamente que há coisas que são simplesmente necessárias.

A poção foi feita, todos nós bebemos dela, em meio aos mantras. Foi ofere­cido o brinde às Entidades. Depois nós começamos a tomar vinho e comer alguns petiscos, e nos alegramos muito. Ninguém saiu de lá. Ficamos até alta madruga­da conversando e confraternizando. Saí umas três da manhã.

Sacudi novamente a cabeça, puxando-me para o presente de novo. Voltei a olhar para a mesa do Sr. Stênio e minha foto sobre ela.

— Sim... acho que eu estou assim letárgico por causa disso. Não dormi quase nada à noite.

E o enterro tinha sido às sete da manhã.

— Não! — Tornei novamente. — Não foi porque eu dormi pouco!

Levantei-me, abri a cortina e olhei a avenida movimentada lá embaixo. Es­tava no sétimo andar do luxuoso edifício aonde ficava a Style, uma multinacional no ramo da Informática.

— Não tem a menor lógica. Abraxas repôs a minha energia e eu fiquei bem. Isso não tem nada que ver com sono!

Era óbvio. Quando acordei pela manhã realmente eu estava muito cansado. Mas, depois, veio o vigor. Havia um encantamento para isso, eu literalmente pedia ao meu Guia que fizesse da sua força a minha força. O efeito era imediato e tremendo. Parecia que eu tinha tomado uma dose de cocaína na veia!

A lógica é simples. O que faz com que nos sintamos cansados é a perda de energia ao longo do dia. O desgaste nos leva a dormir justamente para esse fim: repor as energias. Mas os demônios podem fazer por nós a mesma coisa. Eles são energia pura e podem "carregar as baterias" como se tivéssemos tido um boa e comprida noite de sono.

Saí muito bem de casa. E fui ao enterro. Um procurador da Style que morava pertinho de minha casa me ofereceu carona e fomos juntos.

Foi um enterro diferente, lembro-me de que não vi nenhum padre. Mas, de resto, me recordo muito pouco. Nem sei o que conversei com as pessoas, o que sem dúvida era muito estranho. Foi como se eu tivesse apagado. Por quê? Have­ria ali algo que meu Guia não desejasse que eu visse e ouvisse? Ou será que eu me deixaria dominar pela emoção outra vez? E acabaria esquecendo os propósi­tos mais profundos que culminaram naquele acontecimento?!! Nunca vou saber. Mas parece que Abraxas me deixou como que "inconsciente" durante todo o período em que estive ali.

A única coisa de que me lembro claramente foi do rosto do Sr. Stênio, que me pareceu muito calmo e tranqüilo. Sinceramente... tive muita pena. Muita pena mesmo. Mas procurei deixar de lado o "sentimento primitivo". E Abraxas me falou, muito claramente, em dado momento:

— O sofrimento por vezes é necessário. Não se vem à Vida sem dor...todo processo de transição envolve dor... a morte não é diferente.

Ainda assim não me confortou. Eu estava diante do sofrimento daquela família e me sentia pesado. Talvez tenha sido mesmo por isso que Abraxas achou por bem me "apagar" o resto do tempo. Eu não estava preparado para nada da­quilo! Apenas entendia racionalmente que era necessário, mas estava inconformado nas emoções. Eu conhecia o Sr. Stênio. E até onde o conhecia... ele era bom! Que diferença fazia se ele não era meu parente, nem nada? Eu gostava dele do mesmo jeito!

A partir de um certo momento parecia que eu não estava mais ali, me sentia anestesiado, como se estivesse vendo um filme. Escutava... e não entendia; via... e não enxergava.

Estranho...

Quando dei por mim já estava de volta na Empresa e já era quase horário de almoço. Estava ali na toalete jogando água no rosto.

Desviei a vista da janela e procurei fazer algo mais útil. Como arrumar a sala do Sr. Stênio ao meu modo, evitando assim sentimentos que pudessem vir a me perturbar.

E dessa forma eu assumi o cargo de Supervisor de Operações Financeiras da Style. Tudo tinha acontecido tão depressa! Era até difícil absorver todas as mu­danças. Realmente meu pai Lucifér tinha planos para mim e as Entidades tinham trabalhado rápido e muito bem.

 

Depois que saí da Canion Tower não fiquei muito tempo desempregado. Por indicação de um amigo meu que tinha trabalhado comigo na própria Canion, concorri a uma vaga na Style. Fiz os testes ao mesmo tempo em que compartilhei com meu Grupo sobre o início do novo processo de seleção. Eu tinha muito interesse em entrar porque a Empresa era excelente e muito bem situada.

— Fique tranqüilo. — Disseram-me. — Essa vaga será sua!

De fato, em dois dias eu já estava trabalhando. No começo o serviço era muito chato. Eu tinha entrado como Assistente de Contas a Pagar Sênior e minha chefe, para variar, era uma senhora. A função dela era nos supervisionar. Já viu! Em pouco tempo eu não suportava mais a dona Tânia! Nem ir ao banheiro sosse­gado a gente podia:

— Mas o que é que você foi fazer no banheiro, menino? Assim desse jeito vai atrasar o seu serviço.

Era assim o dia todo. Apesar de satisfeito com meu emprego, um dia acabei sinalizando minha indignação com Marlon e Zórdico. Eles riram um pouco e limitaram-se a pedir alguns dados de dona Tânia, coisas como endereço, data de nascimento, etc.

— É bom que você aprenda que na nossa Irmandade as pessoas não devem ser molestadas. — Comentou Zórdico. — Isso vai ser por pouco tempo. Tenha Paciência! Você vai fazer carreira nesta Empresa.

Em poucos dias dona Tânia sofreu um acidente e fraturou o fêmur. A cirurgia e os cuidados médicos a mantiveram afastada por quase seis meses. Foi um verdadeiro sossego depois que ela saiu.

Eu tinha sido contratado para uma vaga temporária, mas nesse meio tempo surgiu uma vaga efetiva. Eu participei do processo de seleção interno, que foi muito fácil, e fui aprovado. Acabei sendo efetivado a um nível acima do meu: como Analista de Contas a Pagar Júnior. Estava muito satisfeito e adorava o meu trabalho! Sempre entusiasmado em aprender, ficava perto de quem pudesse me ensinar.

Havia um rapaz, um Analista Sênior que sabia bastante e em quem grudei para aprender todos os processos do departamento. Não era necessário esse es­forço mas eu gostava do serviço. Depois que terminava as minhas incumbências ia sempre para perto dele, ajudava-o e aprendia. O nome dele era Milton e acaba­mos fazendo uma certa amizade. Ele gostava de ensinar e apreciava a minha capacidade e facilidade em aprender. Eu era determinado e não tinha receio de trabalho.

Foi então que surgiu uma oportunidade ímpar quando Milton anunciou que precisava tirar férias. Já fazia dois anos que ele não saía. E eu era o único que conhecia o "filé" do setor e as rotinas de serviço dele. Fiquei sabendo depois que foi do próprio Milton que veio a sugestão:

— Olha, o Eduardo é muito interessado e tem me acompanhado diariamente em todos os processos. Ele pode me substituir enquanto eu estiver fora.

A sugestão, ainda que um tanto ou quanto inusitada, foi fruto da ordem natural das coisas e não precisou de nenhuma intervenção espiritual. A Supervi­são e a Gerência concordaram e nos próximos quinze dias eu passei a ser treina­do especificamente para este propósito. O Milton me ensinou, em tempo inte­gral, todos os detalhes dos processos.

E eu assumi.

 

Nos primeiros dias a tensão foi natural por causa da responsabilidade que estava sobre mim. Afinal eu preparava diariamente um relatório que ia para a Diretoria Financeira.

Na primeira semana me virei bem. Nada de novo além do que tinha aprendi­do com Milton. Na segunda semana, entretanto, apareceram uns problemas mais cabeludos para resolver. Mas eu não queria ter que perguntar nada para ninguém, queria arrumar uma maneira de resolver aquilo sozinho.

Eu vinha me esforçando muito, suprindo corajosamente todas as deficiênci­as que fazia a falta de uma Faculdade. Estava aprendendo muito e muito rápido, eram montanhas de coisas novas todos os dias para absorver. Mas vinha me dando bem e não tinha sido necessário pedir orientação a Abraxas.

Mas naquela segunda semana foi preciso. Ele me disse algo acerca de uma "melhoria de processos". E deu-me algumas dicas muito boas e muito providenciais sobre como eu poderia fazer as mesmas coisas, e ter um resultado melhor. Depois levei também as dúvidas menores a Zórdico, que analisou os problemas e deu-me outras dicas importantes.

— Antes de você começar o seu dia, Rillian, consagre todo o serviço ao seu Guia. — Instruiu Zórdico. — Não se esqueça disso.

Trabalhei bastante e a principal mudança que consegui implantar foi no Re­latório Financeiro. Antes ele ficava pronto somente com um dia de "atraso" mas agora, devido às mudanças, estava à disposição no mesmo dia. Aquilo agradou muito ao Diretor Financeiro. Além da entrega antecipada eu modifiquei muita coisa no layout do documento, o que conferia maior abrangência e uma leitura muito mais fidedigna.

Minha resposta aos elogios que começaram a vir da Supervisão e da Gerên­cia foi a seguinte:

— Posso fazer muito mais do que isso. Mas eu preciso de melhores condições de trabalho. Preciso de uma sala só para mim, onde posso me concentrar melhor. E preciso de dois auxiliares também. Queria um telefone só meu, mas não na minha sala. Poderiam designar alguém para filtrar as ligações e só deixar passar o que é urgente. Quero também uma iluminação assim e assim na minha sala. E prefiro uma cadeira mais anatômica.

Confesso que chutei o balde nas exigências porque sabia que tinha a faca e o queijo na mão. No final de semana fizeram uma pequena reforma no setor e realmente me deram a sala como eu queria. Providenciaram os auxiliares e tudo o mais.

"UAU!"

Depois disso ganhei autoconfiança. Trabalhei com muito afinco e em caso de necessidade sempre sabia aonde encontrar as explicações certas na hora certa. Com Zórdico, claro, ou Marlon. Pegava o telefone e perguntava. Abraxas era somente em último caso.

— Olha, eu tenho estas alternativas para carteira de investimentos. Em qual eu devo investir, Zórdico?

A resposta era sempre certeira.

Naquela época a Economia era muito instável. Um erro representava a per­da de milhões. E justamente por causa disso em certas ocasiões eu precisava justificar meus atos à Gerência.

— Por que você decidiu aplicar todo o nosso capital aqui? — Ela me pergunta­va. — Em vez de distribuir parte do dinheiro em outros investimentos? Isso é muito arriscado!

— Esta é a melhor opção.

— Mas ninguém sabe qual é a melhor!! Como você pode afirmar?

— Esta é a melhor.

Eu insistia categoricamente e isto fazia com que ela me liberasse para agir como preferisse. No dia seguinte ficávamos sabendo das oscilações na Bolsa de Valores: tinham ocasionado um rendimento maior exatamente na carteira de in­vestimento em que eu aplicara o capital. Comecei a ter a reputação de quem tem feeling para negócios.

 

E foi aí que eu descobri o "elefante branco"!

Depois do sucesso com o Relatório Financeiro e com os investimentos certeiríssimos eu estava à caça de algo mais que pudesse consolidar o meu valor. O tempo era curto e eu tinha que me fazer totalmente insubstituível. As férias do Milton estavam chegando ao fim.

Zórdico tinha comentado comigo há alguns dias:

— Abra bem os seus ouvidos, Rillian! Porque o Abraxas tem muito a te ensi­nar. Não é à toa que ele existe desde antes da fundação do mundo. — E brincou: — Ele sabe muita Administração!

Era um final de tarde e eu estava sentado em minha sala, pensativo, e com o serviço já todo feito. Normalmente eu ficava além do horário de expediente para deixar o trânsito baixar. Aproveitava para ler o jornal, brincava com os joguinhos eletrônicos do computador, jantava na Empresa com meus amigos.

Tinha feito um café na máquina e observava o vapor quente saindo do copinho enquanto me deixava levar pelos meus pensamentos. Finalmente invoquei Abraxas por meio dos encantamentos e disse, com muita sinceridade:

— Olha, Abraxas! Tem mais alguma coisa que eu possa fazer aqui? Tem algo mais que eu possa mudar, ou melhorar, e que eu não esteja vendo? O Milton vai voltar e eu preciso de coisas de peso para apresentar, coisas que me garantam efetivamente este lugar! Quero continuar ocupando este cargo, e esta sala, como tem sido até agora!

A voz dele veio no meu ouvido esquerdo:

— Dê uma olhada nos relatórios que estão subindo do Caixa. E calcule quan­to a Empresa deixou de aplicar no decorrer de um mês.

Tomei o resto do café já meio frio. Em outras palavras, Abraxas estava me dizendo para verificar quanto a Empresa tinha deixado de ganhar. Naquela época os juros eram muito altos e a maior receita da Empresa vinha justamente da espe­culação na ciranda financeira.

Fiz como ele me dissera. Um levantamento diário dos valores que não eram aplicados e que ficavam ao léu até que os fornecedores os retirassem. Calculei a projeção para o mês e os juros. Fiquei boquiaberto! A quantia que a Style estava jogando no lixo era muito significativa! Dava para pagar a folha de funcionários de um andar inteiro, já embutidos os encargos sociais. Muita grana.

Mais que depressa preparei um relatório com base naqueles dados, e acres­centei xérox de todos os documentos que comprovavam o que eu dizia. Nem conversei com o Sr. Stênio. Fui direto até a Márcia, a Gerente Financeira. Entreguei o material nas mãos dela:

— O relatório de hoje está pronto, Márcia, mas dá uma olhada nesse detalhe que eu descobri aqui. Veja também o relatório em anexo.

Ela bateu os olhos nos números, e eles eram incontestáveis:

— Meu Deus! Eduardo, isso é uma bomba!

Ela me elogiou muito e saiu, apressada, voou até a Diretoria:

— Vou conversar com o Diretor Financeiro agora mesmo! — Esclareceu ela. — Isso não pode continuar acontecendo!

No dia seguinte fiquei sabendo dos acalorados comentários do Diretor acer­ca do meu dossiê. E que a partir de então eu iria ocupar definitivamente o cargo de Analista Sênior. Em poucos dias, quando Milton retornou das férias, foi sim­plesmente demitido. Não havia mais espaço para ele ali.

E eu fiquei com todas as regalias do setor!

— Há algo mais que você queira em sua sala?

Eu me sentia o todo-poderoso. Impliquei com o barulho que o vento fazia nas persianas da janela e que prejudicava minha concentração.

— Não dá pra vocês colocarem umas cortinas?

Ganhei as cortinas e a vida no departamento parece que engrenou. Em sete meses meu crescimento dentro da Style tinha ido de vento em popa. Eu adorava o meu serviço e em pouco tempo já era dono da situação. Não fazia diferença que Abraxas tivesse dado as dicas iniciais, e Zórdico as tivesse complementado. Eu me virava muito bem agora. Sozinho. Nos próximos cinco meses ocupei o cargo de Analista. E completei um ano de casa.

Mas o episódio do "elefante branco" acabou por estreitar o meu relaciona­mento não só com Márcia, a Gerente, mas também com o sr. Stênio. O Supervisor. E era muito bem visto também pela Diretoria.

No que dizia respeito ao Sr. Stênio, eu era o preferido dele para as tarefas de maior responsabilidade, costumava acompanhá-lo de perto. Procurei trabalhar sempre com conhecimento de causa. Eu não me contentava em que ele me disses­se para fazer isso ou aquilo. Eu queria saber opor quê disso ou daquilo. Detesta­va serviços robotizados.

Naquele período um dos desafios foi implantar um novo sistema informatizado de Contas a Pagar porque muitos dos processos ainda eram feitos manualmente. Toda a gestão e implantação do novo sistema ficou por nossa con­ta e eu pude acompanhar de perto desde o treinamento dos funcionários até os processos finais tanto do sistema quanto dos equipamentos.

Foi desgastante, sem dúvida, sempre saíamos tarde da Empresa. Não raro trabalhávamos até aos sábados e domingos. Mas valeu a pena. Uma sensação gostosa em ver o bom funcionamento de tudo!

E uma vez consolidado o sistema, o Sr. Stênio ia sair em férias. Comentou comigo logo de cara:

— Estou precisando pescar um pouco, espairecer a cabeça! Vou pegar umas férias. Você fica no meu lugar? Saio só uns quinze dias.

E ficou mesmo acertado que assim seria. Eu o substituiria por quinze dias. O departamento aprovou e eu sabia que era agora ou nunca. Aquela sede incontrolável de Poder me dominava.

 

O Sr. Stênio saiu na sexta-feira à noite.

Apresentei o meu desejo veementemente a quem pude, na reunião da Irman­dade, no mesmo dia. Conversei com Marlon, Zórdico, Rúbia, Ariel, Egípcio, dentre outros:

— Olha, eu estou assumindo o cargo, heim? Aquele lugar tem que ser meu! Marlon adiantou-se depois que expliquei a situação.

— Não se preocupe! Fique tranqüilo. O cargo será seu porque você o merece. Aliás, você merece muito mais do que isso. É muito bom que você vá tendo essa experiência de liderança desde já. Você ainda vai liderar muitas coisas!

Zórdico pediu:

— Me arruma o nome completo do seu Supervisor, endereço, tudo. Me passa os dados por fax logo na segunda-feira.

Ele também me deu uma estatueta e orientou-me para que a deixasse em qualquer lugar dentro da sala do Sr. Stênio. Era uma réplica de um deus hindu semelhante a um elefante. Eu estranhei um pouco. Zórdico explicou:

— Essa pequena estátua foi consagrada a Behemoth e Belfegór. São Entida­des muito poderosas, como você sabe!

— Eu sei, Zórdico, mas o meu Guia é o Abraxas, e ele mesmo está subordina­do a Leviathan! Como, então uma outra Hierarquia...?

— Sim, sim, não entenda mal, Rillian! Mas todos os demônios colaboram entre si visando um fim comum. Se você quer algo, terra e céus vão se mover para ajudá-lo! Afinal... você não faria qualquer esforço pelo seu filho? Lucifér a mesma coisa. Ele não mede esforços.

E fiz como me orientaram. Logo na segunda-feira após o expediente entrei na sala dele aproveitando o departamento vazio. Depois da correria das últimas semanas todos tinham saído cedo.

Percorri aquele espaço, pensativo. Eu não tinha ainda autoridade espiritual suficiente para fazer algo de peso, infelizmente, apesar de já ser um Mago. Mes­mo assim consagrei o lugar a Abraxas e pedi sua orientação para os próximos dias.

— Este lugar agora será meu. — Murmurei. — Porque eu sou filho do Fogo, e assim vai ser!

Depois desembrulhei a estatueta e a coloquei sobre a mesa, junto à fotogra­fia da família. Já tinha conseguido os dados que Zórdico pedira, e os enviei com o maior número possível de detalhes. Mandei inclusive uma cópia xérox da foto.

E deixei rolar. Sabia que tudo estava sob controle. E Abraxas estaria ali comigo todo o tempo, dando-me cobertura e me orientando, se fosse necessário. Os dias que se seguiram foram muito tranqüilos. Me dei bem no cargo. Somente se aparecesse um pepino muito grande é que eu me aconselharia com Marlon, Zórdico ou Abraxas. Mas nem foi preciso.

Mais ou menos no décimo dia das férias do Sr. Stênio recebemos uma notí­cia de que ele não estava muito bem de saúde. Tinha sido internado com um quadro de vômitos, dores de cabeça muito intensas e convulsões. Foi a própria Márcia que adentrou minha sala para dar a notícia:

— Olha, Eduardo, talvez você tenha que permanecer mais uns dias no cargo porque o Stênio está fazendo uns exames. A esposa dele acabou de nos telefonar.

E me explicou tudo. O Sr. Stênio estava internado num bom hospital que não ficava muito distante da Style. Naquele dia eu saí do serviço e fui visitá-lo. Sinceramente.... em momento algum me passou pela cabeça que ele fosse morrer. Imaginei que ele ficaria doente por algum tempo, o suficiente para que eu me consolidasse no cargo de Supervisor.

Conversamos um pouco, ele estava estável e até otimista em relação ao qua­dro da sua enfermidade. No dia seguinte ia fazer uma ressonância nuclear mag­nética em outro hospital, um exame que poderia elucidar melhor a patologia ce­rebral que ele vinha apresentando. Quando eu ia saindo, ele ainda brincou:

— Cuida bem das coisas por lá, heim?

Abri a porta e dei de cara com o médico dele, que vinha entrando para uma visita vespertina. Engraçado... de onde ele me era familiar??? Eu tinha quase cer­teza de que o conhecia... mas de onde?!!

Nossos olhares se cruzaram por alguns instantes, mas nenhum de nós disse palavra. Já na rua, finalmente lembrei-me: ele fazia parte da Irmandade.

 

O Sr. Stênio foi operado mais ou menos uns cinco dias depois, por causa do tumor cerebral. Mas não sobreviveu à cirurgia.

Quando soube da notícia fiquei completamente chocado. Márcia entrou em minha sala meio quieta, sentou, ficou me olhando com um ar perdido.

— Que aconteceu?! — Perguntei.

— Não tenho uma notícia boa para dar...é uma decisão muito difícil para todos. Nem sei como te dizer. Mas falei com o Diretor e a decisão já foi tomada. Em suma: a partir de agora você é o novo Supervisor.

— Pôxa! E você me dá notícia com essa cara?!!

— Isso só está acontecendo porque o Stênio faleceu! Evidentemente, não me entenda mal. O seu mérito é inquestionável, e não há ninguém capacitado no setor a não ser você. A decisão partiu inclusive do próprio Diretor. Mas... o Stênio...

— O Stênio... morreu?!!! Mas não é possível!!!

— Ontem à tarde. O enterro será amanhã às sete da manhã.

Eu não sabia dizer se estava ouvindo mesmo aquilo ou não. Por um lado...uma euforia estranha. Por outro, o que teriam eles feito???! Eu não queria que ele tivesse morrido! Que atitude mais drástica!

Márcia começou a chorar, sinceramente chateada. Eu fiz o papel de consolador o melhor possível. Queria só sair dali... encontrar Marlon... entender porque o preço tinha sido tão alto!

 

Minha primeira atitude como Supervisor foi reunir o grupo que me estaria subordinado a partir de então. Ao todo umas dezesseis a dezoito pessoas. Fazia pouco mais de um ano que eu estava na Style.

Convocada a reunião, Márcia iniciou explicando em poucas palavras por­que eu tinha sido escolhido para assumir o cargo. A maioria aceitou bem apesar de haver funcionários mais antigos de casa do que eu. Fui muito bem deglutido como novo chefe.

— Bem, vou deixá-los com seu novo Supervisor. — Disse por fim a Márcia. — Dêem-me licença que eu tenho muito o que fazer!

E deixou-me com o grupo. Eu já conhecia a todos e eles me conheciam, mas agora era muito diferente.

— Gostaria de saber um pouco mais de vocês! Quanto tempo têm de Empre­sa, quem ainda está fazendo Faculdade, quais as expectativas dentro da Style?... Vocês moram sozinhos ou com os pais? São casados ou solteiros? Qual sua crença religiosa?.....

Fui fazendo as perguntas triviais e dei um jeito de embutir no questionário a única questão que realmente me interessava: a religião. Na verdade era o que eu mais queria saber. Queria saber se algum deles poderia me ser empecilho de qualquer forma. Eu literalmente odiava pessoas Cristãs.

Cada um foi falando de si mesmo. Tinha quem fosse espírita, ou católico, ou esotérico, ou simplesmente sem definição. Mas lá estavam elas, sentadas lado a lado. Como é que eu não havia reparado antes naquelas moças?!!

Uma delas, a Vanessa, de cabelo comprido e óculos, magricela; a outra, Tatiana, era até bonitinha, com cabelos curtos e crespos, da mesma idade da Vanessa. Ela era Assistente Sênior e a Vanessa, Analista Financeira Júnior.

E estavam bem ali, à minha frente!

A Vanessa em especial falou muito de Deus. As duas freqüentavam a mesma Igreja, uma denominação Pentecostal qualquer.

— E, olha, estamos muito felizes em você estar assumindo o cargo! Vamos estar orando por você, para que Deus dirija os seus passos nessa sua nova fun­ção. Que você seja muito abençoado e possa ser mesmo um instrumento de Deus para nos abençoar também.

Eu procurei controlar ao máximo a expressão do meu rosto. Era preciso disfarçar um pouco o quanto estava odiando aquela introdução.

"Você vai ver que instrumento de bênção eu vou ser, sua cretina!"

E procurei falar brevemente de mim mesmo. Mas não entrei em detalhes de nada. Comentei somente um pouco da Arte Marcial mas evitei entrarem detalhes de religião. Para constar, disse que não tinha opinião formada sobre a Palavra de Deus. Apenas achava que tantas distorções vindas de um único Livro só serviam para uma coisa: ofuscar ainda mais a Verdade.

E deixei por isso mesmo. Meu objetivo já tinha sido alcançado. Terminei a reunião falando mais de trabalho, expondo os meus projetos a curto, médio e longo prazo. E incentivando-os a colaborarem comigo.

— Vocês serão bem recompensados. Quem se sobressair não vai ganhar ape­nas o bom e velho tapinha nas costas. Isso é bom, sem dúvida, mas a mola que impulsiona essa auto-realização é o reconhecimento financeiro!

Mas percebi que aquelas duas, a Vanessa e a Tatiana, tinham chance de vir a ser uma chateação só. Uma pedra de tropeço no departamento. E no meu sapato! Eu tinha que encontrar uma maneira de demiti-las. Só que não poderia ser sem uma boa justificativa! E nem antes que findassem os meus três meses de experi­ência.

Pelo visto teríamos que nos suportar um pouco.

— Esse ambiente vai feder com esse dois bichos aqui dentro...! Como é que nunca reparei nisso?!!!

 

Eu tinha três meses para provar a incompetência das duas. Se conseguisse, uma vez efetivado como Supervisor elas estariam no olho da rua.

Logo depois da primeira reunião, Vanessa teve o topete de vir bater na mi­nha porta.

— Dá licença, Eduardo? Eu queria te entregar uma coisa.

Era um panfletinho com uma cachoeira desenhada na primeira capa.

— Isso aqui é para você refletir! — Explicou Vanessa jogando o cabelão nas costas.

— Refletir?! Refletir no quê??? Numa cachoeira?! — Respondi meio brusco.

— Não, não! É o que está escrito no verso. — E acrescentou, num tom de voz doce que me irou mais ainda. — É um Salmo!

A vontade que eu tinha era dar uma resposta bem à altura e bem mal educada. Mas me contive:

— Tá bom, Vanessa. Ótima idéia, mas, olhe, vá trabalhar que você está me atrapalhando.

Nem bem ela saiu dei ordens expressas à minha secretária.

— Não me deixe ninguém entrar aqui assim desse jeito, à toa! A secretária fez que sim, mas acudiu em tempo.

— Ah, a propósito! Me parece que essa moça, a Vanessa, e aquela outra lá... — Apontou para a outra adorável subalterna. — Elas comentaram comigo para que pedisse permissão ao senhor: elas gostariam de poder orar na sua sala! De manhã, sabe? Antes do expediente. Acho que não tem problema, né?

— Orar?!!! Ah! Pois era só o que me faltava!!! De jeito nenhum. Tem proble­ma, sim! Aqui não entra ninguém, entendeu? Ninguém!!! Você não deixa absolu­tamente ninguém entrar na minha sala. Entendeu?! Aliás, eu vou levar a chave.

E assim eu fiz. Minha secretária ficou com cara de ostra diante de tão vee­mente negativa e não entendeu nada. Mas no final do dia eu trancava a porta e levava a chave comigo. Como se eu fosse suportar aquilo! Aquelas duas orando na minha sala!!!

A partir de então eu passei a sobrecarregá-las de serviço. Ficava pensando comigo mesmo sobre que tarefas impossíveis eu poderia inventar e dar à elas. Por experiência própria eu sabia que fazer qualquer serviço sob pressão é terrí­vel. Ainda mais se for algo complexo, que exija atenção, e se o espaço de tempo disponível for pequeno. A probabilidade de haver algum erro é bem alta.

Eu procurava criar este tipo de situação sempre que possível. Muitas vezes eu já sabia que ia precisar de um dado serviço desde manhã cedo. Mas eu só dava a incumbência depois do almoço. Então, além de arcar com a rotina do dia, elas tinham que resolver aquele outro abacaxi para o mesmo dia.

— Preciso deste levantamento para hoje porque amanhã eu tenho uma reu­nião logo cedo. É urgente! E, olha, isso não pode ter nenhum erro, heim? Se tiver erro nós vamos conversar, porque isso é um negócio muito sério.

E falava na frente de outras pessoas justamente para que todos soubessem da urgência do trabalho. Não haveria como elas alegarem qualquer tipo de igno­rância. Mas invariavelmente o serviço estava sempre pronto, a tempo e a hora. Sem erro. Como eu odiava aquilo! Não sei como é que elas conseguiam dar conta, as duas se revezavam e dividiam as tarefas e sempre acabavam cumprindo tudo o que eu determinava.

Aquilo só me estimulava mais ainda a inventar tarefas cada vez mais estratosféricas.

Mas, serviço à parte, havia outras coisas que me incomodavam.

Certa ocasião: horário de almoço e o departamento estava meio vazio. Eu passei por perto da mesa delas, que ficava atrás de um biombo, e escutei as duas cantando baixinho.

— Deus está aqui...! Aleluia! Tão certo como o ar que eu respiro!

O sangue me subiu imediatamente ao rosto. Dei uns murros no biombo.

— Mas o que que é isso que eu estou ouvindo?!

Eu me sentia afrontado com aquilo. Parecia que era alguma coisa a nível pessoal, como se elas estivessem pessoalmente me ofendendo terrivelmente. Re­peti com mais ênfase, ainda procurando me conter.

— Ô! Vamos trabalhar aí?!! Escutei a voz da Vanessa, meio em tom de brincadeira:

Estamos almoçando, chefe!

— Se estão almoçando deviam estar com a boca cheia, se alimentando! E não ficar cantando por aqui! Aqui não é boate, cabaré, para vocês terem esta liberda­de aqui dentro! — O tom da minha voz soou mais mal educado do que eu preten­dia.

— Ai, chefe, que é isso?! Isso aqui não é música de cabaré, não! São músicas que a gente canta na Igreja.

Eu enfiei a cabeça pelo biombo e falei categoricamente:

— Pois é. Canta na Igreja mas aqui não canta! — Respondi, bravo. — Eu não consigo me concentrar com essa cantoria toda!

Como se eu estivesse fazendo alguma coisa.

Outras ocasiões eu chegava de manhã cedo e elas estavam lá lendo a Bíblia, esforçadas. Aquilo já era o motivo do dia. Impressionante como elas conseguiam me irritar com atitudes assim.

— Ô, menina! Você não vai trabalhar, não? Não tem nada pra você fazer aqui?!

— Ah, mas não deu o meu horário ainda.

— Bom, se você chegou mais cedo, você vai trabalhar. Aqui é um local de trabalho. Se você quer ler a sua Bíblia que vá ler no refeitório, no elevador, vai pro telhado, vai ler em outro lugar. Aqui no setor, não! E eu quero que isso fique bem claro de uma vez por todas!!! Aqui é lugar de trabalho. Vocês têm que enten­der que estão aqui pra trabalhar. Se querem chegar mais cedo, muito bem, mas é pra trabalhar. Aqui não é lugar de ler Bíblia! Vai arrumar outro lugar pra você ler isso!

E elas respeitavam, não desacatavam, não faziam cara torta. Simplesmente levantavam e se desculpavam:

— Tudo bem, a gente não quis incomodar. Tem alguma coisa que nós possa­mos fazer para ajudar?

Não tinha nada, àquela hora da manhã. Então eu dava o serviço predileto:

— O arquivo precisa ser arrumado.

Até que situações desse tipo deixaram aos poucos de acontecer. E eu já não escutava hinos e nem dava de cara com Bíblias no meu setor. Passaram-se os três meses e eu fui efetivado como Supervisor. Mas ainda não tinha conseguido arru­mar nada que as desabonasse. No entanto, só de raiva, tudo que eu pudesse fazer para criar algum tipo de problema para elas eu fazia, sem nenhum constrangi­mento.

Certa ocasião a Vanessa me procurou com um pedido:

— Eduardo, será que eu poderia sair mais cedo amanhã? É que eu e meu noivo estamos para fechar um negócio com um apartamento que pretendemos alugar, e tínhamos que ir até lá amanhã de tarde.

Eu passei de cara uma montanha de serviço para ela fazer e acrescentei, com cara lavada:

— Olha, Vanessa, por mim tudo bem. Se este serviço estiver em ordem, amanhã você fica liberada!

Ela tinha horas-crédito, se quisesse poderia nem dar as caras o dia inteiro. Mas eu não tinha intenção de deixá-la usar as horas assim, sem mais nem menos. Soube que naquela noite ela ficou até tarde na Empresa. E no dia seguinte chegou antes para conseguir dar conta de tudo o que eu a tinha incumbido.

Antes de sair para o almoço Vanessa veio à minha sala e entregou o serviço todinho, perfeito e em ordem, e simplesmente lembrou-me da promessa.

— O serviço está aqui, Eduardo. Eu vou almoçar agora e de tarde já não venho porque o meu noivo vai estar me esperando.

Como não tinha nada que eu pudesse fazer para segurá-la, inventei uma história daquelas. Nós estávamos às vésperas de receber uma Auditoria e então pedi a ela que me levantasse um processo de cinco anos atrás. Com a desculpa de que havia suspeita de um procedimento irregular naquele período.

— Infelizmente surgiu este problema, Vanessa, e a Auditoria está aí mesmo. Eu não tenho mais ninguém a quem confiar este serviço.

O problema é que os tais documentos estavam num arquivo morto da Style que ficava numa cidade um pouco além de Campinas. Eu sabia que até ela pegar o táxi, ir até lá, localizar o documento, tirar cópia e voltar para São Paulo...já era!

No dia seguinte eu soube pela minha secretária que Vanessa acabou chegan­do depois do término do expediente.

Eu estava crente que ela ia ficar de birra comigo, estaria brava e ia criar algum questionamento quanto à minha autoridade. E isso seria a deixa para mandá-la embora. Logo de manhã ela veio falar comigo. Eu procurei me desculpar, di­plomaticamente:

— Me desculpe, Vanessa, realmente foi um imprevisto, eu soube que você chegou muito tarde ontem!

— Ah, não tem problema, não, chefe! Meu noivo foi sozinho e, puxa, Glória a Deus! Deus deu pra gente um apartamento muito bom!! Estou super feliz e você não precisa se preocupar com nada.

Ela mantinha um bom humor e uma atitude submissa que me incomodava. E nada de eu conseguir cumprir o meu plano!

Resolvi dar o basta. Estava na hora de fazer um Feitiço contra elas e aí eu queria ver. Já era Mago mesmo! Sabia o básico para criar, sozinho, algum pro­blema que se fosse bem manipulado depois, podia me trazer o que eu queria.

Assim que me foi possível fiz o encantamento direto na mesa delas. Pronun­ciei as palavras certas, coloquei coisas nas suas gavetas, amaldiçoei aquele recan­to. Eu sabia que elas iriam adoecer.

Naquele mesmo dia, no final da tarde Vanessa e Tatiana já estavam visivel­mente indispostas, com febre e muita dor de cabeça. Não deixei ninguém sair mais cedo e nem tive nenhuma piedade em diminuir o ritmo de serviço das duas.

— Dando pra ficar, fica, né?

Isso foi numa terça-feira e elas faltaram o resto da semana por dispensa médica. Quando voltaram com o atestado, na segunda-feira, criei o problema.

— Mas esse atestado é uma coisa muito vaga, não? O que foi que vocês tiveram, afinal de contas? Foi uma gripe forte? Ninguém mais teve nada no de­partamento inteiro, só vocês duas.

Foi a Tatiana quem respondeu primeiro:

— Não sei bem o que foi que a gente teve, seu Eduardo. Foi muito esquisito! Dava febre o tempo todo, o médico disse que a princípio poderia ser mesmo só um gripe, mas não estava cedendo!

— Mas aí, no final de semana, como nós continuávamos ruim o Pastor ungiu a gente com óleo. Porque a gente freqüenta a mesma Igreja!                   :

Eu bufei comigo mesmo:

"As pragas são do mesmo bueiro! Ratos do mesmo bueiro!"

— Então... e depois da Unção com óleo acho que Deus deu o livramento por­que nós começamos a nos sentir melhor. — Continuou a Vanessa.

"Numa próxima ocasião eu vou fazer um Feitiço pra matar vocês", pensei outra vez com os meus botões, enquanto elas continuavam no "Glória a Deus" e "Aleluia". E continuei:

— Peraí um pouco. Esta história está estranha, vocês não acham, não? Todo mundo sabe que as duas são amigas inseparáveis aqui dentro. E as duas, simples­mente as duas, ficam doentes. Vão no mesmo médico... como é que pode uma coisa dessa? E vocês ainda querem me convencer de que o Pastor ungiu... e vocês sararam?! Por favor, né? Vocês são crentes e não deveriam estar mentindo desse jeito. Não é errado mentir, não? Não tá escrito isso na Bíblia em algum canto?!!!

— Não, não! — Sobreveio a Vanessa novamente. — Nós não estamos mentin­do! É a verdade, não sabemos mesmo o que foi que a gente teve.

— Então está muito bem. Eu quero uma segunda opinião. Vocês passem em um outro médico e me tragam um outro atestado.

E não é que elas voltaram com outro atestado? Eu pensei que haveria uma contestação por parte deles, mas não houve. E eu tive que dar a mão à palmató­ria. Depois do incidente ainda bati na cabeça, inconformado com o meu esqueci­mento:

— Por que não as mandei para um médico da Irmandade? Que comida de bola!!!

Mas aí já não tinha o que ser feito. Só que dei a cartada:

— Apesar disso tudo, pra mim esta história está mal contada. Estou de olho em vocês. Qualquer deslize a partir de agora... — E deixei nas entrelinhas.

Elas se empenharam e ficaram até tarde durante toda a semana, vieram ate no final de semana para conseguir por todo o serviço atrasado em ordem. E puse­ram. No início da outra semana estava tudo andando normalmente outra vez.

E aí, a novidade! Não é que as duas cismaram em me converter?!! Aquela era a última piada do ano!!!!! Na cabeça delas eu precisava de Jesus com urgên­cia. Fiquei sabendo disso um belo dia ao voltar do almoço. Passei perto da mesa delas e lá estavam as duas com a mãozinha levantada. Mas em silêncio. Elas sabiam o que eu pensava a respeito de orações dentro do setor.

— Mas o que que significa isso?!. — Eu não me contive diante da cena. — Que história é essa agora?!!

— Nós estamos orando. Mas bem baixinho, pra não atrapalhar ninguém, e nem o senhor!

— E precisa dessa mão levantada pra orar? Eu já não falei sobre isso?!

— Mas é que nós estamos orando por você! — Retrucou a Vanessa. Fui bem seco:

— Eu não preciso de oração. — E meu olho quase fuzilava.

— Sim, de fato não foi bem o que eu quis dizer. Você precisa de Jesus! Viu? Você... olha, me desculpa, viu? Você é nosso chefe, e tudo, mas você tem alguma coisa por dentro... só Jesus pode preencher isso! Você tem um vazio nessa sua alma.

— Não tenho, não, senhora! Eu estou muito cheio e muito bem, obrigado. Eu não preciso de Jesus coisa nenhuma! Quem precisa de salvação são vocês.

— Nós já somos salvas. — Tentou começar a Tatiana, sem muito sucesso.

— É. Nós já temos Jesus. E a Bíblia diz que aquele que crê no Filho terá a Vida Eterna.

Eu não conseguia ouvir nem mais uma palavra sobre aquela besteira. Estava louco da vida com tanta audácia. Minha vontade era dizer que na minha Bíblia estava escrito que o Poder seria dado à Força e a morte se destinava aos fracos.

"Suas vermes!...", pensei com ira.

E tratei de deixá-las falando sozinhas o quanto antes. Mas aí parece que cismaram mais ainda comigo.

— Você não quer orar com a gente? — Era o convite que vinha volta e meia. — Você não quer conhecer a nossa Igreja?

Eu resolvi que precisava saber aonde era aquela porcaria de Igreja. Elas fo­ram muito solícitas em me fornecer o endereço. E um dia eu passei em frente só para saber aonde ficava a "bênção".

Já tinha comentado algumas vezes com Marlon sobre Vanessa e Tatiana e ele só dava risada, despreocupado:

— Você precisa aprender a lidar com isso. Essa gentinha está em todo o lugar. Mas não se preocupe porque elas não oferecem perigo para você! Não têm nenhu­ma visão de batalha.

Mas depois que elas passaram literalmente a me perseguir, fiquei cheio. Um dia comentei na reunião do Grupo, indignado:

— Elas cismaram que agora vão fazer reunião de oração por minha causa, pra me converter. Isso não tem um pingo de cabimento! Eu preciso dar um jeito de vez nessas palhaças!

Eles deram risada mas resolveram ajudar-me a acabar logo com aquilo tudo. E Marlon ainda me garantiu:

— Em pouco tempo essas meninas vão parar de te incomodar.

 

Em pouco tempo o golpe já estava concretizado. Nove pessoas da Irmanda­de foram infiltradas naquela Igreja. Todos chegaram como crentes e com cartas de recomendação de outras Igrejas. Naturalmente nenhuma das informações foi checada e eles logo foram aceitos. A maioria era já muito especial, com "Ministé­rios" em andamento, com dons do "Espírito" que logo começaram a se manifes­tar, para deleite dos "irmãos".

Era muito fácil ludibriá-los a todos. Meus colegas da Irmandade eram pes­soas dóceis, carismáticas, cheias de boas intenções e loucas para "servir ao Se­nhor". E cheios de dons de revelação, em especial, o que faz muito sucesso no meio dos Pentecostais. Os Guias se incumbem de tudo, eles sabem mesmo de tudo. As curas são também muito bem vindas. É muito fácil tirar uma doença que o próprio demônio colocou. Até câncer é "curado" sem esforço nenhum. E os "levitas" tocam cheios de unção e de habilidade, conseguem levar o povo à ado­ração.

As informações eu colhia com as próprias meninas, no serviço. Elas me contavam tudo sobre a Igreja, certas de que eu estava de fato começando a me interessar pela vida espiritual.

— Nossa, como Deus fala com aquele irmão novo, que chegou agora. Ele é muito ungido! E ele cura também, coisa incrível como Deus atende as suas ora­ções. E não é só ele, não! Ontem mesmo teve uma palavra profética por boca de outro irmão.

Uma vez que os infiltrados ganharam a confiança e o respeito da Comunida­de, alguns já estavam até ocupando cargos de liderança, foi simples criar uma situação toda especial para difamar o Pastor. Foi enviada uma mulher da Irman­dade que esperou o momento oportuno para abraçá-lo e beijá-lo. Não foi nem na Igreja. Não seria necessário mais do que isso. Em poucos dias Vanessa comentou comigo, com os olhos muito abertos e o rosto um tanto ou quanto contristado.

— Imagine só... quem diria, não? O nosso Pastor foi visto com uma prostitu­ta.

— Não é boato, não? — Perguntei aparentando dar pouca importância ao as­sunto.

— Não! E verdade! Alguns irmãos viram ao vivo e à cores. Que coisa terrível! O Conselho vai se reunir neste fim de semana para ver o que fazer.

Eu não procurei saber dos detalhes porque a bem da verdade nem me inte­ressava. Mas o Pastor titular da Igreja foi afastado do Ministério que realizava e deixou a Igreja. No lugar dele assumiu um daqueles "abençoadíssimos" irmãos que tinham vindo da Irmandade.

Depois disso a Igreja estava com os dias contados. Os principais líderes nomeados foram justamente os infiltrados e a doutrina passou a ser sutilmente modificada. As diretrizes foram mudadas e pessoas que pudessem vir a ser em­pecilho de alguma forma iam sendo desestimuladas aos poucos. E, se necessário, podadas mesmo!

— Reunião de oração? Mas para que isso? Deus é Pai! Ele sabe do que nós necessitamos. Quem fez o ouvido, ouve. Não precisamos estar clamando pelas mesmas coisas todos os dias.

Os grupos foram destruídos, intrigas iam sendo criadas, o Louvor foi con­taminado, alguns foram atacados com enfermidades. Uma vez que a Igreja esti­vesse bem destruída nem seria necessário que todos efetivamente continuassem lá. Geralmente a maldição é tão grande e as pessoas tornam-se tão cegas que a bola de neve simplesmente perpetua-se por si mesma.

E eu soube tudo em primeira mão por Vanessa e Tatiana. Só dava corda:

— É mesmo, é? Puxa...e o que mais?! Vocês vão acabar me convertendo! Eu me divertia com aquilo. A conversa bíblica já não me incomodava por­que tinha se tornado irônica.

Nas reuniões de Celebração da Irmandade eu procurava conhecer quem eram os que tinham sido designados para infiltrar aquela Igreja. E dávamos risada a mais não poder.

— Pôxa, "irmão"! As meninas disseram que você é uma bênção! Quer dizer que você fez uma cura?!

— Pois é, fiz mesmo!

E era só "Quá, quá, quá"! Tudo era muito engraçado.

Mas enfim acabei conseguindo o trunfo que eu queria.

Eu já sabia que elas eram completamente inoperantes, a oração delas não atrapalhava em nada, mas ainda que realmente não tivessem o Poder de atingir-me eu não as queria por perto com todo aquele ímpeto Cristão. Elas tinham o coração sincero, é verdade, pena que isso não fosse o suficiente para manter o "Mal" do lado de fora das suas vidas. Tanto elas quanto a Igreja não tinham Poder de causar interferência.

Só que a atitude delas me incomodava, tudo soava como afronta! Dizer que estavam orando por mim era um insulto muito grande porque eu tinha muito ódio de Deus e muito amor a Lucifér. Para a Irmandade, Deus é muito pior do que o "diabo" para os Cristãos.

A gota d'água foi num dia em que cheguei à minha sala e a proteção de tela do meu computador tinha sido modificada. Estava escrito "Jesus te ama"!!! Eu me senti invadido por uma ira, uma ira tão indescritível que não poderia descrevê-la. A vontade que eu tinha era de acabar com a vida delas na mesma hora. Uma indignação sem parâmetros. Tentei amenizar a raiva, escrevi "Jesus é um...   e coloquei um palavrão. Deixei assim por alguns dias.

Saí que nem um furacão da minha sala e fui direto para a mesa dela. Só podia ser coisa da Vanessa. Todo mundo assistiu ao destempero.

— Escuta aqui, menina! Que coisa é essa de você ficar invadindo a minha sala pra escrever mensagem no meu computador?!! Meu computador é coisa privada, é coisa de serviço! Quem é que te deu ordem pra entrar na minha sala? Você quer fazer os seus evangelismos? Então vai pra rua, vai de porta em porta que nem Testemunha de Jeová, vai berrar na praça da Sé! Eu já te disse que aqui é local de trabalho!!!

Ela procurou humildemente se desculpar, desenxabida. Eu não escutei ex­plicações. Virei as costas e subi direto para a sala da Márcia, a Gerente.

— Márcia, eu quero demitir essa funcionária.

— Mas por quê? Ela está com a gente há tanto tempo! O que você alega?

— Olha, eu acho que ela não está produzindo como deveria. A conduta dela não é uma conduta que eu aprecio, acho que ela tem pouca iniciativa, eu quero alguém mais ativo aqui, quero uma pessoa menos robótica. Ela faz apenas aquilo que eu a mando fazer mas não apresenta sugestão, não tem iniciativa. Se aparece um problema qualquer ela não resolve sozinha, tem que esperar que eu diga o que fazer. Se eu não estou no setor por qualquer motivo o serviço fica por isso mesmo.

Toda aquela ladainha tinha uma certa parte de verdade mas também não era assim. O maior problema dela não era bem a incompetência, mas a timidez. Mas não quis nem saber, argumentei utilizando como maior argumento o fato dela não ter iniciativa.

— Eu quero um funcionário que, diante de uma situação emergencial, quando há necessidade de efetivamente resolver um problema isso realmente aconteça! Alguém mais dinâmico. Prefiro eu mesmo fazer o processo de seleção para pre­encher a vaga dela. Veja bem, eu herdei o departamento e embora o Sr. Stênio fosse ótimo ele tinha um traço de caráter meio paternalista. Acredito que muitos funcionários foram mantidos aqui em função disso. Mas a Empresa não é uma instituição de caridade, tem que ser fria e tomar decisões balizadas, não se deixar envolver pelo lado emocional da coisa porque senão perdemos a visão do negó­cio! Quero uma equipe de profissionais capazes. Eu estou de olho em outros funcionários também. — Aquilo não era verdade mas fiz parecer assim. — E estou submetendo-os a testes subliminares, de forma que eles não saibam que estão sendo testados. A medida que vou aumentando a complexidade do serviço vejo como estão se saindo. Mas a princípio vejo que a Vanessa realmente está desto­ando do grupo.

— Bom... eu vou ver, Eduardo. — Disse a Márcia. Eu precisava do aval dela. — Vou pensar, sua idéia parece boa. Se for aprovado o seu pedido abrimos primeiro um processo de seleção secreto e quando tivermos o novo funcionário, ela será demitida.

Fiquei satisfeito. Minha intenção era influenciar a Márcia através dos encan­tamentos para que ela tomasse a decisão favorável. E a decisão foi favorável. E eu a mandei embora. Assim que tive o aval para demiti-la chamei-a na minha sala:

— Olha, Vanessa...tenho uma coisa pra te dizer! Esse Jesus... eu acho que ele não te ama mais. Porque se Ele te amasse, teria conservado o teu emprego. Você precisa aprender que o mundo ainda é dos mais fortes. E o teu Deus está muito fraquinho, viu? Muito fraquinho! Aliás, a sua Igreja inteira é muito fraquinha. — E dei o voto de Minerva secamente. — Eu não quero mais ver a sua cara aqui dentro.

Ela simplesmente baixou a cabeça e murmurou:

— Sim, senhor. Se eu fiz alguma coisa errada eu quero que você me desculpe, foi inconsciente. Não tinha intenção de atrapalhar ninguém. — Ela sabia qual tinha sido o seu erro. — Me desculpe. Eu só quis o melhor para você! Que você tenha sucesso. Até logo!

Foi educada e não me desacatou apesar de saber que já estava no olho da rua. Quanto à outra, a Tatiana, eu ainda tentei armar a cama pra ela também, mas afinal não foi necessário. Ela parou com todo aquele papo de me evangelizar porque perdeu a companheira. Era a Vanessa a grande articuladora do negócio. Uma vez que se viu sozinha no departamento, Tatiana ocupou-se exclusivamente de serviço. Não tinha mais cantos e mãozinhas para o ar, nem Bíblias esvoaçando por ali.

E tive sossego.

 

Mas nem só agruras eu vivi na Style naquele período inicial. Naquele tempo entrou um estagiário no meu setor, um rapaz da minha idade que estava no último ano da Faculdade de Administração da USP, a FEA. Era um chinês de verdade, que tinha nascido na China. Seu nome era Wang. Minha primeira pergunta foi:

— Wang, você sabe Kung Fu?

— É... — Foi a resposta. — Um pouquinho!

Com a típica humildade oriental achei que aquele comentário no mínimo queria dizer que ele sabia horrores.

Nossa amizade nasceu e cresceu muito espontaneamente. Eu o convidei para fazer aula de Kung Fu comigo porque queria aprender com ele. Mas descobri que o Wang não poderia me ensinar, realmente não sabia quase nada. Ele que apren­deu comigo. Dei-lhe de cara uma bolsa para poder treinar de graça pois os estagi­ários não ganhavam muito.

Mas Arte Marcial à parte, no que dizia respeito ao serviço ele era muito inteligente e muito interessado. Diversas vezes eu joguei pepinos na mão dele, coisas que nem eu mesmo estava sabendo como me virar. Wang geralmente quebrava a cabeça, levava os problemas para discutir com os seus professores na Faculdade e vinha com alternativas muito boas. Eu acabei aprendendo muito com isso, apesar de não o deixar perceber que eu não sabia a resposta. Meu chavão era típico:

— Muito boa a sua solução, mas agora você precisa me convencer de que este é o melhor caminho. Como você chegou nessa solução? Por que fez desse jeito e não de outro?

Dando uma de professor, aprendia com meu aluno. À tarde, depois do expe­diente, não raro ficávamos junto com outros amigos brincando com os joguinhos importados de computador que Wang trazia. Eu não sabia ainda, mas minha ami­zade com Wang duraria muito mais tempo do que eu imaginava.

 

Apesar de tudo o que eu estava vivendo, às vezes acontecia de me bater um momento de solidão aguda. Eu tinha tudo mas calhava de vez por outra acordar no meio da noite querendo conversar com alguém. Lembrava de algo, tinha uma idéia ou uma dúvida. E queria conversar.

Um dia foi muito forte. Eu tinha assistido a um filme de Kung Fu e acordei com as cenas de luta na cabeça. Me lembrei muito claramente de um movimento que tinha sido feito no filme e que eu queria fazer igual. E realmente não consegui ficar deitado apesar de saber que tinha que trabalhar no dia seguinte. E desci para o porão.

Treinei um pouco. Até cansar. Mas o que eu queria mesmo era poder bater um papo com alguém. Subi outra vez e chamei o Roberto. Ele nem quis saber:

— Pô, não me enche o saco, Eduardo!

— Vamos conversar, vá, Roberto! Vamos descer um pouco e tomar um café!

— Me deixa dormir, isso lá é hora de conversar?! Não me incomoda, que cara mais chato! Me deixa dormir!

Desci. Também não adiantava querer ligar para Thalya, ela deixava o telefone na secretária eletrônica e não tinha como falar com minha alma-gêmea naquelas alturas. Ligar para Camila não teria um pingo de graça. E chamar o Marlon a troco de bobeira também não era lá o mais aconselhável. Seria muito constrangedor incomodá-lo por causa de nada. Mas eu estava mesmo aceso! Nada de aparecer o sono. Liguei a TV mas não estava passando nada de bom.... que droga!

Até que me veio a idéia.

"Vou chamar o Abraxas, por que não? Afinal de contas eu tenho o meu demônio! Ele é meu amigo!"

Várias vezes aconteceu assim. E naquelas noites de insônia quem era incomodado acabava sendo ele mesmo. Então fazia os encantamentos, chamava meu Guia. E pedia:

— Aparece! Materializa na minha frente. Às vezes... nada!

"Pôxa vida... nem ele quer falar comigo!"

E chamava mais ainda. Mas houve vezes em que ele não respondeu nem por um decreto! Me deu até nervoso!!! Bem umas três ou quatro vezes aconteceram esses ridículos episódios. Uma vez eu tinha tido um sonho estranho, num lugar esquisito, aí me veio o questionamento: "Como será que é o Inferno? Nunca ninguém me disse!"

E desci correndo ao porão para perguntar. Encantamentos e palavras mágicas.

— Abraxas! Abraxas!

Às vezes eu sentia a presença dele. E sabia que meu Guia estava ali, tinha atendido ao meu chamado. Dava até pra ver o contorno do vulto dele perto de mim.

— Ah, Abraxas, que bom que você veio! Sabe o que que é? Eu estava sonhando... e tive um sonho do Inferno! Mas eu não tenho idéia de como é o Inferno! Não daria pra você me contar um pouco? É bonito lá? Tem árvore? Tem animais?! Porque se o Inferno é bom, e é o que Lucifér tem de melhor... então eu imagino que no Inferno tem bichos, né? O Céu é que é um tédio, os Anjos ficam só tocando harpa o tempo todo...

Silêncio. Nada dele me responder. Só que eu sabia que ele estava ali.

— Pô, Abraxas! Vai dizer que você não vai querer falar comigo agora? É uma pergunta simples, só me diz se tem ou se não tem bichos lá, só diz "sim" ou "não", não precisa dizer mais nada!

Silêncio de novo.

— É...você não é mesmo meu amigo, né? Fala que está junto comigo, que me protege, tudo mais... mas não abre a boca pra responder uma coisa assim simples!

Às vezes ele respondia. Mas sempre de uma maneira seca, fria, muito diferente de quando estava canalizando o Sacerdote nas reuniões de Celebração. A impressão que dava era que ele estava cheio de mim.

"É mesmo... eu estou aqui incomodando um ser eterno como ele! Estou mesmo sendo muito crica!...... Chateando alguém dotado de uma sabedoria incalculável, eu, um moleque..."

— Não é o tempo de você saber essas coisas. — Disse ele por fim. — Além do mais, isso é irrelevante!

— Irrelevante nada! Se eu vou para a casa do meu pai um dia, quero saber se lá tem bichos ou não! Custa você me dizer se tem cachorro no Inferno, ou não?

Um pouco mais de relutância, e então ele respondeu: — Tem.

— Ah, que bom! Mas será que tem cachorro no Céu também? Se tem, isso quer dizer que tem cachorro que vai pro Céu e cachorro que vai pro Inferno... qual será o critério de escolha? Quero dizer, como é que são escolhidos os que vão pro Céu e os que vão pro Inferno?...

— Deus nunca afirmou que existem animais no Céu. Ele criou, mas ao mesmo tempo Ele os abomina. Se não fosse assim, os animais não sofreriam tanto nessa Terra. Nem Deus mandaria queimá-los, degolá-los! Mas tudo aquilo que Deus despreza, Lucifér ama. No Inferno tem tudo aquilo que Deus criou, mas não soube amar. Inclusive os animais.

Aí eu parava, pensava no que ele tinha dito. Concordava. E arrumava outra coisa pra perguntar.

— Bom, Abraxas, você é um demônio! Mas qual é a sua forma original? Você é feio ou é bonito? Porque você devia ser um Anjo, né? E o que que você fazia quando era Anjo?

E nada de resposta.

— Fala, o que você fazia?! Lucifér não era um Anjo também? Então conta, o que vocês faziam quando eram Anjos?! Aí quando vocês se rebelaram... deixaram de ser Anjos... mas vocês tinham algum cargo lá no Céu?

Silêncio total. Que raiva!

— Você tinha asa, Abraxas? Nada.

— Você tinha asa ou não tinha asa? Às vezes vinha uma frase:

— Não é necessário ter asas pra voar.

— Ah! Tá! Então você não tinha asa! — Mas até eu estava me achando chato. Que conversa! — Bom, tudo bem, já deu pra ver que você não quer falar sobre isso... mas me diz uma outra coisa: você gosta de morar no Inferno?

— É um local muito confortável.

— Que bom! Mas você não me respondeu aquilo que eu te perguntei primeiro: o que que você fazia quando era um Anjo?!?

Silêncio absoluto.

— Ainda tem muitos Anjos lá no Céu?

— Só os fortes saíram.

— Aaaaahhh! Então os fracos ficaram... por isso vocês escrevem "Poder à Força, morte aos fracos" naquele versículo do Livro de Leviathan? Vocês vão matar também os Anjos fracos que ficaram, não é isso? No dia da Guerra Final eles vão ser aniquilados! Mas tem uma coisa... vocês são eternos! Então como é que alguém eterno pode morrer?! Você morre, Abraxas?

Era uma conversa sem pé nem cabeça. Só eu fazendo perguntas e de vez em quando uma ou outra resposta.

— Puxa, você deve ter visto a História desfilando diante de você!... Você viu o Império Babilônico, o Império Romano... deve ter sido muito legal, muito legal mesmo! Será que quando eu morrer vou ter esse Poder de conhecer tudo que existe também? Heim? Será que isso vai acontecer? Ou será que isso está reservado só para os demônios? Vocês são muito privilegiados por serem demônios, sabia? Você gosta de ser um demônio?

E nesse dia Abraxas estava completamente mudo. Até que me irritei:

— Puxa, mas você não me responde nada! Estou aqui falando com as paredes! E perguntei de novo. — Você não vai mesmo me dizer o que você fazia quando era um Anjo?!

Abraxas me falou em tom meio seco:

— Você não tem sono, não?

Fiquei indignado com a pergunta. Vê só se isso era coisa para o meu Guia dizer para mim?!!

— Não, não estou com sono, não!

Mas imediatamente ele veio. Quase que nem deu tempo de acabar a frase e me deu um sono inacreditável. Incontrolável. Eu não conseguia mais abrir os olhos. E dormi ali mesmo no porão. Capotei!

Foi o jeito dele me calar a boca. Depois fui questionar o ocorrido na primeira oportunidade. Isto é, na reunião, quando ele estava canalizando o Sacerdote. Essas eram as boas ocasiões para conversar com ele, quando o chamado partia dele próprio. Aí fluía.

— Olha, aquele dia eu estava em casa conversando com você...e você me fez dormir!

— Não. Você que estava cansado e não sabia.

— Sei. Pelo jeito quem estava cansado era você! E deu um jeito de se livrar de mim.

— Não veja assim. Eu gosto de conversar com você! Você é inteligente.

— Então por que que você não me respondeu? Afinal, você é feio ou é bonito?

— Bom... o que é feio...e o que é bonito? Se tudo é relativo?! A minha forma pode agradar a você, e não agradar a outros. Qual o problema nisso? Eu posso me apresentar de uma forma agradável aos seus olhos. E essa mesma forma pode ser repugnante a outro.

Aquilo não respondia bem à minha pergunta, mas deixei por menos. Ele podia mesmo apresentar-se da forma como lhe conviesse melhor.

— Tá certo. Você tem controle pleno sobre a matéria. — Mas perguntei de novo: — E o que que você fazia quando era um Anjo?

Aí eu vi um olhar fixo pra mim. E ele não falava nada.

— Pô, Abraxas... mas o que você era?! Os Anjos têm funções, né? Fala, vai! Mas Abraxas ficou mudo. E não me falou.

 

Eu havia dormido em casa de Thalya após o Rito daquela sexta-feira. Acor­damos tarde no sábado e decidimos caminhar um pouco pelo Parque da Água Branca, próximo à casa dela, respirar ar puro e treinar um pouco de nunchaku.

Mais tarde, espalhados na grama e descalços, decidimos:

— Vamos chamar mais gente?

— Legal!

Ligamos para Rúbia, que também morava ali por perto, e para o Anel. Marcamos encontro no Shopping ali perto. Ariel chegou primeiro, usando roupas coloridas e alegres, bem disposto. O natural dele já era mesmo aquele jeito descontraído e extrovertido de ser, alguém que falava por dois. O cabelo loiro e arrepiado imitava o dos cantores de Rock.

— Estamos esperando a Rúbia!

Dali a pouco ela chegou. Rúbia era mais velha mas parecia criança quando era hora de divertir-se um pouco.

— Oi, gente? E aí?

Ela nos abraçou a todos e resolvemos tomar um café. Foi Ariel quem co­mentou:

— Sei que vocês dois já estiveram no Parque mas tem um outro lugar que eu conheço que é muito jóia! Com uma grama super-legal, e um moinho, sabiam? Um moinho de verdade!

Eu me interessei:

— Eu nunca vi um moinho! E se a gente fosse lá agora? Ariel topou na hora. Rúbia e Thalya foram na onda. — Então vamos!!

Saímos todos juntos e fomos na pick-up do Ariel. Thalya ainda teve tempo de telefonar para o Marlon, convidando-o também. Ele garantiu que nos encon­traria mais tarde, tão logo terminasse seus compromissos.

Chegamos no Parque, caminhamos bastante, fomos ver o moinho. A tarde já ia pelo meio e estava muito gostoso, sossegado. Ficamos sentados na grama jo­gando conversa fora, descontraídos.

Realmente Marlon foi ao nosso encontro. Ele sentou-se conosco na roda, aceitou pipoca e refrigerante.

Um pouco antes de irmos embora, Ariel e Rúbia conversavam acalorada­mente entre si e Marlon comentou, apenas comigo e com Thalya.

— Vocês já repararam como a Natureza é perfeita? Parecia somente um comentário sem maiores significados.

— É mesmo, né? Aqui é tão bonito!

— Pois eu acho que já é hora de vocês dois buscarem essa mesma perfeição. Em outros sentidos, é claro! Compreendem? A natureza só é perfeita porque ela está em harmonia com tudo à sua volta. Ela é plena e não há interferências. Da mesma forma, para que vocês sejam plenos há necessidade de haver alguns "desbloqueios".

— Como assim?

— Todo mundo já nasce com um potencial particular mas muitas vezes a Sociedade coloca as tão conhecidas barreiras. Como aprender a nadar. Com mais um monte de coisas acontece o mesmo, vocês sabem muito bem disso!

Ficamos escutando. Ele não fez rodeios.

— Quando os Portais são abertos vocês conhecem de fato o que é a simbiose com os mundos paralelos ao nosso. Seus ouvidos passam a ouvir o que normal­mente não se ouve; seus olhos vêem o que os olhos humanos não podem ver. Passam a ter visão além do alcance, contemplam uma Verdade que o mundo não enxerga. Por exemplo, vocês sabem que o negro absoluto não existe, o escuro absoluto. Existe, sim, uma incapacidade nossa de enxergar no escuro, o que é muito diferente. Mas o homem pode encontrar ferramentas que o capacitem a enxergar o escuro! Até certo ponto elas podem ser humanas... só que tudo o que é puramente humano é limitado. Mas o que procede de um contexto espiritual, das hierarquias superiores... é perfeito!

Marlon apoiou-se melhor e nos comunicou, sorrindo:

— É tempo de você começarem a abrir os Portais para que possam desenvol­ver suas capacidades de forma plena. Vocês têm experimentado uma Magia "in­fantil", extremamente limitada. É hora de virar essa página! Os primeiros Portais têm que ser abertos logo!

E fez analogia com um versículo bíblico que nós conhecíamos:

— Assim como os Cristãos sabem quando Deus está à porta — e bate —, os demônios também batem à porta buscando um acesso maior às suas vidas. É hora de vocês começarem a abrir estas portas. Naturalmente que os demônios não fazem "morada" em vocês, mas a abertura dos Portais representa um livre acesso deles à casa de vocês. Assim como vocês podem ir à casa deles... eles também podem vir à casa de vocês! A orientação nesse sentido já veio, vocês foram escolhidos para mais esse passo importante e eu me sinto muito honrado em poder ser o portador da notícia! Meus parabéns!!

E continuou a nos elogiar:

— O que está reservado para vocês é algo fantástico. Alegrem-se com mais este privilégio! Vocês são muito especiais.

E realmente nos alegramos muito com aquilo. Já sabíamos por experiência própria que tudo o que eles prometiam se cumpria.

— E o que nós temos que fazer? — Perguntou Thalya.

Ele nos deu algumas explicações acerca dos preparativos e nós voltamos empolgados para casa depois daquele sábado tão agradável. Era hora de tomar­mos banho e nos prepararmos para o Rito daquela noite, mais tarde.

Há basicamente três tipos gerais de Ritos dentro da Irmandade: os de Inici­ação, os de Adoração e os de Consagração. Os Ritos de abertura de Portais, dentre outros mais específicos, fazem parte dos Ritos de Consagração. As Festas anuais, realizadas em todas as passagens de Estação, são tanto de Consagração como de Adoração. E os Ritos de Iniciação acontecem sempre que se inicia uma nova fase de crescimento dentro da Irmandade.

A abertura dos Portais é necessária, em última análise, para que haja pro­gresso e crescimento. É sabido dentro da Irmandade que a abertura de todos os Portais leva a uma amplitude de ação cada vez maior dentro da Magia, até atingir-se a plenitude.

Existe, obviamente, uma grande diferença entre abrir-se um chakra por meio de Meditação... ou por meio de um Ritual Sacrifício. Nos demais seguimentos que lidam com o conceito dos chakras tem-se a ilusão de que é possível abrir todos eles, mas não existe realmente esta possibilidade fora da Irmandade. Todas as técnicas concentradas não seriam capazes de abrir mais do que dois ou três, quando muito, e de forma parcial e limitada.

Os Ritos Sacrifício são espelho de antigas práticas pagãs e o Satanismo moderno é uma evolução natural delas. Antigamente os sacerdotes pagãos ti­nham Poderes também. Mas o conhecimento e as capacitações não vinham a eles por mero acaso. Eram resultado dos Ritos oferecidos aos deuses conhecidos e cultuados naquelas épocas longínquas. Tais "deuses" são a manifestação camu­flada das Entidades demoníacas. O processo era o mesmo, isto é, existia um intercâmbio entre os seres humanos e os seus deuses através dos Ritos. E o povo recebia favores mediante pagamento.

Dentro dos Rituais da Irmandade existia agora uma complexidade muito maior e há necessidade de maiores pré-requisitos.

O Rito é um atalho — o meio mais rápido — de acessar as Entidades. Enquan­to as técnicas mais rudimentares que são difundidas em todos os outros segmen­tos que não o Satanismo levam meses, e até anos, para começar a produzir al­gum efeito real... a abertura do Portal através dos sacrifícios é praticamente ins­tantânea! Além do que a abertura dos Portais é plena e possibilita também o acesso às duas últimas Dimensões. As mais fortes.

Por isso nunca há como desenvolver o Poder pleno fora da Irmandade. As Entidades acessadas quando a abertura é incompleta são muito limitadas, de patente baixa. Dificilmente poder-se-ia encontrar alguém pertencente à Nova Era ou ao Espiritismo, por exemplo, capaz de fazer as coisas que os Satanistas fa­zem. Porque somente aos filhos Lucifér deu o direito de entrar em contato com as verdadeiras Hierarquias Superiores dos demônios, e acessar os Poderes mais pro­fundos das Trevas.

Até o presente momento eu era apenas um Mago e tinha passado pela Iniciação há dois anos. O único Portal aberto — na realidade, semi-aberto —, era o da Terceira Visão. Todo o meu preparo desde então tinha sido limitado pratica­mente à teoria e aos pequenos encantamentos. Por isso eu não tinha ainda poder para fazer quase nada: porque todos os meus Portais estavam fechados. Daí a necessidade de pedir ajuda a Marlon, Zórdico e aos outros.

De fato eu tinha me acostumado a brincar apenas com o básico. Mas agora tínhamos sido escolhidos para iniciar a abertura dos Portais. Era uma honra! Ninguém escolhe a sua própria hora. Os Guias é que sabem realmente quem está pronto ou não para receber o Poder, não há como cumprir protocolos. A sinaliza­ção tinha sido feita aos Sacerdotes. E, no nosso caso, Marlon trouxera a notícia.

Foi somente no dia seguinte que a "ficha caiu" de verdade dentro da minha cabeça. Faltavam ainda uns quinze dias para que chegasse a data do primeiro Rito. O preparo individual começaria nove dias antes.

"Pôxa...", raciocinei. "Mas para abrir os Portais... é preciso haver o derra­mamento de sangue!"

Fui direto perguntar a Marlon como é que ficava aquela história, depois de refletir muito.

— Marlon, deixa ver se estou entendendo bem... quer dizer que eu vou ter que participar do sacrifício? Olha, embora eu entenda que isso é necessário não dei­xa de ser uma experiência um tanto ou quanto fora dos padrões e...eu acho que não estou preparado para isso... ainda!

Nem de longe aquela idéia me soava agradável.

— Veja bem, Eduardo, não é assim como você está pensando. O seu Guia está com você e ele vai te ajudar! Quem te chama também te capacita. Se você permitir que Abraxas entre no seu corpo e canalize sua força através de você, tudo sairá direito. Nas primeiras vezes isso pode ser necessário. Lembre-se..."Poder à força...". Você será somente canal.

Os sacrifícios para a abertura de Portais são sempre de crianças: para o pri­meiro Portal, uma criança de um ano; para o segundo, uma criança de dois anos, e assim por diante, até nove anos. Quanto mais alto o Portal aberto, maior e mais poderosa é a Dimensão e a Entidade acessada.

Tais Rituais acontecem normalmente de sexta para sábado ou de sábado para domingo, sempre dentro da Lua Crescente. Dentre muitos fatores, a escolha dessa fase da Lua é porque há todo um simbolismo no que diz respeito ao "cres­cimento". Até a abertura do sétimo Portal a realização dentro da Lua Crescente simboliza o "Crescimento do Poder". No que diz respeito ao oitavo e nono Por­tais é um pouco diferente. É feito geralmente na Lua Cheia, o que simboliza "Plenitude do Poder".

Uma vez iniciado o processo existe uma seqüência, escolhida pelos Guias, dos Portais a serem abertos. O tempo total de abertura para todos eles varia. Pode levar até anos. Cada caso é um caso. E não existe como tornar-se Feiticeiro sem antes ter todos os Portais abertos.

O local também é determinado com antecedência. Em se tratando deste pri­meiro Rito o lugar escolhido foi mesmo no salão subterrâneo em casa de Zórdico.

Eu acabei concordando com a explicação de Marlon sobre permitir que Abraxas canalizasse o meu corpo, e me empolguei de novo. Eu queria o Poder. Estava cansado de depender de tudo e todos para as coisas mais corriqueiras.

Nos nove dias que antecederam o Rito eu aguardava ansiosamente para ter o meu pequeno momento individual de preparação. Me preparei o melhor possível.

 

Era uma sexta-feira chuvosa e fria. Estávamos às vésperas do Outono. Eu aguardava no ponto de encontro, em frente à Igreja na avenida Pompéia, vestido com a jaqueta jeans.

O carro chegou e Marlon espantou-se que eu estivesse tão mal agasalhado diante da frente fria. Emprestou-me o seu próprio casaco. Eu sempre quis ter um casaco como aquele! Parecia de detetive. E tão entretido eu estava com ele que a viagem até me pareceu mais rápida do que de costume.

Eu já sabia que abriria plenamente o sétimo Portal. Por ocasião da Iniciação eu o tinha aberto parcialmente para Abraxas e, por causa disso, já tinha adquirido visão espiritual aberta. Mas com a abertura total dele eu viria a ter de fato a visão além do alcance. Receberia um Poder sobrenatural ligado a tudo o que diz respei­to à premonição, clarividência, adivinhação e revelação.

Eu já tinha as técnicas. Faltava a capacitação. O Poder seria pleno a partir daquela noite.

Quando um Satanista faz uma previsão, ou lança um decreto, ele acerta com grande margem de precisão. Bem ao contrário dos gurus que vemos na televisão fazendo previsões tolas. As Entidades desconhecem a dimensão Tempo, eu já sabia disso. Mas agora passaria a experimentar de fato.

Chegamos defronte à casa e o portão foi aberto. Thalya estava um pouco mais quieta do que de costume, provavelmente pensando no Rito que se aproxi­mava. Mas tanto eu quanto ela estávamos calmos e confiantes. Ela já tinha aber­to também parcialmente o sétimo Portal na Iniciação, mas naquela noite abriria o quinto Portal.

Já sabíamos quais seriam as Entidades envolvidas naquela Cerimônia e que a partir de então viriam a ter legalidade para relacionar-se conosco. O sétimo Portal, no meu caso, serviria a um outro demônio muito poderoso, mais poderoso do que Abraxas. Ele queria manter maior contato comigo e iria utilizar-se do mesmo Portal.

Abraxas tinha sido o escolhido por Lucifér para me acompanhar. Mas existe uma ordem hierárquica ligada ao próprio Abraxas. No caso, da mesma forma que existe uma série de legiões abaixo dele, isto é, subordinadas a ele, existem tam­bém algumas acima porque Abraxas estava inserido no Quinto nível dimensional. Há Entidades do Sétimo e Nono nível que são como "comandantes" dele. E to­dos estes estão subordinados a Leviathan.

Quando eu dei a legalidade para Abraxas entrar no meu corpo, mais tarde esta legalidade estender-se-ia para todas as legiões comandadas por ele. Isto é, eu poderia ter acesso e envolvimento com elas, e elas comigo. Do mesmo jeito isso aconteceria com a nova Entidade com quem estava prestes a entrar em contato, Adramelech.

Adramelech seria o convidado daquela noite para entender-se comigo, um demônio do Sétimo nível dimensional. Ele foi um dos deuses antigamente cultuados na Assíria, onde o Povo de Israel passou seu exílio, e é uma Entidade de cegueira espiritual e destruição. Eu precisaria dos Poderes desse demônio no futuro para cegar as pessoas diante das operações que teria que realizar, para tornar-me escondido e proteger-me. Adramelech e as legiões que o servem fazem parte dos demônios que protegem a Irmandade nesse sentido. Neutralizam a ação de terceiros contra a Organização.

E eu já tinha recebido um pequeno vislumbre do meu destino, do lugar no qual seria usado e, portanto, precisaria daquele revestimento especial.

O carro serpenteou pelas alamedas. Já havia bastante gente ali, a julgar pelo número de veículos estacionados. Conversamos um pouco, nos cumprimenta­mos, mas logo descemos para o porão porque a garoa se intensificava.

As casas são interligadas por uma grande galeria e percorremos o caminho até um salão um pouco menor do que o Átrio Ritual convencional. Eu já o conhe­cia de ter passado perto, mas nunca participara de nada que tivesse sido feito ali dentro. Era reservado para algumas Cerimônias mais especiais.

Preparei-me em silêncio, vesti o meu manto e aguardei Marlon e Thalya para que entrássemos juntos. Naquela noite não estariam presentes todos os mem­bros do nosso núcleo. Ao invés de cinco mil pessoas contaríamos com cerca de apenas seiscentos participantes naquele Ritual de abertura de Portais.

Quando desci as escadas para entrar no salão ao lado de Marlon atravessei uma cortina grossa e negra que separava os ambientes.

"Nossa...", pensei. "Para variar... parece um cenário de um filme".

A impressão foi muito forte. E tantos eram os detalhes do salão! Ele estava preparado de um jeito todo diferente e havia muitas minúcias. Extremamente adornado, extremamente luxuoso, era realmente bonito ali dentro.

Logo na entrada duas lanças enormes cruzavam-se sobre as nossas cabeças. As paredes eram de grandes blocos de pedras e arcos cruzavam-se em cima, na abóbada, dividindo o salão em gomos.

A iluminação feita por tochas laterais conferia ao ambiente uma claridade característica, como uma noite de Lua Cheia. No centro, perto do altar, as duas características piras de fogo cujas bases eram muito, muito ricas de desenhos em relevo.

O altar era bem grande e tinha um Gongo sobre ele, imenso, bonito. No Gongo, o desenho de um triângulo, e um olho dentro do triângulo. Nas laterais do altar, duas armaduras. Um Pentagrama muito grande se destacava ali em cima.

Havia um também em cada parede.

Caminhei devagar sentindo o odor perfumado que se desprendia dos vasos de incenso. O ar já estava impregnado dele. A fumaça habitual também já se fazia presente. Respirei fundo e, junto com Thalya, afastei-me de Marlon para acom­panhar o grupo que participaria do Rito daquela noite.

Seríamos cinco pessoas.

Esperamos até que o horário cravado desse início à Cerimônia. E então, em meio aos cânticos que já se iniciavam, subimos ao altar e nos posicionamos sobre o Pentagrama. Em cada ponta dele já estava marcado o nome de quem ficaria ali. Meu lugar fora reservado sobre a ponta que correspondia à barba do bode, à cabeça do homem, o lugar de maior destaque. Thalya ficou à minha esquerda.

Dali eu podia ver Marlon, sentado bem em frente, e Rúbia perto dele. Ariel estava logo atrás junto com Górion, Aziz e Kzara.

Nós cinco tínhamos que ficar com os capuzes bem posicionados e bem rente ao rosto até que os demônios aparecessem. Assumimos a posição de lótus e aguardamos enquanto o Ritual tinha início.

 

O processo ritualístico todo duraria seis horas, até ao raiar da manhã. Nove momentos diferentes teriam lugar, cada um deles marcado pelo soar do Gongo.

Um momento muito solene foi a leitura de um trecho do Livro dos Grimões original, algo que tínhamos o privilégio tremendo de ver ao vivo e à cores. Foi lido o texto em aramaico e depois explicado em português. Naquele dia não pude ver o Livro de perto, mas mais tarde eu poderia fazê-lo. Sem encostar nele.

De fato parecia escrito com sangue, a julgar pela coloração das letras, e tinha muitas gravuras. Na capa, um caldeirão e um Pentagrama. Do caldeirão sai uma fumaça que forma como que a figura do bode. Por trás dele há algumas estrelas, uma representação do Universo. A impressão é que o conhecimento da­quele Livro é universal e ultrapassa o limite das Gerações.

Aquele era um momento muito importante de nossas vidas dentro da Irman­dade, um momento mágico e sobrenatural. Não estávamos ali por acaso. Aquele era um novo começo. Novamente seria adicionado "Poder à nossa força". Aquele ato era individual e conjunto ao mesmo tempo, todos os que estavam ali eram participantes da mesma aliança.

Depois da leitura e explanação do Livro dos Grimões deu-se o Juramento. Comandados pelo Sumo Sacerdote todos os presentes juraram em alta voz man­ter segredo daquele momento, colocando em juízo a própria vida e sanidade mental, bem como a vida e a sanidade mental de seus familiares.

Qualquer dos presentes que porventura deixasse vazar informações a res­peito do Ritual e do Pacto da Irmandade seria amaldiçoado e pagaria com a pró­pria vida. Os presentes estavam ali com o intuito de somar forças, de tornarem-se um só corpo uns com os outros. A traição não seria jamais perdoada.

Toda a assembléia por fim estendeu as mãos sobre nós e jurou fidelidade absoluta e incondicional, mútua proteção, permanente ajuda e íntima unidade conosco.

A seguir foi lido um texto do Livro de Leviathan, na Bíblia Satânica. Aquele que tinha sido injustiçado, Lucifér, agora tinha o Poder de revidar. Ele próprio nos conferia o Poder de fazer justiça.

E seguiu-se um momento de júbilo com muitos cânticos e pedidos às Entidades para que nos presenteassem com a sua presença naquela noite.

 

Tudo passou muito rápido, parecia que estiváramos inseridos numa dimensão de tempo diferente. Durante todo o decorrer do Rito eu procurei permanecer atento a tudo o que acontecia à minha volta apesar de estar com o rosto parcial-mente coberto pelo capuz. Quase que nem pude ver Thalya porque ela permane­ceu a maior parte do tempo com a cabeça baixa. As sensações se misturavam, por vezes até mesmo contraditórias. De um

lado eu me sentia totalmente assombrado, considerando se realmente estava ali fazendo parte de tudo aquilo. Mas também senti o júbilo que me invadiu mais e mais no decorrer da madrugada, exatamente como todos os convidados no salão.

Que privilégio. Aquele lugar era para poucos! Não sentia medo de espécie nenhuma, mesmo porque Marlon estava perto. E toda a comunidade era sempre tão acolhedora, lançando-nos olhares cheios de ternura e aprovação.

Aquele momento era quase o clímax da Cerimônia. Os Sacerdotes sobre o altar eram sete, dentre eles Zórdico, e diferentemente encontravam-se dois Su­mos Sacerdotes. Akilai e um outro, cujas vestes eram diferentes das demais. Du­rante todo o tempo os Sacerdotes deram forte suporte à Cerimônia fazendo algo como uma invocação em concordância, pedindo que as Entidades agraciadas com a abertura dos Portais — ou os seus representantes — pudessem estar vindo e sen­tindo-se bem no nosso meio. Era uma junção de Poderes para um fim comum.

O Sumo Sacerdote que efetivamente presidiu toda a Cerimônia não me era familiar. Tinha um forte sotaque norte-americano. Era muito claro de pele, com cabelos loiros.

Por fim, em meio aos cânticos e ao rufar dos atabaques ele adiantou-se e tocou nossas cabeças, um por um, num ato muito solene. E parabenizou-nos pelo presente que estaríamos recebendo naquela noite.

O gongo tocou pela oitava vez. Havia um estranho prenuncio no ar.

 

Eram sete crianças ao todo nesse dia, de diferentes idades. Estavam todas desacordadas e envoltas em mantos vermelhos. Foram posicionadas lado a lado com muito cuidado sobre a mesa.

O Sumo Sacerdote estrangeiro ofereceu a primeira criança diretamente às Entidades. Elevou-a acima da cabeça para que o príncipe mais forte tomasse ele mesmo aquela vida. Começou a falar as palavras de encantamento e enquanto falava de repente a sua voz mudou completamente. Percebi a canalização de for­ma muito clara.

Mas o rosto dele tinha mudado tanto... já nem parecia um homem... uma mu­dança absurda...! Estava parecido com um lobo!

"Será que eu estou mesmo vendo isso?!!"

O manto vermelho que envolvia a criança foi arrancado do nada, com muita violência. Eu ainda não estava vendo a Entidade.

O Sumo Sacerdote falava com voz potente, ecoava por todo o ambiente. Subitamente foi como um trovão, um verdadeiro rugido! Senti a vibração percor­rer o meu corpo. Não sei exatamente o que aconteceu porque fechei instintiva­mente os olhos por uma fração de segundo. E o corpo já estava sangrando.

Depois o Sumo Sacerdote canalizado tocou com sangue em cada um de nós, no Portal que seria aberto, fazendo um Pentagrama em cada ponto. Até a textura da pele dele estava diferente, não parecia pele humana, senti-a estranha quando me tocou.

A segunda criança foi oferecida por ele mesmo.

Houve júbilo no salão. Davam gritos, batiam palmas, ergueu-se um verda­deiro clamor.

Atabaques.

O nono soar do Gongo.

Naquele momento o uivo de um estranho instrumento musical se fez ouvir, lúgubre, melancólico.

E a vibração estranha no ar começou a crescer, aquela presença, aquele... não saberia descrever.

Eu não estava enxergando nada ainda. Mas percebi que Marlon olhava de uma forma que me dizia que ele já estava vendo tudo o que se podia ver. Rúbia também. Mas eu somente contemplava o vazio. Só que sabia que eles já estavam lá.

Então, um a um fomos chamados pelo Sumo Sacerdote. As mãos dele eram impostas sobre nós, algumas palavras de encantamento eram faladas. E ele nos orientou que poderíamos pedir a canalização naquele momento.

Eu me levantei sentindo a descarga de adrenalina muito forte. Eu tremia levemente por dentro, como se estivesse com frio. Mas sabia que era por causa de Abraxas. Evitei olhar demais para a mesa. A marca já estava feita no local aonde deveria ser desferido o golpe, de acordo com o Portal a ser aberto.

Cumpri os passos Rituais e, por fim, autorizei a canalização.

Uma descarga elétrica me percorreu, indescritivelmente intensa. Nunca ti­nha sido assim. Nunca tinha sido plenamente canalizado daquela forma. A sensa­ção é que iria dali para o chão. Mas algo parecia sustentar-me. Um calor estúpido me subiu instantaneamente, os músculos retesaram-se de imediato e os olhos ficaram muito quentes. O ar entrava de uma maneira vigorosa como se eu preci­sasse de muito oxigênio.

A descarga elétrica continuava rodando o meu corpo, em ondas. O coração parecia querer saltar para fora do peito!

Perdi totalmente o controle sobre o meu corpo, mas não a consciência. Vi tudo o que aconteceu.

A força foi sobrenatural naquele instante.

E ódio. Ódio. Ódio!!!!!!!!!!

Quando Abraxas deixou o meu corpo desabei pesadamente no chão.

Eu estava todo dormente, como se tivesse recebido uma anestesia de dentis­ta. Formigava. Uma zonzeira leve tomava conta da minha cabeça.

Dois Sacerdotes me tomaram por baixo dos braços com cuidado e me leva­ram de volta para o Pentagrama.

Fiquei ali tentando me recuperar daquilo. Não consegui ver mais nada e nem ninguém. Eu tinha sido o primeiro e não pude acompanhar os outros, nem mes­mo Thalya.

Depois que todos estávamos recuperados o Sumo Sacerdote voltou e tocou a cada um de nós nos olhos. E novamente aquela indescritível visão, semelhante ao dia da minha Iniciação. Normalmente eu não tinha visão completa do mundo espiritual à nossa volta. Foi novamente um choque tremendo. Parecia que já não estávamos mais naquele mundo e pude ver os demônios: eram cinco, um para cada um dos nossos Portais abertos.

Os cinco Guias pareciam humanos, só que muito grandes e muito fortes, a musculatura tremendamente trabalhada e definida. Mas os pés eram como cas­cos de animais. Reparei nos braceletes de ouro cheios de inscrições.

Adramelech era bonito, de pele muito lisa. Tinha o sorriso branco e perfeito.

Incongruência...?

 

Os Sacrifícios Rituais eram muito raros durante as reuniões de Celebração semanais. O objetivo daqueles eventos era outro, isto é, era uma Celebração mesmo, comunhão entre nós e os demônios. Tanto é que o nosso Átrio habitual nem tinha os aparatos necessários para tal. Porém às vezes acontecia, como fruto de uma orientação especial.

Akilai tomava a palavra e dizia:

— Nesta noite nosso pai, Imperador absoluto das Trevas, o príncipe deste mundo, pede uma oferta de sacrifício.

Todos nós sabíamos o que isto significava. Havia dois caminhos:

Algumas pessoas eram destacadas para trazerem a oferta na próxima reu­nião; ou então... alguém voluntariamente podia oferecer-se para a entrega. Pode parecer estranho, mas morrer em oferta voluntária é considerado um enorme pri­vilégio. Pois serão transportados imediatamente para a dimensão do pai, para a casa eterna, com Poder e glória!

Tal procedimento também era natural nos Ritos antigos, em especial dos Astecas, onde garotas adolescentes eram oferecidas aos deuses de forma volun­tária e com alegria. Quando isto acontecia na reunião da Irmandade, a pessoa evidenciava-se na hora e passava por um preparo especial durante toda a semana, até o próximo encontro.

Em raríssimas ocasiões o ato é realizado na hora.

Mas a verdade é que eu tinha visto muito pouco dessas coisas. Desde a minha Iniciação tivera pouquíssimo contato com os sacrifícios. Estava claro que esse tempo estava terminado.

Por isso foi-me dado um embasamento a título de esclarecer melhor porque o meu processo de abertura de Portais estava acontecendo em uma velocidade um pouco acima da média. Durante todo o mês de março e abril o processo con­tinuou ininterrupto, aproveitando-se o início e o fim das Luas crescentes. Os Ritos foram basicamente semelhantes, com leves nuances peculiares a cada um.

Aconteceu tão depressa que eu não tive tempo de me questionar a respeito. Pensei que era apenas porque estávamos dentro de um período privilegiado, afi­nal março era o mês em que Leviathan inicia o seu ciclo e está mais forte. E ele é o Principado que se encontra sobre o Brasil. E também porque Abraxas é um dos príncipes de São Paulo. Pareceu-me então que o período era simplesmente favo­rável e tinha que ser aproveitado.

Mas quando começou o mês de maio vi que o processo ia continuar. Eu tinha tido três Portais abertos em março e abril. Na primeira semana de maio abri o quarto Portal. Mas a coisa não parou por aí. Aparentemente eu deveria comple­tar o quanto antes essa etapa.

Marlon avisou-me que eu participaria de uma Cerimônia muito especial ain­da no final daquele semestre, também com o intuito de abrir Portais. E me disse que nesse único evento seriam abertos — inacreditavelmente — três portais!

Eu me espantei e indaguei:

— Ué?! Mas pode isso? Por quê?! Marlon ainda sorriu e respondeu de forma bem curta:

— Pode porque você é especial, Rillian!

O meu ego vinha sendo constantemente massageado e aceitei aquela expli­cação sem maiores questionamentos. Embora um Ritual naquelas condições fos­se contrário a tudo o que eu já tinha aprendido. Enfim...

Preparei-me então para abrir o Portal do estômago juntamente com os Por­tais do coração e do plexo solar.

 

Eu não sabia ainda mas meu pai Lucifér tinha pensado e preparado para mim, como uma dádiva muito especial, aquele Rito fora dos padrões normais. Não somente haveria a abertura de três Portais de uma só vez mas também o sacrifício oferecido não seria convencional.

Ele, ou melhor... ela tinha sido escolhida com muita antecedência. Para dizer claramente, com nove meses de antecedência, desde antes de eu começar a pen­sar no processo de abertura dos Portais. Pelo menos... foi o que me disseram.

Era uma mulher que já tinha sido escolhida para entrar logo na presença de Lucifér. Para cruzar a barreira da morte. Para oferecer-se a si mesma em sacrifí­cio voluntário.

Coisas como essas só aconteciam porque tínhamos conosco a certeza de que era muito bom estar logo em casa de nosso pai, na dimensão dos demônios, onde o Poder é absolutamente perfeito e infindável. Nosso lugar de descanso é bonito, agradável, aprazível! Afinal de contas, Lucifér sabe muito bem o que agrada ao homem. Toda a essência dele visa proporcionar ao homem algo agradável.

Por isso nós sabíamos que o Inferno, a nossa morada eterna... era belíssima!

 

Viajamos para outro estado no dia do Ritual, logo depois do almoço.

Eu, Marlon e Thalya fomos juntos, como sempre. Como havia que manter uma dieta específica comemos apenas raízes e verduras, mas foi muito bom do mesmo jeito. Era a primeira sexta-feira do mês de junho.

Eu já sabia que aquele Rito seria diferente dos demais, mas não exatamente como seria. O interessante é que assim que o carro deu as primeiras voltas rumo à estrada tanto eu quanto Thalya literalmente "capotamos" e dormimos todo o percurso. Ninguém acordou para nada. Foram horas e horas de sono ininterrupto.

Despertei com o sacolejo do carro numa estrada estreita de terra.

Aprumei o corpo procurando espantar o sono e olhei pela janela do meu lado. O caminho por onde o veículo passava não era muito maior do que um túnel pelo meio do mato. A folhagem densa ao redor esbarrava nas portas e no capo. Onde será que nós estávamos?!!!

Finalmente saímos de dentro do matagal e pude avistar o vale lá embaixo. Era uma fazenda linda, linda, a perder de vista, protegida pelos montes que a circundavam. Havia plantação de milho, café, algodão e cana-de-açúcar, pelo que parecia. Tinha gado também, cavalos. Parecia extremamente próspera.

Chamou minha atenção o galpão enorme, como um celeiro gigantesco, mais ou menos perto da casa principal. Havia ali também uma fileira enorme de pe­quenos alojamentos um ao lado do outro, parecia ser um lugar para abrigar traba­lhadores. Mas depois fiquei sabendo que aquele enorme número de alojamentos era para hospedar as pessoas da Irmandade, quando havia algum evento de proeminência a ser realizado ali.

Nem bem apeamos do carro e um homem simpático já nos aguardava à por­ta. Era até que jovem, e apresentou-se com o nome de Taolez. Ele estava bem à vontade com camisa xadrez azul e calça jeans. O abraço foi muito caloroso e amigável, ele brincou com todo mundo e logo nos levou para dentro.

O lugar era muito aconchegante, com decoração pitoresca e de bom gosto. Sentamo-nos na varanda ampla que circundava toda a casa. E tomamos um chá com biscoitos recém saídos do forno para nos revigorarmos da longa viagem. Os biscoitos estavam quentinhos.

Entardecia. O sol já tingia tudo de vermelho e dali a vista era belíssima. Conversamos muito informalmente durante um tempo, contamos piada e demos risada todos juntos.

Então Marlon interrompeu, e falou com seriedade e sinceridade ao mesmo tempo:

— Sabe, Taolez... é uma honra muito grande para mim acompanhar o Rillian e a Tassa. Este jovem casal tem um papel muito importante na estratégia futura. O Rillian é uma peça que será muito especial dentro da Irmandade e foi um privilégio ter sido escolhido pelos Guias para acompanhar de perto o seu cresci­mento. Hoje eles estarão participando de mais uma etapa nesse processo de de­senvolvimento, desbloqueando mais e mais tudo o que impede a plenitude.

Voltou-se para mim e disse algo que não entendi:

— Você vai ter um papel fundamental no final do Terceiro Ciclo! — Eu já estava acostumado que no momento certo todas as coisas vinham à luz, por isso não fiz perguntas. — Seu lugar será estratégico e muito importante nesse período! E você será revestido de Poder como nunca sonhou. Existe uma urgência nisso, em que você esteja completamente preparado no momento certo. Por causa disso — do seu chamado — hoje você vai passar por uma experiência ímpar. Esteja prepa­rado!

Taolez ouviu com atenção e bateu fraternalmente no meu ombro, sorrindo. Fiquei calado apesar de sentir-me lisonjeado com o voto de confiança que Marlon sempre me dava diante de todos. Taolez não era qualquer um. Soube que naquela época já era Sacerdote.

— Esse momento que você vai viver hoje foi separado há tempos, com exclu­sividade. Seu pai Lucifér semeou para você. Esse momento é seu, Rillian!

Sorri mas novamente não disse nada. Não sabia do que estavam falando. O melhor era descontrair um pouco a cabeça. Fui assistir com Thalya a um filme de vídeo, e foi muito legal. Depois da janta percebi que as pessoas começavam a chegar. A maioria já se dirigia direto para o local da Cerimônia: o enorme celeiro!

 

Lá pelas dez e meia da noite sentei no jipe ao lado de Thalya. Marlon e Taolez foram no banco da frente. Rumamos em direção ao galpão. Eu sentia um misto de regozijo e ansiedade. Meu corpo estremecia por dentro.

O galpão era aconchegante, bem iluminado por luzes naturais, sem tochas. E havia muita gente! Sem dúvida muito mais do que as costumeiras cinco mil pessoas. Deveria haver ali gente de vários estados. Alguns eu reconheci, faziam parte do núcleo de São Paulo. Rúbia estava por ali, Zórdico e Ariel idem, bem como todos os participantes do meu Conselho.

A Cerimônia em si não diferiu muito do que eu já estava acostumado em se tratando de Portais. Dividia-se em nove partes e a seqüência básica era a mesma. Os atabaques tocaram, os Gongos também. Foi lido novamente o Livro dos Grimões. Houve muitos cânticos e encantamentos.

Os participantes nesse dia eram dezoito. Todos nós estávamos ali com o mesmo fim. Mas, excetuando Thalya, mais ninguém me era familiar. Eram pes­soas que vinham de outros Núcleos espalhados pelo Brasil.

 

Chegou o grande momento esperado por todos. A atmosfera estava elétrica!

Nós estávamos acomodados em volta de um único Pentagrama, sentados em círculo, sobre o altar.

O Sumo Sacerdote, que eu também não conhecia, ofereceu um sacrifício de um jovem que tinha a nossa idade, mais ou menos 20 anos. Todos nós, os dezoito participantes, girávamos em torno disso. Até aquela ocasião eu nunca tinha visto alguém adulto ser sacrificado.

Logo depois foi feito um brinde e nós bebemos do seu sangue misturado com vinho e ervas. Na mesma taça.

E então começou a seqüência de Ritos Sacrifícios oferecidos pelos partici­pantes. Foi de fato muito diferente porque em alguns casos três, ou até cinco pessoas seguravam a adaga ao mesmo tempo e ofereciam um único sacrifício. Outros iam sozinhos. Tudo conforme havia sido requerido pelos Guias.

Dessa vez eu fui o último. Mas reparei que não havia sobrado nada para mim. Todas as crianças já haviam sido entregues. Esperei um pouco diante do Sumo Sacerdote e então, completamente canalizado pela Entidade, ele deu uma ordem em voz extremamente potente:

— Abadom pede agora: aquela que foi escolhida para estar hoje mesmo na presença de Lucifér... que se levante perante esta assembléia!

Uma mulher jovem ergueu-se de onde estava sentada. Todos os presentes exultaram com grande entusiasmo. Gritos e palmas e vivas inundaram o ambien­te. Ela retirou o manto negro deixando ver claramente o ventre proeminente. Estava no nono mês de gestação.

Ela subiu ao altar em meio aos gritos de todos os presentes. O Sumo Sacer­dote fez um Pentagrama sobre o seu abdome, representando o número cinco. O número sete foi feito dentro do próprio Pentagrama. E foram desenhados ainda três seis sobre ela.

Compreendi enfim o que se destinava a mim de forma tão especial. Iam ser abertos três Portais e três vidas seriam tomadas para isso. A mulher estava grávi­da de gêmeos.

 

O Sumo Sacerdote ergueu o braço sobre mim, pediu que eu estendesse a mão esquerda, aonde eu tinha a marca, e repetisse algumas palavras. Tomei a taça e bebi mais do seu conteúdo. Ele fez marcas e cruzes de ponta cabeça sobre os Portais que eu estaria abrindo naquela noite.

Declarei novamente minha herança como filho das Trevas e dei legalidade aos demônios para que entrassem na minha vida e no meu corpo através daqueles Portais.

Fiquei no centro do Pentagrama. Foi-me dado o direito de ler eu mesmo alguns trechos da Bíblia Satânica. Houve mais urros e manifestações de júbilo. Os atabaques tocaram euforicamente, e incrível! O Gongo também! Percebi que aquela parte da Cerimônia realmente dizia respeito somente a mim. Todos os outros sacrifícios já tinham ficado para trás.

Finalmente ergui os braços para cima, com as pernas afastadas, represen­tando o homem pleno sobre aquele Pentagrama. Ao erguer o rosto fechei os olhos e dei liberdade para ser canalizado.

A canalização foi como eu jamais tinha experimentado. Mais ainda do que das outras vezes. Senti uma descarga impressionante e fortíssima por todo o meu corpo, instantânea e poderosa. Perdi totalmente o controle muscular.

Meu corpo tremia, simplesmente tremia inteiro, muito rápido, em movimen­tos involuntários, como uma convulsão. E me vi tomado por uma força descomu­nal. Não sei se foi Abraxas quem canalizou. Eu já tinha outros Portais abertos e outros demônios que me acompanhavam, bem como suas legiões.

Houve um desfalecimento completo e não vi mais nada. Perdi completamen­te a consciência. Foi a primeira vez que isso aconteceu. Nas outras vezes eu perdia o controle dos movimentos mas não a consciência. Dessa vez a perda foi integral.

 

Quando voltei a mim eu estava no meio do grupo de Sacerdotes canalizados, deitado sobre um outro Pentagrama. Eu havia sido encaixado perfeitamente ali, como se ele tivesse sido confeccionado com as minhas medidas Os Sacerdotes que me rodeavam impunham as mãos sobre mim ritualisticamente, me consagra­vam, liberavam mantras sobre minha vida.

Me levantei, ainda mole e atordoado, meu corpo formigava e parecia que eu não tinha força nenhuma em mim mesmo. Vi de relance o que tinha sobrado do sacrifício. Só então me dei conta do sangue nas minhas vestes, na minha boca, e do braço que estava arranhado com as unhas daquela mulher.

 

O Sumo Sacerdote, à minha esquerda, e Marlon, que tinha surgido do nada, me apresentaram diante de todos.

E todos se prostraram perante mim!! Aquelas milhares de pessoas estende­ram a mão na minha direção e todos repetiram as palavras que o Sumo Sacerdote leu no Livro dos Grimões.

Vi a manifestação física de Abraxas ali perto e senti sua presença poderosa. Ele apareceu com um traje imponente, como que de gala, como eu ainda não tinha visto. Mas não vi os outros demônios nessa ocasião. Acho que teria sido um baque emocional grande demais. Talvez Abadom, Azazel e Mênphus tenham pre­ferido me poupar naquela ocasião.

Abraxas olhou na minha direção sorrindo, como se estivesse muito contente com tudo, e me lançou um gesto de aprovação.

 

O Ritual terminou ao raiar da manhã. Uma grande confraternização estava sendo preparada. Todos tinham liberdade para estarem bem mais próximos ago­ra.

Os barris de vinho estavam todos enfileirados logo na saída do celeiro. Nós bebemos um pouco, mas quando o povo começou com os costumeiros ensaios eróticos eu me afastei apenas com Thalya. Apesar de Marlon ter nos convidado para participar, eu só queria ver um pouco da manhã e respirar ar puro e fresco. Ela estava curiosa para saber algumas coisas, mas eu tinha muito pouco a acres­centar. Não lembrava e nem sabia de nada. Certamente ela tinha visto muito mais do que eu.

Notamos que, à medida que o sol se erguia e o calor aumentava, as moscas apareciam em bandos. E pudemos comprovar algo que sabíamos apenas a nível teórico: elas não nos tocavam. Era uma proteção especial de Bélzebu.

Fomos passear um pouco, conhecer os bichos. Lá pelas nove da manhã eu estava me sentindo melado e sujo. Fui tomar um bom banho, pois a liberdade era total. Taolez ainda disse que eu podia abrir o guarda-roupa dele e escolher a roupa que quisesse.

Tentamos em seguida brincar com o jipe, eu e Thalya dirigimos um pouco, afinal não tinha mesmo onde bater com ele.

Fiz algumas perguntas sobre o que tinha acontecido comigo mas ela esqui­vou-se, argumentando:

— Não posso te falar.

Imaginei que Thalya tivesse sido instruída nesse sentido e então eu não per­guntei mais nada.

Fui extremamente parabenizado por todos que se aproximavam de mim. In­clusive pela linda ruiva que eu tinha conhecido há dois anos, no Castelo. A Feiticei­ra que auxiliou no preparo do caldeirão foi muito explícita e me queria a todo custo. Thalya já estava cheia e a jovem foi tão incisiva que Taolez, como Sacerdote daquele Núcleo — e do qual ela fazia parte — foi obrigado a balizar a situação.

— Ele não é para você agora. Ele tem uma alma-gêmea. E enquanto não chegar o tempo dos dois cumprirem o que tem que ser feito diante de Lucifér, é melhor que não se una a você!

E ela nunca mais se atreveu a tantas insinuações.

Depois que saí do banho vi que começava a chegar uma equipe contratada para preparar um enorme churrasco. Eram pessoas comuns, que nada sabiam sobre a Irmandade. Estavam ali só para auxiliar nos preparativos para tanta gente.

O dia foi agradável ao extremo. Uma banda tocou ao vivo, havia muita co­mida e muita bebida, a confraternização durou o dia inteiro.

Mas no íntimo sempre ficava aquela sensação que eu não saberia descrever, cuja palavra mais próxima era choque. Marlon explicou-me novamente, mais tarde, que tudo aquilo se fazia necessário porque a minha posição no futuro seria muito importante e de muito destaque. O Poder que eu havia recebido naquele Rito era forte e muito especial. Mas ao final do Terceiro Ciclo o revestimento seria tremendo, muito maior do que então.

Sem dúvida era uma honra. Poucos são os escolhidos para o fim ao qual eu me destinava. Já tinha uma leve idéia, sabia que estaria ocupando um posição estratégica. Todos são colaboradores, muitos são os filhos, evidentemente, mas poucos são os chamados para níveis como aquele.

Depois disso eu fui muito admirado. E o respeito cresceu palpavelmente em relação à minha pessoa.

Muita coisa mudou depois daquele Ritual. Muitos foram os que passaram a pedir minha ajuda para a realização de encantamentos, muitos eram os que pedi­am que simplesmente eu lhes impusesse as mãos. Os encantamentos realmente se fizeram muito mais fáceis a partir de então. A voz de Abraxas se tornou incri­velmente mais audível, passei a ter visão aberta com muito mais freqüência.

De fato a manipulação do Poder se tornou mais fácil. Comecei a experimen­tar a Magia de fato. Me tornei muito mais altivo e minha segurança para tudo cresceu tremendamente.

 

Em quase cinco anos de namoro eu me convenci definitivamente que a pior coisa que eu tinha feito era ter namorado com Camila. Não adiantava. Eu não a compreendia e ela também não me compreendia, não gostava das coisas que eu gostava, não era companheira. Só me cobrava, mas no entender dela não estava fazendo nada de errado.

Comecei a querer terminar de verdade! Com ou sem pena, não via a hora de estar livre. Era uma loucura continuar atado àquele relacionamento. Antes era eu quem gostava muito dela e ela não queria saber muito de mim. Agora eu já estava farto e ela tinha se apegado demais, tornado-se dependente. Isso não era só uma questão financeira, eu sabia. Camila decididamente não queria ficar sem mim! Mas terminei assim mesmo.

Nesse meio tempo voltei a ficar muito mais com Thalya. Mas Camila veio atrás, procurava ser carinhosa, desculpar-se, dizia que ia mudar, que me amava, essas coisas. Reatamos. Mas tudo continuou como antes, ou seja, muito ruim. Camila queria me colocar um cabresto e isso não ia dar. Eu não conseguia mesmo olhar para ela com os mesmos olhos!

Terminamos de novo. Ela fazia a cena costumeira. Eu já nem ligava! Dizia que ia se matar, que não podia viver sem mim, um dramalhão mexicano em alto estilo. A mãe dela voltava a me ligar, contava que Camila não estava comendo, que ia adoecer, a mesma ladainha de sempre, etc... etc... etc....!

Por que não me largava?

Piorou de vez quando Camila decidiu me procurar pessoalmente. Baixou em casa sem avisar, era um sábado, final de tarde, e eu estava à espera de Thalya que havia ligado fazia pouco:

— E aí?! Chegou do treino? Topa dar um rolê? Minha prima está aqui, vamos curtir um pouco, cara, liberar! Comprei aquele negócio que você falou!

— Negócio? Que negócio?!

— Aquela lingerie.

— Pô, eu não falei nada! Você que perguntou qual cor eu achava que ficava melhor.

— Bom, te arruma, gato, que eu tô passando aí!!

E eu estava justamente à espera quando a campainha tocou e dei de cara com Camila na porta.

— Droga, droga, droga! — Resmunguei.

Já fazia alguns bons dias que eu não a via e realmente estava mais magra. Ela veio toda humilde, toda solícita, querendo reatar da melhor maneira. Sentou no sofá, cabisbaixa, para conversar. Eu escutava com um ouvido nela e outro na rua. De repente:

— FOM! FOM! — Eu conhecia aquela buzina.

Tentei avisar minha mãe para contornar a situação, dizer para Thalya espe­rar, algo assim, mas não deu tempo.

— Oi, Edu!

Thalya se dependurou na janela, toda sorrisos, espiando para dentro da sala num salto. Eu me ergui, procurando me interpor entre as duas. De costas para Camila eu fazia todo tipo de sinal para que ela se mancasse. Thalya já tinha percebido a situação, mas nem se fez de rogada, não deu bola para os meus sinais.

— Olha lá, aquela é a Cris! — A Cris estava empoleirada na traseira do Escort conversível e me acenou toda sorridente também. — Vamos?

Cheguei perto da janela e falei baixo:

— Thalya, vê se te toca...

Ela deu uma olhada de relance para os dois lados da rua e ergueu voluntariosamente a saia. Observei a cinta-liga cor de vinho no mesmo instante em que Camila, já desconfiada, me abraçou por trás e veio procurando debruçar-se por sobre o meu ombro. E viu também a tal lingerie! Sinceramente eu não tinha dito nada, nem sugeri, Thalya que inventou de comprar aquilo. Eu só tinha opinado quanto à cor.

— Ôôôi! — Thalya soube ser cruel. — Essa daí que é a lombriguinha da Camila???

Descrever a reação de Camila seria difícil. Ela ficou alucinada! Berrava de raiva e correu para abrir a porta:

— Eu vou matar essa vagabunda (...)!!!

Foi literalmente um banzé. Minha mãe tentava contê-la e trancar a porta. Thalya voltou para o carro e esperou pacientemente até que Camila se arrumasse com a chave da porta da frente e do portão. Quando saiu berrando na calçada e se aproximou do carro Thalya acelerou. Ainda fazendo careta para ela. A Cris, encarapitada onde estava, deu um aceno provocativo e mostrou a língua. As duas saíram rindo e eu tive que conter a fera, que veio babando para cima de mim.

Precisei segurá-la com força, ela gritava e chorava, queria me chutar, cuspir no meu rosto. Esperei até que a crise passasse e a soltei. Imediatamente ela me unhou com tanta força que tenho uma pequenina cicatriz até hoje. Fiquei bravo também! Eu não estava fazendo tudo o que ela estava pensando! Thalya era da­quele jeito mesmo.

Comecei a berrar também:

— Nós não estávamos mais namorando! E não estamos namorando! Chega dessa palhaçada, você aparece aqui só para arruinar a minha noite!!!

Meu braço sangrava e eu perdi a cabeça, agarrei-a e a coloquei para fora do portão:

— Pode ir para casa! Nós não estamos mais namorando, eu estou cheio de te aturar!!! Escutou?!!! NÃO ESTAMOS NAMORANDO!!!!

Voltei para dentro e ela ficou lá. Minha mãe estava penalizada.

— Pelo menos acompanha ela até o ponto do ônibus. Terminei de lavar o braço e voltei. Camila estava sentada no portão.

— Vamos. — Falei secamente. — Vou te acompanhar até o ponto.

Ela sabia quando era hora de parar. Eu estava bravo de verdade. Fomos caminhando em silêncio sepulcral até que ela se manifestou:

— O que ela tem que eu não tenho?

Eu queria me livrar dela. Falei o que sabia ser a coisa certa para magoar:

— Ela é mais mulher do que você! Sabe?! Ela sabe se portar, sabe ser femini­na. E faz o que você não faz!

Camila ficou muda. Ela sabia do que eu falava.

— E o que você quer?

Inacreditável. Propus algumas coisas que, eu sabia, eram demais para ela. Eu tinha certeza que ela não ia topar. Mas topou...

Novamente: fiquei com dó apesar da minha raiva.

— Eu faço o que você quiser. Mas diga que nós estamos namorando

— Amanhã a gente conversa, vai. Vá para sua casa agora. — Respondi mais brandamente.

Fiquei pensando. Não saí com Thalya, aquela mulherada às vezes enchia demais a minha cabeça. No dia seguinte fui à casa de Camila como combinado Ela estava sorridente como se nada tivesse acontecido, tinha feito bolo e nem tocou no assunto. Eu não seria capaz de cobrar dela o que havia sugerido. Nunca o fiz. E ela também nunca mais ofereceu.

 

O oitavo Portal foi aberto de maneira convencional, sem nada de diferente, na última Lua Cheia de junho. Passaram-se quase três meses. Faltava apenas o nono Portal a ser aberto.

Aconteceu em setembro. Depois passei muito tempo pensando se o que acon­teceu nessa ocasião foi real mesmo ou não. Percebi que novamente haveria uma solenidade especial. Foi um pouco antes da Festa da Primavera, uma semana antes, mais precisamente. E por ocasião dessa Festa eu iria mudar de patente. Isto é, seria consagrado Feiticeiro.

Voltei ao Castelo aonde eu tinha sido Iniciado para a abertura daquele últi­mo Portal.

Naquele dia Thalya não participou. Ela já tinha aberto seis Portais mas o seu processo ia mesmo ser mais demorado do que o meu. Naquele dia havia gente de todo o Brasil no Castelo e Marlon apresentou-me algumas pessoas em caráter muito especial. Deu-me a entender que também eles tinham sido escolhidos para o mesmo nível estratégico que eu. Num futuro próximo, ao que parecia, nossas vidas estariam muito mais unidas do que eu imaginava. Trabalharíamos juntos por um fim comum, uma missão especial dada por Lucifér.

Mas naquela época eu nada entendia sobre aquilo. Não sabia que "nível estratégico" era aquele e nem qual o trabalho que deveria ser realizado.

 

Aquele Portal — o nono, o do centro da cabeça — era um Portal de consagra­ção. De entrega. De corpo, alma, mente e espírito. E naquele dia eu estava fe­chando um ciclo, atingindo a plenitude do Poder que me faria Feiticeiro em pou­co tempo.

A legalidade seria dada ao próprio Leviathan nesse caso, o Principado que exerce influência sobre o Brasil. Não que ele fosse me acompanhar, porque o meu Guia sempre seria Abraxas, mas ele também teria influência aberta sobre mim.

Eu tinha sido Consagrado a Leviathan desde o meu nascimento, embora ainda não soubesse disso.

Mas aquele Rito simbolizava uma Consagração plena a Leviathan. A Lua estava cheia e maravilhosa!

Aquele Ritual me lembrou muito o dia da minha Iniciação. Aconteceu na­quele mesmo salão: iniciei ali e terminei ali. A partir de agora haveria nova etapa a ser percorrida.

Nesse dia aconteceram algumas coisas diferentes. Fiquei sozinho no altar e o Livro dos Grimões me foi entregue pela primeira vez nas mãos. Nesse dia eu passei a ter acesso a ele. Poderia manuseá-lo sem a necessidade de intermediári­os. O Sumo Sacerdote me disse que abrisse o Livro em qualquer página. Eu obedeci. Mas evidentemente eu não entendi o que estava escrito. Ele se aproxi­mou novamente e traduziu para o português.

Ao terminar, o clima era de muita reverência e solenidade.

— Isso que você leu... quer dizer que hoje você recebe um Poder muito espe­cial como filho do Fogo. E o Fogo nunca o queimará!

Parecia algo estranho, mas o texto era profético. Como se aquela página tivesse sido escrita diretamente para mim, para todos os que estavam predestina­dos a chegar aos mais altos patamares dentro do Ocultismo. Compreendi o que ele quis dizer. Me falou muito, durante um bom tempo, mencionou coisas que eu ainda não sabia sobre o meu futuro. Coisas que eram ocultas ainda para mim mas que para todos eles parecia claro como a luz.

 

O sacrifício oferecido, feito de forma semi-canalizada, foi de um jovem da minha idade e mesmo porte físico. Era como se fosse uma troca. Simbolizava a doação da minha própria vida a Leviathan.

 

Depois que me recuperei tomei a poção recém-preparada pelo Sumo Sacer­dote. Havia muita fumaça e fogo naquele dia, mais do que normalmente, e o ambiente era denso a ponto de se poder palpá-lo.

Eu estava sobre o altar a uma distância mediana da imensa pira de fogo. Podia sentir o calor tênue e brando que emanava dela. Houve mais uma série de passos Rituais depois que tomei a poção.

Mas de repente... após um pronunciamento de encantamentos do Sumo Sa­cerdote sobre mim, comecei a perceber que as pessoas começaram a olhar para mim de uma forma esquisita. Com um misto de espanto e respeito, me pareceu.

E então tive a impressão muito nítida de sentir todos os ossos do meu corpo estalando, dos pés à cabeça. Mas me mantinha perfeitamente consciente. Parece que toda a musculatura foi gradativamente se retesando... ficando... compacta. Meus olhos estavam muito quentes, a boca formigava... e então senti os ossos do meu rosto estalando também! Não me veio à mente olhar para mim mesmo, para mi­nha mão, por exemplo... que estava acontecendo??? Parecia que de repente eu estava vendo diferente... eu estava escutando melhor... a impressão é que os sons tinham sido incrivelmente potencializados. Eu podia ouvir a respiração das pes­soas lá embaixo.

Movimentos involuntários me fizeram voltar a cabeça para trás, como se algo me puxasse com força e me fizesse virar o rosto para cima. Eu me sentia compacto, retesado...era como se eu estivesse me transformando em alguma coi­sa. E algo me levantou do chão... me elevou em direção ao fogo... pude sentir que flutuava... parecia estar flutuando! E aí o fogo estava já muito perto de mim, fui sentindo o calor aumentando... aumentando... não tive receio, estranhamente não tive medo nenhum. O Fogo nunca me queimaria...

E eu passei através da pira! Tive a impressão de atravessá-la completamen­te. Eu não sabia se estava dormindo ou acordado, se era um sonho... alucinação... ou realidade...!

Eu não me queimei. Passei por dentro dele e não aconteceu nada!

O fogo parecia ter a consistência de uma geléia, de algo amorfo. E já não estava tão quente, não significava algo danoso. Era inofensivo! Parecia o calor de um banho de sol.

 

Depois de alguns dias eu fui perguntar o que tinha acontecido de fato, embo­ra no meu íntimo eu tivesse uma certa idéia. Mas ninguém me disse bem o que eu queria escutar.

— Você sabe o que aconteceu, Rillian. Por que eu teria que explicar o que você já sabe? — Respondeu-me Zórdico.

— Mas eu quero escutar isso de você! Ele apenas riu:

— Você não tem idéia do que isso significa. É algo muito especial. Se você soubesse o Poder que tem nas mãos! — E acrescentou algo que me deu quase que a confirmação de tudo. — Ao contrário do que você já viu nos filmes... isso não é uma maldição. É uma dádiva! Você vai aprender a controlar tudo isso.

Mas Zórdico não respondeu o que eu queria ouvir! Eu sabia que o que os filmes mostram não é a verdade. Eu sabia, pelo menos teoricamente, que poderia controlar o fenômeno se quisesse. Mas...e daí??!!!

Marlon só riu do meu espanto e não acrescentou mais nada além do que eu já tinha escutado.

Perguntei depois à Thalya. Ela iria me dizer alguma coisa. Ela tinha visto.

Mas logo me frustrei. Thalya não tinha enxergado nada. Rúbia cobrira o seu rosto no momento "H" com um pequeno manto. Talvez ela não estivesse prepa­rada para aquilo ainda.

E, a bem da verdade, eu mesmo fiquei sem saber o quê tinha mesmo aconte­cido. Zórdico parecia convicto e muito satisfeito. Marlon, bastante entusiasma­do. Mas eu... não sabia o que pensar!

Então não pensei. Ou melhor... pensei apenas na Festa da Primavera, que aconteceria dali a uma semana, e durante a qual eu me tornaria Feiticeiro.

 

A licantropia, segundo a explicação convencional, é o processo pelo qual pode-se transformar a matéria. Segundo a Teoria de Einstein, energia é igual a massa vezes a aceleração da luz ao quadrado. A célebre E=m.c2. Eu já tinha apren­dido que tudo o que existe é uma forma de energia "condensada".

O ser humano consegue equacionar isso a nível teórico. E prevê que o processo inverso talvez pudesse acontecer.

E de fato acontece. A licantropia é um fenômeno que se baseia nesses princí­pios. Os demônios se transformam e aparecem da maneira como eles querem. É um princípio muito claro. Como são formas puras de energia, têm o Poder de manipular esta energia conforme a sua vontade.

Assim como um tronco se transforma em energia térmica e luminosa quan­do a energia do fogo é adicionada a ele, o mesmo pode acontecer com o ser humano. Quando é adicionado Poder — Poder que vem das Trevas, que vem dos demônios — ao corpo físico humano... este pode ser transformado.

O Poder vai além da força. A força pertence ao homem, e é limitada. Vai até um certo patamar. Mas o Poder ultrapassa e domina a força, potencializa-a. O horizonte da força é muito pequeno, restringe-se ao mundinho em que o ser hu­mano vive. Dentro das limitações de espaço-tempo e das Leis que regem o nosso Universo de três dimensões.

Mas o mundo espiritual tem um outro conjunto de Leis que extrapola com­pletamente as do nosso mundo. Vai além do nosso horizonte. E não é explicada pela razão. Mas os demônios, por viverem nesse Universo que vai além do nos­so, são capazes de adicionar energia à nossa massa física. Essa energia, quando adicionada à nossa matéria, condensa-se porque foi desacelerada. Isso faz com que seja adicionada matéria à nossa matéria! Daí vem a metamorfose. Ou licantropia.

Lucifér — o quinto elemento — é a representação da Luz Pura. Da Energia Pura. Os demônios de fato têm este Poder. E o concedem a quem quiser. O Poder das Trevas pode ser assim manifesto através da força humana. A licantropia existe.

Acontece. É a transformação dos filhos das Trevas em qualquer coisa que lhes seja concedido que sejam.

Eu só não imaginava que pudesse acontecer comigo. Antigamente esse tipo de coisa acontecia e era usado puramente com finali­dades estratégicas. Por exemplo, alguém poderia transformar-se num lobo. E iria à casa de seus inimigos, ser-lhe-ia concedida a chance de fazer vingança com as próprias "mãos". E garras, e presas e mandíbulas fortes. Afinal, nada impede que pessoas sejam mortas por um lobo...ou um cão selvagem. Isso era muito comum no século dezoito. A morte era causada por um animal. Não havia pista nenhuma.

Era uma capacidade dada pelos demônios para que a vingança pudesse ser feita sem a necessidade de intervenção direta das Entidades. Daí as lendárias histórias de Lobisomens...até dizem que os Lobisomens gostavam muito de mulheres grávidas! Era uma ferramenta muito utilizada pelos Bruxos antigos.

Mas com o crescimento da Civilização e o aumento da urbanização isso se tornou pouco viável. E a licantropia em si passou a não ser mais algo importante a nível estratégico. Resume-se em uma demonstração de Poder concedida pelos Guias aos seus escolhidos. É como levitar, não há muita vantagem em sair levitando por aí. Mas é uma clara demonstração de Poder e de patente. Não é qual­quer um que recebe essas dádivas.

Hoje em dia é muito mais utilizada, em se tratando de estratégia, a arte do desdobramento ou projeção astral. Através desta técnica pode-se ir a qualquer lugar, observar, ouvir segredos, atravessar paredes, viajar na velocidade do pen­samento.

 

E por falar em desdobramento...

Só fiquei sabendo que aquela experiência realmente aconteceu porque de­pois soube que o gato da Simone havia morrido.

Segundo o que eu havia aprendido não existe nada sólido. Isto é, o "sólido absoluto" não existe de verdade. Toda a matéria é composta por moléculas que, por sua vez, são compostas de átomos. E existem espaços entre um átomo e outro.

Quando, pelo desdobramento, projetamos o nosso espírito é óbvio que ele não é composto por matéria nenhuma. Então é muito fácil compreender porque ele pode passar através de quase tudo. Assim como não se pode atravessar um pedaço de tecido com a mão, mas a água pode atravessá-lo, o mesmo acontece com o espírito. O corpo não atravessa e nem pode ir a muitos lugares, mas o espírito humano pode. O espírito atravessa os obstáculos como uma "radiação".

Outro aspecto importante do desdobramento é que, saindo do corpo, não se está mais sujeito às leis de tempo e espaço. Pode-se ir de um ponto a outro num piscar de olhos.

Teimoso como eu era, acabei me envolvendo numa experiência para a qual não estava ainda preparado. Eu havia recebido todo o embasamento teórico acer­ca da projeção astral mas ainda não estava apto para efetuá-la de fato.

Eu andava com raiva de uma vizinha, a Simone, porque o gato dela vivia invadindo o meu quintal e tentava comer os meus passarinhos. Eles ficavam to­dos soltos, tinham plena liberdade: maritacas, pássaros pretos, chupins. Inicial­mente eu pensei em dar um tiro naquele gato que tinha aprendido o caminho da minha casa e volta e meia aparecia sem a menor cerimônia.

Lembrei-me então que o Egípcio tinha comentado uma vez que entrara den­tro de um animal através do desdobramento. Era muito fácil, porque os animais não têm espírito. Diziam que era possível entrar em pessoas também, mas é mais difícil e requer muito mais técnica.

Resolvi tentar. Eu conhecia a técnica e embora soubesse que ainda não era bem o tempo de experimentar... decidi ir em frente assim mesmo.

Segui criteriosamente todos os passos. Deitei-me e relaxei sobre a cama. Es­vaziei a minha mente através das técnicas. Depois era como se eu já nem estivesse na cama, mas deitado sobre uma nuvem. Respirava profundamente, e parecia que a cada respiração eu ia ganhando impulso para cima.

O céu parecia muito azul... muito límpido... e eu sempre flutuava. Comecei a liberar um mantra, constante, procurando me soltar.

Quando me senti completamente relaxado e vagando naquele céu azul, flu­tuando como uma nuvem, pedi a Abraxas para estender-me a mão e levar-me para um passeio.

De repente comecei a ter a sensação de que eu estava subindo, subindo mesmo. Vi o cordão de prata, algo meio fluido e brilhante que saía do umbigo e me ligava ao meu corpo. Mas só vi o cordão e o corpo na hora em que comecei a sair. Depois não mais.

Haviam-me dito também que este tipo de coisa tem que ser feito sempre num lugar aonde não haja interrupção, porque o susto pode fazer com que não se volte mais para o corpo.

Era uma sensação gostosa. Eu me sentia leve, em liberdade. Cheguei à altu­ra do teto e vi pela última vez meu próprio corpo deitado na cama. Traspassei o teto, flutuando, e não havia vertigem, nem medo, nada. Uma sensação ímpar! Parecia que nem mesmo o sol eu estava conhecendo. Tudo à minha volta era como uma grande novidade, como se tudo o que eu sempre conheci já não fizesse parte da realidade que estava vivendo naquele instante. Via as árvores se moven­do com o vento mas eu não sentia o vento. Via as pessoas mas não escutava o barulho delas. Simplesmente não fazia parte daquele mundo. Era apenas um expectador.

Tão somente escutei de leve uma música doce e suave, muito tranqüila. Eu sabia aonde queria ir: à casa da Simone. Pensei no caminho, era pertinho. Tive a impressão de que assim que o pensamento passou pela minha mente, um túnel abriu-se diante de mim e eu como que fui sugado por ele. Quando dei por mim... já estava lá. Pareceu realmente ser instantâneo!

Vi que estava na cozinha da casa dela. Simone sentava-se à mesa e prepara­va um lanche. Sozinha. Então vi o malfadado gato perto da mesa, olhando para cima, querendo comida. Fiquei tremendamente curioso. E lembrei:

"Disseram que é fácil entrar num bicho... como será?!!?".

Eu teria que entrar pela nuca dele. Me aproximei e fixei os olhos no ponto desejado. Num piscar de olhos me senti novamente sugado, num ápice de segun­do. Uma sensação muito diferente outra vez.

E quando eu abri os olhos... eu estava vendo do chão! Do chão para cima, isto é, como se estivesse olhando através dos olhos dele. Parece uma loucura mas foi assim mesmo que aconteceu. Eu via tudo grande à minha volta, uma cozinha imensa, e me sentia muito pequeno. E então eu pude ouvir a Simone falando:

— Berimbau?! Berimbau?! Psss, pssss, pssss! Oi, Berimbau, tudo bem com você, gatinho?

Eu só conseguia pensar se aquilo estava mesmo acontecendo. "Será possível que eu estou mesmo dentro dele? Será que eu consigo fazer com que ele se movimente?".

Não consegui. Ele continuou parado.

— Nossa, como você está esquisito, Berimbau! — Fez a Simone novamente. — Por que você está olhando assim pra mim?!!! Que coisa!

Ela ofereceu comida mas Berimbau, ao que parece, ficou sem fome de re­pente. Estagnado. E Simone estava sem entender nada.

— Jura que você não quer a sua ração preferida, bichinho?

Então, de repente, por uns instantes eu tive muito medo de tudo aquilo. Que loucura!......Não era possível que estivesse mesmo acontecendo. E tive um desejo muito grande de voltar, sair dali, entrar de novo no meu corpo. Saí às pressas, abruptamente.

Senti um arrepio intenso ao sair de dentro de Berimbau. E tive a impressão de ter escutado um miado forte no momento em que deixei estabanadamente o corpo dele. Parece que aquele som ficou ecoando no meu ouvido. E voltei.

Mas durante algum tempo eu fiquei achando que tinha sonhado.

"Pôxa... deitei aqui e dormi! Só pode ser! Minha gana com aquele gato está tão grande que até sonhei que entrei nele!"

Para mim foi mesmo só um sonho. Mas quando foi lá pelas quatro da tarde eu estava parado em frente de casa e um amigo meu ia passando:

— E aí, Edu? Tudo em cima? — Fala, cara!

— Sabe da última? O gato da Simone está morto. — O gato está morto?!

— É, tá sim. Acabei de ver, ele está lá. O bicho está logo aí na esquina, morto.

Dei um jeito de ir até lá para ver. Tinha que ser alguma coincidência. Mas o fato é que ele estava mesmo mortinho da silva, o sangue tinha saído profusamen­te pela boca. E Simone chorava desconsoladamente procurando ver como faria para enterrá-lo.

Acabou sobrando pra mim. Eu já tinha comentado com várias pessoas sobre meu desejo de dar um tiro no gato. Ela me acusava, cheia de raiva:

— Você deu um tiro no Berimbau!!!

— Não dei, não, Simone! Pode olhar aí nele se tem tiro. Eu nem encostei no seu gato!

Num certo sentido era verdade. Mas vi que o desdobramento não tinha sido sonho coisa nenhuma. Ninguém quis mexer no gato para procurar marca de tiro. E eu fiquei o grande suspeito da história. Simone nem falava mais comigo depois disso. Até que os meus amigos da vizinhança acabaram por convencê-la de que eu não tinha nada que ver com o acontecido.

Ela contou a todos como foi o trágico fim do bichano. Não tinha idéia do que poderia ter havido com o Berimbau.

— Ele estava em casa, comigo, na cozinha. Estava meio esquisito. Não quis comer. De repente deu um miado e sumiu. Passou o dia sumido. Apareceu morto na esquina, cheio de sangue. Será que ele foi envenenado?! O coitadinho......

Indaguei a Marlon sobre o que teria havido. Ele me explicou que, em primei­ro lugar, eu não deveria ter sido tão imprudente. Deveria ter esperado até estar plenamente apto para realizar a técnica. Poderia não conseguir mais voltar para o meu corpo!

— E você saiu muito rápido de dentro do bicho. Causou com isso um distúr­bio eletromagnético nele que muito provavelmente levou à arritmia cardíaca e ele morreu. Quando você saiu levou parte da energia vital dele, causando o desequilíbrio. Ele acabou não suportando. Espero que você não seja tão impru­dente no futuro. Pode acabar se dando mal, Eduardo. Cada coisa no seu tempo!

 

Quatro dias antes da Festa da Primavera, durante a reunião do meu Conse­lho, estávamos à espera de visitas especiais. Todos nós já estávamos reunidos quando eles entraram no horário exato de iniciar a reunião. Nunca ninguém se atrasava.

Um homem entrou acompanhado de uma moça. O homem era aquele simpá­tico Sacerdote que eu conhecera na fazenda por ocasião do Rito de abertura de Portais, o Taolez. A moça, muito jovem e muito bonita, eu não sabia quem era. Após as costumeiras boas vindas e abraços e apertos de mão e sorrisos e risadas, nós nos acomodamos.

Taolez apresentou a sua acompanhante que tinha um sedutor jeito de cami­nhar:

— Nós temos hoje aqui conosco uma convidada muito especial. Ela sorria volta e meia, sentada ao lado dele.

— Esta é Gwyneth. — Continuou Taolez. — Ela nasceu na América do Norte e é filha de um dos principais líderes da Irmandade no mundo.

UAU! Aquela declaração me soou como uma bomba e minha admiração por ela cresceu instantaneamente. A reunião que se seguiria traria nova luz aos meus olhos. Eu deixaria de contemplar a Organização da qual fazia parte como algo puramente regional. Não que eu não soubesse que o Satanismo é Internacional... mas ainda não tinha sido realmente apresentado às evidências daquele fato.

Foi a primeira vez que eu ouvi falar mais claramente sobre a questão da estratégia a nível Mundial.

— Ela veio dos Estados Unidos até aqui para cumprir uma missão muito importante. Gwyneth tem visitado alguns dos Núcleos mais importantes do nos­so país em sua estada, e hoje ninguém melhor do que ela para explicar o motivo de sua visita. Por isso... não vou me estender! — Taolez sorriu para a jovem e concluiu: — A palavra é toda sua!

Ela mesma se apresentou, falando um português extremamente "brasileiro". Minha natural curiosidade não me deixou resistir e indaguei assim que me foi possível:

— Pôxa, mas o seu português é muito bom! Há quanto tempo você está no Brasil?

Gwyneth deu risada:

— O nosso pai sabe muitas línguas!

Eu dei risada de volta mas acrescentei, na brincadeira, apenas para Zórdico escutar ao meu lado:

— Como é que eu ainda não consigo?!! Como é que eu não consigo falar inglês?

— Calma. Se um dia você precisar ir aos Estados Unidos ou a qualquer outro lugar o Abraxas vai junto. Ele te capacita no momento certo!

— Ah, que interessante!...

E voltei a atenção para ela novamente. Gwyneth tinha um colar tão bonito que era difícil não notá-lo. Um Pentagrama super-incrementado, de ouro cravejado com pedras preciosas que brilhava muito. Ela usava um vestido azul turquesa, justo, com decote bastante generoso e que deixava ver a pele branca e delicada. As unhas eram longas e pintadas de vermelho escuro. Tinha um sorriso muito agradável, um cabelão puxando para o castanho, os olhos no mesmo tom. Era realmente muito bonita. Devia ter somente uns vinte anos. E logo eu viria a saber que apesar da pouca idade ela já era Suma Sacerdotisa.

— É muito bom estar no vosso meio. Gostaria de lembrá-los de que vocês fazem parte de um Grupo chave neste país. Que Lucifér esteja protegendo este lugar com os seus guerreiros e que esteja demonstrando seu amor a cada um. Que os seus Guias estejam na cobertura!

Em seguida ela parabenizou individualmente a cada um de nós de uma for­ma pessoal. Chamou-nos pelo nome e demonstrou saber quem era cada um que estava à sua frente. E começou com um breve resumo de coisas que nós já sabí­amos.

— Não é necessário que eu vos fale sobre a principal Cadeia Hierárquica Satânica, pois é muito bem conhecida de todos. Mas relembremos alguns concei­tos em conjunto. O Pentagrama faz alusão a estes cinco demônios, como vocês sabem. Lucifér, nosso pai, o maioral, tem sob seu comando os quatro Grandes Príncipes. Lucifér ocupa a décima-segunda dimensão espiritual e os seus quatro Grandes Príncipes a nona dimensão. Estes — Leviathan, Astaroth, Bélzebu e Asmodeo — são mais fortes e poderosos do que a classe dos Principados. São Príncipes que têm um domínio territorial Global muito extenso. Atuam no mun­do todo, é claro, com diferentes nomes conforme muda-se a região. Mas de forma mais intensa em alguns lugares do planeta. Nosso interesse maior é em relação ao mapeamento destas regiões específicas. Falemos brevemente sobre eles. Leviathan atua muito fortemente na América Latina e especialmente no Brasil. Asmodeo tem seu compromisso na América do Norte e Estados Unidos. Bélzebu está bastante ligado ao Oriente, à Índia, China, Mongólia. Astaroth tem uma participação especial na África, na Austrália, Nova Zelândia. Estes quatro Prín­cipes contam cada um deles com uma "Guarda de Honra" composta por cinco Capitães. Estes vinte Capitães ao todo são dos mais poderosos e influentes Prin­cipados. Eles favorecem a atuação dos seus Príncipes e têm fortes domínios em diferentes pontos do Globo. Não vamos entrar muito em detalhes dos outros, falemos mais da hierarquia ligada ao Príncipe de vocês: Leviathan. Ele está asso­ciado ao elemento Água. Isso nos trás uma série de revelações subliminares acer­ca do seu modo de atuação e raio de Poderes. Cresce o seu domínio em toda a região ligada aos mares, aos rios, às cidades costeiras e regiões portuárias. Ele comanda boa parte das legiões das Águas. Mas como podemos identificar isso? Se vocês prestarem atenção, aqui no Brasil boa parte do folclore regional e das Religiões de massas estão associadas intimamente ao elemento Água. Os princi­pais deuses cultuados no Brasil são a "Aparecida" — que saiu das águas —, e a Iemanjá, que dispensa maiores comentários nesse sentido. Até dentro do contex­to indígena aparece a Iara, ou "mãe d'água". Percebe-se a influência cabal de Leviathan por trás destes objetos de adoração. Além do que a própria Bíblia se refere a este demônio como o "dragão do mar", a "serpente deslizante". Vejam como o Brasil é muito propício para Leviathan, um "Habitat" natural para ele. Um país de costa marítima muito extensa. E se formos nos aprofundar e divagar no termo Bíblico descobrimos um pouco mais. A Floresta Amazônica é um sím­bolo que faz menção, no reino físico, a uma realidade espiritual: as serpentes se escondem nas matas! Não é à toa que o Brasil tem a maior floresta do mundo! Ela como que "abriga" o esconderijo da "serpente deslizante"! O Principado mais proeminente da sua Guarda é Abadom, o braço direito de Leviathan. Este é um demônio principalmente de destruição, ruína, perda e morte. Atua na região do Oriente Médio, Irã, Iraque, Israel. Ele é considerado o chefe dos gafanhotos que sairão do Abismo, mencionados na profecia de Apocalipse. Ao seu comando ele tem nove demônios, nove Potestades muito poderosas.

Isso eu sabia muito bem. Abraxas e Adramelech estavam inseridos nesta categoria e faziam parte desse grupo de nove Potestades.

— Na região da Índia, China, Tibet e proximidades Leviathan conta com o domínio de Shiva. É um demônio de sensualidade, prostituição, adultério. Está muito ligado também à idolatria desse povos. Thamúz atua na região da Itália. Tem também forte ação dentro da Maçonaria, por exemplo, que é um dos Braços do Satanismo. O-Yama é o quarto demônio que faz parte da Guarda de Leviathan. Tem ligações com o Japão, Malásia, Vietnã e aquelas localidades ao redor. E um dos principais demônios por trás da idolatria e do cativeiro em que se encontra aquela região. Rimmon atua na região de Espanha e Portugal e, junto com Thamúz controla boa parte da Europa. Mas voltemos aos Grandes Príncipes e à simbologia do Pentagrama no que dia respeito aos elementos representados. Sabemos que Lucifér é o quinto elemento, a Energia pura. Já disse que Leviathan é o elemento Água. E os demais?

Gwyneth inspirou fundo e continuou:

— Asmodeo está associado ao Ar. O seu braço direito, Dagon, é um Principado capaz de causar tempestades, furacões, maremotos. Notam a influência dos Poderes dos Ares?! Como vocês sabem, esse é o tipo de coisa muito comum na América do Norte. O nome de Asmodeo é mencionado no livro apócrifo de Tobias e também no Talmude. Ele é conhecido como o Príncipe da luxúria e da corrupção. Por causa desses seus dotes fica muito clara a influência sobre os Estados Uni­dos. A corrupção e a luxúria imperam naquele país. O próprio símbolo de Asmodeo foi divulgado por todo o mundo. E ele partiu dali, de dentro dos Estados Unidos, através da moda "Punk". Aquele "A" cortado não quer dizer "anarquia" pura e simplesmente como acreditam e apregoam os punkes. Antes é o símbolo de Asmodeo! Nosso terceiro Príncipe, Bélzebu, o Senhor das Moscas, associa-se ao elemento Fogo. E o fogo é o elemento que tudo consome. Isso faz alusão ao modo como ele age. Está ligado às disseminações de pragas, doenças, enfermi­dades. Isso certamente os faz lembrados das péssimas condições de higiene e de saúde em toda aquela região! E das moscas! Inclusive seu principal escudeiro é Nosferatus, o responsável por destruir e consumir as energias, "sugar energias". Toda a atuação dele é no sentido de consumir, ânimo, saúde, bem estar, etc...! Bélfegor e Behemoth estão associados a Bélzebu também. Mas Belfegór não está ainda em nossa dimensão.

E isso eu não entendi. Mas ela continuou sem maiores comentários.

— Astaroth, representado pelo elemento Terra, é um demônio de confusão e engano que está muito ligado à Era Mística, dos cristais, dos duendes, das pirâ­mides e tudo o que se propaga através do Movimento Nova Era. Mas a questão do elemento Terra faz mais alusão ao mundo material. Quero dizer que tudo o que prende o ser humano ao mundo horizontal, ao "Ter", é influenciado por Astaroth. Ele está também ligado ao domínio das riquezas da Terra e sua cobiça pelos homens.

Depois daquela introdução Gwyneth começou a falar brevemente do seu próprio país, os Estados Unidos, e de como a estratégia satânica vinha andando ali conforme o esperado.

— Todas as Igrejas estão praticamente inoperantes! Não têm mais Poder ne­nhum, já não há interferência e nós temos plena liberdade de atuação. As poucas comunidades que nos ofereciam resistência estão já em vias de destruição. Os principais líderes já caíram e não vejo de onde surgirão outros que possam vir a fazer frente ao poderio da Irmandade naquele lugar. Alguns pagaram com a vida!

Realmente aquela Nação já não é de cunho Protestante. Nós estamos plenamente inseridos dentro da Sociedade em todos os níveis: o sistema econômico, social, político, militar, de saúde e de ensino nos pertence. Já não há como resistir à Irmandade graças ao domínio extenso que nosso pai e os Guias, cooperando conosco, conquistaram! A Base está totalmente firmada, no lugar certo onde Lucifér havia determinado. São Francisco já não é a mesma, nem a Califórnia. Ainda que Asmodeo domine na América do Norte, ele o faz preparando terreno para o pai. Porque o país mais poderoso do mundo será território de domínio de Lucifér em curtíssimo tempo! Ele será coroado ali. Restam poucas arestas a se­rem aparadas para que isso efetivamente se concretize. E ele dominará completa­mente todos os Estados Unidos! Tudo o que é exportado para o mundo nasce naquela Nação: os games de computador com mensagens subliminares, RPG, as músicas e bandas que mais fazem sucesso e têm seus discos consagrados, as principais griffes, etc. A rede está se expandindo. Como um inexorável enxame de abelhas. O domínio será total!

Gwyneth não usou de subterfúgios em momento algum. Projetou um slide cujo gráfico mostrava o decréscimo de Cristãos Evangélicos na América do Nor­te. A queda era vertiginosa depois de um certo período, após o governo de um certo presidente cujos favores haviam sido comprados.

Nós batemos palmas e demos vivas diante do exposto, com sincera alegria. Ela continuou falando de coisas sobre a estratégia mundial.

— Mas o que tem acontecido em larga escala nos Estados Unidos é um refle­xo do que ocorre no Mundo todo. O Evangelho não pode ser propagado. Vocês sabem que para isso é preciso que o nosso domínio seja completo e inexpugná­vel. A questão das Bases é outro aspecto que quero enfocar agora. Até Março de 1998, teremos doze Bases Mundiais. Por enquanto, como vocês sabem, são ape­nas duas, a de São Francisco e a da Holanda. A da Holanda não é definitiva, ela será mudada para um local maior e mais estratégico antes que finde o tempo até 1998. E este é o prospecto das outras dez Bases.

O slide foi projetado. Para a maioria aquilo não era novidade, mas para mim e Thalya foi a primeira vez. As doze Bases estavam ali estampadas, cada três formando um triângulo que dominaria cada quadrante do planeta. Para meu espanto uma delas seria no Brasil. Na Bahia. Na região por onde os colonizado­res tinham entrado no nosso país. Arregalei os olhos.

— No quadrante noroeste do Globo a triangulação acontecerá ao redor de Nova York, São Francisco e México. A maior concentração de demônios ficará neste eixo. No quadrante sudoeste os pontos ligam o Peru, provavelmente partin­do de Lima, Buenos Aires e Bahia. O triângulo menor, formado por Grécia, Cairo e Jerusalém tem por objetivo controlar e cercar a cidade Messiânica. Porque daí virá o anticristo, descendente de Judeu. Provavelmente a Base atual na Holanda será transferida para a Grécia. O triângulo maior tem seus pontos na África do Sul, Austrália e provavelmente Bancoc, ou ali por perto mesmo.

Alguém perguntou sobre a questão da (antiga) União Soviética.

— Ela não oferece um pingo de resistência. — Respondeu a jovem Suma Sa­cerdotisa. — Não há necessidade alguma de implantação de Bases naquele lugar. Dentro da Cortina de Ferro estão todos completamente mortos e apagados. A Igreja Ortodoxa é uma facção da Igreja Católica, uma espécie de Igreja Católica "Oriental". Ela domina vorazmente e essa doutrina prega e crê piamente que os Evangélicos Protestantes estão associados ao diabo, são hereges condenados ao Fogo Eterno. Não há com o que se preocupar. Apenas monitorar de longe, mais nada! Mesmo porque, Lucifér escolheu para si os Estados Unidos. A União Sovi­ética terá que deixar de existir!

— Mas não é o mesmo caso da África? Eles também estão completamente dominados por outras religiões.

— Mas em especial a África do Sul tem recebido muitos Missionários e há planos de continuar esse processo. Por isso uma das futuras Bases estará coloca­da ali! Como vocês sabem, as Bases são as Unidades da Irmandade responsáveis por repassarem a visão estratégica e a direção que tem vindo de Lucifér a todos os seus seguidores. A localização delas foi muito estudada e finalmente repassa­da a todos nós. Se vocês já tivessem no Brasil a Base-Mãe de vocês eu não precisaria estar hoje aqui. Isto é, os líderes brasileiros poderiam receber e repas­sar as diretrizes sem necessidade de intermediários. Enquanto não é chegado este tempo vocês continuam sob a supervisão da Base norte-americana. Assim como todos os outros lugares do mundo aonde temos implantado os Núcleos depen­dem, ou de nós, ou da Base holandesa. Conforme a direção de Lucifér. Entendam que quando o número das Bases for doze o Domínio e o Poder serão definitivos e completos! Também os incontáveis Núcleos Regionais, espalhados pelas prin­cipais cidades e estados de todo o mundo estarão no auge do seu domínio e nada poderá detê-los. Assim como nos Estados Unidos, todo o sistema de governo dos povos estará em nossas mãos: a política, o exército, as leis, os hospitais, as esco­las, as faculdades, e tudo o que se possa possuir. Todos os setores! E quando digo todos os setores são todos os setores mesmo, inclusive as classes menos favorecidas porque a tendência destas é apegar-se a Deus com maior facilidade. Mas a Igreja Cristã não poderá fazer frente a nada disso. Eles perderam tempo demais! Vou apresentar-lhes os dados logo mais.

Gwyneth tomou um pouco de água e retomou, sorrindo:

— Tudo o que falo é com propósito. A questão do extenso domínio dos nossos aliados, a crescente e esmagadora vitória nos Estados Unidos e o proje­to em andamento das doze Bases Mundiais tem sua razão de ser. É a expressão antecipada da nossa grande vitória futura! Comprovarei aos irmãos alegremen­te através dos dados. E declaro com veemência: aqui no Brasil não será diferente! — Exclamou ela. — A estratégia brasileira já foi montada por Lucifér e o tempo se aproxima. Trabalhemos, pois! O findar do Terceiro Ciclo nos trará a coroa da vitória! Vocês estão muito bem assistidos aqui, não receiem por nada. Leviathan tem o seu Poder. Este Principado trás sobre o Brasil uma influência imensa, coisa que o povinho Evangélico nem desconfia! Muitos líderes proemi­nentes vão cair a partir de março de 1998, e aí... as ovelhas se espalharão. E tornar-se-ão ainda mais fracas!

Novamente nos rejubilamos incontidamente com ela. Gwyneth jogou o ca­belo para as costas e continuou falando com entusiasmo e muita convicção de tudo o que conhecia. Eu nunca tinha escutado falar de coisas naquelas propor­ções. A Irmandade de fato estava estendendo a sua rede pelo mundo inteiro, como um véu já quase prestes a se fechar. Nada mais sairia dali... nada mais entraria.

Compreendi que cada Núcleo de Adoração espalhado pela Terra — num dos quais eu mesmo estava inserido — era como uma "mini-rede" coordenada pelas Redes-Mães, as Bases, e todos atuavam com um propósito comum. E todas as culturas e povos do Planeta estavam sendo fagocitados pelo Satanismo. Tudo funcionava perfeitamente, dentro do previsto!

— Cada povo receberá o seu jugo Satânico embasado na própria cultura. Infiltramo-nos de forma a não chamar a atenção, é claro. Os lobos não vêm arreganhando os dentes quando querem comer as ovelhinhas! Nosso lugar sempre será na Sombra. Na Índia não se fala em deuses africanos, do mesmo modo que na África não se cogita em Buda. Já os Estados Unidos gostam muito de Nova Era. E no Brasil deixamos que a Aparecida e as religiões ligadas ao baixo espiri­tismo façam a sua parte. Aliás, o candomblé, a umbanda e a quimbanda são como "parque de diversões" para demônios! Em se tratando disso já não há mais nem o que fazer, o engano já está no piloto automático. Os próprios demônios se incumbem de fazer a coisa funcionar. E esse é o caminho, vocês sabem muito bem: a Irmandade cria estruturas que não ferem as crenças locais, ao contrário, perpetuam-nas e desviam o curso da História no rumo que queremos. Rumo ao reinado do anticristo! Por isso já é hora de acabar de vez com esses ventos de rumores e falatórios sem propósito acerca do Brasil vir a ser "Celeiro de Missio­nários", como gostam de apregoar os tolos de Deus. Esses ventos de doutrina e promessas Daquele que é nosso inimigo já chegou também aos nossos ouvidos. No entanto... guardem bem: a doutrina deste Deus hipócrita jamais sairá deste país numa chuva de avivamento! Jamais!! Estamos tomando todas as providên­cias para que isso não aconteça. Toda monitoragem será necessária e os enviados de todo o mundo virão sempre que se fizer necessário. A luta é conjunta, a luta de vocês é a nossa luta! "Poder à força... e morte aos fracos"! Por isso enfoco a necessidade de monitorarem-se os Missionários Cristãos. As Profecias sobre o "Celeirinho Missionário" não terão razão de ser muito em breve! Tudo bem que o nosso trabalho é incrivelmente facilitado por causa dos próprios Cristãos, mas ainda assim não se pode perdê-los de vista. Querem ver algo de peso em relação às Missões?! É que a Igreja decididamente não sabe, não tem a menor noção de como se fazem "Missões"! Há Missionários Cristãos que vão, por exemplo, para a Etiópia, ou para o Cazaquistão, ou para a Turquia. Só que no seu peculiar egoísmo a Igreja larga aqueles pobres coitados num fim de mundo desconhecido, muitas vezes sem o suficiente para manter a mínima dignidade. Eles ficam até sem ter o que comer, e quando alguém não tem o que comer deixa de pensar em Deus. Cedo ou tarde a necessidade constante das coisas mais básicas faz com que eles esqueçam completamente dos propósitos para os quais foram enviados. Óbvio que em primeiro lugar eles têm que comer, beber, dormir e se vestir. É muito utópico acreditar que todos eles vão viver integralmente — e permanentemente — o "Buscar em primeiro lugar o Reino de Deus para que as demais coisas sejam acrescentadas". Ninguém fala de Deus por muito tempo com o estômago vazio! Ninguém fala de Deus com os filhos doentes e nús. E mesmo que os mantenedores se lembrem deles... nós os fazemos esquecer. Aos poucos deixam de falar... de orar... de pedir sustento para as Igrejas...! E quando mandam coisas, nós as inter­ceptamos! Criamos todo tipo de problemas no campo missionário: doenças, difi­culdades com moradia, excesso de gastos que vão muito além do que eles rece­bem. É preciso criar muitas necessidades, muitos pontos nevrálgicos. Natural­mente este esforço é despendido somente em casos extremos, para pessoas muito resistentes. A maioria sucumbe sem todos esses rodeios espirituais. Não é inte­ressante que as Missões Evangélicas cresçam e tenham sucesso! Qualquer uma que seja empecilho, ou que possa vir a ser... tem que ser exterminada. Observem aqui alguns nomes de Missões nas quais temos atuado com maior intensidade. E saibam que temos atingido os nossos objetivos. O trabalho deles nos campos não têm sido muito frutífero.

Gwyneth colocou diante de nós uma lista de Missões Evangélicas e discor­reu com detalhes a respeito dos projetos de cada uma.

— Esta linha Missionária, por exemplo, tem uns obreiros que não passam de burros de carga. Eles são pobres, miseráveis, não têm sustento e nem quem os ajude. Apesar de serem uma Missão Internacional! Ah! — Gwyneth soltou um risinho sarcástico. — A Igreja Evangélica é a coisa mais ridícula que existe na face da Terra!!! O Império de Lucifér vai prevalecer. Para nós nunca falta dinhei­ro para nada!

Ela mostrou a seguir os gráficos que denunciavam todos os eventos Cristãos de porte. Eles estavam mapeados e as datas confirmadas para que fossem envia­dos os espias.

— Tudo o que acontece na Igreja de Cristo é monitorado. Eles são tolos o bastante para que todas as suas estratégias caiam logo nas nossas mãos. Aliás, estratégia é uma palavra muito pouco conhecida dentro do vocabulário Cristão... os poucos líderes que têm mais visão não encontram quorum de jeito nenhum! "Bata­lha Espiritual" é um termo a que os Cristãos têm especial resistência. Os idiotas!!'

Mas observem o levantamento dessas últimas estatísticas. Voltemos um pouco e vejamos no gráfico os valores representados de cada fatia de Religião no vosso país. Havia ali fatias de várias cores mostrando o número de pessoas inseridas dentro do catolicismo, do espiritismo, do candomblé, umbanda e quimbanda, das seitas orientais, etc...

Mas ela falou apenas sobre os Cristãos Evangélicos:

— Isso aqui não tem muito valor na prática porque esse número é virtual. Podemos reduzir para um milésimo este exército porque não aprenderam ainda o que significa compromisso com o Seu Deus. São fracos, desunidos e despreparados! Vivem de arrotar a sua presunção e o seu triunfalismo. Pensam que são fortes. Que riam enquanto podem! Poucos são os focos que ainda estão criando alguma resistência. Lucifér não se importa que falem dele. Pelo contrá­rio. E muito bom que falem, que riam, que batam os pés e gritem histericamente, que desprezem o príncipe deste mundo. É muito bom quando eles acreditam es­tar enfrentando um leão sem dentes, um cão sarnento. Porque enquanto as Igrejas acreditam que venceram, enquanto vivem de "Xô, Satanás!" abrem o espaço para que tornemos a nossa vantagem cada vez maior. É mais fácil derrubar o inimigo quando ele acha que já ganhou...! Esse é o primeiro passo em direção à queda, a sua autoconfiança e a sua soberba, a falta completa de visão, de unida­de. Eles não dizem que "aquele que está em pé veja que não caia"? Pois é isso mesmo, dessas palavras fazemos também a nossa bandeira: nós, fazemos pare­cer que eles estão em pé. Tudo não passa de uma grande aparência. Mas quando dermos o toque de atacar eles serão derrubados como dominó, um após o outro. Nós faremos soprar um novo vento, um vento cuja doutrina os fará desviar os olhos do seu propósito. E não prevalecerão!

Ela então projetou um slide que falava mais detalhadamente acerca do cres­cimento numérico do Evangelho. Tanto no Brasil como a nível mundial.

— Vocês podem perceber que os números mostram um aparente crescimento. No entanto isso não é reflexo da realidade pelo seguinte: as Igrejas formadas são frias, são mortas, são desvirtuadas. Podem crescer o quanto quiserem... podem inchar! Não representam ameaça nenhuma! O crescimento é puramente numéri­co. Poucos são os remanescentes. São Igrejas de rótulo cujos Pastores estão mais preocupados com o dízimo das suas ovelhas do que com o compromisso delas com Deus. O exército deles tem aumentado em número, mas é um exército fraco aonde ninguém luta, ninguém tem visão estratégica nenhuma, ninguém está preparado para o confronto. Eles ficam sentados esquentando os traseiros e criticando-se uns aos outros, fazendo picuinhas por causa de usos e costumes, por causa de denominações, e eles mesmos destroem os poucos a quem sobrou alguma visão do Reino! Em suma: o quartel está cheio, mas não há quase nenhum solda­do. No que diz respeito ao fim do Terceiro Ciclo: os poucos líderes que restam deverão cair, como eu já disse. E o nosso exército estará totalmente colocado em posição estratégica, pronto para o brado de comando, pronto para manifestar ao mundo o verdadeiro detentor de Poder, Lucifér, o que está na Sombra e vem agindo desde os primórdios sem que tenha sido descoberto! Algumas pessoas são chave nesse exército. Falemos um pouco mais sobre eles. Então Gwyneth chegou perto de Marlon e perguntou:

— Você está preparado?

Ele não hesitou nem um segundo e respondeu muito senhor de si:

— Lógico. Sempre estive!

Com uma das mãos sobre o ombro de meu amigo ela falou para todos nós:

— Vocês vão ver que este homem ainda vai ter muito Poder. Muito Poder! Ele será um dos líderes desta Nação e todo aquele que se levantar em oposição a ele cairá e não mais reerguer-se-á! E, dentre outras coisas, eu vim para participar deste Rito. Um Rito de entrega de algumas vidas que serão pontos cruciais no desenrolar da estratégia no Brasil. Uma destas é o Marlon. Os demônios que o acompanharão depois serão muito mais poderosos do que os que o acompanham agora. Ninguém poderá resisti-lo! Ele será capacitado com força, Poder e sabe­doria, e desempenhará bem a sua missão! Nós vamos preparar caminho para aquele que vem nos dar a liberdade absoluta, o anticristo, aquele que no devido tempo será feito morada de nosso pai e transformará todas as coisas. O tempo é curto, muito curto, pois o final do Terceiro Ciclo se aproxima e tudo tem que correr dentro do previsto. Então receberemos todo o Poder necessário para que cumpramos completamente a Missão! Cada um tem o seu lugar e a sua função. Mas em especial o chamado daqueles que governarão as Nações é muito grande. Eles serão as portas através das quais o anticristo governará o mundo visível e o invisível! Os escolhidos para o governo dessa Nação já foram apontados e o tempo em que serão Consagrados já foi também determinado. Este será o primei­ro Rito de Entrega. Mais tarde haverá outros conforme chegue o tempo de cada um dos escolhidos.

Eu me senti extremamente ensoberbecido com aquilo tudo, com a estratégia a nível macro começando a descortinar-se diante dos meus olhos. Que Poder!! Gwyneth continuou falando e eu devorava as palavras que saíam de sua boca. Em última análise a Irmandade descortinou-se totalmente nova naquele dia para mim. Como uma estrutura dotada de um poderio imenso, incalculável, e cujo objetivo era englobar a Sociedade Humana completamente e da maneira mais subliminar possível. Ela terminou de falar a respeito das estatísticas mundiais e de tudo o que vinha ocorrendo pelo mundo em se tratando do cumprimento da estratégia. E concluiu:

— As Igrejas falsas estarão montadas nos países onde o Cristianismo é mais forte. No caso do Brasil, por exemplo, haverá 666 Igrejas falsas implantadas até 1998. Os seus Pastores e líderes serão pessoas da Irmandade ou dos Braços mais próximos. Somente no estado de São Paulo haverá 54 destas Igrejas. Sei que vocês têm tido as direções para que isso se concretize. Tudo está correndo perfeitamente bem dentro do cronograma estabelecido! Que Lucifér esteja com vocês! A reunião terminou com muito júbilo. Gwyneth abraçou-nos a todos. Quan­do chegou perto de mim cochichou um elogio pouco pudendo no meu ouvido. Fiquei roxo, mas lisonjeado. O olhar de Thalya alçou-se um pouco mais inquiridor, para variar, e à medida que Gwyneth continuava sua confraternização eu brin­quei com ela, rindo:

— Calma, Tassa...é tudo família, ouviu? — Falei com ar de troça. — Ela é irmã! Não é isso? Você que é a minha alma gêmea! — Dei uns tapinhas na cabeça dela.

Thalya acabou rindo:

— E desde quando na Irmandade alguém é irmão de alguém? Isso não é empecilho nenhum. Já vai derrubar a asa para essa peruazinha aí?!

— Tudo bem, tudo bem! — Eu continuava na troça com ela. — Você é a alma gêmea! Essa Gwyneth aí não está com nada.

Ficou pré-agendado um jantar com todo o nosso Grupo de Conselho para o dia seguinte, quinta-feira. A Festa da Primavera seria no sábado. E o Rito de Consagração do qual Marlon faria parte aconteceria na sexta subseqüente.

O jantar foi magnífico, na rua mais badalada de São Paulo, perto de uma das mais famosas danceterias da cidade. Algumas pessoas do Grupo até foram dan­çar depois, mas eu e Thalya estávamos cansados e mais a fim de trégua. Depois de comer tanto não dava para encarar o pula-pula da música. E fomos para a casa dela assistir filme de vídeo.

Naturalmente que Camila estava no sétimo sono, eu já quase nem me lem­brava dela. Ela continuava tendo horríveis dores de cabeça e muito sono sempre que eu tinha compromissos assim.

 

E chegou o dia da minha Consagração, dia da Festa da Primavera. A partir de uma determinada patente hierárquica as Consagrações passam a ser feitas durante as Festas de mudança de Estações. A não ser que haja ordem de Lucifér para fazer de outra maneira. É necessário participar da Festa para receber efetivamente a graduação. Ninguém precisa de uma celebração maior porque atingiu o grau de Mago ou de Aprendiz. Mas Feiticeiros, Bruxos, Sacerdotes e Sumos Sacerdotes precisam de uma unção especial de Poder.

Há cinco principais Festas durante o ano: a cada mudança das Estações — vinte e um de março, vinte e um de junho, vinte e três de setembro, vinte e dois de dezembro — e no dia trinta e um de outubro. São destinadas às Consagrações mas também são Ritos de Adoração. Eu já tinha participado da minha primeira Festa no dia vinte e um de junho, logo depois que assumi meu cargo de Supervisor na Style. Logo depois dos primeiros Portais abertos. Mas sem dúvida a Festa da Primavera seria muito mais importante para mim por causa da Consagração.

Estas Festas na virada das Estações são dedicadas aos Grandes Príncipes: Leviathan, Astaroth, Asmodeo e Bélzebu.

Leviathan, por exemplo, tem mais força no período do Outono, portanto ele trabalha ao sul no período correspondente, isto é, a partir de vinte e um de março. No norte do Globo sua atuação principal já vai ser a partir de vinte e três de setembro, quando inicia o Outono no hemisfério norte. Na Primavera o domínio maior é de Astaroth; no Inverno, atua Asmodeo; e no Verão, Bélzebu. Estas qua­tro Entidades são cultuadas de forma cíclica a cada Estação, tanto no norte quan­to no sul do Globo.

E o Sabbath acontece anualmente.

A questão do Sabbath, vulgarmente divulgado como "Festa das Bruxas", já é um pouco diferente. Acontece na data escolhida pelo próprio Lucifér, no dia trinta e um de outubro, e é uma Celebração a ele mesmo.

As cinco Festas não são simplesmente chamadas de "Festa da Primavera" ou "Ritual de Inverno". O número cinco volta a fazer alusão ao Pentagrama pois anuncia a grande Hierarquia Satânica. Mas há cinco palavras mágicas que estão também associadas tanto ao Pentagrama quanto às Entidades. Elas carregam um significado muito profundo em si mesmas. São elas: SÁTOR — ÁREPO — TENET —ÓPERA—ROTAS.

A primeira Festa do ano no caso do hemisfério sul é a Festa do Outono, ou "Festa Sátor". A segunda Festa é o "Ritual de Árepo"; a terceira, o "Ritual de Tenet"; a quarta, que coincide tanto no Hemisfério Sul quanto no Hemisfério Norte é o Sabbath, conhecido como "Ópera Negra" ou "Black Sabbath". E a última Festa é o "Ritual de Rotas".

Estas palavras, quando dispostas numa espécie de quadrado mágico, seja qual for a direção em que sejam lidas a pronúncia é a mesma, de cima para baixo, da esquerda para a direita, e vice-versa. Assim:

 

S

Á

T

O

R

Á

R

E

P

O

T

E

N

E

T

Ó

P

E

R

A

R

O

T

A

S

 

Mas o por quê das Festas receberem esse nome é bastante interessante. Es­sas palavras têm uma representação numerológica cabalística que está associada a todo um contexto astrológico. Por exemplo, "Tenet" tem uma soma cabalística cujo número só pode ser encaixado astrologicamente no período da Primavera, e ao sul, devido às conjunções de planetas que acontecem neste período. Ou seja, só "encaixa" naquele período.

A grosso modo quer dizer que a configuração astrológica seria uma espécie de "prenúncio" às Entidades que estão se aproximando daquela região. A palavra mágica seria então uma "tradução" do que acontece no reino espiritual e que, conseqüentemente, refletir-se-á no reino físico.

E cada letra de cada palavra não é meramente uma "letra", mas o símbolo de uma Entidade demoníaca. Na verdade, o símbolo de cada um dos cinco capitães que compõem a Guarda de Honra do Príncipe a quem se oferece a Festa. Por exemplo, SÁTOR é a Festa do Outono e portanto, cultua Leviathan. As letras desta palavra explicitam os Principados que estarão acompanhando este Prínci­pe na região durante algum tempo. "S" de Shiva; "A" de Abadom; "T" de Thamúz; "O" de O-Yama; "R" de Rimmon.

Em cada Festa de mudança de Estação a palavra mágica correspondente é colocada no Pentagrama por ocasião da Cerimônia. Uma letra em cada ponta por causa do significado simbólico muito extenso de cada uma delas. O número de Sumos Sacerdotes é sempre cinco também. Quatro homens e uma mulher. A úni­ca mulher, a Suma Sacerdotisa, sempre vem representando a chegada da Estação e a entrega daquele período à Entidade cultuada. E os Sacerdotes são, pelo me­nos, dezoito.

É a Celebração de um novo ciclo: são dadas as boas vindas à Guarda que está chegando e oferecidas despedidas temporárias à Entidade que está saindo daquele trono. Acontece uma Festa em cada Continente, cinco ao todo.

A questão do Domínio Territorial é muito complexa no Reino Espiritual. Por exemplo: Leviathan domina sobre todo o Globo, mas de forma cíclica por­que não é onipresente. Então quando esse Príncipe chega ao Brasil no final de março, vem acompanhado pela sua Guarda. Por demônios cuja principal ação Pode dar-se sobre pontos extremamente longínquos. Tomando-se por base o próprio O-Yama, que atua no Oriente e especialmente no Japão.

Apesar de aparentemente este demônio não ter nada que ver com o Brasil e a América Latina, não é bem assim. É necessária a sua atuação na nossa região durante um período por causa da extensa colônia oriental que o país detém. O-Yama deixa substitutos no seu território de origem e vem ao encontro de Leviathan, vem para a América Latina durante um tempo. O mesmo se dá com os Outros Principados.

É importante essa atuação porque o Brasil em especial é um país extrema­mente miscigenado que requer atenção especial sobre as diversas raças que abri­ga.

E este é o principio. As Entidades estão sempre rodando o Planeta de forma coordenada e cíclica, monitorando, unindo esforços. Qualquer problema pode ser precocemente detectado e combatido. Como acontece com os exércitos hu­manos, assim também são os exércitos espirituais. Do mesmo jeito que um con­flito no Golfo ou na Palestina atrai atenção e reforços dos Estados Unidos, por exemplo, conflitos espirituais em qualquer parte do mundo podem atrair refor­ços demoníacos específicos. E tropas de demônios que normalmente não estari­am ali podem ser convocadas para vir.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"